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Sistema Acusatório

A Conformidade Constitucional EDITORA LUMEN JURIS


das Leis Processuais Penais
EDITORES
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João Luiz da Silva Almeida

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Antonio Becker
Augusto Zimmermann
Eugênio Rosa
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J. M. Leoni Lopes de Oliveira
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Sistema Acusatório
A Conformidade Constitucional CAPA
das Leis Processuais Penais Márcia Campos

3a Edição A EDITORA LUMEN JURIS


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2005
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
³2WHX silêncio é uma nau com todas as velas pandas Sumário
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer
SDUDtVR´ APRESENTAÇÃO .......................................................................
Para Giselle, com amor. PREFÁCIO..................................................................................
NOTA DO AUTOR À 1ª EDIÇÃO ................................................
NOTA DO AUTOR À 2ª EDIÇÃO ...............................................
NOTA DO AUTOR À 3ª EDIÇÃO ...............................................
1. INTRODUÇÃO ........................................................................

2. -O DIREITO PROCESSUAL PENAL E A CONFORMIDADE


CONSTITUCIONAL ....................................................................
2.1. Introdução ..........................................................................
2.2. Fontes e Antecedentes dos Direitos Fundamentais ........
2.3. Direito, Processo e Democracia ........................................
2.4. Constituição e Processo Penal ..........................................
2.5. Sistema e Princípios: Uma Aproximação Tipológica ......

3. SISTEMAS PROCESSUAIS .....................................................


3.1. Histórico: método aplicado ao objeto. Um acerto semântico
3.1.1. Situação na Antigüidade ............................................
3.1.2. Direito Medieval e da Época Moderna .....................
3.1.3. O Common Law ........................................................
3.1.4. O Direito da Época Contemporânea ........................
3.2. Características do Sistema Acusatório .............................
3.2.1. Princípio e Sistema Acusatório: Diferenciação........
3.2.2. Características do Princípio Acusatório ..................
3.2.2.1. Da Perspectiva Estática do Processo:
Poderes, Deveres, Direitos, Ônus e Faculdades
dos Sujeitos Processuais.............................................
I. Do Juiz .....................................................................
II. Da Acusação ...........................................................
III. Da Defesa ..............................................................
3.2.2.2. Da Perspectiva Dinâmica do Processo:
Da Atuação dos Sujeitos Processuais ........................
I. O Estatuto da Defesa em Movimento: O
Conflito entre os Interesses do Defensor
e do Acusado e o Limite às Soluções de 6. A EXECUÇÃO PENAL E O SISTEMA ACUSATÓRIO ...........
Consenso .................................................................
II. O Estatuto da Acusação em Movimento: A 7. CONCLUSÃO .........................................................................
Oportunidade Regulada na Ação Pública e a
Vedação Ordinária à Investigação Direta ............. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................
A. A Oportunidade Regulada na Ação Pública ..
B. A Vedação Ordinária à Investigação Direta .. ANEXO: Da Lei de Controle do Crime Organizado: crítica às
III. O Estatuto do Juiz em Movimento: Livre
Convencimento e os Poderes de Investigação
técnicas de infiltração e escuta ambiental.................
do Juiz ² A Mutatio Libelli ...................................
A. Livre Convencimento e os Poderes de
Investigação do Juiz ........................................
A.1. Do livre convencimento e a
confissão do acusado ² soluções
consensuais ...............................................
A.2. Das Provas Legais Negativas ...............
B. Alteração dos Fatos ........................................
3.2.3. Características do Sistema Acusatório .....................
3.2.3.1. Da Oralidade ......................................................
3.2.3.2. Da Publicidade ...................................................
I. Da Publicidade Tradicional ....................................
II. Dos Juízos Paralelos da Imprensa ........................
3.2.4. A Título de Conclusão ...............................................

4. A ELEIÇÃO CONSTITUCIONAL DO SISTEMA ACUSATÓRIO


4.1. Breve Histórico do Processo Penal Brasileiro ..................
4.2. Características do Sistema Processual Brasileiro ............

5. -O SISTEMA ACUSATÓRIO E A LEGISLAÇÃO PROCESSUAL


POSTERIOR À CONSTITUIÇÃO .................................................
5.1. A Lei de Controle do Crime Organizado e a Lei das
Interceptações Telefônicas .................................................
5.2. A Lei dos Juizados Especiais ............................................
5.2.1. Da Transação Penal ....................................................
5.2.2. Da Suspensão Condicional do Processo ...................
5.2.2.1. Da Natureza Jurídica (Primeira Parte) .............
5.2.2.2. Da Natureza Jurídica (Segunda Parte).............
5.2.2.3. Da Natureza Jurídica (Terceira Parte) .............
Apresentação democracia qualquer, fulcrada na mera declaração formal de
respeito aos GLUHLWRVIXQGDPHQWDLV´ H EXVFD D UHIHUrQFLDGH
XPD³UHDOGHPRFUDFLDSDUWLFLSDWLYDLQWHJUDGRUDHVROLGiULD´
interessa-lhe, portanto, a prática e o discurso dos operadores
Há boas razões para festejar o lançamento deste livro. político-jurídicos que, na (des)proteção daqueles direitos
Em primeiro lugar, ele se inscreve afirmativamente na fundamentais, se comprazHPFRP³VXDSRVLWLYDomR´DWXDQGR
militante produção teórica através da qual os juristas ³SUHFLVDPHQWH VHP LPSOHPHQWi-los (às vezes mesmo
brasileiros efetivamente comprometidos com o estado de negando-RV ´ 1mR SRU DFDVR D KLVWyULD GRV VLVWHPDV
direito democrático, vencendo a perplexidade pela crítica, processuais ocupa um precioso capítulo.
resistem à desafortunada conjuntura político-criminal que a No eixo da investigação está o princípio acusatório, com
implantação do projeto neoliberal estabelece entre nós. todas as suas múltiplas consequências, que vão das provas
Em segundo lugar, ele se incorpora a um renascimento até a sentença, resultante final das equilibradas e sincrônicas
dos estudos processuais penais no Rio de Janeiro. Com contribuições do autor da ação penal, do réu e do juiz. Num
efeito, e sem embargo de valiosas contribuições individuais escrito admirável, no qual preconiza o retorno a uma
que mantiveram aceso o fogo votivo, o processo penal ² a concepção substancialmente jurisdicional ² e não
gata borralheira que Carnelutti entreviu humilhada entre meramente instrumental ² do processo penal, Gaetano
suas irmãs, o direito penal e o processo civil ² não atraiu em )RVFKLQLUHFXVDYD³DWUDGLomRTXHUHVWULQJHRRItFLRMXGLFLiULR
terras cariocas, logo após a Constituição, o interesse apenas ao juiz ou, pior ainda, ao juiz e ao ministério público,
imediato dos jovens juristas, com o entusiasmo e a QXPD DXWRULWiULD FRQWUDSRVLomR DR UpX H D VHX GHIHQVRU´
intensidade que, por exemplo, observou-se em São Paulo. Este é o tema central que Geraldo Prado, com argúcia e
Hoje, constata-se que a gata borralheira vem sendo aqui probidade intelectual, retoma e estuda a partir do quadro
perfilhada por inúmeras e capacitadas vocações acadêmicas. normativo e das práticas judiciais brasileiras.
Em terceiro lugar, o livro merece ser festejado por seu Apesar de clara opção constitucional, ainda estamos
próprio conteúdo e método; ia escrever caráter. Sim, é de distantes de uma acusatoriedade máxima, assinala lisamente
caráter que se fala quando a investigação define claramente o Autor. Não só no campo do processo penal, vivemos a
seu marco teórico, e a ele guarda fidelidade em todos os seus contradição entre um texto constitucional democrático
passos. Sob a generosa influência do pensamento formal e procedimentos reais que respiram a cultura
ferrajoliano, Geraldo Prado se filia ao garantismo, e a partir discriminatória, racista e exterminadora da característica de
daí pode questionar tanto a legitimidade do decisionismo nossa formação social. O projeto neoliberal requer um
judicial, este fâmulo de chapa-branca do eficientismo penal, sistema penal capilarmente repressivo, para o controle dos
quanto a lenda da verdade real, cuja overdose costuma contingentes humanos que ele mesmo massivamente
despertar o inquisidor que ainda dormita sob a toga de marginaliza. A legitimação dessa repressividade tem nos
tantos magistrados. métodos investigatórios arbitrários e invasivos um
Não opera o Autor, contudo, com um garantismo de ingrediente estratégico, como se pode ver nos meios de
fachada, conceitualmente reconstruído a partir da sonolência comunicação ou na indústria cultural do crime.
dogmática. Nas fundações constitucionais do processo penal, $ SHVTXLVD GR ³SRQWR GLDEyOLFR´ FRQWLQXD VHGX]LQGR D
GHVFDUWD RV SLODUHV SXUDPHQWH LGHROyJLFRV GH ³XPD alma ocidental, e um bom inquisidor ² seja este Kenneth
Star das manchetes obscenas, seja aquele juiz-verdugo do
seriado Justiça Final ² alcança em segundos a fama que
Nicolau Eymerich angariou em séculos.
Na eleição de seu objeto, todo pesquisador se revela de
corpo e alma e, portanto, cabe, por fim, festejar que Geraldo
Prado ofereça ao juristas brasileiros a oportunidade de
refletir, nesses tempos difíceis, sobre o princípio acusatório e
as múltiplas opressões que, no espaço processual, decorrem
de sua violação.

