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EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Maanaim Informática Ltda.
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Sistema Acusatório
A Conformidade Constitucional CAPA
das Leis Processuais Penais Márcia Campos
ISBN 85-7387-029-X
Nilo Batista
Prefácio processual penal. Já na leitura dos originais dos primeiros
capítulos desta excelente dissertação de mestrado, percebi
que seria produzida uma obra importante para a
compreensão de nosso sistema processual penal. Sua leitura
Em boa hora, o amigo Geraldo Prado publica sua se apresenta útil não só para os estudantes, mas também
excelente dissertação de mestrado, onde estuda para os especialistas da matéria. Muito lucrei em lê-la, por
profundamente a estrutura acusatória do processo penal. isso ouso recomendá-la.
7DOYH] HP UD]mR GD ³LQIODomR OHJLVODWLYD´ GRV ~OWLPRV DQRV Por derradeiro, quero dizer que fiquei honrado com o
muitos importantes autores de Direito Penal e Processual convite de Geraldo Prado para ser o prefaciador de mais um
Penal têm se limitado à produção de obras de cunho de seus livros. Cuida-se hoje de magistrado criminal que,
meramente exegético, procurando, já num primeiro novo ainda, já ingressava no Ministério Público, sempre
momento, dizer qual a melhor interpretação para este ou através de disputados concursos públicos. Professor já
aquele novo dispositivo legal. experiente, Geraldo Prado tem se salientado como
Na verdade, esta década não tem sido muito fértil para a conferencista admirado. Assim, esta minha tarefa somente se
doutrina penal e processual penal no Brasil, fazendo-nos justifica em razão de ter começado primeiro, já que
lembrar a ultrapassada época do procedimentalismo. possuidor de mais idade. Temos muitos pontos em comum,
Principalmente no processo penal, sentimos falta de novas inclusive na forma de pensar o Direito e a sociedade em
obras de cunho mais sistemático, doutrinário e, geral. Invocando o direito de resposta para que o leitor
especialmente, crítico. Parece que o livro de Geraldo Prado possa, desde logo, perceber quem é Geraldo Prado, quero
rompe com este ciclo e nos apresenta trabalho acadêmico do SXEOLFDPHQWHUHEDWHU³RIHQVD´TXHUHFHQWHPHQWHHOHPHIH]
mais alto valor científico. chamando-me afetivamenWHGH³FRQVHUYDGRU´DSyVSDLQHOGH
Consoante o leitor comprovará, cuida-se de uma que participamos na Escola da Magistratura do RJ. Em
monografia que, praticamente, esgota o tema pesquisado. verdade, Geraldo e eu desenvolvemos uma visão crítica em
Restou demonstrada a excelência do sistema acusatório IDFHGR³VLVWHPDSHQDO´DSHQDVPHDIDVWRXPSRXFR GHVHX
moderno, que consegue criar condições que preservam a pensamento mais liberal na medida em que, ideologicamente
imparcialidade do juiz sem prejuízo do caráter publicístico VRFLDOLVWD FDPLQKR QD GLUHomR GR FKDPDGR ³XVR DOWHUQDWLYR
do processo penal, como instrumento da atividade GR 'LUHLWR´ 6HP PH DIDVWDU GD SHUVSHFWLYD ³JDUDQWLVWD´
jurisdicional do Estado. As características deste processo e os SHUFHERDGLPHQVmRSROtWLFDGR³VLVWHPDSHQDO´HTXHURXVi-
princípios que o fundamentam são estudados de forma lo também politicamente na busca do socialmente justo.
densa e moderna, buscando-se sempre uma interpretação Julgo, entretanto, que os nossos caminhos chegam ao
que incorpore os valores que se possa extrair do nosso mesmo lugar, vale dizer, a busca de uma sociedade e, por
sistema constitucional. O chamado Juizado de Instrução não consegüinte, de um Direito radicalmente democrático.
tem guarida em nosso sistema constitucional. E isto está retratado no livro que o afortunado leitor ora
Desta forma, Geraldo Prado critica vários diplomas começa a ler.
recentes que se apresentam em descompasso com as
premissas teóricas que são estabelecidas durante o Rio de Janeiro, outubro de 1998
GHVHQYROYLPHQWRGRWUDEDOKR)D]XPDYHUGDGHLUD³ILOWUDJHP Afrânio Silva Jardim
FRQVWLWXFLRQDO´ GDV QRYDV OHLV TXH UHJXODP PDWpULD
Nota do Autor à 1ª Edição procedimentos eleitos, em virtude do que, no seu aspecto
mais doloroso, qual seja, o do processo penal condenatório,
sustenta-se como única estrutura condizente àquela
pertinente ao sistema acusatório.
A primeira reação dos operadores jurídicos, logo em A afirmação da eleição constitucional do sistema
seguida à edição de uma lei processual penal, consiste em acusatório, contudo, não é suficiente, haja vista a polissemia
examinar-lhe a conformidade constitucional, investigando as que envolve a expressão e os limites mais ou menos estreitos
concordâncias e harmonias entre seus sentidos e formas e os que se verificam na prática, determinados pela herança
princípios e normas que constituem o ponto mais alto do histórica romano-canônica.
ordenamento jurídico. Por essa razão, o trabalho evoluiu em direção ao estudo
Concluída a tarefa de exame da constitucionalidade do do encadear histórico dos sistemas processuais, a validade
novo diploma, passam os operadores à pesquisa da constitucional deles a partir de considerações de um sistema
concordância com o sistema. Diz-se de uma lei processual geral de garantias, e à definição dos seus elementos
penal que ela pode estar de acordo ou divorciada do sistema essenciais, concluindo, no tocante ao sistema acusatório, que
processual no qual, inserida, está destinada a atuar. a sua base está fincada sobre um princípio do qual recebe a
Articular a conformidade constitucional com a simetria designação e que representa o mínimo redutor, na linha
do sistema processual penal, em face do fundo cultural sobre perspectivada na obra, passível de engendrar a ligação entre
o qual se erguem ambos os valores, é a pretensão deste o modelo normativo de processo penal e o modelo
trabalho. A hipótese sobre a qual se baseia a obra pressupõe democrático de Estado e sociedade. As expectativas de uma
a tensão real entre normatividade e facticidade do sistema confluência ideal entre o sistema processual preconizado e
jurídico processual penal, em virtude da qual são aquele efetivamente adotado, pelo primado do direito, ou,
perceptíveis dimensões reais e contraditórias de atuação de em outras palavras, pela crença no primado do Estado de
atores e funcionamento de instituições, cujo fim consiste na Direito ² Estado Constitucional Democrático ² está em que,
adjudicação de soluções tanto quanto possível legítimas aos como salienta Habermas, o direito extrai a sua força muito
conflitos de interesses travados no ambiente do direito mais da aliança que a positividade do direito estabelece
penal. com a pretensão à legitimidade,1 mas pode muito bem,
O perímetro traçado, porém, não exaure todas as havemos de recear, conferir aparência de legitimidade ao
possíveis faces da aproximação constituição²sistema, mas poder ilegítimo.
se inclina, tão-somente, ao exame dos laços entre a Portanto, compreender a peculiar realidade do processo
Constituição e o Processo Penal, naquilo que resume a sua penal brasileiro, que, a par das influências externas, diz
vocação comum, isto é, o equilíbrio no exercício do Poder e a muito do jeito de um povo ser e estar no mundo e de projetar
tutela de direitos e garantias indispensáveis à consideração valores e expectativas, como afirmam os portugueses, é o
da dignidade do ser humano. Alinha estas duas grandes resultado natural do desenvolvimento do estudo, sem perder
vertentes ² direitos fundamentais e princípio da separação de vista, todavia, a noção exata das relações que vão se
dos poderes ² à vista da conformação de um processo penal estabelecendo entre a promessa de democracia, inclusive no
inspirado no princípio democrático, fundado na soberania
popular e na legitimidade não só das instituições como dos 1 Habermas, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 60.
processo, elaborada pelos constituintes de 1988 e a visão da Dedico o trabalho aos estagiários da Escola da Magistratura
persecução penal entranhada na alma da maioria dos do Estado do Rio de Janeiro ² EMERJ, onde certamente
operadores jurídicos. Essa é a razão de compararmos as aprendo mais do que ensino, aos estudantes dos cursos de
conclusões que nos pareceram naturais, sobre o modo como graduação em Direito das Universidades Gama Filho e Veiga
se expressa a fidelidade ao princípio e ao sistema acusatórios de Almeida, aos queridos advogados Marcia Dinis, Carlos
e a forma pela qual, principalmente, os dois mais expressivos Roberto Barbosa Moreira, Ilídio Moura, Luiz Guilherme
tribunais do país, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Martins Vieira e José Miranda de Siqueira, a meus filhos,
Constituição, e o Superior Tribunal de Justiça, enfrentam a Gabriela e Felipe, e meus pais, todos cotidianos habitantes
questão, ainda que de maneira discreta se comparados a do meu coração. Por fim, mas não por último, agradeço à
tribunais de outros lugares, como é o caso dos espanhóis, paciente Emília, da Universidade Gama Filho, às
norte-americanos e alemães. funcionárias da biblioteca do Tribunal de Justiça do Estado
De tudo restava, por derradeiro, afastarmo-nos do leito do Rio de Janeiro e aos companheiros do Instituto Carioca
do processo penal ordinário e, com o instrumental técnico de Criminologia e do Fórum de Execuções Penais da EMERJ.
deduzido ao longo da obra, a consciência da relevância das
inclinações culturais e a crença nas promessas
constitucionais, comparar recentes disposições especiais do
Processo Penal, nascidas para cuidar de manifestações
diferentes da criminalidade, com o princípio e o sistema
acusatórios.
O resultado, a nosso juízo, exprime o reconhecimento
de que há grandes espaços a percorrer, muita disposição
cultural estranha à Constituição a ser enfrentada e um
aparente sistema acusatório operando, aguardando o
esforço da doutrina e da jurisprudência para vencer esta
etapa e transformar-se em um sistema acusatório real, capaz
de articular segurança e direitos fundamentais, controle
social e dignidade humana.
Quero expressamente agradecer a Afrânio Silva Jardim
pela oportunidade de desfrutar de sua amável e profícua
companhia intelectual na composição da dissertação de
mestrado que deu origem ao livro. Dos eventuais acertos o
crédito, por justiça, pertence ao excepcional processualista e
amigo. Agradeço também, expressamente, aos juristas Luiz
Flávio Gomes e Alberto Silva Franco pelas oportunas
indicações bibliográficas; a Weber Martins Batista, este por
haver despertado em mim, com suas aulas inesquecíveis, a
paixão pelo estudo do Processo Penal; e ao corpo docente do
curso de mestrado em Direito da Universidade Gama Filho.
Nota do Autor à 2ª Edição baseada em procedimentos que têm em vista o objetivo de
conter os abusos do poder e criar condições para que este
mesmo poder possa integrar as pessoas, eliminando dentro
do possível todas as formas de discriminação.
Certamente distante de ter conseguido realizar o Na era pós-moderna, o processo penal vai cada vez mais
propósito anunciado na primeira edição, de submeter ao assumindo posturas pré-modernas e, por essa razão, a
teste de conformidade ao sistema acusatório parte da análise crítica das categorias processuais é indispensável.
legislação processual penal brasileira, apresento esta Este continua sendo o meu objetivo.
segunda edição. Em vista disso, aceitei o desafio de tratar da oralidade e
Os leitores logo perceberão que se trata de trabalho da publicidade, enfrentando os problemas derivados da forte
modificado e acrescido, com ênfase especial às questões que interferência dos meios de comunicação de massas nas
atormentam o profissional do direito em seu cotidiano. Os questões relativas ao crime e à punição de seu autor. Sobre o
acréscimos não afetam seu conteúdo original ² e as idéias tema havia muito mais a dizer, no entanto preferi restringir a
que sigo defendendo ² ou perturbam sua forma acadêmica. abordagem aos pontos de conexão com o sistema acusatório.
Pelo contrário, marcam a aliança que reputo indispensável Acrescentei um capítulo, dedicado ao processo de
entre teoria e prática, a fim de demonstrar que o mito, fraco execução, zona sombria onde o que acontece parece não
em todos os sentidos, de que há um abismo entre a academia interessar à comunidade. A medida da nossa civilização será
e o foro, nada mais é do que posição ideologicamente futuramente apreciada pelo modo como, no presente,
orientada no campo do processo penal a fomentar a cuidamos do controle social punitivo.
descrença na validade das garantias fundamentais Pesei longamente as críticas e, salvo pela intransigente
conquistadas e mantidas a duras penas por nossos defesa da imparcialidade do juiz como premissa de que a ele
antepassados. compete julgar as causas e não tomar a si a aplicação do
Insisto em reafirmar os postulados do Garantismo, direito penal, procurei aperfeiçoar o texto e corrigir
muito embora reconheça, em trabalhos mais recentes, a eventuais equívocos.
necessidade de pensar uma teoria do processo penal voltada Não seria sincero se dissesse que não estou feliz com o
à realidade brasileira e latino-americana. As linhas mestras resultado. Muitas vezes nos colocamos um desafio superior
dos princípios liberais dos séculos XVIII e XIX, na Europa às nossas forças justamente para tentarmos nos superar e
Ocidental, não devem ser abandonadas. Porém, a articulação oferecer aquilo que há de melhor em nós. Penso que, no meu
das garantias aos projetos de emancipação das sociedades caso, a profissão de fé que me anima e me faz juiz e professor
periféricas certamente não poderá ter lugar sem adaptações e consiste em acreditar que, por meio do meu trabalho, presto
sem o reconhecimento das peculiaridades das nossas contribuição para tentar melhorar a vida das pessoas.
sociedades no tabuleiro pós-moderno imposto no jogo Devo muito ao Curso de Mestrado em Direito da
(jugo?) da globalização. Universidade Estácio de Sá ² UNESA, pois as pesquisas que
O Garantismo não é uma religião e seus defensores não desenvolvi no projeto Defesa Penal, incentivado pela referida
são profetas ou pregadores utópicos. Trata-se de um sistema Instituição, foram incorporadas ao texto desta segunda
incompleto e nem sempre harmônico, mas sua principal edição, lançando luz sobre aspectos fundamentais do
virtude consiste em reivindicar uma renovada racionalidade, trabalho.
Por fim, anoto uma correção necessária e uma enorme
frustração. Ao dedicar a primeira edição deste livro à mulher mestrado, ao fim dos anos 90, dez anos depois da
que amo, aconteceu de serem omitidas as aspas à poesia de promulgação da Constituição da República de 1988.
Fernando Pessoa. Muitos imaginaram em mim uma veia Toda a estrutura do livro foi pensada no contexto criado
poética que, lamentavelmente, não possuo. Eduardo pela tensão entre uma Constituição rica em garantias no
Galeano, frustrado por não saber pintar, registrou um dia processo penal e a realidade de uma sociedade ainda não
que lhe deram o dom de escrever para que pudesse pintar em acostumada com os ares da liberdade conquistada com o fim
forma de prosa. Gostaria de ser músico mas me faltam as do regime militar.
qualidades para isso. Escrevo inspirado em harmonias ideais A experiência acadêmica e a prática cotidiana, como juiz
e ritmos imaginários, intuições que só conhece quem criminal no Rio de Janeiro, foram decisivas na fixação das
verdadeiramente ama. E isso eu devo a Giselle. fronteiras do trabalho. A certeza de que só muito
timidamente a doutrina do Processo Penal no Brasil
conseguia empreender vôos teóricos audazes, enquanto em
outros lugares a reconquista da liberdade política vinha
associada a mudanças estruturais do processo penal,
principalmente através do abandono dos modelos
inquisitórios, motivou a escolha do tema e a eleição do
orientador, Afrânio Silva Jardim, a quem até hoje sou grato
por tudo.
Sistema Acusatório, portanto, tinha tudo para ser um
livro datado. E em alguma medida ainda tem. Há capítulos
que investigam o Direito estrangeiro e também algumas leis
penais especiais brasileiras. 1mRILFDUDP³FRQJHODGRV´QHVWD
terceira edição. Por óbvio que no tocante ao direito de fora
há um limite de atualização, estabelecido por diversas razões.
E neste particular sou grato a Aury Lopes Jr., que me sugeriu
investiir em uma última e moderada atualização, advertindo
o leitor interessado neste aspecto da matéria para que
sempre confira o estado do tema em fontes atualizadas do
País escolhido.
Sobre as leis especiais brasileiras o que posso dizer é
Nota do Autor à 3ª Edição que de tal modo a pesquisa empreendida para apreender-
lhes o conteúdo foi estimulante que, posteriormente, no
doutorado e em outras atividades da vida acadêmica,
terminei produzindo obras centradas com exclusividade
O leitor tem em mãos a terceira edição do Sistema
nelas. Estas obras são citadas no livro, todavia mesmo neste
Acusatório.
tópico o Sistema Acusatório mantém interesse, pois permite
Trata-se de uma obra concebida originalmente em
a quem se inicia em processo penal ter visão panorâmica da
circunstância precisa: a defesa de uma dissertação de
matéria, abragente de algo maior que o Código de Processo
Penal brasileiro, hoje de aplicação quase residual. disciplinas. Nesta Escola Crítica é possível identificar muitos
Estes pontos foram profundamente modificados, assim pontos de partida diferentes e perceber a convergência do
como tudo o que compreende os cinco primeiros capítulos, destino: melhorar o processo penal do Brasil para que ele
em suma, o cerne da obra. não seja instrumento de perpetuação da desigualdade e da
Não se trata de um livro novo, muito embora quem o injustiça.
tenha escrito seja hoje alguém bastante diferente do autor da E vários conceitos foram aperfeiçoados graças a essa
edição original. O importante é que a linha mestra, a espinha extraordinária (para mim) convivência. Ao jurista Jacinto
dorsal, consistente na compreensão do sistema processual Nelson de Miranda Coutinho, do Paraná, eu devo a
penal eleito em 1988, pelos constituintes, tenha sido apresentação a Franco Cordero (falha grave em minha
mantida. bibliografia original, que assumo integralmente, porque
O aprofundamento da abordagem tem vários motivos. Afrânio já chamara atenção para a singularidade da ótica de
A começar pelo sucesso da obra, que é motivo de Cordero).
orgulho para mim. Adotado em cursos de pós-graduação Pelo menos uma conseqüência deriva disso: quando
stricto sensu, o livro abriu espaço para diálogo entre escolas passei a trabalhar também com Michele Taruffo e Alberto
brasileiras de processo penal que coexistiam, porém não Binder pude divisar diferenças funcionais entre o processo
conviviam. penal fundado na apuração do fato (e solução do caso) e o
E foi um diálogo rico, retratado, por exemplo, no debate processo penal, dirigido pela idéia de composição de
acerca da existência de um terceiro gênero: o sistema conflitos, que permeia o modelo de justiça penal consensual.
adversarial, defendido por aqueles doutrinadores que As conclusões são minhas, com os riscos de erro e acerto
reconhecem a existência de poderes supletivos de inerentes. A matriz teórica sofreu, todavia, influência desses
investigação judicial (o juiz estaria autorizado a produzir autores e, por certo, Cordero foi um dos mais importantes.
provas de ofício e isso não afetaria a natureza do sistema Garantindo desde logo aos não versados em filosofia
acusatório). O sistema adversarial seria uma espécie que isso não impede a leitura e o aproveitamento da obra,
(remanescente) de sistema acusatório puro, em que o juiz quero ressaltar ainda a importância dessa invasão (limitada,
permanece inerte, isto é, não produz provas. O leitor terá a infelizmente) da história e, principalmente, da filosofia.
oportunidade de acompanhar esse debate, que é central Com efeito, no prólogo da edição argentina do trabalho
quando se pensa na reformulação completa ou mesmo na extraordinário de James Goldschimidt, denominado
substituição do quase-morto Código de Processo Penal de Problemas Gerais do Direito, obra publicada postumamente,
1941. Eduardo Couture chama atenção para o estado de angústia
Além do(s) diálogo(s) flagrado(s) nas páginas dessa que atinge o jurista, quando percebe as limitações de uma
nova edição, sempre com respeito pelos pontos de vista ciência construída sobre bases estritamentes dogmáticas.
contrários aos que se defende aqui, houve também alguma 6mRSDODYUDVGH&RXWXUHWUDGX]LGDVOLYUHPHQWH³eTXH
mudança de conceitos. na vida de todo jurista há um momento em que a intensidade
A constituição nos últimos anos de uma espécie de do esforço em torno aos textos legais conduz a um estado
Escola Crítica de Processo Penal brasileiro, integrada por particular de insatisfação. O direito positivo se vai
juristas de várias partes do país, sem lideranças intelectuais despojando de detalhes e fica reduzido a uma ciência de
verticalizadas, mostrou como é possível avançar em temas grandes planos. Por sua vez, estes grandes planos reclamam
difíceis e tentar descomplicá-los, recorrendo a outras um sustento que a própria ciência não lhes pode dispensar. O
jurista adverte então, como se a terra lhe faltasse aos pés e sempre produzem efeito, espero que o presente tenha
clama pela ajuda da filosofia. A maior das desditas que pode agradado!), até a dos dias que eu, Giselle, Gabriela, Felipe e
ocorrer ao jurista é a de não haver sentido nunca sua Luis Fernando (o Lula, de nove anos, primo do Felipe)
GLVFLSOLQDHPXPHVWDGRGHDQVLHGDGHILORVyILFD´ passamos em Búzios, no ínicio de 2005, hospedados pelo
O encontro com a interdisciplinaridade facilitou a estimado Fábio Andrade, quando pude (quase) concluir essa
minha forma de lidar com o processo penal. Creio que será terceira edição de frente para o mar e em paz com Deus.
igualmente útil ao leitor. O que posso dizer é que fiquei muito feliz com o resltado
No plano da simplificação devo ao prof. Décio Alonso e espero que você também fique.
Gomes e a pesquisadora Laila Guimarães Ferreira talvez a Geraldo Prado
mais importante contribuição desta terceira edição. Ambos
mostraram a penetração do livro junto ao público de geraldoprado@terra.com.br
estudantes de graduação e identificaram trechos em que a www.direitosfundamentais.com.br
linguagem pesada das teses dificultava a compreensão. Aliás,
Giselle já me havia advertido para isso e nesta terrceira
edição eu me dediquei a aliviar o peso da escrita mais
hermética, na tentativa de fazer chegar aos alunos da
graduação as razões do meu entusiasmo, quanto vezes
identificado por eles em palestras e conferências.
Espero ter atingido o objetivo, até porque as maiores
alegrias que o magistério me proporcionou eu devo aos
alunos da graduação. Nestes últimos anos são os da
Faculdade Nacional de Direito e da Universidade Estácio de
Sá. Em outras épocas foram os da UNIG, Universidade Gama
Filho, Veiga de Almeida e Cândido Mendes, sem contar os do
CEPAD. E pelo Brasil afora há os de Campos dos Goytacazes,
Recife, Curitiba, Porto Alegre...
Laila Guimarães Ferreira e Aline de Souza Siqueira,
ambas da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, cooperaram, ainda, na atualização da
pesquisa de jurisprudência e doutrina. Sou muito grato a
ambas.
1. Introdução
Entre me decidir por reeditar o Sistema Acusatório e
trazê-lo de volta às livrarias quase dois anos se passaram.
Muitas histórias também. Desde a história da namorada, que No julgamento do Habeas Corpus no 73.338-7, no
não é da área do direito, mas extraiu de mim o último Supremo Tribunal Federal, em decisão publicada no Diário
exemplar da segunda edição para presentear o namorado da Justiça de 19 de dezembro de 1996, assinalou-se,
paranaense, estudante de graduação da Faculdade de Direito enfaticamente, que a persecução penal rege-se, enquanto
da Universidade Federal do Paraná (essas coisas de coração
atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões princípio do due process of law, ou, antes, o julgamento
normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, conforme às leis da terra, segmentos significativos da
traduzem limitações significativas ao poder do Estado.1 comunidade, do ponto de vista político, econômico ou
Assim é que, contemporaneamente, não mais se concebe a cultural, têm se preocupado com a limitação ao arbítrio dos
atuação do Estado em busca da imposição da sanção penal governantes e a proteção e preservação da dignidade da
aos autores das infrações penais, fora dos marcos pessoa humana.
processuais estabelecidos pelas leis e, principalmente, pela A questão que se impõe investigar, neste trabalho, diz
Constituição. Nulla poena sine judicio. respeito aos aspectos normativos da estrutura sobre a qual se
Trata-se, pois, de assegurar que o exercício legítimo do estabelece e desenvolve a atividade persecutória, conforme a
poder punitivo, reservado com exclusividade ao Estado, seja Constituição e a realidade do processo penal. Exame dessa
implementado de acordo com princípios éticos adotados natureza considera em que medida a própria Constituição é
expressa ou implicitamente na Carta Constitucional2. Dessa confrontada com a legislação ordinária e com a ação concreta
maneira, o que se pretende é fazer valer em concreto os de juízes, membros do Ministério Público, advogados e
direitos e garantias proclamados pelo legislador constituinte acusados, e integrantes das forças públicas de perseguição
e evitar, justamente no exercício daquela expressão de poder penal. Salienta Ferrajoli, a propósito da ingente tarefa que
mais danosa ao conjunto das mínimas condições de culminou com a constituição teórica de um Sistema
dignidade da pessoa humana, que se opere indevida e Garantista, que o exame do sistema penal (no caso o
desproporcional limitação aos denominados direitos italiano) há de considerar uma tríplice diferenciação interna,
fundamentais. O princípio mencionado ² nulla poena sine que corresponde a uma tríplice divergência entre princípios
judicio ² não se exaure assim na mera legalidade dos garantistas codificados e constitucionalizados e seu modelo
procedimentos penais, como será visto adiante, teórico e normativo, além do modo efetivo como se
fundamentando-se, para além da simples legalidade formal apresenta em consideração às realidades legislativa e
dos modos de proceder, em uma perspectiva ética que vai jurisdicional.3
cimentar-se na legitimidade constitucional da atuação dos Também aqui será perspectivada essa tríplice
principais personagens envolvidos com a persecução penal e diferenciação, em relação ao Sistema Penal e, em particular,
na estrutura e funcionamento das instituições próprias desta ao sistema processual vigente, porque importa ressaltar o
atividade. confronto entre idéias e práticas funcionalistas voltadas à
Tal ordem de coisas não é, certamente, nova, pois pelo cultura da eficiência punitiva, como propósito da atuação dos
menos desde a Magna Charta, de 1215, que inspirou o agentes do Estado, e a doutrina e as práticas garantistas,
herança do Iluminismo, que relevam os vínculos
1 Habeas Corpus nº 73.338-7, impetrado em favor de José Carlos Martins estabelecidos para tutelar as pessoas frente ao arbítrio
Filho em face do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Relator: punitivo.
Celso de Mello. Acórdão da 1ª Turma, publicado no Ementário nº 1.855-02, Logo na introdução é importante destacar que as
do Supremo Tribunal Federal.
2 Ada Pellegrini Grinover salienta, em O Processo Em Evolução (Rio de ferramentas teóricas a serem empregadas combinam a
Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 9), que os processualistas da metodologia da análise funcional e, em parte, da teoria dos
última geração estão hoje envolvidos na crítica sociopolítica do sistema,
que transforma o processo, de instrumento meramente técnico, em
instrumento ético e político de atuação da justiça substancial e garantia 3 Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal, Madrid:
das liberdades. Trotta, 1997, p. 25.
sistemas com categorias e conceitos desenvolvidos pela de 70 e 80 do século XX.
dogmática do processo penal e pelas diversas correntes da O que, afinal, o leitor pode esperar? Caso seja estudante
criminologia crítica. GH GLUHLWR DFRVWXPDGR D ³DSUHQGHU´ SHOD OHLWXUD H
É curial colocar em relevo os métodos e instrumentos da ³LQWHUSUHWDomR´GR&yGLJRGH3URFHVVR3HQDOHVWHHVWXGDQWH
pesquisa. No estudo cotidiano do Direito, no Brasil, não é irá se deparar com uma forma completamente distinta de
comum encontrar indicações de método nos manuais compreensão do Direito Processual Penal.
adotados nas Faculdades e usados pelos profissionais. Pode O leitor verá que somente o contexto histórico permite
parecer questão menor, cujo conhecimento é perfeitamente entender porque o processo penal de cada país tem as
dispensável. características que tem e, ainda, porque a Constituição e as
Não é assim! O estudioso das questões penais deve leis dizem uma coisa e a prática mostra outra.
saber, desde o início, que não há neutralidade em termos de Saberá, também, que há modelos diferentes de Processo
Direito e Processo Penal. Estas matérias são atravessadas Penal, que o próprio modelo em vigor no Brasil balança entre
pela política e quando os procedimentos tomam corpo nas exigências normativas garantistas e práticas autoritárias e
'HOHJDFLDV GH 3ROtFLD H QRV IyUXQV D WHRULD ³QHXWUD´ GD que leis editadas basicamente na mesma época, depois da
maioria dos Manuais não reflete os conflitos apreciáveis a Constituição de 88, reproduzem esta contradição.
olho nu. Para tanto este leitor exigente entenderá que há nova
Conhecer, portanto, o processo penal implica conhecer dogmática jurídica, isto é, que o conjunto de conceitos e
as razões de fundo, políticas, que orientam escolhas tais categorias empregados pelo jurista não é mais o mesmo das
como não termos Juizados de Instrução, preferindo atribuir décadas precedentes.
ao Ministério Público a tarefa de acusar. Isso é aspecto Esta dogmática crítica que na atualidade, vale repetir,
manifesto de um sistema que traz latente, fora do campo de deve ser conhecida pelo profissional competente, é fruto da
visão da simples prática forense, outras tantas escolhas ± combinação, do diálogo, entre diversas disciplinas.
acertadas ou não -, como, por exemplo, facultar-se ao juiz A malograda separação entre disciplinas, que relegava a
produzir provas de ofício. sociologia e a filosofia, sem falar na criminologia, a postos
Para o estudioso responsável, que almeja exercer com secundários na estrutura do aprendizado do Direito, pois
competência qualquer profissão na área penal, afigura-se que, supostamente, no futuro não serviriam ao profissional
obrigatório estar dotado de conhecimento teórico que o dessa área, ruiu. A análise jurídica dos fenômenos só obtém
torne apto a entender o funcionamento do aparato status de apreciação científica quando considera a relação
repressivo do Estado. inevitável entre o que se quer conhecer ± o funcionamento
Este é um livro de processo penal. Trata-se de obra do Sistema de Justiça Penal ± e quem quer conhecer. Não
elaborada a partir da dogmática jurídica. Da dogmática H[LVWHFRQKHFLPHQWR³REMHWLYR´HDVVpSWLFRGRVIHQ{PHQRVGD
crítica, é certo, pois sem os intrumentos da crítica a iniciação vida em sociedade.
ao processo penal levaria o estudioso a ficar perdido em um A escolha do Sistema Acusatório é clara! Introduzir o
mundo de teorias desencontradas da prática. Porém, é a estudo do processo penal por meio da investigação do
dogmática jurídica que possibilita a investigação do sistema funcionamento concreto dos sistemas. A isso a doutrina
de justiça penal e esta dogmática jurídica é bastante chama análise funcional.
diferente do conjunto de conceitos e categorias que os Para os que estão mais avançados no estudo jurídico é
autores brasileiros se acostumaram a produzir nas décadas preciso ter cuidado com os preconceitos. No Brasil, durante
os anos 90 e mesmo no início deste século XXI, um maior parte das pessoas, parece óbvio que há de se rechaçar
determinado tipo de funcionalismo esteve em voga. esta ideologia.
Mais precisamente no âmbito do Direito Penal Esta última é a posição adotada no Sistema Acusatório.
importaram-se conceitos funcionalistas herdados, porém Em nenhum momento o livro toma partido da ideologia
nem sempre fiéis, ao pensamento de Niklas Luhmann. Não funcionalista. Sistema Acusatório serve-se, tão-só, da análise
que a fidelidade às posições originais de Luhmann funcional para entender o Sistema de Justiça Penal.
UHSUHVHQWHTXDOTXHUJDUDQWLDGH³DFHUWRWHyULFR´1mo é isso. É preciso, pois, distinguir análise funcional de ideologia
O que se deseja sublinhar é a existência de interpretações funcionalista.
funcionalistas de variada espécie, centradas em uma Recorrendo outra vez a Arnaud, entende-se por análise
ideologia: a ideologia funcionalista. IXQFLRQDO ³XPD IRUPD RX PpWRGR GH FRQKHFLPHQWR
Em síntese, nesta introdução, é necessário frisar que científico que, concretamente ± e para o que aqui nos
SRU ³LGHRORJLD IXQFLRQDOLVWD´ HQWHQGH-VH ³XPD µILORVRILD interessa -, analisa e explica o direito ± assim como outros
VRFLDO¶ RX XPD µWHRULD JOREDO GD VRFLHGDGH¶ TXH WHQGH D fenômenos normativos -, estuGDQGRDVµIXQo}HV¶RXDVWDUHIDV
formular explicações ontológicas, aprioríticas e até que o direito realiza para a sociedade, as que ele deveria
metafísicas, no que diz respeito às funções desenvolvidas realizar, e como ele as realiza ou deveria realizá-ODV´6.
QXP VLVWHPD VRFLDO SRU VHXV HOHPHQWRV´4. Esta ideologia Assim, nem toda análise funcional é devedora da
como outra qualquer, tomada a palavra ideologia em sentido ideologia funcionalista. Pelo contrário, é possível trabalhar
negativo (encobrimento da realidade), impõe: a) certo grau com esta ferramenta para negar a validade da ideologia
GH DGHVmR DFUtWLFD DRV FRQFHLWRV H YDORUHV ³UHYHODGRV´ SHOD funcionalista e revelar como, porque e para quem funciona o
ideologia; b) o convencimento (muitas vezes a fé mesmo) de Sistema de Justiça Criminal. Novamente Nilo Batista e
que somente obedecendo com fidelidade aos paradigmas da Zaffaroni irão nos lembrar que até certos textos marxistas
ideologia o sistema social funcionará adequadamente. podem corresponder a este tipo de análise. Assinalam os
A conseqüência prática disso é colocar o sistema acima PHQFLRQDGRV DXWRUHV TXH ³GLVVR UHVXOWD TXH HPERUD WRGD
das pessoas, na realidade acima do interesse da maioria das concepção orgânica de sociedade tenda a ser antidemocrática
pessoas. E esta maioria é formada por pessoas que não se e reacionária, não é possível dizer a mesma coisa das análises
beneficiam da manutenção do status quo. A ideologia funcionais, que representam apenas um método paralelo às
funcionalista é a ideologia da manutenção das coisas como H[SOLFDo}HVFDXVDLVHLQWHQFLRQDLVQDVFLrQFLDVVRFLDLV´7.
estão, ou, de acordo com Zaffaroni e Nilo Batista, é a Nesse sentido, eleita a realidade dos fatos como o pano
ideologia da estabilidade5. de fundo da investigação normativa, a força desta
Para o leitor eventualmente satisfeito com o estado investigação deve residir na disposição de elaborá-la
atual das coisas, trata-VH GD LGHRORJLD ³LGHDO´ 3DUD DTXHOH criticamente, ou seja, livre dos conceitos que, difundidos
leitor, porém, convicto de que a ordem constitucional doutrinariamente, denunciam posições apriorísticas nem
brasileira está orientada a melhorar a condição de vida da sempre compatíveis com o modelo real da base de
sustentação institucional do processo penal vigente. A
4
ARNAUD, André-Jean e DULCE, María José Farinas, in Introdução à análise
sociológica dos sistemas jurídicos, Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 141-2. 6
5 Op. cit., p. 141.
BATISTA, Nilo, ZAFFARONI, Eugenio Raúl, ALAGIA, Alejandro e SLOKAR,
7
Alejandro in Direito Penal Brasileiro ± I, Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 622. BATISTA, ZAFFARONI et alli. Op. cit., p. 622.
incoerência de determinadas explicações acerca do Direito principalmente, na ótica do seu ser real, verdadeiro. Por isso,
Processual Penal, no Brasil, decorre da tentativa de conciliar não se abrirá mão da incursão histórica e seu componente
o inconciliável, de conferir às práticas processuais penais, ao ideológico que, no Brasil de 1988, fundaram o pensamento
menos no âmbito do discurso, foro de legitimidade dos que produziram a Constituição,10 ultimando a transição
constitucional quando algumas não o têm, escondendo-se em direção à democracia.
desse modo a verdadeira tensão estabelecida em razão da É curial assinalar de início que a estrutura processual
discrepância entre o preceito jurídico e a sua implementação. penal está inserida não só em um contexto normativo, cujas
Com efeito, cumpre fazer da crítica o predominante linhas mestras são ditadas pela Constituição da República,
método deste trabalho, assim entendida a expressão, na como também se encontra situada em um plano político
concepção de Michel Miaille, como sendo a possibilidade de integrado a todo o sistema penal.
fazHUDSDUHFHUR³LQYLVtYHO´.8 Por sistema penal entendemos, como Sandoval Huertas,
Significa dizer não apenas que o objeto do nosso estudo, al conjunto de instituciones estatales y a sus actividades,
tal seja, o sistema acusatório, conforme posto pela que intervienen en la creación y aplicación de normas
Constituição9 e a estrutura processual estabelecida nas penales, concebidas estas en su sentido más extenso, valga
principais leis que se seguiram à promulgação da Carta, deve decir, tanto disposiciones sustantivas como
ser visto na perspectiva do seu dever ser mas, procedimentales.11 Saliente-se por oportuno que este
entendimento de sistema penal não é concebido
8 Miaille, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2ª ed. Lisboa: Estampa, exclusivamente à luz das pretensões normativas e das regras
1989, p. 21. programáticas que o ordenamento jurídico consagra. Antes,
9 Em um dos seus últimos artigos, o eminente professor José Frederico pelo contrário, como é perseguida a visão crítica, é preciso
Marques assinalou que a nova ordem constitucional optou pelo sistema
acusatório, salientando que a estrutura processual fundada em um ter os pés na terra e a vista posta nas ações institucionais dos
contexto de relações jurídicas entre pelo menos três sujeitos ² autor, réu e organismos de repressão penal para, deste modo, atestarmos
juiz ² SUHVWLJLDR³fundo político democrático-liberal de suas origens´GH quanto à implementação verdadeira das balizas legais e
sorte a constituir a essência do processo penal atual, na linha de
pensamento coerente com aquela modelar, paradigmada nas lições de
constitucionais e não ficarmos presos a estéreis e infundadas
Giuseppe Bettiol (Marques, -RVp )UHGHULFR ³2 3URFHVVR 3HQDO QD suposições.
$WXDOLGDGH´ in Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo: Por isso Nilo Batista e Zaffaroni falam em agências
Acadêmica, 1993, p. 17). Assim também entende o culto professor e
Promotor de Justiça Afrânio Silva Jardim, como se vislumbra da seguinte
penais. Os gestores da criminalização, os entes encarregados
passagem da sua conhecida obra Direito Processual Penal (6ª ed., Rio de GHOHYDUDRWHUPRD³VHOHomRSHQDOL]DQWH´IXQFLRQDPde uma
Janeiro: Forense, 1997, p. 197), comentando acórdão da 4ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: Destarte,
podemos asseverar que, pelo sistema processual acusatório, adotado pelo 10 Salienta Miaille que o método crítico está alicerçado no pensamento
vigente Código de Processo Penal e depurado pela nova Constituição, dialético, tal seja, parte-se da experiência de que o mundo é complexo: o
descabe ao Poder Judiciário determinar ao Ministério Público quando e real não mantém as condições da sua existência senão numa luta, quer ela
como deve ser proposta a ação penal pública. E. Magalhães Noronha seja consciente quer inconsciente. Destaca o pensador portanto que um
(Curso de Direito Processual Penal, 25ª ed., atualizada por Adalberto José SHQVDPHQWR GLDOpWLFR p SUHFLVDPHQWH XP SHQVDPHQWR TXH ³FRPSUHHQGH´
Q. T. de Camargo Aranha, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 307), José Lisboa da esta existência contraditória e conclui dizendo que o pensamento crítico
Gama Malcher (Manual de Processo Penal Brasileiro, vol. I, Rio de ou dialético é dinâmico, apreendendo a realidade não só no seu estado
Janeiro: Freitas Bastos, 1980, p. 68), Julio Fabbrini Mirabete (Processo actual, mas na totalidade da sua existência, quer dizer, tanto naquilo que
Penal, São Paulo: Atlas, 1993, p. 42) e, naturalmente, Fernando da Costa o produziu como no seu futuro. (Miaille, ob. cit., pp. 21-22).
Tourinho Filho (Processo Penal, vol. I, 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 11 Huertas, Sandoval Emiro. Sistema Penal y Criminología Crítica, Bogotá:
90) sustentam que o sistema processual em vigor no Brasil é o acusatório. Temis, 1994, p. 6.
determinada maneira, com independência de como os sobre Direito Penal, Estado e Constituição,16 assinala com
professores e doutrinadores de Processo Penal imaginam a razão que a estipulação das categorias jurídicas submetidas
³DWXDomRGRSURFHVVRSHQDO´jOX]GD&RQVWLWXLomRHGDVOHLV12. ao trabalho de classificação do jurista não deve desvincular-
Zaffaroni,13 a propósito, aduz que o sistema penal deve se por completo dos parâmetros normativos instituídos
ser entendido como controle social punitivo especialmente pela Constituição. Assim é que, salienta o
institucionalizado, atribuindo-se à expressão doutrinador, se reconhecemos que não há consenso
³LQVWLWXFLRQDOL]DGR´ FRPR UHVVDOWD 1LOR %DWLVWD ³D acepção classificatório na doutrina e precisão terminológica dentro
de concernente a procedimentos estabelecidos, ainda que da própria Constituição, também é verdade que pelo menos
QmROHJDLV´.14 cinco categorias jurídicas básicas são identificáveis à luz do
Portanto, não bastará ao estudo definir em que consiste texto maior: direitos, garantias, normas, princípios e
um sistema acusatório e depois sublinhar que a nossa remédios.17
Constituição o adotou se, confrontada a Constituição com a É necessário debater a questão delicada da afirmação da
estrutura processual ordinária, resultante das novas e velhas existência de uma outra categoria,18 isto é, daquela definida
leis, concluirmos que na prática muitas vezes não se como sistema, com todas as conseqüências derivadas desta
observam os elementos essenciais do sistema acusatório. positivação, sem olvidar que em diversas hipóteses é possível
Não custa lembrar a advertência de Ferrajoli, para enquadrar o mesmo instituto jurídico em modelos
quem, considerando a diferenciação dos vários níveis de diferentes.
normas agregadas no ordenamento jurídico (leis, Além disso, releva destacar a premissa de uma eleição
regulamentos, resoluções etc.), é comum observar no nível constitucional de valores, pesquisando-se os aspectos que
normativo superior (a Constituição da República) um estado resultam predominantes ou devem predominar no contraste
de coisas refutado por disposições de níveis normativos entre a Constituição jurídica e a Constituição real,19 uma vez
inferiores (leis e até regulamentos) e da prática judicial,
ensejando a tendência de não efetividade do primeiro e
16 Lopes, Mauricio Antonio Ribeiro. Direito Penal, Estado e Constituição, São
ilegitimidade dos segundos.15 Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 3, 1997.
É evidente que da problemática proposta algumas 17 Lopes, Mauricio Antonio Ribeiro. Ob. cit., p. 73.
questões antecedentes e conseqüentes deverão ser 18 Aproprio-me, aqui, da definição de categoria jurídica utilizada por Lopes
(ob. cit., p. 71), tal seja, conhecimento não hermético. Vale frisar que a
necessariamente extraídas, enfrentadas e vencidas, isto é, se expressão será empregada com objetivo descritivo, conforme opera a
há realmente uma estrutura normativa acusatória no Sociologia do Direito, e não visando alguma identificação ontológica, típica
processo penal brasileiro, como frisamos, e, em caso da filosofia jurídica, embora não haja como distinguir por completo os dois
afirmativo, se essa estrutura revela um princípio de natureza campos e não se olvide que o conjunto de significados idealizados pelos
vocábulos característicos de uma época serve igualmente ao propósito
constitucional e/ou um sistema. cognitivo e aos de ordenação e orientação da realidade. Acresça-se a isso
Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, em obra versando que também a expressão estrutura, já diversas vezes mencionada, tem seu
sentido científico fortemente determinado. Para Verdú, a cujo pensamento
nesse tópico vamos aderir, compreende-se por estrutura o conjunto de
12
elementos interdependentes que configuram, organizam e produzem, com
Idem, p. 43. relativa permanência, os diferentes procedimentos (Verdú, Pablo Lucas.
13 Eugenio Raul Zaffaroni, apud Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Princípios de Ciencia PolíticaI, tomo II, Madrid: Tecnos, 1979, pp. 24 e 21).
Penal Brasileiro, Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 25. 19 Constituição real aqui mencionada à vista da definição que lhe atribui
14 Idem. Konrad Hesse, in A Força Normativa da Constituição, traduzida por
15 Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal, p. 104. Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.
que, como se sabe, a realidade da persecução penal pode condições historicamente verificadas por ocasião da edição
distanciar-se concretamente da promessa constitucional. das normas. Fora do contexto histórico não se explicam
Isso acontece, por exemplo, não só quando a tortura é eleições de instituições, que se expressam sempre por meio
empregada como método de investigação, na busca da tão de uma estrutura, institutos e valores, em detrimento de
propalada (profanada) verdade real, como ainda quando os outros da mesma natureza ou não, porém de conteúdo
tribunais admitem a aplicação de institutos jurídicos diferenciado ou até mesmo oposto.22
incompatíveis com o paradigma constitucional da estrutura Este é, pois, nosso plano de trabalho, voltado ao final à
processual. aspiração de que o momento constitucional de 1988 não
Para ilustrar, resgatando nossa história recente, vale pode nem deve ser esquecido ou amesquinhado por uma
dizer que, em pesquisa que resultou na publicação do livro interpretação da Constituição Jurídica conforme modelos
Brasil: Nunca Mais,20 constatou-se, apesar dos imperativos criminais dela divorciados mas aparentemente consagrados
da ordem constitucional então vigente no regime autoritário na Constituição real.
² 1964 a 1988 ², que em vários julgamentos dos tribunais
superiores, princípios como o da imparcialidade do juiz, da
presunção da inocência (versus in dubio pro condenação),
do contraditório (versus decisão calcada exclusivamente em
elementos de convicção colhidos no inquérito policial) e
motivação das decisões de natureza jurisdicional21 foram
repudiados, pura e simplesmente.
Fica portanto a interrogação: é correto afirmar que há
um princípio acusatório a inspirar a ordem constitucional?
E, em caso afirmativo, é também correto dizer que do
confronto entre a estrutura processual desejada pela
Constituição da República e aquela disposta nas leis
ordinárias que serão examinadas, o princípio ou sistema
acusatório está realmente assegurado?
