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https://doi.org/10.36592/978-65-81110-13-0-10
Émerson Pirola1
Introdução
3 Dentre outros: Antonio Negri, Raniero Panzieri, Mario Tronti, Sergio Bologna, Silvia Federici,
Massimo Cacciari, Romano Alquati. Para uma sucinta apresentação do operaísmo, bem como da
autonomia, que se originou de uma ruptura do primeiro, ver: (COCCO, 2013a, p. 39-45).
4 “Quando incapazes de expressar com segurança a enorme importância dessa mudança, às vezes
Trabalho imaterial
6 Paraevitar mal entendidos ou críticas ligeiras: “Devemos enfatizar que o trabalho envolvido em toda
a produção imaterial continua sendo material – mobiliza nossos corpos e nossos cérebros, como
qualquer trabalho. O que é imaterial é o seu produto. Reconhecemos que a este ponto a expressão
trabalho imaterial é muito ambígua” (HARDT & NEGRI, 2014, p. 150, grifo dos autores).
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Subsunção real
Acreditamos que essas teses se tornam mais claras, ainda que ao mesmo
tempo a sua materialidade se torne menos localizável e mais difusa, quando
avançamos outro conceito fundamental para as análises de Negri, o de subsunção
real. Subsunção é o modo marxiano de falar, de maneira geral, da relação entre o
trabalho e o Capital – o primeiro é subsumido ao segundo. Porém Marx identifica
dois tipos de subsunção: subsunção formal e subsunção real. A segunda seria a
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7 Mario Duayer nota que o termo “Mehwert” significa, literalmente, “mais-valor”: “Uma vez que não é
tradução literal de ‘Mehwert’, o uso de ‘mais-valia’ teria de ser justificado teoricamente. Essa tarefa é
impossível, pois, como ‘valia’ nada significa nesse contexto, não há como justificar ‘mais-valia’ do
ponto de vista teórico pela simples anteposição do advérbio. Ademais, além de ser uma tradução
ilícita, a expressão ‘mais-valia’ converte uma categoria de simples compreensão em algo enigmático,
quase uma coisa. Produção capitalista, como se viu, é produção de valor, e produção de valor tem de
ser produção crescente. Portanto, produção capitalista é, por definição, produção de mais-valor” (2011,
p. 23). Acompanhamos, portanto, a opção da editora Boitempo em não mais falar em “mais-valia”,
noção sem razão de ser em língua portuguesa.
8 Em O Capital essa distinção entre as formas de subsunção aparece apenas em um momento, mas
suas conexões com o mais-valor absoluto e o relativo são bastante claras (MARX, 2015, p. 577-9).
9 Estamos cientes de que há diferenças quanto ao modo em que Marx e Negri & Hardt relacionam os
conceitos a períodos históricos: Marx reserva a subsunção formal para falar de um período bastante
incipiente do que conveniou-se chamar “capitalismo”, com a existência de trabalhadores artesanais
com relativa autonomia sobre seu trabalho, e subsunção real para os desenvolvimentos industriais
posteriores, com uma crescente estratégia de mais-valor relativo; Negri e Hardt, por outro lado, como
já indicado no corpo do texto, “transferem” essa transição para um ponto mais avançado na história do
capitalismo, o fim da expansão colonial. O que é importante, entretanto, é que em termos conceituais
“formais”, os autores de Império preservam o mesmo sentido marxiano: a subsunção real alcança um
controle sobre o trabalho qualitativamente diferente, funciona por mais-valor relativo (que em sua
linguagem está englobado na “intensidade”), e não há mais relação com um fora (que em Marx se
apresenta nas formas “híbridas” de produção em que o capital primeiramente se assentou [MARX,
2015, p. 578-9]).
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10A tradução brasileira de Império (HARDT; NEGRI, 2001), por Berilo Vargas, traduziu “real
subsumption” como “submissão real”. Como prefiro utilizar a forma “subsunção real”, visto que ela
preserva certo sentido hegeliano-marxiano com mais força, modifico as eventuais citações desse
termo.
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11 Giuseppe Cocco atenta que anteriormente Gorz havia tido contato e comentado a literatura de Negri
e Lazzarato, mas de maneira crítica, definindo as teorias do trabalho imaterial como puro teoricismo
(COCCO, 2014). Em O Imaterial (2005 [2003]), por outro lato, Gorz “assume definitivamente essa
literatura como referência para apreender metamorfoses do capitalismo e os horizontes da crítica da
era da globalização e do conhecimento” (COCCO, 2013b, p. 8). A apreciação do trabalho imaterial da
parte de Negri e seus colegas e da parte de André Gorz, entretanto, não é totalmente compatível. Negri
& Hardt, antes da publicação de O Imaterial, chegam a indicar a obra de Gorz como fonte teórica
sobre o trabalho imaterial, mas afirmam que o francês não teria captado o efetivo poder
transformacional colocado por sua hegemonia tendencial (2001, p. 446, n. 16). Após a publicação de O
Imaterial, seguindo a mesma linha, os autores indicam a obra como uma argumentação contrária às
suas suposições “positivas” sobre a potência do trabalho imaterial (2016, p. 448, n. 56).