Nilo Batista
Prefácio processual penal. Já na leitura dos originais dos primeiros
capítulos desta excelente dissertação de mestrado, percebi
que seria produzida uma obra importante para a
compreensão de nosso sistema processual penal. Sua leitura
Em boa hora, o amigo Geraldo Prado publica sua se apresenta útil não só para os estudantes, mas também
excelente dissertação de mestrado, onde estuda para os especialistas da matéria. Muito lucrei em lê-la, por
profundamente a estrutura acusatória do processo penal. isso ouso recomendá-la.
7DOYH] HP UD]mR GD ³LQIODomR OHJLVODWLYD´ GRV ~OWLPRV DQRV Por derradeiro, quero dizer que fiquei honrado com o
muitos importantes autores de Direito Penal e Processual convite de Geraldo Prado para ser o prefaciador de mais um
Penal têm se limitado à produção de obras de cunho de seus livros. Cuida-se hoje de magistrado criminal que,
meramente exegético, procurando, já num primeiro novo ainda, já ingressava no Ministério Público, sempre
momento, dizer qual a melhor interpretação para este ou através de disputados concursos públicos. Professor já
aquele novo dispositivo legal. experiente, Geraldo Prado tem se salientado como
Na verdade, esta década não tem sido muito fértil para a conferencista admirado. Assim, esta minha tarefa somente se
doutrina penal e processual penal no Brasil, fazendo-nos justifica em razão de ter começado primeiro, já que
lembrar a ultrapassada época do procedimentalismo. possuidor de mais idade. Temos muitos pontos em comum,
Principalmente no processo penal, sentimos falta de novas inclusive na forma de pensar o Direito e a sociedade em
obras de cunho mais sistemático, doutrinário e, geral. Invocando o direito de resposta para que o leitor
especialmente, crítico. Parece que o livro de Geraldo Prado possa, desde logo, perceber quem é Geraldo Prado, quero
rompe com este ciclo e nos apresenta trabalho acadêmico do SXEOLFDPHQWHUHEDWHU³RIHQVD´TXHUHFHQWHPHQWHHOHPHIH]
mais alto valor científico. chamando-me afetivamenWHGH³FRQVHUYDGRU´DSyVSDLQHOGH
Consoante o leitor comprovará, cuida-se de uma que participamos na Escola da Magistratura do RJ. Em
monografia que, praticamente, esgota o tema pesquisado. verdade, Geraldo e eu desenvolvemos uma visão crítica em
Restou demonstrada a excelência do sistema acusatório IDFHGR³VLVWHPDSHQDO´DSHQDVPHDIDVWRXPSRXFR GHVHX
moderno, que consegue criar condições que preservam a pensamento mais liberal na medida em que, ideologicamente
imparcialidade do juiz sem prejuízo do caráter publicístico VRFLDOLVWD FDPLQKR QD GLUHomR GR FKDPDGR ³XVR DOWHUQDWLYR
do processo penal, como instrumento da atividade GR 'LUHLWR´ 6HP PH DIDVWDU GD SHUVSHFWLYD ³JDUDQWLVWD´
jurisdicional do Estado. As características deste processo e os SHUFHERDGLPHQVmRSROtWLFDGR³VLVWHPDSHQDO´HTXHURXVi-
princípios que o fundamentam são estudados de forma lo também politicamente na busca do socialmente justo.
densa e moderna, buscando-se sempre uma interpretação Julgo, entretanto, que os nossos caminhos chegam ao
que incorpore os valores que se possa extrair do nosso mesmo lugar, vale dizer, a busca de uma sociedade e, por
sistema constitucional. O chamado Juizado de Instrução não consegüinte, de um Direito radicalmente democrático.
tem guarida em nosso sistema constitucional. E isto está retratado no livro que o afortunado leitor ora
Desta forma, Geraldo Prado critica vários diplomas começa a ler.
recentes que se apresentam em descompasso com as
premissas teóricas que são estabelecidas durante o Rio de Janeiro, outubro de 1998
GHVHQYROYLPHQWRGRWUDEDOKR)D]XPDYHUGDGHLUD³ILOWUDJHP Afrânio Silva Jardim
FRQVWLWXFLRQDO´ GDV QRYDV OHLV TXH UHJXODP PDWpULD
Nota do Autor à 1ª Edição procedimentos eleitos, em virtude do que, no seu aspecto
mais doloroso, qual seja, o do processo penal condenatório,
sustenta-se como única estrutura condizente àquela
pertinente ao sistema acusatório.
A primeira reação dos operadores jurídicos, logo em A afirmação da eleição constitucional do sistema
seguida à edição de uma lei processual penal, consiste em acusatório, contudo, não é suficiente, haja vista a polissemia
examinar-lhe a conformidade constitucional, investigando as que envolve a expressão e os limites mais ou menos estreitos
concordâncias e harmonias entre seus sentidos e formas e os que se verificam na prática, determinados pela herança
princípios e normas que constituem o ponto mais alto do histórica romano-canônica.
ordenamento jurídico. Por essa razão, o trabalho evoluiu em direção ao estudo
Concluída a tarefa de exame da constitucionalidade do do encadear histórico dos sistemas processuais, a validade
novo diploma, passam os operadores à pesquisa da constitucional deles a partir de considerações de um sistema
concordância com o sistema. Diz-se de uma lei processual geral de garantias, e à definição dos seus elementos
penal que ela pode estar de acordo ou divorciada do sistema essenciais, concluindo, no tocante ao sistema acusatório, que
processual no qual, inserida, está destinada a atuar. a sua base está fincada sobre um princípio do qual recebe a
Articular a conformidade constitucional com a simetria designação e que representa o mínimo redutor, na linha
do sistema processual penal, em face do fundo cultural sobre perspectivada na obra, passível de engendrar a ligação entre
o qual se erguem ambos os valores, é a pretensão deste o modelo normativo de processo penal e o modelo
trabalho. A hipótese sobre a qual se baseia a obra pressupõe democrático de Estado e sociedade. As expectativas de uma
a tensão real entre normatividade e facticidade do sistema confluência ideal entre o sistema processual preconizado e
jurídico processual penal, em virtude da qual são aquele efetivamente adotado, pelo primado do direito, ou,
perceptíveis dimensões reais e contraditórias de atuação de em outras palavras, pela crença no primado do Estado de
atores e funcionamento de instituições, cujo fim consiste na Direito ² Estado Constitucional Democrático ² está em que,
adjudicação de soluções tanto quanto possível legítimas aos como salienta Habermas, o direito extrai a sua força muito
conflitos de interesses travados no ambiente do direito mais da aliança que a positividade do direito estabelece
penal. com a pretensão à legitimidade,1 mas pode muito bem,
O perímetro traçado, porém, não exaure todas as havemos de recear, conferir aparência de legitimidade ao
possíveis faces da aproximação constituição²sistema, mas poder ilegítimo.
se inclina, tão-somente, ao exame dos laços entre a Portanto, compreender a peculiar realidade do processo
Constituição e o Processo Penal, naquilo que resume a sua penal brasileiro, que, a par das influências externas, diz
vocação comum, isto é, o equilíbrio no exercício do Poder e a muito do jeito de um povo ser e estar no mundo e de projetar
tutela de direitos e garantias indispensáveis à consideração valores e expectativas, como afirmam os portugueses, é o
da dignidade do ser humano. Alinha estas duas grandes resultado natural do desenvolvimento do estudo, sem perder
vertentes ² direitos fundamentais e princípio da separação de vista, todavia, a noção exata das relações que vão se
dos poderes ² à vista da conformação de um processo penal estabelecendo entre a promessa de democracia, inclusive no
inspirado no princípio democrático, fundado na soberania
popular e na legitimidade não só das instituições como dos 1 Habermas, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 60.
processo, elaborada pelos constituintes de 1988 e a visão da Dedico o trabalho aos estagiários da Escola da Magistratura
persecução penal entranhada na alma da maioria dos do Estado do Rio de Janeiro ² EMERJ, onde certamente
operadores jurídicos. Essa é a razão de compararmos as aprendo mais do que ensino, aos estudantes dos cursos de
conclusões que nos pareceram naturais, sobre o modo como graduação em Direito das Universidades Gama Filho e Veiga
se expressa a fidelidade ao princípio e ao sistema acusatórios de Almeida, aos queridos advogados Marcia Dinis, Carlos
e a forma pela qual, principalmente, os dois mais expressivos Roberto Barbosa Moreira, Ilídio Moura, Luiz Guilherme
tribunais do país, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Martins Vieira e José Miranda de Siqueira, a meus filhos,
Constituição, e o Superior Tribunal de Justiça, enfrentam a Gabriela e Felipe, e meus pais, todos cotidianos habitantes
questão, ainda que de maneira discreta se comparados a do meu coração. Por fim, mas não por último, agradeço à
tribunais de outros lugares, como é o caso dos espanhóis, paciente Emília, da Universidade Gama Filho, às
norte-americanos e alemães. funcionárias da biblioteca do Tribunal de Justiça do Estado
De tudo restava, por derradeiro, afastarmo-nos do leito do Rio de Janeiro e aos companheiros do Instituto Carioca
do processo penal ordinário e, com o instrumental técnico de Criminologia e do Fórum de Execuções Penais da EMERJ.
deduzido ao longo da obra, a consciência da relevância das
inclinações culturais e a crença nas promessas
constitucionais, comparar recentes disposições especiais do
Processo Penal, nascidas para cuidar de manifestações
diferentes da criminalidade, com o princípio e o sistema
acusatórios.
O resultado, a nosso juízo, exprime o reconhecimento
de que há grandes espaços a percorrer, muita disposição
cultural estranha à Constituição a ser enfrentada e um
aparente sistema acusatório operando, aguardando o
esforço da doutrina e da jurisprudência para vencer esta
etapa e transformar-se em um sistema acusatório real, capaz
de articular segurança e direitos fundamentais, controle
social e dignidade humana.
Quero expressamente agradecer a Afrânio Silva Jardim
pela oportunidade de desfrutar de sua amável e profícua
companhia intelectual na composição da dissertação de
mestrado que deu origem ao livro. Dos eventuais acertos o
crédito, por justiça, pertence ao excepcional processualista e
amigo. Agradeço também, expressamente, aos juristas Luiz
Flávio Gomes e Alberto Silva Franco pelas oportunas
indicações bibliográficas; a Weber Martins Batista, este por
haver despertado em mim, com suas aulas inesquecíveis, a
paixão pelo estudo do Processo Penal; e ao corpo docente do
curso de mestrado em Direito da Universidade Gama Filho.
Nota do Autor à 2ª Edição baseada em procedimentos que têm em vista o objetivo de
conter os abusos do poder e criar condições para que este
mesmo poder possa integrar as pessoas, eliminando dentro
do possível todas as formas de discriminação.
Certamente distante de ter conseguido realizar o Na era pós-moderna, o processo penal vai cada vez mais
propósito anunciado na primeira edição, de submeter ao assumindo posturas pré-modernas e, por essa razão, a
teste de conformidade ao sistema acusatório parte da análise crítica das categorias processuais é indispensável.
legislação processual penal brasileira, apresento esta Este continua sendo o meu objetivo.
segunda edição. Em vista disso, aceitei o desafio de tratar da oralidade e
Os leitores logo perceberão que se trata de trabalho da publicidade, enfrentando os problemas derivados da forte
modificado e acrescido, com ênfase especial às questões que interferência dos meios de comunicação de massas nas
atormentam o profissional do direito em seu cotidiano. Os questões relativas ao crime e à punição de seu autor. Sobre o
acréscimos não afetam seu conteúdo original ² e as idéias tema havia muito mais a dizer, no entanto preferi restringir a
que sigo defendendo ² ou perturbam sua forma acadêmica. abordagem aos pontos de conexão com o sistema acusatório.
Pelo contrário, marcam a aliança que reputo indispensável Acrescentei um capítulo, dedicado ao processo de
entre teoria e prática, a fim de demonstrar que o mito, fraco execução, zona sombria onde o que acontece parece não
em todos os sentidos, de que há um abismo entre a academia interessar à comunidade. A medida da nossa civilização será
e o foro, nada mais é do que posição ideologicamente futuramente apreciada pelo modo como, no presente,
orientada no campo do processo penal a fomentar a cuidamos do controle social punitivo.
descrença na validade das garantias fundamentais Pesei longamente as críticas e, salvo pela intransigente
conquistadas e mantidas a duras penas por nossos defesa da imparcialidade do juiz como premissa de que a ele
antepassados. compete julgar as causas e não tomar a si a aplicação do
Insisto em reafirmar os postulados do Garantismo, direito penal, procurei aperfeiçoar o texto e corrigir
muito embora reconheça, em trabalhos mais recentes, a eventuais equívocos.
necessidade de pensar uma teoria do processo penal voltada Não seria sincero se dissesse que não estou feliz com o
à realidade brasileira e latino-americana. As linhas mestras resultado. Muitas vezes nos colocamos um desafio superior
dos princípios liberais dos séculos XVIII e XIX, na Europa às nossas forças justamente para tentarmos nos superar e
Ocidental, não devem ser abandonadas. Porém, a articulação oferecer aquilo que há de melhor em nós. Penso que, no meu
das garantias aos projetos de emancipação das sociedades caso, a profissão de fé que me anima e me faz juiz e professor
periféricas certamente não poderá ter lugar sem adaptações e consiste em acreditar que, por meio do meu trabalho, presto
sem o reconhecimento das peculiaridades das nossas contribuição para tentar melhorar a vida das pessoas.
sociedades no tabuleiro pós-moderno imposto no jogo Devo muito ao Curso de Mestrado em Direito da
(jugo?) da globalização. Universidade Estácio de Sá ² UNESA, pois as pesquisas que
O Garantismo não é uma religião e seus defensores não desenvolvi no projeto Defesa Penal, incentivado pela referida
são profetas ou pregadores utópicos. Trata-se de um sistema Instituição, foram incorporadas ao texto desta segunda
incompleto e nem sempre harmônico, mas sua principal edição, lançando luz sobre aspectos fundamentais do
virtude consiste em reivindicar uma renovada racionalidade, trabalho.
Por fim, anoto uma correção necessária e uma enorme
frustração. Ao dedicar a primeira edição deste livro à mulher mestrado, ao fim dos anos 90, dez anos depois da
que amo, aconteceu de serem omitidas as aspas à poesia de promulgação da Constituição da República de 1988.
Fernando Pessoa. Muitos imaginaram em mim uma veia Toda a estrutura do livro foi pensada no contexto criado
poética que, lamentavelmente, não possuo. Eduardo pela tensão entre uma Constituição rica em garantias no
Galeano, frustrado por não saber pintar, registrou um dia processo penal e a realidade de uma sociedade ainda não
que lhe deram o dom de escrever para que pudesse pintar em acostumada com os ares da liberdade conquistada com o fim
forma de prosa. Gostaria de ser músico mas me faltam as do regime militar.
qualidades para isso. Escrevo inspirado em harmonias ideais A experiência acadêmica e a prática cotidiana, como juiz
e ritmos imaginários, intuições que só conhece quem criminal no Rio de Janeiro, foram decisivas na fixação das
verdadeiramente ama. E isso eu devo a Giselle. fronteiras do trabalho. A certeza de que só muito
timidamente a doutrina do Processo Penal no Brasil
conseguia empreender vôos teóricos audazes, enquanto em
outros lugares a reconquista da liberdade política vinha
associada a mudanças estruturais do processo penal,
principalmente através do abandono dos modelos
inquisitórios, motivou a escolha do tema e a eleição do
orientador, Afrânio Silva Jardim, a quem até hoje sou grato
por tudo.
Sistema Acusatório, portanto, tinha tudo para ser um
livro datado. E em alguma medida ainda tem. Há capítulos
que investigam o Direito estrangeiro e também algumas leis
penais especiais brasileiras. 1mRILFDUDP³FRQJHODGRV´QHVWD
terceira edição. Por óbvio que no tocante ao direito de fora
há um limite de atualização, estabelecido por diversas razões.
E neste particular sou grato a Aury Lopes Jr., que me sugeriu
investiir em uma última e moderada atualização, advertindo
o leitor interessado neste aspecto da matéria para que
sempre confira o estado do tema em fontes atualizadas do
País escolhido.
Sobre as leis especiais brasileiras o que posso dizer é
Nota do Autor à 3ª Edição que de tal modo a pesquisa empreendida para apreender-
lhes o conteúdo foi estimulante que, posteriormente, no
doutorado e em outras atividades da vida acadêmica,
terminei produzindo obras centradas com exclusividade
O leitor tem em mãos a terceira edição do Sistema
nelas. Estas obras são citadas no livro, todavia mesmo neste
Acusatório.
tópico o Sistema Acusatório mantém interesse, pois permite
Trata-se de uma obra concebida originalmente em
a quem se inicia em processo penal ter visão panorâmica da
circunstância precisa: a defesa de uma dissertação de
matéria, abragente de algo maior que o Código de Processo
Penal brasileiro, hoje de aplicação quase residual. disciplinas. Nesta Escola Crítica é possível identificar muitos
Estes pontos foram profundamente modificados, assim pontos de partida diferentes e perceber a convergência do
como tudo o que compreende os cinco primeiros capítulos, destino: melhorar o processo penal do Brasil para que ele
em suma, o cerne da obra. não seja instrumento de perpetuação da desigualdade e da
Não se trata de um livro novo, muito embora quem o injustiça.
tenha escrito seja hoje alguém bastante diferente do autor da E vários conceitos foram aperfeiçoados graças a essa
edição original. O importante é que a linha mestra, a espinha extraordinária (para mim) convivência. Ao jurista Jacinto
dorsal, consistente na compreensão do sistema processual Nelson de Miranda Coutinho, do Paraná, eu devo a
penal eleito em 1988, pelos constituintes, tenha sido apresentação a Franco Cordero (falha grave em minha
mantida. bibliografia original, que assumo integralmente, porque
O aprofundamento da abordagem tem vários motivos. Afrânio já chamara atenção para a singularidade da ótica de
A começar pelo sucesso da obra, que é motivo de Cordero).
orgulho para mim. Adotado em cursos de pós-graduação Pelo menos uma conseqüência deriva disso: quando
stricto sensu, o livro abriu espaço para diálogo entre escolas passei a trabalhar também com Michele Taruffo e Alberto
brasileiras de processo penal que coexistiam, porém não Binder pude divisar diferenças funcionais entre o processo
conviviam. penal fundado na apuração do fato (e solução do caso) e o
E foi um diálogo rico, retratado, por exemplo, no debate processo penal, dirigido pela idéia de composição de
acerca da existência de um terceiro gênero: o sistema conflitos, que permeia o modelo de justiça penal consensual.
adversarial, defendido por aqueles doutrinadores que As conclusões são minhas, com os riscos de erro e acerto
reconhecem a existência de poderes supletivos de inerentes. A matriz teórica sofreu, todavia, influência desses
investigação judicial (o juiz estaria autorizado a produzir autores e, por certo, Cordero foi um dos mais importantes.
provas de ofício e isso não afetaria a natureza do sistema Garantindo desde logo aos não versados em filosofia
acusatório). O sistema adversarial seria uma espécie que isso não impede a leitura e o aproveitamento da obra,
(remanescente) de sistema acusatório puro, em que o juiz quero ressaltar ainda a importância dessa invasão (limitada,
permanece inerte, isto é, não produz provas. O leitor terá a infelizmente) da história e, principalmente, da filosofia.
oportunidade de acompanhar esse debate, que é central Com efeito, no prólogo da edição argentina do trabalho
quando se pensa na reformulação completa ou mesmo na extraordinário de James Goldschimidt, denominado
substituição do quase-morto Código de Processo Penal de Problemas Gerais do Direito, obra publicada postumamente,
1941. Eduardo Couture chama atenção para o estado de angústia
Além do(s) diálogo(s) flagrado(s) nas páginas dessa que atinge o jurista, quando percebe as limitações de uma
nova edição, sempre com respeito pelos pontos de vista ciência construída sobre bases estritamentes dogmáticas.
contrários aos que se defende aqui, houve também alguma 6mRSDODYUDVGH&RXWXUHWUDGX]LGDVOLYUHPHQWH³eTXH
mudança de conceitos. na vida de todo jurista há um momento em que a intensidade
A constituição nos últimos anos de uma espécie de do esforço em torno aos textos legais conduz a um estado
Escola Crítica de Processo Penal brasileiro, integrada por particular de insatisfação. O direito positivo se vai
juristas de várias partes do país, sem lideranças intelectuais despojando de detalhes e fica reduzido a uma ciência de
verticalizadas, mostrou como é possível avançar em temas grandes planos. Por sua vez, estes grandes planos reclamam
difíceis e tentar descomplicá-los, recorrendo a outras um sustento que a própria ciência não lhes pode dispensar. O
jurista adverte então, como se a terra lhe faltasse aos pés e sempre produzem efeito, espero que o presente tenha
clama pela ajuda da filosofia. A maior das desditas que pode agradado!), até a dos dias que eu, Giselle, Gabriela, Felipe e
ocorrer ao jurista é a de não haver sentido nunca sua Luis Fernando (o Lula, de nove anos, primo do Felipe)
GLVFLSOLQDHPXPHVWDGRGHDQVLHGDGHILORVyILFD´ passamos em Búzios, no ínicio de 2005, hospedados pelo
O encontro com a interdisciplinaridade facilitou a estimado Fábio Andrade, quando pude (quase) concluir essa
minha forma de lidar com o processo penal. Creio que será terceira edição de frente para o mar e em paz com Deus.
igualmente útil ao leitor. O que posso dizer é que fiquei muito feliz com o resltado
No plano da simplificação devo ao prof. Décio Alonso e espero que você também fique.
Gomes e a pesquisadora Laila Guimarães Ferreira talvez a Geraldo Prado
mais importante contribuição desta terceira edição. Ambos
mostraram a penetração do livro junto ao público de geraldoprado@terra.com.br
estudantes de graduação e identificaram trechos em que a www.direitosfundamentais.com.br
linguagem pesada das teses dificultava a compreensão. Aliás,
Giselle já me havia advertido para isso e nesta terrceira
edição eu me dediquei a aliviar o peso da escrita mais
hermética, na tentativa de fazer chegar aos alunos da
graduação as razões do meu entusiasmo, quanto vezes
identificado por eles em palestras e conferências.
Espero ter atingido o objetivo, até porque as maiores
alegrias que o magistério me proporcionou eu devo aos
alunos da graduação. Nestes últimos anos são os da
Faculdade Nacional de Direito e da Universidade Estácio de
Sá. Em outras épocas foram os da UNIG, Universidade Gama
Filho, Veiga de Almeida e Cândido Mendes, sem contar os do
CEPAD. E pelo Brasil afora há os de Campos dos Goytacazes,
Recife, Curitiba, Porto Alegre...
Laila Guimarães Ferreira e Aline de Souza Siqueira,
ambas da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, cooperaram, ainda, na atualização da
pesquisa de jurisprudência e doutrina. Sou muito grato a
ambas.
1. Introdução
Entre me decidir por reeditar o Sistema Acusatório e
trazê-lo de volta às livrarias quase dois anos se passaram.
Muitas histórias também. Desde a história da namorada, que No julgamento do Habeas Corpus no 73.338-7, no
não é da área do direito, mas extraiu de mim o último Supremo Tribunal Federal, em decisão publicada no Diário
exemplar da segunda edição para presentear o namorado da Justiça de 19 de dezembro de 1996, assinalou-se,
paranaense, estudante de graduação da Faculdade de Direito enfaticamente, que a persecução penal rege-se, enquanto
da Universidade Federal do Paraná (essas coisas de coração
atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões princípio do due process of law, ou, antes, o julgamento
normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, conforme às leis da terra, segmentos significativos da
traduzem limitações significativas ao poder do Estado.1 comunidade, do ponto de vista político, econômico ou
Assim é que, contemporaneamente, não mais se concebe a cultural, têm se preocupado com a limitação ao arbítrio dos
atuação do Estado em busca da imposição da sanção penal governantes e a proteção e preservação da dignidade da
aos autores das infrações penais, fora dos marcos pessoa humana.
processuais estabelecidos pelas leis e, principalmente, pela A questão que se impõe investigar, neste trabalho, diz
Constituição. Nulla poena sine judicio. respeito aos aspectos normativos da estrutura sobre a qual se
Trata-se, pois, de assegurar que o exercício legítimo do estabelece e desenvolve a atividade persecutória, conforme a
poder punitivo, reservado com exclusividade ao Estado, seja Constituição e a realidade do processo penal. Exame dessa
implementado de acordo com princípios éticos adotados natureza considera em que medida a própria Constituição é
expressa ou implicitamente na Carta Constitucional2. Dessa confrontada com a legislação ordinária e com a ação concreta
maneira, o que se pretende é fazer valer em concreto os de juízes, membros do Ministério Público, advogados e
direitos e garantias proclamados pelo legislador constituinte acusados, e integrantes das forças públicas de perseguição
e evitar, justamente no exercício daquela expressão de poder penal. Salienta Ferrajoli, a propósito da ingente tarefa que
mais danosa ao conjunto das mínimas condições de culminou com a constituição teórica de um Sistema
dignidade da pessoa humana, que se opere indevida e Garantista, que o exame do sistema penal (no caso o
desproporcional limitação aos denominados direitos italiano) há de considerar uma tríplice diferenciação interna,
fundamentais. O princípio mencionado ² nulla poena sine que corresponde a uma tríplice divergência entre princípios
judicio ² não se exaure assim na mera legalidade dos garantistas codificados e constitucionalizados e seu modelo
procedimentos penais, como será visto adiante, teórico e normativo, além do modo efetivo como se
fundamentando-se, para além da simples legalidade formal apresenta em consideração às realidades legislativa e
dos modos de proceder, em uma perspectiva ética que vai jurisdicional.3
cimentar-se na legitimidade constitucional da atuação dos Também aqui será perspectivada essa tríplice
principais personagens envolvidos com a persecução penal e diferenciação, em relação ao Sistema Penal e, em particular,
na estrutura e funcionamento das instituições próprias desta ao sistema processual vigente, porque importa ressaltar o
atividade. confronto entre idéias e práticas funcionalistas voltadas à
Tal ordem de coisas não é, certamente, nova, pois pelo cultura da eficiência punitiva, como propósito da atuação dos
menos desde a Magna Charta, de 1215, que inspirou o agentes do Estado, e a doutrina e as práticas garantistas,
herança do Iluminismo, que relevam os vínculos
1 Habeas Corpus nº 73.338-7, impetrado em favor de José Carlos Martins estabelecidos para tutelar as pessoas frente ao arbítrio
Filho em face do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Relator: punitivo.
Celso de Mello. Acórdão da 1ª Turma, publicado no Ementário nº 1.855-02, Logo na introdução é importante destacar que as
do Supremo Tribunal Federal.
2 Ada Pellegrini Grinover salienta, em O Processo Em Evolução (Rio de ferramentas teóricas a serem empregadas combinam a
Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 9), que os processualistas da metodologia da análise funcional e, em parte, da teoria dos
última geração estão hoje envolvidos na crítica sociopolítica do sistema,
que transforma o processo, de instrumento meramente técnico, em
instrumento ético e político de atuação da justiça substancial e garantia 3 Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal, Madrid:
das liberdades. Trotta, 1997, p. 25.
sistemas com categorias e conceitos desenvolvidos pela de 70 e 80 do século XX.
dogmática do processo penal e pelas diversas correntes da O que, afinal, o leitor pode esperar? Caso seja estudante
criminologia crítica. GH GLUHLWR DFRVWXPDGR D ³DSUHQGHU´ SHOD OHLWXUD H
É curial colocar em relevo os métodos e instrumentos da ³LQWHUSUHWDomR´GR&yGLJRGH3URFHVVR3HQDOHVWHHVWXGDQWH
pesquisa. No estudo cotidiano do Direito, no Brasil, não é irá se deparar com uma forma completamente distinta de
comum encontrar indicações de método nos manuais compreensão do Direito Processual Penal.
adotados nas Faculdades e usados pelos profissionais. Pode O leitor verá que somente o contexto histórico permite
parecer questão menor, cujo conhecimento é perfeitamente entender porque o processo penal de cada país tem as
dispensável. características que tem e, ainda, porque a Constituição e as
Não é assim! O estudioso das questões penais deve leis dizem uma coisa e a prática mostra outra.
saber, desde o início, que não há neutralidade em termos de Saberá, também, que há modelos diferentes de Processo
Direito e Processo Penal. Estas matérias são atravessadas Penal, que o próprio modelo em vigor no Brasil balança entre
pela política e quando os procedimentos tomam corpo nas exigências normativas garantistas e práticas autoritárias e
'HOHJDFLDV GH 3ROtFLD H QRV IyUXQV D WHRULD ³QHXWUD´ GD que leis editadas basicamente na mesma época, depois da
maioria dos Manuais não reflete os conflitos apreciáveis a Constituição de 88, reproduzem esta contradição.
olho nu. Para tanto este leitor exigente entenderá que há nova
Conhecer, portanto, o processo penal implica conhecer dogmática jurídica, isto é, que o conjunto de conceitos e
as razões de fundo, políticas, que orientam escolhas tais categorias empregados pelo jurista não é mais o mesmo das
como não termos Juizados de Instrução, preferindo atribuir décadas precedentes.
ao Ministério Público a tarefa de acusar. Isso é aspecto Esta dogmática crítica que na atualidade, vale repetir,
manifesto de um sistema que traz latente, fora do campo de deve ser conhecida pelo profissional competente, é fruto da
visão da simples prática forense, outras tantas escolhas ± combinação, do diálogo, entre diversas disciplinas.
acertadas ou não -, como, por exemplo, facultar-se ao juiz A malograda separação entre disciplinas, que relegava a
produzir provas de ofício. sociologia e a filosofia, sem falar na criminologia, a postos
Para o estudioso responsável, que almeja exercer com secundários na estrutura do aprendizado do Direito, pois
competência qualquer profissão na área penal, afigura-se que, supostamente, no futuro não serviriam ao profissional
obrigatório estar dotado de conhecimento teórico que o dessa área, ruiu. A análise jurídica dos fenômenos só obtém
torne apto a entender o funcionamento do aparato status de apreciação científica quando considera a relação
repressivo do Estado. inevitável entre o que se quer conhecer ± o funcionamento
Este é um livro de processo penal. Trata-se de obra do Sistema de Justiça Penal ± e quem quer conhecer. Não
elaborada a partir da dogmática jurídica. Da dogmática H[LVWHFRQKHFLPHQWR³REMHWLYR´HDVVpSWLFRGRVIHQ{PHQRVGD
crítica, é certo, pois sem os intrumentos da crítica a iniciação vida em sociedade.
ao processo penal levaria o estudioso a ficar perdido em um A escolha do Sistema Acusatório é clara! Introduzir o
mundo de teorias desencontradas da prática. Porém, é a estudo do processo penal por meio da investigação do
dogmática jurídica que possibilita a investigação do sistema funcionamento concreto dos sistemas. A isso a doutrina
de justiça penal e esta dogmática jurídica é bastante chama análise funcional.
diferente do conjunto de conceitos e categorias que os Para os que estão mais avançados no estudo jurídico é
autores brasileiros se acostumaram a produzir nas décadas preciso ter cuidado com os preconceitos. No Brasil, durante
os anos 90 e mesmo no início deste século XXI, um maior parte das pessoas, parece óbvio que há de se rechaçar
determinado tipo de funcionalismo esteve em voga. esta ideologia.
Mais precisamente no âmbito do Direito Penal Esta última é a posição adotada no Sistema Acusatório.
importaram-se conceitos funcionalistas herdados, porém Em nenhum momento o livro toma partido da ideologia
nem sempre fiéis, ao pensamento de Niklas Luhmann. Não funcionalista. Sistema Acusatório serve-se, tão-só, da análise
que a fidelidade às posições originais de Luhmann funcional para entender o Sistema de Justiça Penal.
UHSUHVHQWHTXDOTXHUJDUDQWLDGH³DFHUWRWHyULFR´1mo é isso. É preciso, pois, distinguir análise funcional de ideologia
O que se deseja sublinhar é a existência de interpretações funcionalista.
funcionalistas de variada espécie, centradas em uma Recorrendo outra vez a Arnaud, entende-se por análise
ideologia: a ideologia funcionalista. IXQFLRQDO ³XPD IRUPD RX PpWRGR GH FRQKHFLPHQWR
Em síntese, nesta introdução, é necessário frisar que científico que, concretamente ± e para o que aqui nos
SRU ³LGHRORJLD IXQFLRQDOLVWD´ HQWHQGH-VH ³XPD µILORVRILD interessa -, analisa e explica o direito ± assim como outros
VRFLDO¶ RX XPD µWHRULD JOREDO GD VRFLHGDGH¶ TXH WHQGH D fenômenos normativos -, estuGDQGRDVµIXQo}HV¶RXDVWDUHIDV
formular explicações ontológicas, aprioríticas e até que o direito realiza para a sociedade, as que ele deveria
metafísicas, no que diz respeito às funções desenvolvidas realizar, e como ele as realiza ou deveria realizá-ODV´6.
QXP VLVWHPD VRFLDO SRU VHXV HOHPHQWRV´4. Esta ideologia Assim, nem toda análise funcional é devedora da
como outra qualquer, tomada a palavra ideologia em sentido ideologia funcionalista. Pelo contrário, é possível trabalhar
negativo (encobrimento da realidade), impõe: a) certo grau com esta ferramenta para negar a validade da ideologia
GH DGHVmR DFUtWLFD DRV FRQFHLWRV H YDORUHV ³UHYHODGRV´ SHOD funcionalista e revelar como, porque e para quem funciona o
ideologia; b) o convencimento (muitas vezes a fé mesmo) de Sistema de Justiça Criminal. Novamente Nilo Batista e
que somente obedecendo com fidelidade aos paradigmas da Zaffaroni irão nos lembrar que até certos textos marxistas
ideologia o sistema social funcionará adequadamente. podem corresponder a este tipo de análise. Assinalam os
A conseqüência prática disso é colocar o sistema acima PHQFLRQDGRV DXWRUHV TXH ³GLVVR UHVXOWD TXH HPERUD WRGD
das pessoas, na realidade acima do interesse da maioria das concepção orgânica de sociedade tenda a ser antidemocrática
pessoas. E esta maioria é formada por pessoas que não se e reacionária, não é possível dizer a mesma coisa das análises
beneficiam da manutenção do status quo. A ideologia funcionais, que representam apenas um método paralelo às
funcionalista é a ideologia da manutenção das coisas como H[SOLFDo}HVFDXVDLVHLQWHQFLRQDLVQDVFLrQFLDVVRFLDLV´7.
estão, ou, de acordo com Zaffaroni e Nilo Batista, é a Nesse sentido, eleita a realidade dos fatos como o pano
ideologia da estabilidade5. de fundo da investigação normativa, a força desta
Para o leitor eventualmente satisfeito com o estado investigação deve residir na disposição de elaborá-la
atual das coisas, trata-VH GD LGHRORJLD ³LGHDO´ 3DUD DTXHOH criticamente, ou seja, livre dos conceitos que, difundidos
leitor, porém, convicto de que a ordem constitucional doutrinariamente, denunciam posições apriorísticas nem
brasileira está orientada a melhorar a condição de vida da sempre compatíveis com o modelo real da base de
sustentação institucional do processo penal vigente. A
4
ARNAUD, André-Jean e DULCE, María José Farinas, in Introdução à análise
sociológica dos sistemas jurídicos, Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 141-2. 6
5 Op. cit., p. 141.
BATISTA, Nilo, ZAFFARONI, Eugenio Raúl, ALAGIA, Alejandro e SLOKAR,
7
Alejandro in Direito Penal Brasileiro ± I, Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 622. BATISTA, ZAFFARONI et alli. Op. cit., p. 622.
incoerência de determinadas explicações acerca do Direito principalmente, na ótica do seu ser real, verdadeiro. Por isso,
Processual Penal, no Brasil, decorre da tentativa de conciliar não se abrirá mão da incursão histórica e seu componente
o inconciliável, de conferir às práticas processuais penais, ao ideológico que, no Brasil de 1988, fundaram o pensamento
menos no âmbito do discurso, foro de legitimidade dos que produziram a Constituição,10 ultimando a transição
constitucional quando algumas não o têm, escondendo-se em direção à democracia.
desse modo a verdadeira tensão estabelecida em razão da É curial assinalar de início que a estrutura processual
discrepância entre o preceito jurídico e a sua implementação. penal está inserida não só em um contexto normativo, cujas
Com efeito, cumpre fazer da crítica o predominante linhas mestras são ditadas pela Constituição da República,
método deste trabalho, assim entendida a expressão, na como também se encontra situada em um plano político
concepção de Michel Miaille, como sendo a possibilidade de integrado a todo o sistema penal.
fazHUDSDUHFHUR³LQYLVtYHO´.8 Por sistema penal entendemos, como Sandoval Huertas,
Significa dizer não apenas que o objeto do nosso estudo, al conjunto de instituciones estatales y a sus actividades,
tal seja, o sistema acusatório, conforme posto pela que intervienen en la creación y aplicación de normas
Constituição9 e a estrutura processual estabelecida nas penales, concebidas estas en su sentido más extenso, valga
principais leis que se seguiram à promulgação da Carta, deve decir, tanto disposiciones sustantivas como
ser visto na perspectiva do seu dever ser mas, procedimentales.11 Saliente-se por oportuno que este
entendimento de sistema penal não é concebido
8 Miaille, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2ª ed. Lisboa: Estampa, exclusivamente à luz das pretensões normativas e das regras
1989, p. 21. programáticas que o ordenamento jurídico consagra. Antes,
9 Em um dos seus últimos artigos, o eminente professor José Frederico pelo contrário, como é perseguida a visão crítica, é preciso
Marques assinalou que a nova ordem constitucional optou pelo sistema
acusatório, salientando que a estrutura processual fundada em um ter os pés na terra e a vista posta nas ações institucionais dos
contexto de relações jurídicas entre pelo menos três sujeitos ² autor, réu e organismos de repressão penal para, deste modo, atestarmos
juiz ² SUHVWLJLDR³fundo político democrático-liberal de suas origens´GH quanto à implementação verdadeira das balizas legais e
sorte a constituir a essência do processo penal atual, na linha de
pensamento coerente com aquela modelar, paradigmada nas lições de
constitucionais e não ficarmos presos a estéreis e infundadas
Giuseppe Bettiol (Marques, -RVp )UHGHULFR ³2 3URFHVVR 3HQDO QD suposições.
$WXDOLGDGH´ in Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo: Por isso Nilo Batista e Zaffaroni falam em agências
Acadêmica, 1993, p. 17). Assim também entende o culto professor e
Promotor de Justiça Afrânio Silva Jardim, como se vislumbra da seguinte
penais. Os gestores da criminalização, os entes encarregados
passagem da sua conhecida obra Direito Processual Penal (6ª ed., Rio de GHOHYDUDRWHUPRD³VHOHomRSHQDOL]DQWH´IXQFLRQDPde uma
Janeiro: Forense, 1997, p. 197), comentando acórdão da 4ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: Destarte,
podemos asseverar que, pelo sistema processual acusatório, adotado pelo 10 Salienta Miaille que o método crítico está alicerçado no pensamento
vigente Código de Processo Penal e depurado pela nova Constituição, dialético, tal seja, parte-se da experiência de que o mundo é complexo: o
descabe ao Poder Judiciário determinar ao Ministério Público quando e real não mantém as condições da sua existência senão numa luta, quer ela
como deve ser proposta a ação penal pública. E. Magalhães Noronha seja consciente quer inconsciente. Destaca o pensador portanto que um
(Curso de Direito Processual Penal, 25ª ed., atualizada por Adalberto José SHQVDPHQWR GLDOpWLFR p SUHFLVDPHQWH XP SHQVDPHQWR TXH ³FRPSUHHQGH´
Q. T. de Camargo Aranha, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 307), José Lisboa da esta existência contraditória e conclui dizendo que o pensamento crítico
Gama Malcher (Manual de Processo Penal Brasileiro, vol. I, Rio de ou dialético é dinâmico, apreendendo a realidade não só no seu estado
Janeiro: Freitas Bastos, 1980, p. 68), Julio Fabbrini Mirabete (Processo actual, mas na totalidade da sua existência, quer dizer, tanto naquilo que
Penal, São Paulo: Atlas, 1993, p. 42) e, naturalmente, Fernando da Costa o produziu como no seu futuro. (Miaille, ob. cit., pp. 21-22).
Tourinho Filho (Processo Penal, vol. I, 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 11 Huertas, Sandoval Emiro. Sistema Penal y Criminología Crítica, Bogotá:
90) sustentam que o sistema processual em vigor no Brasil é o acusatório. Temis, 1994, p. 6.
determinada maneira, com independência de como os sobre Direito Penal, Estado e Constituição,16 assinala com
professores e doutrinadores de Processo Penal imaginam a razão que a estipulação das categorias jurídicas submetidas
³DWXDomRGRSURFHVVRSHQDO´jOX]GD&RQVWLWXLomRHGDVOHLV12. ao trabalho de classificação do jurista não deve desvincular-
Zaffaroni,13 a propósito, aduz que o sistema penal deve se por completo dos parâmetros normativos instituídos
ser entendido como controle social punitivo especialmente pela Constituição. Assim é que, salienta o
institucionalizado, atribuindo-se à expressão doutrinador, se reconhecemos que não há consenso
³LQVWLWXFLRQDOL]DGR´ FRPR UHVVDOWD 1LOR %DWLVWD ³D acepção classificatório na doutrina e precisão terminológica dentro
de concernente a procedimentos estabelecidos, ainda que da própria Constituição, também é verdade que pelo menos
QmROHJDLV´.14 cinco categorias jurídicas básicas são identificáveis à luz do
Portanto, não bastará ao estudo definir em que consiste texto maior: direitos, garantias, normas, princípios e
um sistema acusatório e depois sublinhar que a nossa remédios.17
Constituição o adotou se, confrontada a Constituição com a É necessário debater a questão delicada da afirmação da
estrutura processual ordinária, resultante das novas e velhas existência de uma outra categoria,18 isto é, daquela definida
leis, concluirmos que na prática muitas vezes não se como sistema, com todas as conseqüências derivadas desta
observam os elementos essenciais do sistema acusatório. positivação, sem olvidar que em diversas hipóteses é possível
Não custa lembrar a advertência de Ferrajoli, para enquadrar o mesmo instituto jurídico em modelos
quem, considerando a diferenciação dos vários níveis de diferentes.
normas agregadas no ordenamento jurídico (leis, Além disso, releva destacar a premissa de uma eleição
regulamentos, resoluções etc.), é comum observar no nível constitucional de valores, pesquisando-se os aspectos que
normativo superior (a Constituição da República) um estado resultam predominantes ou devem predominar no contraste
de coisas refutado por disposições de níveis normativos entre a Constituição jurídica e a Constituição real,19 uma vez
inferiores (leis e até regulamentos) e da prática judicial,
ensejando a tendência de não efetividade do primeiro e
16 Lopes, Mauricio Antonio Ribeiro. Direito Penal, Estado e Constituição, São
ilegitimidade dos segundos.15 Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 3, 1997.
É evidente que da problemática proposta algumas 17 Lopes, Mauricio Antonio Ribeiro. Ob. cit., p. 73.
questões antecedentes e conseqüentes deverão ser 18 Aproprio-me, aqui, da definição de categoria jurídica utilizada por Lopes
(ob. cit., p. 71), tal seja, conhecimento não hermético. Vale frisar que a
necessariamente extraídas, enfrentadas e vencidas, isto é, se expressão será empregada com objetivo descritivo, conforme opera a
há realmente uma estrutura normativa acusatória no Sociologia do Direito, e não visando alguma identificação ontológica, típica
processo penal brasileiro, como frisamos, e, em caso da filosofia jurídica, embora não haja como distinguir por completo os dois
afirmativo, se essa estrutura revela um princípio de natureza campos e não se olvide que o conjunto de significados idealizados pelos
vocábulos característicos de uma época serve igualmente ao propósito
constitucional e/ou um sistema. cognitivo e aos de ordenação e orientação da realidade. Acresça-se a isso
Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, em obra versando que também a expressão estrutura, já diversas vezes mencionada, tem seu
sentido científico fortemente determinado. Para Verdú, a cujo pensamento
nesse tópico vamos aderir, compreende-se por estrutura o conjunto de
12
elementos interdependentes que configuram, organizam e produzem, com
Idem, p. 43. relativa permanência, os diferentes procedimentos (Verdú, Pablo Lucas.
13 Eugenio Raul Zaffaroni, apud Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Princípios de Ciencia PolíticaI, tomo II, Madrid: Tecnos, 1979, pp. 24 e 21).
Penal Brasileiro, Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 25. 19 Constituição real aqui mencionada à vista da definição que lhe atribui
14 Idem. Konrad Hesse, in A Força Normativa da Constituição, traduzida por
15 Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal, p. 104. Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.
que, como se sabe, a realidade da persecução penal pode condições historicamente verificadas por ocasião da edição
distanciar-se concretamente da promessa constitucional. das normas. Fora do contexto histórico não se explicam
Isso acontece, por exemplo, não só quando a tortura é eleições de instituições, que se expressam sempre por meio
empregada como método de investigação, na busca da tão de uma estrutura, institutos e valores, em detrimento de
propalada (profanada) verdade real, como ainda quando os outros da mesma natureza ou não, porém de conteúdo
tribunais admitem a aplicação de institutos jurídicos diferenciado ou até mesmo oposto.22
incompatíveis com o paradigma constitucional da estrutura Este é, pois, nosso plano de trabalho, voltado ao final à
processual. aspiração de que o momento constitucional de 1988 não
Para ilustrar, resgatando nossa história recente, vale pode nem deve ser esquecido ou amesquinhado por uma
dizer que, em pesquisa que resultou na publicação do livro interpretação da Constituição Jurídica conforme modelos
Brasil: Nunca Mais,20 constatou-se, apesar dos imperativos criminais dela divorciados mas aparentemente consagrados
da ordem constitucional então vigente no regime autoritário na Constituição real.
² 1964 a 1988 ², que em vários julgamentos dos tribunais
superiores, princípios como o da imparcialidade do juiz, da
presunção da inocência (versus in dubio pro condenação),
do contraditório (versus decisão calcada exclusivamente em
elementos de convicção colhidos no inquérito policial) e
motivação das decisões de natureza jurisdicional21 foram
repudiados, pura e simplesmente.
Fica portanto a interrogação: é correto afirmar que há
um princípio acusatório a inspirar a ordem constitucional?
E, em caso afirmativo, é também correto dizer que do
confronto entre a estrutura processual desejada pela
Constituição da República e aquela disposta nas leis
ordinárias que serão examinadas, o princípio ou sistema
acusatório está realmente assegurado?
Finalmente, convém ainda explicitar em que
circunstâncias históricas, determinados valores
estruturantes do processo penal constituíram objeto da
atenção e da regulação constitucional, em contraposição ao
fundo cultural que posteriormente veio alicerçar a maior
parte das leis processuais, densificando-se interpretações
doutrinárias aparentemente distintas dos caminhos 22 O direito, enquanto fenômeno cultural, é de certa forma vassalo da história
HQmRSRGHVHUµFRPSUHHQGLGR¶FRPRDOJR D KLVWyULFR1RYDPHQWHFXPSUH
apontados pela Lei Maior. A análise crítica conecta ao estudo realçar a lição de Miaille (ob. cit., p. 55), na refutação à prática de redução
jurídico das diversas categorias processuais o exame das da importância da História para o Direito: Assim, apesar de algumas
WHQWDWLYDVSDUD³VLWXDU´DVTXHVW}HVGHGLUHLWRKLVWRULFDPHQWHUDUDPHQWH
os juristas falam uma linguagem histórica. Ainda acrescenta o pensador
20 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985. que, no fundo, a história não interessa realmente o jurista, porque uma
21 Idem, pp. 176-199. óptica idealista-universalista é precisamente oposta a uma tal reflexão.
2. -O Direito Processual Penal e a Conformidade Ainda assim, por igual, não se controverte sobre haver
Constitucional sido o direito ² como de resto continua sendo ²
instrumento simbólico de limitação do Poder,4 estabilizando
as expectativas dos integrantes da sociedade. No passado, a
dimensão religiosa conferida ao Poder subordinava a
2.1. Introdução sociedade à autoridade de um direito sagrado e, dessa forma,
considerando os restritos papéis sociais disponíveis, era
Afirma Luhmann que toda convivência humana é possível ao direito garantir sua força rigidamente
direta ou indiretamente cunhada pelo direito.1 As integradora e de regulação. Eliminado, porém, o respaldo
implicações do direito na sociedade, particularmente desde o religioso, com o advento da era contemporânea partiu-se de
século XVIII, serão observadas mais à frente, porém, sem premissas deduzidas mais enfaticamente pelos
dúvida, é possível dizer que dos primórdios da socialização jusnaturalistas, baseadas na idéia de um conjunto de direitos
do ser humano, com seu agrupamento em comunidades inerentes ao homem, inalienáveis e oponíveis até mesmo aos
rudimentares, até os dias de hoje, nos quais não se concebe a detentores do poder secular, para erigir-se o moderno
vida isolada, havendo o homem se envolvido em tramas de conceito de constitucionalismo, em virtude do qual, tomando
diversa natureza, especialmente determinadas pela divisão por pilar a idéia do pacto social, construiu-se um novo
do trabalho social, o direito marca a nossa existência,
regulando a variedade de relações sociais, econômicas,
estadualmente organizada (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional,
políticas, familiares, patrimoniais e educacionais. Coimbra: Almedina, 1992, p. 18), embora acresça ao sistema jurídico uma
Não se contesta a importância do direito enquanto rede cooperativa de metanormas e normas oriundas de outros centros
fenômeno, muito embora a realidade do mundo globalizado transnacionais e infranacionais.
haja relativizado o seu pDSHO FRPR ³conjunto de técnicas 4 Certamente, a reorganização da sociedade e do Estado contemporâneos,
possível a partir da predominância do sistema econômico capitalista e do
para reduzir os antagonismos sociais, para permitir uma papel não só econômico mas social e político do mercado, consoante
vida tão pacífica quanto possível entre homens propensos assinalado por Faria, no artigo mencionado, afetou conceitos tradicionais
jV SDL[}HV´2. Isso decorre da superação progressiva das da democracia política. É exemplo o do controle da regra de maioria,
disposto à evitação da tirania da maioria, quer através da delimitação do
características inerentes ao Estado-nação de base territorial, espaço inquebrantável dos direitos fundamentais, quer pretendendo
praticamente ultrapassado pelo conceito quase universal da impedir a concentração de poderes políticos e econômicos, malgrado a
predominância do sistema econômico, na sua essência reserva dos setores políticos, o que tem demonstrado o valor deste
complexo sistema de vínculos e de equilíbrios que é o direito e, mais
capitalista transnacional, subordinado à lex mercatoria, precisamente, a Constituição, reconhecendo-se a sua importância
como assinala com precisão José Eduardo Faria.3 funcional como garante não só das formas como dos conteúdos da
democracia política, social e cultural. Essa situação será vista adiante,
SULPRURVDPHQWH UHVVDOWDGD SRU )HUUDMROL ³2 (VWDGR &RQVWLWXFLRQDO GH
1 Luhmann, Niklas. Sociologia do Direito, vols. I e II. Rio de Janeiro: Tempo 'LUHLWR+RMH20RGHORHDVXD'LVFUHSkQFLDFRPD5HDOLGDGH´in Revista
Brasileiro, 1983. do Ministério Público, Lisboa, nº 67, jul-set/1996, pp. 39-56). É evidente,
2 Miaille, ob. cit., p. 25. como destacou Canotilho, referindo-se a G. Teubner (Direito
3 Faria, -RVp(GXDUGR³'LUHLWRV+XPDQRVH Globalização Econômica: Notas Constitucional, p. 13), que o direito só regula a sociedade, organizando-se
SDUDXPD'LVFXVVmR´ in Revista do Ministério Público, Lisboa, nº 71, jul- a si mesmo, o que o dispõe, modernamente (ou pós-modernamente), como
set/1997, pp. 33-46. A superação do tradicional conceito de Estado de base direito reflexivo ou de mediação, auto-limitado ao estabelecimento de
territorial, sustentáculo da representação constitucional do Estado-Nação, processos de informação e de mecanismos redutores de interferências
não desfigura a própria representação das constituições como ponto de entre vários sistemas autônomos da sociedade (jurídico, econômico, social
legitimação, legitimidade e consenso autocentradas numa comunidade e cultural), segundo o próprio Canotilho (ob. cit., p. 13).
direito, direito moderno, absorvendo o pensamento enquanto a diversidade derivada de uma complexidade mais
democrático e valores da cultura jurídica que prestigiavam o elevada, fruto da multiplicidade de funções sociais, exige um
nexo entre legalidade e liberdade, a separação entre direito e direito que tem de abstrair-se crescentemente, tem, nas
moral, a tolerância religiosa, a liberdade de expressão e palavras de Luhmann, que adquirir uma elasticidade
igualdade entre as pessoas.5 conceitual-interpretativa para abranger situações
Cumpre dizer, todavia, que, por mais paradoxal que heterogêneas, e que deve ser modificável por meio de
possa parecer, o constitucionalismo moderno, nascido das decisões, em suma, tem que tornar-se direito positivo.6
revoluções americana e francesa do século XVIII, representa A partir da perspectiva histórica, Manoel Gonçalves
o momento único e ímpar da convergência entre o Ferreira Filho7 vincula o surgimento do Estado
pensamento jusnaturalista e a necessidade de positivação do contemporâneo ² embasado no desejo de evitação do
direito, pressupondo um rol de interesses indisponíveis para arbítrio dos governantes ² ao estabelecimento de um
a vida digna do ser humano, os quais, como o espírito em governo de leis e não de homens (como consta assinalado na
busca de um corpo, vagaram pela História até encontrarem Constituição de Massachussets), afirmando o primado da
os documentos escritos originados nos marcos Constituição sobre as leis por ser aquela a expressão do
revolucionários. Justo, fruto da própria natureza das coisas, consoante
Na segunda metade do século XIX, no entanto, declarava Montesquieu, inspirado no jusnaturalismo.8
consolidado na Europa o Estado liberal, desenvolveram-se É certo que a consolidação do direito positivado, em
práticas institucionais tecnicistas e baseadas na eficiência do substituição ao modelo anterior, personalista, porquanto
controle social pela coerção inerente ao direito penal alicerçado na pessoa do déspota, foi governada na Europa
positivado, com orientações expressa ou tacitamente pela crença racional na autonomia da pessoa humana e na
autoritárias, que romperam a união entre o direito penal, e sua responsabilidade, pela qualidade de cidadão de que
por igual o direito processual penal, e a filosofia política passou a desfrutar, por influir na determinação do conjunto
reformadora. de regras pelo qual aceitará a supressão de parte da sua
Para entender isso é preciso compreender como se liberdade pessoal em favor da regulação das relações de todo
desenvolveu o fenômeno da positivação do Direito. Luhmann o grupo social.
destaca, com razão, a respeito deste fenômeno, vindo à luz A racionalidade do direito, que desempenhará a nosso
exatamente quando as sociedades simples começaram a ser juízo papel fundamental na escolha do sistema acusatório,
sucedidas por outras, complexas, qualificadas pela divisão do toma o lugar das concepções tradicionalistas e religiosas na
trabalho social, que em concreto não havia outra alternativa. chamada baixa modernidade, quando a estabilidade social
Com efeito, em uma abordagem sistêmica acentua-se que ditada exclusivamente pela força cede à estabilidade pela
sociedades simples, integradas em um sistema da mesma razão, sem embargo da articulação de um pacto jurídico
natureza, têm necessidades estruturais diferentes daquelas cujos pressupostos de coesão são a ameaça das sanções
mais complexas.
Por isso, o direito das sociedades simples pode ser 6 Luhmann, vol. I, p. 15. Habermas, ob. cit., pp. 45 e 59.
concebido em termos relativamente concretos, fundado na 7 Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São
tradição e na religião, com o que concorda Habermas, Paulo: Saraiva, 1995.
8 Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, Barão de. Do Espírito das Leis.
Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São
5 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 24. Paulo: Abril Cultural, 1979.
externas, liberadas pelo Direito, e a suposição de um acordo da pós-modernidade.12 Para nós o que importa, no entanto,
racionalmente motivado. é que a crise de um paradigma não se expressa pela quebra
Por outro lado, convém remarcar que o processo de da continuidade do conhecimento absorvido até então pelo
modificação do eixo do Poder, que postulou a positivação do grupo social, mas antes leva à apropriação deste
Direito em virtude da sua racionalização e da possibilidade conhecimento de forma nova, de acordo com os valores que
de fixar as expectativas das pessoas, tornou-se possível em emergem da transformação.
conseqüência do grau maior de legitimação que passou a Darcy Ribeiro acentua exatamente que, ao contrário da
revestir o próprio Direito. natureza, que evolui por mutação genética, a cultura ² em
Nestas circunstâncias o Direito tornou-se carecedor da cujo campo está inserido o Direito ² segue evoluindo por
democracia, pois, nas condições da época, o pensamento adições de corpos de significado e de normas de ação,
democrático representava, na sua expressão legislativa e de difundidos por meio da aprendizagem, de sorte a redefinir-se
governo, a força socialmente integradora da vontade unida permanentemente, compondo configurações cada vez mais
e coincidente de todos os cidadãos livres e iguais.9 inclusivas e uniformes.13
Habermas chama atenção para o fato de a positivação do O desenvolvimento do paradigma da modernidade
Direito vir acompanhada da expectativa de que o processo radicou-se no ideal democrático, de modo que nada é mais
GHPRFUiWLFR GH HGLomR GDV QRUPDV MXUtGLFDV ³fundamente a natural que o relevo dado à Constituição entre as demais leis,
suposição da aceitabilidade racional das normas decorrente do convencimento de que aquela assegura a
estatutGDV´,10 razão por que, acrescentaria Hannah Arendt, divisão dos poderes do Estado, mediante sistema de freios e
³sob condições de um governo representativo, supõe-se que contrapesos, bem como tutela os direitos fundamentais,14
R SRYR GRPLQD DTXHOHV TXH JRYHUQDP´11 e as instituições conformando toda ordem jurídica.
políticas petrificam-se e decaem tão logo o poder do povo
deixa de sustentá-las. 12 A mudança do paradigma da modernidade para o da pós-modernidade
É possível enxergar na transformação produzida na (expressão cunhada por Jean François Lyotard, em 1979, in A Condição
Pós-Moderna, Lisboa: Gradiva, 1989) é discutível, sendo razoável sustentar
origem do constitucionalismo uma mudança do paradigma que a modernidade está longe de ter cumprido, no universo da sociedade
jurídico-político, que passará, na via da racionalidade, do humana, integral-mente o que dela se espera. Antes, o universalismo
humanismo e das projeções inerentes ao prestígio assumido característico da própria racionalidade da modernidade, pelo que de
subversivo e emancipatório têm os direitos fundamentais, exige a
pelas liberdades públicas, a constituir o designado permanente disposição para implementá-la completamente.
paradigma da modernidade. 13 Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatório ² Etapas da Evolução
Salientar esse ponto é importante, na medida em que o Sociocultural, São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 45.
novo paradigma substituiu o anterior porque este estava em 14 Eusebio Fernandez (Teoria de La Justicia y Derechos Humanos, Madrid:
Debates, 1991, p. 77) alude com clareza à existência de inúmeras
crise, sendo de supor, para alguns, que a eventual crise do denominações para essa categoria jurídica, direitos fundamentais, tais
próprio paradigma da modernidade conduza à sua superação como direitos naturais, inatos, individuais, do cidadão, do trabalhador,
por outro modelo, que se convencionou chamar paradigma públicos, subjetivos, liberdades públicas, nem sempre afetados ao mesmo
fenômeno, concluindo que a mais adequada consiste em denominar-se
direitos fundamentais do homem, com isso manifestando-se o fato de que
toda pessoa possui alguns direitos morais pelo fato de ser pessoa e que isto
9 Habermas, ob. cit., p. 53. deve ser assegurado pelo Estado e pela sociedade. Mesmo a nossa
10 Idem, p. 54. Constituição não uniformiza o tratamento designativo da categoria, ora
11 Arendt, Hannah. Sobre a Violência, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, mencionando direitos e garantias fundamentais (Título II), ora direitos e
p. 35. deveres individuais e coletivos (Capítulo I do mesmo título).
Tal é a importância da Constituição nessa ótica, porque devedor das providências inerentes à implementação dos
fixa com clareza as regras do jogo político e de circulação do direitos fundamentais de cunho social, afeta a
poder e assinala, indelevelmente, o pacto que é a imprescindibilidade de a ordem interna sufragar tal
representação da soberania popular, e portanto de cada um categoria jurídica, em nível normativo superior, na
dos cidadãos. Sabemos todos, mesmo diante de pactos de Constituição, sob pena de cancelar sua validade pela perda
direitos fundamentais aos quais significativo número de da dimensão prática de efetividade.
Estados vêm aderindo paulatinamente, que até hoje o direito A assunção da Constituição como o locus de onde são
interno propugna sempre a sua sufragação, ultrapassando vislumbrados os direitos fundamentais compartilha,
em larga medida a tensão existente no passado, que concebia portanto, a tese, desenvolvida entre outros por Ferrajoli, da
distintamente, do ponto de vista político e conceitual, as existência de um nexo indissolúvel entre garantia dos
GHFODUDo}HV GH GLUHLWRV H ³la Constitución propriamente direitos fundamentais, divisão dos poderes e democracia, de
dicha, de forma a estabelecer um vínculo entre la sorte a influir na formulação das linhas gerais da política
enunciación de grandes principios de derecho natural, criminal de determinado Estado.17
evidentes a la razón, y la concreta organización del Veremos, no tópico pertinente a Direito, Processo e
SRGHU´.15 Democracia, como se articulam e interpenetram estas
A título de ilustração, valem as lições das políticas diferentes instituições, bastando, por enquanto, lembrar que
brasileira e espanhola, da última extraindo-se, da doutrina o espaço comum democrático é construído pela afirmação
de Retortillo e Otto y Pardo, que o significado do intento de do respeito à dignidade humana e pela primazia do Direito
construção do regime constitucional e do regime jurídico do como instrumento das políticas sociais,18 inclusive a Política
Estado, no tocante aos direitos fundamentais, depende Criminal.
basicamente de como tais direitos tenham sido assumidos, Nosso estudo inicial está centrado na tradicional divisão
uma vez que por mais prestígio que tenham determinadas de cunho exclusivamente metodológico19 dos direitos
Declarações, por forte que seja o impulso internacionalizador fundamentais em três categorias: as liberdades públicas; os
que dimana da necessidade de reconhecimento internacional direitos sociais; e os direitos de solidariedade, cujo
dos governos, é preciso não esquecer que o ponto de partida desenvolvimento será apreciado no próximo tópico. Reitera-
é a realidade própria e original do direito interno.16 se aqui o aludido a princípio, tal seja, que a persecução penal
Nem mesmo o paradoxo determinado em virtude de as
limitações decorrentes dos direitos fundamentais terem por
destinatário principal o próprio Estado ou de ser o Estado o 17 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 10.
18 Binder, Alberto M. Política Criminal: de la formulación a la praxis,
Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997, p. 53.
15 %HUJDOOL 5REHUWR ³Los Derechos Humanos en el Estado Democratico de 19 Antonio Augusto Cançado Trindade relembra o fato de os direitos
'HUHFKR´, in Justiça e Democracia, vol. II, São Paulo: RT, 1996, p. 81. fundamentais fazerem parte de uma grande categoria comum, de
Canotilho (ob. cit., p. 19) acentua que a idéia dos direitos fundamentais características universal e integral, de maneira que estão interligados e são
constitui a raiz antropológica essencial da legitimidade da Constituição e interdependentes, condicionando o sucesso concreto da Constituição à
do poder político, ainda quando não se possa falar em universalidade condição de ser humano digno à sua implementação conjunta. Por isso,
absoluta de alguns valores, muito embora o processo comunicativo devem dar lugar a uma interpretação funcional interdependente e somente
intersubjetivo radique dimensões de princípio que implicam do ponto de vista metodológico os direitos fundamentais devem ser
RUGLQDULDPHQWH³comensuração universal´ apreciados em grupos de gerações separados (Tratado de Direito
16 Retortillo, Lorenzo Martín e Otto Y Pardo, Ignacio. Derechos Internacional dos Direitos Humanos, vol. I, Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fundamentales y Constitución. Madri: Cuadernos Civitas, 1988. Fabris, 1997).
se expressa através do conjunto de atividades estatais meio ambiente saudável, à tutela dos interesses
juridicamente vinculadas, limitando-se o poder do Estado difusos e ao reconhecimento da diferença, da
em prol da garantia dos direitos fundamentais, assim VLQJXODULGDGHHGDVXEMHWLYLGDGH´
referenciados a todas as pessoas, inclusive aos acusados da
prática de infrações penais. Norberto Bobbio cita ainda os direitos de quarta
Antecipando, em homenagem à necessária clareza, é geração,22 determináveis em vista de carecimentos e
valioso perceber como a doutrina de um modo geral interesses específicos, tais como as reivindicações referentes
relaciona os direitos fundamentais. ao tratamento da pesquisa biológica. Esta última categoria,
José Alfredo de Oliveira Baracho indica um rol de no entanto, necessita de uma maior investigação científica
direitos fundamentais, que enumera, explicitando os direitos para fixar claramente as fronteiras com os denominados
de locomoção, manifestação do pensamento, reunião, direitos fundamentais de terceira geração.
associação, culto, direitos à atividade profissional e Finalmente, convém explicitar que os limites do
econômica e ao matrimônio,20 enquanto José Eduardo Faria, trabalho que se desenvolve não incluem a determinação da
em síntese iluminada, sublinha que ao longo dos dois natureza jurídica dos direitos fundamentais. Pretende-se
últimos séculos consolidaram-se justamente três gerações de tão-só definir no continente da obra um conteúdo mais
direitos humanos, denominação que prefere, assim dispondo modesto, contudo importante, que é a medida do princípio
sobre eles:21 ou sistema que realiza a estrutura do processo penal em
confronto com as principais leis processuais penais editadas
³2V UHODWLYRV j FLGDGDQLD FLYLO H SROtWLFD principalmente depois de 1988, época da promulgação da
concebidos, reconhecidos e protegidos para um vigente Constituição da República.
homem abstrato, destacando-se pelo direito às Porém, não se deve descuidar do estudo da natureza e
liberdades de locomoção, de pensamento, de fundamento destes direitos, uma vez que se projetam nas
religião, de voto, de iniciativa, de propriedade e de vias da persecução penal, impondo pelo menos sublinhar que
disposição da vontade; os relativos à cidadania a doutrina constitucional lhes dedica intenso labor, oscilando
social e econômica, baseados não mais numa entre baseá-los, de acordo com Böckenförde,23 numa
concepção de homem visto como ente genérico, tentativa de estabelecimento de uma teoria geral, talvez
mas encarado na especificidade de sua inserção nas incompleta mas bastante aproximativa, a partir das
estruturas produtivas, e que se expressam pelos perspectivas liberal ou do Estado de Direito burguês,
direitos à educação, à saúde, à segurança social e ao institucional,24 valorativa, funcional-democrática e social,
bem-estar tanto individual quanto coletivo
concedidos a classes trabalhadoras; e, por fim, os
UHODWLYRV j FLGDGDQLD µSyV-PDWHULDO¶ TXH VH 22 Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 6.
caracterizam pelo direito à qualidade de vida, a um 23 Böckenförde, apud Gavara de Cara, Juan Carlos. Derechos Fundamentales
y Desarrollo Legislativo: La garantía del contenido esencial de los
derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn, Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1994, pp. 75-79.
20 Baracho, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Cidadania: A Plenitude 24 Vale dizer, precisando termos, especialmente quando utilizados de forma
da Cidadania e as Garantias Constitucionais e Processuais, São Paulo: polissêmica, como ressalta Gavara de Cara (ob. cit., p. 89), que a expressão
Saraiva, 1995, p. 7. instituição tem para o nosso estudo o significado que lhe atribui Miaille
21 Faria, ob. cit., p. 42. (ob. cit., p. 98), qual seja, de conjunto coerente de normas jurídicas
nem sempre necessariamente excludentes. soberano.25
Por razões que mais adiante serão expostas, nos É certo que a cultura escravista helênica não pode
interessará de perto a abordagem funcional-democrática, fundamentar um preceito absoluto de igualdade, inerente ao
que certamente se conjugará com a valorativa e a conceito de direitos fundamentais, pois que relativo a todos
institucional. Antes releva visualizar a histórica conformação os homens, sem qualquer distinção, mas não se deve negar
dos direitos fundamentais, cuja inegável ligação com o tema que a partir da Grécia são envidados os primeiros
proposto mais adiante poderá ser observada. empreendimentos filosóficos cujo objetivo consistiu em lidar
com esta situação de princípios ideais.
2.2. Fontes e Antecedentes dos Direitos Em Roma, salienta Pedro Pablo Camargo,26 com o
Fundamentais florescimento da filosofia estóica é que se forja una idea
universal de la humanidad, es decir, de la igualdad esencial
As subseqüentes mutações operadas na concepção e de todos los hombres en cuanto a la dignidad que
conteúdo dos direitos fundamentais demandam sua corresponde a cada uno.27
apreensão no contexto histórico, ao qual com freqüência nos Foi o cristianismo, contudo, que, sem dúvida, iniciou a
referiremos, de sorte a viabilizar a observação e inserção em era da promoção dos direitos fundamentais, evidentemente
seu adequado ambiente dos paradigmas estabelecidos e fixar não liberado das contradições históricas determinadas pelo
as circunstâncias determinantes das suas alterações. modo de produção cujo embrião já se encontrava na
Percorrer este caminho é necessário, na medida em que o sociedade feudal. Disso decorre que a doutrina sofreu forte
sistema processual vigente há de, além de receber os fluídos impacto em face da projeção das declarações de licitude
da legitimação da própria ordem jurídica, predicar-se como condicional da escravidão, principalmente de índios e
opção legítima, por si só, para adjudicar soluções negros, e da inflição de tormentas. O pensamento básico da
imperativas, com força de coisa julgada, aos conflitos de igualdade de todas as pessoas perante Deus enseja, todavia, a
interesses de natureza penal ou a resolver os casos penais. era del resguardo a los derechos fundamentales del hombre
Por isso, permitimo-nos, a princípio, a apropriação do con base en la dignidad de la persona humana y su destino
esquema histórico de Manoel Gonçalves para desenvolver trascendente,28 de tal sorte que Tomás de Aquino29 e sua
resumidamente o tema da evolução dos direitos
fundamentais. 25 Cícero, Marco Túlio. Da República. Trad. Amador Cisneiros. Rio de
Com efeito, a doutrina dos direitos fundamentais Janeiro: Ediouro. Sendo a lei o laço de toda sociedade civil, e proclamando
seu princípio à comum igualdade, sobre que base assenta uma associação
desponta já na Antigüidade, fundada, como é certo, na de cidadãos cujos direitos não são os mesmos para todos?, perguntava-se
consciência de um Direito Superior, não estabelecido pelos o filósofo.
homens. Manoel Gonçalves a tal propósito aponta a peça 26 Camargo, Pedro Pablo. La Proteccion Juridica de Los Derechos Humanos
Antígona, de Sófocles, e chama ainda a atenção para as y de La Democracia en America, México: Excelsior, 1960, p. 6.
27 Idem.
lições de Cícero, que soube, em Da República, bem sintetizar 28 Idem.
a idéia da predominância da lei sobre a vontade do 29 A importância de Tomás de Aquino é salientada por Antonio Truyol y Serra
(Los Derechos Humanos, Madrid: Tecnos, 1994, p. 12), que destaca a
sensível inclinação filosófica no sentido do reconhecimento de que todo
homem correspondia à imagem e semelhança de Deus, como recurso à
relativas a um mesmo objeto, abrangendo uma série de relações sociais proclamação de que mesmo os infiéis possuíam um direito natural que os
unificadas pela mesma função. punha em tese a salvo do suposto direito de conquista dos cristãos.
escola retomam o pensamento doutrinal. primeiro grande passo dado na direção do reconhecimento
A partir da segunda metade da Idade Média, dos demais direitos fundamentais da primeira geração,
difundiram-se documentos de incipiente reconhecimento assinalados no Petition of Right (1628), no Habeas Corpus
dos direitos fundamentais ² forais e cartas de franquia ², Act (1679), nas declarações de independência dos Estados
merecendo especial destaque a Magna Charta Libertatum, Unidos da América e de Direitos de Virgínia (1776), além da
outorgada por João sem Terra aos barões, na Inglaterra, em declaração francesa (1789).
1215, cujo caráter estamental não impediu, depois, a Do Direito inglês, na vanguarda, e dos iluministas,
ampliação das suas disposições a favor de outras categorias cumpre frisar, vieram as principais inspirações das
de súditos. No mesmo ano, o Papa Inocêncio III proibia, no revoluções americana e francesa, no tocante ao estatuto das
Concílio de Latrão, as ordálias, reduzindo-se, embora ainda liberdades que ousaram exprimir à época. Salienta Manoel
insuficientemente para os padrões atuais, o sofrimento Gonçalves o papel que os ingleses e, depois deles, os norte-
causado pelo modo de persecução e expiação das infrações americanos desempenharam na história do desenvolvimento
penais.30 da doutrina dos direitos humanos, e que, por força das
Também na Baixa Idade Média, nas comunas e burgos disposições das Declarações, que ensaiaram o novo modelo
livres da Europa Ocidental, difundiu-se a consciência de constitucionalista, afinal seguramente presente nos séculos
direitos básicos, relacionados à liberdade do indivíduo e à seguintes, este papel influenciou a Constituição de Cádiz
condição não estamental em que se viam inseridos, na (1812) e a declaração de independência da Bélgica (1831):32
prática, nesses lugares, em oposição radical à fragmentação
social e às servidões feudais. Conforme Fábio Konder ³µ&RPPRQ ODZ¶ ³UXOH RI ODZ´ ³GXH SURFHVV RI
Comparato, as cidades medievais eram verdadeiros centros ODZ´ ³HTXDO SURWHFWLRQ RI WKH ODZV´ essas
de libertação: a condição servil perdia-se, com a estada expressões e as idéias que exprimem passaram com
ininterrupta do servo no interior do burgo durante ano e os ingleses para a América do Norte. Essa herança
dia.31 não foi esquecida, ao contrário. Os tribunais
Convém sublinhar que a forte ligação entre a Igreja e o americanos, e em primeiro lugar a Suprema Corte,
Estado, observada durante boa parte da Idade Média como souberam usar dessas fórmulas que flexibilizam as
fator de certo modo condicionante da estabilidade dos decisões, dando uma importante contribuição para
grupos sociais, acabou sendo solapada pelos movimentos de o desenvolvimento da doutrina dos direitos
tolerância religiosa, decorrentes da pluralidade que fundamentais, nos séculos XIX e XX.33´
naturalmente se seguiu à Reforma, sendo, pois, a liberdade
religiosa, fruto da quebra do vínculo entre Estado e Igreja, o É bem verdade que os predicados históricos de uma
época única, quando burguesia e proletariado se uniram para
30 Grau, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio, retirar do poder a classe aristocrática dominante, acabaram
Barcelona: Bosch, 1994, p. 28. Saliente-se, todavia, que coube também a
Inocêncio III a iniciativa de introduzir de modo oficial na Igreja o
procedimento penal de forma inquisitória, procedimento mais tarde 32 Truyol y Serra, ob. cit., p. 17. $GD *ULQRYHU ³'LUHLWRV H *DUDQWLDV
regulado em alguns decretos de Bonifácio VIII (Pietro Fredas, na ,QGLYLGXDLV´ in Constituição e Constituinte, Faoro, Raymundo (coord.).
introdução à 3ª edição de De las Pruebas Penales, de Eugenio Florian, São Paulo: RT, 1987, p. 123) relembra que foi a Constituição Brasileira do
Bogotá: Temis, 1990, p. 7). Império ² 1824 que pela primeira vez no mundo ofereceu um rol de
31 Comparato, Fábio Konder. Para Viver a Democracia, São Paulo: direitos e garantias individuais, assim concretizadas.
Brasiliense, 1989, p. 40. 33 Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, ob. cit., p. 13.
por fortalecer a idéia dos direitos fundamentais, essenciais à forma dos pleitos eleitorais).
dignidade da pessoa, com marcantes características Assim, o direito positivo que resultava da ação da
individualistas, configurando, nessa atmosfera, a primeira instância legislativa, referido ao direito privado, não podia
geração de direitos humanos. Os direitos fundamentais satisfazer as exigências das sociedades complexas e sequer
sofreram neste momento de inicial positivação a influência atendia satisfatoriamente ao suposto da legitimidade,
da ideologia peculiar ao direito privado, cuja consistência incapaz que era de integrar socialmente as grandes massas
estava determinada pela idéia de direito subjetivo. que acorreram às cidades, como conseqüência do processo
O padrão de direito subjetivo está ditado por uma de industrialização.
compreensão funcional, em virtude da qual se aceita que este Haveria de acontecer alguma reação, até porque,
direito estabeleça os limites em cujo interior um sujeito está UHFRQKHFH+DEHUPDV ³a fonte de toda legitimidade está no
justificado a empregar livremente a sua vontade.34 processo democrático da legiferação; e esta apela, por seu
Não se discute que a fixação do direito subjetivo, para turno, para a VREHUDQLDGRSRYR´,35 muito mais presente nos
assegurar um grau mínimo de aceitação social, indispensável discursos do que na realidade.
a qualquer tempo e mais ainda em épocas politicamente Os séculos XIX e XX, portanto, por força da ascendência
conturbadas, suponha um processo legislativo democrático, social e econômica da burguesia e o incremento tantas vezes
capaz de atender às expectativas dos membros da sociedade desumano das condições de trabalho da massa operária,
a respeito do entendimento possível ² consenso ² das classe social conseqüente às mudanças derivadas da
pessoas sobre as regras de convivência. Revolução Industrial e do modo capitalista de produção e
A moldura política na qual seriam gerados os direitos divisão dos bens, testemunhou conflitos intestinais que
fundamentais nessa primeira etapa, apesar do predominante colocaram frente a frente a burguesia e o proletariado, dando
pensamento democrático, cuja virtude para o âmbito do origem a conquistas que se refletiram em uma nova ordem
QRVVR HVWXGR HVWi HP GHWHUPLQDU D ³OHJLWLPLGDGH´ FRPR de direitos fundamentais, a partir da universalização, ainda
pressuposto para o exercício do poder, em quaisquer das que lenta, do sufrágio político e da liberdade de associação,
suas manifestações (aí incluindo o exercido pelo Judiciário), precursora dos sindicalismos.36
concebia o indivíduo como cidadão, ou o cidadão como o
indivíduo visado pela ordem jurídica, por meio de uma
35 Habermas, ob. cit., p. 122. Comparato novamente sublinha o conteúdo
percepção nitidamente ideológica. difuso do povo, entidade compreendida abstratamente como algo
Ocorre que, mesmo na Europa, havia clara distinção monolítico e uniforme, dotado das mesmas aspirações e vivendo em
entre o grupo de pessoas juridicamente autorizadas a semelhantes condições na sociedade (ob. cit., pp. 61-82). Como se observa
participar do processo político e o grupo maior, formado por no desenvolvimento do tópico, na realidade as classes sociais acabam por
ocupar concretamente, no processo de reconhecimento formal dos direitos
todos os demais integrantes da sociedade, excluídos do jogo fundamentais de segunda e terceira gerações, o lugar do povo e, na medida
democrático de várias maneiras (as mulheres e os em que lhes pertence a soberania, quer na perspectiva do exercício direto
analfabetos, por exemplo, não participavam de nenhuma do poder, quer vislumbrando-se, em virtude de conhecido desvio
semântico, como exercício em seu nome e em seu prol, é necessário
recordar que igualmente o esquema relativo aos poderes inerentes ao
34 Habermas, ob. cit., p. 113. Vale destacar que, apesar da propalada idéia sistema penal não lhes devem ser opressivos mas sim tutelares.
pertinente ao conceito e alcance do direito subjetivo, visto antes, trata-se de 36 Norberto Bobbio anota, destacadamente, que: A partir do momento em
dogma da tradição liberal a crença dos direitos de primeira geração ser que o voto foi estendido aos analfabetos tornou-se inevitável que estes
exercitados contra o Estado, como muito bem salientou Comparato (ob. pedissem ao Estado a instituição de escolas gratuitas... Quando o direito
cit., p. 47). de voto foi estendido também aos não-proprietários, aos que nada
Trata-se, pois, dos direitos fundamentais de segunda A evolução dos direitos humanos naturalmente refletiu,
geração, referidos anteriormente, e que, malgrado períodos no intervalo entre as duas grandes guerras do século XX, as
de intensa repressão política nos principais Estados tensões e expectativas geradas de forma exacerbada pelo
europeus (França de Napoleão III e Alemanha de autoritarismo político, pelo totalitarismo e domínio
Bismarck),37 impuseram-se indelevelmente. Colaborou para colonialista eurocentrado, fatores extremamente reforçados
LVVR D FRQVLGHUDomR HP YLUWXGH GH TXH ³os direitos pela expansão capitalista e a reação do regime socialista
fundamentais não são a expressão nem o resultado de uma implantado na antiga União Soviética.
HODERUDomRVLVWHPiWLFDGHFDUiWHUUDFLRQDOHDEVWUDWR´ mas Com o fim da Segunda Guerra Mundial e as explosões
VLP FRPR DOXGH 'HQQLQJHU ³respostas normativas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, dias depois da
histórico-concretas às experiências mais insuportáveis de aprovação da Carta da Organização das Nações Unidas
OLPLWDomRHULVFRSDUDDVOLEHUGDGHV´.38 (respectivamente 26 de junho e 6 de agosto de 1945),
A transformação acontecida no seio do próprio expandiu-se a consciência, inspirada pelos movimentos de
paradigma da modernidade, gerado a partir das liberdades libertação, de que entre os direitos fundamentais
públicas cujo beneficiário, de uma maneira geral, era encontrava-se o de autodeterminação dos povos, assim
exclusivamente o cidadão (identificado como homem enunciado nas várias Declarações, fundando, por sua vez, a
proprietário), demonstrou a erosão da matriz ideológica era das emancipações políticas que levaram as ex-colônias
individualista e assinalou a substituição, no Continente (conjunto a partir de então conhecido como Terceiro Mundo)
Europeu, do Estado Liberal de Direito pelo Estado Social de a se circunscreverem, na sua maioria, ao âmbito sociopolítico
Direito.39 da denominada Civilização Ocidental, com a promessa de
Aqui cabem parênteses para salientar que, do mesmo reconhecimento dos direitos fundamentais da primeira
modo que se prestigiou o papel da Igreja Católica na geração.
eliminação das ordálias, não se pode furtar de registrar a De se notar que os novos Estados careceram da adoção,
importância das Igrejas na disseminação das idéias da nova implementação ou desenvolvimento dos direitos
categoria de direitos fundamentais, principalmente em fundamentais da segunda geração, prestacionais,
consideração às encíclicas Rerum novarum (Leão XIII, 1891) normalmente vinculados a um tipo de Estado de bem-estar
e Quadragesimo anno (Pio XI, 1931), sem prejuízo das social, de sorte que as suas populações passaram a desfrutar
importantes manifestações de Kolping, von Ketteler e da QR DPELHQWH LQWHUQDFLRQDO GD FRQGLomR GH ³SUROHWDULDGR
União Internacional de Estudos Sociais, fundada em 1920.40 exterLRU´41 salvo, é claro, aquela minoria beneficiada da
situação colonial, cuja posição internamente veio a suceder.
Particularmente no Brasil a sucessão de regimes
tinham... a conseqüência foi que se começou a exigir do Estado a proteção
contra o desemprego (O Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras autoritários, com a conseqüente supressão sistemática dos
do Jogo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra Política, 1992, p. 35). direitos fundamentais, desmoraliza a tese de que a mera
37 Truyol y Serra, ob. cit., pp. 20-21.
38 Denninger, Erhard, apud Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos
Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio: Derechos 41 Truyol y Serra, ob. cit., p. 26. As declarações de direitos fundamentais, na
Humanos y Constitucionalismo en la Actualidad, Madrid: Marcial Pons, América Latina, pela tradição autoritária dos governos, são muito mais
1996, p. 40. peças retóricas que instrumentos de transformação social. Comparato
39 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo assinala, com razão, que os direitos fundamentais nunca fizeram parte do
ante el Tercer Milenio..., ob. cit., p. 15. nosso patrimônio cultural, mas sempre existiram como um elemento
40 Truyol y Serra, ob. cit. estranho, senão estrangeiro na vida de nossas instituições sociais (p. 38).
enunciação destes direitos, em Declarações a que o Estado Internacional do Trabalho ² OIT) exerceram, a partir de
brasileiro adere ou no seio da própria Constituição, embora meados deste século, com base na traumática experiência
necessária, seja suficiente para alargar a sua efetiva das guerras e do período intercalado, a função de difundir a
imposição para além do círculo populacional no meio do implementação e fiscalização dos mencionados direitos,
qual já são efetivos, tal seja, entre as classes possuidoras e as conjunto ao qual a sociedade tecnológica foi aos poucos
pessoas de raça branca.42 incorporando aqueles relacionados com a qualidade de vida,
Sem a pretensão de estabelecer uma explicação direitos fundamentais da terceira geração.
definitiva, vale destacar que a democracia não marcou a sua Da relevância das entidades internacionais pode-se
presença de modo sólido nos novos Estados, o que se dizer que as grandes guerras deste século desnudaram a
argumenta para demonstrar mais uma vez o vínculo entre insuficiência dos meios internos de resguardo dos direitos
democracia e direitos fundamentais.43 fundamentais e, simultaneamente, romperam a crença na
É preciso que se saliente que a cultura democrática, efetividade dos precários controles internacionais existentes.
como fator preponderante para a disseminação da Apesar disso, e muito por conta dos genocídios que as novas
importância política e jurídica dos direitos humanos, tecnologias de informação noticiam vivamente, desenvolveu-
padeceu mesmo onde, como no Brasil, foi implantada a se a lógica básica do reconhecimento planetário do valor
República. Se uma educação para os direitos fundamentais, único da pessoa45 e a consciência de que a neutralidade
substrato da cultura democrática, não é implementada, como política e ideológica do direito internacional pode acabar por
podem sê-lo os mencionados direitos, individuais ou sociais? permitir todas as formas de autoritarismo no interior dos
A contaminação das liberdades não logra êxito se depender Estados.
apenas da ação do Estado, que visa limitar ou orientar de Daí decorre, como afirma Pureza, que da
modo imperativo, sendo o caso de fazer coro com Mead para transnacionalização da opressão deve advir a
VXEOLQKDU TXH ³aos poderes públicos compete uma transnacionalização da resistência,46 quer pela exigência da
importante função na defesa das liberdades, porém para legitimidade democrática, em todos os seus aspectos ²
que sua afirmação e tutela não sejam ilusórias ou precárias incluindo aí a Justiça ² para o reconhecimento internacional
é necessário que o programa emancipatório dos direitos dos Estados e de seus governos, quer porque a cidadania não
humanos se traduza em vigências coletivas se resume mais apenas na titularidade de direitos cuja fonte
PDMRULWDULDPHQWHFRPSDUWLOKDGDV´.44 seja o próprio Estado, mas passa a alcançar aqueles gerados
As organizações internacionais e entidades não nos pactos internacionais.
governamentais de proteção aos direitos fundamentais de Assim, ao menos no aspecto da fiscalização, com
todas as categorias (por exemplo, a Organização repercussão inevitável em toda sorte de relações
internacionais, os tribunais e cortes internacionais ganham
destaque, reafirmando a concepção dos direitos
42 Comparato, ob. cit., p. 51.
43 A reversão desse clima social francamente desfavorável à vivência dos
direitos humanos, na América Latina, só pode iniciar-se, a meu ver, com o
estabeleci-mento de um processo ² necessariamente lento e não isento de
percalços ² de instituições adequadas de democracia direta ou 45 Pureza, José Manuel. Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el
participativa. Comparato, ob. cit., p. 43. Tercer Milenio: Derecho Cosmopolita o Uniformador, Madrid: Marcial
44 George Hebert Mead, apud Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Pons, 1996, p. 125.
Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio, p. 44. 46 Pureza, José Manuel. Ob. cit., p. 123.
fundamentais como tema global,47 limite à subjetividade doutrinas,51 cumprindo, pois, à sociedade humana perseguir
discricionária das soberanias, conforme Celso Lafer.48 por igual, incessantemente, como faz desde os primórdios, a
Ademais, concebendo-se a democracia como palco felicidade, conforme a máxima de inspiração iluminista
adequado para os direitos fundamentais, como se antecipa cunhada na Revolução Francesa: liberdade, igualdade e
do próximo tópico, e incorporando-se a consciência de que fraternidade.
uma sociedade livre e democrática não pode ser pensada Talvez caibam parênteses: a partir do episódio
como um sistema fechado, mas sim aberto à aparição de conhecido como 11 de setembro, atentado terrorista a Nova
novas necessidades, dependentes tantas vezes da ineficácia York (EUA), mesmo os direitos fundamentais de primeira
da difusão do progresso tecnológico ou da ausência de geração estão sendo colocados em questão pelos poderosos
compromisso ético, é preciso admitirmos a possibilidade de grupos liderados pelo unilateralismo militar norte-
aparição de novas categorias reivindicativas, prenormativas e americano. Até o momento de conclusão dessas linhas
axiológicas aspirantes à condição de direitos fundamentais.49 vigorava o mais completo desrespeito aos direitos
É certo, atualmente, que o liberalismo e o fundamentais de pessoas presas no Afeganistão, Iraque e até
neoliberalismo,50 enquanto filosofias econômicas nos próprios Estados Unidos, suspeitas da prática de
predominantes, assumiram de forma clara e solene a terrorismo.
doutrina dos direitos fundamentais da primeira geração, até Não é fácil a tarefa. Como de início advertimos, aceita a
porque, se nesta faceta representam a garantia das teoria dos paradigmas, há quem postule, atualmente, para os
liberdades públicas, acabam também por construir o suporte direitos fundamentais, novos rumos derivados da mudança
normativo da liberdade econômica inspiradora das referidas do paradigma da modernidade para o da pós-modernidade.
Desse modo, à condição essencial dos citados direitos,
47 Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional que alicerça sua vocação de eternidade quando incorporados
Internacional, São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 249. à ordem jurídica, opõe-se a concepção funcionalista, pelo
48 Celso Lafer, apud Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito que predomina a consideração institucional, definida como
Constitucional Internacional, p. 250.
49 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo
conjunto de fins objetivamente estabelecidos e interpretados
ante el Tercer Milenio, p. 15. de acordo com as condições histórico-sociais que informam o
50 É possível distingüir-se o neoliberalismo do liberalismo basicamente pelo processo aplicativo da norma constitucional;52 além disso, e
fenômeno da globalização dos mercados, peculiar ao primeiro, que,
superando os modelos do capitalismo mercantilista e concorrencial da fase
talvez conseqüentemente, a deformalização tem sido exigida
de transição do feudalismo, ao tempo em que minimiza a intervenção pelos que reclamam uma hermenêutica constitucional que
estatal, salvo a punitiva, de controle dos sindicatos e da política monetária, confira maior fluidez e flexibilidade aos instrumentos
reduz a importância do Estado-nação, consoante anteriormente jurídicos dispostos na Constituição; finalmente, de tudo
mencionamos. Convém, a propósito, ler El Neoliberalismo en el
Imaginario Juridico (Correas, Oscar. Curitiba: EDIBEJ, 1996, pp. 1-15).
Saliente-se que o neoliberalismo descende do pensamento do austríaco
Friedrich Hayek, inicialmente divulgado na obra O Caminho da Servidão, 51 É bem verdade que o gozo pleno dos direitos fundamentais pressupõe um
em 1944, na qual se faz vigorosa crítica ao Estado de bem-estar social. regime político compatível. No caso, diria Cícero, a democracia, que, se não
Depois, Hayek fundou um grupo, do qual participaram, entre outros, é perfeita, é o menos imperfeito dos regimes. Todavia, Bobbio (Liberalismo
Milton Friedman e Karl Popper, cujo propósito consistiu em combater o e Democracia, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 92) giza que a relação entre
keynesianismo e o solidarismo reinantes depois da II Grande Guerra, OLEHUDOLVPRHGHPRFUDFLDIRLVHPSUHXPDUHODomRGLItFLO³QHFFXPWHQHF
objetivo alcançado em parte logo em seguida à crise do mundo capitalista sine te´
avançado, em 1973 (Anderson, 3HUU\³%DODQoRGR1HROLEHUDOLVPR´in Pós- 52 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo
neoliberalismo. Emir Sader (Coord). São Paulo: Paz e Terra, 1995, p. 23). ante el Tercer Milenio..., ob. cit., p. 17.
decorre a pretensão do sistema constitucional como Estados de direito democráticos. Assim inicia Habermas sua
autoreferente, autopoiético, que se constitui, reproduz e extensa exposição do princípio democrático e suas
explica por suas próprias pautas internas, caracterizando-se implicações para o direito,57 ao que podemos acrescentar
por pretender-se estável. que, em relação ao Sistema Penal, mais do que para qualquer
A seu tempo, cada um dos novos rumos será analisado, outra área afetada pelas emanações da ordem jurídica, a
em conformidade com o tema eleito, tal seja, o sistema existência de uma ligação entre direitos fundamentais e
processual acusatório. Porém, não custa reforçar que a poder legítimo, expressão da soberania popular, está
defesa dos direitos fundamentais como um todo representa radicada na vigência da democracia constitucional.
hoje, como assevera Eusebio Fernandez,53 ³auténtico reto A identificação clara do vínculo direito²processo²
moral de nuestro tiempo, la piedra de toque de la justicia democracia terá pertinência no estudo por possibilitar a
GHO 'HUHFKR \ GH OD OHJLWLPLGDG GHO 3RGHU´, acrescentando concreta determinação dos critérios de fixação de validade
TXHVHWUDWDGR³procedimiento garantizador de la dignidad das normas jurídicas pelas quais estrutura-se e funciona o
de los seres humanos contra todo tipo de alienación y sistema processual. Afinal, sob que condições é possível
manipulacLyQ´,54 na via da instituição de uma ética afirmar que determinada regra, extraída do Código de
antropológica da solidariedade. Processo Penal, é válida? A questão que se coloca aqui é
Tal é assim a importância das Constituições, situadas como formular esta indagação para cada caso concreto e
como regras supremas de poder, de modo que pela também em termos de validade social.
Constituição são conectados indissoluvelmente os postulados Assim, colaboram para esta compreensão normativa
da cidadania, entendida como capacidade de plenamente tanto a perspectiva de Habermas, de verificação das
gozar os direitos fundamentais (cidadania política e social), condições de integração em um ordenamento jurídico, quer a
aos princípios constitucionais do processo, assegurando-se a visão da validade como cumprimento social do direito, quer
prevalência da liberdade e da democracia,55 pelas quais, ainda a idéia de pertencerem as normas sistêmicas ao
sustenta vigorosa corrente de pensamento, os direitos conjunto que assegurará a legitimidade da intervenção
fundamentais poderão se vivificar.56 Isso é salientado por judicial, na única forma admissível, que é a de declaração
Baracho, no plano jurídico e no político. judicial do direito conforme o próprio direito posto em nível
normativo superior (da Constituição).
2.3. Direito, Processo e Democracia Paralelamente, é possível acentuar que as instituições
que compõem o sistema penal, de modo harmônico ou não,
A idéia dos direitos humanos e a da soberania do povo produzem uma política criminal, tanto quanto as forças
determinam até hoje a autocompreensão normativa de estatais e sociais são responsáveis por outras políticas
básicas (de educação, saúde etc.).
Nós veremos de passagem como a operação de um
53 Fernandez, ob. cit., p. 81. sistema processual ao arrepio da Constituição faz parte de
54 Idem.
55 Baracho, ob. cit., p. 9. uma política criminal precisa, baseada em motivações de
56 Renove-se o magistério de Pedro Pablo Camargo (La Proteccion Juridica, eficiência repressiva, mas agora é importante salientar que
ob. cit.): Se ha dicho que la lucha por el reconocimiento de los derechos também a edificação de qualquer política criminal em um
fundamentales es la reacción contra la persecución, la intolerancia y el
fanatismo periódicos, que en mayor o menor grado han caracterizado la
vida de todos los pueblos. 57 Habermas, ob. cit., p. 128.
estado democrático está condenada à incoerência normativa que é, acrescenta Celso Campilongo, insofismavelmente
se for desenvolvida à margem do nível jurídico superior e política.63
não considerar que o respeito à dignidade humana é o Daí que igualmente as demandas inerentes ao sistema
princípio e fundamento do sistema político democrático, penal, derivado do sistema jurídico, acabam por sofrer
único espaço comum para qualquer pacto democrático.58 influência ou pressão dos grupos sociais, por meio dos
Por isso, cabe assinalar que na medida em que o mecanismos de operação do sistema político, pressões cujo
processo penal concretamente instrumentaliza o direito resultado pode ser socialmente diferenciado consoante o
penal, visando conceder-lhe a efetividade possível dentro das paradigma político-jurídico adotado, refletindo diretamente
pautas éticas priorizadas pelos direitos fundamentais,59 e sobre as aspirações de democratização do processo enquanto
considerando que entre os fundamentos propostos a respeito instrumento. Em regime autoritário nem todas as demandas
dos mencionados direitos vige também a noção de que vários são expostas e o critério de atendimento não é uniforme e
deles estão intimamente relacionados com a democracia,60 é LPSHVVRDO3RUyEYLRRVLVWHPDSHQDOpFKDPDGRD³FDODU´RV
necessário definir um espaço de consenso doutrinário sobre dissidentes e toda classe de pessoas que se insurgem contra a
este tema peculiar. arbitrária distribuição de bens e valores.
Sobre o assunto nunca é demais recordar a lição de Antes de procurarmos definir o que é democracia,
Cândido Rangel Dinamarco, em relevo:61 intuindo que a sua funcionalidade depende muito da
vigência da regra da maioria, é conveniente explicitar que tal
³2 SURFHVVXDOLVWD PRGHUQR adquiriu a regra não significa uma tirania da maioria e assim não se
consciência de que, como instrumento a serviço da sobrepõe à validade universal e permanente dos direitos
ordem constitucional, o processo precisa refletir as fundamentais. Os direitos fundamentais são reconhecidos, é
bases do regime democrático, nela proclamadas; ele certo, em um contexto espaço-temporal definido, porém,
é, por assim dizer, o microcosmo democrático do atualmente, com vocação de eternidade,64 como frisamos em
Estado de direito, com as conotações da liberdade, um instante anterior. A regra da maioria consiste em:
igualdade e participação (contraditório), em clima
GHOHJDOLGDGHHUHVSRQVDELOLGDGH´ ³XPD WpFQLFD UiSLGD GH WRPDGD GH GHFLV}HV
coletivas que maximiza a liberdade individual e
Por essa razão, é válido e imperioso afirmar que no assegura a ampla e igual participação política dos
momento em que o direito se transforma num sistema de cidadãos, aproximando governantes e governados por
distribuição de recursos escassos, vigora uma espécie de meio de uma prática social de legitimação eventual,
tutela legal, geradora de um modelo de justiça social,62 tarefa finita no espaço e no tempo, que sujeita as decisões à