Finalmente, convém ainda explicitar em que
circunstâncias históricas, determinados valores
estruturantes do processo penal constituíram objeto da
atenção e da regulação constitucional, em contraposição ao
fundo cultural que posteriormente veio alicerçar a maior
parte das leis processuais, densificando-se interpretações
doutrinárias aparentemente distintas dos caminhos 22 O direito, enquanto fenômeno cultural, é de certa forma vassalo da história
HQmRSRGHVHUµFRPSUHHQGLGR¶FRPRDOJRDKLVWyULFR1RYDPHQWHFXPSUH
apontados pela Lei Maior. A análise crítica conecta ao estudo realçar a lição de Miaille (ob. cit., p. 55), na refutação à prática de redução
jurídico das diversas categorias processuais o exame das da importância da História para o Direito: Assim, apesar de algumas
WHQWDWLYDVSDUD³VLWXDU´DVTXHVW}HVGHGLUHLWRKLVWRULFDPHQWHUDUDPHQWH
os juristas falam uma linguagem histórica. Ainda acrescenta o pensador
20 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985. que, no fundo, a história não interessa realmente o jurista, porque uma
21 Idem, pp. 176-199. óptica idealista-universalista é precisamente oposta a uma tal reflexão.
2. -O Direito Processual Penal e a Conformidade Ainda assim, por igual, não se controverte sobre haver
Constitucional sido o direito ² como de resto continua sendo ²
instrumento simbólico de limitação do Poder,4 estabilizando
as expectativas dos integrantes da sociedade. No passado, a
dimensão religiosa conferida ao Poder subordinava a
2.1. Introdução sociedade à autoridade de um direito sagrado e, dessa forma,
considerando os restritos papéis sociais disponíveis, era
Afirma Luhmann que toda convivência humana é possível ao direito garantir sua força rigidamente
direta ou indiretamente cunhada pelo direito.1 As integradora e de regulação. Eliminado, porém, o respaldo
implicações do direito na sociedade, particularmente desde o religioso, com o advento da era contemporânea partiu-se de
século XVIII, serão observadas mais à frente, porém, sem premissas deduzidas mais enfaticamente pelos
dúvida, é possível dizer que dos primórdios da socialização jusnaturalistas, baseadas na idéia de um conjunto de direitos
do ser humano, com seu agrupamento em comunidades inerentes ao homem, inalienáveis e oponíveis até mesmo aos
rudimentares, até os dias de hoje, nos quais não se concebe a detentores do poder secular, para erigir-se o moderno
vida isolada, havendo o homem se envolvido em tramas de conceito de constitucionalismo, em virtude do qual, tomando
diversa natureza, especialmente determinadas pela divisão por pilar a idéia do pacto social, construiu-se um novo
do trabalho social, o direito marca a nossa existência,
regulando a variedade de relações sociais, econômicas,
estadualmente organizada (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional,
políticas, familiares, patrimoniais e educacionais. Coimbra: Almedina, 1992, p. 18), embora acresça ao sistema jurídico uma
Não se contesta a importância do direito enquanto rede cooperativa de metanormas e normas oriundas de outros centros
fenômeno, muito embora a realidade do mundo globalizado transnacionais e infranacionais.
haja relativizado o seu pDSHO FRPR ³conjunto de técnicas 4 Certamente, a reorganização da sociedade e do Estado contemporâneos,
possível a partir da predominância do sistema econômico capitalista e do
para reduzir os antagonismos sociais, para permitir uma papel não só econômico mas social e político do mercado, consoante
vida tão pacífica quanto possível entre homens propensos assinalado por Faria, no artigo mencionado, afetou conceitos tradicionais
jV SDL[}HV´2. Isso decorre da superação progressiva das da democracia política. É exemplo o do controle da regra de maioria,
disposto à evitação da tirania da maioria, quer através da delimitação do
características inerentes ao Estado-nação de base territorial, espaço inquebrantável dos direitos fundamentais, quer pretendendo
praticamente ultrapassado pelo conceito quase universal da impedir a concentração de poderes políticos e econômicos, malgrado a
predominância do sistema econômico, na sua essência reserva dos setores políticos, o que tem demonstrado o valor deste
complexo sistema de vínculos e de equilíbrios que é o direito e, mais
capitalista transnacional, subordinado à lex mercatoria, precisamente, a Constituição, reconhecendo-se a sua importância
como assinala com precisão José Eduardo Faria.3 funcional como garante não só das formas como dos conteúdos da
democracia política, social e cultural. Essa situação será vista adiante,
SULPRURVDPHQWH UHVVDOWDGD SRU )HUUDMROL ³2 (VWDGR &RQVWLWXFLRQDO GH
1 Luhmann, Niklas. Sociologia do Direito, vols. I e II. Rio de Janeiro: Tempo 'LUHLWR+RMH20RGHORHDVXD'LVFUHSkQFLDFRPD5HDOLGDGH´in Revista
Brasileiro, 1983. do Ministério Público, Lisboa, nº 67, jul-set/1996, pp. 39-56). É evidente,
2 Miaille, ob. cit., p. 25. como destacou Canotilho, referindo-se a G. Teubner (Direito
3 Faria, -RVp(GXDUGR³'LUHLWRV+XPDQRVH Globalização Econômica: Notas Constitucional, p. 13), que o direito só regula a sociedade, organizando-se
SDUDXPD'LVFXVVmR´ in Revista do Ministério Público, Lisboa, nº 71, jul- a si mesmo, o que o dispõe, modernamente (ou pós-modernamente), como
set/1997, pp. 33-46. A superação do tradicional conceito de Estado de base direito reflexivo ou de mediação, auto-limitado ao estabelecimento de
territorial, sustentáculo da representação constitucional do Estado-Nação, processos de informação e de mecanismos redutores de interferências
não desfigura a própria representação das constituições como ponto de entre vários sistemas autônomos da sociedade (jurídico, econômico, social
legitimação, legitimidade e consenso autocentradas numa comunidade e cultural), segundo o próprio Canotilho (ob. cit., p. 13).
direito, direito moderno, absorvendo o pensamento enquanto a diversidade derivada de uma complexidade mais
democrático e valores da cultura jurídica que prestigiavam o elevada, fruto da multiplicidade de funções sociais, exige um
nexo entre legalidade e liberdade, a separação entre direito e direito que tem de abstrair-se crescentemente, tem, nas
moral, a tolerância religiosa, a liberdade de expressão e palavras de Luhmann, que adquirir uma elasticidade
igualdade entre as pessoas.5 conceitual-interpretativa para abranger situações
Cumpre dizer, todavia, que, por mais paradoxal que heterogêneas, e que deve ser modificável por meio de
possa parecer, o constitucionalismo moderno, nascido das decisões, em suma, tem que tornar-se direito positivo.6
revoluções americana e francesa do século XVIII, representa A partir da perspectiva histórica, Manoel Gonçalves
o momento único e ímpar da convergência entre o Ferreira Filho7 vincula o surgimento do Estado
pensamento jusnaturalista e a necessidade de positivação do contemporâneo ² embasado no desejo de evitação do
direito, pressupondo um rol de interesses indisponíveis para arbítrio dos governantes ² ao estabelecimento de um
a vida digna do ser humano, os quais, como o espírito em governo de leis e não de homens (como consta assinalado na
busca de um corpo, vagaram pela História até encontrarem Constituição de Massachussets), afirmando o primado da
os documentos escritos originados nos marcos Constituição sobre as leis por ser aquela a expressão do
revolucionários. Justo, fruto da própria natureza das coisas, consoante
Na segunda metade do século XIX, no entanto, declarava Montesquieu, inspirado no jusnaturalismo.8
consolidado na Europa o Estado liberal, desenvolveram-se É certo que a consolidação do direito positivado, em
práticas institucionais tecnicistas e baseadas na eficiência do substituição ao modelo anterior, personalista, porquanto
controle social pela coerção inerente ao direito penal alicerçado na pessoa do déspota, foi governada na Europa
positivado, com orientações expressa ou tacitamente pela crença racional na autonomia da pessoa humana e na
autoritárias, que romperam a união entre o direito penal, e sua responsabilidade, pela qualidade de cidadão de que
por igual o direito processual penal, e a filosofia política passou a desfrutar, por influir na determinação do conjunto
reformadora. de regras pelo qual aceitará a supressão de parte da sua
Para entender isso é preciso compreender como se liberdade pessoal em favor da regulação das relações de todo
desenvolveu o fenômeno da positivação do Direito. Luhmann o grupo social.
destaca, com razão, a respeito deste fenômeno, vindo à luz A racionalidade do direito, que desempenhará a nosso
exatamente quando as sociedades simples começaram a ser juízo papel fundamental na escolha do sistema acusatório,
sucedidas por outras, complexas, qualificadas pela divisão do toma o lugar das concepções tradicionalistas e religiosas na
trabalho social, que em concreto não havia outra alternativa. chamada baixa modernidade, quando a estabilidade social
Com efeito, em uma abordagem sistêmica acentua-se que ditada exclusivamente pela força cede à estabilidade pela
sociedades simples, integradas em um sistema da mesma razão, sem embargo da articulação de um pacto jurídico
natureza, têm necessidades estruturais diferentes daquelas cujos pressupostos de coesão são a ameaça das sanções
mais complexas.
Por isso, o direito das sociedades simples pode ser 6 Luhmann, vol. I, p. 15. Habermas, ob. cit., pp. 45 e 59.
concebido em termos relativamente concretos, fundado na 7 Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São
tradição e na religião, com o que concorda Habermas, Paulo: Saraiva, 1995.
8 Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, Barão de. Do Espírito das Leis.
Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São
5 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 24. Paulo: Abril Cultural, 1979.
externas, liberadas pelo Direito, e a suposição de um acordo da pós-modernidade.12 Para nós o que importa, no entanto,
racionalmente motivado. é que a crise de um paradigma não se expressa pela quebra
Por outro lado, convém remarcar que o processo de da continuidade do conhecimento absorvido até então pelo
modificação do eixo do Poder, que postulou a positivação do grupo social, mas antes leva à apropriação deste
Direito em virtude da sua racionalização e da possibilidade conhecimento de forma nova, de acordo com os valores que
de fixar as expectativas das pessoas, tornou-se possível em emergem da transformação.
conseqüência do grau maior de legitimação que passou a Darcy Ribeiro acentua exatamente que, ao contrário da
revestir o próprio Direito. natureza, que evolui por mutação genética, a cultura ² em
Nestas circunstâncias o Direito tornou-se carecedor da cujo campo está inserido o Direito ² segue evoluindo por
democracia, pois, nas condições da época, o pensamento adições de corpos de significado e de normas de ação,
democrático representava, na sua expressão legislativa e de difundidos por meio da aprendizagem, de sorte a redefinir-se
governo, a força socialmente integradora da vontade unida permanentemente, compondo configurações cada vez mais
e coincidente de todos os cidadãos livres e iguais.9 inclusivas e uniformes.13
Habermas chama atenção para o fato de a positivação do O desenvolvimento do paradigma da modernidade
Direito vir acompanhada da expectativa de que o processo radicou-se no ideal democrático, de modo que nada é mais
GHPRFUiWLFR GH HGLomR GDV QRUPDV MXUtGLFDV ³fundamente a natural que o relevo dado à Constituição entre as demais leis,
suposição da aceitabilidade racional das normas decorrente do convencimento de que aquela assegura a
estatutGDV´,10 razão por que, acrescentaria Hannah Arendt, divisão dos poderes do Estado, mediante sistema de freios e
³sob condições de um governo representativo, supõe-se que contrapesos, bem como tutela os direitos fundamentais,14
R SRYR GRPLQD DTXHOHV TXH JRYHUQDP´11 e as instituições conformando toda ordem jurídica.
políticas petrificam-se e decaem tão logo o poder do povo
deixa de sustentá-las. 12 A mudança do paradigma da modernidade para o da pós-modernidade
É possível enxergar na transformação produzida na (expressão cunhada por Jean François Lyotard, em 1979, in A Condição
Pós-Moderna, Lisboa: Gradiva, 1989) é discutível, sendo razoável sustentar
origem do constitucionalismo uma mudança do paradigma que a modernidade está longe de ter cumprido, no universo da sociedade
jurídico-político, que passará, na via da racionalidade, do humana, integral-mente o que dela se espera. Antes, o universalismo
humanismo e das projeções inerentes ao prestígio assumido característico da própria racionalidade da modernidade, pelo que de
subversivo e emancipatório têm os direitos fundamentais, exige a
pelas liberdades públicas, a constituir o designado permanente disposição para implementá-la completamente.
paradigma da modernidade. 13 Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatório ² Etapas da Evolução
Salientar esse ponto é importante, na medida em que o Sociocultural, São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 45.
novo paradigma substituiu o anterior porque este estava em 14 Eusebio Fernandez (Teoria de La Justicia y Derechos Humanos, Madrid:
Debates, 1991, p. 77) alude com clareza à existência de inúmeras
crise, sendo de supor, para alguns, que a eventual crise do denominações para essa categoria jurídica, direitos fundamentais, tais
próprio paradigma da modernidade conduza à sua superação como direitos naturais, inatos, individuais, do cidadão, do trabalhador,
por outro modelo, que se convencionou chamar paradigma públicos, subjetivos, liberdades públicas, nem sempre afetados ao mesmo
fenômeno, concluindo que a mais adequada consiste em denominar-se
direitos fundamentais do homem, com isso manifestando-se o fato de que
toda pessoa possui alguns direitos morais pelo fato de ser pessoa e que isto
9 Habermas, ob. cit., p. 53. deve ser assegurado pelo Estado e pela sociedade. Mesmo a nossa
10 Idem, p. 54. Constituição não uniformiza o tratamento designativo da categoria, ora
11 Arendt, Hannah. Sobre a Violência, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, mencionando direitos e garantias fundamentais (Título II), ora direitos e
p. 35. deveres individuais e coletivos (Capítulo I do mesmo título).
Tal é a importância da Constituição nessa ótica, porque devedor das providências inerentes à implementação dos
fixa com clareza as regras do jogo político e de circulação do direitos fundamentais de cunho social, afeta a
poder e assinala, indelevelmente, o pacto que é a imprescindibilidade de a ordem interna sufragar tal
representação da soberania popular, e portanto de cada um categoria jurídica, em nível normativo superior, na
dos cidadãos. Sabemos todos, mesmo diante de pactos de Constituição, sob pena de cancelar sua validade pela perda
direitos fundamentais aos quais significativo número de da dimensão prática de efetividade.
Estados vêm aderindo paulatinamente, que até hoje o direito A assunção da Constituição como o locus de onde são
interno propugna sempre a sua sufragação, ultrapassando vislumbrados os direitos fundamentais compartilha,
em larga medida a tensão existente no passado, que concebia portanto, a tese, desenvolvida entre outros por Ferrajoli, da
distintamente, do ponto de vista político e conceitual, as existência de um nexo indissolúvel entre garantia dos
GHFODUDo}HV GH GLUHLWRV H ³la Constitución propriamente direitos fundamentais, divisão dos poderes e democracia, de
dicha, de forma a estabelecer um vínculo entre la sorte a influir na formulação das linhas gerais da política
enunciación de grandes principios de derecho natural, criminal de determinado Estado.17
evidentes a la razón, y la concreta organización del Veremos, no tópico pertinente a Direito, Processo e
SRGHU´.15 Democracia, como se articulam e interpenetram estas
A título de ilustração, valem as lições das políticas diferentes instituições, bastando, por enquanto, lembrar que
brasileira e espanhola, da última extraindo-se, da doutrina o espaço comum democrático é construído pela afirmação
de Retortillo e Otto y Pardo, que o significado do intento de do respeito à dignidade humana e pela primazia do Direito
construção do regime constitucional e do regime jurídico do como instrumento das políticas sociais,18 inclusive a Política
Estado, no tocante aos direitos fundamentais, depende Criminal.
basicamente de como tais direitos tenham sido assumidos, Nosso estudo inicial está centrado na tradicional divisão
uma vez que por mais prestígio que tenham determinadas de cunho exclusivamente metodológico19 dos direitos
Declarações, por forte que seja o impulso internacionalizador fundamentais em três categorias: as liberdades públicas; os
que dimana da necessidade de reconhecimento internacional direitos sociais; e os direitos de solidariedade, cujo
dos governos, é preciso não esquecer que o ponto de partida desenvolvimento será apreciado no próximo tópico. Reitera-
é a realidade própria e original do direito interno.16 se aqui o aludido a princípio, tal seja, que a persecução penal
Nem mesmo o paradoxo determinado em virtude de as
limitações decorrentes dos direitos fundamentais terem por
destinatário principal o próprio Estado ou de ser o Estado o 17 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 10.
18 Binder, Alberto M. Política Criminal: de la formulación a la praxis,
Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997, p. 53.
15 %HUJDOOL 5REHUWR ³Los Derechos Humanos en el Estado Democratico de 19 Antonio Augusto Cançado Trindade relembra o fato de os direitos
'HUHFKR´, in Justiça e Democracia, vol. II, São Paulo: RT, 1996, p. 81. fundamentais fazerem parte de uma grande categoria comum, de
Canotilho (ob. cit., p. 19) acentua que a idéia dos direitos fundamentais características universal e integral, de maneira que estão interligados e são
constitui a raiz antropológica essencial da legitimidade da Constituição e interdependentes, condicionando o sucesso concreto da Constituição à
do poder político, ainda quando não se possa falar em universalidade condição de ser humano digno à sua implementação conjunta. Por isso,
absoluta de alguns valores, muito embora o processo comunicativo devem dar lugar a uma interpretação funcional interdependente e somente
intersubjetivo radique dimensões de princípio que implicam do ponto de vista metodológico os direitos fundamentais devem ser
RUGLQDULDPHQWH³comensuração universal´ apreciados em grupos de gerações separados (Tratado de Direito
16 Retortillo, Lorenzo Martín e Otto Y Pardo, Ignacio. Derechos Internacional dos Direitos Humanos, vol. I, Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fundamentales y Constitución. Madri: Cuadernos Civitas, 1988. Fabris, 1997).
se expressa através do conjunto de atividades estatais meio ambiente saudável, à tutela dos interesses
juridicamente vinculadas, limitando-se o poder do Estado difusos e ao reconhecimento da diferença, da
em prol da garantia dos direitos fundamentais, assim VLQJXODULGDGHHGDVXEMHWLYLGDGH´
referenciados a todas as pessoas, inclusive aos acusados da
prática de infrações penais. Norberto Bobbio cita ainda os direitos de quarta
Antecipando, em homenagem à necessária clareza, é geração,22 determináveis em vista de carecimentos e
valioso perceber como a doutrina de um modo geral interesses específicos, tais como as reivindicações referentes
relaciona os direitos fundamentais. ao tratamento da pesquisa biológica. Esta última categoria,
José Alfredo de Oliveira Baracho indica um rol de no entanto, necessita de uma maior investigação científica
direitos fundamentais, que enumera, explicitando os direitos para fixar claramente as fronteiras com os denominados
de locomoção, manifestação do pensamento, reunião, direitos fundamentais de terceira geração.
associação, culto, direitos à atividade profissional e Finalmente, convém explicitar que os limites do
econômica e ao matrimônio,20 enquanto José Eduardo Faria, trabalho que se desenvolve não incluem a determinação da
em síntese iluminada, sublinha que ao longo dos dois natureza jurídica dos direitos fundamentais. Pretende-se
últimos séculos consolidaram-se justamente três gerações de tão-só definir no continente da obra um conteúdo mais
direitos humanos, denominação que prefere, assim dispondo modesto, contudo importante, que é a medida do princípio
sobre eles:21 ou sistema que realiza a estrutura do processo penal em
confronto com as principais leis processuais penais editadas
³2V UHODWLYRV j FLGDGDQLD FLYLO H SROtWLFD principalmente depois de 1988, época da promulgação da
concebidos, reconhecidos e protegidos para um vigente Constituição da República.
homem abstrato, destacando-se pelo direito às Porém, não se deve descuidar do estudo da natureza e
liberdades de locomoção, de pensamento, de fundamento destes direitos, uma vez que se projetam nas
religião, de voto, de iniciativa, de propriedade e de vias da persecução penal, impondo pelo menos sublinhar que
disposição da vontade; os relativos à cidadania a doutrina constitucional lhes dedica intenso labor, oscilando
social e econômica, baseados não mais numa entre baseá-los, de acordo com Böckenförde,23 numa
concepção de homem visto como ente genérico, tentativa de estabelecimento de uma teoria geral, talvez
mas encarado na especificidade de sua inserção nas incompleta mas bastante aproximativa, a partir das
estruturas produtivas, e que se expressam pelos perspectivas liberal ou do Estado de Direito burguês,
direitos à educação, à saúde, à segurança social e ao institucional,24 valorativa, funcional-democrática e social,
bem-estar tanto individual quanto coletivo
concedidos a classes trabalhadoras; e, por fim, os
UHODWLYRV j FLGDGDQLD µSyV-PDWHULDO¶ TXH VH 22 Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 6.
caracterizam pelo direito à qualidade de vida, a um 23 Böckenförde, apud Gavara de Cara, Juan Carlos. Derechos Fundamentales
y Desarrollo Legislativo: La garantía del contenido esencial de los
derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn, Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1994, pp. 75-79.
20 Baracho, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Cidadania: A Plenitude 24 Vale dizer, precisando termos, especialmente quando utilizados de forma
da Cidadania e as Garantias Constitucionais e Processuais, São Paulo: polissêmica, como ressalta Gavara de Cara (ob. cit., p. 89), que a expressão
Saraiva, 1995, p. 7. instituição tem para o nosso estudo o significado que lhe atribui Miaille
21 Faria, ob. cit., p. 42. (ob. cit., p. 98), qual seja, de conjunto coerente de normas jurídicas
nem sempre necessariamente excludentes. soberano.25
Por razões que mais adiante serão expostas, nos É certo que a cultura escravista helênica não pode
interessará de perto a abordagem funcional-democrática, fundamentar um preceito absoluto de igualdade, inerente ao
que certamente se conjugará com a valorativa e a conceito de direitos fundamentais, pois que relativo a todos
institucional. Antes releva visualizar a histórica conformação os homens, sem qualquer distinção, mas não se deve negar
dos direitos fundamentais, cuja inegável ligação com o tema que a partir da Grécia são envidados os primeiros
proposto mais adiante poderá ser observada. empreendimentos filosóficos cujo objetivo consistiu em lidar
com esta situação de princípios ideais.
2.2. Fontes e Antecedentes dos Direitos Em Roma, salienta Pedro Pablo Camargo,26 com o
Fundamentais florescimento da filosofia estóica é que se forja una idea
universal de la humanidad, es decir, de la igualdad esencial
As subseqüentes mutações operadas na concepção e de todos los hombres en cuanto a la dignidad que
conteúdo dos direitos fundamentais demandam sua corresponde a cada uno.27
apreensão no contexto histórico, ao qual com freqüência nos Foi o cristianismo, contudo, que, sem dúvida, iniciou a
referiremos, de sorte a viabilizar a observação e inserção em era da promoção dos direitos fundamentais, evidentemente
seu adequado ambiente dos paradigmas estabelecidos e fixar não liberado das contradições históricas determinadas pelo
as circunstâncias determinantes das suas alterações. modo de produção cujo embrião já se encontrava na
Percorrer este caminho é necessário, na medida em que o sociedade feudal. Disso decorre que a doutrina sofreu forte
sistema processual vigente há de, além de receber os fluídos impacto em face da projeção das declarações de licitude
da legitimação da própria ordem jurídica, predicar-se como condicional da escravidão, principalmente de índios e
opção legítima, por si só, para adjudicar soluções negros, e da inflição de tormentas. O pensamento básico da
imperativas, com força de coisa julgada, aos conflitos de igualdade de todas as pessoas perante Deus enseja, todavia, a
interesses de natureza penal ou a resolver os casos penais. era del resguardo a los derechos fundamentales del hombre
Por isso, permitimo-nos, a princípio, a apropriação do con base en la dignidad de la persona humana y su destino
esquema histórico de Manoel Gonçalves para desenvolver trascendente,28 de tal sorte que Tomás de Aquino29 e sua
resumidamente o tema da evolução dos direitos
fundamentais. 25 Cícero, Marco Túlio. Da República. Trad. Amador Cisneiros. Rio de
Com efeito, a doutrina dos direitos fundamentais Janeiro: Ediouro. Sendo a lei o laço de toda sociedade civil, e proclamando
seu princípio à comum igualdade, sobre que base assenta uma associação
desponta já na Antigüidade, fundada, como é certo, na de cidadãos cujos direitos não são os mesmos para todos?, perguntava-se
consciência de um Direito Superior, não estabelecido pelos o filósofo.
homens. Manoel Gonçalves a tal propósito aponta a peça 26 Camargo, Pedro Pablo. La Proteccion Juridica de Los Derechos Humanos
Antígona, de Sófocles, e chama ainda a atenção para as y de La Democracia en America, México: Excelsior, 1960, p. 6.
27 Idem.
lições de Cícero, que soube, em Da República, bem sintetizar 28 Idem.
a idéia da predominância da lei sobre a vontade do 29 A importância de Tomás de Aquino é salientada por Antonio Truyol y Serra
(Los Derechos Humanos, Madrid: Tecnos, 1994, p. 12), que destaca a
sensível inclinação filosófica no sentido do reconhecimento de que todo
homem correspondia à imagem e semelhança de Deus, como recurso à
relativas a um mesmo objeto, abrangendo uma série de relações sociais proclamação de que mesmo os infiéis possuíam um direito natural que os
unificadas pela mesma função. punha em tese a salvo do suposto direito de conquista dos cristãos.
escola retomam o pensamento doutrinal. primeiro grande passo dado na direção do reconhecimento
A partir da segunda metade da Idade Média, dos demais direitos fundamentais da primeira geração,
difundiram-se documentos de incipiente reconhecimento assinalados no Petition of Right (1628), no Habeas Corpus
dos direitos fundamentais ² forais e cartas de franquia ², Act (1679), nas declarações de independência dos Estados
merecendo especial destaque a Magna Charta Libertatum, Unidos da América e de Direitos de Virgínia (1776), além da
outorgada por João sem Terra aos barões, na Inglaterra, em declaração francesa (1789).
1215, cujo caráter estamental não impediu, depois, a Do Direito inglês, na vanguarda, e dos iluministas,
ampliação das suas disposições a favor de outras categorias cumpre frisar, vieram as principais inspirações das
de súditos. No mesmo ano, o Papa Inocêncio III proibia, no revoluções americana e francesa, no tocante ao estatuto das
Concílio de Latrão, as ordálias, reduzindo-se, embora ainda liberdades que ousaram exprimir à época. Salienta Manoel
insuficientemente para os padrões atuais, o sofrimento Gonçalves o papel que os ingleses e, depois deles, os norte-
causado pelo modo de persecução e expiação das infrações americanos desempenharam na história do desenvolvimento
penais.30 da doutrina dos direitos humanos, e que, por força das
Também na Baixa Idade Média, nas comunas e burgos disposições das Declarações, que ensaiaram o novo modelo
livres da Europa Ocidental, difundiu-se a consciência de constitucionalista, afinal seguramente presente nos séculos
direitos básicos, relacionados à liberdade do indivíduo e à seguintes, este papel influenciou a Constituição de Cádiz
condição não estamental em que se viam inseridos, na (1812) e a declaração de independência da Bélgica (1831):32
prática, nesses lugares, em oposição radical à fragmentação
social e às servidões feudais. Conforme Fábio Konder ³µ&RPPRQ ODZ¶ ³UXOH RI ODZ´ ³GXH SURFHVV RI
Comparato, as cidades medievais eram verdadeiros centros ODZ´ ³HTXDO SURWHFWLRQ RI WKH ODZV´ essas
de libertação: a condição servil perdia-se, com a estada expressões e as idéias que exprimem passaram com
ininterrupta do servo no interior do burgo durante ano e os ingleses para a América do Norte. Essa herança
dia.31 não foi esquecida, ao contrário. Os tribunais
Convém sublinhar que a forte ligação entre a Igreja e o americanos, e em primeiro lugar a Suprema Corte,
Estado, observada durante boa parte da Idade Média como souberam usar dessas fórmulas que flexibilizam as
fator de certo modo condicionante da estabilidade dos decisões, dando uma importante contribuição para
grupos sociais, acabou sendo solapada pelos movimentos de o desenvolvimento da doutrina dos direitos
tolerância religiosa, decorrentes da pluralidade que fundamentais, nos séculos XIX e XX.33´
naturalmente se seguiu à Reforma, sendo, pois, a liberdade
religiosa, fruto da quebra do vínculo entre Estado e Igreja, o É bem verdade que os predicados históricos de uma
época única, quando burguesia e proletariado se uniram para
30 Grau, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio, retirar do poder a classe aristocrática dominante, acabaram
Barcelona: Bosch, 1994, p. 28. Saliente-se, todavia, que coube também a
Inocêncio III a iniciativa de introduzir de modo oficial na Igreja o
procedimento penal de forma inquisitória, procedimento mais tarde 32 Truyol y Serra, ob. cit., p. 17. $GD *ULQRYHU ³'LUHLWRV H *DUDQWLDV
regulado em alguns decretos de Bonifácio VIII (Pietro Fredas, na ,QGLYLGXDLV´ in Constituição e Constituinte, Faoro, Raymundo (coord.).
introdução à 3ª edição de De las Pruebas Penales, de Eugenio Florian, São Paulo: RT, 1987, p. 123) relembra que foi a Constituição Brasileira do
Bogotá: Temis, 1990, p. 7). Império ² 1824 que pela primeira vez no mundo ofereceu um rol de
31 Comparato, Fábio Konder. Para Viver a Democracia, São Paulo: direitos e garantias individuais, assim concretizadas.
Brasiliense, 1989, p. 40. 33 Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, ob. cit., p. 13.
por fortalecer a idéia dos direitos fundamentais, essenciais à forma dos pleitos eleitorais).
dignidade da pessoa, com marcantes características Assim, o direito positivo que resultava da ação da
individualistas, configurando, nessa atmosfera, a primeira instância legislativa, referido ao direito privado, não podia
geração de direitos humanos. Os direitos fundamentais satisfazer as exigências das sociedades complexas e sequer
sofreram neste momento de inicial positivação a influência atendia satisfatoriamente ao suposto da legitimidade,
da ideologia peculiar ao direito privado, cuja consistência incapaz que era de integrar socialmente as grandes massas
estava determinada pela idéia de direito subjetivo. que acorreram às cidades, como conseqüência do processo
O padrão de direito subjetivo está ditado por uma de industrialização.
compreensão funcional, em virtude da qual se aceita que este Haveria de acontecer alguma reação, até porque,
direito estabeleça os limites em cujo interior um sujeito está UHFRQKHFH+DEHUPDV ³a fonte de toda legitimidade está no
justificado a empregar livremente a sua vontade.34 processo democrático da legiferação; e esta apela, por seu
Não se discute que a fixação do direito subjetivo, para turno, para a VREHUDQLDGRSRYR´,35 muito mais presente nos
assegurar um grau mínimo de aceitação social, indispensável discursos do que na realidade.
a qualquer tempo e mais ainda em épocas politicamente Os séculos XIX e XX, portanto, por força da ascendência
conturbadas, suponha um processo legislativo democrático, social e econômica da burguesia e o incremento tantas vezes
capaz de atender às expectativas dos membros da sociedade desumano das condições de trabalho da massa operária,
a respeito do entendimento possível ² consenso ² das classe social conseqüente às mudanças derivadas da
pessoas sobre as regras de convivência. Revolução Industrial e do modo capitalista de produção e
A moldura política na qual seriam gerados os direitos divisão dos bens, testemunhou conflitos intestinais que
fundamentais nessa primeira etapa, apesar do predominante colocaram frente a frente a burguesia e o proletariado, dando
pensamento democrático, cuja virtude para o âmbito do origem a conquistas que se refletiram em uma nova ordem
QRVVR HVWXGR HVWi HP GHWHUPLQDU D ³OHJLWLPLGDGH´ FRPR de direitos fundamentais, a partir da universalização, ainda
pressuposto para o exercício do poder, em quaisquer das que lenta, do sufrágio político e da liberdade de associação,
suas manifestações (aí incluindo o exercido pelo Judiciário), precursora dos sindicalismos.36
concebia o indivíduo como cidadão, ou o cidadão como o
indivíduo visado pela ordem jurídica, por meio de uma
35 Habermas, ob. cit., p. 122. Comparato novamente sublinha o conteúdo
percepção nitidamente ideológica. difuso do povo, entidade compreendida abstratamente como algo
Ocorre que, mesmo na Europa, havia clara distinção monolítico e uniforme, dotado das mesmas aspirações e vivendo em
entre o grupo de pessoas juridicamente autorizadas a semelhantes condições na sociedade (ob. cit., pp. 61-82). Como se observa
participar do processo político e o grupo maior, formado por no desenvolvimento do tópico, na realidade as classes sociais acabam por
ocupar concretamente, no processo de reconhecimento formal dos direitos
todos os demais integrantes da sociedade, excluídos do jogo fundamentais de segunda e terceira gerações, o lugar do povo e, na medida
democrático de várias maneiras (as mulheres e os em que lhes pertence a soberania, quer na perspectiva do exercício direto
analfabetos, por exemplo, não participavam de nenhuma do poder, quer vislumbrando-se, em virtude de conhecido desvio
semântico, como exercício em seu nome e em seu prol, é necessário
recordar que igualmente o esquema relativo aos poderes inerentes ao
34 Habermas, ob. cit., p. 113. Vale destacar que, apesar da propalada idéia sistema penal não lhes devem ser opressivos mas sim tutelares.
pertinente ao conceito e alcance do direito subjetivo, visto antes, trata-se de 36 Norberto Bobbio anota, destacadamente, que: A partir do momento em
dogma da tradição liberal a crença dos direitos de primeira geração ser que o voto foi estendido aos analfabetos tornou-se inevitável que estes
exercitados contra o Estado, como muito bem salientou Comparato (ob. pedissem ao Estado a instituição de escolas gratuitas... Quando o direito
cit., p. 47). de voto foi estendido também aos não-proprietários, aos que nada
Trata-se, pois, dos direitos fundamentais de segunda A evolução dos direitos humanos naturalmente refletiu,
geração, referidos anteriormente, e que, malgrado períodos no intervalo entre as duas grandes guerras do século XX, as
de intensa repressão política nos principais Estados tensões e expectativas geradas de forma exacerbada pelo
europeus (França de Napoleão III e Alemanha de autoritarismo político, pelo totalitarismo e domínio
Bismarck),37 impuseram-se indelevelmente. Colaborou para colonialista eurocentrado, fatores extremamente reforçados
LVVR D FRQVLGHUDomR HP YLUWXGH GH TXH ³os direitos pela expansão capitalista e a reação do regime socialista
fundamentais não são a expressão nem o resultado de uma implantado na antiga União Soviética.
HODERUDomRVLVWHPiWLFDGHFDUiWHUUDFLRQDOHDEVWUDWR´ mas Com o fim da Segunda Guerra Mundial e as explosões
VLP FRPR DOXGH 'HQQLQJHU ³respostas normativas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, dias depois da
histórico-concretas às experiências mais insuportáveis de aprovação da Carta da Organização das Nações Unidas
OLPLWDomRHULVFRSDUDDVOLEHUGDGHV´.38 (respectivamente 26 de junho e 6 de agosto de 1945),
A transformação acontecida no seio do próprio expandiu-se a consciência, inspirada pelos movimentos de
paradigma da modernidade, gerado a partir das liberdades libertação, de que entre os direitos fundamentais
públicas cujo beneficiário, de uma maneira geral, era encontrava-se o de autodeterminação dos povos, assim
exclusivamente o cidadão (identificado como homem enunciado nas várias Declarações, fundando, por sua vez, a
proprietário), demonstrou a erosão da matriz ideológica era das emancipações políticas que levaram as ex-colônias
individualista e assinalou a substituição, no Continente (conjunto a partir de então conhecido como Terceiro Mundo)
Europeu, do Estado Liberal de Direito pelo Estado Social de a se circunscreverem, na sua maioria, ao âmbito sociopolítico
Direito.39 da denominada Civilização Ocidental, com a promessa de
Aqui cabem parênteses para salientar que, do mesmo reconhecimento dos direitos fundamentais da primeira
modo que se prestigiou o papel da Igreja Católica na geração.
eliminação das ordálias, não se pode furtar de registrar a De se notar que os novos Estados careceram da adoção,
importância das Igrejas na disseminação das idéias da nova implementação ou desenvolvimento dos direitos
categoria de direitos fundamentais, principalmente em fundamentais da segunda geração, prestacionais,
consideração às encíclicas Rerum novarum (Leão XIII, 1891) normalmente vinculados a um tipo de Estado de bem-estar
e Quadragesimo anno (Pio XI, 1931), sem prejuízo das social, de sorte que as suas populações passaram a desfrutar
importantes manifestações de Kolping, von Ketteler e da QR DPELHQWH LQWHUQDFLRQDO GD FRQGLomR GH ³SUROHWDULDGR
União Internacional de Estudos Sociais, fundada em 1920.40 exterLRU´41 salvo, é claro, aquela minoria beneficiada da
situação colonial, cuja posição internamente veio a suceder.
Particularmente no Brasil a sucessão de regimes
tinham... a conseqüência foi que se começou a exigir do Estado a proteção
contra o desemprego (O Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras autoritários, com a conseqüente supressão sistemática dos
do Jogo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra Política, 1992, p. 35). direitos fundamentais, desmoraliza a tese de que a mera
37 Truyol y Serra, ob. cit., pp. 20-21.
38 Denninger, Erhard, apud Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos
Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio: Derechos 41 Truyol y Serra, ob. cit., p. 26. As declarações de direitos fundamentais, na
Humanos y Constitucionalismo en la Actualidad, Madrid: Marcial Pons, América Latina, pela tradição autoritária dos governos, são muito mais
1996, p. 40. peças retóricas que instrumentos de transformação social. Comparato
39 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo assinala, com razão, que os direitos fundamentais nunca fizeram parte do
ante el Tercer Milenio..., ob. cit., p. 15. nosso patrimônio cultural, mas sempre existiram como um elemento
40 Truyol y Serra, ob. cit. estranho, senão estrangeiro na vida de nossas instituições sociais (p. 38).
enunciação destes direitos, em Declarações a que o Estado Internacional do Trabalho ² OIT) exerceram, a partir de
brasileiro adere ou no seio da própria Constituição, embora meados deste século, com base na traumática experiência
necessária, seja suficiente para alargar a sua efetiva das guerras e do período intercalado, a função de difundir a
imposição para além do círculo populacional no meio do implementação e fiscalização dos mencionados direitos,
qual já são efetivos, tal seja, entre as classes possuidoras e as conjunto ao qual a sociedade tecnológica foi aos poucos
pessoas de raça branca.42 incorporando aqueles relacionados com a qualidade de vida,
Sem a pretensão de estabelecer uma explicação direitos fundamentais da terceira geração.
definitiva, vale destacar que a democracia não marcou a sua Da relevância das entidades internacionais pode-se
presença de modo sólido nos novos Estados, o que se dizer que as grandes guerras deste século desnudaram a
argumenta para demonstrar mais uma vez o vínculo entre insuficiência dos meios internos de resguardo dos direitos
democracia e direitos fundamentais.43 fundamentais e, simultaneamente, romperam a crença na
É preciso que se saliente que a cultura democrática, efetividade dos precários controles internacionais existentes.
como fator preponderante para a disseminação da Apesar disso, e muito por conta dos genocídios que as novas
importância política e jurídica dos direitos humanos, tecnologias de informação noticiam vivamente, desenvolveu-
padeceu mesmo onde, como no Brasil, foi implantada a se a lógica básica do reconhecimento planetário do valor
República. Se uma educação para os direitos fundamentais, único da pessoa45 e a consciência de que a neutralidade
substrato da cultura democrática, não é implementada, como política e ideológica do direito internacional pode acabar por
podem sê-lo os mencionados direitos, individuais ou sociais? permitir todas as formas de autoritarismo no interior dos
A contaminação das liberdades não logra êxito se depender Estados.
apenas da ação do Estado, que visa limitar ou orientar de Daí decorre, como afirma Pureza, que da
modo imperativo, sendo o caso de fazer coro com Mead para transnacionalização da opressão deve advir a
VXEOLQKDU TXH ³aos poderes públicos compete uma transnacionalização da resistência,46 quer pela exigência da
importante função na defesa das liberdades, porém para legitimidade democrática, em todos os seus aspectos ²
que sua afirmação e tutela não sejam ilusórias ou precárias incluindo aí a Justiça ² para o reconhecimento internacional
é necessário que o programa emancipatório dos direitos dos Estados e de seus governos, quer porque a cidadania não
humanos se traduza em vigências coletivas se resume mais apenas na titularidade de direitos cuja fonte
PDMRULWDULDPHQWHFRPSDUWLOKDGDV´.44 seja o próprio Estado, mas passa a alcançar aqueles gerados
As organizações internacionais e entidades não nos pactos internacionais.
governamentais de proteção aos direitos fundamentais de Assim, ao menos no aspecto da fiscalização, com
todas as categorias (por exemplo, a Organização repercussão inevitável em toda sorte de relações
internacionais, os tribunais e cortes internacionais ganham
destaque, reafirmando a concepção dos direitos
42 Comparato, ob. cit., p. 51.
43 A reversão desse clima social francamente desfavorável à vivência dos
direitos humanos, na América Latina, só pode iniciar-se, a meu ver, com o
estabeleci-mento de um processo ² necessariamente lento e não isento de
percalços ² de instituições adequadas de democracia direta ou 45 Pureza, José Manuel. Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el
participativa. Comparato, ob. cit., p. 43. Tercer Milenio: Derecho Cosmopolita o Uniformador, Madrid: Marcial
44 George Hebert Mead, apud Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Pons, 1996, p. 125.
Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio, p. 44. 46 Pureza, José Manuel. Ob. cit., p. 123.
fundamentais como tema global,47 limite à subjetividade doutrinas,51 cumprindo, pois, à sociedade humana perseguir
discricionária das soberanias, conforme Celso Lafer.48 por igual, incessantemente, como faz desde os primórdios, a
Ademais, concebendo-se a democracia como palco felicidade, conforme a máxima de inspiração iluminista
adequado para os direitos fundamentais, como se antecipa cunhada na Revolução Francesa: liberdade, igualdade e
do próximo tópico, e incorporando-se a consciência de que fraternidade.
uma sociedade livre e democrática não pode ser pensada Talvez caibam parênteses: a partir do episódio
como um sistema fechado, mas sim aberto à aparição de conhecido como 11 de setembro, atentado terrorista a Nova
novas necessidades, dependentes tantas vezes da ineficácia York (EUA), mesmo os direitos fundamentais de primeira
da difusão do progresso tecnológico ou da ausência de geração estão sendo colocados em questão pelos poderosos
compromisso ético, é preciso admitirmos a possibilidade de grupos liderados pelo unilateralismo militar norte-
aparição de novas categorias reivindicativas, prenormativas e americano. Até o momento de conclusão dessas linhas
axiológicas aspirantes à condição de direitos fundamentais.49 vigorava o mais completo desrespeito aos direitos
É certo, atualmente, que o liberalismo e o fundamentais de pessoas presas no Afeganistão, Iraque e até
neoliberalismo,50 enquanto filosofias econômicas nos próprios Estados Unidos, suspeitas da prática de
predominantes, assumiram de forma clara e solene a terrorismo.
doutrina dos direitos fundamentais da primeira geração, até Não é fácil a tarefa. Como de início advertimos, aceita a
porque, se nesta faceta representam a garantia das teoria dos paradigmas, há quem postule, atualmente, para os
liberdades públicas, acabam também por construir o suporte direitos fundamentais, novos rumos derivados da mudança
normativo da liberdade econômica inspiradora das referidas do paradigma da modernidade para o da pós-modernidade.
Desse modo, à condição essencial dos citados direitos,
47 Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional que alicerça sua vocação de eternidade quando incorporados
Internacional, São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 249. à ordem jurídica, opõe-se a concepção funcionalista, pelo
48 Celso Lafer, apud Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito que predomina a consideração institucional, definida como
Constitucional Internacional, p. 250.
49 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo
conjunto de fins objetivamente estabelecidos e interpretados
ante el Tercer Milenio, p. 15. de acordo com as condições histórico-sociais que informam o
50 É possível distingüir-se o neoliberalismo do liberalismo basicamente pelo processo aplicativo da norma constitucional;52 além disso, e
fenômeno da globalização dos mercados, peculiar ao primeiro, que,
superando os modelos do capitalismo mercantilista e concorrencial da fase
talvez conseqüentemente, a deformalização tem sido exigida
de transição do feudalismo, ao tempo em que minimiza a intervenção pelos que reclamam uma hermenêutica constitucional que
estatal, salvo a punitiva, de controle dos sindicatos e da política monetária, confira maior fluidez e flexibilidade aos instrumentos
reduz a importância do Estado-nação, consoante anteriormente jurídicos dispostos na Constituição; finalmente, de tudo
mencionamos. Convém, a propósito, ler El Neoliberalismo en el
Imaginario Juridico (Correas, Oscar. Curitiba: EDIBEJ, 1996, pp. 1-15).
Saliente-se que o neoliberalismo descende do pensamento do austríaco
Friedrich Hayek, inicialmente divulgado na obra O Caminho da Servidão, 51 É bem verdade que o gozo pleno dos direitos fundamentais pressupõe um
em 1944, na qual se faz vigorosa crítica ao Estado de bem-estar social. regime político compatível. No caso, diria Cícero, a democracia, que, se não
Depois, Hayek fundou um grupo, do qual participaram, entre outros, é perfeita, é o menos imperfeito dos regimes. Todavia, Bobbio (Liberalismo
Milton Friedman e Karl Popper, cujo propósito consistiu em combater o e Democracia, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 92) giza que a relação entre
keynesianismo e o solidarismo reinantes depois da II Grande Guerra, OLEHUDOLVPRHGHPRFUDFLDIRLVHPSUHXPDUHODomRGLItFLO³QHFFXPWHQHF
objetivo alcançado em parte logo em seguida à crise do mundo capitalista sine te´
avançado, em 1973 (Anderson, 3HUU\³%DODQoRGR1HROLEHUDOLVPR´in Pós- 52 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo
neoliberalismo. Emir Sader (Coord). São Paulo: Paz e Terra, 1995, p. 23). ante el Tercer Milenio..., ob. cit., p. 17.
decorre a pretensão do sistema constitucional como Estados de direito democráticos. Assim inicia Habermas sua
autoreferente, autopoiético, que se constitui, reproduz e extensa exposição do princípio democrático e suas
explica por suas próprias pautas internas, caracterizando-se implicações para o direito,57 ao que podemos acrescentar
por pretender-se estável. que, em relação ao Sistema Penal, mais do que para qualquer
A seu tempo, cada um dos novos rumos será analisado, outra área afetada pelas emanações da ordem jurídica, a
em conformidade com o tema eleito, tal seja, o sistema existência de uma ligação entre direitos fundamentais e
processual acusatório. Porém, não custa reforçar que a poder legítimo, expressão da soberania popular, está
defesa dos direitos fundamentais como um todo representa radicada na vigência da democracia constitucional.
hoje, como assevera Eusebio Fernandez,53 ³auténtico reto A identificação clara do vínculo direito²processo²
moral de nuestro tiempo, la piedra de toque de la justicia democracia terá pertinência no estudo por possibilitar a
GHO 'HUHFKR \ GH OD OHJLWLPLGDG GHO 3RGHU´, acrescentando concreta determinação dos critérios de fixação de validade
TXHVHWUDWDGR³procedimiento garantizador de la dignidad das normas jurídicas pelas quais estrutura-se e funciona o
de los seres humanos contra todo tipo de alienación y sistema processual. Afinal, sob que condições é possível
manipulacLyQ´,54 na via da instituição de uma ética afirmar que determinada regra, extraída do Código de
antropológica da solidariedade. Processo Penal, é válida? A questão que se coloca aqui é
Tal é assim a importância das Constituições, situadas como formular esta indagação para cada caso concreto e
como regras supremas de poder, de modo que pela também em termos de validade social.
Constituição são conectados indissoluvelmente os postulados Assim, colaboram para esta compreensão normativa
da cidadania, entendida como capacidade de plenamente tanto a perspectiva de Habermas, de verificação das
gozar os direitos fundamentais (cidadania política e social), condições de integração em um ordenamento jurídico, quer a
aos princípios constitucionais do processo, assegurando-se a visão da validade como cumprimento social do direito, quer
prevalência da liberdade e da democracia,55 pelas quais, ainda a idéia de pertencerem as normas sistêmicas ao
sustenta vigorosa corrente de pensamento, os direitos conjunto que assegurará a legitimidade da intervenção
fundamentais poderão se vivificar.56 Isso é salientado por judicial, na única forma admissível, que é a de declaração
Baracho, no plano jurídico e no político. judicial do direito conforme o próprio direito posto em nível
normativo superior (da Constituição).
2.3. Direito, Processo e Democracia Paralelamente, é possível acentuar que as instituições
que compõem o sistema penal, de modo harmônico ou não,
A idéia dos direitos humanos e a da soberania do povo produzem uma política criminal, tanto quanto as forças
determinam até hoje a autocompreensão normativa de estatais e sociais são responsáveis por outras políticas
básicas (de educação, saúde etc.).