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[...] no modo de produção imaterial que caracteriza a nossa época é muito difícil
diferenciar a produção de mercadorias e a reprodução social de subjetividades,
porque não há novas mercadorias sem novas demandas e tampouco há
reprodução da vida sem um desejo singular (NEGRI, 2003, p. 168).
[...] o coração dessa nova relação de trabalho não é mais a ‘forma salário’, mas a
‘forma renda’. Enquanto para o trabalho assalariado canônico o ‘princípio da
realidade’ é representado pelo seu patrão, o trabalhador autônomo [da
empregabilidade] depende diretamente do seu banqueiro e do seu cobrador
(LAZZARATO, 2013, p. 109).
uma nova forma de “aristocracia” que vive da acumulação por renda. Aqui,
finalmente, diante da confusão-identificação contemporânea entre o político e o
econômico, passamos ao conceito proposto por Negri e Hardt: o de multidão.
Multidão
identidade que permitia à classe a característica de lutar como unidade – daí o poder
histórico demonstrado pelos Partidos e sindicatos.
A multidão, por outro lado, caracteriza-se por uma diferença interna, uma
heterogeneidade – ela é um amálgama de singularidades diferentes que lutam em
comum contra um mesmo inimigo – “e com singularidades queremos nos referir aqui
a um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade, uma
diferença que se mantém diferente” (HARDT & NEGRI, 2014b, p. 139). Lutar em
comum, portanto, não é o mesmo que apagar as diferenças de cada elemento, mas
preservas as mesmas como forma e força de luta. A multidão, então, deve ser
diferenciada do “povo” e da “massa” e é exatamente por seu caráter “diferencial” que
ela leva vantagem sobre esses dois. O “povo” é o nome político dado pelas formas de
soberania à multidão a fim de poder capturá-la, é a submissão da diferença a uma
identidade, da multiplicidade à unidade; “massa”, por outro lado, é a operação
similar efetuada pelo capital – é o nome econômico que captura a multidão e dilui as
suas singularidades em uma massa amorfa e indiferenciada (HARDT & NEGRI,
2014b, p. 12-3). Sempre que um porta-voz do poder de Estado ou do capital fala em
povo ou em massa, podemos ter certeza de que algo e alguém estão sendo deixados de
fora. Como Glauber Rocha afirmava: “O Povo é o mito da burguesia” (1981, p. 219,
grifo do autor).
A multidão, portanto, como pretendemos afirmar, é um conceito de classe –
não apenas uma forma genérica de conceber o poder político do social:
Assim, deve-se atentar para a estreita relação entre ela e o mundo do trabalho
antes apresentado. A definição de uma classe social em sentido marxiano passa por
dois momentos formalmente distintos: a identificação do modo de trabalho e da
correlata posição na relação antagonista (entre explorado e explorador) e a pesquisa
sobre esses mesmos sujeitos em suas formas de luta e organização (na verdade, o que
torna possível falar em uma “classe”). Como resume Matteo Mandarini na introdução
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a um livro de 1985 escrito por Negri e Guattari, em que já estão presentes fortes
insights que virão a ser desenvolvidos posteriormente,
a noção de composição de classe reúne dois aspectos: um aspecto técnico, que
envolve uma análise do mundo da produção, sua transformação, e os efeitos
sobre o sujeito do trabalho, incluindo o desenvolvimento de um certo nível de
necessidades e desejos. O segundo aspecto, a composição política, refere-se às
formas em que este primeiro – pelo menos parcialmente determinado
tecnologicamente – podem ser apropriadas politicamente (2010, p. 19, tradução
nossa).