58 Binder, Política Criminal: de la formulación a la praxis, p. 50. 63 Idem.


59 Grinover, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal: As 64 Campilongo (ob. cit., p. 53) adverte que é ridículo submeter os direitos
Interceptações Telefônicas, 2ª ed. São Paulo: RT, 1982, p. 20. fundamentais ao escrutínio do maior número. A regra da maioria tem um
60 Gavara de Cara, ob. cit., p. 78. limite claro: não é legítima ² nem ela nem nenhuma outra ², para
61 Dinamarco, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, 3ª ed. São condicionar, suprimir ou reduzir os direitos essenciais da pessoa humana.
Paulo: Malheiros, 1993, p. 27. A autêntica democracia realiza-se com a atribuição do poder soberano à
62 Campilongo, Celso Fernandes. Direito e Democracia, São Paulo: Max maioria, por meio do respeito aos direitos essenciais da pessoa humana
Limonad, 1997, p. 23. (Comparato, ob. cit., p. 79).
FRQWtQXDUHYLVmRHPDQWpPDVRFLHGDGHXQLGD´65. considerando a participação popular. Em realidade, as
Alertar para isso é não perder de vista e não alienar a decisões geradas no âmago da democracia, em virtude de
importância de definir a democracia usando bitolas largas, que a própria democracia irá conferir legitimidade ao direito,
potencializada que está a alienação em razão das opções reivindicam a compatibilidade com princípios da justiça e da
políticas do Estado contemporâneo. solidariedade universal, bem como com princípios éticos de
Em tempo de globalização, vale dizer que o uma conduta de vida auto-responsável, projetada de forma
encaminhamento das demandas democráticas vicejadas no consciente, tanto de indivíduos como de coletividades.67
plano dos direitos fundamentais de segunda e terceira Portanto, a democracia vive em um governo do povo e
gerações, especialmente nos países denominados periféricos não exclusivamente para o povo, sendo válido o magistério
ou do Terceiro Mundo, deixa aos poucos as pautas políticas, GH.HOVHQTXHYLDQD³participação no governo, ou seja, na
diminuindo conseqüentemente o intervencionismo e criação e aplicação das normas gerais e individuais da
dirigismo estatal ² retorna-se à era do Estado mínimo ², de RUGHPVRFLDOTXHFRQVWLWXLDFRPXQLGDGH´68 a característica
sorte a reduzir o direito público praticamente ao direito essencial da democracia, resgatando dessa maneira o
penal, com o restabelecimento inevitável de um tipo de significado original do termo, cunhado na Grécia Antiga:
Estado semelhante ao conhecido estado gendarme. demos = povo, kraiten = governo.
Sem, por enquanto, vincular diretamente os novos Mas não apenas isso. A expressão kelseniana limita a
tempos e a cultura que os inspira à estrutura processual idéia de democracia à conhecida democracia política, cujo
penal em concreto, vale insistir em sublinhar a tendência fundamento é a liberdade, não concedendo às democracias
política da sociedade atual, porque a adoção de uma cultura social, econômica e cultural o mesmo peso. Sabe-se que o
de Estado mínimo, de Estado penal ou simplesmente contexto da democracia política, como salienta José Álvaro
punitivo, tendo como sua única responsabilidade o Moisés, supõe pelo menos os seguintes caracteres:69
monopólio legítimo do emprego da força, produz um tipo
específico de política criminal, ilumina um movimento penal ‡ 'LUHLWR GH SDUWLFLSDomR GH WRGRV RV PHPEUos adultos
e acaba incidindo sobre o modelo de sistema processual da comunidade política no processo de formação de
acatado e interpretado, ainda que à luz de uma constituição governos em todos os níveis...
democrática. ‡3UHYDOrQFLDGDYRQWDGHGDPDLRULDYHULILFDGD DWUDYpV
Salienta Bobbio que a idéia de que o único dever do de mecanismos de eleições periódicas e previsíveis...
Estado consiste em impedir que os indivíduos provoquem ‡ *DUDQWLD GH DFHVVR GH TXDLVTXHU LQGLYtGXRV JUXSRV
danos uns aos outros, deriva de uma arbitrária redução de tendências ou organizações coletivas aos diferentes
todo direito público a direito penal.66 mecanismos que envolvem decisões relevantes para a
A noção de democracia que orienta este trabalho parte comunidade política.
da premissa de que se trata de sistema político ‡ *DUDQWLD GH TXH D PLQRULD QmR VHUi SHUVHJXLGD H
convencionado institucionalmente, cujo propósito está em poderá transformar-se em maioria...
promover decisões políticas, legislativas e administrativas,