Nós veremos de passagem como a operação de um
53 Fernandez, ob. cit., p. 81. sistema processual ao arrepio da Constituição faz parte de
54 Idem.
55 Baracho, ob. cit., p. 9. uma política criminal precisa, baseada em motivações de
56 Renove-se o magistério de Pedro Pablo Camargo (La Proteccion Juridica, eficiência repressiva, mas agora é importante salientar que
ob. cit.): Se ha dicho que la lucha por el reconocimiento de los derechos também a edificação de qualquer política criminal em um
fundamentales es la reacción contra la persecución, la intolerancia y el
fanatismo periódicos, que en mayor o menor grado han caracterizado la
vida de todos los pueblos. 57 Habermas, ob. cit., p. 128.
estado democrático está condenada à incoerência normativa que é, acrescenta Celso Campilongo, insofismavelmente
se for desenvolvida à margem do nível jurídico superior e política.63
não considerar que o respeito à dignidade humana é o Daí que igualmente as demandas inerentes ao sistema
princípio e fundamento do sistema político democrático, penal, derivado do sistema jurídico, acabam por sofrer
único espaço comum para qualquer pacto democrático.58 influência ou pressão dos grupos sociais, por meio dos
Por isso, cabe assinalar que na medida em que o mecanismos de operação do sistema político, pressões cujo
processo penal concretamente instrumentaliza o direito resultado pode ser socialmente diferenciado consoante o
penal, visando conceder-lhe a efetividade possível dentro das paradigma político-jurídico adotado, refletindo diretamente
pautas éticas priorizadas pelos direitos fundamentais,59 e sobre as aspirações de democratização do processo enquanto
considerando que entre os fundamentos propostos a respeito instrumento. Em regime autoritário nem todas as demandas
dos mencionados direitos vige também a noção de que vários são expostas e o critério de atendimento não é uniforme e
deles estão intimamente relacionados com a democracia,60 é LPSHVVRDO3RUyEYLRRVLVWHPDSHQDOpFKDPDGRD³FDODU´RV
necessário definir um espaço de consenso doutrinário sobre dissidentes e toda classe de pessoas que se insurgem contra a
este tema peculiar. arbitrária distribuição de bens e valores.
Sobre o assunto nunca é demais recordar a lição de Antes de procurarmos definir o que é democracia,
Cândido Rangel Dinamarco, em relevo:61 intuindo que a sua funcionalidade depende muito da
vigência da regra da maioria, é conveniente explicitar que tal
³2 SURFHVVXDOLVWD PRGHUQR adquiriu a regra não significa uma tirania da maioria e assim não se
consciência de que, como instrumento a serviço da sobrepõe à validade universal e permanente dos direitos
ordem constitucional, o processo precisa refletir as fundamentais. Os direitos fundamentais são reconhecidos, é
bases do regime democrático, nela proclamadas; ele certo, em um contexto espaço-temporal definido, porém,
é, por assim dizer, o microcosmo democrático do atualmente, com vocação de eternidade,64 como frisamos em
Estado de direito, com as conotações da liberdade, um instante anterior. A regra da maioria consiste em:
igualdade e participação (contraditório), em clima
GHOHJDOLGDGHHUHVSRQVDELOLGDGH´ ³XPD WpFQLFD UiSLGD GH WRPDGD GH GHFLV}HV
coletivas que maximiza a liberdade individual e
Por essa razão, é válido e imperioso afirmar que no assegura a ampla e igual participação política dos
momento em que o direito se transforma num sistema de cidadãos, aproximando governantes e governados por
distribuição de recursos escassos, vigora uma espécie de meio de uma prática social de legitimação eventual,
tutela legal, geradora de um modelo de justiça social,62 tarefa finita no espaço e no tempo, que sujeita as decisões à
1999, p. 11.
de saber se alguém praticara determinado fato, desde que o Agora, para o que nos interessa convém frisar que as
conflito inaugurado pela notícia do fato viesse a ser resolvido formas compositivas, que podem ter sido o juramento
de forma satisfatória de acordo com a concepção do grupo (referido por Foucault em sua leitura da Ilíada) ou o
social. pagamento de algum bem (prática dos antigos povos
O que para a doutrina tradicional exalava cheiro de germânicos), não visavam determinar se o agente A ou B
irracionalidade hoje deve merecer outra consideração de havia praticado o fato. Cuidava-se, apenas, de encontrar
nossa parte. Quer se trate das ordálias, quer surja aos nossos mecanismos de pacificação da sociedade, perturbada com a
olhos como mitos fundantes de uma determinada maneira ³SHUGDGDSD]´7UDWDYD-se de composição de conflitos.
de viver e de ver as coisas, como na passagem da Ilíada, Este mecanismo persistiu entre nós. Formalmente, nos
capturada por Foucault10, tais práticas tinham um ponto em crimes de exclusiva ação privada12, ao se permitir que a
comum: eram dirigidas à resolução de um conflito. Somente vítima deixe de acionar o réu ou desista da ação proposta
GHVVD PDQHLUD p SRVVtYHO HQWHQGHU D ³UDFLRQDOLGDGH´ TXH caso encontre outra solução, que melhor lhe convenha.
definia a ação dos povos germânicos primitivos, quando Informalmente, mesmo nos crimes de ação pública
estes se deparavam com conflitos episódicos. incondicionada, pois quando há vítimas as investigações
Nilo Batista nos lembra da dificuldade de recomposição raramente são instauradas ou chegam a bom termo sem a
de uma época caracterizada pela tradição oral e pelos colaboração delas.
desafios naturais cuja capacidade de compreensão fugia Na atualidade, mais que em passado recente estas
àquelas comunidades11. Apesar disso, hoje estamos em formas estão prestigiadas. Com efeito, os diversos
condições de saber que aqueles povos, tanto quanto os ordenamentos jurídicos valorizam o acordo entre agentes e
DQWLJRV JUHJRV ³OXWDYDP´ LQFHVVDQWHPHQWH SDUD DOFDQoDU D vítimas e até entre suspeitos e Ministério Público para por
paz na tribo. Isso importava considerar a integração do fim ao processo (ou ao procedimento), Trata-se de uma outra
sujeito ao grupo (à tribo) como condição para a PDQHLUDGHEXVFDUD³SD]VRFLDO´VHPTXHVHIDoDDTXLQHVWH
sobrevivência material e psíquica, como ainda implicava no momento, qualquer juízo de valor.
fortalecimento do grupo a partir da convergência de fatores A tese que advogamos a partir da 3ª edição GR³6LVWHPD
internos (práticas dos indivíduos) e externos (condições $FXVDWyULR´ H GD HGLomR GR OLYUR ³(OHPHQWRV SDUD XPD
climáticas, vitalidade dos rebanhos etc.), que poderiam ser $QiOLVH&UtWLFDGD7UDQVDomR3HQDO´MiUHIHULGRFRQVLVWHHP
afetados de diversas maneiras. Era a quebra da paz a que se reconhecer a impossibilidade de, pura e simplesmente,
fará referência nos próximos subitens. adotar as categorias dos sistemas processuais (quaiquer
deles) aos mecanismos de composição de conflitos na esfera
10
FOUCAULT, op. cit., p. 31. A história reproduzida pelo mestre francês fala da
contestação entre Antíloco e Menelau durante jogos realizados na ocasião da 12 No Brasil, nos crimes de exclusiva ação privada o exercício da ação penal
morte de Pátroclo. Houve uma corrida de carros em um circuito de ida e volta e depende da atuação do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-
Menelau contesta o resultado, afirmando que Antíloco não fizera a volta no lo. Cabe ao ofendido estar em juízo, o que fará oferecendo petição inicial
SRQWR DSURSULDGR (PERUD KRXYHVVH XP ³ILVFDO´ QHVWH WUHFKR GR FLUFXLWR D denominada queixa-crime. Dessa forma o processo começará, sem interferência
testemunha não é chamada a contar o que viu. Há um desafio, em forma de inicial do Ministério Público. Este é um mecanismo secundário ou excepcional.
juramento, diante do qual Antíloco recua, resolvendo a controvérsia em favor de Via de regra, os crimes são de ação penal pública e o início do processo fica a
Menelau. cargo do Ministério Público, que se dirige ao juízo e oferece denúncia. Nos
11 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro ± I, Rio de crimes de ação pública incondicionada o Ministério Público poderá agir com
Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p.30. total independência da vontade da vítima.
penal baseados no consenso ou na conciliação ou em concreta de processo. Ainda não foi desenvolvido um
qualquer outra forma que não seja a apuração do fato. sistema de garantias particular, para as outras funções
Não se trata de dizer que procedimentos que dispensam do processo penal (o processo como composição), entre
a produção da prova são inquisitoriais. Nem sempre. Na outras coisas porque tampouco está totalmente claro
maioria das vezes poderão ser arbitrários. Outras vezes irão como funcionam os princípios processuais no marco de
satisfazer tanto o interesse dos envolvidos (agente e vítima) um processo cuja função principal seja conciliar e
como do grupo (mediante compensação). pacificar as partes, ou achar um ponto de equilíbrio
O que se afirma aqui é que em semelhantes casos não há entre LQWHUHVVHVFRQWUDSRVWRV´13
lugar para a busca da confirmação dos fatos, através de
provas, o debate contraditório, a presunção de inocência e a Diferentemente, no entanto, de Binder, pensamos que a
motivação das decisões. Portanto, o papel do juiz (árbitro) pesquisa em torno dessa (antiga) forma de resolução de
poderá ser de mero atestador da regularidade do conflitos, restaurada a partir das experiências do direito
procedimento ou de incentivador do acordo, conciliação ou anglo-saxão, deve começar demitindo-se da tarefa de
compensação. O espaço para a imparcialidade fica reduzido. encontrDU QRV SURFHGLPHQWRV GH LQYHVWLJDomR GRV ³FULPHV´
Como os elementos que determinam a existência dos conforme padrões acusatórios ou inquisitórios, pistas e
sistemas processuais estão vinculados aos sujeitos permanências.
processuais e ao modo como atuam, além da relação que se A nosso juízo, os duelos, jogos e ordálias não antecipam
estabelece entre o juiz e a busca de informações sobre o fato, formas dialéticas de disputas, pautadas pela adversariedade.
estas categorias não se prestam ao fim de definir o modelo Quando os antigos duelavam ou aceitavam compensações,
fundado no consenso. Para este modelo está posto o desafio ponderadas pela intensidade do sofrimento causado pelo
da sua compreensão, que significará desenhar com clareza o ³FULPH´ EXVFDYDP WmR-só controlar as forças da natureza e
estatuto do juiz e das partes. assegurar a sobrevivência do grupo, de outro modo
É indiscutível que a essência destes estatutos está na condenado a desintegrar-se. Hoje, quando a conciliação e a
Constituição e nos Tratados sobre direitos humanos. Será mediação são propostas em casos de violência doméstica é a
preciso extrair desses comandos normativos as bases de mesma lógica que preside o instituto, voltado à preservação
configuração de tais estatutos. do núcleo familiar.
Alberto Binder, em obra sobre a forma dos atos Michele Taruffo alerta para isso no processo civil14. Em
processuais e as conseqüências de seu descumprimento, ³7UDQVDomR3HQDO´PRVWUDPRVFRPRHVVDDSUR[LPDomRFRPR
chama atenção para isso: processo civil tornou-se possível no fim do século XX e que
conseqüências são produzidas no processo penal, ao nosso
³3RU LVVR HVVH VLVWHPD GH JDUDQWLDV WHP YtQFXORV juízo, por tal ordem de coisas. A crítica ao processo penal
muito profundos com a idéia de indagação (em termos consensual não exonerará os pesquisadores da tarefa de
atuais processo cognitivo) e o papel da verdade dentro tentar encontrar o sistema deste modelo. Agora, partindo-se
do processo penal. Todo o sistema de garantias, tal
como hoje o concebemos, foi pensado para que funcione 13
BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos
dentro do marco do processo de cognição e deve ser para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de
compreendido e desenvolvido dentro dessa forma Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44.
14
TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos, Madrid: Trotta, 2002, p. 37.
do paradigma do Garantismo e sublinhando que um poder Salienta Luiz Flávio Gomes15 que nessa época o Direito
que se expressa por meio de castigos deve ser controlado e era constituído de um emaranhado de regras não escritas e
deve deixar claro porque em determinados casos pune, a desconexas, oriundas da moral, dos costumes, hábitos,
investigação teórica orienta-se pela idéia de processo que crenças e magias, expressando-se a reação punitiva
pretende estabelecer se determinados fatos foram praticados diferentemente conforme o comportamento agressivo
ou não, fixando-se o modo como se chega a esta conclusão. derivasse de um integrante do grupo ou de alguém
Este é, pois, o específico olhar (viés) histórico que será pertencente a outro clã ou tribo.
desenvolvido. Cuidando-se de infração cometida por integrante do
Portanto, para os limites do presente trabalho duas grupo social, se não provocasse um dano irreparável ou se
idéias vigoram: a) na atualidade, por conta de uma série de não colocasse em perigo as condições existenciais da
fatores, e em consideração a princípios republicanos que sociedade, cumpria ao agente restabelecer o status quo ante.
reclamam a fundamentação do exercício do poder de punir, a Tal providência, veremos, aparecerá também nas tribos
manifestação desse poder deve ser precedida da apuração do germânicas, em uma fase posterior, voltada à composição do
caso, através de provas que o juiz imparcialmente apreciará; litígio, primeiramente entre os envolvidos ² autor do fato e
b) o olhar lançado ao passado estará dirigido por esse viés, vítima ou seus parentes ² e depois com a
tal seja, estará condicionado para enxergar nas práticas participação/mediação da sociedade através de um tribunal
precedentes as pistas sobre como os fatos eram apurados e formado pelos homens aptos a guerrear, porém sempre com
que papel, afinal, exerciam o juiz e as partes neste a intenção de conciliar os sujeitos em conflito.16
³SURFHVVR´1HVWHFRQWH[WRVHUmRLQYHVWLJDGRVKLVWRULFDPHQWH Todavia, se o membro da tribo ou clã realizasse uma
os sistemas processuais. ação hostil considerada capaz de afetar a paz do grupo social,
acreditada como dádiva assegurada pela vontade dos deuses,
3.1.1. SITUAÇÃO NA ANTIGÜIDADE cabia punir o agente vingando-se, pois de outro modo,
imaginava-se, a sociedade jamais voltaria a gozar de
Iniciamos pela afirmação de que os primeiros grupos tranqüilidade.17
humanos, as primeiras tribos, desconheciam métodos mais
sistematizados de solução dos conflitos de interesses penais,
15 *RPHV/XL])OiYLR³5HVSRQVDELOLGDGH3HQDO2EMHWLYDH&XOSDELOLGDGHQRV
isto porque, como sociedades simples, rudes e incipientes, &ULPHV&RQWUDD2UGHP7ULEXWiULD´ in Direito Penal Empresarial (coord.
tendiam à concretização do seu direito, conforme ressaltou Valdir de Oliveira Rocha), São Paulo: Dialética, 1995, pp. 77-80.
Luhmann, e a compreensão de uma forte relação entre o 16 Welzel, Hans. Derecho Penal Aleman, 4ª ed. Santiago: Editorial Jurídica
de Chile, 1993, pp. 10-11.
Direito, a Moral e, principalmente, a Religião. 17 Junito de Souza Brandão destaca, examinando a mitologia grega, que a
Trata-se, sem dúvida, do período remoto daquilo que noção de falta, vista objetivamente (não se julgavam intenções mas fatos),
hoje conhecemos como direito processual, cuja concreção da implicava, conforme a origem do infrator ² se membro de um mesmo
génos ou não ² na religiosa e obrigatória vingança, distribuindo-se no
atuação dos atores sociais, sempre que comportamentos grupo social o dever de vingar. Salienta o autor que até a reforma jurídica
censuráveis eram praticados, operava a confusão entre ele de Drácon ou Sólon, famílias inteiras se exterminavam na Grécia, fato
próprio, direito processual, enquanto rede rudimentar de semelhante ao verificado entre os povos hindu e judeu. No Rig Veda, de
procedimentos, e o direito substantivo penal. 2000 a 1500 AC, por exemplo, alerta Junito, consta a súplica: Afasta de
nós a falta paterna e apaga também aquela que nós próprios cometemos.
Enquanto isso, no Antigo Testamento (Êxodo, 20,5) assinala-se: Eu sou o
Senhor, Teu Deus, um Deus zeloso, que vingo a iniqüidade dos pais nos
No tocante ao ato de hostilidade praticado pelo procedimento inquisitório, uma vez que a iniciativa oficial
integrante de outro clã, a agressão era reputada como para a persecução penal correspondia a uma forma de
violência à própria tribo, havendo de ser indistintamente governo absoluta, de domínio e inspiração sacerdotal.20 As
reprimida por uma espécie de vingança coletiva, que de principais características dessa época são:
ordinário implantava um estado de guerra.18 a) a acusação como dever cívico das testemunhas do
Averbe-se que o aperfeiçoamento da organização social, fato criminoso;
acrescido da consciência da necessidade de encontrar uma b) polícia repressiva e auxiliar da instrução, a cargo das
plataforma sobre a qual pudessem ser erguidos os testemunhas;
procedimentos de resolução de conflitos, de forma a c) instrução pública e escrita;
preservar tanto quanto possível a sociedade, foram as d) julgamento secreto e decisão simbólica.21
principais causas da sistematização contínua dos métodos de
implementação do Direito Penal. Naturalmente que a Na Palestina, havia três espécies de tribunais,
princípio o que hoje chamamos de Direito Penal estava consistindo em três graus de jurisdição: os tribunais dos
indistintamente emaranhado ao que definimos como sendo Três, dos Vinte e Três e o Sinédrio.
Direito Civil, pois não se diferenciavam os ilícitos criminal e Os tribunais dos Três (Deuteronômio, XVI 18) se
civil, ambos fundados no primitivo conceito de dano.19 compunham de três juízes (schophetim) e eram competentes
Entre as primeiras sociedades politicamente mais para julgamento de alguns delitos e de todas as causas de
organizadas, temos o Egito, onde, na Antigüidade, o interesse pecuniário. As suas decisões eram apeláveis para o
exercício do Poder Judiciário estava concentrado nas mãos tribunal dos Vinte e Três. Este, por sua vez, era instituído em
dos sacerdotes, sendo que Mênfis, Tebas e Heliópolis eram todas as vilas cuja população superasse cento e vinte famílias
as cidades que forneciam os juízes para o tribunal supremo, e, além de julgar as apelações das decisões dos tribunais dos
encarregado de julgar os crimes graves. Três, cumpria-lhe conhecer originariamente os processos
Nas províncias, por seu turno, havia um juiz, espécie de criminais puníveis com a pena de morte.
prefeito, ao qual era delegado o processo e julgamento dos Finalmente, o mais alto grau da magistratura era a
crimes leves, dispondo também o mencionado juiz de assembléia, conhecida como Sinédrio ou Tribunal dos
delegados, incumbidos da repressão penal, até mesmo com o Setenta, porque composta por setenta juízes. Era uma
emprego de violência, se se tratasse de infrações de menores instituição política e judiciária, competindo-lhe a
conseqüências. Ada Grinover assinala que, se quisermos interpretação das leis e o julgamento dos senadores,
classificar o modelo egípcio consoante estruturas conhecidas, profetas, chefes militares, além das cidades e tribos rebeldes.
a verdade é que nele se pode encontrar o embrião do Muito embora habitualmente a crença na origem
sagrada ou soberana das decisões orientasse os povos antigos
filhos, nos netos e bisnetos daqueles que me odeiam. Nessa ordem de no sentido da sua irrecorribilidade, cumpre destacar que
coisas é correto afirmar, portanto, que a idéia do direito do génos está entre hebreus o recurso era considerado direito sagrado,
indissoluvelmente ligada a crença na maldição familiar, a saber:
qualquer hamartía (falta) cometida por um membro do génos recai sobre assim como prevalecia um princípio fundamental, pelo qual
o génos inteiro, isto é, sobre todos os parenteV H VHXV GHVFHQGHQWHV ³HP
VDJUDGR´ RX ³HP SURIDQR´ (Mitologia Grega, Petrópolis: Vozes, 1991, p.
77). 20 Grinover, Ada P. Liberdades Públicas, p. 28.
18 Gomes, Luiz Flávio. Responsabilidade Penal, p. 78. 21 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 16-
19 Fontecilla Riquelme, Rafael. Ob. cit., p. 28. 18.
uma só testemunha jamais valerá contra alguém; qualquer Assembléia do povo, o Areópago, os Efetas e os Heliastas.
decisão deverá apoiar-se sobre o dito de duas ou três O Tribunal dos Heliastas, ou Hélion, assim conhecido
testemunhas,22 cabendo a dedução da acusação, em processo porque se reunia em praça pública e sob o Sol, era composto
contraditório e público, ao ofendido. Outra interessante de cidadãos, cujas decisões eram consideradas proferidas
previsão do direito hebreu, em uma fase mais avançada, em pelo povo, e sobressaiu-se entre os demais principalmente
julgamentos perante o alto tribunal, consistiu em reproduzir por força de sua ampla competência (a rigor, de início, não
a votação eventualmente condenatória, no dia seguinte ao da julgava os homicídios involuntários ou não premeditados, da
primeira, visando confirmar o veredicto desfavorável ao competência dos Efetas, e todos os crimes sancionados com
acusado mediante serena reflexão dos julgadores. Estavam, pena de morte e os homicídios premeditados e incêndios, da
porém, impedidos de alterar sua decisão aqueles que no dia competência do Areópago), pela publicidade da sua atuação
anterior houvessem votado pela absolvição, de sorte que se e porque composto por cidadãos honrados, maiores de trinta
tratava, basicamente, de um duplo grau de jurisdição a favor anos, eleitos anualmente por sorteio (de quinhentos a seis
do réu. Cabe salientar que a decisão majoritariamente mil).25
favorável ao acusado não demandava este tipo de Como salientou João Mendes Junior,26 a legislação
confirmação, proclamando-se de imediato a absolvição. ateniense reconhecia duas classes de delitos,
A legislação mosaica fulcrou-se, portanto, nos seguintes impropriamente designados como púbicos e privados, cuja
princípios:23 nota distintiva residia no interesse público (ordem,
1. não havia prisão preventiva; fora do caso de flagrante tranqüilidade e paz públicas), ou privado na repressão da
delito, o acusado hebreu não era preso senão depois infração, permitindo-se, no último caso, a desistência e
de conduzido ao tribunal para defender-se e ser transação durante o processo.
julgado; Averbe-se, porém, que o prestígio do modelo ateniense
2. não era o acusado submetido a interrogatórios de persecução penal derivou exatamente do sistema de
ocultos: segundo os rabinos, ninguém podia ser acusação popular, em relação aos crimes públicos, faculdade
condenado somente pela confissão; deferida a qualquer cidadão, de um modo geral, pela
3. ninguém podia ser preso e muito menos condenado Assembléia do Povo, para, em nome do próprio povo,
pelo dito de uma só testemunha nem por sustentar a acusação.27 Assim, o ofendido ou qualquer
conjecturas; cidadão apresentava e sustentava a acusação perante o
4. a instrução e os debates eram públicos e os Arconte e este, conforme se cuidasse de delito público,
julgamentos conferidos e acordados em segredo; convocava o Tribunal, cabendo ao acusado defender-se por si
5. o recurso era um direito individual e sagrado.24 mesmo (em algumas ocasiões era auxiliado por certas
pessoas). Cada parte apresentava as suas provas e formulava
Da Grécia antiga, a ilustração clássica pode ser suas alegações, não incumbindo ao tribunal a pesquisa ou
observada pela forma de expressão da justiça ateniense. Com aquisição de elementos de convicção. Ao final, a sentença era
efeito, havia em Atenas quatro jurisdições criminais: a
67 69
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 16. FOUCAULT, Michel. A Verdade e as..., p. 72 e 73.
68 Fiorelli, Piero. Ob. cit., p. 333. 70 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 54.
feudais sobre os demais,71 pessoas que a rigor estavam escrita, em contraposição à oralidade, o segredo,
sujeitas a medidas punitivas discricionárias, impostas pelos confrontando a publicidade e a iniciativa do juiz para o
mencionados senhores feudais. procedimento.
Vale deixar consignado que a Inquisição começa Naturalmente, altera-se o eixo do procedimento e o
propriamente quando se admite a denúncia72, inclusive acusado que no sistema acusatório era sujeito de direitos,
anônima, como forma de principiar uma investigação, deveres, ônus e faculdades, passa a objeto da investigação.
prescindindo-se dela, mais tarde, ao se permitir o início do 'D EXVFD GD ³YHUGDGH UHDO UHQDVFHP RV WRUPHQWRV
processo de ofício, bastando para tanto o rumor público, SHODV WRUWXUDV GLVSRVWDV D ³UDFLRQDOPHQWH´ H[WUDtUHP GRV
revelador da ocorrência de uma infração. Franco Cordero acusados a sua versão dos fatos e, na medida do possível, a
relembra que nessa hora o juiz passa da posição de confissão, fim do procedimento, preço da vitória e sanção
expectador impassível para converter-se em protagonista do representativa da penitência.75
sistema.73 Distintamente das ordálias, dos povos germânicos, que
A jurisdição eclesiástica a princípio destinava-se ao presumiam uma manifestação das divindades por
julgamento de membros da Igreja, porém conforme o poder intermédio de um sinal físico facilmente observável, a
temporal desta última foi se expandindo, resvalou para a sua iluminar o caminho a seguir para se fazer justiça, a tortura
competência uma enorme gama de infrações penais impunha-se como procedimento de investigação baseado no
consideradas contrárias, mesmo que distantemente, aos conhecimento, meio, portanto, considerado à época mais
interesses da Igreja.74 evoluído.
Principalmente a partir do momento em que as A prisão durante o processo torna-se a regra, firme na
autoridades judiciárias eclesiásticas passaram a ser tese de que todo acusado obstaculiza a investigação da
exercitadas por monges designados pelo Papa, as verdade.
características marcantes da Inquisição foram a forma A jurisdição secular, com o fortalecimento das
monarquias, a estruturação de uma justiça profissional e a
determinação, como critério definidor da competência, do
71 Sobre a inquisição, convém examinar a obra de João Bernardino Gonzaga, lugar do fato ² forum delicti commissi ², a partir do século
A Inquisição em seu Mundo (8ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994), da qual se
extrai este valioso e elucidativo trecho: As censuras apresentadas contra a XV supera os tribunais locais e paulatinamente diminui a
Inquisição giram, invariável e incansavelmente, em torno das idéias de influência e competência da jurisdição da Igreja, até
intolerância, prepotência, crueldade; mas, ao assim descrevê-la, os assinalar a absoluta supremacia da jurisdição do monarca.
críticos abstraem, ou referem muito de leve, o ambiente em que ela viveu.
Forçam por tratá-la quase como um acontecimento isolado e, medida Sublinhe-se que se considerava que o poder de julgar
pelos padrões da atualidade, se torna incompreensível e repulsiva para o pertencia ao rei, que, por sua vez, o delegava a funcionários
espectador de hoje. Sucede porém que esse fenômeno foi produto da sua que atuavam em seu nome, razão pela qual se admitia o
época, inserido num clima religioso e em certas condições de vida,
submetido à força dos costumes e de toda uma formação cultural e recurso ao soberano, como reafirmação do poder central e
mental, fatores que forçosamente tiveram de moldar o seu modo de controle do poder delegado,76 malgrado
comportamento (p. 21). dissimulado como garantia do réu. Saliente-se que o duplo
72
$TXLDSDODYUD³GHQ~QFLD´QmRGHYHVHU confundida com a petição inicial de grau operacionalizava-se até mesmo porque, com a franca
um processo condenatório, como no caso do Brasil de hoje, mas como notícia
crime que obrigava à investigação.
73
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 19. 75 Idem, p. 57.
74 Idem, p. 56. 76 João Bernardino Gonzaga, ob. cit., p. 60.
predominância da forma escrita, derivada da necessidade de de manera que representaban condiciones que,
documentação do que era apurado em segredo, cumpria normalmente, por experiencia, fundaban una
garantir-se a regularidade dos procedimentos. convicción racional, pero, en realidad, el acierto
O controle do poder político, inerente ao processo del juicio no dependía de su coincidencia com la
judicial por crimes, assegura no período áureo do verdad, sino de la observancia de las reglas
inquisitorialismo a delegação a determinadas categorias de jurídicas previstas, por lo que su control en
funcionários, os procuradores do rei, da atribuição de apelación se asemeja más a un examen jurídico, a
oficialmente investigar as infrações penais, ainda que delas un control sobre el recto ejercicio del poder
só haja rumores. Faustin Hélie vê na instituição a semente GHOHJDGRDOMX]JDGRU´
do Ministério Público.77
É bem verdade que, mesmo como meros delegados, os Na Espanha, o processo inquisitorial chega com a
juízes tinham de ser controlados na medida em que eles revogação formal da legislação visigótica (Fuero Juzgo),
dispunham do poder de iniciar uma investigação mediante a outorga da Lei das Sete Partidas, de Alfonso X,
independentemente de qualquer denúncia, e menos também no século XIII, expandindo-se por meio do Ordenamento de
de acusação. A acusação até poderia existir. O juiz além do Alcalá (1348), até que, sob o reinado dos Reis Católicos,
mais estava habilitado a infligir ao acusado tormentos, disso adquire inolvidável vigor.
ao final não se escusando nem mesmo os nobres. O controle De se notar que na Espanha católica instaurou-se, ao
do poder dos juízes era exercido não somente pela lado da justiça comum, o tribunal religioso denominado
possibilidade de se recorrer da decisão, cujo êxito estava Santo Ofício, tido indiscutivelmente como o mais cruel e
condicionado a fatores de ordem material, mas ainda por violento da época da Inquisição, com a qual muitas vezes é
meio da disciplina legal rigorosa de avaliação e crítica do confundido como se fosse seu exemplo mais perfeito e
material probatório. difundido.79 O Santo Ofício alcançou a América Espanhola e
Assim é que o sistema introduziu um mecanismo de só foi abolido definitivamente, enquanto tribunal de
valoração legal da prova, que estabelecia, em abstrato, as inquisição, em 1834.80
exigências ou condições para o juiz decidir sobre a Na Alemanha, por sua vez, sob a jurisdição do Império
persecução. Acentuou Maier o seguinte:78 Romano-Germânico, depois da recepção do Direito Romano,
conforme anteriormente sublinhado, após a instalação do
³(O MX]JDGRU QR IXQGDED VX IDOOR HQ VX Tribunal de Câmara Imperial (1495) e em virtude do
convicción, apelando al valor de verdad que la reconhecimento do desejo de criação de um direito imperial
prueba recibida transmitía en el caso concreto, unificado, foram editadas a Constitutio Criminalis
sino que verificaba o no verificaba las condiciones
que la ley le exigía para decidir de una u outra 79 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 66.
manera. Claro es que las condiciones impuestas 80 João Bernardino Gonzaga assevera que a extinção da Inquisição, em
Portugal, ocorreu em 1821, sucedendo, na Espanha, em 1834, com a
por la ley estaban referidas a la verdad histórica, alteração da competência e efeitos da jurisdição eclesiástica. Acrescenta o
autor que, em 1908, reorganizou-se a instituição sob a denominação de
Sagrada Congregação do Santo Ofício, passando a chamar-se, a partir de
77 Faudtin Hélie, apud Julio B. J. Maier, Derecho Procesal Penal Argentino, 1965, de Congregação para a Doutrina da Fé, naturalmente com novos
p. 61. procedimentos e competência limitada a assuntos religiosos (ob. cit., p.
78 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 64. 238).
Bambergensis (1507) e a Constitutio Criminalis Carolina incontestável ratio das providências inseridas na Ordenação.
(1532), esta alcançando praticamente todos os domínios do A recíproca determinação entre o direito processual dos
Império. povos germânicos e o Direito Romano-Canônico foi já
Trata-se do ingresso legal indiscutível da Inquisição na sublinhada, sendo marcante também na região de Portugal,
Alemanha e demais áreas de influência, sem embargo de muito embora desde logo os Visigodos, que suplantaram
remotos princípios do antigo sistema germânico, de índole suevos, vândalos e silingos na ocupação territorial daquela
acusatória, mediante uma regulação que se pretendia parte da Península Ibérica, hajam aplicado o direito de
uniforme, inclusive no tocante à disciplina da tortura.81 inspiração romana e abandonado, malgrado não por inteiro,
A França, da mesma forma, suportou o sistema como veremos, a herança que seu espírito aventureiro havia
inquisitório, especialmente a partir da Ordenação de 1254, levado para a Península Ibérica.
de Luis IX, editada sob a influência do Direito Romano- Gize-se, por oportuno, que Portugal nasce da obstinação
Canônico, com a disposição da apuração das infrações penais de resistência aos árabes que, em 714, invadem a península,
de ofício e a imposição da jurisdição real em todo território. desmembrando-se, em 1139, do Reino de Lião. Apesar disso,
Maier82 salienta, todavia, que foi a Ordenação Prévia, de sente-se nessa fase incipiente do processo penal português a
1535, o diploma que definitivamente incorporou a influência germânica e moura, como neste caso constata-se,
Inquisição, fazendo sucumbir o modelo acusatório, enquanto para ilustrar, pela designação atribuída a alguns funcionários
Franco Cordero aduz que é com a Ordenação de 1670 que a da justiça, tais como os vereadores (alvazis),85 juízes
Inquisição chega ao seu apogeu na França.83 municipais, e na hipótese da influência germânica, pela
Pietro Fredas destaca, por sua vez, que a ordenação instituição da acusação do ofendido ou de qualquer do povo,
criminal de Luis XIV, de agosto de 1670, ordenou o por clamor ou sem ele, com a dedução da acusação perante
procedimento criminal na França e apresentou-se como a um tribunal formado por homens de bem, assegurando-se a
codificação completa e última do procedimento plenitude da defesa.86 Tratava-se, é certo, de processo
inquisitório,84 pretendendo por fim ao caos então vigente na público e oral, substituído aos poucos pela forma escrita.
administração da justiça. Como em outros lugares, ao fim da Idade Média, em
Releva notar que, diferentemente da jurisdição civil, em Portugal também se percebeu o papel jogado pela justiça
relação à qual os senhores feudais ainda dispunham de criminal na consolidação do poder político, de sorte que as
algum poder, inclusive o de julgar recursos contra as justiças municipais passaram a sofrer a disciplina geral,
decisões dos seus juízes delegados, na jurisdição criminal determinada pela realeza, impondo-se a competência ratione
sempre, qualquer que fosse o tribunal do qual proviesse a loci, que reduzia a influência das justiças locais de caráter
decisão, os recursos eram julgados por juízes indicados pelo feudal, a iniciativa oficial, independentemente de delação ou
rei, assegurando-se, pelo controle dos assuntos criminais, a
preponderância do poder real sobre o senhorial, verdadeira e
85 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 61.
86 Idem, pp. 66-71. Convém frisar que os visigodos dispuseram de legislação
própria, aplicável exclusivamente ao seu povo (Código de Eurico e,
81 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 84. posteriormente, Código de Leovigildo), enquanto os hispano-romanos
82 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 78. submetiam-se a outro regime (Breviário de Alarico), até que, em 654,
83
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 21. promulgou-se um novo código, unificando a legislação (Código Visigótico,
84 Pietro Fredas, na introdução à 3ª edição da obra de Florian, Las Pruebas Liber Judiciorum ou Fuero Juzgo), conforme remarca Pierangelli
Penales, vol. I, já mencionada (p. 7). (Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, p. 28).
reclamação do ofendido, embora esta pudesse existir, e o Manoelinas89 e Filipinas, com as devassas gerais e especiais,
recurso de apelação, inclusive ex-officio, por parte do cabendo, pois, aos juízes, nos seus territórios, formar corpo
comendador real, sem embargo da criação de tribunal de delito e abrir inquirição-devassa logo que tivessem
inquisitorial eclesiástico, com sua competência peculiar, em notícias da prática de infrações penais.90
prolongada concorrência com as jurisdições feudal e Ao lado do arbítrio e das práticas de extermínio, a
monárquica, portanto conforme o modelo comum em toda a inquisitorialidade era a regra geral, fundada na iniciativa ex
Europa continental.87 officio, no emprego da tortura, no sistema de avaliação legal
A América Espanhola regeu-se, pela força da dominação das provas e na forma escrita predominante, inclusive da
dos imigrantes europeus e da exterminação quase total dos sentença, com uma fase processual anterior ao julgamento,
povos e culturas indígenas, pelo procedimento vigente na sem contraditório, que findava com a pronúncia,91 sem
Espanha, tal seja, principalmente a Lei das Sete Partidas, embargo, nos primeiros tempos de colonização, de ficar o
como consigna Maier,88 com a prevalência do modelo processo à discrição dos doze donatários das quatorze
inquisitório, baseado na persecução penal de ofício, capitanias hereditárias em que se dividiu o território
convertendo-se em pesquisa oficial e secreta, com a brasileiro, com ampla jurisdição.92
admissão da tortura. Enquanto isso, no Brasil, o discurso Em linhas gerais, pode-se assinalar, com Julio Maier,
oficial sugeria a aplicação, sucessivamente, das Ordenações que o Sistema Inquisitório correspondeu a uma concepção
absolutista de Estado, em teoria política, e a progressiva
publicidade do direito penal, em termos de teoria jurídica,
³concibiendo al delito como un ataque al orden social y el
87 Vale, por oportuno, destacar que, no reinado de D. Afonso IV, os mouros juzgamiento penal se transforman de cuestión popular en
foram definitivamente banidos do território lusitano. Isso produziu
sensível alteração na ordem jurídica, no plano do processo penal, WDUHDDXWRULWDULDFXHVWLyQGH(VWDGR´, com as inolvidáveis
principalmente com a edição, em 2 de dezembro de 1325, da lei sobre as conseqüências culturais e jurídicas que tal concepção veio a
inquirições devassas. No reinado de D. Afonso V, sob a regência do Infante proporcionar, a ponto de até hoje sentirem-se os seus efeitos.
D. Pedro, em 1446, foram editadas as Ordenações Afonsinas, obra dos
romanistas João Mendes (possivelmente o Livro I) e Ruy Fernandes (os
Pode-se mesmo assinalar que, sob a égide de tal
demais Livros). Na mencionada codificação, mais especificamente em seu sistema, fica claramente à mostra a vinculatividade da
Livro V, Título IV, tratava-se do processo criminal, aludindo-se não só à atuação estatal na resolução dos conflitos de interesses e
acusação do Direito Romano como também, novamente, às inquirições
secretas (devassas) do Direito Canônico. Depois vieram leis esparsas e as
solução de casos na esfera penal, às diretrizes políticas que
Ordenações Manoelinas, em 1521, acentuando a forma escrita do
procedimento e ratificando a jurisdição da realeza, com a previsão do
Promotor de Justiça, até que, finalmente, as Ordenações Filipinas foram 89 Jorge Alberto Romeiro assinala que no Brasil-Colônia não vigoraram as
editadas, em 1603, e passaram a ser aplicadas em Portugal após a morte do Ordenações Afonsinas... É que, apesar de descoberta a Terra de Santa
Rei Cardeal D. Henrique e sua sucessão pelo Rei espanhol, Filipe II de Cruz em 1500, somente no reinado de D. João III (1521-1557) lhe veio de
Castela (Filipe I em Portugal), que pouco alterou a anterior (Almeida Portugal a primeira expedição colonizadora, que chegou às costas de
Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 112, 123 e Pernambuco em 30 de janeiro de 1531, capitaneada por Martim Afonso de
127, e Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Souza (Romeiro, Jorge Alberto. Da Ação Penal, Rio de Janeiro: Forense,
Fontes Legislativas, pp. 45-61). Mesmo depois da libertação de Portugal do 1978, p. 71).
jugo espanhol, continuaram em vigor as Ordenações Filipinas, por feito de 90 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, p.
D. João IV, que as revalidou em 29 de janeiro de 1643 (Marques, José 95.
Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, Campinas: 91 Idem, pp. 96-97.
Bookseller, 1997, p. 95). 92 Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes
88 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, pp. 102-103. Legislativas, p. 71.
modelam a estrutura do Estado e definem seus fins. Com efeito, a Inglaterra integrou o Império Romano do
A maior parte da doutrina refere como características século I ao V, porém o processo de aculturação foi pouco
do Sistema Inquisitório a concentração das três funções do intenso, principalmente no tocante à assimilação do direito e
processo penal ² de acusar, defender e julgar ² em um só das instituições jurídicas.
sujeito, o que conduz, nas palavras de Alcala-Zamora e Do século VI em diante, conseqüentemente às invasões
Levene, a um processo unilateral de um juiz com atividade dos anglos, dos saxões e dos dinamarqueses, têm lugar
multiforme,93 relegando ao acusador privado uma posição reinos germânicos que, tal como no continente, em que
secundária e proporcionando o princípio do processo pesem a incontestável força e o prestígio dos costumes,
(rectius, da persecução penal) independentemente da adotam também leis bárbaras, geralmente redigidas em
manifestação de pessoa distinta da do juiz (procedat iudex ex língua germânica.
officio); procedimento extremamente secreto e destituído do Já no século XII, a partir da conquista normanda, os
contraditório, quase sempre marcado pela prisão provisória costumes parecem ser a única ou mais importante fonte do
e disparidade de poderes entre juiz-acusador e acusado; direito, dividindo-se em costumes locais anglo-saxônicos,
forma escrita e exclusão de juízes populares, historicamente costumes das novas cidades e costumes dos mercadores,
preocupado com o descobrimento da verdade real, via de denominados, de um modo geral, lex mercatoria. Neste
regra a partir da confissão do imputado, muito embora tenha século, portanto mais cedo que na Europa Continental, os
havido intensa liberdade de o juiz pesquisar e introduzir reis da Inglaterra conseguem impor sua autoridade sobre o
outros meios de prova.94 Não custa colocar em relevo a conjunto do território, desenvolvendo a competência da sua
observação de Franco Cordero, sobre este período e acerca própria jurisdição em prejuízo das jurisdições senhoriais e
do emprego da tortura. Nota o jurista italiano que provido de locais, que perdem progressivamente, ao longo dos séculos
instrumentos virtualmente irresistíveis, o inquisidor tortura XII e XIII, a maior parte das suas atribuições.
os pacientes como quer: dentro do seu marco cultural Para isso, especialmente em matéria criminal, os reis se
pessimista o animal humano nasce culpado.95 serviram de juízes que percorriam todo o território, reuniam
as cortes locais e julgavam os casos em pauta, conferindo
3.1.3. O COMMON LAW unidade ao Common Law.96
A forma de atuação dos mecanismos de resolução dos
O sistema jurídico conhecido como Common Law conflitos de interesses adotados na Inglaterra, como
merece especial realce. Elaborado na Inglaterra a partir do consectário lógico da técnica usada para requerer as
século XII da nossa era e fundamentado na jurisdição real jurisdições reais,97 afastou o direito inglês do modelo
das decisões, expandiu-se para introduzir-se, em maior ou romano-canônico imperante no resto da Europa e
menor grau, nos Estados que foram colonizados pelos possibilitou aos juízes profissionais, com formação prática, a
ingleses. introdução de um mecanismo de recurso a precedentes
93 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal 96 Tornaghi, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 70.
Penal, tomo II, p. 219. 97 Requeria-se jurisdição por meio de pedidos endereçados ao Chanceler que,
94 Leone, Giovanni. Manuale di Diritto Processuale Penale, Napoli: Jovene, se os reputasse fundamentados, exarava um writ, uma ordem, a um agente
1983, p. 9. Conso, Giovanni. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, real local, para que determinasse ao réu que desse satisfação ao queixoso
Milano: Giuffrè, 1969, p. 7. (Gilissen, John. Introdução Histórica ao Direito, Lisboa: Calouste
95
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 22, tradução livre. Gulbenkian, 1979).
(cases) a rigor condensados nos Years Books, escritos em isenção de julgamento.100
francês (Law French). É imperioso ressaltar, na história dos sistemas
No século XV, no entanto, a técnica dos precedentes processuais penais, que nos séculos XV e XVI o petty jury
judiciais começou a não atender à evolução das relações reforma-se para tornar-se exclusivamente uma instituição de
econômicas e sociais, de sorte que surgiram as designadas julgamento,101 confiando-se a acusação a qualquer habitante
jurisdições de eqüidade (equity), que desprezavam o do reino, pois que, por ficção, admite-se que toda conduta
common law e aplicavam um processo escrito inspirado pelo criminal atinge a figura do rei, o que perdura até os dias de
do Direito Canônico e conforme ao desenvolvimento do hoje.
poder real, em direção ao absolutismo. Destarte, a instituição dessa exclusiva ação penal
É bem verdade que mais tarde a equity se integrou ao popular, e a postura de imparcialidade e eqüidistância do
common law, depois de um período de conflito entre realeza júri (passividade), comungam para que se aceite que o
e parlamento, no século XVII,98 especialmente porque se processo anglo-saxão tenha conservado um sistema
admitiu uma dualidade jurisdicional, fundida apenas tipicamente acusatório.102
posteriormente, na Idade Contemporânea, em 1873 e 1875.
No campo específico do processo penal, desde o século 3.1.4. O DIREITO DA ÉPOCA CONTEMPORÂNEA
XII assoma em importância o júri, que substitui os juízos de
Deus, proscritos por Inocêncio III. O Júri inicialmente foi Pode-se afirmar seguramente que a herança espiritual
disposto não só para julgar a causa mas, antes, para da Idade Média, no âmbito da repressão penal, não
denunciar os crimes mais graves (Grand Jury), não se desapareceu definitivamente, até que, a partir dos séculos
entregando a acusação pública, em matéria criminal, a um XVII e XVIII, sob inspiração do Iluminismo, iniciou-se o
específico funcionário, juiz ou membro do Ministério período moderno de administração da justiça, reduzindo-se e
Público, como no continente. amenizando-se as características inquisitoriais dos
Cabia ao Grand Jury, composto por vinte e três jurados procedimentos penais.
de cada condado, denunciar os crimes mais graves aos juízes Com efeito, se a Revolução Francesa de 1789 foi o marco
(júri de acusação), enquanto o Petty Jury, composto político inquestionável, as condições ideológicas e filosóficas
geralmente por doze jurados, ocupava-se com as provas,99 de que viabilizaram a eclosão da Revolução devem muito ao
que cada jurado podia ter ciência própria, isso se o réu desde
logo não confessasse (guilty plea), situação que gerava a 100 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 21.
101 Gilissen, John. Introdução Histórica ao Direito, p. 214.
102 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 21. Jorge Alberto Romeiro,
a propósito do sistema inglês, alude ao fato de, na Inglaterra, ter imperado
98 Sobre a reforma do sistema judiciário, que constituiu um dos objetivos dos sempre um modelo processual penal baseado na ação penal popular, muito
que lutaram na guerra civil inglesa, cumpre consignar a reivindicação de embora, em tempos recentes, conhecer-se a figura do público acusador
Oliver Cromwell (1650) de que procedimentos e textos legais fossem (director of public prosecution), sob a vigilância do procurador-geral
redigidos em inglês, não em latim ou law french e que houvesse tribunais (attorney general). Fauzi Hassan Choukr pondera, entretanto, que a
de justiça locais, constituídos por simples cidadãos, que os juízes de paz figura do attorney general que lá existe tem funções de auxiliar do
fossem eleitos, a lei codificada, os advogados e seus honorários abolidos governo, e sua origem nada apresenta de comum com aquela do
(Cerqueira, Marcello. A Constituição na História: Origem & Reforma, Rio Promotor Público (Romeiro, Jorge Alberto. Da Ação Penal, p. 65, e
de Janeiro: Revan, 1993, p. 31). Choukr, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação
99 Ver, sobre o sistema judiciário do Common Law, por todos, John Gilissen, Criminal, 1ª ed., p. 50). De toda sorte, dúvida não há sobre a natureza da
Introdução Histórica ao Direito. estrutura processual penal inglesa.
triunfo das idéias humanistas de Beccaria (Dei delitti e delle de justicia y la introducción del ministerio público ² ésas
pene, 1764), Thomasio (De origine processus inquisitorii), fueron, en el ámbito del proceso penal, las exigencias
Montesquieu (Esprit des Lois, 1748), Voltaire (Prix de la reformistas decisivas del siglo XIX en oposición a la justicia
MXVWLFHHWGHO¶KXPDQLWp, 1777), Bentham (Introduction to the de gabinete y a la manipulación arbitraria del poder
principles of morals and legislation, 1780), Pufendorf e SHQDO´.106
Wolf, além, naturalmente, de Rosseau (Contrat Social, Sem dúvida, o movimento de radical mudança social,
1764), quer no tocante à secularização do direito penal, política e jurídica não se limitou ao ambiente intelectual,
ousando separar o Direito da Religião, quer quanto aos fins alcançando a consciência pública, de modo a ser reivindicado
da pena, quer, ainda, pela sistematização da idéia da até mesmo por magistrados franceses do Antigo Regime,
separação dos poderes.103 juízes que hoje poderíamos designar como de vanguarda.