12Como Marx desenvolve em sua Introdução de 1857, todos esses elementos se determinam
mutuamente, constituindo o que podemos chamar de “produção”: “o consumo também medeia a
produção ao criar para os produtos o sujeito para o qual são produtos. Somente no consumo o produto
recebe o seu último acabamento” MARX, 2015, p. 45). Algo que Deleuze e Guattari desenvolvem, a
partir de Marx e Bataille, de forma “herética”, certamente, com o seu “tudo é produção: produção de
produções, de ações e de paixões; produções de registros, de distribuições e de marcações; produções
de consumos, de volúpias, de angústias e de dores. Tudo é de tal modo produção que os registros são
imediatamente consumidos, consumados, e os consumos são diretamente reproduzidos” (2010, p. 14,
primeiro grifo nosso). Acreditamos que Negri não se encontra muito distante dessas posições de O
Anti-Édipo, tendo em vista sua ontologia constituinte e sua determinação marxista.
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classe não é nem uma forma abstrata, nem uma categoria da relação salarial. [...] A
classe operária não emerge e não luta porque existe. Ao contrário, existe porque
luta”13 (COCCO, 2013a, p. 41). Ou ainda: “A classe é determinada pela luta de classes.
[...] mas as classes que importam são as definidas pelos lineamentos de luta coletiva.
[...] A classe é um conceito político, em suma, na medida em que uma classe é e só
pode ser uma coletividade que luta em comum” (HARDT & NEGRI, 2014b, p. 144).
Dessa forma, é o segundo momento da composição da classe, o seu colocar-se
politicamente, que realmente faz Negri definir multidão como o conceito de classe
próprio ao contemporâneo. As diversas referências aos movimentos de “alter-
globalização”, como o Zapatismo (HARDT & NEGRI, 2001), às lutas de Seattle em
1999, à “batalha de Gênova” contra a reunião da cúpula do G8 em 2001 (HARDT &
NEGRI, 2014b), bem como às mais recentes movimentações da “primavera árabe”,
do Occupy Wall Street e da Espanha do 15 M e dos “indignados” (HARDT & NEGRI,
2014a; NEGRI, 2015b) (acrescentaríamos na mesma linha de raciocínio, o Junho de
2013 brasileiro [COCCO, 2014]), dão embasamento as teses sobre a multidão – “Não
propomos o conceito como uma diretiva política – ‘Formem a multidão!’ –, e sim
como uma maneira de dar um nome ao que já está acontecendo e de entender a atual
tendência social e política” (HARDT & NEGRI, 2014b, p. 285). São presentes nesses
eventos os principais pontos aqui desenvolvidos: é o próprio sangue da reprodução
social (general intellect) que, através das redes (“virtuais” e “materiais”) estendidas
para muito além dos locais de trabalho e de enclausuramento de tipo disciplinar,
constitui as condições da luta. Correlacionalmente, presenciamos uma fuga das
instituições tradicionais de luta classista, como o sindicato e o partido. Enquanto
essas formas operavam pela lógica da centralização e unidade, “a ordenação em rede,
em contrapartida, baseia-se na pluralidade contínua de seus elementos e redes de
comunicação, de tal maneira que a redução a uma estrutura de comando centralizada
e unificada é impossível” (HARDT & NEGRI, 2014b, p. 120, grifo dos autores). Seria
necessária a criação de novas formas de organização ou, o que seria o mesmo com
outras palavras, que o partido político e os sindicatos se reinventem a fim de respeitar
essa multiplicidade que constitui a classe em luta.
13A tese de que a classe operária só existe enquanto luta, no processo da luta de classes, é própria de E.
P. Thompson. Ver o prefácio de A Formação da Classe Operária Inglesa (1987). Negri & Hardt
afirmam a proximidade, nesse sentido, entre Thompson e a perspectiva operaísta que adotam (2001,
p. 450, n. 6; 2016, p. 447, n. 41). A ideia de “fazer-se” da classe, do mesmo modo, deriva de Thompson,
cuja noção de Making of the English Working Class perde-se na tradução.
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14 Ver,por exemplo: o relato de Mariza Correa (2001) sobre a relação tensa entre os movimentos
feministas (ou “de mulheres”) com o Partido Comunista na década de 1970, além de uma total
exclusão de pautas de sexualidade desviante; o artigo de Antonio Guimarães (2008) sobre a negativa
ou nula recepção da obra de Frantz Fanon no Brasil e a falta de espaço para reflexões sobre raça e
racismo nos espaços de esquerda na década de 1960.
15 Negri e Hardt chegam a afirmar: “A multidão também é um conceito de raça, gênero e diferenças de
Referências
16 Algoafirmado pelo próprio autor: “o conceito de multidão não é um conceito sociológico” (NEGRI,
2015a, p. 82). Da mesma forma, sobre o trabalho: “E como apreender o trabalho deste modo, ou seja,
não como objeto sociológico, mas como sujeito político?” (NEGRI, 2012, p. 41).
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________. KorpoBraz – Por uma política dos corpos. Rio de Janeiro: Mauad X,
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