67 Habermas, ob. cit., p. 133.


65 Campilongo, ob. cit., p. 38. Ver igualmente Kelsen, A Democracia, São 68 Kelsen, ob. cit., p. 142. Ver nota 35.
Paulo: Martins Fontes, 1993, pp. 30-31. 69 Moisés, José Álvaro. Os Brasileiros e a Democracia, São Paulo: Ática,
66 Bobbio, O Futuro da Democracia, p. 112. 1995, pp. 37-38.
‡ 5HFRQKHFLPHQWR GH TXH FRQIOLWRV GH LQWHUHVVH ou mas também com a dos direitos sociais,72 atenuando-se a
identidade em torno de questões econômicas, sociais, marginalização e tornando possível a participação pública
políticas e religiosas... são legítimos e autorizam o responsável, em seus dois sentidos,73 na gestão de todas as
direito de associação e/ou organização para a sua atividades concernentes ao governo e à sociedade, inclusive
defesa. na produção legítima do direito regulador das relações
‡ 3ULQFtSLR GH VHSDUDomR HQWUH RV SRGHUHV JDUDQWLQGR sociais e no exercício do controle externo legítimo da
que a ação dos governantes em suas distintas esferas e atividade processual.
níveis de competência se submete a mecanismos A vinculação entre democracia e direito, há muito
públicos de controle. percebida na ciência política, não escapou certamente aos
juristas, e menos ainda àqueles processualistas que vêem o
A Constituição da República denuncia, nos capítulos processo como a expressão do microcosmo democrático,
dos direitos sociais e políticos, a disposição de adotar um como realçou Dinamarco.
conceito de democracia amplo, condizente com as promessas Pelo contrário, a tensão dialética natural da democracia
não apenas de liberdade, de raiz anglo-saxã, mas projeta-se no âmbito da solução institucionalizada dos
principalmente de igualdade, no rastro da versão igualitária conflitos de interesses como sendo a melhor, senão a única
da Revolução Francesa, denominada por alguns, como forma de adjudicação de soluções a estes conflitos,
descreve Moisés, como extensão da cidadania civil e política modulando o instrumento conforme o paradigma político e
para o terreno social.70 deferindo ao juiz, como veremos mais à frente, a
Não se cuida de limitar a própria noção de democracia
somente à possibilidade de influência na gestão pública,
72 Ver, a respeito, Weffort, Francisco. Qual Democracia?, São Paulo: Cia. das
advinda das situações institucionais de respeito às liberdades Letras, 1996.
de expressão, associação, informação alternativa, competição 73 Renato Janine Ribeiro, a propósito da política, antecipa considerações
dos líderes políticos e eleições livres em sufrágio universal, sobre o sentido de público, aplicáveis sem dúvida ao âmbito da estrutura
processual e relevantes, no que concerne à vinculação entre direito e
mas de criar condições de alteração cultural profunda, pela democracia, ou, mais propriamente, entre direito e processo, na medida em
educação e difusão de reais oportunidades de ascensão que ambos os sentidos pressupõem um nível de educação que favorece, se
econômica e política, de sorte a permitir a verdadeira presente, a otimização instrumental da democracia. Assim, público se opõe
a privado, ressalta o autor, e se faz sinônimo de bem comum, algo que não
integração de todos, pois capazes de discernir sobre as pode ser alvo de apreciação egoísta ou particular. Trasladando-se o
opções apresentadas para o governo da coletividade em um conceito para o processo penal, teremos que a instrumentalidade do
sentido aberto. mencionado meio não comporta visões particularistas do direito que
Assim, a democracia consiste e se desenvolve, na pretende efetivar e não admite o próprio direito penal como um fim em si
mesmo, porém apenas como mecanismo de tutela adequada e razoável
medida do seu próprio dinamismo, obra aberta e para determinados tipos de conflitos. Por outro lado, público se opõe a
inacabada,71 não só com a garantia dos direitos individuais palco e revela não mais o dado da participação ativa, mas da passiva
assistência, cujo único sentido positivo consiste na possibilidade de
controlar a ação dos atores políticos, inclusive do juiz. Nestes derradeiros
termos, os princípios da publicidade e do duplo grau de jurisdição
70 Moisés, ob. cit., p. 39. aparecem como naturais consectários da idéia de participação democrática
71 Ver Bobbio, O Futuro da Democracia, p. 9, referindo que, para um regime no processo, prevendo a um só tempo a idéia de que todo poder deve ter
democrático, o estar em transformação é seu estado natural: a DOJXP WLSR GH FRQWUROHYLVtYHOVRFLDOPHQWH ³$ 3ROtWLFD FRPR(VSHWiFXOR´
democracia é dinâmica, o despotismo é estático e sempre igual a si in Anos 90: Política e Sociedade no Brasil, Evelina Dagnino [org.]. São
mesmo. Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 31-40).
legitimidade necessária à enunciação das decisões. da solução justa.
Piero Calamandrei, em obra clássica, acentuava, na O processo assim, em um Estado democrático e,
década de 1950, a relação científica e política entre processo principalmente, em uma sociedade também democrática,
e democracia, assinalando, em uma postura enfática a revela-se produto da contribuição dialética de muitos e não
respeito da natureza jurídica do primeiro, que, por processo, da ação isolada de um só, ainda que este um ² mesmo sendo
em um Estado democrático, há de se entender o conjunto de o juiz ² atue informado pela disposição de encontrar a
relações jurídicas entre pelo menos três sujeitos ² processus solução mais justa, ou, dito com outras palavras,
est actum trium personarum ² sem subordinação entre apropriando-se da expressão kelseniana, ainda que este um
eles, mas sim com vinculações recíprocas em termos de atue para o povo. Calamandrei, bem situando a questão,
direitos e deveres. remarcou que as partes são pessoas, isto é, sujeitos de
Além disso, naquilo que diretamente se vincula ao deveres e de direitos, que estão perante o juiz não na
objeto do nosso trabalho, por processo se deve aceitar apenas condição de súditos, objetos de uma supremacia que os
o processo de partes contrapostas, dialético,74 asseverando o obriga a uma obediência passiva, mas como cidadãos livres e
mestre peninsular: ativos.77
É forçoso reconhecer que a idéia de democracia
³1HOSURFHVVRPRGHUQRTXHOORFKHULVSRQGHDL atravessa o ambiente estrutural do processo, contaminando-
principi costituzionali degli ordinamenti o de diversos modos com a ideologia que busca torná-la
democratici moderni, le due parti sono sempre hegemônica. Isso não espanta, na medida em que conceitos e
indispensabili. Il principio fondamentale del categorias processuais são estéreis fora do solo das
processo, la sua forza motrice, la sua garanzia ideologias, como a respeito do Direito em sua totalidade
VXSUHPDqLO³SULQFLSLRGHOFRQWUDGGLWWRULR´´75 havia admitido Miaille.
Mirreile Delmas-Marty salienta sobre a política criminal
A consideração da participação, independentemente do operacionalizada no sistema penal, no espaço jurídico do
aspecto de publicidade que deve revestir a ação pública na processo, que qualquer política, e aí também a criminal, é
esfera democrática,76 é cercada de maior significado, no comandada por uma ideologia,78 concebida a expressão
plano da estruturação da base sobre a qual se desenvolverá o principalmente no sentido pugnado pela filosofia alemã, de
processo, justamente por levar em conta, como disse Marx a Habermas, tal seja, instrumento de construção da
Calamandrei, não uma relação de poder, envolvendo súditos, verdade e não de mera observação.79
mas de equilíbrio entre sujeitos, cada qual com suas Deve-se, pois, à concepção ideológica de um processo
responsabilidades, voltados todos, no entanto, à realização
77 Calamandrei, ob. cit., pp. 678-679.
78 Delmas-Marty, Mirreile. Modelos e Movimentos de Política Criminal, Rio
74 Sobre o conceito de modelo dialético no processo, ver, por todos, Ada de Janeiro: Revan, 1992, p. 32.
Pellegrini Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, São Paulo: 79 MCLellan, David. A Ideologia, Lisboa: Estampa, 1987, p. 25. Ver, também,
Max Limonad, 1985, p. 8. QRVVR ³%UHYHV &RQVLGHUDo}HV VREUH R 'LUHLWR 3URFHVVXDO 3HQDO´ *HUDOGR
75 Calamandrei, Piero. Opere Giuridiche: Processo e Democrazia, Napoli: Prado, in Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, ano 2, nº 3,
Morano, 1965, p. 678. Rio de Janeiro: Revan, 1997, pp. 41-  H ³,GHRORJLD (VWDGR H 'LUHLWR´
76 Bobbio advertia que é sempre uma diferença entre a democracia e a (Wolkmer, Antonio Carlos. São Paulo, RT, 1995, pp. 93-95), sendo certo
autocracia a questão de o segredo ser uma exceção e não uma regra (O que este último, apurando as divergências doutrinárias incidentes sobre a
Futuro da Democracia, p. 101). definição de ideologia, distingue o sentido positivo do negativo do termo.
penal democrático, a assertiva comum de que a sua estrutura origem das respectivas investiduras, de sorte a conceber
há de respeitar, sempre, o modelo dialético, reservando ao também modos diferentes de captação e orientação
juiz a função de julgar, mas com a colaboração das partes, epistemológica e normativa das ações desenvolvidas em
despindo-se, contudo, da iniciativa da persecução penal. A ambos os campos.
estrutura sincrônica dialética do processo penal democrático Com efeito, a definição dos crimes e cominação das
considera, pois, metaforicamente, o conceito de relação penas demanda a edição de lei prévia ² nullum crimen sine
angular ou triangular e nunca de relação linear, lege ² em razão do que se supõe preenchido o requisito de
sacramentando as linhas mestras do sistema acusatório. legitimação da determinação das situações que autorizam a
Ada Grinover percucientemente aduziu que no Estado compressão substantiva de direitos fundamentais.
de direito não há outro processo senão o acusatório, É verdade que o legislador não tem carta branca para
escorado na distribuição das principais funções processuais arbitrar ilimitadamente as condutas que crê nocivas à
entre três sujeitos, de modo a dispensar o juiz da iniciativa convivência social.
da perseguição penal e garantir a sua imparcialidade.80 À característica brutal do direito penal corresponde a
Acrescenta a ilustre professora, demarcando os planos e sua idéia geral como ultima ratio, em virtude da qual,
limites ideológicos da eleição da estrutura democrática sobre abdicando-se da concepção salvacionista da incriminação e
a qual deve se basear a relação processual: punição totais, salientam-se os aspectos fragmentários da
intervenção penal na vida social, com a eleição daquelas
³$LQGD TXH LVVR QmR UHVXOWH HP FRQVWUXLU R situações excepcionais cuja gravidade justifique cogitar da
sistema acusatório mecanicamente, segundo o adoção de uma resposta socialmente organizada de igual
processo civil, a imposição do processo penal como seriedade.
processo de partes se nos afigura como uma tomada Para isso, ao lado do preceito formal de legitimação,
de posição inabalável, como uma confissão de consistente na exigência de lei prévia, é imperativo que se
princípios, como uma batalha sem concessões: pois, definam os conteúdos, portanto, que a lei penal seja
VH DLQGD VH ODPHQWD TXH VHMDPRV YtWLPDV GR ³PLWR necessária, que a necessidade decorra de uma lesão real ao
GR WULkQJXOR´ VH FRQVLGHUDU R FRQWUDGLWyULR FRPo bem jurídico, que a lesão tenha sido produzida por uma
condição para qualquer ato de formação da prova conduta exterior do indivíduo (omissiva ou comissiva mas
ainda suscita perplexidade e reações... não se pode sempre externamente apreciável) e que a conduta seja
VHQmRSURFHGHUDXPDHVFROKDLGHROyJLFD´81 culpável, tanto no sentido de estar inspirada por dolo ou
culpa como por ser reprovável pessoalmente a seu autor.82
Acreditamos sinceramente que a eleição ideológica do Somente se esses requisitos estiverem presentes estará
sistema acusatório é uma natural conseqüência das completo o círculo em cujo interior repousará a legitimidade
influências do princípio democrático em relação ao direito, da incriminação de comportamentos considerados
uma vez que a separação dos poderes, projetando-se como censuráveis pela maioria das pessoas, através de seus
mecanismo de viabilização da soberania popular, identifica representantes escolhidos pelo livre sufrágio universal.
nas atuações legislativa e judicial esferas distintas quanto à Acontece que, se é possível perceber uma ligação
imediata entre a soberania popular e o processo de edição
80 Grinover, Liberdades Públicas e Processo Penal, p. 56.
81 Idem. 82 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 93 ² ³0RGHORVGH'LUHLWR3HQDO´
das leis, o mesmo não ocorre quando se trata de avaliar a provavelmente ao que a parte quis demonstrar pelo poder de
atuação judicial, pois tanto a investidura dos juízes como a explicação das evidências ajuizadas.
sua permanência no cargo normalmente não obedecem a um A legitimidade da atividade jurisdicional está
processo eletivo. condicionada ao emprego de técnicas que imunizem o
Como de forma satisfatória reconhece Ferrajoli, o que processo do decisionismo judicial (em outras palavras, da
vai caracterizar a legitimação da atividade jurisdicional, um decisão arbitrária) e não iludam quanto à conquista de uma
dos pilares do tríptico dos poderes do Estado, é a atuação dos verdade real, o que só ocorrerá na medida em que sejam
juízes em razão da busca do caráter representativo, nas suas assegurados os direitos e garantias fundamentais,
sentenças, da verdade substancial, conforme sua permitindo que acusação e defesa demonstrem a
independente atuação e sujeição somente à lei válida, correspondência entre as teses esposadas e as provas
porquanto constitucional.83 produzidas, com a redução do subjetivismo inerente a todo
Uma atividade decisionista do juiz, baseada na sua julgamento.
credibilidade social mas intangível pelas partes, na medida Desta forma, será legítima a atividade jurisdicional
em que se apresenta como exercício da sua potestade, penal, porque terá sido possível conferir à sentença a
máxima representação da sua vontade pessoal, não é qualidade de haver apreendido o tipo de verdade que pode
legítima, mesmo quando parece mais eficiente porque atende ser constatada de modo mais ou menos controlável por
às pautas de repressão penal. Assim, não é legítima a todos, mas isso só acontecerá se forem satisfeitas as
decisão do juiz que condena o acusado porque a maioria das garantias do juízo contraditório, oral e público, isto é, na
pessoas quer esta condenação. A legitimidade da condenação vigência do sistema acusatório. A legitimidade do exercício
e a validade jurídica da sentença dependem da do poder, cujo berço é a soberania popular, é a fonte da
correspondência entre aquilo que afirma o juiz e as provas democracia.
lícitas produzidas no curso do processo. Naturalmente por isso a perspectiva democrática do
É importante que se ressalve que o nexo entre processo estabelece um tipo privilegiado de relação entre
legitimidade e verdade que assegura o esquema direito e democracia, mas não se pode olvidar das influências
epistemológico e normativo e define a natureza específica da culturais determinantes, presentes na sociedade civil, a um
jurisdição no moderno Estado de direito, nas palavras de tempo condicionadas e condicionantes da maneira pela qual
Ferrajoli, não está centrado em uma concepção eficientista, a batalha sem concessões por um modelo de estrutura
meramente instrumental ou utilitária, ainda que haja um democrática do processo penal, compatível com a vontade
consenso comunitário em torno deste conceito de jurisdição. igualmente democrática expressada na Constituição, ecoa
Não há verdade real, pelo menos se a aceitarmos como concretamente no meio judiciário e social, portanto, no
expressão absoluta dos fatos que devem ser demonstrados microcosmo e no cosmo sociais.
no processo. Trata-se de um ideal não alcançável, que cede Os estudiosos da ciência política, preocupados com a
espaço a uma verdade não definitiva mas contingente, não análise dos diversos modelos de transições políticas, têm
absoluta mas relativa ao estado dos conhecimentos e dedicado especial atenção ao papel da consolidação cultural
experiências contemporâneos84 e que, ao certo, corresponde dos valores que alicerçam o regime democrático.
Não se trata de aceitar simplesmente a prevalência da
83 Idem, p. 69. escolha constitucional e, portanto, jurídica, da democracia,
84 Ferrajoli, ob. cit., p. 50. como fator suficiente para a estabilização democrática. É
preciso que a democracia se faça presente como um valor No Brasil, é importante frisar, a dificuldade de
decisivo na vida das pessoas, pragmaticamente consolidação de uma cultura democrática e, naturalmente,
imprescindível para alcançarem a vida digna. Moisés também de direitos fundamentais, pode estar relacionada ao
assinala que a cultura política é condição sine qua non para a modo pelo qual lentamente foi promovida a transição para a
orientação de comportamentos e ações envolvendo a democracia.
generalização de um conjunto de valores elementares ao A transição democrática, como fenômeno político, pode
processo de democratização,85 esclarecendo que a VHU GHILQLGD FRPR ³processo de passagem de um sistema
desconsideração da dimensão político-cultural afeta SROtWLFR DXWRFUiWLFR SDUD RXWUR GHPRFUiWLFR´,89 em virtude
gravemente o suporte democrático da sociedade. Não basta do que pelo menos duas dimensões são seguramente
um Estado democrático, é necessário que a sociedade observadas: promove-se a liberalização política do regime
também o seja. (aumento do pluralismo político, da tolerância frente à
Eis, por isso, a razão pela qual Enrique Peruzzotti oposição e do respeito às liberdades públicas) e a sua
destacou que a consolidação institucional da democracia está democratização (maior participação popular, direta ou
sujeita também ao importante papel jogado pelas variáveis indireta, na tomada de decisões coletivas).90
culturais,86 que não podem ser desprezadas. Com efeito, se as lutas sociais, correntes universais de
A institucionalização da democracia não depende opinião que confluíram e lideranças e formas político-
exclusivamente de processos de engenharia institucional organizativas que se impuseram foram importantes para a
elaborados de cima para baixo, na perspectiva das elites, mas democratização,91 não é menos certo que práticas
DLQGDGH³práticas e identidades políticas da sociedade civil autoritárias sustentadas pelos grupos de poder obrigaram a
e sua relação histórica com a democracia e o um intenso relacionamento dialético entre os governos
FRQVWLWXFLRQDOLVPR´.87 Do mesmo modo, a estruturação autoritários e os grupos oposicionistas, revelando a
democrática do processo penal não se impõe simplesmente densidade peculiar da adesão de setores da sociedade às
de cima para baixo, ainda que se parta da Constituição, pelo políticas antidemocráticas.
menos não sem que se vençam fortes adversários culturais, No Brasil não houve uma ruptura com o passado
credores inabaláveis da fé na verdade real, absoluta, autoritário. Antes, a transição proporcionou a acomodação
conquistável através de um procedimento penal de defesa entre os setores governamentais, que representavam parte
social, como o inquisitório, que, embora esteja em crise, da elite, e algumas das principais forças oposicionistas, de
ainda se manifesta enquanto estrutura procedimental na modo tal que estruturas e mesmo pessoas do antigo regime
maior parte da América Latina, conforme salientou Alberto se incorporaram ao novo.92
M. Binder.88
89 Rico, José María. Justicia Penal y Transición Democrática en América
Latina, Madrid: Siglo Veintiuno, 1997, p. 38.
85 Moisés, ob. cit., pp. 84-85. 90 Idem.
86 Peruzzotti, (QULTXH ³6RFLHGDGH &LYLO H &RQVWLWXFLRQDOLVPR QD $UJHQWLQD´ 91 &DUGRVR)HUQDQGR+HQULTXH³'HVHQYROYLPHQWR$VVRFLDGR² Dependente
in Sociedade Civil e Democratização. Leonardo Avritzer (Coord.). Belo e Teoria DemocrátiFD´ in Democratizando o Brasil. Alfred Stepan (org.).
Horizonte, Del Rey, 1994, pp. 215-234. São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 480.
87 Peruzzotti, ob. cit., p. 216. 92 Sintomático, aí, que no Estado do Rio de Janeiro, no período de 1996-1998,
88 Alberto Binder, ao falar da reforma da justiça penal no III Seminário as forças policiais tenham sido comandadas por general do Exército, figura
Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, em São Paulo, expressiva do regime anterior, encarregada da repressão aos que aderiram
em 11 de setembro de 1997. à luta armada.
A ordem e a paz dos governos ditatoriais ² a ordem dos específica de juiz e, principalmente, uma cultura também de
garrotes e a paz dos cemitérios93 ² ficaram parcialmente contornos bem precisos.96 Este juiz e esta cultura ligam-se
impregnadas na memória dos brasileiros e por isso, sob a naturalmente, mesmo quando a base normativa dispõe em
intensa influência das pautas da mídia que adotou o sentido contrário, pelo sentimento de insegurança, tantas
movimento de lei e ordem, a cultura do medo ganha terreno vezes explorado como demanda de violência pela mídia, mas
da cultura democrática mesmo depois de 1988.94 que corresponde, salientou com razão Binder, a uma
Calamandrei atentava para o fato de que o juiz é um demanda de segurança verdadeira e justa no contexto de
homem político, que vive na sociedade e que participa da uma sociedade democrática que se pretende desenvolver sem
dinâmica de aspirações econômicas e morais dessa mesma abusos de poder, entre os quais estão aqueles que têm
sociedade, exprimindo na sentença o seu sentimento, origem na atuação criminosa.97
inafastável da sua condição de homem político e social.95
Assim, por maior que seja seu carinho pela
Constituição, não é improvável que uma cultura subjacente, 96 Ferrajoli soma a isso o fato de o direito e o processo penal inquisitórios
de forte conotação de defesa social, incrementada pela ação configurarem, ainda, uma epistemologia penal específica, caracterizada
conforme a (in)definição normativa das condutas delituosas e o
persistente dos meios de comunicação, reclamando menos decisionismo predominante da atividade de comprovação judicial ²
impunidade e maior rigor penal, derivada, por sua vez, de auctoritas ² non veritas facit iudicium. Ferrajoli, in Derecho y Razón, p.
uma cultura geral política autoritária, como a herdada nos 41.
97 A justa e cabível demanda por segurança importa, naturalmente, na
países latino-americanos, faça do juiz alguém submetido à concepção de um interesse público não apenas expressado nas ações de
idéia de um processo menos dialético e participativo e muito prevenção e repressão criminal, mas por igual na judicialização do conflito
mais hierárquico e subordinativo, subordinação hierárquica de interesses de natureza penal, publicizado também porque se concebe a
infração penal como algo que agride um valor social relevante, como
que resulta na dependência real do sistema de justiça ao salientou Afrânio Silva Jardim (Ação Penal Pública: Princípio da
poder político e aos grupos de pressão externos ou internos, Obrigatoriedade, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 13). Nestes
estes encastelados na organização judiciária. termos, cumpre ao Estado, conforme uma visão garantística, da qual
pormenorizadamente serão expostos os aspectos mais salientes adiante, no
Binder, antes mencionado, destacou na ocasião que o item Constituição e Processo Penal, intervir em favor da maior parte da
sistema inquisitivo não é só uma forma de processo, senão população, de forma a assegurar a qualidade de vida e impedir a submissão
um modelo completo de organização judicial, uma figura do cidadão não-criminoso ao criminoso, em áreas dominadas pela
criminalidade (Miglino, $UQDOGR³%UHYHV5HIOH[}HVVREUHR6LJQLILFDGRGR
Garantismo [em vista dos acontecimentos italianos dos anos 1988-@´
in Lições Alternativas de Direito Processual. Horácio Wanderlei Rodrigues
93 Weffort, )UDQFLVFR ³3RU TXr GHPRFUDFLD"´ in Democratizando o Brasil. (org.), São Paulo: Acadêmica, 1995, p. 47). A solução justa, todavia, apesar
Alfred Stepan (org.). São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 511. da publicização do conflito, há de ser investigada sem diminuir o valor
94 É valioso destacar que a cultura do medo sugere, como reação ao fenômeno sempre destacado da atenção ao ofendido. Neste ponto o autor mudou de
da criminalidade, a potencialização de uma guerra contra o crime, opinião entre a 1ª e 3ª edição. A tutela do ofendido é tarefa do direito
reintroduzindo conceitos bélicos na política criminal e ratificando o penal, que ameaça com a sanção penal o agente que agride bens jurídicos.
processo de militarização que marca a convergência das funções policial e É, também, tarefa do Estado Providência, que deve viabilizar a atenção às
militar peculiares ao Brasil e à América Latina (Rico, ob. cit., p. 26). O vítimas de crimes, buscando meios de socorrê-la. O processo penal de
resultado prático do desvio das atividades de investigação e controle das consenso, que estimula acordo entre vítima e agressor, todavia não alcança
infrações penais, levando em consideração o aparato castrense de qualquer resultado satisfatório em termos globais, pois enfraquece as
repressão, a nosso juízo está em minimizar a importância do próprio garantias do acusado e coloca a vítima frente a frente com ele, sem ter
processo penal como instrumento de mediação dos conflitos sociais desta como assegurar condições de igualdade, salvo com abuso do Poder de
natureza. coerção. Isso está explicitado em Elementos para uma Análise Crítica da
95 Calamandrei, ob. cit., p. 642. Transação Penal, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003.
Convém assinalar, todavia, que no processo de transição o de descoberta da sociedade civil brasileira, fruto de
para a democracia está implícita a reforma do sistema penal, profundas rupturas nas tradições ideológicas do país.100 E
na medida em que se prestigiam os direitos fundamentais com certeza o complementará.
antes solene ou escamoteadamente desprezados e, Ademais, não se deve estimar com reservas a evidência
conseqüentemente, legitimam-se os remédios e garantias denunciada pela escola histórica de que o direito também é
postos pelo legislador com o objetivo de dar efetividade às uma produção cultural, uma criação do homem, apto a
posições jurídicas de vantagem decisivamente reconhecidas. influir sobre o próprio homem em uma relação de interação.
Uma cultura que expressa, ainda que sutilmente, sua Está certo J. J. Calmon de Passos ao assinalar que:
preferência por uma estrutura processual estranha aos
modelos garantistas, se por um lado pode incentivar a ³2 GLUHLWR QmR p SRUWDQWR XP IHQ{PHQR
produção de leis e decisões incompatíveis com a direção natural, algo posto à disposição do homem pela
constitucional, reservando a esta incômoda posição de mera natureza e sujeito a leis necessitantes. Ele se situa
promessa, por outro não está imobilizada, petrificada e, no mundo da cultura, é uma criação do homem,
portanto, imune aos resultados sociais decorrentes da uma das muitas formas pelas quais tenta
implementação da opção democrática no âmbito do processo compreender o existente para sobre ele interagir,
penal. conformando-o e direcionando-o no sentido do
Se a confiança do cidadão no sistema de justiça penal é atendimento de suas necessidades e realização de
condicionante decisiva da sua segurança,98 é preciso, pois, suDVH[SHFWDWLYDV´101
desmistificar o papel que este mesmo sistema penal
desempenha no controle da criminalidade e na equação O direito, como construção humana, pode e deve
importante derivada da tutela de interesses que representam elaborar as condições e critérios de justificação das decisões
valores hoje universalmente ponderados.99 por ele admitidas como válidas, de sorte a que somente as
Esse processo de desmistificação, pelas dificuldades que que se enquadrem neste modelo estejam providas da
pode apresentar, certamente não será tão doloroso como foi legitimidade democrática inerente à soberania popular e
supremacia dos direitos fundamentais.
O princípio democrático fundamenta o caráter
98 1HVWHVHQWLGRHQWHQGH$QWRQLR%HUQDUGR&RODoR ³$&RQILDQoDGR&LGDGmR
no Sistema de Justiça Criminal como Condicionante Decisiva da sua
instrumental do próprio direito e, como acentua Ferrajoli,
6HJXUDQoD´in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 5, 3º e 4º, jul- precisamente porque o direito é um universo lingüístico
dez/1995. Lisboa: Aequitas Editorial Notícias, 1995, pp. 361-372). artificial, pode permitir, pelo emprego de técnicas
99 José Eduardo Faria alerta para o fato de que como sua própria história apropriadas de formulação e aplicação das leis, a
revela, nas sociedades divididas em classes e num mundo dividido em
nações pobres e países ricos, os direitos humanos quase sempre consistem fundamentação dos juízos decisórios sobre a verdade
numa ameaça à ordem estabelecida, pois hão de ser encarados numa subtraída em nível extremo ao erro e ao arbítrio.102
perspectiva essencialmente política, ou seja, como promessa emancipatória
ou como palavra de ordem libertária (Direito e Globalização Econômica:
Implicações e Perspectivas, São Paulo: Malheiros, 1996, p. 151), sendo esta 100 Weffort, Francisco. ³3RU TXr GHPRFUDFLD"´ in Democratizando o Brasil.
a motivação muitas vezes latente nas ações voltadas à desmoralização do Alfred Stepan (org.). São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 515.
conceito de direitos fundamentais, além da disposição de não se promover 101 Passos, --&DOPRQ³3URFHVVRH'HPRFUDFLD´in Participação e Processo.
uma educação fundada neles, inequívoco alicerce para o conhecimento das Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Kazuo Watanabe
reais causas da criminalidade e da verdadeira finalidade e potencialidade (Coord.). São Paulo: RT, 1988, p. 86.
de todo e qualquer sistema penal. 102 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 70.
Neste contexto, assoma a relevância da privilegiada ramos jurídicos ao campo do Direito Público,105 e sem
relação do direito com a democracia, como frisamos desconsiderar a primazia constitucional na superposição das
anteriormente, mas não com uma democracia qualquer, normas jurídicas106 influindo decisivamente na demarcação
fulcrada na mera declaração formal de respeito aos direitos do âmbito de legitimidade, validade e eficácia das leis,
fundamentais e numa vinculação passiva entre governados e decorre da constatação de que, na essência, Constituição e
governantes e sim na real democracia participativa, Processo Penal lidam com algumas importantes questões
integradora e solidária, com inegável repercussão no plano comuns: a proteção aos direitos fundamentais e a separação
do processo penal, de sorte que a cultura democrática aos dos poderes.
poucos poderá ser desenvolvida pela conscientização da Giuseppe Bettiol sublinhava que a Constituição, ligada a
forma democrática da sociedade conviver. valores e ideais da democracia, deve preocupar-se em fixar
Recorrendo novamente a Calmon de Passos, releva claramente algumas normas processuais penais vinculadas à
salientar que, se estamos alcançando um estágio novo no identidade democrática, pois que ambos os ramos jurídicos
processo de transformação da democracia moderna, não é tutelam a liberdade individual, como se destinatários fossem
suficiente que se democratize o Estado. Impõe também de uma vocação comum.107
democratizar-se a sociedade.103
Nessa linha de pensamento, o processo penal não é 105 Sobre a inserção do Processo Penal no tronco do Direito Público, aludiu
apenas o instrumento de composição do litígio penal ou de Miguel Fenech, não só motivando historicamente a classificação, como
chamando a atenção para as inolvidáveis conseqüências disso decorrentes,
resolução das causas penais, mas, sobretudo, um tais como a carência de conceitos de valor universal amadurecidos, à
instrumento político de participação, com maior ou menor semelhança do que ocorre com o Direito Privado (muito embora,
intensidade, conforme evolua o nível de democratização da atualmente, a situação não esteja no mesmo ponto), relatividade de
conceitos em função da relatividade do Estado, em certo país e num preciso
sociedade. momento, e a superveniência de normas processuais ditadas sob o império
Para tanto, afigura-se imprescindível a coordenação de uma concepção estatal que pode estar superada, malgrado as normas
entre direito, processo e democracia, o que ocorre pelo processuais permaneçam em vigor, dado da realidade que de perto
interessa ao nosso estudo (Derecho Procesal Penal, vol. I, Barcelona:
desejável caminho da Constituição, porquanto, Labor, 1952, pp. 49-51).
institucionalizando a proteção dos mencionados direitos, 106 Não é nossa pretensão renovar o debate sobre as classificações das
reconhece-se que somente pela via democrática atingirão sua Constituições e, portanto, das normas constitucionais (malgrado adiante,
por força da necessária clareza que o trabalho deve ter, algumas
plena efetividade.104 considerações sejam tecidas) nem esse é o objeto do estudo que se
Esse é o motivo pelo qual convém igualmente dedicar desenvolve. Assim, naturalmente além da diferenciação levada a efeito na
algumas palavras ao tema Constituição e Processo Penal. introdução (Constituição real versus Constituição jurídica), pertinente à
abordagem crítica, e ainda embora se conheçam outras categorizações
2.4. Constituição e Processo Penal (Constituição material, formal, instrumental, normativa etc.) cingimo-nos a
reter o conceito normativo identificado por Kelsen, que salienta na
Com efeito, a relação entre a Constituição e o Processo Constituição o pressuposto de consistir no nível normativo mais elevado do
Direito Nacional (Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo: Martins
Penal, antes de ser ditada pelo fato de pertencerem ambos os Fontes, 1992, pp. 129-140), definindo-se como uma ordenação sistemática
e racional da comunidade política, plasmada num documento escrito,
mediante o qual se garantem os direitos fundamentais e se organiza, de
acordo com o princípio da divisão dos poderes, o poder político
103 Passos, ob. cit., p. 92. (Canotilho, ob. cit., pp. 12 e 63).
104 Assim também pensa Hans Peter Schneider (Democracia y Constitucion, 107 Bettiol, Giuseppe. Instituciones de Derecho Penal y Procesal, Barcelona:
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pp. 18-19). Bosch, 1977, p. 222. Henkel, por sua vez, afirma que o conteúdo normativo
Salientava o mestre italiano, antevendo pelo prisma da maioria, pois os direitos fundamentais inscrevem-se na
Constituição a conexão indelével entre Processo e ordem constitucional brasileira como cláusulas pétreas
'HPRFUDFLD TXH XP ³Código Processual que não encontre (artigo 60, § 4o, inciso IV da Constituição da República de
seu fundamento racional, político e jurídico, no articulado 1988).110
GH XPD &RQVWLWXLomR TXH µUHFRQKHoD H JDUDQWD RV GLUHLWRV Assim, a análise do Processo Penal responde pela ótica
invioláveiV GR KRPHP¶ VH HQFRQWUD H[SRVWR D WRGDV DV constitucional a uma exigência não só metodológica e
possibilidades de reformas vinculadas a maiorias político- jurídica, mas também político-institucional, como acentuava
parlamentares ocasionais, com grave prejuízo das Georg Jellinek, ao mencionar os liames que repercutem na
OLEHUGDGHVS~EOLFDVHSULYDGDV´.108 unidade científica de direito constitucional e política.111
Basicamente, todos sabem a verdade contida na Marcelo Neves, por seu turno, ao estudar a
proclamação de Bettiol, na medida em que constatamos que constitucionalidade simbólica, destaca atentamente a
os apelos excessivos da mídia e a influência do debate sobre vinculação entre política e direito, ou, de forma mais
violência e criminalidade nos processos eleitorais regionais e GHILQLGD HQWUH SROtWLFD H &RQVWLWXLomR DFHQWXDQGR TXH ³a
nacionais volta e meia conduzem os políticos ao discurso de Constituição em sentido especificamente moderno
reforma ordinária do processo penal, fundado em uma apresenta-se como uma via de prestações recíprocas e,
cultura autoritária, que ensaia movimentos de lei e ordem,109 sobretudo, como mecanismo de interpenetração (ou mesmo
com o desmesurado e inconseqüente endurecimento das de interferência) entre dois sistemas sociais autônomos, a
situações típicas do procedimento, tais como aquelas 3ROtWLFDHR'LUHLWR´.112
relativas à prisão e liberdade, sem amparo na Constituição Ada Grinover alertou para o fato de que Mendes Júnior,
da República. no final do século XIX, já focalizava o processo como
Mesmo o princípio constitucional da presunção da garantia dos direitos individuais, antecipando-se, como
inocência é colocado de lado na elaboração e aplicação das bem disse a ilustre doutrinadora, na compreensão dos
leis, malgrado não se proceda a qualquer alteração no aspectos constitucionais do direito processual.113 Embora se
panorama da Constituição, alteração esta impossível, como refira, depois de Mendes Júnior, a Kelsen, Calamandrei,
notado ao dedicarmos atenção às limitações ao princípio da Cappelletti, Liebman, Couture, Buzaid e Frederico Marques,
entre outros, a própria Ada Grinover insere-se também,
do processo penal está tão profundamente conformado pelo do Direito
indiscutivelmente, ao lado de Cândido Rangel Dinamarco e
Constitucional, que faz sentido asseverar que o Processo Penal é o Kazuo Watanabe, no rol dos processualistas que enfatizaram
verdadeiro Direito Constitucional aplicado (apud Jorge de Figueiredo Dias, o estudo do direito processual constitucional, assim
Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra, 1974, p. 74).
108 Idem.
109 Sobre os movimentos de lei e ordem, ver, por todos, Alberto Silva Franco, 110 Vale salientar, com Eugenio Florian (Elementos de Derecho Procesal
Crimes Hediondos, 3ª ed. São Paulo: RT, 1994, pp. 30-40. Convém frisar Penal, Barcelona: Bosch, 1933, pp. 15 e 152-153), que há situações nas quais
desde logo, porém, que na maioria das vezes as modificações legislativas vige, na realidade, um processo penal extraordinário, referido a momentos
não decorrem do convencimento empiricamente determinado dos autoritários, de limitação ou supressão do exercício dos direitos
legisladores, sobre a eficácia do tratamento penal e processual mais fundamentais, em prol da chamada Defesa Social.
rigoroso que postulam, e sim da necessidade política de produzir confiança 111 Jellinek, Georg. Reforma y Mutacion de la Constitucion, Madrid: Centro
no sistema jurídico-político, ressaltando a importância social da ação dos de Estudios Constitucionales, 1991.
protagonistas deste sistema, implementando a providência simbólica que 112 Neves, Marcelo. Ob. cit., p. 62.
0DUFHOR 1HYHV GHILQLX FRPR VHQGR ³Legislação-Álibi´ 1HYHV 0DUFHOR A 113 Grinover, Ada Pellegrini. As Garantias Constitucionais do Direito de Ação,
Constitucionalização Simbólica, São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 37). São Paulo: RT, 1973.
compreendido, na vigorosa lição de Dinamarco, como clássica de Ada Grinover ² As Garantias Constitucionais do
condensação metodológica e sistemática dos princípios Direito de Ação ², que envolve atenciosa avaliação dos
constitucionais do processo.114 direitos de ação e de defesa, conforme a Constituição, outras
A certeza científica da influência dos sistemas políticos tantas, significativas, igualmente vieram à lume, como por
sobre as bases processuais mediada pela Constituição, exemplo As Garantias Constitucionais na Investigação
encaminhou os estudos do processo civil e penal, certeza Criminal, de Fauzi Hassan Choukr, Primeiras Linhas sobre
alicerçada pela convicção de que a constituição é, pois, o o Processo Penal em Face da Nova Constituição, de Paulo
fundamento de validade de todas as leis115 e a garantia, dada Cláudio Tovo e João Batista Tovo, e Processo Penal e (em
a rigidez dos seus processos de transformação, emenda ou Face da) Constituição, de Luis Gustavo Grandinetti
mesmo substituição,116 da proteção jurídica e social de ideais Castanho de Carvalho,118 cumprindo, no entanto, preencher-
da administração da justiça que funcionam como métodos de se a lacuna gerada pela ausência de um trabalho que
legitimação da função de composição dos conflitos e diretamente trate do sistema acusatório à luz da
anteparos contra situações autoritárias, algumas das quais Constituição, embora muitas obras incidentalmente o hajam
dramaticamente vividas na Europa, na primeira parte deste abordado, como é o caso da dissertação de Choukr e da
século. excelente tese de Afrânio Jardim sobre Ação Penal Pública,
Apesar de a doutrina processual ter ultrapassado com também mencionada.
cautela o tempo da consolidação técnico-científica do É curial acentuar que a premissa da atividade que
processo, vencendo, em seguida, sua fase de crítica, estamos desenvolvendo vincula-se ao pensamento
reveladora da etapa instrumentalista, para alcançar hoje as fundamental, mais à frente explicitado, de que a Constituição
discussões sociopolíticas,117 na verdade o método derivado da República escolheu a estrutura democrática sobre a qual
dos estudos constitucionais, extremamente útil no exame há, portanto, de existir e se desenvolver a relação processual
crítico, segundo instante de desenvolvimento dos estudos do penal, forçando-se, assim, a adaptação do modelo vigente
processo como ramo autônomo do direito material, serve antes de 1988.
ainda a análises de categorias processuais importantes e Tal estado de coisas reflete a perspectiva da base
pouco exploradas, como é o caso do sistema acusatório. processual especialmente como garantia constitucional,
Vale dizer, apenas para ilustrar, que além da obra instrumentalizada de modo ordenado, conforme os
princípios constitucionais, de maneira a permitir a adequada
114 Dinamarco, A Instrumentalidade, p. 24, e Cintra, Grinover e Dinamarco, fruição dos direitos de ação e de defesa, na busca da justa
Teoria Geral do Processo, 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994. solução119 do conflito de interesses penal ou do caso penal.
115 Grinover. As Garantias Constitucionais, p. 9.
116 A afirmação da solidez da Constituição, desejada conforme o
constitucionalismo, porquanto deva ser boa e duradoura, a ponto de levar 118 Choukr, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação
Ferdinand Lassale a revelar que ao tempo em que o país não protesta pela Criminal, 2ª edição, Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2001; Carvalho, Luis
UHIRUPD RUGLQiULD GDV VXDV OHLV SURWHVWD H JULWD ³Deixem a Constituição´ Gustavo Grandinetti Castanho. Processo Penal e (em Face da)
quando se trata de pensar em alterá-la (Lassale, Ferdinand. A Essência da Constituição, 3ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004; Tovo, Paulo
Constituição, 2ª ed. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1988, pp. 8 e 41), está Cláudio e Tovo, João Batista. Primeiras Linhas sobre o Processo Penal em
sofrendo os influxos da denominada ingovernabilidade, atribuída à Face da Nova Constituição, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989.
previsão dos direitos fundamentais prestacionais, geradores de déficit 119 Releva notar, visto que em várias oportunidades citamos a busca da justiça
público, expandindo-se ainda sobre os da primeira geração, pelo que como um dos fins perseguidos pelo processo, que há, entre muitas outras,
dificultariam, nessa visão, a operação de defesa social. uma obra capital sobre a transição do Estado de Direito ao Estado de
117 Grinover. O Processo em Evolução, pp. 3-19. Justiça: El Proceso Justo (Morello, Augusto M. Buenos Aires: Platense -
Nessa linha de raciocínio é necessário distinguir o sentido estrito.122
sentido jurídico de direitos e garantias, ambos preservados Não é, porém, qualquer processo que reúne as
constitucionalmente, para compreendermos o alcance da condições de instrumento de garantia dos direitos ² o que
tutela constitucional de determinado tipo de estrutura no âmbito penal, como tantas vezes salientamos ao longo do
processual. trabalho, é indispensável, na medida da gravidade e
Hector Enrique Quiroga Cubillos120 entende que as repercussão sociais do caso penal ² mas somente aquele que
garantias são instrumentais, constituindo-se nos meios preencha a cláusula constitucional do devido processo legal,
processuais pelos quais se logra a proteção efetiva dos formal e também substancial123. Somente este modelo
direitos. Por sua vez, Ada Grinover destaca que se complexo respeita efetivamente os direitos de ação e de
compreende por direito um fenômeno de índole defesa e pretende, com isso, preservar também a sociedade
declaratória, ou seja, contido em norma que exige através do deslocamento dos conflitos de interesses para o
determinado comportamento,121 enquanto as garantias plano jurídico-institucional, no qual, a princípio, não
configuram o instrumento assecuratório do direito. predomina a razão do mais forte ou até da maioria, e sim a
Evidentemente, o processo como instrumento da regra fixada pela lei e, antes de tudo, pela própria
jurisdição representa uma primeira garantia, em razão de Constituição, mesmo contra a razão do mais forte ou da
que outras hão de operar, especialmente a imparcialidade e maioria.124
independência do juiz, o contraditório e a ampla defesa e a Assim, pode-se assinalar que compete à Constituição da
iniciativa da parte para a ação (ne procedat judex ex officio), República tutelar o processo para que não se enuncie
sacramentando-se, na medida do possível, a igualdade das cláusula vazia e não se faça ouvidos de mercador à
partes. Declaração Universal de Direitos do Homem, que prescreve,
Aceitando-se a epistemologia peculiar ao garantismo em seu artigo 8o, que toda pessoa tem direito a um recurso
penal, os preceitos da presunção da inocência, da reserva de efetivo ante os tribunais nacionais competentes, que a
jurisdição (nulla culpa sine iudicium) e do habeas corpus ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais,
constituem a base das garantias pelas quais historicamente reconhecidos pela constituição ou pela lei, assegurando-se a
ao menos se assegura o primado de uma jurisdicionalidade um só tempo a garantia constitucional do processo e o
em sentido lato, enquanto o contraditório, a distribuição do processo como garantia constitucional dos direitos.125
ônus da prova, a iniciativa da parte para a ação e a defesa
concreta do acusado conformam a jurisdicionalidade em 122 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 539.
123 Sobre o devido processo legal, ver, por todos, Silveira, Paulo Fernando.
Devido Processo Legal: Due Process of Law, Belo Horizonte: Del Rey,
Abledo-Perrot, 1994). A solução justa para nós está escorada na aceitação 1996.
da atividade jurisdicional penal como cognoscitiva, isto é, empenhada na 124 É novamente Ferrajoli quem adverte que, se a legitimidade da função
determinação da verdade judicial conforme as garantias orgânicas e jurisdicional está implicada com o fato da atividade de composição dos
procedimentais que devem cercar o processo penal. conflitos de interesses penais ser cognoscitiva e não constitutiva, o juiz não
120 Cubillos, Hector Enrique Quiroga. Derechos y Garantias Constitucionales cria o ilícito mas descobre a verdade nos limites reais que a reconstituição
en el Proceso, Bogotá: Ediciones Libreria del Profesional, 1987. pelas provas possibilita, motivo por que a autoridade democrática da
121 Grinover, Ada Pellegrini. O Processo em sua Unidade - II, Rio de Janeiro: decisão judicial não decorrerá da vontade concreta da maioria mas estará
Forense, 1984, p. 56. Vale ressaltar que, complementarmente, a mesma submetida exclusivamente aos imperativos inerentes à investigação da
autora designou por direito público subjetivo, portanto, espécie do gênero verdade. Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 544.
direito, posições jurídicas ativas, com relação à autoridade estatal 125 Neste sentido, ver, por outros, Couture, Eduardo J. Fundamentos del
(Liberdades Públicas, p. 5). Derecho Procesal Civil, Buenos Aires: Depalma, 1977.
Certo é, o que será objeto de algum detalhamento no os protagonistas dos sistemas político-jurídico prefiram, sem
item dedicado à tipologia, que, ao se falar em garantia, dada embargo da sua positivação, atuar precisamente sem
a polissemia inerente à expressão, pode-se ter em vista tanto implementá-los (às vezes até mesmo negando-os), a
a norma-garantia, caracterizadora de uma posição jurídica realidade é que a função-garantia importará justamente em
de vantagem, reconhecida pelo direito positivo, de natureza sujeitar, como assinala Ferrajoli, a produção do direito
instrumental, ou o princípio-garantia, mandamento nuclear conforme o próprio direito, influindo não só nos níveis da
do sistema jurídico-político, de caráter precipuamente existência e vigência mas também no da validade, com o
axiológico, ou ainda a função-garantia, que emerge, nos respeito indiscutível aos comandos que programam os
tempos atuais, repleta de importância jurídica e significado conteúdos democráticos, elaborados a partir dos princípios
político, porque objetiva resgatar o valor da razão jurídica, constitucionais tutelares dos direitos fundamentais.127
não somente no plano do ser, como fundamento do direito Neste sentido particular, entende-VH SRU JDUDQWLDV ³DV
aplicado e vivido cotidianamente, mas principalmente técnicas criadas pelo ordenamento para reduzir a
naquele do dever ser, pelo que estabelece em termos de divergência estrutural entre normatividade e efectividade, e
significado simbólico, orientador tanto da ação do legislador portanto para realizar a máxima efectividade dos direitos
como da atuação do juiz. fundamentais em coerência com a sua estatuição
Marcelo Neves assinala o papel simbólico da FRQVWLWXFLRQDO´.128
constitucionalização para o fim de confirmação de valores É bom que se diga que vigência e existência das normas
sociais, asseverando que, se em algumas situações a para nós filiados ao pensamento que impera no seio do
constitucionalização simbólica tem um sentido negativo, garantismo penal, estão relacionadas à simples legalidade
como no caso da legislação-álibi, pode muito bem servir das formas e fontes das normas jurídicas, enquanto a
também positivamente, quando se trata de prestigiar valores validade depende da estrita taxatividade de seus conteúdos,
pertinentes à dignidade da pessoa humana, no confronto como resultado da conformação delas às garantias.129
com outros que preservam um âmbito de liberdade despido Na medida em que a Constituição da República opta
ou despreocupado dessa dignidade. pela tutela dos direitos fundamentais, a estrutura processual
Com efeito, assinala Marcelo Neves que do legislador se penal daí derivada há de ser imposta com estrita observância
exige com freqüência uma posição a respeito de conflitos do modo pelo qual é possível harmonizarem-se todos estes
sociais em torno de valores. Os grupos envolvidos nos direitos e, naturalmente, não só os de defesa mas ainda, por
debates pela prevalência de determinados valores, sublinha exemplo, os de ação e à segurança.130
Marcelo Neves, vêem a vitória legislativa como forma de Ao se definir a base processual, acatando-se um sistema
reconhecimento da superioridade social de sua concepção, e um princípio expressivos dos direitos fundamentais,
sendo-lhes secundária a eficácia normativa da respectiva conforme veremos mais à frente, a Constituição fez a sua
lei.126 escolha, cumprindo aos aplicadores das leis ordinárias
No capítulo dos direitos fundamentais, no entanto, se
for assegurada a superioridade destes valores, mesmo que a 127 Ferrajoli, Luigi. Ob. cit., p. 48.
cultura subjacente na sociedade os veja em determinados 128 Ferrajoli, /XLJL ³2 GLUHLWR FRPR 6LVWHPD GH *DUDQWLDV´ in Revista do
momentos como mecanismos de proteção dos criminosos e Ministério Público, Lisboa, nº 61, jan-mar/1995, p. 40.
129 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 95.
130 Convém examinar, sobre o tema, a obra de Mario Chiavario, Processo e
126 Neves, Marcelo. Ob. cit., p. 34. Garanzie Della Persona, Milano: Giuffrè, 1984.
efetivar a Constituição, sempre conforme ela própria. Por sempre citada doutrina alemã (verfassungswandlungen).133
isso, Ferrajoli tem inteira razão quando afirma que:131 A relevância do processo hermenêutico para a
imposição predominante dos direitos fundamentais na esfera
³$VXMHLomRGRMXL]jOHLQmRpGHIDFWRFRPRQR penal é tão significativa, que vale recordar que o intérprete,
velho paradigma juspositivista, sujeição à letra da este mediador, principalmente se for o juiz penal,134 sempre
lei qualquer que seja o seu significado, mas sim contribuirá decisivamente na escolha dos valores que o
sujeição à lei somente enquanto válida, ou seja, guiarão, por meio da assunção de significados concernentes
FRHUHQWHFRPDFRQVWLWXLomR´ a uma determinada concepção de Direito. Interpretar deriva
de interpres, isto é, mediador, intermediário, de sorte a
Conclui-se, dessa forma, que o sistema processual que estabelecer-se no processo de interpretação a mediação entre
há de ser prestigiado por conta da função-garantia do direito o texto e a realidade para, de acordo com Baracho, 135
e, naturalmente, da própria estrutura processual como desenvolver-se o processo intelectivo através do qual,
realidade normativa, será aquele que venha a preservar a partindo da forma lingüística contida no ato normativo,
tripartição das principais atividades processuais ² acusar, chegar-se ao seu conteúdo ou significado.
defender e julgar ² sincronizadas, consoante o lembrado Caso contrário, o juiz estaria reduzido a mero
magistério de Calamandrei, de sorte a validar os direitos instrumento de aplicação mecânica de um texto legal,
fundamentais. suscetível de ser substituído com muitas vantagens por um
Concretamente, incumbe ao juiz proceder à adaptação
das leis do processo, conforme este sistema ou, se for o caso,
não aplicar, por inválidas, aquelas que contrastam com a 133 Ver, sobre o assunto, Ada Grinover (As Garantias Constitucionais, p. 15).
Constituição, paradigmada a interpretação judicial, na visão Por oportuno é conveniente destacar que tal fenômeno é denominado, na
Espanha e em Portugal, mutação constitucional, entendendo-se, tal como
de Gomes Canotilho, na conjunção dos princípios da na Alemanha (Tribunal Alemão de Karlsruhe), tratar-se de uma mudança
prevalência da Constituição, da conservação de suas normas de conteúdo das normas que, conservando a mesma redação, adquirem um
e na exclusão da interpretação conforme a Constituição, significado diferente (Vadillo, Enrique Ruiz. El Principio Acusatorio y su
Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y
porém contra legem.132 Tribunal Supremo, Madrid: Actualidad Editorial, 1994, p. 19), ou, nas
Opera-se assim tal procedimento de seletividade em palavras de Canotilho (ob. cit. pp. 236-239), operam a transição do sentido
conseqüência das possibilidades inerentes à tarefa de sem mudar o texto, o que a difere da alteração constitucional, consistente
na reforma formal do compromisso político, acompanhada da alteração do
interpretação conforme a Constituição, interpretação esta próprio texto da Constituição.
que deve ter, não há dúvida, atuação evolutiva, consoante a 134 Não se despreza, por oportuno, a tese de que a hermenêutica constitucional
é campo aberto a todos que, no processo democrático de convivência social,
observam o direito, atuando conforme o significado que pessoalmente
atribuem à conformidade constitucional. A interpretação constitucional é,
pois, neste sentido, obra aberta, do ponto de vista dos sujeitos aptos a
131 Ferrajoli, /XLJL³2GLUHLWRFRPR6LVWHPDGH*DUDQWLDV´S2WWR%DFKRI realizá-la, consoante salientou Peter Häberle (Hermenêutica
acentuava que no exercício da função judicial de vigilância da Constitucional ² A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição:
constitucionalidade das leis, o juiz só deve admitir uma lei como válida e &RQWULEXLomR SDUD D ,QWHUSUHWDomR 3OXUDOLVWD H µ3URFHGLPHQWDO¶ GD
vinculante quando esta não só tenha sido formalmente promulgada de Constituição, tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio
acordo com a Constituição mas também se o seu conteúdo estiver de Antonio Fabris, 1997). No entanto, a vinculatividade da atuação
acordo com os preceitos constitucionais (Jueces y Constitución, Madrid: interpretativa do juiz é que, neste aspecto particular do problema, colocado
Civitas, 1987, p. 32). no trabalho, deve ser priorizada.
132 Canotilho, pp. 235-236. 135 Baracho, ob. cit., p. 49.
computador.136 Eis a razão de Couture ter dito que:137 superior, em consideração às supostas demandas de
³,QWHUSUHWDU p DLQGD TXH LQFRQVFLHQWHPHQWH estabilidade governamental.
tomar partido por uma concepção do Direito, o que Assim, a recusa à chancela de constitucionalidade pode
significa dizer, por uma concepção do mundo e da ocorrer dentro da própria Constituição, se os movimentos
vida. Interpretar é dar vida a uma norma. Esta é derivados de alteração da sua ordem não respeitarem os
uma simples proposição hipotética de uma conduta pilares intangíveis dos direitos fundamentais e da soberania
futura. Assim sendo, é um objeto ideal, invisível... e popular, com a legitimidade e separação dos poderes.
suscetível de ser percebido pelo raciocínio e pela Movimentos de transformação da ordem constitucional
intuição. O raciocínio e a intuição, todavia, são freqüentes e se desenrolam fundados em demandas de
pertencem a um determinado homem e, por isso, maior fluidez e flexibilidade dos instrumentos de soluções
HVWmRSUHQKHVGHVXEMHWLYLVPR´ dos conflitos sociais.
A redução de complexidade do direito processual pela
Todo intérprete, salienta Couture, é, embora não o deformalização aparece na nossa Constituição, para ilustrar,
queira, um filósofo e um político da lei e a concepção de na disciplina do procedimento dos juizados especiais
mundo e de direito que concebe, reafirme-se, deve estar criminais, que na sua regulação por lei ordinária não se
ancorada na Constituição, independentemente da postura limitou a obedecer ao perímetro traçado no plano
filosófico-jurídica ou política dele, intérprete e, até mesmo, constitucional ² procedimento oral e sumaríssimo, com a
da existência prévia de uma decisão do tribunal possibilidade de transação ² para incorporar a
constitucional, no nosso caso, do Supremo Tribunal Federal, informalidade, celeridade e economia processual (Lei n o
sobre a matéria, evidentemente desde que sem força 9.099/95, artigo 62).
vinculativa erga omnes. A filosofia da deformalização dos procedimentos, antes
Novamente, a lição de Baracho é valiosa, salientando a de ser uma rebelião ao formalismo exagerado e imotivado,
difusa competência para aplicação das leis, pelos juízes, em busca dessa maior fluidez e flexibilidade na hermenêutica
conforme a Constituição, em virtude do que não devem constitucional, pode ensejar a redução da eficácia das
aplicar as normas que considerem inconstitucionais.138 garantias que dependem, justamente, da observação de
Na atual etapa do constitucionalismo, na virada do procedimentos.
milênio para a civilização ocidental, a tarefa de interpretação Comparato sublinha, acertadamente, que todo direito é
e aplicação dos textos legais de acordo com a Constituição IRUPDOLVWRp³que ele nada mais deve ser que a realização
assume uma grandeza toda especial em virtude do processo formal da justiça, a sua realização segundo certos meios e
de corrosão das bases rígidas instituídas no nível normativo UHJUDV FRQKHFLGRV GD FRPXQLGDGH´ H DFUHVFHQWD TXH ³a
regularidade formal é sempre uma garantia diante do
podeU XPD OLPLWDomR GR DUEtWULR´.139 É interessante
136 Assim, com razão, leciona Zaffaroni, para quem, en rigor, en el actual observar que, na década de 90, o sucessor aparente do
estado del saber jurídico, es casi imposible que, sea por vía explícita o bien
implícitamente, el juez no lleve a cabo un control constitucional de las movimento do direito alternativo dos anos 70 é o modelo
leyes, siempre que, naturalmente, opere conforme a esas pautas de saber
jurídico (Estructuras Judiciales, Buenos Aires: Ediar, 1994, p. 60).
137 Couture, Eduardo J. Interpretação das Leis Processuais, 3ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1993, p. 11.
138 Baracho, ob. cit., p. 53. 139 Comparato, ob. cit., p. 36.
procedimental,140 que, na tutela do status activus sempre submetida à valoração do juiz ² dos seus
processualis, não abdica do juízo contraditório, das provas significados com a Constituição. Daí deriva que a
adquiridas de forma lícita, da imparcialidade judicial e da interpretação judicial da lei é também sempre um
sentença justa como produto final de uma atividade juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz
jurisdicional ética e democrática. tem o dever e a responsabilidade de escolher
O status processual se concebe pelo reconhecimento de somente os significados válidos, ou seja,
que, na democracia, o indivíduo tem o direito de participar compatíveis com as normas constitucionais
ativamente e assumir a sua própria responsabilidade nos substanciais e com os direitos fundamentais por
procedimentos que lhe afetam, assim como nas estruturas de elas estabelecidos. Era isto, e não outra coisa ²
organização,141 o que importa, quanto aos direitos diga-se de passagem ² o que entendíamos há vinte
fundamentais, na adoção de formas de participação DQRV FRP D H[SUHVVmR ³MXULVSUXGrQFLD DOWHUQDWLYD´
dinâmicas e ativas. em torno da qual tantos equívocos surgiram:
Nessa perspectiva é que concluímos que não pode ser interpretação da lei conforme à constituição e,
debilitada a certeza do vínculo entre Processo e Constituição, quando a contradição é insanável, dever do juiz de
estipulada em uma medida exclusivamente formal, mas declarar a invalidade constitucional; portanto, já
como consciente tomada de posição, pelos chamados não é uma sujeição à lei de tipo acrítico e
profissionais (operadores) do direito, sobre a importância de incondicional, mas sim sujeição, antes de mais, à
aplicar e impor as regras processuais tendo em vista o fio Constituição, que impõe ao juiz a crítica das leis
condutor dos direitos fundamentais.142 inválidas, por meio da sua reinterpretação em
Valioso, assim, encerrar o tópico com as palavras de sentido constitucional ou a sua denúncia por
Ferrajoli, em reafirmação ao seu pensamento sobre o dever LQFRQVWLWXFLRQDOLGDGH´
do juiz de aplicar somente a lei válida. Diz o mestre:143