É relevante ressaltar que a crítica tenaz ao modelo de O novo sistema, que principiou sua atuação na França,
processo penal, e porque não dizer, principalmente, ao em seguida à Revolução, para com as guerras napoleônicas
modelo de direito penal então vigente, ressabia a contestação chegar a outros países, disciplinava o processo penal em
ao sistema político do Ancien Régime, do qual os duas fases. Na primeira delas, denominada instrução,
mecanismos punitivos nada mais eram do que instrumentos procedia-se secretamente, sob o comando de um juiz,
de manutenção da ordem classista e desigual, em vigor, designado juiz-instrutor, tendo por objetivo pesquisar a
cabendo ao judiciário daquele momento, de uma forma perpetração das infrações penais, com todas as
geral, o triste papel de garantidor de um status quo de circunstâncias que influem na sua qualificação jurídica, além
injustiças.104 dos aspectos atinentes à culpabilidade dos autores, de
Maier assinala com precisão que os filósofos maneira a preparar o caminho para o exercício da ação
iluministas, partindo do reconhecimento da necessidade de penal; na segunda fase, chamada de juízo, todas as atuações
substituir o sistema absolutista monárquico pela república, realizavam-se publicamente, perante um tribunal colegiado
postularam um novo modelo que, a rigor, recolocaria a ou o júri, com a controvérsia e o debate entre as partes, no
oralidade e a publicidade no lugar da escrituração e do maior nível possível de igualdade.
segredo, assegurando-se a defesa e a liberdade de julgamento Salientou Pietro Fredas107 que esta estrutura foi
pelos jurados,105 com a proscrição do sistema de provas consagrada no Código de Instrução Criminal de 1808,
legais. difundindo-se rapidamente pelos códigos modernos, com a
A transição política e cultural da monarquia para a proclamação da necessidade de uma investigação secreta e
República teve repercussão no campo do processo penal, por dirigida pelo juiz, e com tímida atuação da defesa nesta
meio da abolição da tortura e da adoção de um sistema etapa, razão por que se consagra como sistema de tipo
processual penal inspirado nos aplicados pela Roma misto.108
Republicana e pela Inglaterra. &RPR GL] 5R[LQ ³Oralidad,
publicidad, participación de los legos en la administración
106 Roxin, Claus. El Ministerio Público En El Proceso Penal, Buenos Aires: Ad-
Hoc, 1993, p. 39.
107 Fredas, Pietro, na introdução à 3ª edição de De las Pruebas Penales, de
103 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 85. Eugenio Florian, p. 10.
104 Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, Barão de. Cartas Persas, 108 Vale acentuar que, transplantado da Inglaterra para o continente europeu
tradução de Renato Janine Ribeiro, São Paulo: Paulicéia, 1991. pela Revolução Francesa, exceto para Holanda e Dinamarca, o júri não se
105 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, pp. 106-107. adaptou aos costumes dos povos continentais, sendo abolido ou tendo sua
Cumpre explicitar que a instituição do júri, no Pode-se dizer que a ação penal, no sistema misto,
continente europeu, obedeceu à lógica da identidade entre o exercitada pelo Ministério Público, pelo ofendido ou por
direito e a lei, pela qual a verdade política por esta qualquer pessoa (dividindo-se assim, conforme a
expressada, de forma genérica e abstrata, haveria de ser peculiaridade dos ordenamentos jurídicos, em pública, de
meramente proclamada pelo juiz profissional a quem não se iniciativa privada e popular), caracteriza-se por ser
permitia interpretar a lei com maior liberdade, no seu indisponível, exercida pelo seu respectivo titular de acordo
processo de aplicação. com os ditames do juízo de acusação ao qual chegam os
Tratava-se, portanto, de mais uma reação ao Antigo integrantes da câmara ou tribunal de acusação, depois de
Regime, desenvolvendo os jurados ² juízes leigos ² o papel apresentado, pelo juiz-instrutor, o resultado das suas
de guardiões dessa presumida verdade política da lei, em um investigações.
clima de abstrata homogeneidade de uma sociedade, A etapa preliminar, ou de instrução, atende ao
marcada, naturalmente, por uma nova categoria de conflitos propósito declarado de otimizar os meios de apreensão dos
que, ao longo dos séculos XIX e XX, poriam a nu o dogma da elementos que constituirão o núcleo do trabalho a ser
universalidade dos interesses burgueses. desenvolvido na fase seguinte, e ao objetivo implícito, de
Conforme Alcala-Zamora e Ricardo Levene, na própria realização pública e obrigatória do direito penal, ou, como
França, e antes na Áustria e na Espanha (respectivamente, prefere Maier, de indisponibilidade na atuação do preceito e
1897, 1873 e 1882), acentuou-se a tendência acusatória do da sanção penais, nem bem verificada a infração penal,111
processo penal, sem prejuízo da manutenção das ID]HQGR RSHUDU ³GH RItFLR´ R GLUHLWR SHQDO FRnforme as
características basicamente inquisitórias da sua primeira reservas de direitos fundamentais, motivo pelo qual, nesta
etapa (o segredo, a escrituração e a iniciativa judicial), perspectiva, pode ser compreendido como sistema
combinando, de acordo com os renomados autores, as inquisitorial garantista.
vantagens de ambos os sistemas de que derivou,109 de sorte Atualmente, a situação é a que será a seguir exposta,
que passa a ser conhecido, também, como sistema acusatório com a ressalva de que o século XX foi marcado, na Europa,
formal.110 em um determinado momento, pelo império de regimes
totalitários, que abraçaram a discricionariedade na repressão
penal, mais aproximada do modelo inquisitório extremado, e
competência paulatinamente reduzida, como na Alemanha, em 1924, na
Itália, em 1935 e 1951/1952, e na própria França, em 1941, onde foi
provocaram, como reação, conseqüentemente ao seu
substituído pelos escabinados (Marques, Frederico. A Instituição do Júri, desaparecimento, o desejo mais ou menos comum de uma
Campinas: Bookseller, 1997, pp. 20-21). nova introdução do sistema acusatório, movimento ainda
109 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal não completamente ultimado no último decênio.
Penal, p. 222. Ver também Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p.
32. Vale asseverar, seguindo o trajeto histórico dos sistemas
110 Vale examinar a obra de Antonio María Lorca Navarrete, intitulada processuais das duas principais famílias jurídicas que nos
significativamente El Proceso Penal de La Ley de Enjuiciamiento
Criminal: Una propuesta para preterir el modelo inquisitivo d la Ley de
Enjuiciamiento Criminal (Madrid: Dykinson, 1997, p. 30), da qual se extrai mixto o acusatorio formal, que se caracteriza porque recoge, como no
esse importante trecho: La prevalente práctica del sistema inquisitivo podía ser menos, elementos técnicos del inquisitivo e del acusatorio com
justificó históricamente la urgente necesidad de neutralizar sus indudable prevalencia hacia este último en la fase más importante de esse
consecuencias perversas, evidenciadas a partir de la labor de los modelo: el juicio.
UHYROXFLRQDULRVIUDQFHVHV6XUJHDVtODµWHUFHUDYtD¶TXHVLQVHULQTXLVLWLYD 111 Maier, Julio B. J. La Investigación Penal Preparatoria del Ministerio
ni acusatoria, es, en cambio, los dos modelos a la vez. Se trata del modelo Publico, Buenos Aires: Lerner, p. 14.
interessam ² as do direito europeu continental e do mista, porquanto, ao lado de uma primeira fase, de
Common Law ², que, na França, o processo penal evoluiu investigação, denominada sumário, escrita e secreta,
desde 1808, época da edição do &RGH G¶LQVWUXFWLRQ conduzida pelo juiz da instrução, com reduzida intervenção
Criminelle, no sentido de se reforçar a estrutura de tipo da defesa,114 há o juízo propriamente dito, ao qual se chega
misto, mantendo-se no atual Code de Procédure Pénale, que ultrapassando-se a etapa intermediária de aceitação da
entrou em vigor em 1959, uma etapa de instrução escrita e acusação, sujeito à parêmia nemo iudex sine actore, pelo que
secreta (artigo 11), dirigida por um juiz-instrutor responsável se prestigiam a oralidade, a publicidade e o contraditório
pela aquisição das provas, com maior liberdade e (artigos 744 e 680 da LEC).
independência, distinta da etapa de julgamento. A ação penal poderá ser pública, a cargo do Ministério
Prevalece a tendência de se excluir a defesa da fase de Público, popular, caso em que funciona o órgão oficial como
investigação preliminar (O¶HQTXrWH), muito embora participe litisconsorte, ou de iniciativa do ofendido, desenvolvendo-se
efetivamente da fase de juízo. A ação penal é deflagrada pelo na sua plenitude depois de ultrapassada a fase sumarial,
Ministério Público, sendo indisponível e irretratável, muito responsável pelo acertamento da qualificação jurídica do
embora, quanto à iniciativa, sujeita a alguma fato.
discricionariedade do órgão do parquet, e, quanto ao seu Navarrete, examinando a forma como na Espanha
objeto, sujeita à obediência ao deliberado pela câmara de desenvolve-se o processo penal, acentua a impossibilidade de
instrução, no fim desta fase (artigos 202, 204 e 205 do CPP). se conciliar duas fases tecnicamente antagônicas, porque
Novella Galantini, estudando o Processo Penal Francês, inspiradas por princípios opostos, tais sejam, o inquisitivo e
observou, na década de 1980, a tendência de aproximação ao o acusatório. Reclama por isso, o mencionado autor, uma
modelo acusatório, principalmente por meio do controle dos urgente redefinição do modelo, com preponderância da
poderes atribuídos ao juiz de instrução, situação revertida acusatoriedade, salvo se pretender a lei espanhola render
posteriormente, conforme as Leis 93-2, de janeiro de 1993, e loas à teoria da aparência acusatória, pela qual o sistema
93-1013, de agosto do mesmo ano, que se inclinaram em acusatório é só mediático, estruturalmente condicionado em
direção ao retorno ao processo de tipo misto, que atualmente seus resultados pela atividade inquisitória anterior.
predomina, progredindo a persecução a partir da A prevalência dos aspectos acusatórios, conforme
investigação inicial, levada ao cabo pela polícia, sob a Navarrete, apresenta-se hoje, pois, como mistificação, que
coordenação do Ministério Público, passando pelo exercício não resiste sequer à constatação de que a forma sumária,
da ação penal e instauração da fase de instrução, até chegar preparatória e inquisitorial, é regulada por quase quatro
ao juízo propriamente dito, este último oral, público e centenas de artigos (artigos 259 a 648 da LEC), contra cem
contraditório.112 do juízo oral e um número ainda menor para o juízo
Na Espanha, segundo Emilio Gomez Orbaneja e Vicente abreviado, instituído pela Ley Orgánica 7/1988, de 28 de
Herce Quemada,113 o sistema da Ley de Enjuiciamiento
Criminal corresponde à estrutura acusatória formal, ou
114 Desde 4 de dezembro de 1978, por força da Lei nº 53/1978, que modificou
o artigo 302 da LEC, os sujeitos pessoalmente envolvidos com as
investigações sumariais podem tomar conhecimento das diligências e
112 Galantini, Novella. Profili della Giustizia Penale Francese, Torino: G. intervir em todas elas, sendo, portanto, consoante interpretação do
Giappichelli, 1995. tribunal constitucional espanhol, uma exceção para as partes (Lorca
113 Orbaneja, Emilio Gomez e Quemada, Vicente Herce. Derecho Procesal Navarrete, Antonio María. El Proceso Penal de La Ley de Enjuiciamiento
Penal, 6ª ed. Madrid, 1968, p. 91. Criminal, p. 87).
dezembro de 1988.115 secreto. Nele, há limitada autorização para a participação do
Como sintoma da incongruência da estrutura acusatória investigado ou de seu defensor, embora haja cuidados com
formal ou mista em vigor, ressalta Navarrete a possibilidade os direitos fundamentais do primeiro. Terminada esta fase, é
de funcionarem, lado a lado, o juiz inquisidor, o Ministério possível o arquivamento ou o exercício da ação penal,
Público e o ofendido, alcançando-se, pelas dificuldades de consoante o seu resultado e levando em consideração, ainda,
salvaguarda de um processo garantista, algo como a em algumas situações, questões de conveniência.
quadratura do círculo. Formulada a acusação, passa-se a uma fase
A Alemanha, por sua vez, recepcionou novamente a intermediária, destinada ao controle desta mesma acusação,
experiência jurídica estrangeira, por conta da expansão no tocante à existência de base fática para a demanda ² §§
napoleônica, introduzindo entre os povos germânicos a 199 a 211 do StPO. Aceita a acusação pelo tribunal, inicia-se o
declaração de direitos fundamentais do povo alemão, em procedimento principal, regulado no Livro II da StPO, cujas
1848, pela qual se optava, decisivamente, pela publicidade e principais notas são, como antes acentuado, a divisão das
oralidade do processo penal, pela inclusão do elemento funções principais entre acusador, réu e seu defensor e juiz, a
popular na tarefa de julgar, condicionando-se a atuação da oralidade e a publicidade, estando, todavia, o tribunal livre
jurisdição a uma provocação de parte, com a conseqüente para adquirir os meios de prova que considerar necessários
descentralização das funções principais do processo: acusar, ao descobrimento da verdade, não havendo nenhuma
defender e julgar.116 tarifação legal dos meios de convencimento introduzidos.119
Em realidade, muito embora haja, entre os estudiosos Convém explicitar, nos limites do nosso trabalho, que
do processo penal alemão, quem lhe recuse a qualificação de não pode o tribunal proceder de ofício, quer quando decide o
deduzido conforme o sistema acusatório, justamente porque Ministério Público arquivar os autos do procedimento
não seria um processo de partes, substancialmente preparatório (para o que só há recurso do ofendido), ou
falando,117 o certo é que o princípio acusatório, caracterizado ainda se pretender o tribunal ampliar o objeto ou incluir
pela divisão de funções ² acusar, defender e julgar ² está sujeitos na relação instaurada, devendo, neste último caso,
efetivamente preservado.118 ser cumprido o percurso previsto no § 266 do diploma
A persecução penal, de um modo geral, começa com o processual, como adiante transcrevemos, conforme a
procedimento preparatório, previsto no § 160 e seguintes do tradução espanhola:120
StPO, dirigido pelo Ministério Público, sendo essencialmente
³Si extendiera el Fiscal en la vista principal la
acusación a ulteriores hechos punibles del acusado,
115 Idem, pp. 31 e 57. podrá incluirlos el Tribunal, por medio de auto, en
116 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 35.
117 Colomber assevera que, na medida em que é o próprio Estado quem inicia el proceso, cuando fuera competente para ello y lo
a persecução penal em juízo, por intermédio do Ministério Público, e a FRQVLQWLHUDHODFXVDGR´
soluciona, por meio da sentença proferida pelo juiz, dependendo a relação
jurídica processual, via de regra, da oficialidade da ação penal, tal estado de
coisas é inerente ao reconhecimento da prevalência do interesse público na
tutela penal dos bens jurídicos, com a usurpação, pelo Estado, do papel de
protagonista que a vítima desempenha nos sistemas acusatórios puros ou 119 Idem, p. 130. Ver, igualmente, Introducción al Derecho Penal y Al Derecho
genuínos (Gomes Colomer, Juan-Luis. El Proceso Penal Aleman: Penal Procesal, por Claus Roxin, Gunther Arzt e Klaus Tiedemann,
Introduccion y Normas Basicas, Barcelona: Bosch, 1985, p. 46). Barcelona: Ariel, 1989.
118 Idem, p. 47. 120 Gomes Colomer, Juan-Luis. El Proceso Penal Aleman, p. 367.
A Itália, em 1988, substituiu o Código Rocco, de 1930, MXOJDPHQWR$RODGRGRGHQRPLQDGR³SURFHVVRWLSR´YLJRUDP
incorporando na nova legislação fundamentais alterações, pelo menos cinco modalidades de procedimentos
que apartam o mais recente modelo daqueles de inspiração alternativos, que objetivam evitar o estrangulamento do
francesa. sistema e possibilitar a adoção célere de decisões que,
Com efeito, depois de longa jornada, permeada por normalmente por acordo, prescindam do contraditório em
instantes de extrema dificuldade, provocados, entre vários audiência de instrução.
fatores, pela ação terrorista, produziu-se uma nova ordem A admissão das provas emerge, normalmente, da
jurídica, no plano do processo penal, em busca da expressão atividade das partes e, em caráter excepcional, da iniciativa
consciente de dois distintos projetos: a preservação das do tribunal, vedada esta, porém, no estágio anterior ao da
garantias fundamentais, bastante afetadas por um sistema de audiência preliminar, mesmo quando evidente o periculum
tipo misto, preponderantemente inquisitório;121 e a in mora (artigo 392 do CPP). A esse respeito, ressalta
necessidade de eficiência da justiça penal e de defesa da $PRGLRUHODWLYDPHQWHDRHVWiJLRGHMXOJDPHQWR³o juiz não
coletividade.122 é colocado no papel de um passivo espectador da disputa
No novo sistema, modificou-se a fase preparatória, que que se desenvolve em audiência entre a acusação e a defesa.
se transformou em verdadeiro inquérito, conduzido, 2 MXL] SRGH GHSRLV GH WHUPLQDGR R µHVDPH GLUHWWR¶ H R
coordenadamente, pelo Ministério Público e pela Polícia, µFRQWURHVDPH¶ FRQGX]LGRV SHODV SDUWHV LQGLFDU jV PHVPDV
iniciando-se a ação penal, sempre pública, depois de WHUPRVGHSURYDQRYRV´.
encerrada esta etapa123. Com isso, repudiou-se a face antiga Pode ainda o juiz, é certo, reperguntar às testemunhas,
do sistema, pela qual o juiz de instrução, responsável, aos peritos e às partes privadas, desde que preserve o direito
juntamente com o Ministério Público e a polícia, pela das partes colocarem ulteriores perguntas (artigos 506, 498
aquisição das provas e acertamento dos fatos fundantes da e 503 do CPP), de tal sorte que o princípio da busca da
acusação, depois disso participava ativamente do verdade real é significativamente abrandado, sem, todavia,
julgamento. reservar ao juiz um papel de completa passividade.124
Ao mesmo tempo, a inspiração acusatória retirou das Importa consignar que, com poucos anos de vigência, o
investigações preliminares (indagini preliminari) a condição novo código sofreu parciais reformulações e algumas
de, por si só, autorizarem a formação de um juízo interpretações polêmicas, que alteraram certos aspectos,
condenatório, imperando, portanto, o contraditório, como principalmente no que concerne à produção da prova,
mecanismo de validação da relação processual, cujas fases durante o julgamento, sem a adequada efetivação do
consistem, via de regra, na audiência preliminar e no contraditório e preservação da oralidade e publicidade,
critérios cruciais do novel diploma, a ponto de assinalar
121 Ennio Amodio salienta que, não obstante as inserções e retoques 124 Assinala, sobre a nova postura dos juízes, Paolo Ferrua, que ciò non
inspirados em uma visão garantidora, o antigo processo penal, volvido significa che il giudice debba restare costantemente passivo, immerso sino
na sua criação à codificação de 1930, mantinha intacta a sua conotação alla decisione in uno stato di indifferenza, quasi di ozio. Acrescenta o
LQTXLVLWyULDKHUGDGDGR&RGHG¶LQVWUXFWLRQFULPLQDOOHIUDQFrVGH. citado autor que, ao contrário, sH O¶LPSDUzialità è sicuramente
122 Sobre o movimento que resultou na edição do novo código, ver, por todos, FRPSURPHVVD GDOO¶HVHUFL]LR GL IXQ]LRQL LQYHVWLJDWLYH QRQ OR q Qp
3URFHGXUD 3HQDOH XQ FRGLFH WUD ³VWRULD´ H FURQDFD, de Mario Chiavario, GDOO¶HVHUFL]LR GL SRWHUL GLUHWWLYL FKH QRQ LPSOLFDQR DOFXQD SUHPLQHQ]D VH
Torino: Giappichelli, 1994. non quella, essenzialmente pratica, di regolare gli interventi delle parti
123
PEPINO, Livio. Reflexões sobre o sistema processual penal italiano, in: nel corso del processo (Studi sul Processo Penale, Torino: Giappichelli,
Revista do Ministério Público , 97, ano 25, jan-mar 2004, Lisboa, p. 75. 1990, p. 17).
parcela da doutrina que hoje se vive a estranha situação de se processual alicerçado na assimilação da acusação, como
ter passado de um GARANTISMO INQUISITÓRIO, criado a condição processual para alguém submeter-se a julgamento,
partir das decisões da corte constitucional, adaptando o na parificação do posicionamento jurídico entre acusação e
velho código Rocco, ao accusatorio non garantito.125 defesa, em todos os atos do processo, na garantia da ampla
Vale dizer que em virtude da reação de diversos setores defesa, do contraditório, da publicidade e da oralidade, e na
da sociedade foi editada a lei n. 479, de 16 de dezembro de correlação entre a imputação contida na ação penal ² a rigor
1999, que modificou bastante o procedimento abreviado. A pública, promovida pelo Ministério Público, mas,
própria Constituição da República Italiana sofreu alteração. excepcionalmente, de iniciativa privativa do ofendido ² e a
Em 23 de novembro de 1999 foi promulgada a lei n. 2, que sentença proferida (artigos 309o e 379o do CPP),126 cuja
PRGLILFRXRDUWLJRTXHWUDWDGR³GHYLGRSURFHVVROHJDO´ execução está condicionada, também, à iniciativa do
expressamente referindo-se aos meios de prova para excluir Ministério Público.
a possibilidade de condenação de alguém com base em Pondo de lado um sistema de instrução semelhante ao
declarações prestadas por quem, por decisão livre, se francês, por causa da profissão de fé acusatória, o novo
subtraiu voluntariamente ao interrogatório por parte do réu paradigma processual lusitano inseriu um estágio similar ao
e de seu defensor. inquérito policial, dominado pelo Ministério Público, e
Em Portugal, após a Revolução dos Cravos e voltado à reunião dos elementos que serão deduzidos na fase
estabelecimento da democracia, editou-se, em 2 de abril de de instrução (artigos 262o e seguintes do CPP), surgindo
1976, uma nova Constituição, cinco vezes revista, inclusive esta, por sua vez, quando exigida por lei, como preparatória
em 12 de dezembro de 2001, porém sem modificação para o exercício da ação penal (artigos 286o e seguintes do
sensível no tratamento dispensado à estrutura processual. CPP). Na prática a intervenção do Ministério Público no
Com efeito, dispõe o no 5, do artigo 32o, da mencionada inquérito continua reduzida e é objeto de crítica com alguma
Carta, que o processo criminal terá estrutura acusatória, freqüência, pois que as investigações continuam nas mãos da
estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios polícia submetida a parcos controles.127
que a lei determinar subordinados ao princípio do De se observar, não obstante a inquisitoriedade dessa
contraditório. etapa, que há restrições à utilização posterior dos meios de
Assim é, portanto, que, especialmente a partir da prova, com ressalva para os introduzidos no debate
entrada em vigor do novo Código de Processo Penal instrutório (artigos 298o e 301o, no 2).
português (Lei no 43/86, de 26 de setembro de 1986 e Cumpre assinalar que o tribunal, no sistema português,
Decreto-lei 78/87), instituiu-se nesse país um modelo é livre para adquirir os meios de prova que entender
necessários à descoberta da verdade, observando-se,
125 Conveniente é, certamente, a leitura de Percorsi di Procedura Penale: Dal naturalmente, os limites impostos pelas leis e pela
garantismo inquisitorio a un accusatorio non garantito, coordenado por Constituição. Como a maioria da doutrina portuguesa
Vincenzo Perchinunno (Milano: Giuffrè, 1996). Paolo Ferrua atribui, explica, adota-se aí um processo acusatório mitigado ou
principalmente, ao Decreto-lei nº 306, de 8 de junho de 1992, convertido,
com algumas modificações, na Lei nº 356, de 7 de agosto do mesmo ano, a
responsabilidade por, de um processo baseado na eqüidistância do juiz e
assunção da prova no debate contraditório, ter preservado apenas o 126 Silva, Germano Marques da. Curso de Processo Penal, vol. I, Lisboa: Verbo,
primeiro elemento (Studi sul Processo Penale II Anamorfosi del Processo 1996, pp. 54-83.
Accusatorio, Torino: Giappichelli, 1992, p. 174). Também PEPINO, Livio, 127 PEREIRA, Rui. A crise do Processo Penal in: Revista do Ministério Público ,
Reflexões..., op. cit., p. 73-85. 97, ano 25, jan-mar 2004, Lisboa, p. 21-22.
temperado pelo princípio da investigação.128 14 e 16 de abril de 2004 e promovido pelo INECIP (Instituto
Mais tarde, a Lei 59/98 foi editada visando superar de Estudios Comparados em Ciencias Penales y Sociales), foi
aspectos de estrangulamento que subsistiam, sendo, porém, oficialmente apresentado o anteprojeto de Código de
alvo de críticas. A principal reserva foi oposta ao chamado Processo Penal Federal, elaborado em conformidade com a
³SURFHVVR GH DXVHQWHV´ TXH VXSRVWDPHQWH HVYD]LRX HVWD estrutura acusatória.
etapa do indispensável caráter contraditório que deve De outro ponto, há algum tempo já está sendo
sublinhar o processo penal.129 implementado em Córdoba e outras províncias um sistema
Finalmente, entre 1999 (com a lei de proteção de jurídico aproximado ao modelo acusatório. Isso, em
testemunhas) e 2004 (com a lei de prevenção e repressão do Córdoba, por exemplo, decorre da coordenação entre a
branqueamento) Portugal oscila, inclinando-se ora em Constituição Provincial, a Lei Orgânica do Poder Judiciário e
direção à cultura inquisitorial do passado, ora na linha da o novo Código de Processo Penal, sancionado como Lei no
estrutura acusatória que a Constituição da República 8.123. No ano de 1999 é sancionada a lei n. 8.802, que cria o
consagra. Conselho da Magistratura Provincial.
Ainda na família do direito de origem européia Com efeito, na lei de Córdoba a instrução judicial ou
continental, é valioso mencionar a situação argentina, formal é substituída pela investigação do Ministério Público,
naquilo que nos é dado conhecer, desde logo esclarecendo, nos crimes de ação pública, sem prejuízo do exercício da
por oportuno, que as Províncias, equivalentes aos nossos defesa em todas as etapas da persecução, enquanto no
Estados da Federação, dispõem de legislação própria, diploma federal permanece o juízo de instrução, escrita e
distinta daquela aplicada em se tratando de delito da reservada, com limitada intervenção das partes. A
competência federal, definido por exceção. organização da justiça penal prevê tribunais de controle de
Inspirado, a partir da libertação da Espanha, em 1810, garantias.
por um movimento de identificação com o sistema francês, Em ambos os casos a fase seguinte carece da iniciativa
de onde vinham as idéias que predominaram entre os do acusador, de um modo geral o Ministério Público,
revolucionários, o processo penal argentino vive cruciante desenvolve-se a audiência de debate, contraditória e pública,
contradição, na medida em que, atualmente, o Código cabendo à parte, na estrutura provincial, o empreendimento
Procesal Penal de la Nación vigora, instituído pela Lei no dos interrogatórios de quem haja arrolado para depor, ao
23.984, em vigor desde setembro de 1992, cujas bases ainda tempo em que, no Código da Nação, são os três juízes que
são aquelas próprias do sistema de tipo misto, conforme o compõem o tribunal que começam a inquirição, que
antigo modelo italiano, com forte presença do juiz de conduzem de tal modo, a ponto da doutrina enxergar na
instrução, sem embargo de haver reforçado o papel do providência um desestimado ato de natureza inquisitorial.130
Ministério Público. Releva notar que durante a realização do Em Córdoba funcionam três tipos de tribunais, que
Seminário Interamericano sobre Reformas Processuais variam entre o modelo unipessoal e o composto por três
Penais na América Latina, realizado em Buenos Aires entre juízes.
Por derradeiro vale consignar que o Chile iniciou a mais
profunda transformação entre os Estados Latino-
128 PEREIRA, Rui. A crise..., p. 19 e ANDRADE, Manuel da Costa, no prefácio ao
131
DUCE, Maurício e RIEGO, Cristián. Introducción al nuevo sistema procesal
penal, Chile: Universidad Diego Portales, 2002.
132
Tradução livre, p. 18.
atinentes à disponibilidade da ação penal.133
Nos Estados Unidos da América, que respeitam uma 3.2.1. PRINCÍPIO E SISTEMA ACUSATÓRIO: DIFERENCIAÇÃO
forma federalista, o processo penal é essencialmente
acusatório,134 com o Promotor de Justiça assumindo o papel Com efeito, a primeira abordagem resulta da exigência
principal,135 que exercita de modo equilibrado com a reserva de extremarmos as definições de sistema e princípio
de direitos fundamentais atribuída à defesa pela Constituição acusatórios. Para isso, vamos nos valer das singularidades
Federal. A prova, em processo oral e público, é produzida ordinariamente referidas às duas categorias.
exclusivamente pelas partes, quer perante o júri, onde existe, Giovanni Leone136 apresenta, como características do
funciona ou o réu o aceita, quer perante o magistrado sistema acusatório, o poder de decisão da causa entregue a
singular, havendo, ainda, ampla disponibilidade sobre o um órgão estatal, por sua vez distinto daquele que dispõe do
conteúdo da pretensão deduzida. poder exclusivo de iniciativa do processo. Acrescenta que,
A respeito do sistema processual penal vigente no deduzida a acusação, o magistrado se libera da vinculação às
Brasil, empreenderemos a abordagem, por questão de ordem iniciativas do autor, impulsionando oficialmente a
metodológica, no último item deste capítulo. persecução penal, que se desenvolverá conforme os
princípios do contraditório, com paridade de armas,
3.2. Características do Sistema Acusatório oralidade e publicidade.
Por seu turno, Riquelme137 alinha também a
Cumprindo a trajetória que demarcamos, é nosso dever legitimidade popular do juiz, que será o próprio povo ou se
tentar aclarar certos conceitos e estabelecer algumas constituirá de significativa parte dele, despido, por isso, do
mínimas definições, para, assim, examinarmos as algumas dever de fundamentar sua decisão, haja vista sua soberania,
leis especiais e observarmos, em que medida e de que forma, ao que, conseqüentemente, soma-se a irrecorribilidade das
confrontam o modelo de estrutura processual penal decisões que profere, em processo que se desenvolve na
constitucionalmente eleito. forma de um duelo público, oral e contraditório, entre
acusador e acusado, perante um juiz inativo e imparcial.
Mittermaier138 igualmente alude ao princípio do juiz
133 Bovino, Alberto. ³/D3HUVHFXFLyQ3HQDO3~EOLFDHQHO'HUHFKR$QJORVDMyQ´ popular, como da essência do sistema acusatório,
in Pena y Estado, ano 2, nº 2: O Ministério Público, Buenos Aires: Del
Puerto, 1997, pp. 35-79.
salientando, justamente, que sólo puede ser Juez el pueblo o
134 Farnsworth, E. Allan. Introdução ao Sistema Jurídico dos Estados Unidos, delegados escogidos de su seno, celosos y vigilantes
Rio de Janeiro: Forense, 1963. defensores de las libertades, enquanto Alcala-Zamora e
135 Até o final do século XVII, início do século XVIII, por influência do direito
dos colonizadores, nos Estados Unidos a vítima demandava privadamente.
Levene139 mencionam também a acusação popular e a
Acredita-se que a imigração holandesa haja levado consigo a figura do liberdade de apreciação judicial das provas, cabendo a Julio
persecutor público, porém sem alterar, na essência, o modelo processual
penal, que ficou imune às demais experiências do sistema romano-
canônico. Os Promotores de Justiça, como órgãos públicos responsáveis
pela persecução penal, são acreditados como representantes da sociedade,
no desempenho de uma tarefa política, motivo por que, em 46 dos 50 136 Leone, Giovanni. Ob. cit., p. 8.
Estados da Federação, são eleitos, enquanto no plano federal são indicados 137 Fontecilla Riquelme, Rafael. Ob. cit., pp. 36-37.
pelo Presidente da República e estão subordinados formalmente ao 138 Mittermaier, Karl Joseph Anton. Ob. cit., p. 56.
Procurador Geral (U.S. Attorney General), segundo Alberto Bovino (La 139 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Ob. cit., pp. 217-
Persecución Penal Pública en el Derecho Anglosajón, ob. cit., p. 54). 218.
Maier140 a observação, segundo nos parece, da existência de É certo, conforme ao nosso juízo, que, se pretendemos a
poderes de conveniência, oportunidade e disponibilidade, definição de um sistema acusatório como categoria jurídica
referentes ao exercício da ação penal, em contraposição, composta por normas e princípios, não há como, pura e
naturalmente, ao dever inevitável de perseguição penal, simplesmente, justapô-lo com exclusivadade a um preciso
característico do sistema inquisitivo. princípio acusatório, pois a identidade entre um e outro
Ortega diferencia princípio acusatório do sistema que resultaria, por exigência lógica, na exclusão de uma das duas
lhe empresta o nome. Este autor sublinha que, ao lado do categorias, pela impossibilidade de um princípio ser, ao
princípio propriamente dito, encontramos a publicidade e a mesmo tempo, um conjunto de princípios e normas do qual
oralidade como traços constitutivos do sistema acusatório.141 ele faça parte, numa relação de continente a conteúdo.
Conso,142 autor das obras que mais se aprofundaram no Fica mais clara a incompatibilidade da justaposição,
exame da matéria, registra, ao lado do que já foi consignado quando, pela simples resenha classificatória, notamos a
(necessidade de acusação ofertada por órgão distinto do significativa disparidade de elementos invocados como da
julgador, publicidade e oralidade do procedimento, paridade própria essência de uma das categorias, no caso, do sistema.
de armas entre as partes e exclusão da iniciativa judicial no Assim, sustenta-se neste trabalho a premissa de que,
recolhimento das provas), ser característica a liberdade por sistema acusatório compreendem-se normas e
pessoal do acusado, ao menos até a sentença condenatória princípios fundamentais, ordenadamente dispostos e
definitiva. orientados a partir do principal princípio, tal seja, aquele do
&RUGHUR DFHQWXD D VHPHOKDQoD ³UHPRWD DVFHQGrQFLD´ qual herda o nome: acusatório.
HQWUH R SURFHVVR DFXVDWyULR H RV GXHORV ³$V WpFQLFDV Em que consiste então, nesta perspectiva, o princípio
acusatórias são juízos de Deus intelectualmente acusatório?
HODERUDGRV´143 Segundo o professor italiano, a ação decisória
se converte em um trabalho mental sobre dados positivos, 3.2.2. CARACTERÍSTICAS DO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO
porém cabe aos contendores aduzir e discutir os dados em
XPD WtSLFD ³EDWDOKD LQWHOHFWXDO´ 2 YDORU GR SURFHVVR I - A resposta deve ser construída por exclusão,
acusatório está na observação das regras, insensível à afastando o que não integra o princípio.
sobrecarga ideológica derivada da observação Assim, a compreensão daqueles elementos que vão aos
inquisitorial144. Finaliza advertindo que a ação penal poucos, historicamente, integrar o sistema acusatório é o
obrigatória e irretratável, os poderes instrutórios de ofício e resultado da eliminação de outros elementos que não afetam
pedidos que nunca são vinculantes distinguem o modelo o núcleo básico de um tipo característico do processo, isto é,
italiano do anglosaxão. aquele alicerçado na idéia da divisão, entre três diferentes
sujeitos, das tarefas de acusar, defender e julgar.
140 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana: Su Comentario Com efeito, como assinala Cordero ± e também James
y Comparación com los Sistemas de Enjuiciamiento Argentinos, p. 43. Goldschmidt ± ³DV UHJUDV GR MRJR´ GLVWLQJXHP R SURFHVVR
141 López Ortega, Juan J. ³/D 'Lmensión Constitucional del Principio de la acusatório do inquisitório.145 Este último se satisfaz com o
3XEOLFLGDGGHOD-XVWLFLD´, in Revista Del Poder Judicial, Madrid: Consejo
General del Poder Judicial, nov/1999, p. 52.
resultado obtido de qualquer modo, pois nele prevalece o
142 Conso, Giovanni. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, p. 8.
143
Cordero, Franco. Op. cit., p. 87 (tradução livre).
144 145
Idem, p. 86. Cordero, Franco. Op. cit., p. 88.
objetivo de realizar o direito penal material, enquanto no superveniente, interferindo na delimitação do objeto do
processo acusatório é a defesa dos direitos fundamentais do processo (como ocorre com a mutatio libelli), significa
acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir prestigiar a idéia de que a punição não pode depender de um
que define o horizonte do mencionado processo. autor de ação penal independente e livre para apreciar se
$VVLPFRPRDV³UHJUDVGRMRJR´QmRVHFRQFUHWL]DPVHP deve ou não acusar e o que deve (ou não) incluir na acusação.
a interferência dos sujeitos que participam do processo, não Da mesma maneira, atribuir ao juiz o poder de produzir
há dúvida de que são os atos que estes sujeitos praticam que provas de ofício GHIRUPDR³GXHORLQWHOHFWXDO´DTXHVHUHIHUH
hão de diferenciar os vários modelos processuais. Cordero. Supor que a atividade probatória está desvinculada
É preciso ter em mente que a análise puramente GRH[HUFtFLRGRV³GLUHLWRVSURFHVVXDLV³-DPHV*ROGVFKPLGW
objetiva, que visualiza os atos sem entender quem são os H LPDJLQDU SRU RXWUR ODGR TXH MXL] H[HUFH ³GLUHLWRV´ QR
sujeitos que os praticam, descarna o processo. Gestão da processo importa controlar o material da decisão para
prova e acusação são atividades que não dizem nada se não reduzir as brechas da impunidade.
olharmos quem ± que sujeitos (históricos) ± realiza estes É também o que acontece com o denominado recurso de
atos. Até porque com a identificação dos sujeitos será RItFLR 2 MXL] TXH ³UHFRUUH´ GD SUySULD VHQWHQoD SDUD
possível compreender os porquês das coisas. submetê-la obrigatoriamente a exame por tribunal de
Quando focalizamos estes atos ± que expressam a segundo grau, em hipóteses em que a decisão originária é
obediência dos sujeitos às regras do jogo -, temos de favorável ao réu, suspeito ou investigado, concorre para a
classificá-los, identificando o que há de comum, por política de segurança pública de que se torna protagonista.
exemplo, entre os diversos atos que o juiz pratica ao longo do O elemento comum entre o exercício da ação penal pelo
processo. O ponto de convergência destes atos é aqui juiz, a produção de provas de ofício e o recurso igualmente
GHQRPLQDGR ³WDUHID´ SRUTXH GHIHQGHPRV TXH RV DWRV de ofício está na consecução de tarefas que a moderna
processuais atendem a funções, não são desinteressados, doutrina do processo assevera que compõem o chamado
ainda que muitas vezes estas funções não sejam percebidas direito de ação (e o co-respectivo direito de defesa).146 Como
com clareza ou imediatamente. todas estas tarefas apontam para a prevalência do interesse
Como nas linhas antecedentes ficou registrado, a função em punir sobre o de tutelar os direitos fundamentais do réu,
predominante do processo inquisitório consiste na realização elas podem ser reunidas sob a rubrica de tarefas de acusação.
do direito penal material. O poder de punir do Estado (ou de A acusação consiste na imputação a alguém da prática de um
quem exerça o poder concretamente) é o dado central, o FULPHFRP³SHGLGR´GHFRQGHQDomR
objetivo primordial. A construção teórica do princípio acusatório há de
No sistema inquisitório, portanto, os atos atribuídos ao consumar-se mediante oposição ao princípio inquisitivo. São
juiz devem ser compatíveis com o citado objetivo. Em antagônicas as funções que os sujeitos exercem nos dois
linguagem contemporânea equivale a dizer que o juiz cumpre modelos de processo. É desse antagonismo, portanto, que as
função de segurança pública no exercício do magistério
penal. 146
Historicamente, o discurso inquisitório atribui o acúmulo de funções em
Essa linha de raciocínio permite abarcar todos os atos mãos do juiz ao generoso propósito de evitar a punição de inocentes. Não é
judiciais inquisitórios em um só plano. Exercer a ação penal preciso recorrer às inquisições eclesiásticas para compreender a falsidade do
argumento. Basta ver que é este modelo, fundado na busca da verdade real, que
no lugar de terceiro, quer originalmente como previa o artigo mesmo nos subterrâneos da persecução penal contemporânea facilita a
531 do Código de Processo Penal brasileiro, quer de modo aceitação da tortura.
diferenças devem ser extraídas. não acontece tal redução ou dilatação (de acusatoriedade) à
$VVLP VH QD HVWUXWXUD LQTXLVLWyULD R MXL] ³DFXVD´ QD vista da possibilidade de o acusado responder preso ao
acusatória a existência de parte autônoma, encarregada da processo.
tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o centro Desta forma, pode-se começar assinalando, com
do processo, cuidando de preservar a nota de imparcialidade Conso,148 que a idéia de acusação só tem sentido, como
que deve marcar a sua atuação. elemento essencial de um princípio dentro do processo,
Nisso consiste a base teórica em cima da qual contraposta à idéia de defesa, ainda que, sobre esta última
procederemos à análise do princípio acusatório. possa haver alguma imprecisão quanto aos seus contornos.
Ao aludirmos ao princípio acusatório falamos, pois, de Jorge de Figueiredo Dias, com sua incontestável
um processo de partes, visto, quer do ponto de vista estático, autoridade, ressalta que, por direito de defesa, compreende-
por intermédio da análise das funções significativamente se uma categoria aberta, à qual devem ser imputados todos
designadas aos três principais sujeitos, quer do ponto de os concretos direitos, de que o arguido dispõe, de co-
vista dinâmico, ou seja, pela observação do modo como se determinar ou conformar a decisão final do processo,149 o
relacionam juridicamente autor, réu, e seu defensor, e juiz, que coloca o acusado, e, dadas as especificidades técnicas
no exercício das mencionadas funções. relativas ao mecanismo de co-determinação e conformação
da decisão judicial, também seu defensor,150 na condição de
II - Nem sempre foi, ou ainda é, predominantemente sujeitos de direitos, deveres, ônus e faculdades.
oral e público o processo acusatório, nem, necessariamente, Ora, um princípio fundado na oposição entre acusação e
só será acusatório pelo fato do próprio povo, ou segmentos defesa, ambas com direitos, deveres, ônus e faculdades, só se
numericamente significativos dele, julgar.147 desenvolve regularmente em um processo de partes,
Até mesmo o dever de fundamentar a decisão não reduz centrado nas relações recíprocas que se estabelecem.
ou amplia a acusatoriedade da base processual, como Como se fosse uma fotografia, veremos inicialmente
provam o júri e o juiz ou colegiado profissional. Por sua vez, como estão consolidados os estatutos jurídicos dos sujeitos
do processo, de acordo com o princípio acusatório.
Depois, passaremos ao exame da dinâmica processual,
147 Na medida em que o princípio acusatório decorre do princípio isto é, como reagem os diversos sujeitos à ação dos demais.
democrático, o valor de legitimidade do exercício do poder há de ser objeto
de alguma consideração. Atualmente, é possível afirmar, com Frederico
Equivale à tentativa de captar a atuação dos sujeitos como
Marques, que, vindo os juízes togados do seio do próprio povo de que em um filme.
emana conceitualmente a sua autoridade, somente em nome do povo, ao A opção por este modo de análise tem vantagens e
menos nos governos democráticos, podem distribuir justiça (A Instituição desvantagens de que se deve advertir o leitor.
do Júri, p. 22). A tal consideração convém aditarmos que o exercício da
função jurisdicional corresponde à atividade de um ramo de governo ² do
Poder Judiciário ² de sorte que não se pode falar ou mesmo mentalizar um
ramo de governo que não seja político (significando, aí, o exercício de um 148 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali,
poder público, estatal, em nome e para a polis) em relação ao qual não Capacità Processualle Penale, Milano: Giuffrè, 1961.
caiba as responsabilidades, deveres e poderes inerentes à soberania 149 Dias, JoUJHGH)LJXHLUHGR³6REUHRV6XMHLWRV3URFHVVXDLVQR1RYR&yGLJR
derivada do povo (Zaffaroni, Eugenio Raúl. Estructuras Judiciales, p. 112). GH 3URFHVVR 3HQDO´ in Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra:
Estas são, possivelmente, as motivações do reconhecimento, na Lei Almedina, 1992, p. 28.
Fundamental de Bonn (artigo 20, nº 2) e na Constituição Espanhola (artigo 150 Figueiredo Dias assinala para o defensor o estatuto jurídico próprio de um
117, nº 1), de que a Justiça emana do povo, não subsistindo, órgão de administração da justiça, atuando exclusivamente em favor do
modernamente, a objeção oposta por Mittermaier. acusado (idem, p. 11).
A principal vantagem ± razão da eleição do método ± procedimentos inquisitoriais podem conviver com uma
está em permitir comparar aquilo que a ordem acusação), mas tanto, e, principalmente, que esta acusação
constitucional e as leis atribuem aos principais sujeitos do revele uma alternativa de solução do conflito de interesses ou
SURFHVVR SHQDO YLVmR ³HVWiWLFD´ GR TXH Iazem o juiz, o caso penal oposta à alternativa deduzida no exercício do
Ministério Público, o querelante, o acusado e seu Defensor) e direito de defesa, ambas, entretanto, dispostas a conformar o
o que de fato estes sujeitos praticam a partir da cultura juízo ou solução da causa penal.
consolidada e com amparo na jurisprudência (perspectiva Em outras palavras, ambas, acusação e defesa, surgem
dinâmica). como propostas excludentes de sentença.
$ GHVYDQWDJHP UHSRXVD QD DSDUHQWH ³UHSHWLomR´ GH Tal conformação só admitirá a influência das atividades
temas. Assim, por exemplo, o leitor observará que sobre a realizadas pela defesa, se o juiz, qualquer que seja ele, não
mutatio libelli (alteração da acusação) há uma apreciação de estiver desde logo psicologicamente envolvido com uma das
acordo com os poderes do juiz, do ponto de vista estático, e versões em jogo.
RXWUD FRPSOHPHQWDU TXDQGR VH YLVXDOL]D ³R SURFHVVR HP Por isso, a acusatoriedade real depende da
PRYLPHQWR´ imparcialidade do julgador, que não se apresenta meramente
Atento a isso R OHLWRU GHYHUi FXLGDU GH ³HQTXDGUDU´ R por se lhe negar, sem qualquer razão, a possibilidade de
exame das categorias do processo levando em conta a dupla também acusar, mas, principalmente, por admitir que a sua
perspectiva. tarefa mais importante, decidir a causa, é fruto de uma
consciente e meditada opção entre duas alternativas, em
3.2.2.1. Da Perspectiva Estática do Processo: Poderes, relação às quais se manteve, durante todo o tempo,
Deveres, Direitos, Ônus e Faculdades dos Sujeitos eqüidistante.
Processuais Carnelutti assevera, pois, que justamente da
contraposição entre acusação e defesa, perante um juiz
I. DO JUIZ imparcial, surgem as condições indispensáveis à eleição da
melhor solução. Convém, nestes termos, reproduzir a
Carnelutti151 sublinha exatamente, na perspectiva preciosa lição do mestre italiano:152
estática do processo, que este pode ser visto como uma
categoria que simultaneamente envolve, enlaça, uma série de La verdad es que si el desdoblamiento, del
relações jurídicas, ou seja, de poderes e deveres do juiz, das cual se há hablado, entre el juez y el ministerio
partes e de terceiros, visualizando-se sua dinâmica a partir público, o sea entre jurisdicción y acción, es
do procedimento adotado, ou, dito de outra forma, da necesario para la garantía de la imparcialidad y,
maneira como os atos processuais, em realidade, com ésta, para la justicia del castigo, no es, sin
ordenadamente se sucedem. embargo, suficiente. Al final, el juez debe tomar
Sendo assim, a natureza verdadeiramente acusatória de una decisión; y decidir quiere decir elegir... Es
um princípio processual constitucional demanda, para claro que tanto mejor está el juez en situación de
verificar-se, não só a existência de uma acusação (mesmo os elegir más claramente se le presentan delante las
dos soluciones posibles. El peligro es que la duda
151 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, México: Editorial
Pedagógica Iberoamericana, 1994. 152 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, p. 302.
no se le presente, no que él sea atormentado por É claro que, nestes termos, o juiz não estará em
ella. Ahora, bien, el medio para proponerle la duda condições de julgar e, portanto, deverá ser excluído e
es el contradictorio; ayuda aquí la raíz común substituído, se não oferecer às partes suficiente credibilidade
(duo) de dubium y duellum. Per eso, la separación quanto à sua imparcialidade.
del ministerio público respecto del juez, es decir, de A rigor, a imparcialidade do juiz é vista a partir de dois
la acusación respecto del juicio, no basta para parâmetros: há os casos de impedimento, pelos quais se
garantizar la justicia de este último. El ministerio objetiva excluir o juiz que possa ter interesse no resultado da
público, si está solo junto al juez, es insuficiente. La causa; e existem as hipóteses de suspeição, normalmente
acusación debe ser contrapesada y por eso voltadas a permitir a substituição do juiz interessado nas
integrada por la defensa. partes. De modo geral, as questões que envolvem o primeiro
conjunto ² causas de impedimento ² são impessoais, mas
A posição equilibrada que o juiz deve ocupar, durante o guardam certo vínculo direto com a pessoa do magistrado,
processo, sustenta-se na idéia reitora do princípio do juiz enquanto as causas de suspeição são dotadas de caráter
natural ² garantia das partes e condição de eficácia plena da predominantemente pessoal (ex. da primeira: ter o juiz
jurisdição ² que consiste na combinação de exigência da funcionado anteriormente, no mesmo processo, como perito;
prévia determinação das regras do jogo (reserva legal da segunda: ser o juiz amigo pessoal da vítima).
peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do No processo penal brasileiro a existência do inquérito
juiz, tomada a expressão no sentido estrito de estarem judicial para apurar crimes falimentares ± artigos 103 e
seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a seguintes do Decreto-lei n. 7.661/45 ± instituía investigação
priori a uma das alternativas de explicação que autor e réu criminal preliminar, preparatória para o exercício da ação
reciprocamente contrapõe durante o processo. penal condenatória, em tese dirigida pelo juiz154. Embora na
Com efeito, o juiz que antecipadamente está em prática o juiz pouco participasse do inquérito judicial, parece
condições de ajuizar a solução para o caso penal (que em evidente que não ostentaria a qualidade exigida para exercer
algumas hipóteses sequer foi objeto de pretensão do jurisdição, tal seja, a imparcialidade mencionada linhas
interessado), na prática torna dispensável o processo, pois
tem definida a questão independentemente das atividades
probatórias das partes, comportamentos processuais que
devem ser realizados publicamente e em contraditório.
154
Ocorre que o devido processo legal só constitui, de fato, 1D WHQWDWLYD GH VDOYDU D ³FRQVWLWXFLRQDOLGDGH´ GR LQTXpULWR MXGLFLDO GD
mecanismo civilizado de resolução de causas se o resultado falência autores chegaram a defender a existência de contraditório neste
inquérito. Sustentou-se que o artigo 106 da antiga Lei de Falências previa a
não puder ser determinado antecipadamente, isto é, só há resposta do falido, em cinco dias, e que isso equivalia ao contraditório. Parece
processo penal real se no início do procedimento ambas as evidente que a noção de contraditório aí é bastante lmitada, comparável à idéia
teses ² de acusação e de resistência ² puderem ser de contraditório no inquérito policial, no artigo 14 do Código de Processo Penal,
que estabelece a possibilidade de o Delegado de Polícia realizar diligências
apresentadas em condições de convencer o juiz (Otto requeridas pelo investigado. Em verdade, o procedimento do inquérito judicial
Kirchheimer153). era inquisitorial, conduzido pelo síndico da falência e pelo perito, com apoio do
Ministério Público e na prática sob as ordens dos funcionários do cartório onde
era processada a falência. Tudo, praticamente, sem intervenção do falido.
153 Kirchheimer, Otto. Justicia Política, México: Unión Tipográfica Editorial Recomenda-se a leitura de Lei de Falências Comentada, 2ª ed., de Manoel
Hispano Americana, 1968. Justino Bezerra Filho, São Paulo, RT, 2003, p. 346-7.
atrás.155 necessário garantir que, independentemente da integridade
A Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que passou a pessoal e intelectual do magistrado, sua apreciação não
regular a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do esteja em concreto comprometida em virtude de algum juízo
empresário e da sociedade empresária estabelece o inquérito apriorístico.
policial como método de investigação, a ser instaurado por Trata-se aqui, talvez, de uma compreensão invertida da
ordem do Ministério Público, nos termos do artigo 187, e fixa máxima pela qual não basta à mulher de César ser honesta.
a competência do juiz criminal da jurisdição onde tenha sido No caso, ao juiz não é suficiente parecer honesto; terá de sê-
decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou lo verdadeiramente, inclusive do ponto de vista intelectual.
homologado o plano de recuperação extrajudicial para Exemplo claro de causa de impedimento, derivada desta
processar e julgar o caso. ordem de coisas, reside na impossibilidade de o juiz que
Com isso, a Nova Lei de Falências aproxima-se do tenha requisitado a instauração de inquérito policial vir a
modelo constitucional, pois que de forma intencional cria as processar e julgar acusado em processo penal iniciado em
condições necessárias ao julgamento do caso com razão desta investigação.
imparcialidade.156 Observe-se que nesta hipótese o juiz poderá se sentir
Voltando à regra fundamental é preciso destacar, no habilitado a apreciar com isenção as teses que a Defesa
entanto, que nas hipóteses de impedimento e suspeição a venha a apresentar. Todavia, o réu não poderá confiar em
filosofia que orienta a preservação da imparcialidade deve um juiz que, independentemente de qualquer causa penal, já
cuidar de restringir os casos de recusa do juiz, desde que não se manifestou a princípio pela existência de uma infração
prevaleça o pensamento autoritário que dedica ao penal, ainda que ao nível de um juízo sumário, provisório e
magistrado função punitiva, em substituição àquela que as superficial.
constituições lhe impõem juridicamente, tal seja, a de De fato, nestas circunstâncias, poderá haver inversão do
apreciar e resolver de forma isenta a questão levada a juízo. ônus da prova, com o réu se sentindo impelido a demonstrar
A questão da imparcialidade do juiz, conforme o que o juiz inicialmente não tinha razão. A confiabilidade das
princípio acusatório, contudo, não fica limitada aos termos partes na isenção do juiz emerge como condição de validade
postos anteriormente. O exercício da jurisdição, em um jurídica dos atos jurisdicionais. Ausente tal requisito
Estado Constitucional Democrático, está, tanto quanto o estaremos diante de atos absolutamente nulos.157
exercício de qualquer outro poder no âmbito deste Estado, Também por esse motivo o antigo inquérito judicial da
condicionado a regras de impessoalidade. falência, citado neste tópico, violava o princípio acusatório e
Não basta somente assegurar a aparência de isenção dos era inconstitucional.
juízes que julgam as causas penais. Mais do que isso, é
II. DA ACUSAÇÃO
155
Pelo artigo 109 do citado decreto, o juiz da falência era competente para
receber ou rejeitar a denúncia. Somente depois de proferir essa decisão é que Por igual, não se deve controverter a respeito do
deveria transferir o processo para o juiz criminal (§2º).
156
Objeções acerca do conhecimento técnico de que deve estar dotado o juiz 157 Esta foi a conclusão do e. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do
criminal, nestes casos, devem ser superadas pela idéia de que nos dias atuais os RHC nº 4.769-PR, 6ª Turma (j. 7/11/1995 ± RT 733/530), rel. Ministro
magistrados deverão estar continuamente se aprimorando e se preparando para Luiz Vicente Cernicchiaro, malgrado o e. Supremo Tribunal Federal não
as sofisticadas causas criminais com que se deparam. Isso, é evidente, sem tenha se sensibilizado totalmente com a tese (Habeas Corpus nº 68.784, 1ª
prejuízo da prova técnica que caracteriza a maioria destes processos. Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJU 26/3/1993, p. 5.003).
significado e alcance daquilo que se entende por acusação. podem não se confundir, haja vista o fenômeno da jurisdição
Não se trata, a nosso juízo, somente de oferecer uma petição sem ação, acima mencionado, o certo é que o princípio
inicial, em processo penal pelo qual se pretenda a acusatório funde acusação e ação penal, justamente por não
condenação de alguém. admitir a existência de processo condenatório sem iniciativa
Não se resume a isso, a só um ato, de acordo com da parte autora (nemo iudex sine actore), e, em vista dele,
Conso,158 mas, sem dúvida, acusar implica em referir-se a somente se a ação penal for proposta e desenvolvida ao longo
uma função e ainda a um órgão, a um conjunto de atos e a do processo haverá, após a contraposição da atividade de
um determinado sujeito. defesa, autorização jurídica para a prolação de decreto
Conso, todavia, assevera que acusação e ação penal condenatório.
condenatória não se confundem, uma vez que haveria, em Aqui não é lugar (ou hora) para a crítica sobre o
algumas situações excepcionais, acusação sem exercício da conceito de ação transplantado do processo civil para o
ação penal.159. penal. Ainda assim, é conveniente que sejam feitos alguns
É necessário ter em mente que a acusação cuida da esclarecimentos.
atribuição de uma infração penal, em vista da possibilidade O leitor perceberá que as ações condenatórias que se
de condenação de uma pessoa tida provavelmente como entrega ao Ministério Público, no Brasil, são obrigatórias
culpável, enquanto a ação penal consiste em ato da parte (desde que haja indícios de autoria e da existência da
autora, concretado por sua dedução formal em juízo. infração penal). Como o conceito de ação elaborado pelo
Conso refere-se, indiscutivelmente, ao processo penal processo civil, em fins do século XIX, estava historicamente
de ofício, muito semelhante ao procedimento penal vinculado ao de direito subjetivo, para atender a exigências
brasileiro previsto para as contravenções e crimes de políticas concretas fundadas na ideologia liberal da época, as
homicídio e lesões corporais culposos, a partir do artigo 531 marcas dessa categoria (ação civil) foram igualmente
do Código de Processo Penal, e da Lei no 4.611/65, não transmitidas à ação penal.
recepcionados pela Constituição da República em vigor.160 O simples fato de colocar o Ministério Público no lugar
Cremos, no entanto, que, se acusação e ação penal da vítima simboliza a impropriedade de pensar a ação penal
nos moldes liberais de defesa de direitos disponíveis (origem
158 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali,
da noção do direito de ação civil).
Capacità Processualle Penale, p. 7. Até mesmo nos sistemas jurídicos que adotam o
159 Idem, pp. 13-14. princípio da oportunidade da ação penal pública (o
160
O desaparecimento dos processos condenatórios instaurados de ofício, pelo Ministério Público tem margem de decisão sobre acusar ou
juiz, por auto de prisão em flagrante ou portaria, e ainda iniciados da mesma QmR D ³OLEHUGDGH´ GR 0LQLVWpULR 3~EOLFR p LQFRQIXQGtYHO
forma pela autoridade policial (artigo 531 do Código de Processo Penal), não fez
desaparecer o procedimento sumário. No caso, caberá ao titular da ação penal FRP D ³IDFXOGDGH´ GR DXWRU FLYLO $ OLEHUGDGH GR 0LQLVWpULR
iniciar o processo mediante oferecimento de denúncia (artigo 129, I, da Público estará sempre dirigida pelo princípio da legalidade,
Constituição da República) ou queixa (ação penal privada) e depois disso o protegendo a comunidade das decisões pessoais de cada
procedimento seguirá com o recebimento da inicial, citação e interrogatório do
acusado, audiência das testemunhas arroladas pela acusação e audiência de integrante da referida instituição, enquanto as motivações
instrução e julgamento, com a inquirição das testemunhas arroladas pela Defesa estritamente pessoais podem estar na base da decisão de não
e a apresentação de alegações finais orais. Este procedimento está se promover a ação civil clássica.
expressamente indicado na Nova Lei de Falências (artigo 185 da Lei n.
11.101/05) e será aplicado exceto no caso de infração penal de menor potencial No entanto, a decisão de instaurar um processo penal
ofensivo contemplado na citada lei. condenatório será de um sujeito distinto do juiz.
A nosso juízo, o princípio acusatório, avaliado corporificação da acusação ², obedece-se também a uma
estaticamente, consiste na distribuição do direito de ação, lógica de distribuição de funções que respeita a divisão entre
do direito de defesa e do poder jurisdicional, entre autor, os poderes do Estado, bem ao estilo proclamado por
réu (e seu defensor) e juiz. Tal consideração conduz ao Montesquieu, como observa, percucientemente, Karl-Heinz
esclarecimento, pelo menos sucinto, do que se considera Gössel.164
direito de ação penal condenatória. Assim compreendida a ação penal, o princípio
Vale a pena tornar a sublinhar que para a maioria dos acusatório postulado demandará, para sua real fixação, na
doutrinadores o direito de ação é concebido como direito via do autor, a determinação de algumas premissas:
público subjetivo, instrumentalmente conexo à pretensão de RGLUHLWRGHDomRWDQWRFRPRRGHGHIHVDHVWiYROWDGR
exigir do Estado a prestação jurisdicional, em determinado à conformação da decisão jurisdicional, em um caso
caso concreto, isso ao menos desde a evolução iniciada em penal concreto;
meados do século XIX, com o desdobramento das posições p H[HUFLWDGR SRU SHVVRD RX yUJmR GLVWLQWR GDTXHOH
ardorosamente defendidas por Windscheid (La acción del constitucionalmente incumbido de julgar;
derecho civil romano desde el punto de vista del derecho QmR VH OLPLWD D LQLFLDU R SURFHVVR SRLV R DXWRU
actual) e Muther (Zur Lehre von der Römischen Actio),161 pretende ver a pretensão que deduz reconhecida,
passando por Adolf Wach, até chegar aos dias de hoje. embora o não-reconhecimento não implique em
Não se esgota, porém, na simples provocação do Estado, afirmar-se a inexistência do direito de ação;
primeiro ato do exercício do citado direito.162 LQFOXL SRU FHUWR R GLUHLWR Ge provar os fatos que
Assim compreendido o direito de ação - e naturalmente consubstanciam a acusação deduzida e de debater as
o direito de defesa ± aquele foi percebido por Ada Grinover questões de direito que surgirem;
como não limitado ao poder de impulso, e, no caso da defesa, DDFXVDomRLQWHJUDRGLUHLWRGHDomRH QDPHGLGDHP
ao recurso às exceções, englobando o conjunto de garantias que dela se defenderá o acusado, delimita o objeto da
que, no arco de todo o procedimento, asseguram às partes a contenda, tal seja o objeto pretensamente litigioso do
possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de produzirem processo;
suas provas, de aduzirem suas razões, de recorrerem das H SRU ILP OHJLWLPD R DXWRU D SUHSDUDU-se
decisões, de agirem, enfim, em juízo para a tutela de seus adequadamente para propô-la, na medida em que,
direitos e interesses.163 afetando gravemente o status dignitatis do acusado,
Visto dessa forma, pode-se acrescentar, relativamente à não deve decorrer de um ânimo beligerante temerário
ação penal condenatória, que, ao atribui-la a sujeitos ou leviano, mas fundar-se em uma justa causa
distintos daquele que julgará o pedido formulado ² seu (indícios de autoria e da existência da infração penal).
SULQFLSDO HOHPHQWR H MXQWR FRP D ³FDXVD GH SHGLU´
Com efeito, visto pela perspectiva do direito de ação o
princípio acusatório inclui entre seus elementos o princípio
161 Chiovenda, Giuseppe. La Acción en el Sistema de los Derechos, Bogotá:
Temis, 1986. Muther, Theodor e Windscheid, Bernhard. Polemica Sobre La
³$FWLR´%XHQRV$LUHV(GLFLRQHV-XULGLFDV(XURSD-America, 1974.
162 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, pp. 164 Gössel, Karl-+HLQ] ³Ministerio Fiscal y Policia Criminal en el
282-291; Afrânio Silva Jardim, Ação Penal Pública: Princípio da 3URFHGLPLHQWR 3HQDO GHO (VWDGR GH 'HUHFKR´, in Cuadernos de Política
Obrigatoriedade, p. 33; e Grinover, As Garantias Constitucionais, ob. cit. Criminal, nº 60, Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1996, pp. 614-
163 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, p. 11. 616.
da demanda, que não se confunde com o princípio situações.168
dispositivo, corrente no processo civil, bem como não lhe é Finalmente, há, na referida resenha de Barbosa
contraposto, em que pese a opinião de alguns autorizados Moreira, menção ao princípio da demanda, sob a designação
doutrinadores165. Da mesma maneira, enquanto princípio de de parteibetrieb, integrado pelo poder de instauração do
iniciativa do processo, não está prejudicado pela processo, diferente do princípio dispositivo stricto sensu,
obrigatoriedade da ação penal, no caso brasileiro, da pública. visto como poder de dispor sobre o objeto do processo já
Para efeito de distinguir o princípio acusatório do pendente.
dispositivo é precioso assinalar quais são os elementos Pensamos que, por princípio dispositivo, há de se
habitualmente invocados como componentes do segundo, entender aquele que permita dispor sobre o objeto do
como o faz Barbosa Moreira,166 sublinhando os pontos processo em tramitação, não sendo caracteristicamente
sensíveis da problemática, que envolvem, quase sempre, os acusatório ou inquisitório. Em processo por crime de ação
seguintes aspectos: iniciativa da instauração do processo; penal privada, conforme o Direito brasileiro, ocorrerá a
delimitação do objeto do litígio e do julgamento; impulso perempção, por exemplo, sempre que o autor abandonar o
processual; aquisição do material de fato e de direito a ser processo (artigo 60 do Código de Processo Penal),
utilizado na motivação da sentença; extinção do processo por implicando em verdadeira disposição sobre o conteúdo
ato dispositivo. deste.
Conforme aduz o ilustre processualista, a doutrina De outra maneira, não é impensável um procedimento
alemã caminhou em direção à tendência de distinguir duas inquisitorial, iniciado para apurar o cometimento, por
classes de situações, uma relacionada com a liberdade do alguém, de uma infração penal, que não se conclua por
titular do direito de utilizar ou não o instrumento do deliberação exclusiva do juiz-inquisidor, motivado por
processo para a respectiva vindicação, outra com o modo questões de política criminal.
de funcionar do mecanismo processual no tocante aos fatos É bem verdade que principalmente no direito
e à prova destes,167 prevalecendo, atualmente, a concepção estrangeiro há quem vincule o princípio dispositivo ao
em relação à qual por princípio dispositivo compreende-se o princípio acusatório, em virtude da possibilidade de retirada
poder de decidir sobre a instauração do processo, respectiva da acusação ou pedido de absolvição influindo na
subsistência, e delimitação do litígio, enquanto um princípio determinação da concreta providência a que o tribunal
de debate se caracterizaria pelos poderes de aquisição e estaria conectado.169
introdução das provas no processo. Badaró irar usar as A nosso juízo, porém, a questão corretamente enfocada
expressões princípio dispositivo material e princípio envolve a natureza do direito material em disputa e a
dispositivo processual para distinguir as mesmas consideração que se faça, em um determinado contexto
histórico e político, a respeito do titular deste direito.
Como atualmente predomina a concepção da natureza
165 Chiavario, Mario. Processo e Garanzie Della Persona, p. 5. É valioso
investigar a conceituação aceita por Gustavo Badaró acerca do princípio 168
dispositivo. Ônus da Prova no Processo Penal, São Paulo, RT, 2003, p. 96 - Badaró, ob. cit., p. 97-98.
100. 169 Asencio Mellado, José Maria. Principio Acusatorio y derecho de defensa en
166 Moreira, José Carlos Barbosa. O Problema da Divisão do Trabalho entre el proceso penal, Madrid: Trivium, 1991, p. 22. É a posição de Paulo
Juiz e Partes, p. 35. Rangel, em Direito Processual Penal, 8ª edição, Rio de Janeiro, Lumen
167 Moreira, José Carlos Barbosa. Ob. cit., pp. 39-40. Juris, p. 63-65.
pública do conflito de interesses penal, que se transforma em Isso não significa dizer que o juiz está autorizado a
caso penal, sendo a sanção penal170 pública e portanto condenar naqueles processos em que o Ministério Público
resultante de uma atribuição estatal, a vedação cada vez haja requerido a absolvição do réu, como pretende o artigo
menos rigorosa à disponibilidade do conteúdo do processo 385 do Código de Processo Penal brasileiro172.
penal está guiada pela assunção do interesse público Pelo contrário. Como o contraditório é imperativo para
subjacente. a validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de
Diferente seria se inseríssemos a ação penal outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua
condenatória em um contexto meramente formal, em virtude decisão condenatória em provas ou argumentos que não
do qual pudéssemos confundi-la exclusivamente com o tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença
poder de iniciativa, quando então todos os demais atos, dos condenatória proferida quando a acusação opina pela
quais os de instrução são talvez o principal exemplo, absolvição.173
ficassem à mercê dos poderes de investigação do juiz. Não O fundamento da nulidade é a violação do contraditório
haveria aí disponibilidade do conteúdo do processo não (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República).
porque a natureza jurídica do direito material levado à pugna &RPR GHVWDFD %DGDUy ³D UHJUD GD FRUUHODomR HQWUH
a interditasse, mas por força de ser o juiz e não o dominus acusação e sentença é uma decorrência do princípio do
litis, isto é, o Ministério Público, a personificação do Estado FRQWUDGLWyULR´174 Avançando sobre o tema, o culto professor
como titular do direito material em questão. paulista sublinha que, na atualidade, não é correto limitar a
E a rigor quem não é o titular do direito dele não pode idéia ± e o alcance ± do contraditório apenas ao debate sobre
abdicar. Também seria diferente se admitíssemos a retirada questões de fato.175 Também as questões de direito estão
da própria acusação e, apesar disso, a emissão de sentença afetas ao contraditório, pois que podem estar marcadas pela
de mérito pelo juiz. Neste outro caso, teríamos de concordar controvérsia a ser esclarecida mediante escolha entre duas
com Mellado e assinalar que a decisão judicial importaria em ou mais teses pertinentes ao mesmo tema.176
verdadeiro exercício de acusação de ofício, pelo tribunal.171
Mas como o critério de disponibilidade deve ser ditado
172
pelo direito positivo, levando em conta a natureza do direito O texto no corpo do livro, seguinte à nota, foi incluído na terceira
de punir (aspecto material e não processual), vinculando edição para sanar qualquer dúvida acerca da posição do autor sobre
o tema.
obrigatoriamente o Ministério Público naqueles casos 173
Não é este o entendimento do Supremo Tribunal Federal. No acórdão
reputados de prevalecente interesse público pelo legislador, proferido em HC 82.844/RJ, 2ª Turma, Relator Min. Nelson Jobim, publicado
o princípio dispositivo em si, relacionado com a disposição em 28/05/04, fixou-se que é significativo o fato de o Ministério Público ter
sobre o objeto do processo, não integra ou se opõe ao sugerido a absolvição do réu, sugestão acatada pelo juiz de primeiro grau, para
determinar a absolvção. No caso o Assistente do Ministério Público recorreu da
princípio acusatório, sendo importante, porém acidental. A sentença absolutória e obteve a condenação em segundo grau. Esta condenação
prevalência do interesse público tem a ver com a inibição da foi atacada por Habeas Corpus.
174
iniciativa particular a remarcar o caráter não vingativo mas BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy. Correlação entre acusação e
de composição do processo penal. sentença, São Paulo, RT, 2000, p. 27.
175
Idem, p. 32.
176
170
Exemplo disso é a questão sobre a insignificância de determinada ação não
A sanção penal é tomada como conseqüência jurídica da infração penal negada pelo réu. O único debate no processo pode ser acerca da qualificação de
perseguida pela atividade processual do autor da ação penal. comportanto insignificante ± e atípico ± ou não. Negar o contraditório sobre
171 Asencio Mellado, José Maria. Ob. cit., p. 23. este ponto é esvaziar o princípio constitucional e retornar ao tempo do
Assim, quando em alegações finais o Ministério Público impedido de recorrer da sentença absolutória, apesar dos
opina pela absolvição do acusado o que ocorre em concreto, termos do artigo 598 do Código de Processo Penal, pois a
no processo, é que o acusador subtrai do debate condenação em segundo grau violará, ela própria, o
contraditório a matéria referente à análise das provas que contraditório e a correta função do segundo grau, definida no
foram produzidas na etapa anterior e que possam ser Pacto de São José da Costa Rica, que prevê recurso exclusivo
consideradas desfavoráveis ao réu. Como a defesa poderá da Defesa.
reagir a argumentos que não lhe foram apresentados? Esta é, Voltando ao ponto inicial: nos processos inquisitórios
em resumo, a posição de Santiago Martínez, ao avaliar a nada obsta a que o juiz/acusador desista do processo e o
posição dos tribunais argentinos sobre o assunto.177 encerre mediante arquivamento. Isso não transformará o
É interessante notar certa peculiariade do processo processo inquisitório em acusatório.
penal brasileiro: a figura do Assistente de Acusação. Com No processo acusatório, porém, o juiz não poderá
previsão no artigo 268 do Código de Processo Penal, o condenar o réu diante de um requerimento/alegação final do
Assistente poderá habilitar-se ao processo e participar dos acusador (Ministério Público ou querelante) pela absolvição,
atos processuais. Em alegações finais o Assistente se sob pena de ofender o contraditório.
pronunciará antes da Defesa. Ultrapassada esta fase, as demais questões são, a nosso
Nestes termos, se o Assistente do Ministério Público, juízo, próprias do princípio acusatório, uma vez que se
devidamente habilitado, se pronunciar em alegações finais referem ao poder de iniciativa (demanda, com exclusão,
pela condenação, opondo argumentos que poderão ser portanto, da atuação inquisitorial do juiz), delimitação do
respondidos pela Defesa, a exigência do contraditório terá objeto (por meio da acusação, elemento da própria ação
sido atendida. penal) e demonstração da verdade dos fatos e argumentos
No caso do direito brasileiro o ofendido fiscaliza a (direito à prova).179
obrigatoriedade do exercício da ação penal pública (artigo Por sua vez, a oficialidade do processo penal
5º, inciso LIX, da Constituição da República). Essa condenatório e a obrigatoriedade da ação penal pública,
fiscalização é realizada, via de regra, por meio da ação penal
privada subsidiária da pública (artigo 29 do Código de Processo Penal), há também a possibilidade de inércia superveniente, a ser
Processo Penal). Todavia, se a ação pública foi combatida pela atuação do Assistente.
179 Em excelente trabalho, intitulado Direito à Prova no Processo Penal,
oportunamente proposta, fica para o ofendido apenas a Antonio Magalhães Gomes Filho traça o perfil do que conceitua como direito à
possibilidade de acompanhar o processo, habilitando-se prova, lembrando que a inserção da figura do juiz, como protagonista da tarefa
como assistente178. Caso não o faça, creio que estará de aquisição das provas, representou uma postura metodológica fundada no
escopo específico do processo, subordinado ao ideal de defesa social contra a
delinqüência, e inspirado num conceito de Estado que pretendia organizar a
vida dos indivíduos e conduzir a sociedade. Por sua vez, a aceitação da prova
paleopositivismo, abandonado pela ideologia de princípios da Constituição da
como direito das partes, conseqüente aos direitos de ação e de defesa,
República de 1988, no Brasil.
177 pressupunha uma organização estatal preocupada apenas em manter o
MARTÍNEZ, Santiago. La acusacion como presupuesto procesal y alegato equilíbrio social, preservando a autodeterminação dos indivíduos. Acatando-se
absolutorio del Ministerio Publico Fiscal,: observaciones sobre una cuestión uma visão não interventiva do Estado, no campo processual, chega-se, conforme
recurrente, Buenos Aires, Fabian J. Di Placido, 2003. Gomes Filho, a uma concepção de prova como argumentum, que não pode
178
Por coerência sistêmica não se pode esquecer que o direito de ação é prescindir do momento de persuasão, sendo a verdade por ela perseguida
exercido pelo Ministério Público ao longo do processo, não se esgota com a própria das coisas humanas, que sem a pretensão de ser absoluta, não exclui
apresentação da denúncia. Assim, além da inércia inicial, superável pelo uma probabilidade contrária, mas é escolhida por razões de caráter ético (O
oferecimento de queixa substitutiva da denúncia (artigo 29 do Código de Direito à Prova no Processo Penal, São Paulo: RT, 1997, p. 39).
malgrado reflitam uma postura de preocupação com o valor juridicamente inibidor da propositura da ação penal. Assim,
segurança e, por igual, intransigência referente à apuração e o juiz fica excluído, por imperativo lógico, da tarefa de
repressão das infrações penais, não desnaturam a controlar o princípio processual da obrigatoriedade, quando
acusatoriedade do processo, na medida em que a ação penal exigível, nos casos de não-exercício da ação penal182.
não é deduzida por quem haverá de julgá-la, não implicando Acrescente-se, por oportuno, ao ensejo de se conceber
sempre, ou necessariamente, em que o réu se veja diminuído um princípio de obrigatoriedade, que não exclui a
em suas condições de resistência. acusatoriedade nem com ela se confunde, mas se contrapõe
Neste sentido, Navarrete tem completa razão ao frisar tão-somente aos princípios de conveniência e
que, frente a tendências doutrinárias amparadas oportunidade183, que tal obrigatoriedade impelirá o órgão de
principalmente no modelo alemão, alguns doutrinadores acusação a se interessar pelo desenvolvimento das
opõem-se, sem razão, ao reconhecimento de um processo de investigações criminais necessárias à colheita de material
partes, salientando unicamente a existência de partes que sirva ao propósito de demonstrar a viabilidade da
formais.180 pretensão que se deseja deduzir.
Tal concepção, sob a ótica de Navarrete, não reproduz a Sendo assim, ainda na fase pré-processual é possível
verdade dos fatos, porquanto o órgão acusador funciona vislumbrar o princípio da acusatoriedade, o qual aparecerá
substancialmente como parte, interessado no proveito de sempre que, de algum modo, o titular da ação penal atuar
direito material perseguido, em virtude do qual atuará com vista à aquisição de elementos de formação da convicção
durante o processo.181 judicial, mesmo que superficial, voltada ao recebimento da
Esta é, também, a razão por que há de ser prestigiada a denúncia ou queixa.
autonomia do acusador (Ministério Público ou ofendido), até É imperioso ressaltar, sobre este tópico, que também o
mesmo no que respeita à convicção da ausência do suporte princípio acusatório, refletindo o duelo entre acusação e
mínimo probatório ou da presença de algum fator defesa, obstará o reconhecimento da validade dos meios de
prova adquiridos e conservados nesta fase pré-processual,
180 Lorca Navarrete, Antonio María. El Proceso Penal de La Ley de
salvo no tocante ao objetivo de conferir suporte mínimo
Enjuiciamiento Criminal, p. 52. probatório à pretensão ou se a defesa intervier, plenamente,
181 Em realidade, se Carnelutti está certo, quando assevera que a atitude de corroborando para a sua aquisição, em atividade
advocatus diaboli, adotada pelo Ministério Público, ao início e durante o
processo penal, é imprescindível à conformação dialética do processo de partes
antecipatória da aquisição e preservação de provas para o
(e à operação do princípio acusatório, acrescentamos), motivo por que deve futuro, sob o signo do contraditório, conforme o modelo das
resultar de uma autêntica convicção do órgão de acusação sobre a procedência providências cautelares.
do seu pedido. É inegável, também, a correção da tese contida na observação de
Jorge de Figueiredo Dias, no sentido de que, ao Ministério Público interessa
incondicionalmente o descobrimento da verdade e aplicação da justiça, III. DA DEFESA
atendendo a critérios de estrita legalidade e objetividade. Em vista disso,
compreende-se possa o Promotor de Justiça pedir a absolvição do acusado se,
ao final do processo, estiver convencido da inocência dele, ou recorrer a favor do
condenado. Nestas duas hipóteses, não há prejuízo à máxima acusatoriedade
182 É a posição de Marcellus Polastri Lima, avançada em Curso de Processo
possível, isto porque, ao longo do processo de conhecimento, funcionou
plenamente a estrutura dialética, ensejando a produção, em síntese, de um Penal, vol. 1, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 147-150, neste passo
convencimento oposto ao da pretensão deduzida mas conforme os princípios de simétrica a de Paulo Rangel (Direito Processual Penal, op. cit., p. 182).
183
justiça, a que o Ministério Público rende vassalagem (Sobre os Sujeitos Princípios que, de acordo com determinados modelos, conformam o
Processuais no Novo Código de Processo Penal, p. 25). chamado espaço de consenso.
Por sua vez, sobre a Defesa é válido relembrar a lição de dependerá de o Estado atuar ele próprio conforme o Direito.
Jorge de Figueiredo Dias, referida anteriormente: Daí, no entanto, é impossível conceber soluções de
compreende-se como categoria aberta, à qual devem ser natureza penal que não levem em conta tal verdade,
imputados todos os concretos direitos, de que o arguido contentando-se com comportamentos processuais do
dispõe, de co-determinar ou conformar a decisão final do imputado, pois quando isso ocorre termina anulada a
processo.184 Isso coloca o acusado, e, dadas as atuação da Defesa em busca da efetivação da contraposição
especificidades técnicas relativas ao mecanismo de co- dialética no processo.
determinação e conformação da decisão judicial, também A marca característica da Defesa no processo penal está
seu defensor, na condição de sujeitos de direitos, deveres, exatamente em participar do procedimento, perseguindo a
ônus e faculdades. tutela de um interesse que necessita ser o oposto daquele a
É preciso pontuar a tendência acentuada, revelada nos princípio consignado à acusação, sob pena de o processo
últimos anos, de comprimir o espaço do direito de defesa no converter-se em instrumento de manipulação política de
processo penal. Ora o direito de defesa é substituído por pessoas e situações.
comportamentos processuais do acusado, aos quais se O espaço de consenso deve ser medido cuidadosamente,
atribui eficácia jurídica no plano da resolução da questão para evitar prejuízo ao princípio acusatório, observando ao
principal ² assim são as chamadas soluções de consenso ², menos:
ora pura e simplesmente este espaço é reduzido, a pretexto a) que a publicidade interna do procedimento no
de controlar as formas graves de criminalidade que estão se interior do qual se pretende desenvolver a solução
manifestando nos dias atuais. consensual não seja restringida. Restrição dessa
Como ao nosso juízo o princípio acusatório se ordem equivale a recusar ao imputado acesso a
distinguirá do inquisitivo não somente em virtude da informações vitais para balisar sua conduta
diferenciação forçada entre acusação e julgamento, portanto, processual e isso independe da formalização da
entre acusador e juiz, tarefas a cargo de sujeitos que não se condição de acusado;
confundem, entrará em cena aí a problemática derivada das b) que o imputado tenha à sua disposição todas as
novas maneiras de o imputado participar do processo. informações necessárias a respeito do significado da
Com efeito, desde o início salientamos que a adoção dos comportamentos processuais possíveis,
legitimidade democrática do processo penal - e da solução com esclarecimentos acerca das conseqüências de
que ele adjudica - depende do valor de verdade adotar tal ou qual caminho;
consubstanciado na sentença. c) que o imputado possa até mesmo agregar
A verdade é aí concebida como relação possível ou informações relevantes para que se decida sobre a
adequada entre a imagem que o juiz constrói acerca do fato e conveniência da aplicação das medidas consensuais,
a forma real como este fato supostamente ocorreu. É claro, exercitando contraditório compatível com a espécie
tivemos a oportunidade de ressaltar, que a verdade que se de procedimento simplificado, que de um modo geral
pode alcançar no processo e que oporá esta forma de identifica as espécies de solução de consenso;
solução, baseada no saber, a outras, fundamentadas em d) finalmente, que não haja redução ou eliminação da
convicções de variada natureza, é contingente e histórica e presunção de inocência, com inaceitável inversão do
ônus da prova mediante pressão sobre o imputado
184 Ver nota nº 122. para que aceite soluções consensuais, muitas vezes
orientadas pragmaticamente ao fim de desafogar os busca de suporte probatório, pelo acusador, para
serviços judiciários, com independência da justiça posteriormente deduzir sua acusação, e as atuações durante
das composições185. a fase preliminar, voltadas à limitação ao exercício de
direitos fundamentais do imputado.
O princípio acusatório pode igualmente aparecer Há atos de investigação que precisam permanecer sob
prejudicado de forma séria, no plano da Defesa, quando sigilo, durante algum tempo, sob pena de fracassarem os fins
estivermos diante das modalidades de procedimento cujo da própria investigação. Entre eles não se inclui, certamente,
objeto se caracteriza por ser infrações penais consideradas a produção antecipada de provas, que somente estará
graves. justificada diante do risco de perda da prova em virtude da
Com efeito, a limitação da publicidade interna do natural demora do processo, e as ações que visam restringir
procedimento afeta primordialmente o contraditório e deste o exercício de direitos fundamentais do imputado ² tais
modo atinge as posições defensivas, impedindo o imputado- como a prisão processual e a interceptação das comunicações
acusado e seu Defensor de terem acesso a informações telefônicas ², que só poderão ter validade jurídica se
importantes, de poderem contrariá-las e, destarte, de submetidas ao contraditório pelos menos diferido, isto é,
contribuírem para a formação da convicção do juiz. As realizado em um momento posterior ao da adoção da
estratégias de combate à criminalidade organizada, por meio providência187.
da infiltração de agentes policiais, do estímulo à cooperação Com isso, a compatibilidade com o princípio acusatório
de arrependidos e, principalmente, por conta das restrições dependerá de a Defesa concretamente estar em condições de
que impõem à publicidade interna do processo, negando ao participar em contraditório do processo com as
imputado participação nos procedimentos preliminares, características acima mencionadas.
mesmo quando se trata de medidas de natureza cautelar, Os atos de natureza cautelar que são levados a cabo sem
correspondem a métodos pré-modernos de atuação da audiência prévia da parte contrária - inaudita altera pars -,
justiça penal cujo propósito é tornar efetivo o direito penal a dependerão do contraditório a posteriori para estarem
qualquer preço.186 revestidos de validade jurídica.
Note-se que há significativa diferença entre a necessária De todo modo, quando as condições de participação da
Defesa são canceladas, os atos eventualmente realizados
185 podem estar entre dois extremos: são simplesmente
A violação da presunção neste caso ocorre quando o juiz ou o Ministério
Público advertem o autor do fato (artigo 76 da Lei n. 9.099/95) para os riscos de informativos, e o juiz não poderá considerá-los no processo.
recusar a proposta de aplicação direta de pena e partir para o processo Quando muito os levará em conta para ajuizar a presença de
WUDGLFLRQDO (VVD ³DGYHUWrQFLD´ HPEXWH FRQVLGHUDomR SUpYLD GD ³FXOSD´ GR justa causa para a ação penal; ou não valerão de modo
investigado, pessoa que segundo a Constituição da República deve ser tratada
como inocente (artigo 5º, inciso LVII). algum. Nesta categoria será possível inscrevermos a
186 De algum modo, todas estas formas eram conhecidas ao tempo em que
predominava, na Europa Ocidental, o processo inquisitorial de influência
eclesiástica. O e. Supremo Tribunal Federal tem enfrentado com freqüência a 187
questão e decidido pela inoponibilidade do sigilo do inquérito policial ao O procedimento das interceptações é autuado em apartado, nos termos da
advogado do indiciado. HC 82354 / PR ± PARANÁ HC - Relator: Ministro Lei n. 9.296/96. Permanece em sigilo durante o período de captação das
Sepúlveda Pertence. 1ª Turma. Julgamento em 10 de agosto de 2004. conversas telefônicas (prazo de quinze dias, prorrogável por mais quinze) e
Publicação: DJ DATA-24-09-2004 PP-00042 EMENT VOL-02165-01 PP- depois deve ser objeto de controle dos interessados. Ver do autor o livro Limites
00029. às Interceptações Telefônicas e a Jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005.
denominada delação premiada188, isoladamente insuscetível
de ser alcançada pelo contraditório, pois contrapõe com 3.2.2.2. Da Perspectiva Dinâmica do Processo: Da Atuação
exclusividade versões apresentadas por interessados, sendo dos Sujeitos Processuais
meramente uma questão de fé o convencimento dela
derivado. Na linha do que se refere ao autor, ao acusado e ao juiz,
Também neste âmbito se enquadra a infiltração, considerados estaticamente, são essas a nosso juízo as
medida que consiste, do ponto de vista filosófico, no fato de o principais observações. Como foi sublinhado antes, é hora de
Estado permitir aos seus agentes que participem pelo menos passarmos ao exame da dinâmica processual e ver como
do crime de formação de quadrilha a pretexto de controlar e reagem os diversos sujeitos à ação dos demais. Equivale à
combater a criminalidade. A par da grave concessão de tentativa de captar a atuação dos sujeitos como em um filme.
ordem ética, haverá sempre a possibilidade de se atribuir a É válido, no entanto, acrescentar, pelo que há de
priori valor superior às informações adquiridas desta comum a acusado e acusador, que a modalidade de
maneira em oposição aos demais elementos de convicção configuração dos respectivos estatutos jurídicos, erguida em
introduzidos no processo pelas partes, reconduzindo o bases de liberdade com responsabilidade, caracteriza a
sistema das provas tarifadas ao ambiente processual, moderna concepção das partes como sujeitos do processo
dissimuladamente189 penal.
Por fim, ressalte-se que a atuação do imputado e de seu Começaremos pelo estatuto da Defesa em movimento,
Defensor deverá se projetar no processo de execução penal, porque este é, em nossa opinião, o que mais diretamente
porque nele o comando contido na sentença poderá tornar- VRIUH FRP DV ³QRYDV´ LQWHUSUHWDo}HV TXH GH XP ODGR
se realidade. resgatam a inquisitorialidade e do outro vestem com figurino
Da participação efetiva da Defesa na execução penal acusatório o que necessariamente não é. Como parece que o
dependerá a natureza processual, ou apenas administrativa, fenômeno decorre da prevalência da ideologia de lei e ordem,
desta modalidade de procedimento. para restringir os direitos da Defesa no processo, como
afirmamos na última parte do item 3.2.2 III, é oportuno
examiná-lo em primeiro lugar.
188
Há vários dispositivos legais que cuidam da delação premiada. O mais I. -O Estatuto da Defesa em Movimento: O Conflito entre os
abrangente está definido no artigo 14 da Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, Interesses do Defensor e do Acusado e o Limite às
pelo qual é possível reduzir a pena em até dois terços, desde que o acusado haja Soluções de Consenso
colaborado voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal,
visando a identificação de co-autores e partícipes, a localização da vítima com Com efeito, sobre o acusado deve-se sublinhar, com
vida e a recuperação total ou parcial do produto do crime. O artigo 13 da citada reservas, que não corresponde ao anseio de justiça qualquer
Lei chega a prever o perdão judicial para o agente colaborador, desde que a proposta fundada na idéia de que não possa dispor da
personalidade do beneficiado, a natureza, circunstâncias, gravidade e
repercussão social do fato criminoso indiquem a conveniência da medida. capacidade de autodeterminação, que não é um direito, mas
189 uma característica inerente à sua condição de ser humano.
O texto Da Lei de Controle do Crime Organizado: Crítica às Técnicas de
Infiltração e Escuta Ambiental, publicado originalmente no Livro Escritos de Pode, pois, em uma lógica não-paternalista, mas
Direito e Processo Penal em Homenagem ao prof. Paulo Cláudio Tovo (Rio de responsável desde que consciente da situação gerada pelo
Janeiro, Lumen Juris, 2002), sob coordenação de Alexandre Wunderlich, está
ao fim, como Anexo I. Trata da matéria e o autor acredita que será útil processo e dos cenários hipotéticos que a eleição de algumas
complemento ao que está sendo examinado neste trabalo. alternativas de comportamentos poderá implicar, escolher
mesmo soluções que resultem na disposição sobre o E a criminologia crítica irá demonstrar que as
conteúdo do processo acusatório. desigualdades sociais no mínimo são responsáveis pela
É claro que em um Estado Democrático, que aspira a definição da criminalidade de determinados setores da
consecução da máxima justiça social, tais eleições inspiram- sociedade. O emprego do poder de selecionar condutas
se no propósito de resolução justa dos conflitos de interesses delituosas está na base do princípio da reserva legal, mas na
penais, razão pela qual a lógica da produtividade, verificada realidade os Parlamentos contemporâneos ainda o põem a
em ordenamentos jurídicos coincidentemente acusatórios, funcionar para conter grandes massas sociais190.
não é válida. Não se trata de viabilizar acordos penais para Desse modo, não é razoável admitir igualdades
aumentar o número de pessoas condenadas. materiais onde elas não existem e hipoteticamente transferi-
Ponderando-se, porém, os bens e interesses em jogo las para o processo penal, que muito pouca contribuição
com a disciplina da autodeterminação de um ser, que pode oferecer para superar essas desigualdades.
compreende em seu particular estatuto essa característica O chamado processo penal consensual se esforça para
como essencial, é válido considerar a importância e o relevo realizar essa tarefa inatingível. Baseado no princípio da
que tem a vontade do acusado para o desfecho de um autodeterminação do acusado, que não se coloca em cheque,
processo penal de natureza acusatória. O limite das sustenta a possibilidade de o réu decidir não se defender e
possibilidades da autodeterminação no campo jurídico-penal aceitar, diretamente, uma pena ou medida criminal (é o que
se põe principalmente quando outra característica inerente à ocorre com a transação penal e a suspensão condicional do
condição de ser humano puder ser suprimida, tal como, por processo, ambas previstas nos artigos 76 e 89 da Lei dos
exemplo, a liberdade pessoal. Juizados Especiais Criminais).
Entre as edições anteriores do Sistema Acusatório e a O problema está em que o réu tem chances reduzidas de
atual (3ª) há o hiato no qual foi pesquisado e produzido o não ser punido, desde o processo de criminalização primária,
livro Elementos para uma Análise Crítica da Transação que seleciona condutas em que na maioria das vezes ele está
Penal, fruto de tese de doutorado. previamente enquadrado por pertencer a certo grupo social,
As conclusões da pesquisa, para a qual remeto o leitor, até a hora em que a pressão do tempo191 e o ambiente, ambos
recomendam cuidado na interpretação e reconhecimento do desfavoráveis, termina pesando para que aceite as soluções
espaço de decisão de que o acusado pode dispor acerca de penais aparentemente mais generosas, sob pena de ter que
uma série de direitos e garantias processuais que lhe são encarar o rigoroso processo tradicional! Em suma, o acusado
assegurados pela Constituição da República e pelos tratados é ameaçado com a presunção de culpa!
internacionais de direitos humanos. As chamadas soluções consensuais não estão no círculo
Assim, o afastamento do paternalismo no tratamento temático do Sistema Acusatório (como foi sublinhado antes),
dispensado ao acusado não pode levar a supor que as pois visam resolver conflitos extra-processuais e, portanto,
condições concretas de funcionamento do Sistema Penal
proporcionem igualdades de toda natureza, a ponto de ser
190
sempre considerada válida a decisão pessoal de não se WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados
defender! Unidos, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 2001.