³$YDOLGDGHMiQmRpQRPRGHORFRQVWLWXFLRQDO- 2.5. Sistema e Princípios: Uma Aproximação


garantista, um dogma ligado à mera existência Tipológica
formal da lei, mas uma sua qualidade contingente
ligada à coerência ² mais ou menos opinável e Aceitando-se como premissa da abordagem pretendida
que a estrutura processual penal sobre a qual devem atuar as
140 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos humanos y Constitucionalismo
garantias constitucionais subordina-se necessariamente à
ante el Tercer Milenio: p. 19. Constituição, cumpre agora determinar-lhe a natureza
141 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos humanos y Constitucionalismo jurídica, enfrentando, ainda que sem pretensões de
ante el Tercer Milenio: p. 20. exaurimento das alternativas, as questões que se colocam
142 Note-se que em Portugal a eleição constitucional do sistema acusatório, no
plano dos direitos fundamentais, conforme será examinado no próximo sobre tratar-se de um sistema, e neste caso definir de que
capítulo, levou Jorge de Figueiredo Dias, a propósito da revisão sistema se trata (se acusatório, inquisitório ou misto,
constitucional, a assinalar que se levantou um veto terminante a qualquer conforme a eleição constitucional a ser examinada em
veleidade de regresso a ideias típicas do processo inquisitório (A Revisão
Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, Lisboa: Horizonte, 1981, capítulo próprio), ou de um princípio.
pp. 46 e 50), haja vista a vocação de eternidade dos direitos fundamentais. Sem embargo não se deve esquecer da advertência de
143 Ferrajoli, Luigi. O Direito como Sistema de Garantias, p. 41.
Maurício Lopes, mencionada na introdução deste trabalho, a Não é preciso sublinhar que os tipos ideais de Weber
respeito da possibilidade da realidade normativa preencher o não correspondem às formas reais das ações individuais,
modelo de mais de uma categoria jurídica, simultaneamente, sociais ou mesmo relações sociais que tencionam
desde que não se cuide de categorias excludentes. representar, da mesma forma que não corresponderiam às
É importante também destacar que a estrutura relações jurídicas. Pelo contrário, não há uma vinculação
processual conforme o devido processo legal formal e automática entre os tipos e as realidades que lhes são
substancial, ela própria, estrutura, configura verdadeira subjacentes, na medida em que os primeiros são construídos
garantia de implementação dos direitos fundamentais, e, pela separação daquelas características que mais os
portanto, dela se alimenta de nutrientes normativos que enfatizam, muito embora, logicamente, os fatos sociais e
viabilizam a sua existência e validade. jurídicos venham impregnados de caracteres impostos pelas
Convém alertar para o fato de a estrutura processual ² circunstâncias singulares da sua origem, perpassadas pelas
que será observada detalhadamente em outra oportunidade, mais diversas relações sociais.147
repita-se ² não corresponder, é claro, a um modelo puro, Assim, parece claro, não encontraremos, quer onde
como, aliás, sublinham Fauzi Choukr e Afrânio Jardim. prevalece a estrutura acusatória, quer onde predomina a
Choukr salienta que a elaboração de um modelo, referindo- inquisitória, bases absolutamente idênticas a ponto de serem
se ao modelo acusatório, supõe a elaboração de um esquema justapostas e não se observarem notas discrepantes.148
tão próximo quanto possível da realidade144 e Afrânio Jardim Isto não significa que os conceitos dos diversos sistemas
remata que a estrutura processual penal de hoje, no Brasil, é são inúteis ou inadequados, como quer fazer crer Montero
um produto inacabado.145 Podemos inferir que ambos se Aroca. Para o respeitado jurista espanhol, os chamados
referem, ainda que indiretamente, à categoria sociológica do VLVWHPDVSURFHVVXDLVVmR³FRQFHLWRVGRSDVVDGRTXHKRMHQmR
tipo, explorada por Max Weber. têm valor algum, servindo unicamente para confundir ou
Para melhor compreender a problemática, entendendo WXUEDUDFODUH]DFRQFHLWXDO´149
as diferenças entre diversos ordenamentos jurídicos que A capacidade de racionalizar o modo como as questões
optaram por estruturas processuais similares mas não
necessariamente idênticas, recorremos, assim, a Weber,
assinalando que ele, conferindo estatuto científico às ciências 147 Pode-se até mesmo discutir o valor histórico do tipo ideal,
considerando a neutralidade que lhe pretendia impor Weber ² para quem,
da realidade (sociais), produziu aquela que talvez seja, senão ao que parece, não havia um sentido finalístico ou teleológico no curso
a sua mais importante, pelo menos a mais famosa histórico. Não se lhe pode negar, contudo, a qualidade de vincular pesquisa
FRQWULEXLomRFRQVLVWHQWHQDFULDomRGR³WLSRLGHDO´ sociológica e pesquisa histórica, do modo como pôs em relevo Machado
Trata-se, na formulação de Medina y Echavarría, de um Neto (Sociologia Jurídica, São Paulo: Saraiva, 1987, p. 37). Ver também, do
SUySULR:HEHU³$µ2EMHWLYLGDGH¶GR&RQKHFLPHQWRQDV&LrQFLDV6RFLDLV´in
PpWRGR TXH SRVVLELOLWD HQIUHQWDU ³a necessidade de captar, Weber, Cohn, Gabriel (org.). São Paulo: Ática, 1991, pp. 79-127,
no possível, a irracionalidade da vida através do especialmente 112-114.
racional´146 148 A título de exemplo, basta confrontarmos os modelos alemão e italiano
atuais com os similares brasileiro e espanhol e veremos que no primeiro
caso a iniciativa para o processo penal será de regra oficial e, no segundo,
admite-se diferentemente, ainda que em caráter excepcional, a iniciativa do
144 Choukr, ob. cit.. ofendido com ampla liberdade no exercício da denommnada ação penal
145 Jardim, Ação Penal Pública, p. 24. privada, tratando-se, de toda sorte, de sistemas acusatórios.
146 Medina y Echavarría, José apud Neto, A. L. Machado. Sociologia Jurídica, 149 MONTERO AROCA, Juan. El Derecho Procesal em el Siglo XX, Valencia:

São Paulo: Saraiva, 1987, p. 36. Tirant Lo Blanch, 2000, p. 107.


em torno da punição de agentes foram resolvidas, ao longo que se associam e permitem o movimento
do tempo, permite identificar pontos de contato entre as harmônico permanente do regramento pela
várias formas e relacionar estes pontos a modelos específicos LQWHUSUHWDomRHQDDSOLFDomRGHVXDVGLVSRVLo}HV´
de organização política.
A função da identificação dos sistemas será Isto posto, a primeira anotação pertinente, que se extrai
aprofundada mais adiante. da preciosa lição de Cármem Rocha, fundamentalmente
A primeira abordagem a ser realizada, porém, jurídica mas nem por isso não antropológica, refere-se ao
relaciona-se com a designação de sistema, pois, como fato de que um sistema não é um conjunto solto e
acentua Geraldo Ataliba,150 ³o estudo de qualquer realidade desarticulado de normas e instituições, o que foi ressaltado,
² seja natural, seja cultural ² quer em nível científico, quer mas sim uma realidade medida exatamente em virtude da
didático, será mais proveitoso e seguro, se o agente é capaz coerência interna destas mesmas normas e instituições ²
de perceber e definir o sistema formado pelo objeto e aquele acrescentaria princípios e sujeitos, que agem no interior do
PDLRUQRTXDOHVWHVHLQVHUH´. sistema de determinada maneira ², muito embora, hoje se
Bobbio igualmente destaca o uso corrente do termo saiba, que os sistemas não têm pretensão de absoluta
sistema na linguagem jurídica, ele próprio admitindo que harmonia e completude, o que explica eventuais antinomias
emprega a expressão várias vezes no lugar dH³RUGHQDPHQWR e lacunas.154
MXUtGLFR´ H UHFRQKHFHQGR TXH D SDODYUD WHP LQ~PHURV A inferência de tal realidade serve a inúmeros
sentidos, assevera que a determinação de um sistema propósitos, entre os quais se destaca o descritivo, em virtude
confere estatuto científico às tarefas de interpretação levadas do que se potencializa a avaliação sistêmica a partir dos
ao cabo pelos juristas.151 comandos redutíveis aos emanados da norma fundamental
Com efeito, salienta Cármem Lúcia Antunes Rocha, a ou Constituição, base do sistema jurídico, e, ainda, o de se
Constituição é um sistema, porque as normas e princípios prestar, metodologicamente, à compreensão da inter-relação
que a compõem não estão soltos e desvinculados mas, sim, de elementos distintos.
presos a uma acomodação harmônica, determinada por uma No Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio
precisa gradação das denominadas normas fundamentais.152 Vargas, define-se sistema como:155
Acrescenta a citada autora que, para ser um sistema, a
Constituição deve ser concebida como:153 ³&RQMXQWR GH FRLVDV TXH RUGHQDGDPHQWH
entrelaçadas contribuem para determinado fim;
³eSXUDV TXHUR GL]HU FRPR HOHPHQWRV trata-se portanto de um todo coerente cujos
normativos concertados e coerentes, que enfeixam diferentes elementos são interdependentes e
normas jurídicas acomodadas numa justaposição e FRQVWLWXHPXPDXQLGDGHFRPSOHWD´

A evidência de um sistema constitucional, realçada por


150 Ataliba, Geraldo apud Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito
Administrativo, 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 51. Marcelo Neves como, em realidade, manifestação de um
151 Bobbio, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, Brasília: Polis, 1989,
p. 75.
152 Rocha, Cármem Lúcia Antunes. O Princípio Constitucional da Igualdade, 154 Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, pp. 78-86.
Belo Horizonte: Lê, 1990. 155 Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas. Benedicto
153 Idem. Silva (coord.), 1986, p. 1127.
subsistema derivado do sistema jurídico-político,156 revela-se derivada do fato de que cada um dos sistemas se diferencia
de significativa importância quando se trata da classificação dos demais pelo seu próprio tipo de operação autopoiética
da estrutura processual, uma vez que, se quisermos de fato (estruturada).157
definir essa estrutura como sistema (acusatório, inquisitório Cada um desses sistemas possui suas próprias leis e
ou misto), e aí melhor será denominá-lo subsistema, tal ainda se diferencia do seu entorno. Como acentua Izizquiza,
consideração há de decorrer da integração ao primeiro o conceito de sistema auto-referente é dinâmico e exige por
(sistema constitucional), manifestando-se como complexo de isso um grande dinamismo conceitual de quem o emprega,
procedimentos entrosados inerentes ao sistema judiciário, ao apesar do que deve enriquecer-se com os conceitos
qual se acoplará em vista das estruturas peculiares deste essenciais da observação e da diferença.158
último, com o objetivo de satisfazer uma necessidade Porém, no plano dos subsistemas releva notar, por
específica, isto é, viabilizar a solução dos conflitos de oportuno, que o âmbito de comunicação deles entre si se
interesses consoante mecanismos que imponham especializa, na medida em que desenvolvem sua própria
concretamente o respeito aos direitos fundamentais. linguagem, relacionando-se com os demais subsistemas, que
Na verdade, o sistema processual está contido no operam como entorno daquele auto-referente e fechado.159
sistema judiciário, por sua vez espécie do sistema Isso fica mais claro quando observamos que, no caso
constitucional, derivado do sistema político, peculiar do sistema processual, dada a sua relação com o
implementando-se deste modo um complexo de relações sistema judiciário, prevalece a lógica funcional que inspira
sistêmicas que metaforicamente pode ser desenhado como este último, obviamente vinculado à função judiciária
de círculos concêntricos, em que aquele de maior diâmetro
envolve o menor, assim sucessivamente, contaminando-o e
dirigindo-o com os princípios adotados na Lei Maior.
A idéia dos subsistemas decorre do reconhecimento da 157 Campilongo (ob. cit., p. 74), a propósito do termo autopoiesis, salienta que
filiação deles a um dos vários sistemas observáveis na vida o neologismo, tão esotérico quanto as idéias de Luhmann, traslada para os
sistemas sociais o conceito desenvolvido por Maturana e Varela, para
social, fundamentando-se a construção no pensamento exame dos sistemas biológicos. De se salientar, por isso e por outras
similar de Luhmann, sobre sistemas sociais, diferentemente evidências captadas na extensa obra de Luhmann, que tanto a generalidade
do desenho clássico desenvolvido por Bertalanffy, pois que como a interdisciplinariedade se impõem no seu pensamento, a partir do
reconhecimento da complexidade social e da constatação de que toda teoria
de início pensamos os sistemas como autoreferentes, ou seja, deve ser uma arma para reduzi-la. A complexidade da sociedade
definidos precisamente por sua diferença com respeito ao contemporânea se estabelece, para o sociólogo, em razão do aumento da
seu entorno, de tal modo que só podem entender-se como diferenciação de uma dada sociedade. O paradoxo da teoria do mestre
tais a partir dessa diferença. fundamenta-se no sentido de que somente com o incremento da
complexidade é possível reduzir-se a própria complexidade do dado ou
A auto-referência que os caracteriza, assinala Ignacio relação social em estudo, cumprindo a teoria este papel, que lhe defere o
Izuzquiza, pode ser vista, enquanto fenômeno, como pensador. Sendo assim, alcança Luhmann o projeto de concepção de uma
teoria sistêmica, como forma de compreensão da sociedade complexa, de
tal sorte que sua obra poGHVHUTXDOLILFDGDFRPR³VRFLRORJLDVLVWrPLFD´
156 Marcelo Neves, p. 63: É possível concebê-la (a Constituição), sob o ponto 158 Izuzquiza, Ignacio. Sociedad y Sistema: La Ambición de la Teoria. Buenos
de vista político-sociológico, como um instituto específico do próprio Aires, Barcelona e México: Ediciones Paidos, 1990, p. 19.
sistema político. Mas, para os fins a que nos propomos, a análise do 159 Fechado naturalmente do ponto de vista normativo, pois que somente o
significado da constitucionalização simbólica, apresenta-se direito pode mudar o direito, mas aberto cognitivamente, porque requer
estrategicamente oportuno o conceito de Constituição como subsistema do trocas de informações entre os sistemas e seus ambientes, como ressaltou
sistema jurídico. Campilongo (ob. cit., p. 75).
básica,160 sem embargo do direito processual penal perfilar- mencionada no item Constituição e Processo Penal, e da
se como um sistema normativo próprio, auto-referente.161 efetiva potencialização dos elementos que isoladamente a
Além dos fins de descrição e de compreensão da inter- constituem como membros de uma categoria de fundo
relação de seus elementos, a categoria sistema processual axiológico, tal seja, a de princípio, o que veremos adiante.
reveste-se ainda de especial magnitude por possibilitar a Advirta-se antes para o fato da funcionalidade, nessa
delimitação do espaço jurídico-processual destes elementos, ótica de garantias, estar ditada pelo reconhecimento prévio
em razão da função do sistema, vinculada à necessidade vital do valor essencial dos direitos fundamentais, ou, de outra
que procura satisfazer.162 maneira, da aceitação de um conteúdo essencial como núcleo
Dir-se-á que o elemento avaliado isoladamente, intrínseco de cada direito, permitindo com isso que a tarefa
pertence ao sistema processual na razão direta da sua descritiva não esvazie a percepção sistemática, confundindo-
funcionalidade, que não poderá, todavia, desprezar para a a com mero funcionalismo que cede aos influxos de
sua caracterização o que mais atrás se registrou como conjunturas e circunstâncias.163
tendência de uma funcionalidade de matiz garantista e não Os termos princípio ou princípios, como tantas outras
meramente utilitarista. categorias examinadas nesta obra, têm diferentes
Uma lei que proponha a iniciativa do juiz para o significados, dos quais apenas um verdadeiramente nos
processo penal de cunho condenatório não pode pertencer ao interessa.
sistema processual acusatório, embasado em uma Com efeito, José Carlos Barbosa Moreira esclarece que a
Constituição que o consagre e, portanto, tal lei não será doutrina alemã do início do século XIX preocupou-se em
válida, ainda que funcional no sentido utilitarista, de mera FRPSHQGLDU HP ³princípios´ RX ³máximas´ DV GLUHWUL]HV
adjudicação de uma solução ao conflito de interesses penal. político-jurídicas que se podem acolher na ordenação do
A possibilidade de uma avaliação desse nível denuncia a processo,164 buscando-se pelo reconhecimento dessas
viabilidade e mesmo necessidade da categoria proposta, sem diretrizes, segundo supomos, obter uma atuação harmônica
embargo da concreta observação de que a função primordial e eficaz deste mesmo processo enquanto instrumento da
da estrutura processual há de ser aquela de garantia, jurisdição.
Apesar da validade da utilização dos princípios como
nortes ou regras abstratamente considerados, dispostos à
160 É conveniente, para o fim de esclarecimento, a apropriação da definição de
sistema judiciário, empregada por Bobbio, Matteucci e Pasquino (Bobbio,
interpretação e aplicação dos institutos processuais, a
Norberto, Matteucci, Nicola e Pasquino, Gianfranco, Dicionário de expressão tem, para os objetivos do trabalho, o significado
Política, vol. II, 4ª ed. Brasília: UNB, 1992, pp. 1157-1163): um complexo de peculiar mais relevante de categoria de natureza
estruturas, de procedimentos e de funções mediante o qual o sistema especialmente constitucional, dotada de multifuncionalidade
político (do qual o Sistema judiciário é na realidade um subsistema)
satisfaz uma das necessidades essenciais para a sua sobrevivência: a apta a possibilitar que a Constituição não se extinga em
adjudicação das controvérsias pela aplicação concreta das normas limites exclusivamente positivados, incapazes de apreender a
reconhecidas pela sociedade - p. 1157.
161 Andrade, Manoel da Costa. Sobre as Proibições de Prova em Processo
Penal, Coimbra, 1992, p. 27. 163 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos humanos y Constitucionalismo
162 Frise-se, nesta perspectiva, que um sistema é, pois, sempre instrumental, ante el Tercer Milenio: p. 17.
existindo na medida em que é necessário à satisfação de uma necessidade 164 0RUHLUD -RVp &DUORV %DUERVD ³2 3UREOHPD GD 'LYLVmR GR 7UDEDOKR HQWUH
de relevo social. Por isso, a sua presença no meio social está condicionada -XL]H3DUWHV$VSHFWRV7HUPLQROyJLFRV´in Temas de Direito Processual -
ao sentimento de necessidade captado pela comunidade e a sua Quarta Série, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 36. Neste sentido é possível
conformação também obedecerá à compreensão social dessa necessidade. falar, por exemplo, em princípios da ação penal.
inesgotável riqueza de situações do porvir, inerentes ao constitucionais, para o que remetemos o leitor às duas obras
desenvolvimento da sociedade e do Estado e a conformação clássicas, de José Afonso da Silva e Luís Roberto Barroso,166
das suas instituições. não se projeta uma classificação das mencionadas normas,
Através dos princípios e da sua multifuncionalidade, sem embargo a que fique registrado que por normas
abrem-se os horizontes da Constituição e emergem as constitucionais, em sentido material, entendem-se aquelas
potencialidades de disciplina jurídica de um sem número de que versam sobre a estrutura do Estado, funcionamento de
fatos novos, inexistentes ao tempo da promulgação da Carta, seus órgãos, direitos e deveres dos cidadãos. As normas
ou, mais ainda, impensáveis naquela ocasião, enquanto constitucionais formais derivam das prescrições que o poder
conformam-se as instituições existentes e os indivíduos que constituinte inseriu numa Constituição rígida,
integram o grupo social de acordo com o programa de independentemente de seu conteúdo e da incidência
valores que o compromisso político sufragou. eventual de uma sanção, como conseqüência jurídica da sua
Uma Constituição não vive exclusivamente de regras, inobservância167. É igualmente preciosa a resenha
impondo-se em termos de constitucionalismo adequado que classificatória desenvolvida por Barroso,168 resumindo-se,
a estrutura sistêmica construa-se pela conjugação de regras e todavia, nosso estudo ao apanhado pertinente à tipologia de
também de princípios, estes caracterizados pelo alto grau de princípios.
abstração, pela exigibilidade de mediação do legislador ou do Por sua vez, define-se princípio FRPR ³mandamento
juiz, e pela fundamentalidade no sistema, condicionando-se nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
reciprocamente. A este respeito, assim se pronunciou Gomes fundamental que se irradia sobre diferentes normas
Canotilho:165 compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua
exata compreensão e inteligência, assim se proclamando
³$ H[LVWrQFLD GH UHJUDV H SULQFtSLRV WDO FRPR exatamente por definir a lógica e a racionalidade do
se acaba de expor, permite a decodificação, em sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá
WHUPRV GH XP ³FRQVWLWXFLRQDOLVPR DGHTXDGR´ GD sentido KXPDQR´.169
estrutura sistêmica, isto é, possibilita a O princípio confere ao texto constitucional vida, relação
compreensão da constituição como sistema aberto com a realidade plasmada na eleição dos valores
de regras e princípios. considerados primordiais para a manutenção de um estado
Um modelo ou sistema constituído de compromisso social, expondo-se como dimensão
exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um determinante, apta a fornecer diretrizes materiais de
sistema jurídico de limitada racionalidade prática. interpretação das normas constitucionais.
Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e Desse modo, assimilando-se a idéia de que a
completa ² legalismo ² do mundo e da vida,
fixando, em termos definitivos, as premissas e os
UHVXOWDGRVGDVUHJUDVMXUtGLFDV´ 166 Silva, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 2ª ed. São
Paulo: RT, 1982. Barroso, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a
Efetividade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição
Não custa salientar que, não tendo o presente trabalho a Brasileira, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
pretensão de ser uma dissertação sobre normas 167 Silva, José Afonso. Ob. cit., pp. 35 e 40.
168 Barroso, Luís Roberto. Ob. cit., pp. 89-118.
169 Mello, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo,
165 Canotilho, ob. cit., pp. 174-175. São Paulo: RT, 1980, pp. 230-231.
Constituição preocupou-se com a estruturação do processo gerais fundamentais pela concretização de princípios
penal, o que é natural, na medida mesma em que dispôs constitucionais especiais,171 de sorte tal a que os
inúmeros direitos e garantias fundamentais referidos à subprincípios sejam tão importantes para a coerência
persecução penal, cabe indagar de que modo se tratou na sistêmica da Constituição quanto os próprios princípios o
Carta desses princípios estruturantes. Afinal, Direito são, em um concerto harmônico indispensável.
Constitucional e o Direito Processual Penal são legatários de Assumir, portanto, a imparcialidade do juiz ² objetiva e
uma vocação comum, como salientou Bettiol, subjetiva, diria Teresa Armenta Deu172 ² a iniciativa do
A verdade é que na tipologia dos princípios Ministério Público para a deflagração do processo, por meio
constitucionais, conforme estudada por Canotilho,170 eleita do exercício da ação penal pública e, excepcionalmente, a
como a que preenche mais fielmente os objetivos deste iniciativa do lesado, exercitando a denominada ação penal
trabalho, destacam-se aqueles denominados fundamentais, privada,173 a imprescindibilidade de defesa ² técnica e
³historicamente objetivados e progressivamente também pessoalmente, pelo imputado ² e a evidência de
introduzidos na consFLrQFLDMXUtGLFD´, os princípios políticos uma atividade de polícia judiciária, a cargo de órgãos
FRQVWLWXFLRQDOPHQWH FRQIRUPDGRUHV GDGR TXH ³explicitam distintos daqueles que propõem a ação e julgam o pedido
as valorações políticas fundamentais do legislador (dessa forma clarificando a indispensabilidade da justa causa
FRQVWLWXLQWH´, os constitucionais impositivos, derivados de para a ação penal, como exigência em nível
XPD &RQVWLWXLomR GLULJHQWH TXH ³impõe aos órgãos do constitucional),174 revela-se como compreensão da estrutura
Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a processual a partir de um princípio constitucional
H[HFXomR GH WDUHIDV´, e, finalmente, os princípios-garantia, fundamental e de garantia, no caso, o princípio acusatório,
traduzindo-se em garantias diretas para todas as pessoas. que será estudado no próximo capítulo,175 criando o
Parece evidente que, se é possível encontrar na ambiente normativo adeqado para a determinação do modus
Constituição da República as diretrizes da estrutura operandi concreto do processo penal.
processual, tais diretrizes concebem-se certamente como O sistema constitucional, por isso, averbe-se, subordina
decorrentes dos princípios fundamentais do Estado de pela via das normas constitucionais uma estrutura
Direito e da Democracia, com a divisão e controle de processual específica, cuja natureza, inequivocamente, pode-
poderes, ao lado da publicidade, e dos princípios-garantia, se acentuar, é a de sistema ou subsistema, como conjunto
vinculados à exigência de juiz imparcial, do exercício
privativo da ação penal pública pelo Ministério Público, da 171 Idem, p. 187.
garantia da ampla defesa (autodefesa e defesa profissional ou 172 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, Zaragoza:
técnica) e da prescrição da atividade de polícia judiciária a Bosch, 1995, p. 48.
173 Ação penal de iniciativa privativa do ofendido (artigos 5º, inciso LIX, da
determinados órgãos, consistindo estas diretrizes em CR, e 100 do Código Penal).
subprincípio derivado daqueles estruturantes, relacionados 174 Respectivamente, artigos 5º, inciso LIII; 129, inciso I; 5º, incisos LIX e LV;
aos dois citados, como, indiscutivelmente, o princípio da e 144, § 4º, todos da Constituição da República Federativa do Brasil.
175 A doutrina não se pacificou sobre que elementos compõem o princípio
separação de poderes. acusatório, às vezes inserindo características do princípio dispositivo, às
Canotilho, em sua obra tantas vezes mencionada, vezes causando confusão com os princípios do contraditório e da igualdade
denuncia este fenômeno como a densificação dos princípios de armas. No geral, porém, e para os limites da posição que se adota, duas
são as características do princípio acusatório: iniciativa para o processo
levada a efeito por sujeito distinto do juiz; divisão clara entre as funções de
170 Canotilho, ob. cit., pp. 176-180 e 186-189. acusar, defender e julgar.
harmônico de normas e princípios constitucionais aplicáveis
ao processo, e também de princípio,176 voltada tal estrutura
para a concretização da persecução penal conforme os
valores indiscutíveis dos direitos fundamentais.
Estes valores foram e são referendados em uma
sociedade e em um Estado democráticos, importando, assim,
interpretarem-se as instituições processuais conforme tais
sistema e princípio evolutivamente, porquanto somente
dessa maneira se respeita o compromisso político haurido da
Carta Constitucional.177

176 Assim também a definiu, em relação ao modelo espanhol Vadillo, na obra


citada anteriormente, p. 140. Devemos frisar que o princípio acusatório,
como será tratado posteriormente, constitui o núcleo básico do sistema
acusatório mas não o esgota, na medida em que este último reclama, para
sua conformação, outros princípios e normas (oralidade, publicidade).
177 Karl Joseph Anton Mittermaier (Tratado de la Prueba en Materia
Criminal, tradução por Gonzáles del Alba, Buenos Aires: Hammurabi,
1993) destacou que o estudo das duas formas básicas de estruturas
processuais remete à conclusão de que dondequiera que reina la
democracia domina el procedimiento de acusación (p. 54). A tese central
deste trabalho concorda plenamente com a proposição do Mestre, porém
será deduzida no próximo capítulo.
3. Sistemas Processuais que de latente se encontra no conjunto das relações sociais,
objetivando a orientação do seu comportamento, assim como
o prisioneiro da caverna, de Platão, preso e subjugado pelo
ilusionismo de um teatro de sombras, que lhe parecia
A compreensão do fenômeno jurídico que envolve realidade única, pode capacitar-se, orientar-se e libertar-se
aquele campo do Direito que lida com a limitação das após converter o seu olhar e se dar conta de que o que via se
liberdades do indivíduo, por meio da efetivação das mais tratava de sombras, geradas pela fonte de luz artificial às
graves medidas de coação previstas no ordenamento jurídico suas costas, que num momento inicial não havia podido
² nas leis e na Constituição ² com emprego de mandatos e enxergar.
proibições, projetando-se na esfera do exercício do poder De outra forma, releva notar, estamos condenados a
político, em um primeiro momento há de demandar exame repetir nossos erros, na crença de que inovamos ao
conforme o contexto espaço-temporal em que se encontra voltarmos aos métodos que um dia repudiamos, sendo, pois,
inserido. a História, a disciplina que nos garante, ou tenta garantir, o
Os olhos devem estar voltados para a história, apesar de aprendizado de dolorosas lições e evitar a constatação da
sabermos que os elementos característicos predominantes negação do axioma de Decartes, de que nem o próprio Deus
dos sistemas processuais variam não só do ponto de vista pode fazer com o que aconteceu deixe de ser um
histórico como também na perspectiva teórica. acontecimento.3
Assinala, precisamente, Julio B. J. Maier,1 que se o Por isso, e mais especificamente para o objeto do nosso
Direito, como matéria de estudo, é um objeto cultural, criado HVWXGRR³VLVWHPDDFXVDWyULR´pGHWRGRLPSUHVFLQGtYHOTXH
pelo homem na medida em que estabelece formas de sejam dedicadas algumas considerações à evolução histórica
convivência comunitária, sedimentadas no especial modo de das formas por meio das quais foi estruturado o modelo
viver em um instante específico dessa vida politicamente
organizada, as suas regras são, portanto, contingentes.
Cuida-se de conseqüência da própria contingência da 3 Decartes, apud $GDXWR 1RYDHV ³6REUH 7HPSR H +LVWyULD´ in Tempo e
História, Org. Adauto Novaes, São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 9. José
organização social sujeita a transformações decorrentes das Henrique Pierangelli menciona, em sua obra de leitura obrigatória a
condições demográficas e de exercício do poder, além das respeito da evolução histórica do processo penal no Brasil, passagem de
experiências positivas e negativas vividas, de sorte que o Ruy Rebello Pinho, sobre a importância do estudo histórico, que merece
ser transcrita. Com efeito, assinalou o ilustre escritor: O passado pode ser
conhecimento do Direito seria impossível sem o estudado com frieza, com indiferença, de um modo estático e tolo,
conhecimento do lugar que ocupa no estudo da evolução VHPHOKDQWH DR GR WXULVWD LQFXOWR TXH µFROHFLRQD¶ YLVLWDV D PXVHXV H
jurídica. entradas de cinemas estrangeiros. Mas pode, também, ser analisado de
Todos os povos, como se sabe, estão em contínua um modo vivo, dinâmico, útil. Mostrou-o, certa vez, de maneira elegante,
num concurso para a Faculdade Nacional de Direito, Alceu Amoroso
transformação2 e a ciência e tomada de consciência da sua Lima. Censuravam-no por buscar na antiguidade um tema de economia
História, da nossa História, representam a libertação de política, quando o mundo de hoje é prenhe de graves problemas
preconceitos, pela capacitação do indivíduo para perceber o econômicos a resolver. E ele respondeu que agia como aquele escritor, se
não me engano Afrânio Peixoto, o qual, cansado de procurar acima do
solo as causas do definhamento de linda árvore de seu jardim,
mergulhara as mãos na terra e descobrira uma pedra enorme impedindo
1 Derecho Procesal Penal Argentino, Buenos Aires: Hammurabi, 1989. o desenvolvimento subterrâneo das raízes do vegetal que fenecia
2 Costa, Álvaro Mayrink. Direito Penal - Parte Geral, 3ª ed. Rio de Janeiro: (Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, Bauru: Jalovi,
Forense, 1991. 1983, p. 11).
político-jurídico de resolução dos conflitos de interesses ou sociedades ou civilizações, independentemente do tempo em
de casos na esfera penal. que se apresentaram, partindo-se das mais rudimentares
Advirta-se que isso será feito ainda sem adiantar a SDUD DV PDLV ³GHVHQYROYLGDV´5 assim entendidas estas
polêmica sobre que elementos de fato caracterizam o sistema últimas como as sociedades que alcançaram maior domínio
acusatório e o distinguem do inquisitório. sobre a natureza, pelo uso das tecnologias disponíveis e,
A divergência doutrinária acerca dos elementos que simultaneamente, diversificaram de maneira significativa as
caracterizam os dois sistemas será melhor compreendida funções atribuídas aos seus membros; ou estudam-se tais
depois da vista histórica. Afinal, os fatos não são os únicos estruturas levando em conta o surgimento histórico dos
objetos da história. A também uma história das idéias, dos denominados sistemas, critério, de um modo geral, preferido
conceitos, que são concebidos para dar conta de pela maioria dos autores,6 haja vista a facilidade de
determinadas demandas. A nosso juízo isso acontece com o compreensão das instituições derivada da ordenação
conceito Sistema Acusatório. cronológica, motivo pelo qual será eleito, com ênfase para as
Um estudo voltado à história, mesmo que dominado matrizes dos sistemas processuais que vieram a ser adotados
pelo propósito de apenas lançar algumas luzes para viabilizar no Brasil.
o entendimento do modelo processual em vigor (ou, pelo /HPEUDPRV TXH D SDUWLU GD  HGLomR GR ³6LVWHPD
menos, do modelo que a Constituição brasileira promete $FXVDWyULR´ DEGLFDPRV GH DWXDOL]DU GDGos relativos às
implementar), ressalvados os riscos e dificuldades dos quais transformações ocorridas em diversos Estados.
nos adverte Ada Grinover, quando se trata de descrever um Na América Latina, por exemplo, o Centro de Estudios
sistema jurídico estrangeiro, vigente em qualquer época,4 de Justicia de Las Américas ± CEJA ± promoveu ou
pode desenvolver-se normalmente de duas maneiras: estimulou pesquisas e trabalhos conjuntos responsáveis pela
escolhem-se, pela ordem, as estruturas processuais, transformação quase total dos Códigos de Processo Penal (de
considerando-se o grau de sofisticação ou complexidade das leis esparças, das regras de Administração e Funcionamento
da Justiça Penal e de pontos específicos das Constituições
4 Salienta a ilustre professora que é sempre arriscado e difícil para o
também).
estudioso descrever um sistema jurídico estrangeiro, em virtude das Estes estudos foram fundamentais para que certos
diferenças endógenas existentes entre os diversos ordenamentos e dos sistemas legais mudassem por completo, como é o caso do
naturais obstáculos para captar com fidelidade o sentido e alcance de
normas jurídicas que espelham outra cultura e promanam de valores
modelo adotado no Chile.
sociais, econômicos e políticos distintos (Grinover, $GD 3HOOHJULQL ³2 A experiência com nota de radicalidade acusatória,
&ULPH 2UJDQL]DGR QR 6LVWHPD ,WDOLDQR´ in O Crime Organizado (Itália e criando-se o Ministério Público onde não havia, destacando-
Brasil): A Modernização da Lei Penal. Penteado, Jaques de Camargo o do tribunal para lhe conferir autonomia (nestes Estados é
(coord.). São Paulo: RT, 1995, p. 13). Ocorre, porém, e não é ocioso
relembrar, que o estudo comparativo do direito equipara-se atualmente aos
demais critérios clássicos da hermenêutica ² gramatical, lógico, histórico e
sistemático ² aos quais se soma para auxiliar o intérprete na compreensão 5 Critério utilizado por Julio Maier, na obra acima mencionada.
do seu próprio ordenamento. Peter Häberle alude, assim, ao postulado de 6 Ver Riquelme (Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, Santiago:
Goethe, em virtude do qual quem não conhece nenhum idioma Editorial Jurídica de Chile, 1978), Manzini (Tratado de Derecho Procesal
estrangeiro, tampouco conhece o seu, para ressaltar que é plenamente Penal, tomo I, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, e
aplicável ao jurista quanto ao conhecimento do ordenamento jurídico Istituzioni di Diritto Processuale Penale, 11ª ed. Padova: Cedam, 1954),
nacional ² Pérez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Levene (Derecho Procesal Penal,
Constitucionalismo ante el Tercer Milenio: Derechos Humanos y tomo II, Buenos Aires: Guillermo Kraft) e João Mendes (O Processo
Constitucionalismo en la Actualidad, Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 24. Criminal Brasileiro, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959).
impensável ver o Ministério Público sentado ao lado do juiz cumprir. Importa, também, criar Ministérios Públicos onde
na sala de sessões), reconfigurando a etapa de investigação antes não havia e equipar Defensorias Pùblicas. Ainda há de
preliminar, em que o juiz só tem funções de garantia, se pensar em termos de treinamento e capacitação de
perdendo o poder de dirigir as mencionadas investigações, e pessoas, desde os funcionários encarregados de atender ao
implementando a oralidade, produziu câmbio significativo. público e processar os expedientes até juízes, promotores de
Estas reformas são compatíveis com a transição para a justiça e defensores, habituados ao processo escrito, lento e
Democracia, mudam a face do processo penal e embora sigiloso, substituído por um mecanismo oral, ágil e público.
realizadas a partir do início dos anos 90, não foram ainda Isto custa dinheiro e em época de contenção do déficit
concluídas. público são espinhosas as negociações voltadas à autonomia
Tais mudanças, todavia, enfrentam alguns obstáculos: administrativa e financeira das citadas instituições (Poderes
a) a mentalidade inquisitória, ainda forte, só compreende Judiciários, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas); c)
alterações na estrutura do processo penal quando enxerga o a predominância de um estilo de ensino jurídico distanciado
aperfeiçoamento do sistema punitivo. Assim, há a tendência da realidade, carente de contato interdisciplinar e além de
a associar-se o surgimento de um novo Código de Processo tudo modulado para preparar o futuro profissional do direito
Penal, conforme o modelo acusatório, ao aumento do para atender a demandas ultrapassadas por novas formas de
número de casos julgados e réus condenados. Esta sociabilidade e conflito.
³FRQVHTrQFLD´ QmR p DXWRPiWLFD H DV WUDQVIRUPDo}HV QmR 2 FKDPDGR ³PXQGR GR GLUHLWR´ DLQGD DSDUHFH QRV
são produzidas tendo em vista este objetivo, mas tão-só cursos de formação universitária retratado à semelhança do
tornar operacionais as garantias declaradas nas várias estilo positivista que domina os cursos jurídicos desde o
Constituições e nas Convenções Internacionais de Direitos VpFXOR;9,,,$FKDYHGR³VLVWHPD DFXVDWyULR´QRHQWDQWRp
Humanos (com destaque para o Pacto de São José da Costa constituída por elementos de análise da realidade que
Rica). percebem o sistema penal como sistema de Poder. A
Nos Seminários e Congressos promovidos pelo CEJA natureza política do direito e do processo penal é responsável
são quase unânimes os relatórios regionais denunciando a pelo tipo de técnica empregada nos tribunais. Sem entender
RSRVLomR GRV PHLRV GH FRPXQLFDomR DR QRYR ³HVWDGR GH isso, tal seja, sem compreender que as técnicas em direito
FRLVDV´ SRU FRQWD GH XPD VXSRVWa tolerância dos sistemas são informadas por critérios ideológicos, corre-se o risco de
acusatórios com a criminalidade. se persistir acreditando em uma neutralidade axiológica dos
Não custa lembrar que exercício de direitos instrumentos do poder punitivo, esvaziando o conteúdo das
fundamentais não implica estímulo à criminalidade. Na área funções a serem exercidas pelos profissionais. Daí que não
técnica e de pesquisa isso é evidente. O discurso dos media, bastam os novos prédios, as novas carreiras jurídicas (ou
todavia, é engrossado por uma liVWD GH ³HVSHFLDOLVWDV´ TXH novas formas de trabalhar as conhecidas carreiras) e os
estimulam a resistência ao modelo democrático de processo novos procedimentos legais se as pessoas continuam agindo
SHQDO UHLYLQGLFDQGR XPD ³YROWD DR SDVVDGR DXWRULWiULR´ HP e pensando como se ainda vivessem sob auspício de métodos
que a tolerância à tortura, por exemplo, é praticamente inquisitivos.
admitida e defendida; b) a existência de recursos Essa digressão tem por finalidade registrar que os
orçamentários necessários para a implantação do novo sistemas processuais dos Estados do Ocidente, incluindo, por
sistema. Transitar do sistema inquisitório para o acusatório óbvio, os da América Latina, mudaram e/ou estão em pleno
significa mudar lugares, adaptá-los às funções que deverão processo de mudança.
Com isso, fica mais claro o caráter datado deste capítulo pensamento de Franco Cordero7, defendido no Brasil por
sobre história, que é válido pelo que a investigação percebeu Jacinto Nelson de Miranda Coutinho8. Nesta última
até 1998. O pesquisador preocupado em saber como hoje hipótese, a atribuição de responsabilidade invariavelmente
andam as coisas deverá ir além do que está no livro (que estava ligada à imposição de castigos (punição ± hoje sanção
salvo por raríssimas anotações, com interesse em razão de penal).
inovações que podem consignar, não terá atualizado o item É indispensável deixar claro que a diversidade dos
3.1). Para manter-se em dia com as transformações sugere- objetivos (ou funções) conduz a métodos necessariamente
se, entre outros, a leitura da Revista Sistemas Judiciales, GLIHUHQWHV8PDFRLVDpSUHWHQGHU RX³GHVHMDU´ TXHDYtWLPD
publicação semestral do CEJA (www.cejamericas.org). ou seus familiares e o agente conciliem ou cheguem a um
Feita a advertência, passemos ao olhar histórico acordo acerca do assunto que os colocou em rota de colisão,
definindo antes o modo e a direção deste olhar. independentemente da gravidade do ato (poderá ser um
homicídio consumado ou tentado); outra é assinalar
3.1. Histórico: método aplicável ao objeto. Um acerto conseqüências que afligirão aquele a que vier a ser atribuída
semântico. a responsabilidade pelo fato, com independência ou não da
vontade da vítima e/ou de seus familiares.
O primeiro registro sobre sistemas processuais coloca Ao longo da história da civilização ocidental os
em relevo uma indagação e as variadas respostas que a mecanismos empregados oscilaram entre estes dois objetivos
civilização ocidental apresentou para ela: afinal, para que ou estas duas funções que serão denominadas de resolução
serviram e servem os sistemas processuais? de conflito e acertamento de caso.
A exata percepção do que as diversas comunidades Do ponto de vista da dogmática do processo penal não é
pretenderam com seu modo de resolver as questões penais correto confundir as funções e designar sistemas com
ajudará a traçar o perímetro dos sistemas processuais e a indiferença quanto ao papel desempenhado pelos métodos
compreender a opção não só por modelos antagônicos de nas comunidades.
resolução de casos penais, como ocorre com a oposição Assim, quando Michel Foucault fala em práticas
sistema acusatório versus inquisitório, mas também judiciárias, isto é, ³DPDQHLUDSHODTXDOHQWUHRVKRPHQVVH
auxiliará a entender que há formas de composição de arbitram os danos e as responsabilidades´9 e distingue
conflitos (que existem há séculos) que não são marcadas pela modos de construção de subjetividades na relação instituída
atribuição de responsabilidade (pessoal ou coletiva). entre o homem e a verdade (não necessariamente com o
O exame do modo como os diversos povos lidaram com sentido de ciência ou conhecimento), o mencionado
as questões que na atualidade definimos como problemas pensador está se referindo a práticas que tanto consideravam
penais é também exame de métodos que estes povos o acertamento do caso como abriam mão disso, abriam mão
consideravam mais importantes: ora a resolução do conflito
gerado pela prática do fato lesivo a interesses individuais ou 7
coletivos (a composição através de acordo entre vítima e CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, Colômbia: Temis, 2000.
8 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A Lide e o Conteúdo do Processo
agente, por exemplo); ora a solução daquilo que Penal, Curitiba, Juruá, 1989 e O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, in:
GHQRPLQDUHPRV ³FDVR SHQDO´ VHJXLQGR QD HVWHLUD GR Crítica à Teoria Geral do Processo Penal, Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
9 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, Rio de Janeiro: Nau,