191
As desigualdades materiais não desaparecem por A abordagem de Aury Lopes Jr. sobre o papel do tempo no processo, levada
a termo no livro Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da
decreto, como a história não chega ao fim simplesmente Instrumentalidade Garantista), (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004), é
SRUTXHXPFLHQWLVWDVRFLDOGHFUHWDR³ILPGDKLVWyULD´ sugestiva.
não objtivam apurar fatos para com base nisso arbitrar
responsabilidades. II. -O ESTATUTO DA ACUSAÇÃO EM MOVIMENTO: A
Há de se pensar uma dogmática apropriada para elas, OPORTUNIDADE REGULADA NA AÇÃO PÚBLICA E A VEDAÇÃO
tarefa-desafio segundo Alberto Binder192. ORDINÁRIA À INVESTIGAÇÃO DIRETA
As decisões pessoais do acusado são relevantes no
processo penal acusatório (confessar ou não, recorrer ou Sobre o estatuto do acusador, em decorrência do
não, falar por si mesmo em audiência, não apenas no ato princípio de liberdade responsável, também são devidas
formal de interrogatório, indicar provas), mas não devem ser algumas considerações.
confundidas com aquelas outras, do processo consensual,
que podem ser oportunas e talvez funcionem como estratégia A. A Oportunidade Regulada na Ação Pública
de abrandamento do rigor punitivo, todavia sistematizadas e
difundidas levam paulatinamente ao retorno do modelo A primeira delas reside na seguinte premissa, segundo
inquisitorial que mira a pessoa, o corpo do acusado, como nosso pensamento, fundamental: a oficialidade do exercício
alvo da ação estatal. da ação penal e, conseqüentemente, da tarefa de dedução da
Em que pesem as oposições existentes,193 o estatuto do acusação, não modifica substancialmente o estatuto do
defensor no processo penal, por sua vez, coaduna-se com acusador, a ponto de criar uma absoluta incompatibilidade
propósitos de resolução justa do caso penal, observada a entre decisões de conveniência ou oportunidade e de estrita
adequada tutela jurídica dos direitos e interesses do acusado. obrigatoriedade.
Assim, é lícito acentuar que o advogado ou defensor Com efeito, não há exercício de função pública salvo por
exerce um munus público (contribuindo em grande parte seres humanos e a liberdade de autodeterminação é, como
para a resolução da causa conforme o direito) equilibrado assinalamos em lance anterior, da natureza humana.
por tudo quanto, no exercício da sua atividade, imponha a É evidente que, no exercício da função pública,
atuação ou omissão, ambas necessárias à preservação ou submete-se o agente ao império da legalidade, que, no
conquista de posições jurídicas de vantagem para o acusado, campo penal, em consideração à máxima da isonomia,
conforme o direito. obedece a princípios de moralidade e impessoalidade. Apesar
Essa é a razão pela qual se concebe, em um processo disso, sempre há um espaço no qual é possível eleger
acusatório, a positivação de poderes do advogado do acusado alternativas e se os critérios de escolha variam conforme seja
para se opor à vontade deste último, sempre que divise, nas o acusador particular ou oficial, para o último hão de levar
conseqüências da manifestação dela, a operação de grave em conta a moralidade, impessoalidade e, via de
prejuízo jurídico. Daí porque se constata uma dualidade de conseqüência, a objetiva isonomia, que não o impedirão de
estatutos ² defensor/acusado ², apta a ensejar a contribuir decisivamente para a implementação da política
juridicidade do recurso da defesa contra a vontade do réu. criminal mais justa.
Neste caso, a perspectiva histórica há de por acento no
192 fato de o Ministério Público ter nascido, com a sua
BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos
para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de conformação próxima à atual, como fruto do processo de
Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44, citado anteriormente. revisão crítica do exercício do poder, provocada pela
193 Referidas e analisadas por José Narciso GD &XQKD 5RGULJXHV ³6REUH R
3ULQFtSLRGD,JXDOGDGHGH$UPDV´in Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
ano 1, nº 1, Lisboa: Aequitas, jan-mar/1991, pp. 77-103).
Revolução Francesa,194 objetivando desempenhar decisivo GHIRUPDQWH¶ \ GLULJLU ORV UHFXUVRV GHO (VWDGR DO
papel na persecução penal, mas inserido em um projeto control sobre el tipo de criminalidad que mayor
orgânico de vigência real do conjunto de garantias costo social genera y más dificultades manifiesta
indispensáveis à dignidade da pessoa humana. en la investigación, representa sin duda una
Em um modelo acusatório, que historicamente se funda opción de limitación del poder penal del Estado...
no protagonismo das partes, há de se conceder espaço para Además de las razones expuestas, es preciso
uma atuação mais flexível do Ministério Público, porquanto insistir en una de máxima importancia: que el
a noção da persecução penal em todas as circunstâncias, Ministerio Público sea el operador de los criterios
referida a todas as infrações penais (ainda que consideremos de desjudicialización a través de la aplicación
somente as noticiadas), rende louvor ao fim de defesa social, concreta del principio de oportunidad, asegura
perseguido no processo inquisitório, acima e além dos que dicha aplicación no viole la garantía
limites de humanidade necessários à harmônica convivência FRQVWLWXFLRQDO GH µLJXDOGDG DQWH OD OH\¶ GHELGR D
social. que por su especial función de formulación de la
Um estatuto jurídico do acusador que reprima política criminal del Estado y gracias a que ciertos
completamente as suas potencialidades de conformação da principios aseguran que esa formulación sea
política criminal, a pretexto de vincular a ação do Ministério coherente...
Público à legalidade, esconde deliberadamente a
possibilidade da legalidade surgir em ambientes de E, conclui, objetivamente, com a observação de que
flexibilidade, de acordo com critérios de impessoalidade e princípios de unidade, hierarquização e verticalidade,
moralidade e também de acordo com propostas de redução configurando o Ministério Público, asseguram às pessoas
do caráter flagrantemente elitista da justiça penal, que estarão sempre submetidas às mesmas regras e não a
redistribuindo as forças de persecução conforme uma mais uma arbitrária disposição de vontade do acusador.
coerente e justa avaliação do que deve merecer o dispêndio Nestes termos a realidade coloca o Ministério Público
de energia do Estado. diante da possibilidade/necessidade de se organizar de modo
Na perfeita compreensão de Maximiliano Rusconi, eficiente e orientar a aplicação de seus recursos na direção de
sobre o estatuto jurídico do acusador público no âmbito do políticas criminais democráticas, definidas com
sistema acusatório e de acordo com o princípio acusatório, transparência e em documentos discutidos internamente e
centrado na idéia do justo processo, alerta-se:195 com representantes da comunidade.
Cumprida esta etapa, em homenagem aos princípios
El principio de oportunidad como elemento constitucionais mencionados linhas atrás, cada Promotor de
para racionalizar el uso de poder de persecución Justiça ou Procurador da República terá conhecimento dos
FULPLQDO HYLWDU XQD VHOHFFLyQ µLUUHJXODU \ parâmetros que nortearão escolhas entre acusar ou requerer
o arquivamento das investigações criminais e até sobre
194 Rusconi, 0D[LPLOLDQR $ ³Luces y Sombras en la Relación Política recorrer ou não de sentenças.
Criminal ² Ministerio PúEOLFR´, in Ministério Público, Revista A interpretação constitucionalmente adequada do artigo
Latinoamericana de Política Criminal, ano 2, nº 2, Buenos Aires: Editores 129, inciso I, da Constituição da República, é esta. Não se
del Puerto, 1997, p. 156.
195 5XVFRQL 0D[LPLOLDQR $ ³Luces y Sombras en la Relación Política trata, apenas, de assegurar ao Ministério Público o
Criminal ² 0LQLVWHULR3~EOLFR´, ob. cit., pp. 158-159. monopólio do exercício da ação penal pública, na forma da
lei. Nos dias de hoje é concebível extrair da norma tutela jurídica por intermédio de procedimentos de garantia
constitucional a autorização para definir critérios e casos de previstos nas Constituições.
atuação, sempre tendo em mente os princípios da No plano específico do princípio acusatório exige
moralidade e impessoalidade. extraordinário cuidado o saber como articular estes
Por último, não custa lembrar que a dogmática penal procedimentos e a teoria jurídica.
avançou o suficiente para engendrar critérios de definição de Assim é que, ao se falar em proibição de prova no
crimes, de tipicidade penal, bem mais exigentes que a mera processo penal, está se afirmando que o juiz não poderá levar
subsunção da tipicidade objetiva tradicional. em consideração determinado elemento de convicção, no
A potencialidade de dano da conduta, a ofensividade a momento de proferir a decisão, se este elemento de
bens jurídicos, a própria dimensão do dano provocado e o convicção foi obtido indevidamente.197 Mas a proibição da
desvalor da ação são elementos que o Direito Penal oferece prova vai muito além do mero dado procedimental.
ao Ministério Público para determinar as hipóteses de Para entendermos o fenômeno que orienta a atividade
atuação ou não. probatória, é preciso compreender como a teoria do
conhecimento cuida do assunto e perceber que provar é
B. A Vedação Ordinária à Investigação Direta196 convencer, que a atividade probatória consiste em introduzir
Em contrapartida à maior liberdade de ação, que deve no processo elementos que servirão para formar a convicção
inspirar a atuação do Ministério Público, em um processo do juiz.
penal democrático, temos que, além dos mencionados Portanto, a atividade probatória é atividade de
controles, funcionam outros, direcionados a impedir ou a ministrar elementos de conhecimento. O juiz deverá
coibir os excessos e a tentar garantir que o valor de verdade conhecer determinado fato e este conhecimento se dará
da sentença penal não venha a naufragar por conta de uma indiretamente,198 porque o juiz não presenciou o fato. Ao
acentuada e irracional atividade probatória. final, o convencimento do juiz representará a formulação de
Por conta disso, convém dedicarmos alguma atenção à uma idéia acerca do fato. Da comparação desta idéia com a
matéria prova penal e às atividades de investigação pretensão deduzida pela acusação e com a pretensão de
diretamente a cargo do Ministério Público. resistência deduzida pela Defesa nascerá a decisão.
Com efeito, o estudo sistemático da teoria jurídica Diante das conseqüências advindas da consideração de
relativamente à questão da prova está a demonstrar que não que um fato está ou não provado no processo é necessário
se trata simplesmente de problemas de método de aquisição, levar em conta que, em primeiro lugar, a atividade
introdução e avaliação das provas no processo. probatória é uma atividade de pesquisa.
No campo da prova há também aspectos subjetivos, isto É assim em qualquer ramo do conhecimento e não pode
é, referidos à perspectiva de quem pode provar, além de ser diferente quando o objeto do conhecimento é um fato
outros objetivos, ambos importantes, que estão a merecer ideal ² a suposição a respeito da existência de uma infração
penal.
196 Sobre o assunto, recomendo a leitura do livro Investigação Criminal
Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica, 2ª ed. de Paulo Rangel, tema
de sua dissertação de mestrado (Lumen Juris, 2005) e o Crime e 197 A Constituição da República estabelece, em seu artigo 5º, inciso LVI, que
Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público, são inadimissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
2ª ed., de Lenio Luiz Streck e Luciano Feldens, Rio de Janeiro, Forense, 198 Evidentemente, se o juiz for testemunha da infração penal, não
2005. poderá julgar. Artigo 252, inciso II, do Código de Processo Penal.
Neste sentido convém recordar que os pesquisadores a Por essa razão, até mesmo de acordo com a lógica
princípio definem o que se pretende pesquisar. Em termos imperante em determinado modelo de funcionalismo, se a
de Processo Penal, o objeto da pesquisa é um fato com verdade é sempre contingente e histórica, o uso da tortura e
coloração diferenciada, dada pelo Direito Penal. o emprego de recursos que historicamente foram criados e
A pesquisa só será possível se o pesquisador tiver em ditados para produzir uma verdade real não têm peso
mente um fato da realidade, hipoteticamente ocorrido, a que algum. Neste caso, o resultado da atividade probatória
terá de somar os elementos peculiares à adequação típica, objetivamente estará sujeito ao mesmo tipo de crítica cabível
pois apenas a infração penal lhe interessará. em todas as pesquisas e eticamente representará a opção por
Duas notas distintas passam a ser objeto da atividade mecanismos tão censuráveis quanto a infração penal que se
mencionada: a existência de um fato, propriamente dito; e a pretende apurar.
presença das características que poderão atribuir a este fato A restrição relativa aos meios de prova, no processo
relevância jurídico-penal. Em outras palavras e a título de penal, tem a ver com o conjunto de valores sociais
exemplo, no processo penal interessa saber se houve morte considerados conforme o estatuto ético da sociedade.
de alguém e se esta morte pode ser derivada de conduta Do ponto de vista objetivo, a proibição de provas
dolosa ou culposa prevista como crime. O processo penal não exprime as hipóteses de violação a este estatuto ético,
deve perseguir a prova de fatos atípicos! previsto principalmente na Constituição. Desse modo, são
Verifica-se, agora sim, que a atividade probatória não se inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios
limita a um debate no processo, com introdução de provas, a ilícitos conforme a idéia de que o meio utilizado para
não ser que entendamos que a produção de provas é sempre obtenção da prova viola valores éticos mínimos considerados
produção de provas direcionada a determinação da essenciais para a existência de uma sociedade civilizada, ou,
existência e da vinculação subjetiva de um fato típico, ilícito usando a expressão de Schmidt-Leichner,199 o Estado não
e culpável, ou seja, de uma infração penal. pode se tornar receptador de material probatório.
Mesmo quando, aparentemente, a lei é clara na Do ponto de vista objetivo há um limite,
definição da infração penal, sempre se exigirá um mínimo tradicionalmente investigado: a prova ilícita não pode ser
processo de interpretação que passa tanto pela introduzida no processo. Caso seja introduzida, não poderá
reconstituição do fato no plano das idéias, o que dependerá, ser avaliada pelo juiz porque o Estado não pode atuar
é certo, da qualidade dos elementos que serão oferecidos ao criminosamente para investigar o crime.
juiz, como pela compreensão do significado das palavras Do ponto de vista subjetivo, ninguém, nem mesmo o
empregadas na Lei para indicar o crime ou contravenção. juiz, pode ter a pretensão de dominar toda a realidade, de
Saber se a interrupção voluntária da gravidez de feto enunciar a verdade real. A atividade de busca da verdade
anencéfalo configura aborto ou fato atípico é algo que impõe processual deve se desenvolver de acordo com princípios
antes estabelecer consenso sobre o que significa a expressão republicanos e democráticos.
³SURYRFDU DERUWR´ SUHYLVWD QR DUWLJR GR &yGLJR 3HQDO O processo penal não pode fugir, na essência, à
brasileiro. estrutura do Estado e da sociedade onde está fadado a atuar.
Como não há verdade absoluta, verdade real, a maneira É necessário que seja assim, porque a consolidação da forma
mais segura de se alcançar o melhor resultado certamente
não justificará o desrespeito aos valores fundamentais da 199 Apud Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em
pessoa humana. Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 44.
jurídica do Estado, na Constituição, estabelece que os linha do brasileiro há uma instituição, a rigor o Ministério
poderes emanam do povo e que no seu exercício concreto Público, que fica encarregada de fiscalizar os atos de
devem ser distribuídos entre diversos órgãos, e executados investigação.200
por diferentes agentes de modo a que possa haver controles Em vista dessa opção legislativa, o Ministério Público
recíprocos e eficazes. não pode investigar diretamente, prescindindo da polícia,
A estrutura democrática se contrapõe à forma sem atentar contra o princípio republicano de controle.
autoritária de Estado, de sorte que em um processo penal Nicolas Becerra, Chefe do Ministério Público Federal da
democrático as funções acabam distribuídas entre órgãos Argentina, salienta o seguinte:201
distintos obedecendo a esta mesma lógica.
Há uma conexão que vincula os três principais sujeitos Como ponto de partida o Ministério Público
do processo, de modo que a um deles se entregue a atividade deve garantir que no exercício do Poder de Estado
de exercer a ação penal, a outro a atividade de defesa e a um se respeitem OS PARADIGMAS DO MODELO
terceiro, eqüidistante e imparcial, a atividade de julgar. REPUBLICANO. Como um dos operadores centrais
O sistema de controle das atividades processuais, que se do sistema penal, o Ministério Público deve ser
desdobra em função dos meios e recursos colocados à consciente de quem tem em suas mãos uma
disposição das partes, termina por alcançar também a ferramenta que lhe permite executar uma das
atividade de polícia judiciária, na medida em que tal formas mais violentas de exercício do poder do
atividade representa, por si só, uma espécie de poder capaz Estado. Este exercício por fim deve demarcar-se no
de afetar gravemente o patrimônio de direitos da pessoa programa constitucional, que não só institui o
investigada. modo de relação institucional entre órgãos, senão
A atividade de polícia judiciária, que consiste na que, ao estabelecer o sistema de divisão no
apuração das infrações penais e sua autoria, amiúde invade a exercício do poder por intermédio de freios e
esfera de privacidade alheia e atenta, legalmente, contra a contra-pesos, exige também o controle externo.
reputação pessoal da pessoa sob suspeita. É muitas vezes
imprescindível que seja dessa maneira, pois a aquisição de E conclui com aquilo que é o ponto mais importante:202
informações demandará pesquisa a respeito da vida privada
do investigado. As fronteiras entre o permitido e o proibido Neste controle externo o Ministério Público
durante uma investigação criminal aparecem pois marcadas deve colaborar com a consolidação de um sistema
por balisas tênues e não raro, em busca de maior eficiência, o no qual, ninguém, ninguém deve ser NEM BOM,
investigador cede à tentação de violar determinadas normas NEM MAU GUARDIÃO DE SEUS PRÓPRIOS ATOS, o
jurídicas de proteção da intimidade e da vida privada do que significa entre muitas outras coisas, que quem
investigado. Quanto mais grave a infração penal e mais investiga não pode ao mesmo tempo controlar.
convencido o investigador a respeito da procedência da sua
suspeita, maiores são as chances de não ser rigoroso quanto 200 No Brasil, a Constituição da República prescreve, em seu artigo 129, inciso
à obediência aos direitos fundamentais do indiciado. VII, que é atribuição institucional do Ministério Público exercer o controle
Por conta disso, os parâmetros de legalidade na externo da atividade policial.
201 Becerra, Nicolas. El Ministerio Público y los Nuevos Desafíos de la Justicia
investigação criminal são sempre bem definidos e em Democrática, Buenos Aires: AD-HOC, 1998, p. 12 ± tradução livre.
praticamente todos os ordenamentos jurídicos que seguem a 202 Idem.
pesquisa da ocorrência de crime de furto de que foi vítima
Por que a polícia pode investigar, por exemplo, e o um Governador de Estado, por mais chocante que o fato
Ministério Público não pode investigar? Que tipo de possa parecer à opinião pública. Por outro lado, o
conseqüência jurídica, poderia advir de uma investigação reconhecimento de que a polícia está limitada em certas
realizada por quem não está incumbido de fazê-lo circunstâncias, por ausência de autonomia, além de ser uma
constitucionalmente? constatação servirá para permitir que polícia e Ministério
À vista do exposto, as possibilidades de o Ministério Público atuem em conjunto, visando o melhor proveito da
Público investigar diretamente dependem da previsão legal investigação, que de outro modo estaria condenada a chegar
de disposições regulando a investigação, de tal sorte que as a lugar algum.
lesões decorrentes do abuso na investigação possam ser E isso nada tem a ver com uma função pós-moderna do
objeto de reclamação perante o Judiciário ² princípio da Ministério Público ou com a natureza diferenciada dos
inafastabilidade da jurisdição ² e que o sistema de freios e chamados bens jurídicos penais transindividuais ou
contra-pesos possa funcionar. coletivos.
Além disso, é imprescindível assinalar a Agora, a investigação criminal na grande maioria dos
excepcionalidade desta atuação, que tão-só estará justificada casos não se enquadra no modelo excepcional citado acima e
naqueles casos em que o sucesso da pesquisa impõe o aspecto subjetivo termina ganhando importância neste
extraordinária reserva em relação a quem está sendo contexto, pois não se trata apenas de demonstrar alguma
investigado. coisa, mas de saber quem deve demonstrar e a quem deve ser
É o caso das investigações criminais acerca do demonstrado.
envolvimento sistemático de policiais com ações de Quando o padrão de legalidade na apuração dos fatos
corrupção ou criminalidade acentuada no âmbito da própria não é respeitado também em sua perspectiva subjetiva, a
polícia. prova dele decorrente é igualmente ilícita.
Caberia à lei fixar estes contornos de forma clara, pois Provar é atividade de sujeito. Prova-se um fato que tem
também para a investigação criminal do Ministério Público determinada qualidade, mas se prova por intermédio da
prevalece a garantia constitucional do devido processo legal. atividade de sujeitos e as Constituições hoje não podem ficar
A excepcionalidade dos casos de investigação criminal limitadas em sua interpretação, quando se cuida da
do Ministério Público, de lege ferenda, há de ser proibição de provas no processo penal, aos casos de obtenção
compreendida, do ponto de vista do direito, como emanação de provas por meios ilícitos. Também deverão dirigir a
do critério da proporcionalidade. Nos limites do devido atenção à questão a respeito de quem foi o sujeito produtor
processo legal, sacrifica-se o ideal de afastamento do daquela prova, quais são os limites subjetivos da produção
Ministério Público da investigação criminal, pelo qual é da prova e o que ocorre quando um sujeito que não poderia
viabilizado o controle constitucional da atividade de polícia realizar atividade probatória a realiza, fazendo valer o
judiciária, para permitir a investigação de crimes que de sistema de ineficácia dos atos jurídicos.
outra maneira não seriam investigados. Por último, não custa destacar que os Sistemas
Ora, isso impõe limites à própria lei que porventura vier Processuais são configurados historicamente. O que é
a ser editada. Esta não poderá atribuir ampla liberdade ao atribuído a cada Ministério Público depende muito do papel
Ministério Público para escolher o que investigar. Não cabe, que a instituição exerceu ao longo do tempo. O mesmo
por exemplo, deixar em mãos do Ministério Público a ocorre com a tarefa incumbida à autoridade policial.
No Brasil, durante muito tempo a autoridade policial Agora cumpre dedicar ao órgão de resolução do caso
esteve encarregada de investigar e processar. Essa realidade penal algumas considerações, pertinentes ao seu
do Império, retratada no Código de Processo Criminal de enquadramento conforme o princípio acusatório e a relação
ILFD FRPR ³SHUPDQrQFLD´ Dté a promulgação da que se estabelece entre ele, juiz (lato sensu considerado),
Constituição da República de 1988, que afastou de juízes e acusador e acusado.
delegados de polícia o poder de iniciar processos por crimes Com efeito, excluídas desde logo a iniciativa para o
de homicídio e lesão corporal culposa e por contravenções processo e a tarefa de aquisição das provas na fase
penais (Lei n. 4.611/65 e artigo 531 do Código de Processo precedente203, resulta que o princípio acusatório repercute
Penal). Desde então, somente o Ministério Público está no estatuto judicial, conferindo ao magistrado reserva da
autorizado a promover a ação penal pública. função jurisdicional.
Acontece que a história da investigação criminal Destaque-se que o juiz não produz provas na
brasileira é também história de repressão e autoritarismo, investigação criminal não só porque a preparação da ação
com abusos em investigação e recurso freqüente à tortura. O penal, respeitada a máxima acusatoriedade, implica em
distanciamento que a Constituição da República de 1988 afastamento do juiz da fase preparatória,204 mas também
impôs ao Ministério Público é coerente com a sua função de pelo fato de a presunção da inocência comportar, até o
fiscal das atividades de polícia judiciária, criando estrutura trânsito em julgado da condenação, uma postura de
confiável de controle dirigida à redução dos abusos. preservação pelo juiz de um papel de verdadeira
Quando o Ministério Público abdica disso retorna ao imparcialidade,
passado, fundindo funções, pois a questão não está no nome A implicância prática da reserva em questão consiste,
da instituição que investiga, mas na função que as segundo pensamento dominante, na garantia da liberdade de
instituições exercem. Quem investiga exerce função de avaliação das provas, convicção fundada sobre a qualificação
polícia judiciária. Pode ser o juiz, como no passado jurídica da infração penal e arbitramento motivado da
brasileiro; poderá vir a ser o Ministério Público, como alguns correspondente sanção.
doutrinadores pretendem. Não importa, porque se houver
investigação será necessário criar estruturas de controle A. Livre Convencimento e os Poderes de Investigação do Juiz
dessa investigação e não fará sentido pensar em um outro
Ministério Público do Ministério Público.
203
Porque as linhas deste estudo são traçadas pelo As objeções opostas ao extinto inquérito judicial, na falência (ver item I, em
princípio acusatório não convém avançar mais, valendo 3.2.2.1) são igualmente válidas quando se trata da investigação de magistrados.
notar, porém, que as fronteiras probatórias instituídas pelas Com efeito, a Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979, ainda em vigor até
a edição do Estatuto da Magistratura, em seu artigo 33, parágrafo único, prevê
leis e pela Constituição devem valer não somente em relação que a investigação da prática de crime atribuído a magistrado deverá ser
ao Ministério Público mas até mesmo quando se tratar de realizada pelo Tribunal ou Órgão Especial competente. Além do óbvio
Comissão Parlamentar de Inquérito. desrespeito ao princípio da igualdade de tratamento, que exigiria outro livro
para ser explicado e contestado à luz da Constituição da República de 1988, há a
questão prévia de se atribuir à autoridade encarregada do julgamento a
III. -O ESTATUTO DO JUIZ EM MOVIMENTO: LIVRE atribuição para apurar o fato.
CONVENCIMENTO E OS PODERES DE INVESTIGAÇÃO DO JUIZ 204 A intervenção do juiz, nesta fase, só se explica, conforme o princípio
acusatório, quando necessária para, conforme a Constituição, preservar ou
² A MUTATIO LIBELLI comprimir, legitimamente, o exercício de direitos fundamentais, porquanto o
julgador não tem interesse jurídico na propositura da mencionada ação.
seja considerado conseqüência do primeiro.
Comecemos, portanto, pela análise da tarefa de A ordem das coisas colocadas no processo permite,
avaliação das provas. A primeira e mais importante pragmaticamente, constatarmos que a ação voltada à
observação deriva da necessária distinção entre as ações de introdução do material probatório é precedida da
introduzir e avaliar as provas no processo penal consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado
condenatório. material possa determinar, se efetivamente incorporado ao
A propósito, salienta Gomes Filho que, em um modelo processo.208
processual duelístico, como o adversary, existente na Ao tipo de prova que se pesquisa corresponde um
Inglaterra, por exemplo, a iniciativa da atividade probatória prognóstico, mais ou menos seguro, da real existência do
incumbe preponderantemente aos próprios litigantes, daí thema probandum, e, sem dúvida, também das
decorrendo o papel de mero moderador e mediador, conseqüências jurídicas que podem advir da positivação da
desempenhado pelo juiz que preside o julgamento, o qual questão fática.
raramente intervém, como os jurados.205 Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e
Nessa direção, fundamenta-se uma estrutura processual isso, em termos de processo penal condenatório, representa
preocupada em evitar injustificadas e errôneas privações de uma inclinação ou tendência perigosamente
direitos e em garantir a participação e o diálogo dos comprometedora da imparcialidade do julgador.
interessados no processo de decisão.206 Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na
Por outro lado, convém assinalar que, no modelo direção da introdução de meios de prova que sequer foram
inquisitório, o princípio é justamente o oposto, refletindo a considerados pelo órgão de acusação, ao qual, nestas
proeminência da figura do juiz e a subalternidade das circunstâncias, acaba por substituir. Mais do que isso, aqui
partes na tarefa de obtenção do material probatório, o igualmente se verificará o mesmo tipo de comprometimento
dogma da verdade real, a preocupação com a economia psicológico objeto das reservas quanto ao poder do próprio
processual e, sobretudo, uma concepção peculiar de livre juiz iniciar o processo, na medida em que o juiz se
convencimento, visto, consoante precisamente remarca fundamentará, normalmente, nos elementos de prova que
Gomes Filho, como liberdade absoluta na própria condução ele mesmo incorporou ao processo, por considerar
do procedimento probatório, e não na sua real e histórica importantes para o deslinde da questão. Isso acabará
dimensão de valoração desvinculada de regras legais, mas afastando o juiz da desejável posição de seguro
incidente sobre um material constituído por provas distanciamento das partes e de seus interesses contrapostos,
admissíveis e regularmente incorporadas ao processo.207 posição essa apta a permitir a melhor ponderação e
Ora, se estamos convencidos, o que é certo, da conclusão.
vinculação entre direito de ação (e, naturalmente, também Entre os poderes do juiz, por isso, segundo o princípio
de defesa) e direito à prova, é razoável supor que haja mais acusatório, não se deve encontrar aquele pertinente à
do que uma simples relação jurídica, pela qual o segundo investigação judicial, permitindo-se, quando muito, pela
coordenação dos princípios constitucionais da justiça
3 A respeito do tema, remeto o leitor ao nosso trabalho Crime Organizado, 4 Prado, Geraldo; Douglas William. Comentários à Lei Contra o Crime
Rio de Janeiro: Impetus, 2000. Organizado, Belo Horizonte: Del Rey, 1995.
comprometimento com os fatos apurados, afastando-se o consiga uma concordância entre a norma
julgador do ponto de equilíbrio que, como garantia das infraconstitucional e as normas constitucionais.6
partes, traduz-se no princípio do juiz imparcial.5 Ao afiançarmos a constitucionalidade dos dispositivos
Com efeito, a imparcialidade do juiz é o pilar de da Lei no 9.034/95, designadores ao juiz de funções de
sustentação do tríptico do princípio acusatório, basilar em persecução,7 porque poderia dar cabo delas com isenção,
um processo penal democrático, de tal sorte que lhe entregar sem parcialidade, ou com fundamento em uma intervenção
funções diversas daquelas típicas do exercício da jurisdição cautelar jurisdicional, assinalamos à lei uma interpretação
² dizer o direito e atuá-lo praticamente ² acaba que não condiz com a sua letra e com o seu espírito.
desnaturando o instrumento. O que realmente deseja o legislador é maior eficácia
Apesar dos avisos de preocupação que na ocasião persecutória, mais repressão, e por essa razão antecipa a
emitimos, concretamente acabamos por sustentar que não se intervenção judicial e oferece ao juiz as condições que o
devia, a priori, acoimar de inconstitucional a entrega de titular da ação penal deveria dispor, para preparar-se com
atividades probatórias ao juiz, na fase preliminar, porquanto, vista à deflagração da citada ação, e exigindo do magistrado,
ainda que limitadamente, este teria condições de desenvolver em troca, sutilmente, a incorporação de um interesse público
a sua atuação com base nos poderes processuais conferidos ou institucional voltado à repressão dos delitos.
pelo abordado artigo 156, parte final, do Código de Processo No mesmo sentido, em 24 de julho de 1996, foi editada
Penal ou, com maior freqüência, ou propriedade, no âmbito a Lei no 9.296, que regulamenta o inciso XII do artigo 5o da
do processo penal cautelar, preservando os direitos Constituição, dispondo sobre os casos e formas de
fundamentais do investigado. interceptação das comunicações telefônicas.
Acrescentamos que, nas hipóteses em que a obtenção e O que nos interessa para o exame da conformidade ao
seleção de dados viessem a servir de pilar da denúncia, não sistema acusatório é o artigo 3o, caput, pelo qual são
estaria o magistrado impedido de funcionar no processo de designados os legitimados a por em marcha o procedimento,
conhecimento, salvo se resultasse da instrução preliminar a aparecendo menção à atuação do juiz, de ofício,8 enquanto
emissão de um juízo de valor. ao acusado e seu defensor negou-se qualquer referência
Hoje vemos este posicionamento como típica expressa.
interpretação da lei, em conformidade com a Constituição, Reafirma-se que a pesquisa e seleção de provas,
porém, contra legem, modalidade interpretativa reputada
por Canotilho como inapta a conferir validade à norma
interpretada. 6 Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, pp. 235-236.
Segundo o mestre português, impõe que o aplicador de 7 Funções que este deve desempenhar pessoalmente, recolhendo e
selecionando informações que venham a servir de suporte para potencial
uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa acusação
norma através de uma interpretação conforme à 8 Artigo 5º, inciso XII, da Constituição: é inviolável o sigilo da
constituição, mesmo que através dessa interpretação correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação
5 Garantia forte, assinalaria Ferrajoli, como tal classificando aquelas que, em criminal ou instrução processual penal; artigo 3º da Lei nº 9.296/96: A
um sistema garantista, comportam diretamente a nulidade dos desvios, a interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo
minimização da discricionariedade dos poderes de investigação e a juiz, de ofício, ou a requerimento: I ² da autoridade policial, na
supressão dos poderes de disposição impróprios, cujo exercício é fonte investigação criminal; II ² do representante do Ministério Público, na
inevitável de abusos (Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 594). investigação criminal e na instrução processual penal.
principalmente se não há ação penal proposta, para o comunicações telefônicas como meio de prova:
julgador importa na emissão, expressa ou tácita, de juízos de
mérito antecipados, que não se confundem, por exemplo, Art. 3o Nas hipóteses do inciso III, do art. 2o
com as sentenças estatuídas no artigo 516 do Código de desta Lei, ocorrendo possibilidade de violação de
Processo Penal ² que rejeitem a denúncia ou queixa em vista sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a
do convencimento da improcedência da ação penal ² ou diligência será realizada pessoalmente pelo juiz,
que igualmente rejeitem a inicial acusatória fundada na falta adotado o mais rigoroso segredo de justiça.
de justa causa, porquanto nestes casos a ação penal é § 1o Para realizar a diligência, o juiz poderá
proposta pelo autor, que para ela se prepara sem a requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza
colaboração do juiz. da função ou profissão, tenham ou possam ter
Muito embora não se controverta sobre o fato de que a acesso aos objetos do sigilo.
preservação do sistema acusatório não inviabiliza a adoção § 2o O Juiz, pessoalmente, fará lavrar auto
de medidas destinadas a garantir o êxito ou evitar a circunstanciado de diligência, relatando as
frustração dos processos de conhecimento condenatório e de informações colhidas oralmente e anexando cópias
execução penal, tratando-se aí de tutela cautelar. Também autênticas dos documentos que tiverem relevância
neste caso são requisitadas as manifestações dos probatória, podendo, para esse efeito, designar
interessados (a Polícia ou o virtual autor da ação penal) uma das pessoas referidas no parágrafo anterior
consoante as considerações anteriores, não tendo sentido como escrivão ad hoc.
que o juiz atue de ofício, implementando providências que se § 3o O auto de diligência será conservado fora
mostrem inúteis para aqueles interessados ou denunciem a dos autos do processo, em lugar seguro, sem
suspeita do juiz em relação ao investigado ² com a inversão, intervenção de cartório ou servidor, somente
na prática, do princípio da presunção da inocência. podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as
Numa solução de compromisso, chegamos a concluir, a partes legítimas da causa, que não poderão dele
respeito da Lei no 9.034/95, que só seriam considerados servir-se para fins estranhos à mesma, e estão
constitucionais os atos do juiz, relativos à obtenção, sujeitas às sanções previstas pelo Código Penal em
pessoalmente, de elementos de prova, se decorrentes da caso de divulgação.
necessidade da medida, na presença do fumus boni juris, § 4o Os argumentos de acusação e defesa que
devendo, todavia, à vista da imprescindível preservação da versarem sobre a diligência serão apresentados
imparcialidade do julgador, dar-se este por impedido sempre em separado para serem anexados ao auto da
que, à colheita de dados ou informações, seguir-se a sua diligência, que poderá servir como elemento na
seleção, de modo a executar tarefa típica de perito.9 formação da convicção final do juiz.
Pode-se compreender a dificuldade de conciliação dos § 5o Em caso de recurso, o auto de diligência
preceitos, à luz da matéria que se avalia, e que, com efeito, será fechado, lacrado e endereçado em separado
consiste nas disposições adiante transcritas, reforçadas, para o juízo competente para a revisão, que dele
posteriormente, pela regulação da interceptação das tomará conhecimento sem intervenção das
secretarias e gabinetes, devendo o relator dar
9 Prado, Geraldo e Douglas, William. Comentários à Lei Contra o Crime vistas ao Ministério Público e ao Defensor em
Organizado, pp. 36-37. recinto isolado, para o efeito de que a discussão e o
julgamento sejam mantidos em absoluto segredo autônoma da verdade.13
de justiça. Muito embora a concordância das duas afirmações que
se seguem tenha a aparência de uma evidência, incontestável
Luiz Flávio Gomes apresentou objeção à à primeira vista, uma delas a respeito da eleição
constitucionalidade dos referidos dispositivos que, constitucional do sistema acusatório e, portanto, do
inegavelmente, deferem ao juiz iniciativas probatórias, princípio que lhe confere a designação, e a outra, resultante
assinalando que a lei de controle do crime organizado do reconhecimento que, ao atribuir ao juiz a realização
acabou criando... uma monstruosidade, qual seja, a figura pessoal de diligências de investigação, com seleção do
do juiz inquisidor, nascida na era do Império Romano, mas material apurado, sem provocação dos interessados, tais
com protagonismo acentuado na Idade Média.10 sistema e princípio são violados, concretamente o Supremo
Salienta o culto professor paulista, na esteira do Tribunal Federal não a aceita assim e se posiciona
magistério de Ferrajoli, que o sistema acusatório configura- diferentemente.14
se à base de um juiz como sujeito passivo, rigidamente Duas ações diretas de inconstitucionalidade foram
separado das partes, ao passo que, no sistema inquisitório, o propostas perante a e. Corte, com pedido de medida liminar,
juiz procede de ofício, na busca das provas,11 sendo sob o fundamento da invalidade de se conferir as atividades
exatamente essa última a atitude esperada dele, pelo persecutórias em questão ao juiz, sendo certo que, até a
legislador, diante dos diplomas estudados. presente data, apenas um dos casos foi apreciado,
A motivação psicológica ou social do deslocamento da indeferindo-se a liminar. Vale, pelo que importa em termos
figura do juiz, conforme a função de investigação que lhe é de assinalar à eleição do sistema acusatório uma
designada pelas citadas leis, consiste em uma concepção do constitucionalidade meramente simbólica, na linha
poder jurisdicional e da verdade que a sentença há de conter, preconizada por Marcelo Neves, transcrever a nota do
ao final de um virtual processo condenatório, em tudo julgamento da liminar, pelo Plenário, divulgada no
distinta dos padrões epistemológicos encarnados pelo Informativo no 69, de 28 de abril a 5 de maio de 1997, do eg.
sistema acusatório. Ferrajoli aduz com convicção que o Supremo Tribunal Federal:
método inquisitivo expressa uma confiança
tendencialmente ilimitada na bondade do poder e na sua Diligências realizadas por juiz - I
capacidade de alcançar a verdade.12 É exatamente esta Indeferida a cautelar requerida pela
confiança resoluta na bondade do poder que o sistema Associação dos Delegados de Polícia do Brasil ²
acusatório renega, afastando o juiz do conflito, antes da sua ADEPOL em ação direta de inconstitucionalidade
dedução pelas partes, e complementando a atividade contra o art. 3o e seus parágrafos da lei federal no
jurisdicional com preceitos de oralidade, publicidade,
legalidade dos procedimentos e motivação das decisões, pois
13 Idem.
que se tem por premissa a desconfiança no poder como fonte 14
Ver mudança de posição do Supremo Tribunal Federal, noticiada no início
deste item O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu julgar
procedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo
10 Gomes, Luiz Flávio. Crime Organizado: Enfoques criminológico, jurídico Procurador-Geral da República, para declarar a inconstitucionalidade do artigo
(Lei 9.034/95) e Político-criminal, 2ª ed. São Paulo: RT, 1997, p. 133. 3º da Lei nº 9.034/95, que instituiu a figura do juiz investigador (ADI 1570/UF,
11 Idem, p. 135. rel. Ministro Maurício Corrêa, julgamento em 12 de fevereiro de 2004, com voto
12 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 604. vencido do Ministro Carlos Velloso).
9.034/95, que ² dispondo sobre o acesso a dados, por violação ao princípio do devido processo legal
documentos e informações fiscais, bancárias, por entender que a coleta de provas desvirtua a
financeiras e eleitorais durante a persecução função do juiz de modo a comprometer a
criminal que verse sobre ação praticada por imparcialidade deste no exercício da prestação
organizações criminosas ² estabelece que, jurisdicional. ADIN 1.517-DF, Rel. Min. Maurício
³RFRUUHQGR SRVVLELOLGDGH GH YLRODomR GH VLJLOR Corrêa, publicada em 30 de abril de 1997.15
preservado pela Constituição ou por lei, a diligência
VHUi UHDOL]DGD SHVVRDOPHQWH SHOR MXL]¶ R TXDO µIDUi Sublinhando o Supremo Tribunal Federal a existência
lavrar auto circunstanciado da diligência, relatando de poderes judiciais de investigação, opta a e. Corte por uma
as informações colhidas oralmente e anexando concepção restrita de princípio acusatório, excluindo do
cópias autênticas dos documentos que tiverem conceito os elementos pertinentes à atuação do juiz, na
relevância probatória...´. A referida lei determina, instrução, e sinalizando neste sentido não apenas na direção
ainda, que ³R DXWR GH GLOLJrQFLD VHUi FRQVHUYDGR dos procedimentos que a Lei no 9.034/95 criou, como
fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem também em relação a todos aqueles instituídos para o
intervenção de cartório ou servidor, somente processo penal de conhecimento condenatório, o que vai
podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as refletir, sem dúvida, na validade da interceptação telefônica
partes legítimas na causa, que não poderão dele determinada de ofício. Ada Grinover, militando entre os que
servir-se para fins estranhos à mesma, e estão declaram a inconstitucionalidade dos citados preceitos da Lei
sujeitas às sanções previstas pelo Código Penal, em no 9.034/95,16 concita a não-aplicação desta lei, editada
FDVRGHGLYXOJDomR´ muito mais em conta da sua eficácia simbólica, como
Diligências realizadas por juiz - II verdadeiro e acabado exemplo de legislação-álibi, do que
O Tribunal, por maioria de votos, entendeu propriamente por causa de alguma fé inabalável nos
que os argumentos sustentados pela autora da predicados intelectuais dos juízes.
ação ² usurpação da função de polícia judiciária Outro importante ponto de (des)conexão com o sistema
(CF, art. 144, § 1o, IV, e § 4o), ofensa ao devido acusatório, na Lei nº 9.034/95, refere-se à publicidade dos
processo legal (art. 5o, LIV) devido ao procedimentos.
comprometimento da imparcialidade do juiz na Deve ser observado que o cuidado que a legislação
apreciação de provas por ele próprio colhidas e aparenta dispensar à intimidade e vida privada pode ser
ofensa ao princípio da publicidade (CF, art. 5o, LX) alcançado sem distorção do sistema acusatório, e com a
² não possuíam a relevância jurídica necessária exigência, aliás sempre presente, em se cuidando de
para o deferimento da liminar. À vista dessas
alegações, considerou-se: a) que o magistrado tem
poderes instrutórios e a investigação criminal não 15 As Ações são as seguintes: Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.517-6-
DF, requerida pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil ²
é monopólio da polícia judiciária; b) que a coleta ADEPOL, sendo relator o Ministro Maurício Corrêa, e Ação Direta de
de provas não antecipa a formação de juízo Inconstitucionalidade nº 1.570-2-DF, requerida pelo Procurador-Geral da
condenatório; c) que a CF autoriza restrições ao República, sendo relator também o Ministro Maurício Corrêa.
16 Grinover, $GD 3HOOHJULQL ³2 &ULPH 2UJDQL]DGR QR 6LVWHPD ,WDOLDQR´ in O
princípio da publicidade (CF, art. 5o, LX). Vencido Crime Organizado (Itália e Brasil): A Modernização da Lei Penal. Penteado,
o Min. Sepúlveda Pertence, que deferia a liminar Jaques de Camargo (coord.), pp. 13-29.
informações bancárias, dos interessados na aquisição dos requisitar informações e documentos para instruir
elementos de convicção baterem à porta do Judiciário, procedimentos administrativos de sua
requerendo-os17. competência.
Cumpre à justiça, então, o papel que a Constituição lhe O pressuposto é a existência de procedimentos
impõe, de garante dos direitos fundamentais, sem embaraçar administrativos de competência do Ministério
a ação de investigação e atormentar a consciência dos Público.
acusados com especulações sobre a imparcialidade do Além disso, o dispositivo carece de
julgador. regulamentação por lei complementar (art. 129,
Exemplo disso pode ser visto na jurisprudência pacífica VI). Quanto ao artigo 29 da Lei no 7.492/86,
do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal permite ele a requisição pelo Ministério Público de
Federal, que deliberaram, em várias oportunidades, antes da GRFXPHQWRRXGLOLJrQFLDD³TXDOTXHUDXWRULGDGH´
edição da lei sob comento, o modo de ordenação e execução A autoridade, no caso, seria dirigente do
da colheita de informações pertinentes à esfera íntima do Banco Central e não o gerente do banco, que não é
indivíduo. O objetivo da orientação jurisprudencial consistiu titular de cargo ou função pública. Em suma,
na proteção do direito à vida privada, de índole mesmo em se admitindo a legitimidade do
constitucional, isso embora o Ministério Público, mesmo Ministério Público para requisitar a quebra do
antes do advento da Lei no 8.625/93, tenha reivindicado, à sigilo bancário em caso de crime econômico, tal
luz do artigo 29 da Lei no 7.492/86, o acesso às informações requisição deveria ter sido dirigida ao Banco
bancárias, o que só lhe era deferido no estreito âmbito dos Central, ao qual poderiam as impetrantes fornecer
crimes previstos no citado estatuto. os dados sem incidir nas penas cominadas ao
A este respeito, convém trazer à colação ao menos o crime de quebra de sigilo bancário.
seguinte acórdão, do não menos prestigiado Tribunal II ² Ordem de habeas corpus concedida.18
Regional Federal da 2a Região:
Convém destacar que no plano constitucional agitou-se
Habeas Corpus ² Gerentes Administrativos a problemática da reserva da vida privada em face dos
de Bancos Particulares ² Quebra de Sigilo processos judiciais, consignando-se, textualmente, a
Bancário. providência de restrição da publicidade nas estritas
I ² 6RPHQWHDR3RGHU-XGLFLiULRHjV&3,¶VGR hipóteses de defesa da intimidade e interesse social ² artigo
Legislativo cabe decidir sobre quebra do sigilo 5o, inciso LX, da Constituição da República ² sem perda de
bancário, ex vi do art. 38 da Lei no 4.595/64. O consistência do aspecto de garantia do sistema acusatório,
dispositivo não foi revogado pelo artigo 129, VI, da porque, em verdade, preserva do dano quer o agente, cuja
Constituição Federal que, dispondo sobre os inocência se presume, quer a vitima, que poderia ficar
poderes do Ministério Público, inclui os de submetida a vexames e constrangimentos com a exibição
pública dos seus tormentos.
17
Hoje a matéria pertinente ao sigilo bancário está tratada na Lei
Complementar n. 105, de 10 de janeiro de 2001. Recomenda-se a leitura do 18 Habeas corpus nº 93.02.18736-5-Rio de Janeiro. Tribunal Regional
excelente livro de Juliana Garcia Belloque, Sigilo Bancário (São Paulo, RT, Federal da 2ª Região. Impetrante: Miguel Reale e outro. Relator:
2003). Desembargador Federal Chalu Barbosa. 7/3/1994.
A esse propósito, salientou Celso Ribeiro Bastos que em acusado e de seu defensor entre os legitimados a propor a
muitas circunstâncias o interesse maior de reserva se opõe à interceptação das comunicações telefônicas, como meio de
publicidade. Sem dúvida a publicidade funciona como demonstrar os fatos alegados e obter um resultado
garantia das partes, da coletividade em geral e do processual favorável, denota inconsciente voto repressivo
magistrado, as primeiras colocadas ao abrigo de medidas quanto ao emprego da lei, com prejuízo do princípio da
arbitrárias e premeditadamente injustas, a comunidade paridade de armas, sequer objeto de especulação justamente
resgatada em um conceito de controle democrático sobre os em virtude da percepção das funções repressivas da
atos judiciais, e o magistrado protegido contra insinuações e jurisdição penal.
maledicências19. Esta lacuna deve ser colmatada pela aplicação do
O segredo de justiça, contudo, não anula as conquistas princípio da igualdade das partes, de índole constitucional,
da democracia burguesa, relativas à exigência de motivação estendendo-se ao acusado os mesmos recursos de que pode
das decisões judiciais, celebração do devido processo legal e, dispor a acusação.
como sua conseqüência lógica, a estabilização do Em vista do exposto, concluímos acentuando a
contraditório e da ampla defesa em um processo de estrutura inconstitucionalidade do tratamento dispensado pelas Leis
acusatória. no 9.034/95 e no 9.296/96 ao juiz, levando em conta a
Somente quando o interesse público determinar, ou a quebra do princípio acusatório.
preservação da intimidade não puder prescindir do sigilo, Somente forte inclinação cultural a favor de uma
caberá excluir a publicidade, com as cautelas recomendadas postura tipicamente inquisitória, sem que isso possa
pelo artigo 93, inciso IX, da Constituição da República, sem representar qualquer juízo de valor que não seja jurídico,
que fique afetado o sistema acusatório, pois se preserva, por fundamenta a preservação das medidas reguladas no citado
vassalagem à própria Constituição, o acesso à informação diploma, cuja invalidade deve ser objeto de declaração, pelos
pela parte e seu advogado, inclusive, se for o caso, pelo juízes e tribunais mediante recusa de aplicação da lei
representante do assistente, durante o processo, pois que a inconstitucional.
assistência só poderá ser adequadamente exercida com o No tocante à publicidade do processo, com a reserva de
conhecimento integral do material probatório.20 que a sua limitação deve obedecer a critérios fixados pela
Ao final, a própria sentença há de ser publicada, não se própria Constituição ² defesa da intimidade e interesse
lhe colocando as fronteiras do segredo, incompatível com o social ² fica consignado que o procedimento do primeiro
processo penal democrático, de tal sorte que os elementos de estatuto especial só é aplicável, sem os excessos que prevê,
convicção poderão vir a público para o julgamento da resguardando-se a intimidade dos envolvidos até o instante
opinião pública sobre a ação da própria justiça, forma da prolação da sentença, ato público por excelência,
legítima de controle dos atos dos agentes estatais. garantindo-se, assim, outra pilastra do sistema acusatório.
Diga-se ainda, ao final deste tópico, que a omissão do
5.2. A Lei dos Juizados Especiais21
19 Bastos, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, vol. II. São
Paulo: Saraiva, 1989, p. 285.
20
Verificar o comentário sobre a nova redação do artigo 93, inciso IX, da 21 Especificamente sobre a suspensão condicional do processo remeto o leitor
Constituição da República, determinada pela Emenda Constitucional n. 45. A ao nosso trabalho Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais: Comentários e
matéria foi comentada neste livro quando da análise da publicidade interna do Anotações, 3ª ed., em co-autoria com Luis Gustavo Grandinetti Castanho de
processo. Carvalho, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. Pequeno enxerto consta do
consciência das duras críticas decorrentes de se aceitar
Também aqui o leitor deve ser advertido que entre as soluções penais que não tenham sido fundamentadas em
duas edições anteriores e esta terceira o autor aprofundou provas, mas em acordo entre o Ministério Público e o réu.
idéias e modificou pontos de vista. Nestes termos, começamos pela observação de
As obras citadas na nota de rodapé anterior indicam as )LJXHLUHGR 'LDV DFHUFD GDV ³QRYLGDGHV´ GR SURFHVVR SHQDO
obras específicas sobre Juizados Especiais Criminais nas português, engendradas no Código que foi editado para
quais o leitor terá a oportunidade de examinar a fundo os consolidar os ideais e princípios introduzidos pela
mecanismos de solução consensual dos casos penais. Constituição democrática.
Este item, todavia, oferece visão panorâmica da Figueiredo Dias salientou que a atitude de legalidade
estrutura processual da suspensão condicional do processo e que caracteriza o direito penal, não significa exigência de que
da transação penal, ambas à luz dos princípios que regem o a cada crime cometido e esclarecido corresponda, por
sistema acusatório. necessidade, um processo penal.22
O leitor não deverá desconsiderar o registro anterior, no Soluções que representem a assunção do papel do
sentido de que as práticas penais de consenso, tais como a direito punitivo como ultima ratio são alternativas de
suspensão condicional do processo e a citada transação controle social indispensáveis nessa virada de milênio23.
penal, ainda estão em busca de sua teoria processual e que os Assim, consagra-se o princípio da mínima intervenção, pelo
ajustes ao modelo acusatório são forçados. qual, dada a gravidade indiscutível da sanção penal, com
Ficou consignado que os elementos que determinam a todas as deletérias conseqüências que a acompanham,
existência dos sistemas processuais estão vinculados aos recomenda-se a ativação da força máxima penal somente em
sujeitos processuais e ao modo como atuam, além da relação situações de real seriedade.
que se estabelece entre o juiz e a busca de informações sobre As inovações incorporadas ao cenário do processo penal
o fato. Por isso estas categorias não se prestam ao fim de brasileiro, por meio da Lei no 9.099, de 26 de setembro de
definir o modelo fundado no consenso. Para este modelo está 1995, procuram acompanhar os grandes movimentos
colocado o desafio da sua compreensão, que significará ideológicos, políticos e culturais que têm motivado os ramos
desenhar com clareza o estatuto do juiz e das partes. mais progressistas da criminologia, no chamado Mundo
Entenda-se que a análise destas categorias de acordo Ocidental.
FRPRVSDGU}HVGRVLVWHPDDFXVDWyULRp³IRUoDGD´SRUFRQWD O passo dado, se não foi o ideal em alguns aspectos,
das diferentes funções que o processo penal tradicional conferindo mínima margem de elasticidade ao conceito de
desempenha, quando comparado ao processo penal de infração penal de pequeno potencial ofensivo, representou,
consenso, o que foi objeto de análise no item 3.1. obediente à nossa Constituição, profunda ruptura de dogmas
Apesar disso, hoje o complexo de garantias processuais intocáveis, até 1988, no campo do direito e do processo
que está à disposição é fruto da busca pela implementação do penal.
sistema acusatório. Justifica-se, assim, que se parta daí para A singular aplicação de dois institutos diferentes de
uma teoria garantista da Justiça Penal Consensual, com tudo quanto até então existia ² a transação penal,
comentário à suspensão condicional do processo. Acerca da transação penal 22 Dias, Jorge de Figueiredo. Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de
volto a recomendar a leitura do livro Elementos para uma Análise Crítica da Processo Penal, p. 25.
23
Transação Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. A obra originalmente é do fim do século XX.
principalmente, e a suspensão condicional do processo ² e,
mais do que isso, opostos ao pensamento corrente da 5.2.1. DA TRANSAÇÃO PENAL
aplicação da pena como forma exclusiva de resolução dos
casos penais,24 talvez nos tenha encontrado despreparados. Para iniciarmos o estudo, a partir da transação penal,
De se dizer que a tônica das modificações em questão visando identificar a existência de pontos de contato entre a
envolveu aspectos tais como a efetividade do processo, o estrutura sobre a qual se ergue e o princípio acusatório,
acesso à justiça e a concepção unitária do conflito, algumas considerações preliminares são essenciais.
revitalizando também o papel da vítima e a promoção do Com efeito, na maioria estamos todos de acordo em que
consenso, palavra-chave para entendermos os novos o processo é instrumental e, destarte, tudo o que vier a
institutos, tudo conforme uma visão prática e real do operar nesta perspectiva há de considerar a natureza e as
processo, desafetado e, em alguns pontos, imunizado contra características do direito material em disputa, pela via do
o vírus do excesso de formalismo.25 instrumento.
Ressalva deve ser feita ao papel da vítima, pois que se Contudo, Barbosa Moreira já advertia para o fato de
cabe ao Direito Penal tutelar os interesses dela, o processo que, mesmo simplificada, a relação processual se desenvolve
penal pouco pode fazer para ajudá-las, pois que é disposto a como atividade realizada, por assim dizer, intra muros, em
proteger a situação do acusado. De toda forma, a justiça grande parte a cargo de pessoas nas quais se presumem
penal consensual reposiciona a vítima no cenário do conhecimentos especializados,26 sendo necessária a
processo. compreensão dos conceitos e alcances verdadeiros de cada
Compreender as novas categorias processuais ² mecanismo posto à disposição dos sujeitos. Para isso deverá
transação e suspensão condicional do processo ² só é viável, o intérprete e operador do Direito se valer de dados que
eficazmente, recorrendo-se ao dogmatismo jurídico, fogem muito ao senso comum, sob pena de naufragarmos em
apontado algumas vezes como o principal responsável pelo uma vã tentativa de modernização.
divórcio entre o mundo dos fatos e a realidade do processo, Alguns anos passados da edição da Lei no 9.099/95, e
com o conseqüente desprestígio da Justiça. até agora a doutrina diverge sobre o que efetivamente
Nessas horas de ausência de paradigmas próximos, e de significa a transação penal no Direito Brasileiro.
alguma perplexidade, o dogmatismo resgata o seu real valor, A medida está prevista como resultado de uma
na medida em que encerra as variedades de técnicas de atividade iniciada pelo Ministério Público quando, em caso
abordagem de um fenômeno da vida em sociedade, acima e de infração penal de menor potencial ofensivo, o juiz
além de qualquer polêmica, em si mesmo complexo. homologar proposta do órgão estatal de acusação, aceita pelo
investigado, orientado por defensor, aplicando pena não-
24 Desprezou-se, em nosso caso necessariamente, a prudente recomendação de restritiva da liberdade.27 A infração penal deverá ser de ação
introduzir o novo sem perder de vista o tradicional, que assinala a nossa
identificação cultural e histórica, a partir do peculiar modo de vermos o mundo
(Exposição de Motivos do Código de Processo Penal Português). 26 Barbosa Moreira, José CarORV ³6REUH D 0XOWLSOLFLGDGH GH 3HUVSHFWLYDV QR
25
Em Elementos para Análise uma Crítica da Transação Penal (op. cit.) (VWXGRGR3URFHVVR´ in Temas de Direito Processual - Quarta Série, São
procuramos demonstrar que a Justiça Penal Consensual adota discurso de Paulo: Saraiva, 1989, p. 11.
suavidade em termos de aplicação do Direito Penal, todavia aprofunda o 27 Artigo 61 da Lei nº 9.099/95: Consideram-se infrações penais de menor
processo de expansão deste Direito, para alcançar conflitos que ficariam de fora potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os
da incursão do Sistema Penal caso valesse de fato o princípio da intervenção crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano,
mínima. excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial; artigo
penal pública incondicionada ou condicionada28 e, além suspensão condicional do processo, vinculando as categorias
disso, a hipótese não poderá ser de arquivamento da ao sistema processual sufragado pela Constituição.
investigação (arquivamento do termo circunstanciado). Acreditamos, de início, que os argumentos elencados
Querem certos autores qualificar como sentença em defesa deste ou daquele ponto de vista, apesar da
meramente declaratória a decisão que lhe dá vida, enquanto qualidade dos doutrinadores, não compreenderam todas as
outros, enxergando na decisão função ou efeito possibilidades da classificação. Sem dúvida serviram ao
condenatório, assim a classificam e a partir daí tendem a propósito de validar o esforço de sistematização, porque
negar-lhe a constitucionalidade.29 Há, finalmente, os autores expuseram as conseqüências práticas de considerarmos a
que optaram por terceiro gênero, tal seja, o de ser sentença em tela condenatória ou não condenatória, de sorte
simplesmente homologatória, com ou sem eficácia de título a determinarmos o âmbito integral de aplicação da norma.
executivo.30 Nosso pensamento é de que a sentença em questão é
Da definição do modelo de sentença, acreditamos seja condenatória, de tipo sumário, e que emerge em seu meio
possível investigar a questão básica da iniciativa para a instrumental definido por alguns doutrinadores como o
transação, cujo resultado, a nosso juízo, será idêntico ao da devido processo legal da transação penal, apesar da objeção
de inconstitucionalidade oposta pelo esvaziamento de
76: Havendo representação ou tratando-se de crime de ação pública qualquer tipo de atividade considerada própria ao devido
incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público processo legal (atividade probatória, fundamentação das
poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou
multas, a ser especificada na proposta. § 1º Nas hipóteses de ser a pena de decisões e efetividade do contraditório).
multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade. § 2º Não se Pelo que de elucidativo importará ao nosso estudo
admitirá a proposta se ficar comprovado: I - ter sido o autor da infração passemos, então, ao exame da classificação das sentenças.
condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por
sentença definitiva; II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no A sentença, ato pelo qual se põe fim ao processo, com ou
prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos sem julgamento do mérito (artigo 162, § 1o, do Código de
termos deste artigo; III - não indicarem os antecedentes, a conduta social Processo Civil), pode ser classificada de diversas maneiras,
e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser
necessária e suficiente a adoção da medida. § 3º Aceita a proposta pelo
predominando a sistematização que a considera a partir das
autor da infração e seu defensor, será submetido à apreciação do Juiz. § funções ou efeitos que produzirá. Com isso as sentenças são
4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da distinguidas entre as que meramente declaram, constituem
infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não
importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir
e condenam, conforme produzidas em processos cujas ações
novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos. § 5º Da sentença sejam, por sua vez, predominantemente do mesmo tipo, ao
prevista no parágrafo anterior caberá apelação referida no art. 82 desta exigirem como provimento jurisdicional o simples
Lei. § 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não acertamento de um situação jurídica duvidosa, a criação,
constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins
previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos modificação ou extinção de uma situação ou relação jurídica,
interessados propor ação cabível no juízo cível. ou a imposição ao réu de uma prestação ² no caso do
28 Nesta última hipótese, se tiver havido representação e não se tiver processo penal, de uma sanção.
conseguido a conciliação entre a vítima e o suposto autor do fato.
29 Assim, Rogério Lauria Tucci, apud &OiXGLR $QW{QLR 6RDUHV /HYDGD ³$ Esta é a classificação tradicional, denominada
6HQWHQoD GR DUWLJR GD /HL Q p GHFODUDWyULD´ in Boletim do tripartida,31 em oposição à classificação quíntupla, em
Instituro Brasileiro de Ciências Criminais, nº 35, novembro, 1995, São
Paulo.
30 Grinover, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais, São Paulo: RT 31 Pará Filho, Tomás. Estudo Sobre A Sentença Constitutiva, São Paulo:
1995, p. 134. LAEL, 1973, p. 39.
sentenças de declaração, constitutivas, de condenação, posicionarmos sobre se é ou não condenatória a decisão de
executivas e mandamentais, de Pontes de Miranda, que não homologação da transação penal.32
logrou sucesso na doutrina nacional. Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, por
Tendo por pressuposto quer a função exercitada pelo sua vez inovam, pois defendem que a multa ou a providência
ato judicial ² como é o caso da sentença constitutiva ² quer restritiva de direitos incidentes em razão da sentença de
os efeitos que produz, autorizando o exercício pelo Estado do transação penal, do artigo 76 da Lei do Juizado Especial
monopólio da força para concretizar a sanção imposta ² Criminal, não caracterizam sanção penal em sentido estrito,
como ocorre com a sentença de condenação ² a decisão entre outros motivos porque o caráter imperativo das penas
aparece ao fim de um processo dialético, no qual as partes não se coadunaria com o consenso pretendido, em virtude do
estão contrapostas, porém não necessariamente imunes aos qual a decisão depende da aceitação, pelo suposto autor do
argumentos umas das outras. fato, da proposta levada a efeito pelo órgão do Ministério
Sendo assim, é natural, e com freqüência acontece no Público, ensejando a prolação de uma sentença sui generis,
processo civil, que o exercício da função ou a produção do de mera homologação da transação.33
efeito venham a ser queridos por autor e réu, Ao aceitarmos o ponto de vista dos ilustres professores,
simultaneamente, e que, em se tratando de direito nem mesmo assim teríamos condições de deferir à sentença
disponível, somente caiba ao juiz homologar tal disposição em questão esta classificação especial, isto porque ainda que
de coisas, extinguindo o processo. não autorize a execução em caso de não implemento
Há efetivo poder discricionário na atuação das partes, espontâneo34, quando há condições para se cumprir o
que elegem, em consenso, a solução que reputam a mais pactuado, é indiscutível que se vislumbra uma alteração na
viável, conforme o direito. situação jurídica do agente, permitindo a extinção da
Resolve-se o conflito de interesses por mútua punibilidade e com isso vedando a dedução em juízo de
concessão, muitas vezes arrimada em estado de ânimo pretensão punitiva baseada no mesmo fato.
prévio, no entanto impossível de ser validado Outra vez ocorre a tendência de a sentença inserir-se em
independentemente da intervenção estatal, tal como ocorre uma das classificações tradicionais, embora discordemos,
com as ações constitutivas necessárias, das quais a de pelas razões mais adiante expostas, do interessante ponto de
separação judicial é a sua mais famosa ilustração. vista deduzido.
Releva notar, portanto, que a homologação nada mais É curial recordar-se que as sentenças de mera
representa senão a forma pela qual o juiz soluciona o conflito declaração, constitutivas e de condenação distinguem-se
ou o caso, impondo uma determinada sanção ou criando, entre si em razão dos efeitos principais perseguidos pelas
modificando ou extinguindo situações jurídicas. Todas as partes e produzidos pelo ato judicial, não importa a forma
sentenças de homologação, ditadas em processo de
conhecimento, cabem em um ou outro modelo, conforme o
32 Grinover, Ada Pellegrini et al., ob. cit,. pp. 90 e 134.
conteúdo do ato ou os efeitos que intenta produzir. 33 Demercian, Pedro Henrique e Maluly, Jorge Assaf. Juizados Especiais
Sendo assim, a classificação apresentada pelos ilustres Criminais: Comentários, Rio de Janeiro: AIDE, 1996, pp. 61-66.
34
doutrinadores Ada Grinover, Antonio Magalhães, Antonio A impossibilidade de execução das penas impostas via transação penal
Scarance e Luiz Flávio Gomes não resolve a questão de nos decorre da ausência de previsão legal, exceto para a cobrança da pena de multa.
Não se pode perder de vista o princípio da reserva legal, pelo qual não há crime
nem pena sem prévia cominação legal (artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição
da República).
que tomam ao surgirem. sentença condenatória com base em uma cognição
Eduardo Couture asseverava, a propósito, que são sumária (isto é, incompleta ou superficial) dos seus
sentencias declarativas, o de mera declaración, aquellas pressupostos substanciais normais; e, justamente
que tienen por objeto la pura declaración da existencia de por essa razão, leva o nome de ação condenatória
un derecho,35 enquanto são chamadas constitutivas as sumária.39
decisões que:
As ainda recentes inovações no Processo Civil
En primer término... cream un estado jurídico trouxeram à tona a discussão acerca das cognições possíveis
nuevo, ya sea haciendo cesar el existente, ya sea nos diversos procedimentos, conforme a natureza das
modificándolo, ya sea sustituyéndolo por otro... En decisões perseguidas. Sobre o assunto, aliás, o magistério de
segundo lugar, integran esta clase de sentencias Cândido Dinamarco não podia ser mais feliz, ao distinguir
aquellas que deparan efectos jurídicos de tal índole entre cognição exauriente e cognição sumária, a primeira
que no podrían lograrse sino mediante la destinada a provocar na convicção do julgador a certeza
colaboración de los órganos jurisdiccionales: el jurídica, enquanto à outra basta o convencimento sobre a
divorcio etc.36 probabilidade40 de existência dos fatos alegados pelas partes,
dos quais são extraídas certas conseqüências jurídicas.
Finalmente, são de condenação todas aquellas que A discutível constitucionalidade da cognição sumária,
imponen el cumplimiento de una prestación, ya sea en no âmbito de um processo penal condenatório marcado pela
sentido positivo... ya sea en sentido negativo...37 articulação entre a busca da verdade e o pleno exercício da
Mantendo, entretanto, a classificação original, não deve ampla defesa, garantia constitucional, será avaliada mais
ser totalmente afastada a conclusão de Enrico Tulio adiante.
Liebman, no sentido de se aceitar a existência da sentença De acordo com o que vimos, digladia-se na doutrina
condenatória sumária, fruto de um processo condenatório sobre ser a sentença homologatória em exame declaratória
especial, que assim se caracteriza em face do tipo de ou condenatória.
cognição que admite.38 Apesar de não ter se pronunciado expressamente,
A lição do mestre peninsular, muito embora haja tido acreditamos que para Damásio de Jesus a sentença de
por inspiração procedimentos diversos daquele objeto de transação penal é declaratória, até porque, ao se manifestar
nosso estudo, aplica-se à hipótese vertente, como pode ser sobre os efeitos da decisão judicial, aduz que esta não gera:
visto do seguinte texto: a) condenação; b) reincidência (§ 4o); c)
Nesses casos, pois, taxativamente previstos lançamento do nome do autor do fato no rol dos
em lei, a ação condenatória considera-se culpados (§ 4o, parte final); d) efeitos civis; e)
privilegiada, porque pode levar à prolação da maus antecedentes.41
35 Couture, Eduardo J. Fundamentos Del Derecho Procesal Civil, Buenos 39 Liebman, Enrico Tulio. Manual de Direito Processual Civil, vol. I. Rio de
Aires: Depalma, 1988, p. 315. Janeiro: Forense, 1985, p. 187.
36 Idem, p. 320. 40 Dinamarco, Cândido Rangel. A Reforma do Código de Processo Civil. São
37 Idem, p. 318. Paulo: Malheiros, 1995, p. 144.
38
Hipótese de cognição sumária pode ser extraída das tutelas de urgência, quer 41 Jesus, Damásio E. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. São
no processo civil, quer no processo penal. Paulo: Saraiva, 1995, p. 68.
que sucede o de conhecimento condenatório.
Certamente segue a mesma linha Claudio Antonio Não deve assustar a idéia de transação sobre a sanção,
Soares Levada, no ensaio a que nos referimos. partindo-se do correto pressuposto de que, se é pena, não
É natural que todos os juízos que decorram da cabe negociar a sua aplicação.
investigação científica sejam provisórios, de sorte que, feita O que ocorre, a nosso juízo, é que se transaciona tendo
essa ressalva, não aceitamos a classificação. por objeto a qualidade e a quantidade de determinadas
Segundo a própria Constituição, ninguém será privado sanções, nunca se serão ou não aplicadas, pois, em se
da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal tratando de infrações de ação penal pública, cumpre ao
(artigo 5o, inciso LIV), garantindo-se, assim, a Ministério Público propor a ação penal tradicional, em não
jurisdicionalização da sanção penal, em virtude do que, como havendo acordo.
foi dito no início do trabalho, é necessário que haja processo O princípio da consensualidade, de magnitude
para que se imponha a pena. Nulla poena sine judicio. constitucional, resolve a questão, possibilitando assim a
Ora, sendo ponto pacífico o dever de existência do convergência de vontades exclusivamente sobre a sanção,
processo, pois não há sentença sem processo, refletimos que pois que não se negocia a realidade de se exigir a sua
a função da sentença nele emitida não seja meramente imposição.
declarar o que, sem a decisão, seria considerado incerto. Finalmente, entendemos que o sofisticado argumento,
Nunca se pensou que, sendo a pena por definição a trazido à colação por Demercian/Maluly, em artigo citado,
conseqüência jurídica da infração penal a sanção penal sobre não serem a multa e as providências restritivas de
preexista ao processo. A infração penal é reconhecida pelo direito sanções penais em sentido estrito, também colide de
processo, mas tem a sua existência como fato histórico frente com o texto legal e não merece ser aceito, porque é a
marcada, independentemente do ajuizamento da ação. própria lei que denomina de pena restritiva de direito ou
Basta considerarmos a cifra oculta dos crimes para multa (artigo 76, caput) as medidas em tela, assinalando que
concluirmos que não são todas as infrações penais seguidas a condenação não fique constando dos registros criminais
da aplicação da sanção, bem como as penas só aparecem (artigo 84, parágrafo único).
como tais se logicamente antes, na sentença mesma, Nem sempre a escolha do nomen juris do instituto, pelo
reconhecer o juiz a ocorrência do crime. legislador, é a mais feliz. Todavia, tanto a multa como as
Observe-se que ainda que se convença da prática do penas restritivas de direito são consideradas sanções penais,
delito, se extinta a punibilidade por alguma causa, o juiz não em razão de que sempre se tenha exigido fossem aplicadas
imporá pena, motivo suficiente, segundo pensamos, para não somente pelo devido processo legal em resposta ao
aceitarmos a idéia de que a sanção antecede ao processo, reconhecimento da responsabilidade penal do acusado.
sendo apenas declarada, quando da homologação. Ainda que o suposto autor do fato queira submeter-se à
A sentença que impõe a pena, ainda que fruto de acordo multa, sem o processo não poderá fazê-lo e a própria relação
entre as partes traz algo mais, além do simples processual, sem os requisitos mínimos para a sua existência
reconhecimento da existência do crime ou da contravenção. e validade ² prova da existência da infração penal e indícios
Carrega em seu bojo a autorização para que se exija do de autoria ² não será instaurada por falta de justa causa.
suposto autor do fato, coativamente, determinada prestação. Portanto, se as medidas em foco derivam de um crime
A execução de forma autônoma, tendo por base uma (ou contravenção), não se discute a nosso ver que se trata de
sentença ² título judicial ² é uma característica do processo sanções penais, nada havendo de sui generis no seu processo
de imposição que lhe contamine a natureza jurídica, embora novidade, adverte com razão Alberto Silva Franco, que
seja diferente no que toca a diversos aspectos de seu provoca a meditação quando, por oportuno, acrescenta:
procedimento e ao tipo de cognição que é produzida em seu
interior. Como entender que se possa, mediante um
Poder-se-ia argumentar, dada a novidade da matéria, acordo, aplicar, por força do art. 76 da Lei no
que estamos diante de uma sentença constitutiva necessária, 9.099/95, pena restritiva de direitos ou multa,
no plano penal. conversíveis em pena privativa de liberdade, sem
Em um primeiro instante ficamos animados a deste que o acusado responda ao devido processo
modo caracterizar a sentença, pois que, diferentemente da legal?43
decisão emitida em processo condenatório comum, o
princípio da consensualidade opera em certa medida, Mais ainda, na mesma linha e levando em conta o
fazendo valer ² ainda que com restrições ² a vontade dos fundamento de legitimidade democrática do exercício da
principais atores: o acusador oficial e o (suposto) autor do função jurisdicional, cabe também indagar com Ferrajoli
fato. como é possível conceber o nexo entre crime e sanção a
Seria o caso de imaginarmos uma deliberação anterior partir de um comportamento processual do acusado e não
ao processo, condicionada ao ajuizamento da manifestação, do valor de verdade sobre a existência da infração penal e a
para que se transforme a situação jurídica do autor do fato. responsabilidade de seu autor, demonstrado ao longo do
Clamam-se como constitutivas as decisões proferidas na processo, em contraditório.44
Revisão Criminal e a de interdição de direitos prevista no Parece que a resolução da perplexidade não decorre da
artigo 47 do Código Penal,42 na sentença condenatória. admissão de que, à vista dos requisitos definidos em Lei, o
Na segunda hipótese, porém, como também na que está Ministério Público esteja vinculado ao ato de propor o
sendo objeto de nossos estudos, não parece correto falar em acordo sobre a pena, porque se constitui em direito público
função constitutiva, quando temos a imposição de uma subjetivo do autor do fato, o que só faz aumentar as
prestação, cuja execução poderá ensejar ² em alguns casos dificuldades.
necessariamente ensejará ² um processo autônomo de Segundo essa linha de pensamento, recusando-se o
execução. Ministério Público a oferecer a proposta, o juiz não está
A sempre lembrada distinção de Pará Filho, em virtude inibido de tomar a iniciativa, como parte da doutrina e
da qual a imposição de uma prestação (leia-se, sanção penal) mesmo alguns tribunais se inclinam a aceitar.45
faz a diferença entre a sentença condenatória e a
constitutiva, que se basta a si mesma, na medida em que
43 %ROHWLP ,%&&ULP6mR3DXORQS QRY³2V TXHVWLRQDPHQWRV
transforma uma situação jurídica, deve ser invocada para SURYRFDGRV SHOD /HL Q ´ $WXDOPHQWH SRU IRUça do disposto na
afastarmos a idéia de função constitutiva. Lei nº 9.268, de 1/4/1996, a multa penal é considerada dívida de valor e
Resta, pois, trabalharmos com o modelo de sentença de não pode mais ser convertida em prisão.
44 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 609.
condenação, em face do qual existem algumas causas de 45 A Escola Superior da Magistratura criou uma Comissão Nacional para a
perplexidade. A prudência é a melhor conselheira diante da Interpretação da Lei nº 9.099/95, presidida pelo Ministro Sálvio de
Figueiredo Teixeira e composta dos Ministros Luiz Carlos Fortes de Alencar
e Ruy Rosado de Aguiar Júnior, dos Desembargadores Weber Martins
42 Cintra, Antonio Carlos de Araújo, et al. Teoria Geral do Processo. 10ª ed. Batista, Fátima Nancy Andrighi e Sidnei Augusto Beneti, dos Professores
São Paulo: Malheiros, 1994, p. 304. Ada Pellegrini Grinover e Rogério Lauria Tucci e do Juiz Luiz Flávio
Fosse dessa maneira, estaríamos diante de literal promotor de justiça terá que, oralmente como na
desrespeito ao que dispõe o artigo 129, inciso I, da denúncia, descrever e atribuir ao autor do fato
Constituição, que defere ao Ministério Público privatividade uma conduta típica, ilícita e culpável,
para a propositura da ação penal pública, pois outra não individualizando-a no tempo (prescrição) e no
pode ser a natureza da iniciativa do Ministério Público, salvo espaço (competência de foro). Deverá, outrossim, a
a de exercício de direito de ação condenatória, pela forma nível de tipicidade, demonstrar que tal ação ou
sumária e consensual, porquanto não há pena sem processo omissão caracteriza uma infração de menor
e, pelo princípio acusatório, não há processo condenatório potencial ofensivo (competência de juízo), segundo
sem ação. Nulla poena sine judicio. Nullum judicium sine definição legal (art. 61). Vale dizer, na proposta se
accusatione. encontra embutida uma acusação penal
Para Afrânio Silva Jardim o procedimento instituído (imputação mais pedido de aplicação de pena).47
pelo artigo 76 da lei é o devido processo legal para a
imposição daquelas sanções,46 cumprindo, pela clareza e Talvez careça de explicação a questão probatória,
objetividade da abordagem, transcrevê-la: colocada em relevo à luz da consensualidade, pela qual a
Por outro lado, estabelecemos uma premissa busca da verdade é substituída pela prevalência da vontade
para compreensão do sistema interpretativo convergente das partes ou, como prefere Ferrajoli, porque a
proposto: quando o Ministério Público apresenta prova e a sanção penal não são mais objeto principal da
em juízo a proposta de aplicação de pena não atividade jurisdicional, que se concentrará na conduta
privativa de liberdade, prevista no art. 76 da Lei processual do réu e na (escassa) gravidade da infração penal.
no 9.099/95, está ele exercendo a ação penal, pois Para os defensores do devido processo legal da
deverá, ainda que de maneira informal e oral ² transação penal a resposta é encontrada no fato do
como a denúncia ² fazer uma imputação ao autor dispositivo legal conter regras gerais e abstratas, aptas a
do fato e pedir a aplicação de uma pena, embora considerar o desenvolvimento regular do processo de
esta aplicação imediata fique na dependência do proposta de pena, iniciado a partir do oferecimento, pelo
assentimento do réu. Em outras palavras, o Ministério Público, de sua proposta de sanção.
Existem requisitos objetivos e subjetivos que devem ser
Gomes. Das conclusões a que chegaram ressalta a Décima Terceira (Se o
observados, sendo certo que o autor do fato estará
Ministério Público não oferecer proposta de transação penal e suspensão acompanhado de defensor, sob pena de nulidade da
do processo nos termos dos arts. 79 e 89, poderá o juiz fazê-lo), que transação.
preserva a iniciativa do órgão de acusação estatal, quanto a transação, na Entendemos que o exercício da ampla defesa vem
fase preliminar, o que é inócuo, se admite a iniciativa judicial,
posteriormente, após o ajuizamento da causa mediante denúncia oral. O sustentado na obrigatoriedade da orientação do autor do fato
Superior Tribunal de Justiça, no recurso de Habeas Corpus nº 6.410-PR, por advogado, além da necessidade de se documentar a
na sua 6ª Turma, tendo por relator o Ministro Vicente Leal (Recorrentes: proposta, que será feita oralmente.
Omires Pedroso do Nascimento e outro e recorrido o Tribunal Regional
Federal da 4ª Região), em decisão de 13/5/1997, deliberou que a suspensão A escrituração, nestes casos, não fere o objetivo de
condicional do processo é direito subjetivo do réu, cabendo ao juiz decidir diminuição da formalidade do procedimento, porque
por ela mesmo quando omisso o órgão de acusação pública.
46 Jardim, $IUkQLR 6LOYD ³2V 3ULQFtSLRV GD 2EULJDWRULHGDGH H GD
Indisponibilidade nos Juizados EspecLDLV &ULPLQDLV´ in Boletim do 47 Jardim, $IUkQLR 6LOYD ³2V 3ULQFtSLRV GD 2EULJDWRULHGDGH H GD
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 48, São Paulo, nov/1996. ,QGLVSRQLELOLGDGHQRV-XL]DGRV(VSHFLDLV&ULPLQDLV´REFLW
resultará da redução a termo de pronunciamento oral do comunidade mereçam mais séria reprovação.
Ministério Público, servindo ao propósito de precisar a res in Positivada a constitucionalidade da transação penal48,
judicio deducta, para o fim de evitar a renovação indevida da apesar da baixa densidade das garantias fundamentais, cabe
demanda e assegurar que o procedimento está sendo sublinhar que, ao contrário do que já foi defendido,49 a
aplicado a fatos legalmente previstos, conforme suporte consciência da prevalência constitucional do princípio
mínimo probatório que também está sujeito a ser analisado acusatório não permite que o juiz inicie, de ofício, como
pelo defensor e pelo juiz. verdadeira jurisdição sem ação, tal modelo processual, ainda
Em conjunto com este dado, que expõe claramente a que o representante do Ministério Público não tenha
justa causa para a modalidade especial de ação penal oferecido a proposta à luz do entendimento pessoal da
condenatória, acrescentamos que a tese da impossibilidade ausência de condições subjetivas, do que discorda o
de se renunciar ao exercício de direitos fundamentais, em magistrado.
vista de um conflito instaurado entre o particular e o Estado, Pode-se frisar, embora não seja certo, que semelhante
está sendo mitigada pela própria Constituição da República postura equivale a estabelecer um âmbito de
em consideração à autodeterminação do acusado e por conta discricionariedade para a atuação do órgão de acusação, a
do juízo de benefício que possa concretamente auferir se ponto de introduzir, indiretamente, o princípio da
transacionar. Se o réu pode confessar, apesar de lhe ser oportunidade.
assegurado o direito a não se incriminar ² nemo tenetur se Tratando do sistema espanhol Teresa Deu menciona
detegere ², estamos andando na mesma direção quando que tal campo de discricionariedade não pode ser justificado,
aceitamos possa ele transigir sobre a sanção penal, desde que de maneira semelhante ao que ocorre no Direito
não se lhe sacrifique a própria liberdade, nem mesmo Administrativo, isto porque a aplicação do princípio da
indiretamente, o que o princípio da proporcionalidade legalidade penal, em sua faceta jurisdicional, impede a
estaria a impedir. implantação de critérios de oportunidade que incidam sobre
Mais importante de tudo está em que ao acusado, que a a existência, ou não, da persecução penal.50
lei por estranhas razões quis denominar autor do fato, é A primeira ressalva, incidente sobre a objeção, deflui do
necessário informar minuciosamente em que consiste a fato de que as alternativas postas à disposição do órgão de
transação penal e quais são as suas conseqüências. Trata-se acusação implicam, necessariamente, na propositura da ação
do dever de instrução que condiciona a validade que se penal.
operará da renúncia a mais ampla defesa. Não sendo caso de arquivamento, ou o Promotor de
Enquanto o ideal da jurisdição penal está relacionado ao Justiça oferece a proposta de pena não restritiva da liberdade
grau de verdade que a sentença deve conter, e, portanto, a ou oferece a denúncia. Nos dois casos, oferecendo-se
limitação à ampla defesa e ao contraditório, ainda que proposta de transação penal ou denúncia, não vigora
prevista na Constituição, deve ser evitada, a projeção das
alternativas penais derivadas das soluções consensuais é, no 48
Essa é hoje a posição dominante, contra a qual nos manifestamos em
marco cultural de hoje, representativa da estratégia em Elementos, op. cit.
direção a descriminalização das condutas, reservando-se o 49 Prado, *HUDOGR ³'D 1DWXUH]D -XUtGLFD GD 6HQWHQoD +RPRORJDWyULD GH
direito e o processo penal para as infrações que ao juízo da Acordo sobre a Pena ² /HLQ´in Caderno Científico do Mestrado e
Doutorado em Direito da Universidade Gama Filho, nº 4, ano III, Rio de
Janeiro, 1996, pp. 31-46.
50 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 38-39.
princípio algum de oportunidade. A segunda oposição refere- ao investigado. Chancelada a solução, em instância superior,
se à possibilidade do acusado deixar de fruir um benefício teríamos o controle da atuação do Promotor de Justiça sem
acessório, embora importante, ao tipo específico de incluir o juiz em uma etapa ainda precoce e preparatória da
condenação, em consideração à opinião do Promotor de ação penal tradicional.
Justiça. Figueiredo Dias, tantas vezes citado, assevera que A objeção de ordem prática derivada quer da
deferir ao Ministério Público alguma discricionariedade não dificuldade que o acervo de autos de investigação pudesse
significa criar um espaço onde possam frutificar tratamentos opor ao eficiente funcionamento do Conselho Superior do
privilegiados ou discriminatórios, mas, sim, reconhecer a Ministério Público, ou ainda em virtude da perda de
importância que a instituição merece no contexto da celeridade que a implantação da providência poderia
construção democrática da política criminal. acarretar, teria de ser arrostada pela adequada estruturação
Aos abusos que podem decorrer do fato do Promotor de pessoal e material da instituição, de modo a torná-la apta a
Justiça indevidamente, na visão do juiz, não oferecer a apresentar respostas rápidas e eficazes às demandas que
proposta de pena, opõe-se a possibilidade de controlar-se a dizem respeito à persecução penal.
ação, no âmbito interno do Ministério Público, velando-se A garantia da preservação do princípio acusatório, com
por sua moralidade e impessoalidade. Basta, para isso, o inegável reconhecimento das graves funções atribuídas aos
recorrer-se à aplicação analógica do controle pelo membros do Ministério Público, justificaria com sobra o
Procurador-Geral, regulado no artigo 28 do Código de aperfeiçoamento da instituição.
Processo Penal. A objeção de ordem jurídica dos defensores da
Mesmo se no lugar da proposta o representante do transação penal como direito público subjetivo do acusado,
Ministério Público opte pelo oferecimento direto da quanto ao exercício deste direito ser controlado não pelo
denúncia, o procedimento deverá ser sustado para que o juiz Judiciário, do qual não se pode excluir a apreciação de lesão
remeta ao Procurador-Geral os autos, alertando quanto à ou ameaça de lesão a direito, mas pelo titular da ação
desatenção sobre a obrigatoriedade da solução consensual. condenatória, estará superada à vista da natureza jurídica da
Caso o Procurador-Geral concorde com o Promotor de proposta de transação ² ação penal condenatória especial
Justiça, não haverá o necessário consenso a conferir base à não tradicional e não direito público subjetivo do réu ² em
transação e, em vista disso o processo retomará seu curso razão do que se pode afirmar que ninguém pode invocar o
natural. Se for o contrário, caberá ao próprio Procurador- direito de sofrer sanção penal.
Geral formular a proposta de pena ou delegar a formulação a Quando se assevera que, em determinadas condições, o
outro Promotor de Justiça, homologando o juiz o acordo, se condenado tem direito público subjetivo ao sursis se está
este for concretizado, e deixando de receber a denúncia já afirmando que, com a sua responsabilidade determinada
oferecida porque o conflito haverá sido resolvido legalmente, em um processo penal com ampla defesa e
definitivamente. contraditório, reconhece-se que entre as alternativas de pena
O ideal, todavia, para a completa aproximação ao a correta e adequada é aquela representada pelo sursis.
princípio acusatório, estaria em a lei prever que antes de Entretanto, na ausência de proposta de pena não temos
oferecer a denúncia oral e à semelhança do que propomos como argumento as alternativas de sanção consideradas
sobre o arquivamento, o Promotor de Justiça comunicasse concretamente, porque sequer se concluiu sobre a existência
ao Conselho Superior do Ministério Público as razões do não da infração penal e a responsabilidade do agente. Há um
oferecimento da proposta, disso dando ciência ao ofendido e processo condenatório, com requisitos de validade e eficácia,
a ser percorrido e superado antes das alternativas penais assinado, sem iniciativa ou concordância do autor, é dispor
emergirem. do conteúdo material do feito, à revelia de uma das partes,
quebrando, assim, uma das estacas de sustentação do
5.2.2. DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO triângulo.52
O mesmo acontece quando se trata da suspensão do 5.2.2.1. Da Natureza Jurídica ² Primeira Parte
processo.51 Ficou consignado em passagem anterior que o
exercício do direito de ação não se esgota com o Afirmar a natureza jurídica de um determinado
oferecimento da acusação. Pelo contrário, o conjunto de instituto significa indicar a que categoria geral aquele
relações processuais que ordenadamente se sucedem, a instituto específico está integrado.
partir daí, depende dos atos processuais que, No caso da suspensão, o fenômeno percebido consiste
reciprocamente, vinculam, ligam, autor, réu e juiz. em o Ministério Público formular proposta ao réu, visando
Admitir-se, como o faz a conclusão da Comissão de obter dele certos comportamentos positivos e negativos ao
Interpretação da Lei no 9.099/95 ou o mencionado acórdão longo de um tempo determinado, de modo a ver declarada
do e. Superior Tribunal de Justiça, que o juiz pode propor extinta a punibilidade do acusado pelo crime que funda a
(ou decidir pela, forma literal que não esconde a realidade da causa de pedir da ação penal.
medida) a suspensão do processo, que, por sua vez, resultará Para que a extinção da punibilidade se concretize, é
na extinção da punibilidade do acusado, ao final do prazo necessário que o acusado, orientado por seu Defensor, aceite
a proposta e o juiz a homologue. Provas não serão
produzidas e o acordo somente será válido se aperfeiçoado
51 Artigo 89 da Lei nº 9.099/95: Nos crimes em que a pena mínima
cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, depois de recebida a denúncia, com a constatação da
o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão existência de justa causa para a ação penal.
do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo Finalmente, a medida só é cabível para determinado
processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os
demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art.
grupo de infrações penais, originando-se a extinção de
77 do Código Penal). § 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, punibilidade na hipótese de consumação do período de prova
na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o sem revogação.
processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes
condições: I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; II -
Parece fora de dúvida que há dois aspectos distintos a
proibição de freqüentar determinados lugares; III - proibição de serem estudados: a proposta que se formula e a decisão que a
ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz; IV - homologa, depois da proposta ser aceita pelo réu. Além
comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para disso, há de se considerar os efeitos que gera a não-
informar e justificar suas atividades. § 2º O Juiz poderá especificar
outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que revogação da suspensão.
adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado. § 3º A suspensão será No tocante à formulação da proposta, duas correntes
revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por
outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano. 52
§ 4º A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, O Supremo Tribunal Federal resolveu em definitivo a questão por meio do
no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra verbete 696 da Súmula, cujo teor é o seguinte: Reunidos os pressupostos legais
condição imposta. § 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o
extinta a punibilidade. § 6º Não correrá a prescrição durante o prazo de Promotor de Justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao
suspensão do processo. § 7º Se o acusado não aceitar a proposta prevista Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo
neste artigo, o processo prosseguirá em seus ulteriores termos. Penal.
digladiam no direito brasileiro. De um lado, estão os restritas aos casos de julgamento do pedido do autor, com a
defensores de que se trata de direito público subjetivo do condenação ou absolvição do réu. Também no âmbito penal
acusado; do outro, estão os que postulam sua qualidade de as soluções consensuais impõem definitiva resolução do
parte integrante do direito de ação. conflito (vide a transação penal), ao tempo em que o
A nosso juízo, a definição da natureza jurídica da reconhecimento da prescrição ou de qualquer causa de
proposta de suspensão do processo está condicionada à extinção da punibilidade cumpre o mesmo papel da
verificação do que acontece quando a proposta é aceita pelo declaração da prescrição e da decadência, no processo civil,
réu e homologada pelo juiz. levando à extinção do processo com julgamento do mérito.
É fácil verificar que a suspensão condicional do Diante deste quadro, é válido assinalar que a suspensão
processo efetivamente nada suspende. Ao contrário da condicional do processo imporá às partes outro percurso
suspensão do processo, prevista no artigo 366 do Código de processual distinto da caminhada probatória, mas orientado
Processo Penal, que paralisa o curso do processo de pelo mesmo fim desta última, tal seja, oferecer definitiva
conhecimento em relação à atividade de instrução, solução ao conflito de interesses penal. Só haverá paralisação
impedindo dessa maneira que o pedido de condenação seja da atividade de instrução mediante produção de provas,
apreciado pelo juiz, e das demais situações de suspensão estando o juiz, por isso mesmo, impedido de julgar o pedido
processual derivadas da necessidade de aguardar decisão de do autor. No mais, o processo seguirá em busca da solução
questão prejudicial pertinente ao estado de pessoa (artigo 92 que, de acordo com a legislação, é eficaz para recompor o
do Código de Processo Penal), e eventualmente nos tecido social supostamente afetado pelo delito. Não há
incidentes de falsidade (artigo 145 do Código de Processo suspensão propriamente dita.
Penal) e de insanidade (artigo 149 do Código de Processo As condições da proposta e da suspensão não são pena
Penal), a suspensão condicional do processo paralisa apenas criminal e a sentença homologatória não tem natureza de
a marcha processual destinada à produção das provas pelas condenação. Antes, a suspensão representa justamente a
partes. opção legislativa pela não condenação como forma de
O autor da ação penal e o réu poderão encontrar uma composição do conflito, em situação bastante semelhante,
forma de composição do conflito de interesses penal que não por exemplo, à prescrição.
dependa de ficar demonstrada a existência da infração penal Como as condições da suspensão do processo não têm
e a responsabilidade do processado. caráter de sanção, nunca poderão equivaler às sanções
No lugar das provas dos fatos que sustentam as principais ou alternativas previstas na legislação penal. A
pretensões das partes, figuram as atitudes que o réu se solução realmente exclui a aplicação de qualquer pena e por
compromete a adotar e o autor entende suficiente. Com isso, essa razão é inviável socorrer-se o juiz das medidas
vencido o período de prova, se a suspensão condicional do prescritas como sanções criminais, ainda que ao argumento
processo não for revogada, considera-se definitivamente de que não poderão ser implementadas compulsoriamente. A
solucionada a questão penal, isto é, com força de coisa implementação compulsória das penas configura mera
julgada material. possibilidade das penas derivadas de condenação criminal
Note-se que se tratará de decisão de mérito, sujeita a transitada em julgado, que poderão ser executadas sem
consolidar coisa julgada material tanto quanto as sentenças oposição do condenado (pagamento de multa, prestação
absolutórias. À semelhança do que acontece no processo pecuniária etc.) e não considera os efeitos psicológicos das
civil, as soluções de mérito no âmbito penal não ficam providências.