1999, p. 11.
de saber se alguém praticara determinado fato, desde que o Agora, para o que nos interessa convém frisar que as
conflito inaugurado pela notícia do fato viesse a ser resolvido formas compositivas, que podem ter sido o juramento
de forma satisfatória de acordo com a concepção do grupo (referido por Foucault em sua leitura da Ilíada) ou o
social. pagamento de algum bem (prática dos antigos povos
O que para a doutrina tradicional exalava cheiro de germânicos), não visavam determinar se o agente A ou B
irracionalidade hoje deve merecer outra consideração de havia praticado o fato. Cuidava-se, apenas, de encontrar
nossa parte. Quer se trate das ordálias, quer surja aos nossos mecanismos de pacificação da sociedade, perturbada com a
olhos como mitos fundantes de uma determinada maneira ³SHUGDGDSD]´7UDWDYD-se de composição de conflitos.
de viver e de ver as coisas, como na passagem da Ilíada, Este mecanismo persistiu entre nós. Formalmente, nos
capturada por Foucault10, tais práticas tinham um ponto em crimes de exclusiva ação privada12, ao se permitir que a
comum: eram dirigidas à resolução de um conflito. Somente vítima deixe de acionar o réu ou desista da ação proposta
GHVVD PDQHLUD p SRVVtYHO HQWHQGHU D ³UDFLRQDOLGDGH´ TXH caso encontre outra solução, que melhor lhe convenha.
definia a ação dos povos germânicos primitivos, quando Informalmente, mesmo nos crimes de ação pública
estes se deparavam com conflitos episódicos. incondicionada, pois quando há vítimas as investigações
Nilo Batista nos lembra da dificuldade de recomposição raramente são instauradas ou chegam a bom termo sem a
de uma época caracterizada pela tradição oral e pelos colaboração delas.
desafios naturais cuja capacidade de compreensão fugia Na atualidade, mais que em passado recente estas
àquelas comunidades11. Apesar disso, hoje estamos em formas estão prestigiadas. Com efeito, os diversos
condições de saber que aqueles povos, tanto quanto os ordenamentos jurídicos valorizam o acordo entre agentes e
DQWLJRV JUHJRV ³OXWDYDP´ LQFHVVDQWHPHQWH SDUD DOFDQoDU D vítimas e até entre suspeitos e Ministério Público para por
paz na tribo. Isso importava considerar a integração do fim ao processo (ou ao procedimento), Trata-se de uma outra
sujeito ao grupo (à tribo) como condição para a PDQHLUDGHEXVFDUD³SD]VRFLDO´VHPTXHVHIDoDDTXLQHVWH
sobrevivência material e psíquica, como ainda implicava no momento, qualquer juízo de valor.
fortalecimento do grupo a partir da convergência de fatores A tese que advogamos a partir da 3ª edição GR³6LVWHPD
internos (práticas dos indivíduos) e externos (condições $FXVDWyULR´ H GD HGLomR GR OLYUR ³(OHPHQWRV SDUD XPD
climáticas, vitalidade dos rebanhos etc.), que poderiam ser $QiOLVH&UtWLFDGD7UDQVDomR3HQDO´MiUHIHULGR FRQVLVWHHP
afetados de diversas maneiras. Era a quebra da paz a que se reconhecer a impossibilidade de, pura e simplesmente,
fará referência nos próximos subitens. adotar as categorias dos sistemas processuais (quaiquer
deles) aos mecanismos de composição de conflitos na esfera
10
FOUCAULT, op. cit., p. 31. A história reproduzida pelo mestre francês fala da
contestação entre Antíloco e Menelau durante jogos realizados na ocasião da 12 No Brasil, nos crimes de exclusiva ação privada o exercício da ação penal

morte de Pátroclo. Houve uma corrida de carros em um circuito de ida e volta e depende da atuação do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-
Menelau contesta o resultado, afirmando que Antíloco não fizera a volta no lo. Cabe ao ofendido estar em juízo, o que fará oferecendo petição inicial
SRQWR DSURSULDGR (PERUD KRXYHVVH XP ³ILVFDO´ QHVWH WUHFKR GR FLUFXLWR D denominada queixa-crime. Dessa forma o processo começará, sem interferência
testemunha não é chamada a contar o que viu. Há um desafio, em forma de inicial do Ministério Público. Este é um mecanismo secundário ou excepcional.
juramento, diante do qual Antíloco recua, resolvendo a controvérsia em favor de Via de regra, os crimes são de ação penal pública e o início do processo fica a
Menelau. cargo do Ministério Público, que se dirige ao juízo e oferece denúncia. Nos
11 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro ± I, Rio de crimes de ação pública incondicionada o Ministério Público poderá agir com
Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p.30. total independência da vontade da vítima.
penal baseados no consenso ou na conciliação ou em concreta de processo. Ainda não foi desenvolvido um
qualquer outra forma que não seja a apuração do fato. sistema de garantias particular, para as outras funções
Não se trata de dizer que procedimentos que dispensam do processo penal (o processo como composição), entre
a produção da prova são inquisitoriais. Nem sempre. Na outras coisas porque tampouco está totalmente claro
maioria das vezes poderão ser arbitrários. Outras vezes irão como funcionam os princípios processuais no marco de
satisfazer tanto o interesse dos envolvidos (agente e vítima) um processo cuja função principal seja conciliar e
como do grupo (mediante compensação). pacificar as partes, ou achar um ponto de equilíbrio
O que se afirma aqui é que em semelhantes casos não há entre LQWHUHVVHVFRQWUDSRVWRV´13
lugar para a busca da confirmação dos fatos, através de
provas, o debate contraditório, a presunção de inocência e a Diferentemente, no entanto, de Binder, pensamos que a
motivação das decisões. Portanto, o papel do juiz (árbitro) pesquisa em torno dessa (antiga) forma de resolução de
poderá ser de mero atestador da regularidade do conflitos, restaurada a partir das experiências do direito
procedimento ou de incentivador do acordo, conciliação ou anglo-saxão, deve começar demitindo-se da tarefa de
compensação. O espaço para a imparcialidade fica reduzido. encontrDU QRV SURFHGLPHQWRV GH LQYHVWLJDomR GRV ³FULPHV´
Como os elementos que determinam a existência dos conforme padrões acusatórios ou inquisitórios, pistas e
sistemas processuais estão vinculados aos sujeitos permanências.
processuais e ao modo como atuam, além da relação que se A nosso juízo, os duelos, jogos e ordálias não antecipam
estabelece entre o juiz e a busca de informações sobre o fato, formas dialéticas de disputas, pautadas pela adversariedade.
estas categorias não se prestam ao fim de definir o modelo Quando os antigos duelavam ou aceitavam compensações,
fundado no consenso. Para este modelo está posto o desafio ponderadas pela intensidade do sofrimento causado pelo
da sua compreensão, que significará desenhar com clareza o ³FULPH´ EXVFDYDP WmR-só controlar as forças da natureza e
estatuto do juiz e das partes. assegurar a sobrevivência do grupo, de outro modo
É indiscutível que a essência destes estatutos está na condenado a desintegrar-se. Hoje, quando a conciliação e a
Constituição e nos Tratados sobre direitos humanos. Será mediação são propostas em casos de violência doméstica é a
preciso extrair desses comandos normativos as bases de mesma lógica que preside o instituto, voltado à preservação
configuração de tais estatutos. do núcleo familiar.
Alberto Binder, em obra sobre a forma dos atos Michele Taruffo alerta para isso no processo civil14. Em
processuais e as conseqüências de seu descumprimento, ³7UDQVDomR3HQDO´PRVWUDPRVFRPRHVVDDSUR[LPDomRFRPR
chama atenção para isso: processo civil tornou-se possível no fim do século XX e que
conseqüências são produzidas no processo penal, ao nosso
³3RU LVVR HVVH VLVWHPD GH JDUDQWLDV WHP YtQFXORV juízo, por tal ordem de coisas. A crítica ao processo penal
muito profundos com a idéia de indagação (em termos consensual não exonerará os pesquisadores da tarefa de
atuais processo cognitivo) e o papel da verdade dentro tentar encontrar o sistema deste modelo. Agora, partindo-se
do processo penal. Todo o sistema de garantias, tal
como hoje o concebemos, foi pensado para que funcione 13
BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos
dentro do marco do processo de cognição e deve ser para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de
compreendido e desenvolvido dentro dessa forma Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44.
14
TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos, Madrid: Trotta, 2002, p. 37.
do paradigma do Garantismo e sublinhando que um poder Salienta Luiz Flávio Gomes15 que nessa época o Direito
que se expressa por meio de castigos deve ser controlado e era constituído de um emaranhado de regras não escritas e
deve deixar claro porque em determinados casos pune, a desconexas, oriundas da moral, dos costumes, hábitos,
investigação teórica orienta-se pela idéia de processo que crenças e magias, expressando-se a reação punitiva
pretende estabelecer se determinados fatos foram praticados diferentemente conforme o comportamento agressivo
ou não, fixando-se o modo como se chega a esta conclusão. derivasse de um integrante do grupo ou de alguém
Este é, pois, o específico olhar (viés) histórico que será pertencente a outro clã ou tribo.
desenvolvido. Cuidando-se de infração cometida por integrante do
Portanto, para os limites do presente trabalho duas grupo social, se não provocasse um dano irreparável ou se
idéias vigoram: a) na atualidade, por conta de uma série de não colocasse em perigo as condições existenciais da
fatores, e em consideração a princípios republicanos que sociedade, cumpria ao agente restabelecer o status quo ante.
reclamam a fundamentação do exercício do poder de punir, a Tal providência, veremos, aparecerá também nas tribos
manifestação desse poder deve ser precedida da apuração do germânicas, em uma fase posterior, voltada à composição do
caso, através de provas que o juiz imparcialmente apreciará; litígio, primeiramente entre os envolvidos ² autor do fato e
b) o olhar lançado ao passado estará dirigido por esse viés, vítima ou seus parentes ² e depois com a
tal seja, estará condicionado para enxergar nas práticas participação/mediação da sociedade através de um tribunal
precedentes as pistas sobre como os fatos eram apurados e formado pelos homens aptos a guerrear, porém sempre com
que papel, afinal, exerciam o juiz e as partes neste a intenção de conciliar os sujeitos em conflito.16
³SURFHVVR´1HVWHFRQWH[WRVHUmRLQYHVWLJDGRVKLVWRULFDPHQWH Todavia, se o membro da tribo ou clã realizasse uma
os sistemas processuais. ação hostil considerada capaz de afetar a paz do grupo social,
acreditada como dádiva assegurada pela vontade dos deuses,
3.1.1. SITUAÇÃO NA ANTIGÜIDADE cabia punir o agente vingando-se, pois de outro modo,
imaginava-se, a sociedade jamais voltaria a gozar de
Iniciamos pela afirmação de que os primeiros grupos tranqüilidade.17
humanos, as primeiras tribos, desconheciam métodos mais
sistematizados de solução dos conflitos de interesses penais,
15 *RPHV/XL])OiYLR³5HVSRQVDELOLGDGH3HQDO2EMHWLYDH&XOSDELOLGDGHQRV
isto porque, como sociedades simples, rudes e incipientes, &ULPHV&RQWUDD2UGHP7ULEXWiULD´ in Direito Penal Empresarial (coord.
tendiam à concretização do seu direito, conforme ressaltou Valdir de Oliveira Rocha), São Paulo: Dialética, 1995, pp. 77-80.
Luhmann, e a compreensão de uma forte relação entre o 16 Welzel, Hans. Derecho Penal Aleman, 4ª ed. Santiago: Editorial Jurídica
de Chile, 1993, pp. 10-11.
Direito, a Moral e, principalmente, a Religião. 17 Junito de Souza Brandão destaca, examinando a mitologia grega, que a
Trata-se, sem dúvida, do período remoto daquilo que noção de falta, vista objetivamente (não se julgavam intenções mas fatos),
hoje conhecemos como direito processual, cuja concreção da implicava, conforme a origem do infrator ² se membro de um mesmo
génos ou não ² na religiosa e obrigatória vingança, distribuindo-se no
atuação dos atores sociais, sempre que comportamentos grupo social o dever de vingar. Salienta o autor que até a reforma jurídica
censuráveis eram praticados, operava a confusão entre ele de Drácon ou Sólon, famílias inteiras se exterminavam na Grécia, fato
próprio, direito processual, enquanto rede rudimentar de semelhante ao verificado entre os povos hindu e judeu. No Rig Veda, de
procedimentos, e o direito substantivo penal. 2000 a 1500 AC, por exemplo, alerta Junito, consta a súplica: Afasta de
nós a falta paterna e apaga também aquela que nós próprios cometemos.
Enquanto isso, no Antigo Testamento (Êxodo, 20,5) assinala-se: Eu sou o
Senhor, Teu Deus, um Deus zeloso, que vingo a iniqüidade dos pais nos
No tocante ao ato de hostilidade praticado pelo procedimento inquisitório, uma vez que a iniciativa oficial
integrante de outro clã, a agressão era reputada como para a persecução penal correspondia a uma forma de
violência à própria tribo, havendo de ser indistintamente governo absoluta, de domínio e inspiração sacerdotal.20 As
reprimida por uma espécie de vingança coletiva, que de principais características dessa época são:
ordinário implantava um estado de guerra.18 a) a acusação como dever cívico das testemunhas do
Averbe-se que o aperfeiçoamento da organização social, fato criminoso;
acrescido da consciência da necessidade de encontrar uma b) polícia repressiva e auxiliar da instrução, a cargo das
plataforma sobre a qual pudessem ser erguidos os testemunhas;
procedimentos de resolução de conflitos, de forma a c) instrução pública e escrita;
preservar tanto quanto possível a sociedade, foram as d) julgamento secreto e decisão simbólica.21
principais causas da sistematização contínua dos métodos de
implementação do Direito Penal. Naturalmente que a Na Palestina, havia três espécies de tribunais,
princípio o que hoje chamamos de Direito Penal estava consistindo em três graus de jurisdição: os tribunais dos
indistintamente emaranhado ao que definimos como sendo Três, dos Vinte e Três e o Sinédrio.
Direito Civil, pois não se diferenciavam os ilícitos criminal e Os tribunais dos Três (Deuteronômio, XVI 18) se
civil, ambos fundados no primitivo conceito de dano.19 compunham de três juízes (schophetim) e eram competentes
Entre as primeiras sociedades politicamente mais para julgamento de alguns delitos e de todas as causas de
organizadas, temos o Egito, onde, na Antigüidade, o interesse pecuniário. As suas decisões eram apeláveis para o
exercício do Poder Judiciário estava concentrado nas mãos tribunal dos Vinte e Três. Este, por sua vez, era instituído em
dos sacerdotes, sendo que Mênfis, Tebas e Heliópolis eram todas as vilas cuja população superasse cento e vinte famílias
as cidades que forneciam os juízes para o tribunal supremo, e, além de julgar as apelações das decisões dos tribunais dos
encarregado de julgar os crimes graves. Três, cumpria-lhe conhecer originariamente os processos
Nas províncias, por seu turno, havia um juiz, espécie de criminais puníveis com a pena de morte.
prefeito, ao qual era delegado o processo e julgamento dos Finalmente, o mais alto grau da magistratura era a
crimes leves, dispondo também o mencionado juiz de assembléia, conhecida como Sinédrio ou Tribunal dos
delegados, incumbidos da repressão penal, até mesmo com o Setenta, porque composta por setenta juízes. Era uma
emprego de violência, se se tratasse de infrações de menores instituição política e judiciária, competindo-lhe a
conseqüências. Ada Grinover assinala que, se quisermos interpretação das leis e o julgamento dos senadores,
classificar o modelo egípcio consoante estruturas conhecidas, profetas, chefes militares, além das cidades e tribos rebeldes.
a verdade é que nele se pode encontrar o embrião do Muito embora habitualmente a crença na origem
sagrada ou soberana das decisões orientasse os povos antigos
filhos, nos netos e bisnetos daqueles que me odeiam. Nessa ordem de no sentido da sua irrecorribilidade, cumpre destacar que
coisas é correto afirmar, portanto, que a idéia do direito do génos está entre hebreus o recurso era considerado direito sagrado,
indissoluvelmente ligada a crença na maldição familiar, a saber:
qualquer hamartía (falta) cometida por um membro do génos recai sobre assim como prevalecia um princípio fundamental, pelo qual
o génos inteiro, isto é, sobre todos os parenteV H VHXV GHVFHQGHQWHV ³HP
VDJUDGR´ RX ³HP SURIDQR´ (Mitologia Grega, Petrópolis: Vozes, 1991, p.
77). 20 Grinover, Ada P. Liberdades Públicas, p. 28.
18 Gomes, Luiz Flávio. Responsabilidade Penal, p. 78. 21 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 16-
19 Fontecilla Riquelme, Rafael. Ob. cit., p. 28. 18.
uma só testemunha jamais valerá contra alguém; qualquer Assembléia do povo, o Areópago, os Efetas e os Heliastas.
decisão deverá apoiar-se sobre o dito de duas ou três O Tribunal dos Heliastas, ou Hélion, assim conhecido
testemunhas,22 cabendo a dedução da acusação, em processo porque se reunia em praça pública e sob o Sol, era composto
contraditório e público, ao ofendido. Outra interessante de cidadãos, cujas decisões eram consideradas proferidas
previsão do direito hebreu, em uma fase mais avançada, em pelo povo, e sobressaiu-se entre os demais principalmente
julgamentos perante o alto tribunal, consistiu em reproduzir por força de sua ampla competência (a rigor, de início, não
a votação eventualmente condenatória, no dia seguinte ao da julgava os homicídios involuntários ou não premeditados, da
primeira, visando confirmar o veredicto desfavorável ao competência dos Efetas, e todos os crimes sancionados com
acusado mediante serena reflexão dos julgadores. Estavam, pena de morte e os homicídios premeditados e incêndios, da
porém, impedidos de alterar sua decisão aqueles que no dia competência do Areópago), pela publicidade da sua atuação
anterior houvessem votado pela absolvição, de sorte que se e porque composto por cidadãos honrados, maiores de trinta
tratava, basicamente, de um duplo grau de jurisdição a favor anos, eleitos anualmente por sorteio (de quinhentos a seis
do réu. Cabe salientar que a decisão majoritariamente mil).25
favorável ao acusado não demandava este tipo de Como salientou João Mendes Junior,26 a legislação
confirmação, proclamando-se de imediato a absolvição. ateniense reconhecia duas classes de delitos,
A legislação mosaica fulcrou-se, portanto, nos seguintes impropriamente designados como púbicos e privados, cuja
princípios:23 nota distintiva residia no interesse público (ordem,
1. não havia prisão preventiva; fora do caso de flagrante tranqüilidade e paz públicas), ou privado na repressão da
delito, o acusado hebreu não era preso senão depois infração, permitindo-se, no último caso, a desistência e
de conduzido ao tribunal para defender-se e ser transação durante o processo.
julgado; Averbe-se, porém, que o prestígio do modelo ateniense
2. não era o acusado submetido a interrogatórios de persecução penal derivou exatamente do sistema de
ocultos: segundo os rabinos, ninguém podia ser acusação popular, em relação aos crimes públicos, faculdade
condenado somente pela confissão; deferida a qualquer cidadão, de um modo geral, pela
3. ninguém podia ser preso e muito menos condenado Assembléia do Povo, para, em nome do próprio povo,
pelo dito de uma só testemunha nem por sustentar a acusação.27 Assim, o ofendido ou qualquer
conjecturas; cidadão apresentava e sustentava a acusação perante o
4. a instrução e os debates eram públicos e os Arconte e este, conforme se cuidasse de delito público,
julgamentos conferidos e acordados em segredo; convocava o Tribunal, cabendo ao acusado defender-se por si
5. o recurso era um direito individual e sagrado.24 mesmo (em algumas ocasiões era auxiliado por certas
pessoas). Cada parte apresentava as suas provas e formulava
Da Grécia antiga, a ilustração clássica pode ser suas alegações, não incumbindo ao tribunal a pesquisa ou
observada pela forma de expressão da justiça ateniense. Com aquisição de elementos de convicção. Ao final, a sentença era
efeito, havia em Atenas quatro jurisdições criminais: a

25 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 30.


22 Almeida Junior, João Mendes de. Ob. cit., p. 19. 26 Almeida Junior, João Mendes de. Ob. cit., p. 23.
23 Idem, pp. 19-21. 27 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 31. Almeida
24 Almeida Junior, João Mendes de. Ob. cit., pp. 19-21. Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 23.
ditada na presença do povo.28 realizado em nome e pela intervenção do Estado romano, e
Muito embora variáveis os procedimentos, conforme o porque deixava ao magistrado, como representante do rei,
tribunal competente, algumas características podem ser amplos poderes de iniciativa, instrução e deliberação, sem
anotadas:29 maiores formalidades que se saiba e mesmo sem partes,
‡ WULEXQDO SRSXODU FRQIRUPH R SULQFtSLR GD VREHUDQLD conforme as concebemos atualmente.32 Manzini salienta que
do povo; a faculdade de apelação do acusado ao povo (provocatio),33
‡ DFXVDomR SRSXODU SRU XPD IDFXOGDGH GHIHULGD D com efeito suspensivo, contra a sentença proferida pelo
qualquer cidadão para apresentar demanda contra magistrado, determinava um ulterior procedimento, de
quem se supunha autor ou partícipe de um delito segundo grau, designado anquisitio.34 Este período foi
público; denominado comicial, pois proporcionava o julgamento da
‡LJXDOGDGHHQWUHDFXVDGor e acusado, que, de ordinário, provocatio ad popolum em comícios, Assembléias do Povo,
permanecia em liberdade durante o julgamento, revelando-se, entretanto, já na República, insuficiente para a
liberdade muitas vezes condicionada à caução;
‡SXEOLFLGDGHHRUDOLGDGHGRMXt]RTXHVHUHVXPLDDXP
Privado, acentuar-se-á mais adiante, regulava as infrações (fatos injustos)
debate contraditório entre acusador e acusado, frente cometidas sem violência e não previstas especificamente pela lei. Salienta,
ao tribunal e na presença do povo; todavia, o mestre peninsular que, por efeito da tendência do Direito Penal
‡DGPLVVmRGDWRUWXUDHGRVMXt]RVGH'HXVFRPRPHLRV romano de tornar pública a ação penal em todos os casos, resultou no
progressivo abandono do processo penal privado, restando a persecução
de realização probatória; deste tipo reservada à injúria e outros poucos crimes (Tratado de Derecho
‡ YDORUDomR GD SURYD VHJXQGR D tQWLPD FRQYLFomR GH Procesal Penal, tomo I, pp. 3-4).
cada juiz; 32 É valioso ressaltar que o Direito Penal que se procurava efetivar pela via
procedimental, em Roma, a partir dos momentos finais da República,
‡ UHVWULomR GR GLUHLWR SRSXODU GH DFXVDomR HP FHUWRV conheceu maior consistência e dividiu-se ordinariamente em três ramos:
crimes que mais lesavam o interesse particular do Direito Penal Privado, que se reportava à lei das XII Tábuas e às leis mais
indivíduo do que o da sociedade; antigas; Direito Penal Público legítimo, fundado nas leis especiais,
principalmente Corneliae e Iuliae, regulador das quaestiones,
‡GHFLVmRMXGLFLDOLUUHFRUUtYHO principalmente durante a crise da República e na origem do Principado,
pelo qual eram infligidas penas públicas; e Direito Penal Público
Em Roma, o mais antigo dos sistemas procedimentais extraordinário, baseado no ordenamento geral augustinianeo, assim como,
depois, em senatusconsultos, constituições imperiais e, até, na praxe
penais conhecidos dessa civilização surgiu com a judicial (Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano,
denominação de cognitio, baseado na inquisitio,30 tratando- pp. 54-55).
se de procedimento de natureza pública,31 porquanto 33 Piero Fiorelli atribui à Lei Valéria de provocationen, editada
provavelmente em 300 AC, a instituição da provocatio ad popolum
³$FFXVD H 6LVWHPD $FFXVDWRULR 'LULWWR 5RPDQR H ,QWHUPHGLR´, in
28 Sanchez, Guillermo Colin. Derecho Mexicano de Procedimientos Penales, Enciclopedia del Diritto, I, Milano: Giuffrè, 1958, pp. 330-331).
México: Porrúa, 1979, p. 17. 34 Tucci, por sua vez, assinalou diferentemente que a anquisitio coexistiu
29 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 33. Almeida consuetudinariamente, nos primeiros tempos, e relativamente aos crimes
Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 26. de lesa-pátria e lesa-majestade, com a cognitio, carente, todavia, da
30 Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano, São participação da assembléia do populus (ob. cit., p. 32). Havia, também,
Paulo: Bushatsky, 1976, p. 31. Manzini, Vincenzo. Istituzioni di Diritto alguns magistrados, designados quaestores, aos quais cumpria conhecer de
Processuale Penale, p. 8. determinados crimes e especificar as respectivas sanções. Com o passar do
31 Manzini sublinha que, em relação ao processo penal privado, o órgão do tempo, o poder de império próprio da inquisitio foi sendo limitado às
Estado (juiz magistrado ou popular) se punha como árbitro entre as partes decisões absolutórias, na medida em que das condenatórias se recorria,
e julgava atendendo ao exposto por elas. De um modo geral, o Direito Penal transformando-se a inquisitio em mero procedimento instrutório.
necessidade social de repressão da criminalidade.35 modelo de processo público e oral, cujos debates formavam o
Em seguida à cognitio surgiu a accusatio, também eixo central, dos quais derivava o fundamento da decisão.
designada judicium publicum ou quaestio,36 voltada à Neste paradigma processual as partes tinham, via de regra, a
apuração de algumas infrações penais atinentes à ordem disponibilidade do conteúdo do processo,40 competindo ao
pública, como, por exemplo, aquelas cometidas pelos Estado tão-só o conhecimento e julgamento da ação
magistrados no exercício de suas funções (quaestiones37). O criminosa, em se tratando de delicta publica. Julio Maier
procedimento, que carecia da figura do acusador particular, destaca como mérito histórico desse sistema o fato de ter
ora na condição de ofendido, ora representando o interesse substituído o sentido subjetivo, mítico da prova, pelo
público da sociedade, surgia como manifestação da conhecimento objetivo, histórico, encarando-se a prova
adaptação do antigo processo penal às novas exigências como forma de reconstrução histórica de um acontecimento
sociais, sendo em muitos aspectos semelhante à forma grega. pelos vestígios que havia deixado no mundo.41
A accusatio SRGH VHU FRQFHLWXDGD FRPR D ³prerrogativa É bem verdade, como frisou Tucci,42 que, se com as
concedida a qualquer cidadão e, especialmente ao ofendido, quaestiones, o Direito Penal Romano começou a ostentar
de, munido de provas, deduzir, perante o povo, a consistência e certa autonomia, acrescentaríamos também aí
imputação, à margem, ou não, da inquisitio, e assim, mover o Direito Processual Penal, a ponto de assinalar-se a
a ação penDO´,38 e tinha, pois, por pressuposto, a exigência existência de um sistema homogêneo de normas processuais
de que ninguém podia ser levado a juízo sem uma acusação: e meramente procedimentais, derivadas das leis de César
nemo in iudicium tradetur sine accusatione. referentes aos judicia publica e judicia privata, com o passar
A forma acusatória adotada na época, prescindindo de do tempo não se mostrou mais suficiente para as exigências
uma investigação anterior,39 era dominada integralmente de repressão da delinqüência. Isso ocorre ao mesmo tempo
pelo contraditório, cumprindo às partes pesquisarem e em que se desloca a fonte da soberania da cidadania para o
produzirem as provas das suas alegações. Tratava-se de um Imperador,43 ocasionando graves inconvenientes e
predispondo acusadores e acusados a litigarem entre si
35 Manzini, Vincenzo. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, p. 8. Tucci
permanentemente e intentarem a vingança,44 valendo-se até
(Lineamentos do Processo Penal Romano, ob. cit., p. 142) agrega à mesmo da falsa acusação, além de, não raramente, assegurar
observação de Manzini a de Kunkel, que se referiu ao fato de, a impunidade do criminoso, em face da ausência de quem se
subseqüentemente à segunda guerra púnica, haver perdido a Assembléia
do Povo o prestígio que antes gozava, deixando de ser integrada por
dispusesse a acusá-lo.
³prudentes trabalhadores´ Assim, sob o Império, que veio em seguida à República,
36 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 45.
37 Quaestiones nada mais eram, segundo Hélio Tornaghi, que comissões dos
comícios, tribunais semelhantes ao júri, presididos por um Pretor ou por 40 Manzini salienta que em algumas situações, uma vez exercida a ação penal,
um quaestor e composto de juízes que prestavam juramento (Instituições o magistrado ficava investido dela (de poderes em relação a ela), ao ponto
de Processo Penal, vol. II, São Paulo: Saraiva, 1977, p. 68). Designavam, de não poder despojar-se sem um motivo jurídico. Assim, mesmo que o
também, as ações de responsabilização dos juízes, numa espécie de tomada acusador abandonasse o processo, descreve Manzini, nem por isso caía a
de contas do desempenho do mandato. acusação, devendo seguir-se as investigações públicas (Tratado de Derecho
38 Joaquim Canuto Mendes de Almeida apud Rogério Lauria Tucci, Procesal Penal, tomo I, pp. 6-7).
Persecução Penal, Prisão e Liberdade, São Paulo: Saraiva, 1980, p. 63. 41 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 46.
39 Tornaghi salienta que nessa situação a inquisitio era posterior à accusatio, 42 Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano, p. 159.
uma vez que somente depois de deduzida a acusação realizava o acusador, 43 Fato percucientemente notado por Julio Maier. Derecho Procesal Penal
na presença do acusado, se este quisesse, a investigação do fato Argentino, p. 47.
(Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 4). 44 Manzini, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, p. 7.
em tese vigorava um modelo procedimental que carecia do amplos poderes ao magistrado, não somente para investigar
acusador privado, mas, na prática, alguns agentes públicos as infrações penais, recolhendo provas, como, ainda, para
(curiosi, nunciatores etc) passaram a desenvolver verdadeira julgar a causa,47 podendo valer-se mesmo da tortura.48
atividade de polícia judiciária, transmitindo aos juízes os De se destacar que, ao contrário do que viria a ocorrer
resultados das suas pesquisas, a princípio sempre que posteriormente, na Idade Média, sob a égide do
alguém deixava de apresentar a accusatio. inquisitorialismo, se em Roma ainda predominava a forma
Por sua vez, os magistrados foram ampliando cada vez pública e oral, mesmo no procedimento extra ordinem,
mais a sua esfera de atribuições, alcançando aquelas antes como momento culminante dessa estrutura processual, em
reservadas aos particulares, até chegar-se ao extremo, como realidade a instrução escrita e secreta, derivada do poderoso
salientou Manzini, de se reunirem em um mesmo órgão do aparato estatal, aos poucos foi sucedendo a anterior, até
Estado as funções que atualmente competem ao Ministério constituir-se em sua parte ou forma principal, surgindo, pois,
Público e ao juiz,45 com a máxima disposição dos como semente da Inquisição que mais tarde dominaria a
magistrados de descobrirem a verdade, não deixar ao Europa Continental.49
desamparo os fracos e evitar o non liquet, tal seja, o Sobre essa passagem histórica vale registrar a seguinte
pronunciamento da não-decisão, a impossibilidade de um observação de Julio Maier:50
veredicto decisivamente solucionador do concreto conflito de
interesses. Hélio Tornaghi advertiu para o fato de que o ³/D GHQRPLQDFLyQ PLVPD FRJQLWLR H[WUD
sistema acusatório na Antigüidade, principalmente tal como ordinem, revela precisamente las dos
se desenvolveu na fase republicana de Roma, ter oferecido características fundamentales de este
graves inconvenientes, anotando, com especial destaque, os procedimiento: el renacimiento de la cognitio
seguintes:46 como método de enjuiciamiento penal que
‡DLPSXQLGDGHGRFULPLQRVR presuponia la omnipotencia procesal al reunir, en
‡a facilitação da acusação falsa; una única mano, por lo menos, dos de las
‡RGHVDPSDURGRVIUDFRV funciones principales del procedimiento, la
‡DGHWXUSDomRGDYHUGDGH requirente y la decisoria; y su regulación como
‡DLPSRVVLELOLGDGHGHMXOJDPHQWRHPPXLWRVFDVRV sistema de excepción destinado a suplir la
‡DLQH[HTLELOLGDGHGDVHQWHQoDHPRXWURV inactividad y complejidad del antiguo régimem
acusatorio, ya corrompido, y a otorgar mayor
O modelo processual, então baseado na iniciativa de poder a las crecientes necesidades de la nueva
qualquer cidadão, conviveu com o procedimento penal de RUJDQL]DFLyQSROtWLFD´
ofício, reinstituído, alicerçado na denominada cognitio extra
ordinem, até que, ao tempo de Diocleciano, a última
estrutura passou a prevalecer de jure, alastrando-se das 3.1.2. DIREITO MEDIEVAL E DA ÉPOCA MODERNA
províncias na direção de Roma
A nova cognitio, diferentemente da primeira, conferia
47 Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano, p. 169.
48 Manzini, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, p. 8.
45 Idem. 49 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 51.
46 Tornaghi, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 5. 50 Idem.
causas cíveis.54
A invasão bárbara marcou nova era de transição, quer Ocorre, todavia, que em uma fase posterior toda
porque introduziu a estrutura modelar adotada pela maioria infração passou a ser considerada como rompimento da paz
dos povos germânicos, quer pela força do Direito de algumas (Friedensbruch), autorizando, conseqüentemente, a guerra e
cidades italianas, com suas legislações municipais, e, ainda, a vingança familiar (Blutrache e Fehde ou Faida), de tal
em virtude do extraordinário desenvolvimento do Direito sorte que perdia o ofensor e sua família a proteção
Canônico, amadurecendo naturalmente um novo comunitária.
equilíbrio,51 com recíprocas influências de modo a afetar Tal sistema progrediu até que fosse permitido o
tanto dominadores como dominados. pagamento do preço da paz à comunidade (Friedensgeld),
Evidentemente, enlaçados o Direito Processual Romano por meio de convênios reparatórios, e uma indenização ao
extraordinário e o Direito Germânico, em virtude da invasão ofendido ou sua família (Busse), o que era possível em se
bárbara, cumpre identificar as principais características do tratando de infrações menores.55 Nilo Batista ressalta a
segundo, possibilitando, destarte, a compreensão dos existência da capitular de Carlos Magno, de 802, que
processos de convivência lado a lado, absorção e adaptação recomendava às famílias evitar acrescentar uma inimizade
recíprocas dos mencionados ordenamentos. ao mal já feito, destacando, porém, que durante extenso
Com efeito, particulariza-se o Direito Processual SHUtRGR ³a anuência a uma composição ultrajava o
Germânico da Antigüidade, de um modo geral sentimento coletivo da honra familiar e só mais tarde o
consuetudinário,52 salvo em alguns lugares, como, por ressarcimento assumiria um papel central na superação de
exemplo, na França, por conta da disciplina subjetiva das tais litígios´56
provas e da iniciativa privativa da vítima ou de seus A partir de um determinado momento o entendimento
familiares, em busca da reparação do dano causado pelo privado constitui-se no método predominante de solução dos
ofensor, ficando nas mãos dela, vítima, a persecução penal conflitos de interesses de natureza penal, o que não impedia
(Sippe).53 É de se salientar que o antigo direito germânico o ofendido de se socorrer dos Conselhos (Placita),
não distinguia entre ilícitos civil e penal, operando-se o que assembléias populares que ministravam justiça, começando
Fiorelli designou como assimilação das causas criminais aí o verdadeiro processo judicial de corte acusatório.57
pelos crimes que ofendiam diretamente os particulares às Tal processo peculiarizou-se pelo direito privado de
iniciativa da persecução (nemo iudex sine actore),
começando diante do fracasso da composição entre as partes
sobre a emenda ou indenização ou por reclamação unilateral
51 Ver, sobretudo, Piero Fiorelli (ob. cit., p. 332), que remarcou o fato das do ofendido ou sua família ao tribunal (Hundertschaft),
municipalidades italianas terem estatuído, a princípio, nessa época, um
processo do tipo acusatório. Porém, a consolidação dos organismos composto por pessoas capazes para guerra (Thing). As
comunitários ensejou a atribuição aos magistrados de funções mais
amplas, aproximando-se até transformar-se normalmente em um modelo
inquisitório. 54 Fiorelli, Piero, ob. cit, p. 332.
52 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal - Parte General, 4ª 55 Excluiam-se, por exemplo, a traição na guerra, deserção, covardia diante do
edição, Granada: Comares, 1993, p. 80. inimigo e delitos contra o culto (Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de
53 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana: Su Comentario Derecho Penal, p. 80).
56
y Comparación com los Sistemas de Enjuiciamiento Argentinos, Buenos BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas..., p. 34.
Aires: Depalma, 1978, p. 24. Sippe, segundo Nilo Batista, é a designação do 57 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 24, e
clã a que a pessoa pertencia (BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas..., p. 32). Tornaghi, Hélio, Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 66.
sessões eram públicas, orais e contraditórias, presididas por autônoma frente aos reinos, reduziu-se sobremaneira o papel
um juiz, o qual dirigia o debate e propunha a sentença, mas da justiça, conforme a conheceram os antigos,
não decidia.58 desmembrando-se o aparato judicial germânico, de modo
Como ficou registrado, os povos germânicos não só que, tempos depois, a jurisdição eclesiástica veio a
influenciaram o direito do restante do continente europeu, sobressair, acomodada em um poder centralizado e
inclusive e principalmente a área antes dominada pelo eficientemente distribuído nos mais diversos territórios, ao
Império Romano,59 chegando a Portugal e Espanha,60 como contrário do poder real.
sofreram a influência da cultura e do Direito romanos, de Com efeito, a Igreja passa a enxergar no crime não só
sorte que, do seu sistema predominantemente acusatório, uma questão de interesse privado mas, principalmente, um
passaram, lenta mas vigorosamente, à recepção e problema de salvação da alma, requisitando-se o magistério
assimilação do Direito Romano-Canônico e à introdução da punitivo como forma de expiação das culpas. O
Inquisição. arrependimento não é mais suficiente. É necessária a
Nessa via começou-se por admitir a indicação do juiz penitência, motivo por que cumpre à Igreja investigar um
presidente do tribunal, que ainda era popular, pelo rei, com a significativo número de infrações, ratificando-se assim,
participação de outros funcionários por ele também politicamente, a sua autoridade.
indicados, cuja função consistia em propor a sentença, Michel Foucault irá anotar aí o dado marcante que está
chegando, em alguns casos extremos, à persecução oficial como na base ou essência dos procedimentos inquisitoriais:
(Rügeverfahren).61 Claro está que o caminhar nessa direção D³EXVFDGDYHUGDGH´TXHVXEVWLWXLUiRVGHVDILRVRXSrovas a
pressupôs o nascimento e fortalecimento de um poder que se submetiam as pessoas, nos reinos bárbaros, para o
estatal, personificado pelo rei e fundado no surgimento de TXHQRVLQWHUHVVDFRQILJXURXRLQtFLRGD³KLVWyULDSROtWLFDGR
fontes jurídicas escritas, no denominado período Franco FRQKHFLPHQWR´ RX GH DFRUGR FRP QRVVR SRQWR GH YLVWD R
(482 a 843 da nossa era).62 emprego político do conhecimento que é fabricado e servirá
Até o momento anteriormente indicado, contudo, na para definir relações de luta e poder.63
primeira parte da Idade Média, em decorrência da formação É evidente, ainda, que a indisciplina de parte do clero e
de pequenas comunidades ² feudos ² comandadas a corrupção de outra parte confrontam o poder central do
autoritariamente e, sem dúvida, de fato dispostas de forma Papa, criando, por isso, as condições básicas necessárias para
a implementação, por Inocêncio III, em 1215, no IV Concílio
58 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 26. de Latrão, do chamado procedimento Inquisitório,64
59 Tornaghi, Hélio, Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 66. complementado, em suas linhas gerais, por Bonifácio VIII,65
60 João Mendes de Almeida Junior assinala que em Portugal, sob dominação Clemente V e João XXII.66
do Império Romano e, portanto, regido pelas leis de processo penal
romanas, invadiram no século V os povos germânicos designados alanos, Franco Cordero salienta que a revolução inquisitorial
vândalos e suevos, depois derrotados pelos godos, que dominaram toda a
península, sob o nome de Visigodos (O Processo Criminal Brasileiro, p. 63
51), de sorte que paulatinamente o procedimento da cognitio extra FOUCAULT, Michel. A Verdade e as..., p. 23.
ordinem, predominante na fase final do Império Romano, cedeu lugar ao 64 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 28, e Fiorelli,
processo acusatório germânico, muito embora os visigodos, mais do que os Piero, ob. cit., p. 333.
outros bárbaros, se tenham deixado influenciar pela autoridade dos bispos 65 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal
da Igreja Romana. Penal, p. 218.
61 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 27. 66 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 80-
62 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 81. 81.
satisfará exigências comuns aos dois mundos: o eclesiástico, eficaz instrumento de gestão à disposição da nova estrutura
assombrado por heresias, e o civil, que via na expansão GH SRGHU TXH VH IRUPDUD QD (XURSD &RQWLQHQWDO ³O
econômica a origem da criminalidade exasperada em face do inquérito na Europa Medieval é sobretudo um processo de
paradigma anterior. Fixa o autor italiano que os interesses governo, uma técnica de administração, uma modalidade
que têm de ser protegidos exigem o automatismo repressivo de gestão; em outras palavras, o inquérito é uma
incompatível com as acusações privadas, enquanto a cultura determinada maneira do poder se exercer´69
romana, sofisticada para os padrões bárbaros, estava a exigir Por fim, o equilíbrio entre os dois modelos se rompe e o
GHFLV}HV³WpFQLFDV´67 sistema inquisitório vive seu apogeu no continente europeu,
Muito embora os séculos XIII e XIV marquem o início até ser descartado, ao menos na Europa Ocidental
da predominância do modelo inquisitorial, transplantado (Continental), no século XIX.
para a justiça laica com o fortalecimento das monarquias e, Pode-se afirmar que a herança da cultura hegemônica e
conseqüentemente, com a formação do conhecido Estado- estilizada do Direito Romano, cultivada nas prestigiosas
Nação e a centralização do poder secular, ainda nas cidades universidades italianas pelos glosadores (1100 a 1250) e pós-
italianas conviviam formas inquisitórias com formas glosadores (de 1250 a 1450), superou o Direito Germânico,
acusatórias. Isso é vislumbrado em registros de Bolonha e de tradição popular. A Igreja, indiscutivelmente, contribuiu
Florença, sendo a inquisição, subsidiária do modelo para o sucesso da difusão do modelo de inspiração
acusatório, implementada apenas quando uma acusação não romanística, cujo último paradigma havia sido, como visto, a
era exercitada.68 cognitio extra ordinem, difundindo universalmente o
A remanescente estrutura acusatória, no entanto, modelo inquisitorial à base de uma universalidade cristã,
começa a render-se a aspectos quase sempre identificados no tendente a se impor a todos os povos.
procedimento inquisitório, tais como a forma escrita da Maier giza que o Direito Romano, ao contrário do
dedução da acusação e o segredo que envolvia a produção da Império dentro do qual nasceu, não sucumbiu à invasão
prova testemunhal, chegando, pois, ao emprego da tortura, a bárbara e não tardou a impor suas idéias, mais desenvolvidas
culminância das presunções e da confissão. e elaboradas.70
Será Foucault novamente a nos lembrar que a técnica de Embora hoje a Inquisição seja vista com todas as
³reunir pessoas que podem, sob juramento, garantir que reservas, cumpre remarcar que na sua época o discurso
viram, que sabem, que estão a par´ FRPR PHFDQLVPR GH dominante a apresentava como produto da racionalidade,
prorrogação da atualidade do delito, sugere a maior confrontada com a suposta irracionalidade das ordálias ou
racionalidade do procedimento da inquisição em oposição à juízos de Deus, que substituiu, enquanto sistema de
aparente brutalidade e ao caráter arbitrário dos duelos, jogos perseguição da verdade, pela busca da reconstituição
e desafios (provas) dos povos bárbaros. O mestre francês, no histórica, procurando, tanto quanto possível, reduzir os
entanto, lança luz sobre o passado. Destaca que os objetivos privilégios que frutificavam na justiça feudal, fundada quase
GDV³SURYDV´HMXt]RVGH'HXVHUDXPVXSHUDomRGRFRQIOLWR exclusivamente na força e no poder de opressão dos senhores
instaurado pela notícia ou prática do delito; enquanto o fim
perseguido pelo sistema da inquisição era outro: colocar um

67 69
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 16. FOUCAULT, Michel. A Verdade e as..., p. 72 e 73.
68 Fiorelli, Piero. Ob. cit., p. 333. 70 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 54.
feudais sobre os demais,71 pessoas que a rigor estavam escrita, em contraposição à oralidade, o segredo,
sujeitas a medidas punitivas discricionárias, impostas pelos confrontando a publicidade e a iniciativa do juiz para o
mencionados senhores feudais. procedimento.
Vale deixar consignado que a Inquisição começa Naturalmente, altera-se o eixo do procedimento e o
propriamente quando se admite a denúncia72, inclusive acusado que no sistema acusatório era sujeito de direitos,
anônima, como forma de principiar uma investigação, deveres, ônus e faculdades, passa a objeto da investigação.
prescindindo-se dela, mais tarde, ao se permitir o início do 'D EXVFD GD ³YHUGDGH UHDO UHQDVFHP RV WRUPHQWRV
processo de ofício, bastando para tanto o rumor público, SHODV WRUWXUDV GLVSRVWDV D ³UDFLRQDOPHQWH´ H[WUDtUHP GRV
revelador da ocorrência de uma infração. Franco Cordero acusados a sua versão dos fatos e, na medida do possível, a
relembra que nessa hora o juiz passa da posição de confissão, fim do procedimento, preço da vitória e sanção
expectador impassível para converter-se em protagonista do representativa da penitência.75
sistema.73 Distintamente das ordálias, dos povos germânicos, que
A jurisdição eclesiástica a princípio destinava-se ao presumiam uma manifestação das divindades por
julgamento de membros da Igreja, porém conforme o poder intermédio de um sinal físico facilmente observável, a
temporal desta última foi se expandindo, resvalou para a sua iluminar o caminho a seguir para se fazer justiça, a tortura
competência uma enorme gama de infrações penais impunha-se como procedimento de investigação baseado no
consideradas contrárias, mesmo que distantemente, aos conhecimento, meio, portanto, considerado à época mais
interesses da Igreja.74 evoluído.
Principalmente a partir do momento em que as A prisão durante o processo torna-se a regra, firme na
autoridades judiciárias eclesiásticas passaram a ser tese de que todo acusado obstaculiza a investigação da
exercitadas por monges designados pelo Papa, as verdade.
características marcantes da Inquisição foram a forma A jurisdição secular, com o fortalecimento das
monarquias, a estruturação de uma justiça profissional e a
determinação, como critério definidor da competência, do
71 Sobre a inquisição, convém examinar a obra de João Bernardino Gonzaga, lugar do fato ² forum delicti commissi ², a partir do século
A Inquisição em seu Mundo (8ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994), da qual se
extrai este valioso e elucidativo trecho: As censuras apresentadas contra a XV supera os tribunais locais e paulatinamente diminui a
Inquisição giram, invariável e incansavelmente, em torno das idéias de influência e competência da jurisdição da Igreja, até
intolerância, prepotência, crueldade; mas, ao assim descrevê-la, os assinalar a absoluta supremacia da jurisdição do monarca.
críticos abstraem, ou referem muito de leve, o ambiente em que ela viveu.
Forçam por tratá-la quase como um acontecimento isolado e, medida Sublinhe-se que se considerava que o poder de julgar
pelos padrões da atualidade, se torna incompreensível e repulsiva para o pertencia ao rei, que, por sua vez, o delegava a funcionários
espectador de hoje. Sucede porém que esse fenômeno foi produto da sua que atuavam em seu nome, razão pela qual se admitia o
época, inserido num clima religioso e em certas condições de vida,
submetido à força dos costumes e de toda uma formação cultural e recurso ao soberano, como reafirmação do poder central e
mental, fatores que forçosamente tiveram de moldar o seu modo de controle do poder delegado,76 malgrado
comportamento (p. 21). dissimulado como garantia do réu. Saliente-se que o duplo
72
$TXLDSDODYUD³GHQ~QFLD´QmRGHYHVHU confundida com a petição inicial de grau operacionalizava-se até mesmo porque, com a franca
um processo condenatório, como no caso do Brasil de hoje, mas como notícia
crime que obrigava à investigação.
73
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 19. 75 Idem, p. 57.
74 Idem, p. 56. 76 João Bernardino Gonzaga, ob. cit., p. 60.
predominância da forma escrita, derivada da necessidade de de manera que representaban condiciones que,
documentação do que era apurado em segredo, cumpria normalmente, por experiencia, fundaban una
garantir-se a regularidade dos procedimentos. convicción racional, pero, en realidad, el acierto
O controle do poder político, inerente ao processo del juicio no dependía de su coincidencia com la
judicial por crimes, assegura no período áureo do verdad, sino de la observancia de las reglas
inquisitorialismo a delegação a determinadas categorias de jurídicas previstas, por lo que su control en
funcionários, os procuradores do rei, da atribuição de apelación se asemeja más a un examen jurídico, a
oficialmente investigar as infrações penais, ainda que delas un control sobre el recto ejercicio del poder
só haja rumores. Faustin Hélie vê na instituição a semente GHOHJDGRDOMX]JDGRU´
do Ministério Público.77
É bem verdade que, mesmo como meros delegados, os Na Espanha, o processo inquisitorial chega com a
juízes tinham de ser controlados na medida em que eles revogação formal da legislação visigótica (Fuero Juzgo),
dispunham do poder de iniciar uma investigação mediante a outorga da Lei das Sete Partidas, de Alfonso X,
independentemente de qualquer denúncia, e menos também no século XIII, expandindo-se por meio do Ordenamento de
de acusação. A acusação até poderia existir. O juiz além do Alcalá (1348), até que, sob o reinado dos Reis Católicos,
mais estava habilitado a infligir ao acusado tormentos, disso adquire inolvidável vigor.
ao final não se escusando nem mesmo os nobres. O controle De se notar que na Espanha católica instaurou-se, ao
do poder dos juízes era exercido não somente pela lado da justiça comum, o tribunal religioso denominado
possibilidade de se recorrer da decisão, cujo êxito estava Santo Ofício, tido indiscutivelmente como o mais cruel e
condicionado a fatores de ordem material, mas ainda por violento da época da Inquisição, com a qual muitas vezes é
meio da disciplina legal rigorosa de avaliação e crítica do confundido como se fosse seu exemplo mais perfeito e
material probatório. difundido.79 O Santo Ofício alcançou a América Espanhola e
Assim é que o sistema introduziu um mecanismo de só foi abolido definitivamente, enquanto tribunal de
valoração legal da prova, que estabelecia, em abstrato, as inquisição, em 1834.80
exigências ou condições para o juiz decidir sobre a Na Alemanha, por sua vez, sob a jurisdição do Império
persecução. Acentuou Maier o seguinte:78 Romano-Germânico, depois da recepção do Direito Romano,
conforme anteriormente sublinhado, após a instalação do
³(O MX]JDGRU QR IXQGDED VX IDOOR HQ VX Tribunal de Câmara Imperial (1495) e em virtude do
convicción, apelando al valor de verdad que la reconhecimento do desejo de criação de um direito imperial
prueba recibida transmitía en el caso concreto, unificado, foram editadas a Constitutio Criminalis
sino que verificaba o no verificaba las condiciones
que la ley le exigía para decidir de una u outra 79 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 66.
manera. Claro es que las condiciones impuestas 80 João Bernardino Gonzaga assevera que a extinção da Inquisição, em
Portugal, ocorreu em 1821, sucedendo, na Espanha, em 1834, com a
por la ley estaban referidas a la verdad histórica, alteração da competência e efeitos da jurisdição eclesiástica. Acrescenta o
autor que, em 1908, reorganizou-se a instituição sob a denominação de
Sagrada Congregação do Santo Ofício, passando a chamar-se, a partir de
77 Faudtin Hélie, apud Julio B. J. Maier, Derecho Procesal Penal Argentino, 1965, de Congregação para a Doutrina da Fé, naturalmente com novos
p. 61. procedimentos e competência limitada a assuntos religiosos (ob. cit., p.
78 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 64. 238).
Bambergensis (1507) e a Constitutio Criminalis Carolina incontestável ratio das providências inseridas na Ordenação.
(1532), esta alcançando praticamente todos os domínios do A recíproca determinação entre o direito processual dos
Império. povos germânicos e o Direito Romano-Canônico foi já
Trata-se do ingresso legal indiscutível da Inquisição na sublinhada, sendo marcante também na região de Portugal,
Alemanha e demais áreas de influência, sem embargo de muito embora desde logo os Visigodos, que suplantaram
remotos princípios do antigo sistema germânico, de índole suevos, vândalos e silingos na ocupação territorial daquela
acusatória, mediante uma regulação que se pretendia parte da Península Ibérica, hajam aplicado o direito de
uniforme, inclusive no tocante à disciplina da tortura.81 inspiração romana e abandonado, malgrado não por inteiro,
A França, da mesma forma, suportou o sistema como veremos, a herança que seu espírito aventureiro havia
inquisitório, especialmente a partir da Ordenação de 1254, levado para a Península Ibérica.
de Luis IX, editada sob a influência do Direito Romano- Gize-se, por oportuno, que Portugal nasce da obstinação
Canônico, com a disposição da apuração das infrações penais de resistência aos árabes que, em 714, invadem a península,
de ofício e a imposição da jurisdição real em todo território. desmembrando-se, em 1139, do Reino de Lião. Apesar disso,
Maier82 salienta, todavia, que foi a Ordenação Prévia, de sente-se nessa fase incipiente do processo penal português a
1535, o diploma que definitivamente incorporou a influência germânica e moura, como neste caso constata-se,
Inquisição, fazendo sucumbir o modelo acusatório, enquanto para ilustrar, pela designação atribuída a alguns funcionários
Franco Cordero aduz que é com a Ordenação de 1670 que a da justiça, tais como os vereadores (alvazis),85 juízes
Inquisição chega ao seu apogeu na França.83 municipais, e na hipótese da influência germânica, pela
Pietro Fredas destaca, por sua vez, que a ordenação instituição da acusação do ofendido ou de qualquer do povo,
criminal de Luis XIV, de agosto de 1670, ordenou o por clamor ou sem ele, com a dedução da acusação perante
procedimento criminal na França e apresentou-se como a um tribunal formado por homens de bem, assegurando-se a
codificação completa e última do procedimento plenitude da defesa.86 Tratava-se, é certo, de processo
inquisitório,84 pretendendo por fim ao caos então vigente na público e oral, substituído aos poucos pela forma escrita.
administração da justiça. Como em outros lugares, ao fim da Idade Média, em
Releva notar que, diferentemente da jurisdição civil, em Portugal também se percebeu o papel jogado pela justiça
relação à qual os senhores feudais ainda dispunham de criminal na consolidação do poder político, de sorte que as
algum poder, inclusive o de julgar recursos contra as justiças municipais passaram a sofrer a disciplina geral,
decisões dos seus juízes delegados, na jurisdição criminal determinada pela realeza, impondo-se a competência ratione
sempre, qualquer que fosse o tribunal do qual proviesse a loci, que reduzia a influência das justiças locais de caráter
decisão, os recursos eram julgados por juízes indicados pelo feudal, a iniciativa oficial, independentemente de delação ou
rei, assegurando-se, pelo controle dos assuntos criminais, a
preponderância do poder real sobre o senhorial, verdadeira e
85 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 61.
86 Idem, pp. 66-71. Convém frisar que os visigodos dispuseram de legislação
própria, aplicável exclusivamente ao seu povo (Código de Eurico e,
81 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 84. posteriormente, Código de Leovigildo), enquanto os hispano-romanos
82 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 78. submetiam-se a outro regime (Breviário de Alarico), até que, em 654,
83
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 21. promulgou-se um novo código, unificando a legislação (Código Visigótico,
84 Pietro Fredas, na introdução à 3ª edição da obra de Florian, Las Pruebas Liber Judiciorum ou Fuero Juzgo), conforme remarca Pierangelli
Penales, vol. I, já mencionada (p. 7). (Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, p. 28).
reclamação do ofendido, embora esta pudesse existir, e o Manoelinas89 e Filipinas, com as devassas gerais e especiais,
recurso de apelação, inclusive ex-officio, por parte do cabendo, pois, aos juízes, nos seus territórios, formar corpo
comendador real, sem embargo da criação de tribunal de delito e abrir inquirição-devassa logo que tivessem
inquisitorial eclesiástico, com sua competência peculiar, em notícias da prática de infrações penais.90
prolongada concorrência com as jurisdições feudal e Ao lado do arbítrio e das práticas de extermínio, a
monárquica, portanto conforme o modelo comum em toda a inquisitorialidade era a regra geral, fundada na iniciativa ex
Europa continental.87 officio, no emprego da tortura, no sistema de avaliação legal
A América Espanhola regeu-se, pela força da dominação das provas e na forma escrita predominante, inclusive da
dos imigrantes europeus e da exterminação quase total dos sentença, com uma fase processual anterior ao julgamento,
povos e culturas indígenas, pelo procedimento vigente na sem contraditório, que findava com a pronúncia,91 sem
Espanha, tal seja, principalmente a Lei das Sete Partidas, embargo, nos primeiros tempos de colonização, de ficar o
como consigna Maier,88 com a prevalência do modelo processo à discrição dos doze donatários das quatorze
inquisitório, baseado na persecução penal de ofício, capitanias hereditárias em que se dividiu o território
convertendo-se em pesquisa oficial e secreta, com a brasileiro, com ampla jurisdição.92
admissão da tortura. Enquanto isso, no Brasil, o discurso Em linhas gerais, pode-se assinalar, com Julio Maier,
oficial sugeria a aplicação, sucessivamente, das Ordenações que o Sistema Inquisitório correspondeu a uma concepção
absolutista de Estado, em teoria política, e a progressiva
publicidade do direito penal, em termos de teoria jurídica,
³concibiendo al delito como un ataque al orden social y el
87 Vale, por oportuno, destacar que, no reinado de D. Afonso IV, os mouros juzgamiento penal se transforman de cuestión popular en
foram definitivamente banidos do território lusitano. Isso produziu
sensível alteração na ordem jurídica, no plano do processo penal, WDUHDDXWRULWDULD FXHVWLyQGH(VWDGR ´, com as inolvidáveis
principalmente com a edição, em 2 de dezembro de 1325, da lei sobre as conseqüências culturais e jurídicas que tal concepção veio a
inquirições devassas. No reinado de D. Afonso V, sob a regência do Infante proporcionar, a ponto de até hoje sentirem-se os seus efeitos.
D. Pedro, em 1446, foram editadas as Ordenações Afonsinas, obra dos
romanistas João Mendes (possivelmente o Livro I) e Ruy Fernandes (os
Pode-se mesmo assinalar que, sob a égide de tal
demais Livros). Na mencionada codificação, mais especificamente em seu sistema, fica claramente à mostra a vinculatividade da
Livro V, Título IV, tratava-se do processo criminal, aludindo-se não só à atuação estatal na resolução dos conflitos de interesses e
acusação do Direito Romano como também, novamente, às inquirições
secretas (devassas) do Direito Canônico. Depois vieram leis esparsas e as
solução de casos na esfera penal, às diretrizes políticas que
Ordenações Manoelinas, em 1521, acentuando a forma escrita do
procedimento e ratificando a jurisdição da realeza, com a previsão do
Promotor de Justiça, até que, finalmente, as Ordenações Filipinas foram 89 Jorge Alberto Romeiro assinala que no Brasil-Colônia não vigoraram as
editadas, em 1603, e passaram a ser aplicadas em Portugal após a morte do Ordenações Afonsinas... É que, apesar de descoberta a Terra de Santa
Rei Cardeal D. Henrique e sua sucessão pelo Rei espanhol, Filipe II de Cruz em 1500, somente no reinado de D. João III (1521-1557) lhe veio de
Castela (Filipe I em Portugal), que pouco alterou a anterior (Almeida Portugal a primeira expedição colonizadora, que chegou às costas de
Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 112, 123 e Pernambuco em 30 de janeiro de 1531, capitaneada por Martim Afonso de
127, e Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Souza (Romeiro, Jorge Alberto. Da Ação Penal, Rio de Janeiro: Forense,
Fontes Legislativas, pp. 45-61). Mesmo depois da libertação de Portugal do 1978, p. 71).
jugo espanhol, continuaram em vigor as Ordenações Filipinas, por feito de 90 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, p.
D. João IV, que as revalidou em 29 de janeiro de 1643 (Marques, José 95.
Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, Campinas: 91 Idem, pp. 96-97.
Bookseller, 1997, p. 95). 92 Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes
88 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, pp. 102-103. Legislativas, p. 71.
modelam a estrutura do Estado e definem seus fins. Com efeito, a Inglaterra integrou o Império Romano do
A maior parte da doutrina refere como características século I ao V, porém o processo de aculturação foi pouco
do Sistema Inquisitório a concentração das três funções do intenso, principalmente no tocante à assimilação do direito e
processo penal ² de acusar, defender e julgar ² em um só das instituições jurídicas.
sujeito, o que conduz, nas palavras de Alcala-Zamora e Do século VI em diante, conseqüentemente às invasões
Levene, a um processo unilateral de um juiz com atividade dos anglos, dos saxões e dos dinamarqueses, têm lugar
multiforme,93 relegando ao acusador privado uma posição reinos germânicos que, tal como no continente, em que
secundária e proporcionando o princípio do processo pesem a incontestável força e o prestígio dos costumes,
(rectius, da persecução penal) independentemente da adotam também leis bárbaras, geralmente redigidas em
manifestação de pessoa distinta da do juiz (procedat iudex ex língua germânica.
officio); procedimento extremamente secreto e destituído do Já no século XII, a partir da conquista normanda, os
contraditório, quase sempre marcado pela prisão provisória costumes parecem ser a única ou mais importante fonte do
e disparidade de poderes entre juiz-acusador e acusado; direito, dividindo-se em costumes locais anglo-saxônicos,
forma escrita e exclusão de juízes populares, historicamente costumes das novas cidades e costumes dos mercadores,
preocupado com o descobrimento da verdade real, via de denominados, de um modo geral, lex mercatoria. Neste
regra a partir da confissão do imputado, muito embora tenha século, portanto mais cedo que na Europa Continental, os
havido intensa liberdade de o juiz pesquisar e introduzir reis da Inglaterra conseguem impor sua autoridade sobre o
outros meios de prova.94 Não custa colocar em relevo a conjunto do território, desenvolvendo a competência da sua
observação de Franco Cordero, sobre este período e acerca própria jurisdição em prejuízo das jurisdições senhoriais e
do emprego da tortura. Nota o jurista italiano que provido de locais, que perdem progressivamente, ao longo dos séculos
instrumentos virtualmente irresistíveis, o inquisidor tortura XII e XIII, a maior parte das suas atribuições.
os pacientes como quer: dentro do seu marco cultural Para isso, especialmente em matéria criminal, os reis se
pessimista o animal humano nasce culpado.95 serviram de juízes que percorriam todo o território, reuniam
as cortes locais e julgavam os casos em pauta, conferindo
3.1.3. O COMMON LAW unidade ao Common Law.96
A forma de atuação dos mecanismos de resolução dos
O sistema jurídico conhecido como Common Law conflitos de interesses adotados na Inglaterra, como
merece especial realce. Elaborado na Inglaterra a partir do consectário lógico da técnica usada para requerer as
século XII da nossa era e fundamentado na jurisdição real jurisdições reais,97 afastou o direito inglês do modelo
das decisões, expandiu-se para introduzir-se, em maior ou romano-canônico imperante no resto da Europa e
menor grau, nos Estados que foram colonizados pelos possibilitou aos juízes profissionais, com formação prática, a
ingleses. introdução de um mecanismo de recurso a precedentes

93 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal 96 Tornaghi, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 70.
Penal, tomo II, p. 219. 97 Requeria-se jurisdição por meio de pedidos endereçados ao Chanceler que,
94 Leone, Giovanni. Manuale di Diritto Processuale Penale, Napoli: Jovene, se os reputasse fundamentados, exarava um writ, uma ordem, a um agente
1983, p. 9. Conso, Giovanni. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, real local, para que determinasse ao réu que desse satisfação ao queixoso
Milano: Giuffrè, 1969, p. 7. (Gilissen, John. Introdução Histórica ao Direito, Lisboa: Calouste
95
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 22, tradução livre. Gulbenkian, 1979).
(cases) a rigor condensados nos Years Books, escritos em isenção de julgamento.100
francês (Law French). É imperioso ressaltar, na história dos sistemas
No século XV, no entanto, a técnica dos precedentes processuais penais, que nos séculos XV e XVI o petty jury
judiciais começou a não atender à evolução das relações reforma-se para tornar-se exclusivamente uma instituição de
econômicas e sociais, de sorte que surgiram as designadas julgamento,101 confiando-se a acusação a qualquer habitante
jurisdições de eqüidade (equity), que desprezavam o do reino, pois que, por ficção, admite-se que toda conduta
common law e aplicavam um processo escrito inspirado pelo criminal atinge a figura do rei, o que perdura até os dias de
do Direito Canônico e conforme ao desenvolvimento do hoje.
poder real, em direção ao absolutismo. Destarte, a instituição dessa exclusiva ação penal
É bem verdade que mais tarde a equity se integrou ao popular, e a postura de imparcialidade e eqüidistância do
common law, depois de um período de conflito entre realeza júri (passividade), comungam para que se aceite que o
e parlamento, no século XVII,98 especialmente porque se processo anglo-saxão tenha conservado um sistema
admitiu uma dualidade jurisdicional, fundida apenas tipicamente acusatório.102
posteriormente, na Idade Contemporânea, em 1873 e 1875.
No campo específico do processo penal, desde o século 3.1.4. O DIREITO DA ÉPOCA CONTEMPORÂNEA
XII assoma em importância o júri, que substitui os juízos de
Deus, proscritos por Inocêncio III. O Júri inicialmente foi Pode-se afirmar seguramente que a herança espiritual
disposto não só para julgar a causa mas, antes, para da Idade Média, no âmbito da repressão penal, não
denunciar os crimes mais graves (Grand Jury), não se desapareceu definitivamente, até que, a partir dos séculos
entregando a acusação pública, em matéria criminal, a um XVII e XVIII, sob inspiração do Iluminismo, iniciou-se o
específico funcionário, juiz ou membro do Ministério período moderno de administração da justiça, reduzindo-se e
Público, como no continente. amenizando-se as características inquisitoriais dos
Cabia ao Grand Jury, composto por vinte e três jurados procedimentos penais.
de cada condado, denunciar os crimes mais graves aos juízes Com efeito, se a Revolução Francesa de 1789 foi o marco
(júri de acusação), enquanto o Petty Jury, composto político inquestionável, as condições ideológicas e filosóficas
geralmente por doze jurados, ocupava-se com as provas,99 de que viabilizaram a eclosão da Revolução devem muito ao
que cada jurado podia ter ciência própria, isso se o réu desde
logo não confessasse (guilty plea), situação que gerava a 100 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 21.
101 Gilissen, John. Introdução Histórica ao Direito, p. 214.
102 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 21. Jorge Alberto Romeiro,
a propósito do sistema inglês, alude ao fato de, na Inglaterra, ter imperado
98 Sobre a reforma do sistema judiciário, que constituiu um dos objetivos dos sempre um modelo processual penal baseado na ação penal popular, muito
que lutaram na guerra civil inglesa, cumpre consignar a reivindicação de embora, em tempos recentes, conhecer-se a figura do público acusador
Oliver Cromwell (1650) de que procedimentos e textos legais fossem (director of public prosecution), sob a vigilância do procurador-geral
redigidos em inglês, não em latim ou law french e que houvesse tribunais (attorney general). Fauzi Hassan Choukr pondera, entretanto, que a
de justiça locais, constituídos por simples cidadãos, que os juízes de paz figura do attorney general que lá existe tem funções de auxiliar do
fossem eleitos, a lei codificada, os advogados e seus honorários abolidos governo, e sua origem nada apresenta de comum com aquela do
(Cerqueira, Marcello. A Constituição na História: Origem & Reforma, Rio Promotor Público (Romeiro, Jorge Alberto. Da Ação Penal, p. 65, e
de Janeiro: Revan, 1993, p. 31). Choukr, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação
99 Ver, sobre o sistema judiciário do Common Law, por todos, John Gilissen, Criminal, 1ª ed., p. 50). De toda sorte, dúvida não há sobre a natureza da
Introdução Histórica ao Direito. estrutura processual penal inglesa.
triunfo das idéias humanistas de Beccaria (Dei delitti e delle de justicia y la introducción del ministerio público ² ésas
pene, 1764), Thomasio (De origine processus inquisitorii), fueron, en el ámbito del proceso penal, las exigencias
Montesquieu (Esprit des Lois, 1748), Voltaire (Prix de la reformistas decisivas del siglo XIX en oposición a la justicia
MXVWLFHHWGHO¶KXPDQLWp, 1777), Bentham (Introduction to the de gabinete y a la manipulación arbitraria del poder
principles of morals and legislation, 1780), Pufendorf e SHQDO´.106
Wolf, além, naturalmente, de Rosseau (Contrat Social, Sem dúvida, o movimento de radical mudança social,
1764), quer no tocante à secularização do direito penal, política e jurídica não se limitou ao ambiente intelectual,
ousando separar o Direito da Religião, quer quanto aos fins alcançando a consciência pública, de modo a ser reivindicado
da pena, quer, ainda, pela sistematização da idéia da até mesmo por magistrados franceses do Antigo Regime,
separação dos poderes.103 juízes que hoje poderíamos designar como de vanguarda.
É relevante ressaltar que a crítica tenaz ao modelo de O novo sistema, que principiou sua atuação na França,
processo penal, e porque não dizer, principalmente, ao em seguida à Revolução, para com as guerras napoleônicas
modelo de direito penal então vigente, ressabia a contestação chegar a outros países, disciplinava o processo penal em
ao sistema político do Ancien Régime, do qual os duas fases. Na primeira delas, denominada instrução,
mecanismos punitivos nada mais eram do que instrumentos procedia-se secretamente, sob o comando de um juiz,
de manutenção da ordem classista e desigual, em vigor, designado juiz-instrutor, tendo por objetivo pesquisar a
cabendo ao judiciário daquele momento, de uma forma perpetração das infrações penais, com todas as
geral, o triste papel de garantidor de um status quo de circunstâncias que influem na sua qualificação jurídica, além
injustiças.104 dos aspectos atinentes à culpabilidade dos autores, de
Maier assinala com precisão que os filósofos maneira a preparar o caminho para o exercício da ação
iluministas, partindo do reconhecimento da necessidade de penal; na segunda fase, chamada de juízo, todas as atuações
substituir o sistema absolutista monárquico pela república, realizavam-se publicamente, perante um tribunal colegiado
postularam um novo modelo que, a rigor, recolocaria a ou o júri, com a controvérsia e o debate entre as partes, no
oralidade e a publicidade no lugar da escrituração e do maior nível possível de igualdade.
segredo, assegurando-se a defesa e a liberdade de julgamento Salientou Pietro Fredas107 que esta estrutura foi
pelos jurados,105 com a proscrição do sistema de provas consagrada no Código de Instrução Criminal de 1808,
legais. difundindo-se rapidamente pelos códigos modernos, com a
A transição política e cultural da monarquia para a proclamação da necessidade de uma investigação secreta e
República teve repercussão no campo do processo penal, por dirigida pelo juiz, e com tímida atuação da defesa nesta
meio da abolição da tortura e da adoção de um sistema etapa, razão por que se consagra como sistema de tipo
processual penal inspirado nos aplicados pela Roma misto.108
Republicana e pela Inglaterra. &RPR GL] 5R[LQ ³Oralidad,
publicidad, participación de los legos en la administración
106 Roxin, Claus. El Ministerio Público En El Proceso Penal, Buenos Aires: Ad-
Hoc, 1993, p. 39.
107 Fredas, Pietro, na introdução à 3ª edição de De las Pruebas Penales, de
103 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 85. Eugenio Florian, p. 10.
104 Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, Barão de. Cartas Persas, 108 Vale acentuar que, transplantado da Inglaterra para o continente europeu
tradução de Renato Janine Ribeiro, São Paulo: Paulicéia, 1991. pela Revolução Francesa, exceto para Holanda e Dinamarca, o júri não se
105 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, pp. 106-107. adaptou aos costumes dos povos continentais, sendo abolido ou tendo sua
Cumpre explicitar que a instituição do júri, no Pode-se dizer que a ação penal, no sistema misto,
continente europeu, obedeceu à lógica da identidade entre o exercitada pelo Ministério Público, pelo ofendido ou por
direito e a lei, pela qual a verdade política por esta qualquer pessoa (dividindo-se assim, conforme a
expressada, de forma genérica e abstrata, haveria de ser peculiaridade dos ordenamentos jurídicos, em pública, de
meramente proclamada pelo juiz profissional a quem não se iniciativa privada e popular), caracteriza-se por ser
permitia interpretar a lei com maior liberdade, no seu indisponível, exercida pelo seu respectivo titular de acordo
processo de aplicação. com os ditames do juízo de acusação ao qual chegam os
Tratava-se, portanto, de mais uma reação ao Antigo integrantes da câmara ou tribunal de acusação, depois de
Regime, desenvolvendo os jurados ² juízes leigos ² o papel apresentado, pelo juiz-instrutor, o resultado das suas
de guardiões dessa presumida verdade política da lei, em um investigações.
clima de abstrata homogeneidade de uma sociedade, A etapa preliminar, ou de instrução, atende ao
marcada, naturalmente, por uma nova categoria de conflitos propósito declarado de otimizar os meios de apreensão dos
que, ao longo dos séculos XIX e XX, poriam a nu o dogma da elementos que constituirão o núcleo do trabalho a ser
universalidade dos interesses burgueses. desenvolvido na fase seguinte, e ao objetivo implícito, de
Conforme Alcala-Zamora e Ricardo Levene, na própria realização pública e obrigatória do direito penal, ou, como
França, e antes na Áustria e na Espanha (respectivamente, prefere Maier, de indisponibilidade na atuação do preceito e
1897, 1873 e 1882), acentuou-se a tendência acusatória do da sanção penais, nem bem verificada a infração penal,111
processo penal, sem prejuízo da manutenção das ID]HQGR RSHUDU ³GH RItFLR´ R GLUHLWR SHQDO FRnforme as
características basicamente inquisitórias da sua primeira reservas de direitos fundamentais, motivo pelo qual, nesta
etapa (o segredo, a escrituração e a iniciativa judicial), perspectiva, pode ser compreendido como sistema
combinando, de acordo com os renomados autores, as inquisitorial garantista.
vantagens de ambos os sistemas de que derivou,109 de sorte Atualmente, a situação é a que será a seguir exposta,
que passa a ser conhecido, também, como sistema acusatório com a ressalva de que o século XX foi marcado, na Europa,
formal.110 em um determinado momento, pelo império de regimes
totalitários, que abraçaram a discricionariedade na repressão
penal, mais aproximada do modelo inquisitório extremado, e
competência paulatinamente reduzida, como na Alemanha, em 1924, na
Itália, em 1935 e 1951/1952, e na própria França, em 1941, onde foi
provocaram, como reação, conseqüentemente ao seu
substituído pelos escabinados (Marques, Frederico. A Instituição do Júri, desaparecimento, o desejo mais ou menos comum de uma
Campinas: Bookseller, 1997, pp. 20-21). nova introdução do sistema acusatório, movimento ainda
109 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal não completamente ultimado no último decênio.
Penal, p. 222. Ver também Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p.
32. Vale asseverar, seguindo o trajeto histórico dos sistemas
110 Vale examinar a obra de Antonio María Lorca Navarrete, intitulada processuais das duas principais famílias jurídicas que nos
significativamente El Proceso Penal de La Ley de Enjuiciamiento
Criminal: Una propuesta para preterir el modelo inquisitivo d la Ley de
Enjuiciamiento Criminal (Madrid: Dykinson, 1997, p. 30), da qual se extrai mixto o acusatorio formal, que se caracteriza porque recoge, como no
esse importante trecho: La prevalente práctica del sistema inquisitivo podía ser menos, elementos técnicos del inquisitivo e del acusatorio com
justificó históricamente la urgente necesidad de neutralizar sus indudable prevalencia hacia este último en la fase más importante de esse
consecuencias perversas, evidenciadas a partir de la labor de los modelo: el juicio.
UHYROXFLRQDULRVIUDQFHVHV6XUJHDVtODµWHUFHUDYtD¶TXHVLQVHULQTXLVLWLYD 111 Maier, Julio B. J. La Investigación Penal Preparatoria del Ministerio
ni acusatoria, es, en cambio, los dos modelos a la vez. Se trata del modelo Publico, Buenos Aires: Lerner, p. 14.
interessam ² as do direito europeu continental e do mista, porquanto, ao lado de uma primeira fase, de
Common Law ², que, na França, o processo penal evoluiu investigação, denominada sumário, escrita e secreta,
desde 1808, época da edição do &RGH G¶LQVWUXFWLRQ conduzida pelo juiz da instrução, com reduzida intervenção
Criminelle, no sentido de se reforçar a estrutura de tipo da defesa,114 há o juízo propriamente dito, ao qual se chega
misto, mantendo-se no atual Code de Procédure Pénale, que ultrapassando-se a etapa intermediária de aceitação da
entrou em vigor em 1959, uma etapa de instrução escrita e acusação, sujeito à parêmia nemo iudex sine actore, pelo que
secreta (artigo 11), dirigida por um juiz-instrutor responsável se prestigiam a oralidade, a publicidade e o contraditório
pela aquisição das provas, com maior liberdade e (artigos 744 e 680 da LEC).
independência, distinta da etapa de julgamento. A ação penal poderá ser pública, a cargo do Ministério
Prevalece a tendência de se excluir a defesa da fase de Público, popular, caso em que funciona o órgão oficial como
investigação preliminar (O¶HQTXrWH), muito embora participe litisconsorte, ou de iniciativa do ofendido, desenvolvendo-se
efetivamente da fase de juízo. A ação penal é deflagrada pelo na sua plenitude depois de ultrapassada a fase sumarial,
Ministério Público, sendo indisponível e irretratável, muito responsável pelo acertamento da qualificação jurídica do
embora, quanto à iniciativa, sujeita a alguma fato.
discricionariedade do órgão do parquet, e, quanto ao seu Navarrete, examinando a forma como na Espanha
objeto, sujeita à obediência ao deliberado pela câmara de desenvolve-se o processo penal, acentua a impossibilidade de
instrução, no fim desta fase (artigos 202, 204 e 205 do CPP). se conciliar duas fases tecnicamente antagônicas, porque
Novella Galantini, estudando o Processo Penal Francês, inspiradas por princípios opostos, tais sejam, o inquisitivo e
observou, na década de 1980, a tendência de aproximação ao o acusatório. Reclama por isso, o mencionado autor, uma
modelo acusatório, principalmente por meio do controle dos urgente redefinição do modelo, com preponderância da
poderes atribuídos ao juiz de instrução, situação revertida acusatoriedade, salvo se pretender a lei espanhola render
posteriormente, conforme as Leis 93-2, de janeiro de 1993, e loas à teoria da aparência acusatória, pela qual o sistema
93-1013, de agosto do mesmo ano, que se inclinaram em acusatório é só mediático, estruturalmente condicionado em
direção ao retorno ao processo de tipo misto, que atualmente seus resultados pela atividade inquisitória anterior.
predomina, progredindo a persecução a partir da A prevalência dos aspectos acusatórios, conforme
investigação inicial, levada ao cabo pela polícia, sob a Navarrete, apresenta-se hoje, pois, como mistificação, que
coordenação do Ministério Público, passando pelo exercício não resiste sequer à constatação de que a forma sumária,
da ação penal e instauração da fase de instrução, até chegar preparatória e inquisitorial, é regulada por quase quatro
ao juízo propriamente dito, este último oral, público e centenas de artigos (artigos 259 a 648 da LEC), contra cem
contraditório.112 do juízo oral e um número ainda menor para o juízo
Na Espanha, segundo Emilio Gomez Orbaneja e Vicente abreviado, instituído pela Ley Orgánica 7/1988, de 28 de
Herce Quemada,113 o sistema da Ley de Enjuiciamiento
Criminal corresponde à estrutura acusatória formal, ou
114 Desde 4 de dezembro de 1978, por força da Lei nº 53/1978, que modificou
o artigo 302 da LEC, os sujeitos pessoalmente envolvidos com as
investigações sumariais podem tomar conhecimento das diligências e
112 Galantini, Novella. Profili della Giustizia Penale Francese, Torino: G. intervir em todas elas, sendo, portanto, consoante interpretação do
Giappichelli, 1995. tribunal constitucional espanhol, uma exceção para as partes (Lorca
113 Orbaneja, Emilio Gomez e Quemada, Vicente Herce. Derecho Procesal Navarrete, Antonio María. El Proceso Penal de La Ley de Enjuiciamiento
Penal, 6ª ed. Madrid, 1968, p. 91. Criminal, p. 87).
dezembro de 1988.115 secreto. Nele, há limitada autorização para a participação do
Como sintoma da incongruência da estrutura acusatória investigado ou de seu defensor, embora haja cuidados com
formal ou mista em vigor, ressalta Navarrete a possibilidade os direitos fundamentais do primeiro. Terminada esta fase, é
de funcionarem, lado a lado, o juiz inquisidor, o Ministério possível o arquivamento ou o exercício da ação penal,
Público e o ofendido, alcançando-se, pelas dificuldades de consoante o seu resultado e levando em consideração, ainda,
salvaguarda de um processo garantista, algo como a em algumas situações, questões de conveniência.
quadratura do círculo. Formulada a acusação, passa-se a uma fase
A Alemanha, por sua vez, recepcionou novamente a intermediária, destinada ao controle desta mesma acusação,
experiência jurídica estrangeira, por conta da expansão no tocante à existência de base fática para a demanda ² §§
napoleônica, introduzindo entre os povos germânicos a 199 a 211 do StPO. Aceita a acusação pelo tribunal, inicia-se o
declaração de direitos fundamentais do povo alemão, em procedimento principal, regulado no Livro II da StPO, cujas
1848, pela qual se optava, decisivamente, pela publicidade e principais notas são, como antes acentuado, a divisão das
oralidade do processo penal, pela inclusão do elemento funções principais entre acusador, réu e seu defensor e juiz, a
popular na tarefa de julgar, condicionando-se a atuação da oralidade e a publicidade, estando, todavia, o tribunal livre
jurisdição a uma provocação de parte, com a conseqüente para adquirir os meios de prova que considerar necessários
descentralização das funções principais do processo: acusar, ao descobrimento da verdade, não havendo nenhuma
defender e julgar.116 tarifação legal dos meios de convencimento introduzidos.119
Em realidade, muito embora haja, entre os estudiosos Convém explicitar, nos limites do nosso trabalho, que
do processo penal alemão, quem lhe recuse a qualificação de não pode o tribunal proceder de ofício, quer quando decide o
deduzido conforme o sistema acusatório, justamente porque Ministério Público arquivar os autos do procedimento
não seria um processo de partes, substancialmente preparatório (para o que só há recurso do ofendido), ou
falando,117 o certo é que o princípio acusatório, caracterizado ainda se pretender o tribunal ampliar o objeto ou incluir
pela divisão de funções ² acusar, defender e julgar ² está sujeitos na relação instaurada, devendo, neste último caso,
efetivamente preservado.118 ser cumprido o percurso previsto no § 266 do diploma
A persecução penal, de um modo geral, começa com o processual, como adiante transcrevemos, conforme a
procedimento preparatório, previsto no § 160 e seguintes do tradução espanhola:120
StPO, dirigido pelo Ministério Público, sendo essencialmente
³Si extendiera el Fiscal en la vista principal la
acusación a ulteriores hechos punibles del acusado,
115 Idem, pp. 31 e 57. podrá incluirlos el Tribunal, por medio de auto, en
116 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 35.
117 Colomber assevera que, na medida em que é o próprio Estado quem inicia el proceso, cuando fuera competente para ello y lo
a persecução penal em juízo, por intermédio do Ministério Público, e a FRQVLQWLHUDHODFXVDGR´
soluciona, por meio da sentença proferida pelo juiz, dependendo a relação
jurídica processual, via de regra, da oficialidade da ação penal, tal estado de
coisas é inerente ao reconhecimento da prevalência do interesse público na
tutela penal dos bens jurídicos, com a usurpação, pelo Estado, do papel de
protagonista que a vítima desempenha nos sistemas acusatórios puros ou 119 Idem, p. 130. Ver, igualmente, Introducción al Derecho Penal y Al Derecho
genuínos (Gomes Colomer, Juan-Luis. El Proceso Penal Aleman: Penal Procesal, por Claus Roxin, Gunther Arzt e Klaus Tiedemann,
Introduccion y Normas Basicas, Barcelona: Bosch, 1985, p. 46). Barcelona: Ariel, 1989.
118 Idem, p. 47. 120 Gomes Colomer, Juan-Luis. El Proceso Penal Aleman, p. 367.
A Itália, em 1988, substituiu o Código Rocco, de 1930, MXOJDPHQWR$RODGRGRGHQRPLQDGR³SURFHVVRWLSR´YLJRUDP
incorporando na nova legislação fundamentais alterações, pelo menos cinco modalidades de procedimentos
que apartam o mais recente modelo daqueles de inspiração alternativos, que objetivam evitar o estrangulamento do
francesa. sistema e possibilitar a adoção célere de decisões que,
Com efeito, depois de longa jornada, permeada por normalmente por acordo, prescindam do contraditório em
instantes de extrema dificuldade, provocados, entre vários audiência de instrução.
fatores, pela ação terrorista, produziu-se uma nova ordem A admissão das provas emerge, normalmente, da
jurídica, no plano do processo penal, em busca da expressão atividade das partes e, em caráter excepcional, da iniciativa
consciente de dois distintos projetos: a preservação das do tribunal, vedada esta, porém, no estágio anterior ao da
garantias fundamentais, bastante afetadas por um sistema de audiência preliminar, mesmo quando evidente o periculum
tipo misto, preponderantemente inquisitório;121 e a in mora (artigo 392 do CPP). A esse respeito, ressalta
necessidade de eficiência da justiça penal e de defesa da $PRGLRUHODWLYDPHQWHDRHVWiJLRGHMXOJDPHQWR³o juiz não
coletividade.122 é colocado no papel de um passivo espectador da disputa
No novo sistema, modificou-se a fase preparatória, que que se desenvolve em audiência entre a acusação e a defesa.
se transformou em verdadeiro inquérito, conduzido, 2 MXL] SRGH GHSRLV GH WHUPLQDGR R µHVDPH GLUHWWR¶ H R
coordenadamente, pelo Ministério Público e pela Polícia, µFRQWURHVDPH¶ FRQGX]LGRV SHODV SDUWHV LQGLFDU jV PHVPDV
iniciando-se a ação penal, sempre pública, depois de WHUPRVGHSURYDQRYRV´.
encerrada esta etapa123. Com isso, repudiou-se a face antiga Pode ainda o juiz, é certo, reperguntar às testemunhas,
do sistema, pela qual o juiz de instrução, responsável, aos peritos e às partes privadas, desde que preserve o direito
juntamente com o Ministério Público e a polícia, pela das partes colocarem ulteriores perguntas (artigos 506, 498
aquisição das provas e acertamento dos fatos fundantes da e 503 do CPP), de tal sorte que o princípio da busca da
acusação, depois disso participava ativamente do verdade real é significativamente abrandado, sem, todavia,
julgamento. reservar ao juiz um papel de completa passividade.124
Ao mesmo tempo, a inspiração acusatória retirou das Importa consignar que, com poucos anos de vigência, o
investigações preliminares (indagini preliminari) a condição novo código sofreu parciais reformulações e algumas
de, por si só, autorizarem a formação de um juízo interpretações polêmicas, que alteraram certos aspectos,
condenatório, imperando, portanto, o contraditório, como principalmente no que concerne à produção da prova,
mecanismo de validação da relação processual, cujas fases durante o julgamento, sem a adequada efetivação do
consistem, via de regra, na audiência preliminar e no contraditório e preservação da oralidade e publicidade,
critérios cruciais do novel diploma, a ponto de assinalar
121 Ennio Amodio salienta que, não obstante as inserções e retoques 124 Assinala, sobre a nova postura dos juízes, Paolo Ferrua, que ciò non
inspirados em uma visão garantidora, o antigo processo penal, volvido significa che il giudice debba restare costantemente passivo, immerso sino
na sua criação à codificação de 1930, mantinha intacta a sua conotação alla decisione in uno stato di indifferenza, quasi di ozio. Acrescenta o
LQTXLVLWyULDKHUGDGDGR&RGHG¶LQVWUXFWLRQFULPLQDOOHIUDQFrVGH. citado autor que, ao contrário, sH O¶LPSDUzialità è sicuramente
122 Sobre o movimento que resultou na edição do novo código, ver, por todos, FRPSURPHVVD GDOO¶HVHUFL]LR GL IXQ]LRQL LQYHVWLJDWLYH QRQ OR q Qp
3URFHGXUD 3HQDOH XQ FRGLFH WUD ³VWRULD´ H FURQDFD, de Mario Chiavario, GDOO¶HVHUFL]LR GL SRWHUL GLUHWWLYL FKH QRQ LPSOLFDQR DOFXQD SUHPLQHQ]D VH
Torino: Giappichelli, 1994. non quella, essenzialmente pratica, di regolare gli interventi delle parti
123
PEPINO, Livio. Reflexões sobre o sistema processual penal italiano, in: nel corso del processo (Studi sul Processo Penale, Torino: Giappichelli,
Revista do Ministério Público , 97, ano 25, jan-mar 2004, Lisboa, p. 75. 1990, p. 17).
parcela da doutrina que hoje se vive a estranha situação de se processual alicerçado na assimilação da acusação, como
ter passado de um GARANTISMO INQUISITÓRIO, criado a condição processual para alguém submeter-se a julgamento,
partir das decisões da corte constitucional, adaptando o na parificação do posicionamento jurídico entre acusação e
velho código Rocco, ao accusatorio non garantito.125 defesa, em todos os atos do processo, na garantia da ampla
Vale dizer que em virtude da reação de diversos setores defesa, do contraditório, da publicidade e da oralidade, e na
da sociedade foi editada a lei n. 479, de 16 de dezembro de correlação entre a imputação contida na ação penal ² a rigor
1999, que modificou bastante o procedimento abreviado. A pública, promovida pelo Ministério Público, mas,
própria Constituição da República Italiana sofreu alteração. excepcionalmente, de iniciativa privativa do ofendido ² e a
Em 23 de novembro de 1999 foi promulgada a lei n. 2, que sentença proferida (artigos 309o e 379o do CPP),126 cuja
PRGLILFRXRDUWLJR TXHWUDWDGR³GHYLGRSURFHVVROHJDO´  execução está condicionada, também, à iniciativa do
expressamente referindo-se aos meios de prova para excluir Ministério Público.
a possibilidade de condenação de alguém com base em Pondo de lado um sistema de instrução semelhante ao
declarações prestadas por quem, por decisão livre, se francês, por causa da profissão de fé acusatória, o novo
subtraiu voluntariamente ao interrogatório por parte do réu paradigma processual lusitano inseriu um estágio similar ao
e de seu defensor. inquérito policial, dominado pelo Ministério Público, e
Em Portugal, após a Revolução dos Cravos e voltado à reunião dos elementos que serão deduzidos na fase
estabelecimento da democracia, editou-se, em 2 de abril de de instrução (artigos 262o e seguintes do CPP), surgindo
1976, uma nova Constituição, cinco vezes revista, inclusive esta, por sua vez, quando exigida por lei, como preparatória
em 12 de dezembro de 2001, porém sem modificação para o exercício da ação penal (artigos 286o e seguintes do
sensível no tratamento dispensado à estrutura processual. CPP). Na prática a intervenção do Ministério Público no
Com efeito, dispõe o no 5, do artigo 32o, da mencionada inquérito continua reduzida e é objeto de crítica com alguma
Carta, que o processo criminal terá estrutura acusatória, freqüência, pois que as investigações continuam nas mãos da
estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios polícia submetida a parcos controles.127
que a lei determinar subordinados ao princípio do De se observar, não obstante a inquisitoriedade dessa
contraditório. etapa, que há restrições à utilização posterior dos meios de
Assim é, portanto, que, especialmente a partir da prova, com ressalva para os introduzidos no debate
entrada em vigor do novo Código de Processo Penal instrutório (artigos 298o e 301o, no 2).
português (Lei no 43/86, de 26 de setembro de 1986 e Cumpre assinalar que o tribunal, no sistema português,
Decreto-lei 78/87), instituiu-se nesse país um modelo é livre para adquirir os meios de prova que entender
necessários à descoberta da verdade, observando-se,
125 Conveniente é, certamente, a leitura de Percorsi di Procedura Penale: Dal naturalmente, os limites impostos pelas leis e pela
garantismo inquisitorio a un accusatorio non garantito, coordenado por Constituição. Como a maioria da doutrina portuguesa
Vincenzo Perchinunno (Milano: Giuffrè, 1996). Paolo Ferrua atribui, explica, adota-se aí um processo acusatório mitigado ou
principalmente, ao Decreto-lei nº 306, de 8 de junho de 1992, convertido,
com algumas modificações, na Lei nº 356, de 7 de agosto do mesmo ano, a
responsabilidade por, de um processo baseado na eqüidistância do juiz e
assunção da prova no debate contraditório, ter preservado apenas o 126 Silva, Germano Marques da. Curso de Processo Penal, vol. I, Lisboa: Verbo,
primeiro elemento (Studi sul Processo Penale II Anamorfosi del Processo 1996, pp. 54-83.
Accusatorio, Torino: Giappichelli, 1992, p. 174). Também PEPINO, Livio, 127 PEREIRA, Rui. A crise do Processo Penal in: Revista do Ministério Público ,