Com tudo isso, o que se constata é que a suspensão independência dela ter confessado (incisos LIV e LV do
condicional do processo atua como meio de composição do artigo 5o da Constituição da República e artigo 158 do Código
conflito de interesses penal, pelo qual veicula-se causa de de Processo Penal).
extinção da punibilidade. A decisão de suspensão é Por fim, é necessário sublinhar de uma vez por todas
homologatória e a suspensão tem natureza jurídica de que o direito de ação não se esgota, no processo penal de
procedimento penal de conhecimento. Em si mesma, não é condenação, no ato de oferecer a denúncia ou queixa, como
direito do réu ou do autor. É tão-só o devido processo legal Ada Pellegrini Grinover teve a oportunidade de acentuar.53
de uma forma especial de composição do conflito. Assinala a jurista que:
5.2.2.2. Da Natureza Jurídica ² Segunda Parte Nessa ampla acepção, ação e defesa não se
exaurem, evidentemente, no poder de impulso e no
Com base nestas considerações, é possível definir a uso das exceções, mas se desdobram naquele
natureza jurídica da proposta. conjunto de garantias que, no arco de todo
Com efeito, se a suspensão condicional do processo procedimento, asseguram às partes a
constitui modelo de procedimento de resolução do conflito possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de
de interesses que opõe de forma atenuada a pretensão produzirem suas provas, de aduzirem suas razões,
acusatória à pretensão de resistência da defesa, é natural que de recorrerem das decisões, de agirem, enfim, em
a proposta represente um dos caminhos pelos quais o Estado juízo, para a tutela de seus direitos e interesses,
busca alcançar a efetividade do direito penal, efetividade que utilizando toda ampla gama de poderes e
consiste na restauração de uma hipotética paz social, mas faculdades pelos quais se pode dialeticamente
que também pode ser compreendida como esforço de preparar o espírito do juiz.
harmonização de interesses contrapostos, de sorte a
proporcionar condições dignas de vida para todos os Diante do exposto, mostra-se irrefutável a tese de que a
envolvidos no drama do delito. proposta de suspensão representa um dos elementos
Ora, a instauração do processo penal de condenação constitutivos do direito de ação penal condenatória. Direito
não pode ser tida como direito do acusado. Da mesma de ação que em uma de suas faces se apresenta como o
maneira, não é certo falar que o indivíduo, ainda não direito de estar em juízo e pedir ao juiz a adoção de uma
processado, tem direito a algum tipo de sanção penal. O solução diferente da pena criminal, nos casos em que a lei
acusado terá direitos, deveres, ônus e faculdades no processo autoriza esta solução.
penal. Não terá, porém, direito a que o titular da ação penal O poder de impulso típico da promoção da ação penal é
o processe como o agente não tem direito a sofrer pena. complementado com a indicação, pelo autor, de que o Estado
A submissão do réu ao processo acontece ficará satisfeito com a aplicação de medida distinta da pena
compulsoriamente e depende da presença de requisitos criminal, visando resolver o conflito que a pretensão do
pertinentes à ação (as chamadas condições da ação) e ao acusador carrega.
processo (a justa causa e os pressupostos processuais).
A submissão de alguém a uma sanção criminal depende
53 O Processo Constitucional em Marcha: Contraditório e Ampla Defesa em
de estarem provadas a existência do delito e a Cem Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, São Paulo:
responsabilidade penal da pessoa acusada, com Max Limonad, 1985, p. 11
Esta posição, além de guardar coerência com o sistema agente nada mais caiba senão praticar o ato. O motivo do ato
processual acusatório estruturado constitucionalmente, é motivo de fato e não de direito.
velando pela autonomia da ação em face da jurisdição e Não é o que ocorre relativamente à proposta.
reservando à defesa a tarefa de resistir à pretensão, é a única Examinando o artigo 89 que está sendo comentado, resulta
que assimila por inteiro a idéia da solução consensual do claro que um dos requisitos para a homologação da
conflito de interesses penal. suspensão é a simetria entre a situação pertinente à conduta
Assim é que as soluções só podem ser denominadas de e, do outro lado, aquela que se extrai dos requisitos do
consenso se ambos os interessados estiverem de acordo sursis, o que se traduz da expressa remissão ao artigo 77 do
quanto ao estipulado. O fundamento de uma resolução dessa Código Penal.
natureza é a autonomia da vontade, que só existirá A Lei no 9.099/95 parece orientada a permitir a solução
plenamente se o acusador e o acusado puderem concorrer alternativa somente se for adequada à culpabilidade do
com a sua vontade livremente. Não haveria autonomia de acusado (artigo 77, inciso II, do Código Penal). Ora, isto
vontade se uma das partes estivesse obrigada a transigir! significa dizer que há de ser levado a cabo um juízo prévio ²
Portanto, é acertada a posição do Supremo Tribunal provisório e antecipado ² sobre a reprovação pessoal da
Federal quando aponta para a iniciativa do Ministério conduta indicada na denúncia.
Público relativamente à formulação de proposta de E é inevitável que este juízo seja conotativo, pois apenas
suspensão (Habeas Corpus no 74.153-3±SP, rel. Min. Sydney com atribuição de valor ao comportamento, em caráter
Sanches, impetrante Edmo Pontes de Magalhães, jul. provisório e tendo em vista as informações da investigação
3/12/1996).54 criminal, será possível conceber a correspondência
5.2.2.3. Da Natureza Jurídica ² Terceira Parte hipotética entre a culpabilidade e o merecimento da solução
diferenciada da pena criminal.
Fixada a natureza jurídica da proposta, cabe indagar: o Por conta desse fator, todos os componentes da situação
que fazer se o Ministério Público, sem justificativa, deixar de fática que autoriza a proposta não estão presentes de
formular a proposta? imediato, a ponto de transformar a própria situação de fato
Em primeiro lugar, temos que destacar que a decisão do em motivo de fato e subordinar o ato do Ministério Público,
Ministério Público a respeito do oferecimento da proposta vinculando-o. Uma intervenção do agente (leia-se Ministério
não é ato vinculado, no sentido estrito. Por ato vinculado, Público) se faz necessária e o papel desta intervenção é o de
entende José dos Santos Carvalho Filho55 aquele praticado determinar a concreta política criminal aplicável em cada
em virtude de uma situação de fato, delineada na norma caso, gerando a eleição pelo Ministério Público da situação
legal, de modo tal que, verificada a situação de fato, ao fática que motivará a aplicação da regra jurídica e a
formulação da proposta. A culpabilidade do agente comporta
54 Em outra decisão, porém, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a a solução da suspensão? Em caso afirmativo, o Ministério
necessidade da proposta do Ministério Público, mas o voto expressamente Público formula a proposta; caso contrário, de forma
referiu-se a esta proposta como direito subjetivo do acusado (Habeas
Corpus nº 75.197-1-PR, rel. Min. Moreira Alves, impetrante Lúcio Jatobá, fundamentada deixa de fazê-lo. Somente o exame da
1ª Turma, jul. 19/8/1997, unânime), seguindo assim a posição pioneira do situação de fato, pelo Ministério Público, indicará a
Superior Tribunal de Justiça (RHC nº 6.410/PR, rel. Min. Vicente Leal, propriedade de se formular a proposta de suspensão.
recorrente Omires Pedroso do Nascimento, por maioria).
55 Manual de Direito Administrativo, 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, Com isso, é correto afirmar que o ato do Ministério
2000, p. 82. Público é discricionário, muito embora o espaço de atuação
seja bastante limitado. Acrescente-se que discricionariedade acusatória de nosso processo penal ferirá gravemente o
não se confunde com arbitrariedade, que estará presente na princípio da autonomia de vontade das partes, obrigando o
ação desvinculada de qualquer situação de fato prevista na Ministério Público a acatar solução definitiva do conflito de
lei.56 interesses ainda quando discorde dela. Será o mesmo que
A atuação do Ministério Público deverá ser reduzir o exercício de ação penal ao mero ato de denunciar,
fundamentada, tanto quando oferece a proposta como retirando do Ministério Público a condição de parte.
quando deixa de fazê-lo, propiciando o controle necessário A feição acusatória eleita na Constituição não permite
ao juízo de discricionariedade ² com exclusão da ao juiz tal providência, cumprindo-se o controle da
arbitrariedade ² e às regras que regulam a vida democrática, legalidade, impessoalidade e moralidade da abstenção do
pois não há poder jurídico legítimo em uma democracia que representante do Ministério Público, exclusivamente no
se exerça sem a possibilidade real de controle. âmbito interno da sua instituição, pela provocação ao
Caso o acusado e/ou o juiz entendam que a proposta Procurador-Geral.
tinha de ser apresentada e indevidamente não o foi, terá Por todo o exposto, defendemos que só estará
inteira aplicação o artigo 28 do Código de Processo Penal, preservado o princípio acusatório se a suspensão condicional
por analogia. Com efeito, dispõe este artigo que, se o do processo for homologada em face da livre manifestação
Promotor de Justiça deixar de oferecer denúncia quando do acusador e do acusado.
devia fazê-lo, pronunciando-se pelo arquivamento, o juiz, Este tem sido o entendimento do eg. Supremo Tribunal
discordando, remeterá ao Procurador-Geral os autos de Federal, conforme pode ser vislumbrado das decisões, cujas
inquérito ou peças de informação. O Procurador-Geral então ementas, para finalizar, transcrevemos a seguir:
insistirá no arquivamento ou exercerá a ação penal,
oferecendo denúncia ou designando outro Promotor de Habeas Corpus.
Justiça para oferecê-la. Trata-se de uma forma de controlar o Improcedência da alegação de não ter sido o
exercício da ação penal pública, regulada pelo princípio da defensor do ora paciente intimado para a
obrigatoriedade. apresentação das razões de apelação.
De acordo com nosso entendimento, a proposta de No caso, por não haver o Ministério Público,
suspensão constitui modalidade alternativa de exercício da quando do oferecimento da denúncia, proposto a
ação penal pública. Assim, estará o Ministério Público suspensão do processo, não há razão para
obrigado a exercitá-la sempre que presentes os requisitos decretar-se a nulidade deste a partir desse
legais. Caso o Promotor de Justiça ou Procurador da oferecimento.
República deixe de formular a proposta, o juiz controlará a Habeas corpus indeferido, determinando-se a
inércia relativamente ao exercício da ação penal pública, restituição dos autos da ação penal à origem.57
remetendo os autos ao Procurador-Geral. Ao Procurador-
Geral caberá dar a última palavra, formulando a proposta ou Habeas Corpus. Impetrado contra acórdão
ratificando seu não-oferecimento. que, em 13/12/95, sem pedir manifestação do
Outra solução que despreze a intervenção do Ministério Ministério Público sobre a admissibilidade da
Público além de não preservar a estrutura fundamental
57 Habeas corpus nº 75.197-PB, julgado pela 1ª Turma, relator Ministro
56 Carvalho Filho, José dos Santos. Ob. cit., p. 82. Moreira Alves, publicado do Diário de Justiça da União em 24/10/1997.
suspensão do processo prevista no art. 89 da Lei n o
9.099/95, em vigor desde 27/11/95, confirmou a
sentença de 19/6/95, que condenara o paciente a
15 dias de detenção e 50 dias-multa, por
infringência do art. 330 do Código Penal.
Efeito retroativo das medidas
despenalizadoras instituídas pela citada Lei no
9.099 (Precedentes do Plenário: inquérito no 1.055,
D.J. de 24/5/96).
Pedido deferido para, anulados o acórdão e a
sentença, determinar-se a remessa dos autos da
ação penal ao Tribunal Especial Criminal, para a
aplicação, no que for cabível, do disposto nos
artigos 76 e 89 da Lei no 9.099-95.58
6 ³,QWURGXomR D 0DUFXVH (P EXVFD GH XPD pWLFD PDWHULDOLVWD´ in Herbert 7 Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro, processo nº 90/02843-2,
Marcuse: Cultura e Sociedade, São Paulo: Paz e Terra, 1997. decisão de 10/7/1998.
interpretação legal mais condizente com os direitos procedimento de execução deve ser a oral, ao contrário do
fundamentais, premissa básica da democracia. que está preconizado no artigo 196 da lei de execução. Hoje o
Isso não tira, todavia, o caráter excepcional da decisão. procedimento na execução penal é tudo, menos
A seguir prestigiados autores, como Mirabete,8 os juízes predominantemente oral.
decretam a revogação da remição, que termina por alcançar O Projeto de Lei no 2.687-96, em tramitação no
a totalidade do tempo trabalhado e atingir o condenado, Congresso, prevê a modificação dos artigos 195 a 197 da LEP
punindo-o hoje com o sacrifício de tanto tempo empenhado e introduz o procedimento oral e a audiência como regra. É
muito antes de viver o problema que resultou na falta grave. limitado quanto à possibilidade das partes provarem, o que
Por isso é que, a nosso juízo, a reformulação teórica do deve ser melhorado, contudo, avança ao incorporar a
processo de execução há de implicar em alterações práticas audiência, que tende a reduzir as distâncias entre o juiz e o
sensíveis no plano cultural. Além do deslocamento do condenado, seu jurisdicionado na execução.
julgador para o ponto central do processo de execução, Um procedimento oral, no qual, ainda conforme
deixando ao Ministério Público a iniciativa, é imperativo que Hassemer, o juiz desça do seu pedestal e encare as partes
se assegure a dinâmica do contato pessoal entre juiz e como pessoas portadoras de direitos e deveres, ônus e
condenado, propiciada verdadeiramente pela predominância faculdades, e que esteja inserido em um contexto de
da forma oral de procedimento, que pode oferecer ao juiz distribuição rigorosa das funções na execução, entre juiz,
algo das sensações e das dificuldades experimentadas pelos Ministério Público e condenado, assistido por Defensor,
condenados no cumprimento das mais variadas modalidades pode oferecer soluções equânimes, justas, para situações
de pena e dar ao magistrado, que as desconhece, o sentido diferenciadas no transcurso do processo, em virtude das
dos limites e possibilidades reais dos seres humanos em quais mesmo ao condenado por tráfico não se negue,
condições desfavoráveis. sistematicamente e sem motivação jurídica, quando for o
Hassemer chama a isso de compreensão cênica, cujo caso, a substituição da prisão por outra medida.
objetivo consiste em, reconhecendo-se as peculiaridades da A oralidade envolverá aí, por outro lado, cuidados
comunicação humana que não está limitada a palavras, e especiais com o emprego da tecnologia no procedimento de
menos ainda a palavras escritas, que o juiz interpreta na hora execução. Enquanto é indiscutível que a era da informática e
de julgar como se estivesse interpretando um texto escrito, da telemática pode oferecer vantagens indiscutíveis, em
uma obra literária qualquer, fornecer as condições de termos de controle do tempo de duração das penas e
comunicação próximas ao ideal.9 O sentido dos gestos, tom medidas e da celeridade na produção dos atos jurídicos
de voz, a força de argumentos que um defensor pouco hábil necessários, um dos pressupostos elementares do processo
desconsidera e, principalmente, a possibilidade do oral está em permitir o contato direto entre o juiz e a parte,
condenado sentir-se confiante para revelar ao juiz, contato que não deve ser mediado por sofisticados recursos
diretamente, as experiências mais arbitrárias que possa estar de transmissão de voz e imagem, distanciando fisicamente os
sofrendo, tudo isso demonstra que a forma primeira do protagonistas do processo e deixando um deles isolado em
ambiente que lhe pode ser hostil, justamente aquele sujeito
mais necessitado da segurança que o contato direto
8 Mirabete, Júlio Fabrini. Execução Penal, 5ª ed. São Paulo: Atlas, 1992, p. proporciona.
319.
9 Hassemer, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, Barcelona: Bosch, A cultura pós-moderna implicada em determinadas
1984. atitudes, louváveis sob inúmeros aspectos, porque visam
agilizar e melhorar a prestação jurisdicional, tem de se reforçando o seu dever de fiscalizar ao mesmo tempo em que
render à realidade instrumental da tecnologia. Ela não vale o jurisdicionado tem certeza, porque está em audiência com
por si, como o processo igualmente não é um fim em si o juiz, no próprio ambiente carcerário, que o magistrado
mesmo! haverá de leva-los em consideração na hora de decidir sobre
A tecnologia é importante pelos resultados que a sua os pleitos deduzidos. Se as partes tradicionalmente têm o
aplicação prática proporciona, de modo que, se estes direito de serem ouvidas pelo juiz ² é dito que têm direito ao
resultados não atendem aos objetivos de propiciar uma seu dia na corte ² o juiz passa a ter o direito ao seu dia na
adequada tutela jurídica, devem justificar o abandono, ainda prisão: one day in jail.
que provisório, do recurso mais sofisticado. No caso, o Para os presos, é benéfica a configuração procedimental
contato pessoal, na velha conhecida audiência, se causa com essas características, aproximando o juiz da realidade de
transtornos de locomoção, segurança etc., é um aparente vida do condenado, se houver a pretensão de convencê-los da
atraso que, em termos de processo jurisdicional, humaniza e, justiça intrínseca da ordem jurídica.
neste sentido, acaba sendo um atraso progressista, algo No plano processual, algumas conseqüências podem ser
como DE VOLTA PARA O FUTURO. Seguindo este caminho, desde logo percebidas:
creio que não necessitaremos temer pela advertência de a) quanto ao excesso de execução, além da providência
Boaventura de Sousa Santos, de que um dia teremos jurídica óbvia de eliminação da medida excessiva ou
pateticamente de inventar, sempre com atraso, o que já desviada ² por exemplo, transferindo-se o preso para
tivemos quando éramos atrasados.10 unidade compatível com as exigências da fase de execução ²
Às vantagens da audiência devemos somar a caberá imaginar a viabilidade de pretensões jurídicas que
conveniência, no caso de presos, tendo em vista a sempre não se restrinjam à indenização preceituada no artigo 5o,
alegada dificuldade de transporte e segurança, do ato inciso LXXV, da Constituição da República, mas que,
realizar-se nas unidades prisionais. Um dos pontos mais aplicando o princípio da proporcionalidade, importem na
sensíveis e de mais delicada solução jurídica está relacionado compensação quantitativa de sanção pela violência
aos desvios e excessos de execução, medida que não exclui a qualitativa constatada. Verdadeira e jurídica redução da
audiência no tribunal, mas a complementa. pena. De lembrar que se outro preso, condenado ao mesmo
Quantas vezes o indivíduo devia estar cumprindo pena tempo de reclusão em regime idêntico, vai sofrer uma
em regime semi-aberto ou aberto e, apesar da penitenciária limitação da sua liberdade na mesma porção de tempo a ser
ter essa qualificação, na prática, o sistema é fechado. suportada por este, em visível excesso, há quebra do
Quantas vezes a única progressão se dá exclusivamente de princípio constitucional da isonomia, que o Poder Judiciário
sistemas mais fechados para outros apenas menos fechados! não pode deixar de coibir;
Pior, todos sabemos que o artigo 88 da LEP, que trata das b) QUANTO AOS ADOLESCENTES, rompe-se muitas
mínimas condições físicas dos cárceres, é sistematicamente vezes a ideologia do senso comum, que pode inspirar alguns
desrespeitado pelos governos estaduais. São excessos na juízes, levando-os a crer na eficácia da internação como
execução das penas, conforme a tipologia desenhada no medida estacionária da situação de conflito. Muitas vezes, o
artigo 185 da LEP, que o juiz poderá perceber in loco, caráter banal da internação está fundamentado na crença em
uma eficácia corretiva dela, absolutamente distante da
10 Santos, Boaventura de Sousa. Pelas Mãos de Alice, São Paulo: Cortez, 1995, realidade, como demonstra a criminologia. O juiz, ao ter
p. 67. contato direto com o cárcere e com o adolescente em
cumprimento de medida em condições concretas, estará A democracia no processo penal de execução,
melhor instruído para pesar o que realmente pretende preconizada no início, a ser alcançada, em síntese, por
internando o jovem e não se deixará iludir pela denominação intermédio do reforço à estrutura caracteristicamente de
FRPXP GH ³(VFRODV´ RX ³(GXFDQGiULRV´ TXH PXLWDV GHVWDV acusação, com distribuição rigorosa de funções, e levando em
unidades ostentam. conta, no futuro, um procedimento oral, ainda que repercuta
Muitas outras questões mereceriam ser enfocadas, mas na mentalidade dos operadores jurídicos de modo a torná-
a limitação de tempo permite tão-só citá-las, para orientar a los protagonistas em um enredo de respeito aos direitos
meditação dos interessados: o cabimento da execução penal fundamentais, é só um dos caminhos em direção ao contexto
provisória, idealizada tendo em vista interesses reais do democrático mencionado por Lola Aniyar.
condenado; a possibilidade jurídica do Ministério Público A democracia substancial, que é o nosso postulado,
recorrer a favor do processado, durante a execução; o não acaba algo parecida com a utopia e, como tal, novamente nas
cabimento do mandado de segurança para impedir a palavras de Boaventura de Souza Santos, está a indicar os
imediata execução de decisão favorável ao condenado; o caminhos a seguir, muito embora apenas vislumbre nas
procedimento do recurso de agravo (semelhante na execução sombras de um futuro incerto o lugar de chegada. Semicega
penal ao do recurso em sentido estrito); o caráter a utopia democrática, diria Boaventura, enxerga o processo
jurisdicional pleno da execução, para englobar a questão das de execução penal carente de mudanças, mas reclama
faltas graves e suas conseqüências; a impossibilidade da também a democratização do sistema penal como um todo e
regressão de regime cautelar (objeto de recente decisão do a humanização do controle social hoje extraordinariamente
Des. Valmir da Silva, do Rio de Janeiro); e, finalmente, o brutal. É preciso e urgente redimensionar o papel das classes
debate sobre se o preso tem direito a não progredir de populares em todo o percurso ideal deste sistema. E o fim ou
regime (por conveniência, segurança ou conforto, por destino desta utopia, gostaríamos que fosse a emancipação
exemplo). dos grupos carentes da sociedade. SE É SEMICEGA A UTOPIA
A teoria jurídica pode e deve fornecer os elementos DEMOCRÁTICA, QUEM SABE NÃO É TAMBÉM SEMIVIDENTE
indispensáveis à construção de um processo de execução E NOS INDIQUE, AO FINAL, COMO PONTO DE CHEGADA E
penal mais humanizado e comprometido com os fins da REPOUSO DA EMANCIPAÇÃO, UMA SOCIEDADE JUSTA,
sanção, reformulando em linhas gerais o atual. Já se disse LIVRE E FRATERNA. UMA SOCIEDADE VERDADEIRAMENTE
que, embora disponha de duzentos e quatro artigos, a lei de SOCIALISTA.
execuções penais dedica apenas dezoito ao processo,
demonstrando, em linhas gerais, como há muito salientou
Ada Grinover, uma certa falta de atenção da lei para com as
garantias processuais das partes e da jurisdição.11
Temos certeza que a elaboração de um novo processo de
execução, no entanto, não é suficiente para remodelar as
relações sociais penetradas pelo problema do crime.
11 *ULQRYHU$GD3HOOHJULQL³$QRWDo}HVVREUHRV$VSHFWRV3URFHVVXDLVGD/HL
GH([HFXo}HV3HQDLV´ in Execução Penal. Ada Pellegrini Grinover (coord).
São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 15.
7. Conclusão direitos fundamentais e da disciplina constitucional da
divisão dos poderes em seu interior e resulta na
implementação do princípio da divisão de funções no
próprio processo, atribuindo-se a diferentes sujeitos as
De tudo quanto foi exposto, cabe agora articular os atividades principais de acusar, defender e julgar;
tópicos fundamentais do trabalho, não sem antes registrar 5. o sucesso na implementação de um processo penal
que, malgrado a advertência contida no texto, de que a estruturado dessa forma depende não apenas da
aferição da constitucionalidade de um sistema processual normatividade constitucional, como da existência de um
passa pela estática concordância entre as funções fundo cultural que reconheça a validade prática de um tal
processuais e também pela ponderação da dinâmica de sistema, em atenção aos justos anseios de proteção e
relações que se estabelecem, o fundo cultural é determinante segurança da comunidade;
fator de efetivação de sistema e princípios constitucionais, 6. de outra forma, a Constituição produz eficácia
impondo-se a evolução em direção à plena democracia meramente simbólica e a regulação dos seus princípios
simultaneamente com a aproximação às expectativas sociais. esbarra em processos de interpretação que lhes reduzem o
Desse modo, a recíproca relação entre o mundo direito e o alcance e significado;
mundo real potencializará a semente, no campo do processo 7. visto assim, o processo hermenêutico adquire
penal, de um sistema que não seja apenas aparentemente relevante valor, comportando apenas interpretações
acusatório, mas torne ambos, princípio e sistema conforme à Constituição, como condição de validade das
acusatórios, realidade, conjugando eficaz tutela da segurança normas ordinárias;
de todos e da dignidade de quantos venham a sujeitar-se ao 8. da interpretação derivada da articulação das
processo penal. normas constitucionais que disciplinam direitos
São estas, pois, as principais conclusões: fundamentais, instituem a privativa atuação do Ministério
Público, no exercício da ação penal pública, e reservam ao
1. o processo penal condenatório rege-se por padrões juiz a função de decidir os conflitos de interesses, além de
normativos, de origem constitucional, que traduzem preconizar a publicidade do processo e a oralidade do
limitações significativas ao poder punitivo do Estado; procedimento, resulta a convicção de que a Constituição
2. as limitações do processo penal estão a princípio preocupou-se com a inserção de princípios determinantes da
traçadas, levando em conta a efetivação dos direitos estrutura e do modelo de processo penal;
fundamentais; 9. o modelo eleito não é original mas sim o produto da
3. por sua vez, a efetivação dos direitos fundamentais evolução, cujo conhecimento contribui para edificar critérios
só tem lugar em um Estado Democrático, fundado no de avaliação dos sistema e princípios;
princípio da divisão dos poderes, de tal sorte que o processo 10. não existe uma compreensão exclusiva e
penal, espaço jurídico dentro do qual os direitos unicamente válida sobre que elementos compõem os
fundamentais são mais exigidos, tutelados e, em sistemas processuais, variando conforme a história dos
circunstâncias excepcionais, comprimidos, deve ser um povos e o enfoque teórico que conferem à questão do
processo penal democrático; comportamento delituoso e seu modo de controle, de sorte
4. a democracia no processo penal projeta a tutela dos que nem sempre coincidem as visões histórica e teórica dos
sistemas;
11. é possível, todavia, determinar alguns pontos máxima acusatoriedade, razão pela qual recomenda-se que,
convergentes, sendo que, relativamente ao sistema propondo-se a reforma do processo penal, como
acusatório, há, além do pacífico reconhecimento de que se conseqüência da transformação constitucional operada em
fundamenta na divisão das tarefas de acusar, defender e 1988, coloque-se de lado a aparência acusatória e efetive-se a
julgar (princípio acusatório), concordâncias sobre as estrutura que, democraticamente, divide tarefas, funções e
exigências de publicidade e oralidade; responsabilidades.
12. a definição do que se compreende por acusação é
elementar na delimitação da área de atuação do acusador e
do juiz;
13. optou-se, neste aspecto, por inserir a acusação no
conceito de ação penal ² importando na imputação de uma
infração penal, com pedido de aplicação da sanção ² e,
assim, extrair todas as conseqüências possíveis, quer no
tocante à delimitação do objeto do processo, quer quanto à
distribuição das atividades probatórias ;
14. reconheceu-se que as leis processuais ordinárias
brasileiras, de acordo com o maneira como estão sendo
aplicadas, não respeitam totalmente as fronteiras traçadas
pelo princípio acusatório;
15. ficou evidente, em face da interpretação
predominante, que o conceito de princípio acusatório está
reservado à iniciativa de demandar, a partir do que, o dogma
da verdade real se instala e, com ele, fortes tendências de
investigação judicial;
16. a legislação especial, consoante tem sido
interpretada e aplicada, não foge à regra, vigorando a crença
na existência de poderes de instrução do juiz, além e acima
do direito à prova das partes;
17. finalmente, questiona-se a suposta
discricionariedade do Ministério Público quanto à
implementação das soluções de consenso incorporadas pela
Lei no 9.099/95, a partir da previsão constitucional contida
no artigo 98, inciso I, debatendo-se, em vista disso, sobre o
lugar que ocupa a instituição em um processo penal
democrático, fundado na legalidade e na acusatoriedade;
18. concluímos, afirmando que, de fato, a Constituição
da República optou pelo sistema acusatório, mas o
ordenamento jurídico processual ainda está distante da
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Este artigo sintetiza as idéias apresentadas em 21 de abril de 2001,
VALLE FILHO, Oswaldo Trigueiro. A ilicitude da prova: no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, no Simpósio Novos Rumos, Novas
teoria do testemunho de ouvir dizer, São Paulo: Revista Idéias, promovido pelo Instituto de Direito ± ID.
1. Introdução 2. A proteção da intimidade e da vida privada como direitos
10.217/2001, que alterou dispositivos da Lei n. 9.034/95, Para melhor compreender as questões críticas e
conhecida também como Lei de Controle do Crime problemáticas advindas da aplicação da mencionada lei,
É necessário desde logo salientar que em virtude da penal de índole constitucional como no da política criminal,
nova redação conferiu-se previsão legal à interceptação que estabelece as linhas mestras do programa de controle da
ambiental e à infiltração de agentes, consistindo a infiltração, criminalidade, é preciso lançar luz sobre o fato de que, nos
nos termos da Lei, em atuação de agentes de polícia ou de dias atuais, o direito à vida privada e à intimidade pode ser
inteligência em organizações criminosas, sob falsa severamente afetado pela difusão descontrolada de
identidade, para capturar provas de infrações penais informações cuja obtenção acaba sendo facilitada pelo
supostamente praticadas por integrantes das referidas emprego de tecnologias sofisticadas de comunicação e
organizações. informação.
O objetivo deste texto é colocar em destaque a Os modernos bancos de dados pessoais, que evoluem para a
em modelos de política criminal dotados de características individuais3, permitem a permanente devassa da vida
distintas daquelas que defluem da ordem jurídica brasileira. privada das pessoas, ao que se soma o aparato de câmaras e
estão sendo vigiados. Isso, é claro, não induz à formação de É bastante razoável supor que a disposição de
juízos de valor a priori. Não se trata de questionar toda e câmaras que ficam parcialmente ocultas em agências
qualquer utilização de meios refinados de registro, bancárias e aeroportos previna situações problemáticas. Da
armazenamento, tratamento e transmissão de dados, mesma maneira, pudesse o médico em caso de emergência
imagens ou sons, como se estivéssemos a julgar e condenar a dispor de informações seguras a respeito das condições de
sociedade tecnológica (ou de informação como preferem saúde daquele paciente até então desconhecido, cujo
alguns), comparando-a com um passado de simplicidade e atendimento de urgência se impõe, é claro que as chances de
harmonia total, que na realidade nunca existiu. que essa pessoa seja atendida satisfatoriamente aumentam
O ponto sobre o qual gira o eixo deste trabalho pode de modo significativo. Ninguém pode ser contra isso.
ser fixado a partir da idéia de que a facilidade de disposição A questão crítica aparece quando as informações não
das citadas informações não raro proporciona o seu emprego são usadas em benefício da maior parte das pessoas que
para fins de controle social e mesmo de violação de compõem o núcleo social ou ainda quando o emprego das
interesses vitais das pessoas, sem que os indivíduos informações é precedido por desproporcional violação da
agentes responsáveis por atos que atentavam contra os modernidade, fundada em um direito de cunho ético e
interesses individuais mais importantes (vida, integridade dirigida à transformação social, com redução das
física, honra) e aquelas outras pessoas que reivindicavam desigualdades, proporcionou a edificação de uma estrutura
mudanças radicais da ordem estabelecida, como no caso da de direitos e garantias de natureza penal que, a par de
repressão aos movimentos operários, mediante controlar a resposta estatal aos atos criminosos, atenuando-
incriminação, nos séculos XIX e XX. lhe a brutalidade, buscou definir o Estado como entidade
Em retrospectiva é concebível especular que os cujos atos de seus agentes deveriam situar-se nos marcos de
liberal, que marcaram o iluminismo e a modernidade no eticamente. Desse modo, os atos de repressão, apuração e
plano do direito penal e do processo, tiveram eficácia punição das infrações penais e de seus autores não seriam de
limitada mesmo nos países da Europa Ocidental, onde foram forma alguma equiparáveis aos atos dos próprios agentes de
por meios ilícitos esbarraram em firme objeção doutrinária, entre interesses legítimos repousa em atribuir a órgão
Não obstante o princípio de reserva de lei para limitação dos direitos fundamentais alheios, julgando
fundamentais, o certo é que de nada valeria a citada garantia esfera de exercício destes direitos em prol de interesses
repressão e apuração das infrações penais, pudessem decidir Por isso cumpre reconhecer a existência de
diretamente os casos de restrição ao exercício dos direitos YHUGDGHLUD³reserva constitucional de função´ DWULEuível ao
que conformam a dignidade humana. Há aí nesta hipótese, Poder Judiciário para examinar as demandas dos
claramente, a percepção de que o Estado-Administração tem responsáveis pelas investigações criminais, que estejam
interesse direto e atua como parte, de sorte que seus agentes interessados em obter provas ou assegurar a eficácia prática
dirigem suas ações ao fim de coletar provas da existência de de virtual decreto condenatório fazendo uso de medidas
crimes e da responsabilidade dos supostos autores. coercitivas dirigidas contra o investigado ou processado e
± que não são necessariamente culpadas e não podem ser A postura de imparcialidade do juiz, no processo
tratadas como tal até que seja definitivamente pronunciada penal, independentemente de expressar a recomendável
decisão condenatória ± é inevitável. eqüidistância entre pretensões que lhe são submetidas, na
moderno pacto social6, não serão postergados salvo em casos O exercício deste controle, que é de necessidade,
extremos, em benefício do conjunto do grupo social após adequação e proporcionalidade, está prejudicado nos termos
ponderada avaliação dos interesses em jogo. da Lei n. 10.217, como veremos adiante.
porque o juiz sempre terá de julgar as situações concretas, Antes porém de cuidar de examinar como a Lei n.
padecendo de inconstitucionalidade os dispositivos legais 10.217/01 entrou em rota de colisão com a Constituição da
que imponham, automaticamente, restrição ao exercício de República, no tocante à violação indevida de direitos
direitos fundamentais sem apreciação da necessidade, individuais fundamentais, vale dedicar algumas palavras ao
adequação e proporcionalidade das medidas de limitação7, tipo legal de crime organizado ± ou mais precisamente, ao
como ocorre, por exemplo, com a proibição de deferimento tipo legal de crime de associação criminosa, se neste caso
possibilidade de omitir a conduta capaz de violar a norma do artigo 5o, inciso XXXIX, da Constituição da República,
Para tanto, é imprescindível que a lei penal penalmente relevante. Para que haja perfeita harmonia entre
incriminadora contenha termos e expressões de significado a norma penal incriminadora e a regra constitucional de
inequívoco, isto é, unívoco9, para que a conduta vedada seja garantia é indispensável que a lei realmente defina a conduta
passível de ser apreciada e compreendida por todos. De nada censurável, indicando claramente os seus elementos e as
variado, duvidoso, impreciso e até mesmo contraditório, Desde o advento da Lei n. 9.034/95 advertíamos
carecedor de eficácia para orientar o comportamento dos para a grave situação deflagrada por seu artigo 1o., uma vez
indivíduos desejosos de evitar a comissão do ato ilícito penal. que, fazendo menção de regular meios de provas
A mera estipulação prévia, em lei penal, ainda que votada concernentes a associações ou organizações criminosas,
regularmente pelo Parlamento e introduzida de maneira girava sua bateria indistintamente para os integrantes de
formalmente regular na ordem jurídica, não sana deficientes quadrilhas ou bandos, como é natural na forma definida no
redações de tipos penais, com abuso de expressões vagas, artigo 288 do Código Penal11.
ambíguas e polissêmicas, sendo por si só fator de invalidade A atenção foi reivindicada principalmente para o fato
da norma jurídica em posição de contrariedade com a ordem de a lei em questão autorizar providências de intensa
constitucional.
infrações penais de escassa gravidade e mesmo aos Para fugir ao desacerto legal parte da doutrina
integrantes de bandos cuja existência, embora perturbadora inclinou-se a sustentar que o legislador havia criado novo
da tranqüilidade social, poderia ser controlada sem recurso a tipo de delito de associação ± tomar parte de organização
medidas extremas. De frisar, uma vez mais, na linha do criminosa -, chegando a indicar os novos elementos em cuja
magistério de CANOTILHO, que a adoção de recursos presença seria possível falar em organização criminosa12.
capazes de cercear o exercício de direitos fundamentais está Ocorre, todavia, que a função de criação de tipos
na direta dependência da necessidade de adotá-los, na penais é reservada, com exclusividade, ao legislador, nos
medida em que de outro modo não é possível evitar a lesão termos do mencionado inciso do artigo 5o, da Constituição
Na verdade, o alvo da política criminal espelhada na de distinguir em abstrato quais são os destinatários das
Lei n. 9.034/95 eram as organizações criminosas medidas restritivas, sem com isso invadir a seara da lei,
responsáveis por crimes de expressivo potencial ofensivo, ficam os juízes impedidos de aplicá-la. Essa é a única solução
marcadamente os de corrupção estrutural e os violentos, de que preserva a integridade da Constituição mas não foi a
repercutido nos gabinetes governamentais. Como podemos Código Penal, no Título VIII ± Dos Crimes Contra a Paz
observar com facilidade, o novo texto do artigo 1o, da Lei n. Pública ± inova com redação mais feliz que a atual. De
9.034/95, com a redação que lhe confere a Lei n. 10.217/01, acordo com sua exposição de motivos, destacando que ³R
procura deixar evidente o alcance dos dispositivos legais, fato está em expansão não só no Brasil como no exterior. Se
assinalando que os meios operacionais para a prevenção e a Quadrilha ou Bando, como anota a doutrina, quase
repressão de ações praticadas por organizações criminosas sempre se ajusta aos crimes de bagatela, diferente,
poderão ser utilizados em procedimentos de investigação preocupando se apresenta a ± Organização criminosa (art.
que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas 278)´ VXEOLQKD RV FRQWRUQRV GR WLSR SHQDO Sroposto,
por quadrilhas ou bandos ou, frise-se, associações oferecendo a seguinte redação: ³Constituírem, duas ou mais
Portanto, no lugar de corrigir a redação infeliz do comprometer, mediante ameaça, corrupção, fraude ou
13 A Associação de Tipo Mafioso - artigo 416 bis do Comissões uma rigorosa hierarquia de poder e de funções, exprimindo, ainda,
Parlamentares de InTXpULWR SHOD GRXWULQD LWDOLDQD SUHVVXS}H ³Uma uma poderosa força de intimidação, derivada da eficiência, da unidade
lógica de domínio e de conquista ilegal e violenta do espaço de poder indecifrável e da estrutura organizacional, sujeitando seus integrantes
violência, a eficácia da atuação de agentes públicos, com o O argumento primário dos que postulam expressiva
fim de cometer crimes ± RecluVmR GH TXDWUR D RLWR DQRV´ restrição da proteção à intimidade e vida privada costuma
Ainda conforme a exposição de motivos ³EXVFD-se impedir estar fundamentado politicamente na concepção de que a
também a conexão internacional. Aliás, a literatura garantia destes interesses se coloca como questão típica do
Do jeito que está na Lei n. 10.217 a nível significa assegurar a proteção de criminosos do
inconstitucionalidade persiste, uma vez que não diferencia colarinho branco e membros de oligarquias corruptas
situações desiguais, permitindo ao juiz analisar os casos em encastelados nos governos, agentes políticos que
que será necessário reprimir mais intensamente o exercício historicamente estiveram bem protegidos pelo Direito e são
de determinados direitos elementares à dignidade da pessoa grandiosos em suas fraudes e danos que causam a um
3.2. A proteção da intimidade e da vida privada esqueleto normativo do denominado Estado de Direito, na
Examinando agora as novas técnicas de investigação América Latina, é certo que a profundidade e extensão da
introduzidas pela Lei 10.217, é certo que há visível tensão aplicação destes direitos revela-se como mais uma entre
entre elas e a tutela da intimidade e da vida privada. tantas práticas de discriminação e controle social autoritário.
organização sobre as ações político-partidárias. direitos, todavia, na maior parte das vezes esteve dirigida à
proteção dos grupos sociais historicamente mais bem injustiça social a pretensão de tutela de interesses vitais para
situados na pirâmide social. Não há erro em afirmar que a todas as pessoas, com independência da sua situação social,
República foi proclamada, no caso brasileiro, mas o nem tampouco deixar de reconhecer que determinados
sentimento republicano raramente foi compartilhado por direitos não são essencialmente fundamentais14, muito
pessoas de todos os segmentos sociais. Isso se deve ao fato de embora sejam tratados como se fossem, ampliando
a República ± como a monarquia pós-independência ± terem indevidamente o âmbito de segurança de valores que
sido movimentos políticos verticais, produzidos de cima para realmente dizem respeito a apenas uma fração da
excluída do gozo das riquezas, permaneceu durante longo Pelo contrário, o viés estritamente discriminatório
tempo desconhecendo o significado da cidadania. que marcou a dura relação entre exercício de direitos
Isso marca sobremodo a percepção peculiar ao senso fundamentais e a condição de determinados atores políticos
comum, nos quadrantes dos países periféricos e semi- serve para demonstrar de que maneira a manipulação destes
periféricos, de que os direitos fundamentais são, na direitos funciona como fonte de contenção das reivindicações
realidade, escudos artificiais de que se valem parcelas das sociais e de que forma a ampliação, tanto no nível horizontal
elites para elidir sua responsabilidade quando flagrados (dos sujeitos que devem ser protegidos das ações contra seus
A disfunção histórica em termos de efetividade de proteção, com a implementação de ações judiciais de fundo
neutralizar a tendência de congelamento da atual situação de crítica e sociologia do direito penal, o Movimento de Lei e
Desprezar a função política dos direitos orientadas à restrição dos direitos à intimidade e vida
fundamentais é, ao meu juízo um enorme equívoco, como privada17, estipula funções basicamente repressivas para
salienta igualmente LÖIC WACQUANT em sua obra PUNIR conter os grupos sociais rebeldes, setores da sociedade que
OS POBRES: A NOVA GESTÃO DA MISÉRIA NOS supostamente põem em risco a lógica do capital e do
O exame das estratégias que unem políticas sociais e O fenômeno da criminalidade transnacional, em
criminais em torno do controle social punitivo, nos países grande medida expressão do caráter transnacional que
centrais, demonstra como a penetração na intimidade das caracteriza a economia da era da globalização, com seu
pessoas que integram os chamados grupos sociais marginais permanente e descontrolado fluxo de capitais, recebe o
ou suspeitos (as minorias que atemorizam o imaginário das tratamento de criminalidade grave à semelhança do modelo
classes médias) pode ser empregada para criar novos guetos, de criminalidade política que na década de 1970 marcou
nestes países ganha insuspeita credibilidade, como conjunto a população e as autoridades. Isso acontece no cotidiano das
de recursos eficazes para a descoberta de criminosos cidades brasileiras, quando as casas da periferia são
De lembrar, com MANUEL AUGUSTO ALVES de fato fazem parte dos grupos de criminosos que a mesma
MEIRES19, que é da legislação anti-terrorismo que emerge, polícia devia tentar controlar, de tal maneira que para as
ao nível legislativo, a figura do provocador, parente direto do populações das áreas carentes acaba sendo tarefa difícil
nosso infiltrado, aceita pelo Tribunal Constitucional Alemão, delimitar o espaço dentro do qual os agentes do poder
SRU VXSRU D HILFiFLD GD MXVWLoD SHQDO ³indispensável à público atuam para defendê-las daquele outro em que estas
realização da justiça material´20. mesmas populações são reféns destes agentes como o são
destes instrumentos encobre os efeitos negativos que o Nos países centrais o sistema de garantias funciona
cotidiano da justiça criminal no Brasil não cansa de relativamente nas oportunidades em que é acionado para
constatar: a ausência de controle real sobre os agentes proteger os cidadãos. No Brasil e no restante da América
encarregados da investigação criminal, quando estes são os Latina o sentimento difuso de que as garantias processuais
únicos responsáveis pela gestão das técnicas de investigação não alcançam os mais pobres é reforçado pela certeza de que
que invadem o âmbito privado das pessoas, atua como forte os Estados não dispõem de Defensorias Públicas
Penal, Coimbra, Almedina, 1999, p. 27. judiciário com plantões freqüentes é encontrado em todos os
20 Idem, p. 28.
lugares, de modo a garantir o rápido acesso à justiça recrutados nas periferias, distinguindo aí, mais uma vez, os
daqueles eventualmente atingidos por atos arbitrários. modelos de criminalidade conforme o grupo social a que
se instala nos Estados centrais para, a pretexto de combater Neste cenário comprometido pela violação da
a criminalidade, controlar imensas parcelas dos grupos intimidade e vida privada, com escuta ambiental e atuação
sociais tidos como potencialmente perigosos (imigrantes de agentes infiltrados, o chamado direito à
latinos, negros etc.), como supor que no Brasil ± e em AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA, compreendido
qualquer outro país da América Latina ± a liberdade de como direito de o sujeito sobre o qual são armazenadas
invasão na esfera da vida privada e intimidade não servirão informações conhecer previamente os limites de emprego
exatamente para acentuar o grau de discriminação que futuro dessas mesmas informações, está previamente
caracteriza nossos sistemas penais? prejudicado. E mais. Não obstante a exigência legal de o juiz
Até porque, somente para ficarmos com um singelo deferir ambas as medidas ± autorização para que agentes
exemplo, retirado do campo de (im)possibilidade de policiais sob disfarce se infiltrem em quadrilhas e bandos e
aplicação da Lei n. 10.217/01, de onde virão os agentes escuta ambiental ± é indiscutível que nenhum controle
policiais que estarão infiltrados nos órgãos dirigentes dos judicial sobre as informações coletadas e até mesmo sobre as
grandes grupos econômicos, se porventura houver suspeita ações levadas a efeito pelos infiltrados será eficaz.
da prática de crimes do colarinho branco?21 Parece evidente Neste sentido, a lei brasileira criou condições para os
que o alvo são as quadrilhas formadas por sujeitos agentes infiltrados decidirem questões que em muitas
não poderia decidir sem fundamentar sua decisão e é incontestável que pelo menos nestes dois últimos aspectos
submetê-la ao controle do colegiado e do Ministério Público: haverá grave atentado contra a liberdade com a efetivação
tal seja, se é caso ou não de entrar em determinada quer da escuta ambiental quer da infiltração.
A constante atuação do infiltrado colocará insolúvel conseqüências advindas do emprego da escuta ambiental.
domicílio sem ordem judicial e como não atentar para a gravado, constitui inequivocamente prova ilicitamente
flagrante violação da AUTODETERMINAÇÃO obtida, não só em face dos princípios gerais (de proteção à
Aceitando a posição defendida por HASSEMER e frontalmente as regras de advertência quanto ao direito ao
INFORMATIVA ± que não é nenhum invento de nossos dias A infiltração, por sua vez, representa verdadeira
- tem como elementos constitutivos a transparência do autorização em branco, dada pelo juiz, para que o agente
ou não de abrigar provas de infrações penais, criminalidade passa pelo aperfeiçoamento das polícias, a
independentemente do exame judicial prévio de estrita disposição de maiores e melhores recursos materiais e o
necessidade, adequação e proporcionalidade em cada respeito à dignidade dos policiais que atuam em todas as
Mais grave: a lei permite que o agente infiltrado não circuito de atuação diretamente em contato com as práticas
integre os corpos das polícias responsáveis pela investigação delituosas. Isso não significa que os índices de criminalidade
criminal, indiciando perigosa tendência de militarização da recuarão significativamente, pois é certo que há outros
tarefa de persecução penal, sem embargo de uma nociva vetores ± políticos, econômicos e sociais - que influenciam
espécie de cooperação penal internacional, que poderá decisivamente o processo de incriminação e que parecem
comprometer nossa soberania. não ser afetados imediatamente pela capacidade de reação
do sistema repressivo.
As medidas previstas na Lei n. 10.217/01 apontam remédio vendido às escâncaras no mercado global ±, poderá
um falso problema: são inconciliáveis as demandas de produzir mais presos mas não necessariamente mais justiça,
punição dos autores das infrações penais se não houver mesmo quando se tem em mente tão-só as decisões do
GERALDO PRADO