Reflexões..., op. cit., p. 73-85. 97, ano 25, jan-mar 2004, Lisboa, p. 21-22.
temperado pelo princípio da investigação.128 14 e 16 de abril de 2004 e promovido pelo INECIP (Instituto
Mais tarde, a Lei 59/98 foi editada visando superar de Estudios Comparados em Ciencias Penales y Sociales), foi
aspectos de estrangulamento que subsistiam, sendo, porém, oficialmente apresentado o anteprojeto de Código de
alvo de críticas. A principal reserva foi oposta ao chamado Processo Penal Federal, elaborado em conformidade com a
³SURFHVVR GH DXVHQWHV´ TXH VXSRVWDPHQWH HVYD]LRX HVWD estrutura acusatória.
etapa do indispensável caráter contraditório que deve De outro ponto, há algum tempo já está sendo
sublinhar o processo penal.129 implementado em Córdoba e outras províncias um sistema
Finalmente, entre 1999 (com a lei de proteção de jurídico aproximado ao modelo acusatório. Isso, em
testemunhas) e 2004 (com a lei de prevenção e repressão do Córdoba, por exemplo, decorre da coordenação entre a
branqueamento) Portugal oscila, inclinando-se ora em Constituição Provincial, a Lei Orgânica do Poder Judiciário e
direção à cultura inquisitorial do passado, ora na linha da o novo Código de Processo Penal, sancionado como Lei no
estrutura acusatória que a Constituição da República 8.123. No ano de 1999 é sancionada a lei n. 8.802, que cria o
consagra. Conselho da Magistratura Provincial.
Ainda na família do direito de origem européia Com efeito, na lei de Córdoba a instrução judicial ou
continental, é valioso mencionar a situação argentina, formal é substituída pela investigação do Ministério Público,
naquilo que nos é dado conhecer, desde logo esclarecendo, nos crimes de ação pública, sem prejuízo do exercício da
por oportuno, que as Províncias, equivalentes aos nossos defesa em todas as etapas da persecução, enquanto no
Estados da Federação, dispõem de legislação própria, diploma federal permanece o juízo de instrução, escrita e
distinta daquela aplicada em se tratando de delito da reservada, com limitada intervenção das partes. A
competência federal, definido por exceção. organização da justiça penal prevê tribunais de controle de
Inspirado, a partir da libertação da Espanha, em 1810, garantias.
por um movimento de identificação com o sistema francês, Em ambos os casos a fase seguinte carece da iniciativa
de onde vinham as idéias que predominaram entre os do acusador, de um modo geral o Ministério Público,
revolucionários, o processo penal argentino vive cruciante desenvolve-se a audiência de debate, contraditória e pública,
contradição, na medida em que, atualmente, o Código cabendo à parte, na estrutura provincial, o empreendimento
Procesal Penal de la Nación vigora, instituído pela Lei no dos interrogatórios de quem haja arrolado para depor, ao
23.984, em vigor desde setembro de 1992, cujas bases ainda tempo em que, no Código da Nação, são os três juízes que
são aquelas próprias do sistema de tipo misto, conforme o compõem o tribunal que começam a inquirição, que
antigo modelo italiano, com forte presença do juiz de conduzem de tal modo, a ponto da doutrina enxergar na
instrução, sem embargo de haver reforçado o papel do providência um desestimado ato de natureza inquisitorial.130
Ministério Público. Releva notar que durante a realização do Em Córdoba funcionam três tipos de tribunais, que
Seminário Interamericano sobre Reformas Processuais variam entre o modelo unipessoal e o composto por três
Penais na América Latina, realizado em Buenos Aires entre juízes.
Por derradeiro vale consignar que o Chile iniciou a mais
profunda transformação entre os Estados Latino-
128 PEREIRA, Rui. A crise..., p. 19 e ANDRADE, Manuel da Costa, no prefácio ao

livro A ilicitude da prova: teoria do testemunho de ouvir dizer, de Oswaldo


Trigueiro do VALLE FILHO, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 14. 130 Sobre o modelo argentino, recomenda-se Derecho Procesal Penal, tomo I,
129SANTOS, Gil Moreira. O Direito Processual Penal, Porto: ASA, 2002. de Jorge E. Vazquez Rossi (Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1995).
Americanos. Common Law, no que se relaciona ao seu desenvolvimento
Mauricio Duce e Cristián Riego recordam que, sem até o século XVIII, convindo, pois, deduzir derradeiras
embargo de a doutrina tradicional do Chile afirmar que considerações, na medida em que se concebem modelos
desde 1906 o modelo chileno era de tipo misto, influenciado estruturalmente diferentes, nos Estados Unidos da América
pelo paradigma francês, o processo penal chileno na prática e na Inglaterra.
era inquisitorial. Várias reformas parciais foram Sobre a Inglaterra, pátria do Commom Law, averbe-se
empreendidas, em 1927, 1942 e 1989 todavia sem pretensão que até hoje predomina o sistema de acusação privada,
de transformar o processo em seu eixo, mas apenas deflagrada por qualquer cidadão, e julgada, a rigor, pelo Júri,
³PRdernizá-OR´HWRUQi-lo mais célere.131 imparcial e inerte. Embora não conheça um mecanismo
Por fim, em 12 de outubro de 2000 é publicado o novo absolutamente profissional de acusação, desde o século XIX
Código de Processo Penal chileno, cuja aplicação integra um propugna-se por uma instituição que desenvolva a
amplo projeto de mudanças, que está sendo desenvolvido de persecução oficial, culminando, em 1879, com a criação do
forma gradual. Escritório do Diretor de Persecução Penal Pública (Office of
Assim, são criados Ministério Público e Defensorias. O Director of Public Prosecution).
novo sistema entra em vigor paulatinamente, nas regiões em Diferentemente do conhecido Ministério Público tanto
TXHVHGLYLGHR&KLOH³WHVWDGR´LQLFLDOPHQWHQD5HJLmR dos países da órbita de influência européia continental, como
De acordo com relatório apresentado (Revista Sistemas dos Estados Unidos da América, tal funcionário encarrega-se
Judiciales, año 2, nº 3, 2002, publicação do CEJA): da responsabilidade de deduzir ação penal em um número
³$UHIRUPa chilena responde, em geral, às mesmas bastante limitado de casos, sem exclusividade, circunstância
características dos demais sistemas abarcados neste que expressa a vontade legislativa de deixar ao Estado a
estudo. Sua principal expressão legislativa é o novo persecução penal apenas daqueles crimes de considerável
Código de Processo Penal, que estabelece a introdução gravidade.
de um juízo oral ante um painel de três juízes, como Apesar de algumas agências atuarem na persecução
forma de julgamento, suprime a figura do juiz de penal, em casos de seu interesse, na maioria das vezes, é a
instrução e entrega a tarefa de preparação do juízo ao polícia quem deflagra a ação penal, atuando aí, cada policial,
Ministério Público, supervisionado por um juiz na condição particular de súdito. De um modo geral, os
especialmente criado para cumprir esta tarefa, o juiz de policiais são assistidos por advogados (prosecuting
garantias. Ao mesmo tempo o novo Código entregou ao solicitors) e têm amplos poderes dispositivos que, em
Ministério Público diversas faculdades destinadas a lhe restritas hipóteses, podem ser legalmente limitados. No
permitir usar procedimentos alternativos ao tradicional, sistema inglês alcança-se, certamente, o maior nível de
com o fim de dar lugar a soluções negociadas e para acusatoriedade, pela implementação de um processo de
descongestionar o sistema judicial do excessivo número partes, com preocupação de parificá-las, assegurando-se
de casos que habitualmente se apreseQWDP´132 ampla defesa, contraditório, publicidade, oralidade e
Anteriormente foi examinada a família jurídica do absoluta imparcialidade do juiz, sem desprezar os aspectos

131
DUCE, Maurício e RIEGO, Cristián. Introducción al nuevo sistema procesal
penal, Chile: Universidad Diego Portales, 2002.
132
Tradução livre, p. 18.
atinentes à disponibilidade da ação penal.133
Nos Estados Unidos da América, que respeitam uma 3.2.1. PRINCÍPIO E SISTEMA ACUSATÓRIO: DIFERENCIAÇÃO
forma federalista, o processo penal é essencialmente
acusatório,134 com o Promotor de Justiça assumindo o papel Com efeito, a primeira abordagem resulta da exigência
principal,135 que exercita de modo equilibrado com a reserva de extremarmos as definições de sistema e princípio
de direitos fundamentais atribuída à defesa pela Constituição acusatórios. Para isso, vamos nos valer das singularidades
Federal. A prova, em processo oral e público, é produzida ordinariamente referidas às duas categorias.
exclusivamente pelas partes, quer perante o júri, onde existe, Giovanni Leone136 apresenta, como características do
funciona ou o réu o aceita, quer perante o magistrado sistema acusatório, o poder de decisão da causa entregue a
singular, havendo, ainda, ampla disponibilidade sobre o um órgão estatal, por sua vez distinto daquele que dispõe do
conteúdo da pretensão deduzida. poder exclusivo de iniciativa do processo. Acrescenta que,
A respeito do sistema processual penal vigente no deduzida a acusação, o magistrado se libera da vinculação às
Brasil, empreenderemos a abordagem, por questão de ordem iniciativas do autor, impulsionando oficialmente a
metodológica, no último item deste capítulo. persecução penal, que se desenvolverá conforme os
princípios do contraditório, com paridade de armas,
3.2. Características do Sistema Acusatório oralidade e publicidade.
Por seu turno, Riquelme137 alinha também a
Cumprindo a trajetória que demarcamos, é nosso dever legitimidade popular do juiz, que será o próprio povo ou se
tentar aclarar certos conceitos e estabelecer algumas constituirá de significativa parte dele, despido, por isso, do
mínimas definições, para, assim, examinarmos as algumas dever de fundamentar sua decisão, haja vista sua soberania,
leis especiais e observarmos, em que medida e de que forma, ao que, conseqüentemente, soma-se a irrecorribilidade das
confrontam o modelo de estrutura processual penal decisões que profere, em processo que se desenvolve na
constitucionalmente eleito. forma de um duelo público, oral e contraditório, entre
acusador e acusado, perante um juiz inativo e imparcial.
Mittermaier138 igualmente alude ao princípio do juiz
133 Bovino, Alberto. ³/D3HUVHFXFLyQ3HQDO3~EOLFDHQHO'HUHFKR$QJORVDMyQ´ popular, como da essência do sistema acusatório,
in Pena y Estado, ano 2, nº 2: O Ministério Público, Buenos Aires: Del
Puerto, 1997, pp. 35-79.
salientando, justamente, que sólo puede ser Juez el pueblo o
134 Farnsworth, E. Allan. Introdução ao Sistema Jurídico dos Estados Unidos, delegados escogidos de su seno, celosos y vigilantes
Rio de Janeiro: Forense, 1963. defensores de las libertades, enquanto Alcala-Zamora e
135 Até o final do século XVII, início do século XVIII, por influência do direito
dos colonizadores, nos Estados Unidos a vítima demandava privadamente.
Levene139 mencionam também a acusação popular e a
Acredita-se que a imigração holandesa haja levado consigo a figura do liberdade de apreciação judicial das provas, cabendo a Julio
persecutor público, porém sem alterar, na essência, o modelo processual
penal, que ficou imune às demais experiências do sistema romano-
canônico. Os Promotores de Justiça, como órgãos públicos responsáveis
pela persecução penal, são acreditados como representantes da sociedade,
no desempenho de uma tarefa política, motivo por que, em 46 dos 50 136 Leone, Giovanni. Ob. cit., p. 8.
Estados da Federação, são eleitos, enquanto no plano federal são indicados 137 Fontecilla Riquelme, Rafael. Ob. cit., pp. 36-37.
pelo Presidente da República e estão subordinados formalmente ao 138 Mittermaier, Karl Joseph Anton. Ob. cit., p. 56.
Procurador Geral (U.S. Attorney General), segundo Alberto Bovino (La 139 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Ob. cit., pp. 217-
Persecución Penal Pública en el Derecho Anglosajón, ob. cit., p. 54). 218.
Maier140 a observação, segundo nos parece, da existência de É certo, conforme ao nosso juízo, que, se pretendemos a
poderes de conveniência, oportunidade e disponibilidade, definição de um sistema acusatório como categoria jurídica
referentes ao exercício da ação penal, em contraposição, composta por normas e princípios, não há como, pura e
naturalmente, ao dever inevitável de perseguição penal, simplesmente, justapô-lo com exclusivadade a um preciso
característico do sistema inquisitivo. princípio acusatório, pois a identidade entre um e outro
Ortega diferencia princípio acusatório do sistema que resultaria, por exigência lógica, na exclusão de uma das duas
lhe empresta o nome. Este autor sublinha que, ao lado do categorias, pela impossibilidade de um princípio ser, ao
princípio propriamente dito, encontramos a publicidade e a mesmo tempo, um conjunto de princípios e normas do qual
oralidade como traços constitutivos do sistema acusatório.141 ele faça parte, numa relação de continente a conteúdo.
Conso,142 autor das obras que mais se aprofundaram no Fica mais clara a incompatibilidade da justaposição,
exame da matéria, registra, ao lado do que já foi consignado quando, pela simples resenha classificatória, notamos a
(necessidade de acusação ofertada por órgão distinto do significativa disparidade de elementos invocados como da
julgador, publicidade e oralidade do procedimento, paridade própria essência de uma das categorias, no caso, do sistema.
de armas entre as partes e exclusão da iniciativa judicial no Assim, sustenta-se neste trabalho a premissa de que,
recolhimento das provas), ser característica a liberdade por sistema acusatório compreendem-se normas e
pessoal do acusado, ao menos até a sentença condenatória princípios fundamentais, ordenadamente dispostos e
definitiva. orientados a partir do principal princípio, tal seja, aquele do
&RUGHUR DFHQWXD D VHPHOKDQoD ³UHPRWD DVFHQGrQFLD´  qual herda o nome: acusatório.
HQWUH R SURFHVVR DFXVDWyULR H RV GXHORV ³$V WpFQLFDV Em que consiste então, nesta perspectiva, o princípio
acusatórias são juízos de Deus intelectualmente acusatório?
HODERUDGRV´143 Segundo o professor italiano, a ação decisória
se converte em um trabalho mental sobre dados positivos, 3.2.2. CARACTERÍSTICAS DO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO
porém cabe aos contendores aduzir e discutir os dados em
XPD WtSLFD ³EDWDOKD LQWHOHFWXDO´ 2 YDORU GR SURFHVVR I - A resposta deve ser construída por exclusão,
acusatório está na observação das regras, insensível à afastando o que não integra o princípio.
sobrecarga ideológica derivada da observação Assim, a compreensão daqueles elementos que vão aos
inquisitorial144. Finaliza advertindo que a ação penal poucos, historicamente, integrar o sistema acusatório é o
obrigatória e irretratável, os poderes instrutórios de ofício e resultado da eliminação de outros elementos que não afetam
pedidos que nunca são vinculantes distinguem o modelo o núcleo básico de um tipo característico do processo, isto é,
italiano do anglosaxão. aquele alicerçado na idéia da divisão, entre três diferentes
sujeitos, das tarefas de acusar, defender e julgar.
140 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana: Su Comentario Com efeito, como assinala Cordero ± e também James
y Comparación com los Sistemas de Enjuiciamiento Argentinos, p. 43. Goldschmidt ± ³DV UHJUDV GR MRJR´ GLVWLQJXHP R SURFHVVR
141 López Ortega, Juan J. ³/D 'Lmensión Constitucional del Principio de la acusatório do inquisitório.145 Este último se satisfaz com o
3XEOLFLGDGGHOD-XVWLFLD´, in Revista Del Poder Judicial, Madrid: Consejo
General del Poder Judicial, nov/1999, p. 52.
resultado obtido de qualquer modo, pois nele prevalece o
142 Conso, Giovanni. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, p. 8.
143
Cordero, Franco. Op. cit., p. 87 (tradução livre).
144 145
Idem, p. 86. Cordero, Franco. Op. cit., p. 88.
objetivo de realizar o direito penal material, enquanto no superveniente, interferindo na delimitação do objeto do
processo acusatório é a defesa dos direitos fundamentais do processo (como ocorre com a mutatio libelli), significa
acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir prestigiar a idéia de que a punição não pode depender de um
que define o horizonte do mencionado processo. autor de ação penal independente e livre para apreciar se
$VVLPFRPRDV³UHJUDVGRMRJR´QmRVHFRQFUHWL]DPVHP deve ou não acusar e o que deve (ou não) incluir na acusação.
a interferência dos sujeitos que participam do processo, não Da mesma maneira, atribuir ao juiz o poder de produzir
há dúvida de que são os atos que estes sujeitos praticam que provas de ofício GHIRUPDR³GXHORLQWHOHFWXDO´DTXHVHUHIHUH
hão de diferenciar os vários modelos processuais. Cordero. Supor que a atividade probatória está desvinculada
É preciso ter em mente que a análise puramente GRH[HUFtFLRGRV³GLUHLWRVSURFHVVXDLV³ -DPHV*ROGVFKPLGW 
objetiva, que visualiza os atos sem entender quem são os H LPDJLQDU SRU RXWUR ODGR TXH MXL] H[HUFH ³GLUHLWRV´ QR
sujeitos que os praticam, descarna o processo. Gestão da processo importa controlar o material da decisão para
prova e acusação são atividades que não dizem nada se não reduzir as brechas da impunidade.
olharmos quem ± que sujeitos (históricos) ± realiza estes É também o que acontece com o denominado recurso de
atos. Até porque com a identificação dos sujeitos será RItFLR 2 MXL] TXH ³UHFRUUH´ GD SUySULD VHQWHQoD SDUD
possível compreender os porquês das coisas. submetê-la obrigatoriamente a exame por tribunal de
Quando focalizamos estes atos ± que expressam a segundo grau, em hipóteses em que a decisão originária é
obediência dos sujeitos às regras do jogo -, temos de favorável ao réu, suspeito ou investigado, concorre para a
classificá-los, identificando o que há de comum, por política de segurança pública de que se torna protagonista.
exemplo, entre os diversos atos que o juiz pratica ao longo do O elemento comum entre o exercício da ação penal pelo
processo. O ponto de convergência destes atos é aqui juiz, a produção de provas de ofício e o recurso igualmente
GHQRPLQDGR ³WDUHID´ SRUTXH GHIHQGHPRV TXH RV DWRV de ofício está na consecução de tarefas que a moderna
processuais atendem a funções, não são desinteressados, doutrina do processo assevera que compõem o chamado
ainda que muitas vezes estas funções não sejam percebidas direito de ação (e o co-respectivo direito de defesa).146 Como
com clareza ou imediatamente. todas estas tarefas apontam para a prevalência do interesse
Como nas linhas antecedentes ficou registrado, a função em punir sobre o de tutelar os direitos fundamentais do réu,
predominante do processo inquisitório consiste na realização elas podem ser reunidas sob a rubrica de tarefas de acusação.
do direito penal material. O poder de punir do Estado (ou de A acusação consiste na imputação a alguém da prática de um
quem exerça o poder concretamente) é o dado central, o FULPHFRP³SHGLGR´GHFRQGHQDomR
objetivo primordial. A construção teórica do princípio acusatório há de
No sistema inquisitório, portanto, os atos atribuídos ao consumar-se mediante oposição ao princípio inquisitivo. São
juiz devem ser compatíveis com o citado objetivo. Em antagônicas as funções que os sujeitos exercem nos dois
linguagem contemporânea equivale a dizer que o juiz cumpre modelos de processo. É desse antagonismo, portanto, que as
função de segurança pública no exercício do magistério
penal. 146
Historicamente, o discurso inquisitório atribui o acúmulo de funções em
Essa linha de raciocínio permite abarcar todos os atos mãos do juiz ao generoso propósito de evitar a punição de inocentes. Não é
judiciais inquisitórios em um só plano. Exercer a ação penal preciso recorrer às inquisições eclesiásticas para compreender a falsidade do
argumento. Basta ver que é este modelo, fundado na busca da verdade real, que
no lugar de terceiro, quer originalmente como previa o artigo mesmo nos subterrâneos da persecução penal contemporânea facilita a
531 do Código de Processo Penal brasileiro, quer de modo aceitação da tortura.
diferenças devem ser extraídas. não acontece tal redução ou dilatação (de acusatoriedade) à
$VVLP VH QD HVWUXWXUD LQTXLVLWyULD R MXL] ³DFXVD´ QD vista da possibilidade de o acusado responder preso ao
acusatória a existência de parte autônoma, encarregada da processo.
tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o centro Desta forma, pode-se começar assinalando, com
do processo, cuidando de preservar a nota de imparcialidade Conso,148 que a idéia de acusação só tem sentido, como
que deve marcar a sua atuação. elemento essencial de um princípio dentro do processo,
Nisso consiste a base teórica em cima da qual contraposta à idéia de defesa, ainda que, sobre esta última
procederemos à análise do princípio acusatório. possa haver alguma imprecisão quanto aos seus contornos.
Ao aludirmos ao princípio acusatório falamos, pois, de Jorge de Figueiredo Dias, com sua incontestável
um processo de partes, visto, quer do ponto de vista estático, autoridade, ressalta que, por direito de defesa, compreende-
por intermédio da análise das funções significativamente se uma categoria aberta, à qual devem ser imputados todos
designadas aos três principais sujeitos, quer do ponto de os concretos direitos, de que o arguido dispõe, de co-
vista dinâmico, ou seja, pela observação do modo como se determinar ou conformar a decisão final do processo,149 o
relacionam juridicamente autor, réu, e seu defensor, e juiz, que coloca o acusado, e, dadas as especificidades técnicas
no exercício das mencionadas funções. relativas ao mecanismo de co-determinação e conformação
da decisão judicial, também seu defensor,150 na condição de
II - Nem sempre foi, ou ainda é, predominantemente sujeitos de direitos, deveres, ônus e faculdades.
oral e público o processo acusatório, nem, necessariamente, Ora, um princípio fundado na oposição entre acusação e
só será acusatório pelo fato do próprio povo, ou segmentos defesa, ambas com direitos, deveres, ônus e faculdades, só se
numericamente significativos dele, julgar.147 desenvolve regularmente em um processo de partes,
Até mesmo o dever de fundamentar a decisão não reduz centrado nas relações recíprocas que se estabelecem.
ou amplia a acusatoriedade da base processual, como Como se fosse uma fotografia, veremos inicialmente
provam o júri e o juiz ou colegiado profissional. Por sua vez, como estão consolidados os estatutos jurídicos dos sujeitos
do processo, de acordo com o princípio acusatório.
Depois, passaremos ao exame da dinâmica processual,
147 Na medida em que o princípio acusatório decorre do princípio isto é, como reagem os diversos sujeitos à ação dos demais.
democrático, o valor de legitimidade do exercício do poder há de ser objeto
de alguma consideração. Atualmente, é possível afirmar, com Frederico
Equivale à tentativa de captar a atuação dos sujeitos como
Marques, que, vindo os juízes togados do seio do próprio povo de que em um filme.
emana conceitualmente a sua autoridade, somente em nome do povo, ao A opção por este modo de análise tem vantagens e
menos nos governos democráticos, podem distribuir justiça (A Instituição desvantagens de que se deve advertir o leitor.
do Júri, p. 22). A tal consideração convém aditarmos que o exercício da
função jurisdicional corresponde à atividade de um ramo de governo ² do
Poder Judiciário ² de sorte que não se pode falar ou mesmo mentalizar um
ramo de governo que não seja político (significando, aí, o exercício de um 148 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali,
poder público, estatal, em nome e para a polis) em relação ao qual não Capacità Processualle Penale, Milano: Giuffrè, 1961.
caiba as responsabilidades, deveres e poderes inerentes à soberania 149 Dias, JoUJHGH)LJXHLUHGR³6REUHRV6XMHLWRV3URFHVVXDLVQR1RYR&yGLJR
derivada do povo (Zaffaroni, Eugenio Raúl. Estructuras Judiciales, p. 112). GH 3URFHVVR 3HQDO´ in Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra:
Estas são, possivelmente, as motivações do reconhecimento, na Lei Almedina, 1992, p. 28.
Fundamental de Bonn (artigo 20, nº 2) e na Constituição Espanhola (artigo 150 Figueiredo Dias assinala para o defensor o estatuto jurídico próprio de um
117, nº 1), de que a Justiça emana do povo, não subsistindo, órgão de administração da justiça, atuando exclusivamente em favor do
modernamente, a objeção oposta por Mittermaier. acusado (idem, p. 11).
A principal vantagem ± razão da eleição do método ± procedimentos inquisitoriais podem conviver com uma
está em permitir comparar aquilo que a ordem acusação), mas tanto, e, principalmente, que esta acusação
constitucional e as leis atribuem aos principais sujeitos do revele uma alternativa de solução do conflito de interesses ou
SURFHVVR SHQDO YLVmR ³HVWiWLFD´ GR TXH Iazem o juiz, o caso penal oposta à alternativa deduzida no exercício do
Ministério Público, o querelante, o acusado e seu Defensor) e direito de defesa, ambas, entretanto, dispostas a conformar o
o que de fato estes sujeitos praticam a partir da cultura juízo ou solução da causa penal.
consolidada e com amparo na jurisprudência (perspectiva Em outras palavras, ambas, acusação e defesa, surgem
dinâmica). como propostas excludentes de sentença.
$ GHVYDQWDJHP UHSRXVD QD DSDUHQWH ³UHSHWLomR´ GH Tal conformação só admitirá a influência das atividades
temas. Assim, por exemplo, o leitor observará que sobre a realizadas pela defesa, se o juiz, qualquer que seja ele, não
mutatio libelli (alteração da acusação) há uma apreciação de estiver desde logo psicologicamente envolvido com uma das
acordo com os poderes do juiz, do ponto de vista estático, e versões em jogo.
RXWUD FRPSOHPHQWDU TXDQGR VH YLVXDOL]D ³R SURFHVVR HP Por isso, a acusatoriedade real depende da
PRYLPHQWR´ imparcialidade do julgador, que não se apresenta meramente
Atento a isso R OHLWRU GHYHUi FXLGDU GH ³HQTXDGUDU´ R por se lhe negar, sem qualquer razão, a possibilidade de
exame das categorias do processo levando em conta a dupla também acusar, mas, principalmente, por admitir que a sua
perspectiva. tarefa mais importante, decidir a causa, é fruto de uma
consciente e meditada opção entre duas alternativas, em
3.2.2.1. Da Perspectiva Estática do Processo: Poderes, relação às quais se manteve, durante todo o tempo,
Deveres, Direitos, Ônus e Faculdades dos Sujeitos eqüidistante.
Processuais Carnelutti assevera, pois, que justamente da
contraposição entre acusação e defesa, perante um juiz
I. DO JUIZ imparcial, surgem as condições indispensáveis à eleição da
melhor solução. Convém, nestes termos, reproduzir a
Carnelutti151 sublinha exatamente, na perspectiva preciosa lição do mestre italiano:152
estática do processo, que este pode ser visto como uma
categoria que simultaneamente envolve, enlaça, uma série de La verdad es que si el desdoblamiento, del
relações jurídicas, ou seja, de poderes e deveres do juiz, das cual se há hablado, entre el juez y el ministerio
partes e de terceiros, visualizando-se sua dinâmica a partir público, o sea entre jurisdicción y acción, es
do procedimento adotado, ou, dito de outra forma, da necesario para la garantía de la imparcialidad y,
maneira como os atos processuais, em realidade, com ésta, para la justicia del castigo, no es, sin
ordenadamente se sucedem. embargo, suficiente. Al final, el juez debe tomar
Sendo assim, a natureza verdadeiramente acusatória de una decisión; y decidir quiere decir elegir... Es
um princípio processual constitucional demanda, para claro que tanto mejor está el juez en situación de
verificar-se, não só a existência de uma acusação (mesmo os elegir más claramente se le presentan delante las
dos soluciones posibles. El peligro es que la duda
151 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, México: Editorial
Pedagógica Iberoamericana, 1994. 152 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, p. 302.
no se le presente, no que él sea atormentado por É claro que, nestes termos, o juiz não estará em
ella. Ahora, bien, el medio para proponerle la duda condições de julgar e, portanto, deverá ser excluído e
es el contradictorio; ayuda aquí la raíz común substituído, se não oferecer às partes suficiente credibilidade
(duo) de dubium y duellum. Per eso, la separación quanto à sua imparcialidade.
del ministerio público respecto del juez, es decir, de A rigor, a imparcialidade do juiz é vista a partir de dois
la acusación respecto del juicio, no basta para parâmetros: há os casos de impedimento, pelos quais se
garantizar la justicia de este último. El ministerio objetiva excluir o juiz que possa ter interesse no resultado da
público, si está solo junto al juez, es insuficiente. La causa; e existem as hipóteses de suspeição, normalmente
acusación debe ser contrapesada y por eso voltadas a permitir a substituição do juiz interessado nas
integrada por la defensa. partes. De modo geral, as questões que envolvem o primeiro
conjunto ² causas de impedimento ² são impessoais, mas
A posição equilibrada que o juiz deve ocupar, durante o guardam certo vínculo direto com a pessoa do magistrado,
processo, sustenta-se na idéia reitora do princípio do juiz enquanto as causas de suspeição são dotadas de caráter
natural ² garantia das partes e condição de eficácia plena da predominantemente pessoal (ex. da primeira: ter o juiz
jurisdição ² que consiste na combinação de exigência da funcionado anteriormente, no mesmo processo, como perito;
prévia determinação das regras do jogo (reserva legal da segunda: ser o juiz amigo pessoal da vítima).
peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do No processo penal brasileiro a existência do inquérito
juiz, tomada a expressão no sentido estrito de estarem judicial para apurar crimes falimentares ± artigos 103 e
seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a seguintes do Decreto-lei n. 7.661/45 ± instituía investigação
priori a uma das alternativas de explicação que autor e réu criminal preliminar, preparatória para o exercício da ação
reciprocamente contrapõe durante o processo. penal condenatória, em tese dirigida pelo juiz154. Embora na
Com efeito, o juiz que antecipadamente está em prática o juiz pouco participasse do inquérito judicial, parece
condições de ajuizar a solução para o caso penal (que em evidente que não ostentaria a qualidade exigida para exercer
algumas hipóteses sequer foi objeto de pretensão do jurisdição, tal seja, a imparcialidade mencionada linhas
interessado), na prática torna dispensável o processo, pois
tem definida a questão independentemente das atividades
probatórias das partes, comportamentos processuais que
devem ser realizados publicamente e em contraditório.
154
Ocorre que o devido processo legal só constitui, de fato, 1D WHQWDWLYD GH VDOYDU D ³FRQVWLWXFLRQDOLGDGH´ GR LQTXpULWR MXGLFLDO GD
mecanismo civilizado de resolução de causas se o resultado falência autores chegaram a defender a existência de contraditório neste
inquérito. Sustentou-se que o artigo 106 da antiga Lei de Falências previa a
não puder ser determinado antecipadamente, isto é, só há resposta do falido, em cinco dias, e que isso equivalia ao contraditório. Parece
processo penal real se no início do procedimento ambas as evidente que a noção de contraditório aí é bastante lmitada, comparável à idéia
teses ² de acusação e de resistência ² puderem ser de contraditório no inquérito policial, no artigo 14 do Código de Processo Penal,
que estabelece a possibilidade de o Delegado de Polícia realizar diligências
apresentadas em condições de convencer o juiz (Otto requeridas pelo investigado. Em verdade, o procedimento do inquérito judicial
Kirchheimer153). era inquisitorial, conduzido pelo síndico da falência e pelo perito, com apoio do
Ministério Público e na prática sob as ordens dos funcionários do cartório onde
era processada a falência. Tudo, praticamente, sem intervenção do falido.
153 Kirchheimer, Otto. Justicia Política, México: Unión Tipográfica Editorial Recomenda-se a leitura de Lei de Falências Comentada, 2ª ed., de Manoel
Hispano Americana, 1968. Justino Bezerra Filho, São Paulo, RT, 2003, p. 346-7.
atrás.155 necessário garantir que, independentemente da integridade
A Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que passou a pessoal e intelectual do magistrado, sua apreciação não
regular a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do esteja em concreto comprometida em virtude de algum juízo
empresário e da sociedade empresária estabelece o inquérito apriorístico.
policial como método de investigação, a ser instaurado por Trata-se aqui, talvez, de uma compreensão invertida da
ordem do Ministério Público, nos termos do artigo 187, e fixa máxima pela qual não basta à mulher de César ser honesta.
a competência do juiz criminal da jurisdição onde tenha sido No caso, ao juiz não é suficiente parecer honesto; terá de sê-
decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou lo verdadeiramente, inclusive do ponto de vista intelectual.
homologado o plano de recuperação extrajudicial para Exemplo claro de causa de impedimento, derivada desta
processar e julgar o caso. ordem de coisas, reside na impossibilidade de o juiz que
Com isso, a Nova Lei de Falências aproxima-se do tenha requisitado a instauração de inquérito policial vir a
modelo constitucional, pois que de forma intencional cria as processar e julgar acusado em processo penal iniciado em
condições necessárias ao julgamento do caso com razão desta investigação.
imparcialidade.156 Observe-se que nesta hipótese o juiz poderá se sentir
Voltando à regra fundamental é preciso destacar, no habilitado a apreciar com isenção as teses que a Defesa
entanto, que nas hipóteses de impedimento e suspeição a venha a apresentar. Todavia, o réu não poderá confiar em
filosofia que orienta a preservação da imparcialidade deve um juiz que, independentemente de qualquer causa penal, já
cuidar de restringir os casos de recusa do juiz, desde que não se manifestou a princípio pela existência de uma infração
prevaleça o pensamento autoritário que dedica ao penal, ainda que ao nível de um juízo sumário, provisório e
magistrado função punitiva, em substituição àquela que as superficial.
constituições lhe impõem juridicamente, tal seja, a de De fato, nestas circunstâncias, poderá haver inversão do
apreciar e resolver de forma isenta a questão levada a juízo. ônus da prova, com o réu se sentindo impelido a demonstrar
A questão da imparcialidade do juiz, conforme o que o juiz inicialmente não tinha razão. A confiabilidade das
princípio acusatório, contudo, não fica limitada aos termos partes na isenção do juiz emerge como condição de validade
postos anteriormente. O exercício da jurisdição, em um jurídica dos atos jurisdicionais. Ausente tal requisito
Estado Constitucional Democrático, está, tanto quanto o estaremos diante de atos absolutamente nulos.157
exercício de qualquer outro poder no âmbito deste Estado, Também por esse motivo o antigo inquérito judicial da
condicionado a regras de impessoalidade. falência, citado neste tópico, violava o princípio acusatório e
Não basta somente assegurar a aparência de isenção dos era inconstitucional.
juízes que julgam as causas penais. Mais do que isso, é
II. DA ACUSAÇÃO
155
Pelo artigo 109 do citado decreto, o juiz da falência era competente para
receber ou rejeitar a denúncia. Somente depois de proferir essa decisão é que Por igual, não se deve controverter a respeito do
deveria transferir o processo para o juiz criminal (§2º).
156
Objeções acerca do conhecimento técnico de que deve estar dotado o juiz 157 Esta foi a conclusão do e. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do
criminal, nestes casos, devem ser superadas pela idéia de que nos dias atuais os RHC nº 4.769-PR, 6ª Turma (j. 7/11/1995 ± RT 733/530), rel. Ministro
magistrados deverão estar continuamente se aprimorando e se preparando para Luiz Vicente Cernicchiaro, malgrado o e. Supremo Tribunal Federal não
as sofisticadas causas criminais com que se deparam. Isso, é evidente, sem tenha se sensibilizado totalmente com a tese (Habeas Corpus nº 68.784, 1ª
prejuízo da prova técnica que caracteriza a maioria destes processos. Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJU 26/3/1993, p. 5.003).
significado e alcance daquilo que se entende por acusação. podem não se confundir, haja vista o fenômeno da jurisdição
Não se trata, a nosso juízo, somente de oferecer uma petição sem ação, acima mencionado, o certo é que o princípio
inicial, em processo penal pelo qual se pretenda a acusatório funde acusação e ação penal, justamente por não
condenação de alguém. admitir a existência de processo condenatório sem iniciativa
Não se resume a isso, a só um ato, de acordo com da parte autora (nemo iudex sine actore), e, em vista dele,
Conso,158 mas, sem dúvida, acusar implica em referir-se a somente se a ação penal for proposta e desenvolvida ao longo
uma função e ainda a um órgão, a um conjunto de atos e a do processo haverá, após a contraposição da atividade de
um determinado sujeito. defesa, autorização jurídica para a prolação de decreto
Conso, todavia, assevera que acusação e ação penal condenatório.
condenatória não se confundem, uma vez que haveria, em Aqui não é lugar (ou hora) para a crítica sobre o
algumas situações excepcionais, acusação sem exercício da conceito de ação transplantado do processo civil para o
ação penal.159. penal. Ainda assim, é conveniente que sejam feitos alguns
É necessário ter em mente que a acusação cuida da esclarecimentos.
atribuição de uma infração penal, em vista da possibilidade O leitor perceberá que as ações condenatórias que se
de condenação de uma pessoa tida provavelmente como entrega ao Ministério Público, no Brasil, são obrigatórias
culpável, enquanto a ação penal consiste em ato da parte (desde que haja indícios de autoria e da existência da
autora, concretado por sua dedução formal em juízo. infração penal). Como o conceito de ação elaborado pelo
Conso refere-se, indiscutivelmente, ao processo penal processo civil, em fins do século XIX, estava historicamente
de ofício, muito semelhante ao procedimento penal vinculado ao de direito subjetivo, para atender a exigências
brasileiro previsto para as contravenções e crimes de políticas concretas fundadas na ideologia liberal da época, as
homicídio e lesões corporais culposos, a partir do artigo 531 marcas dessa categoria (ação civil) foram igualmente
do Código de Processo Penal, e da Lei no 4.611/65, não transmitidas à ação penal.
recepcionados pela Constituição da República em vigor.160 O simples fato de colocar o Ministério Público no lugar
Cremos, no entanto, que, se acusação e ação penal da vítima simboliza a impropriedade de pensar a ação penal
nos moldes liberais de defesa de direitos disponíveis (origem
158 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali,
da noção do direito de ação civil).
Capacità Processualle Penale, p. 7. Até mesmo nos sistemas jurídicos que adotam o
159 Idem, pp. 13-14. princípio da oportunidade da ação penal pública (o
160
O desaparecimento dos processos condenatórios instaurados de ofício, pelo Ministério Público tem margem de decisão sobre acusar ou
juiz, por auto de prisão em flagrante ou portaria, e ainda iniciados da mesma QmR  D ³OLEHUGDGH´ GR 0LQLVWpULR 3~EOLFR p LQFRQIXQGtYHO
forma pela autoridade policial (artigo 531 do Código de Processo Penal), não fez
desaparecer o procedimento sumário. No caso, caberá ao titular da ação penal FRP D ³IDFXOGDGH´ GR DXWRU FLYLO $ OLEHUGDGH GR 0LQLVWpULR
iniciar o processo mediante oferecimento de denúncia (artigo 129, I, da Público estará sempre dirigida pelo princípio da legalidade,
Constituição da República) ou queixa (ação penal privada) e depois disso o protegendo a comunidade das decisões pessoais de cada
procedimento seguirá com o recebimento da inicial, citação e interrogatório do
acusado, audiência das testemunhas arroladas pela acusação e audiência de integrante da referida instituição, enquanto as motivações
instrução e julgamento, com a inquirição das testemunhas arroladas pela Defesa estritamente pessoais podem estar na base da decisão de não
e a apresentação de alegações finais orais. Este procedimento está se promover a ação civil clássica.
expressamente indicado na Nova Lei de Falências (artigo 185 da Lei n.
11.101/05) e será aplicado exceto no caso de infração penal de menor potencial No entanto, a decisão de instaurar um processo penal
ofensivo contemplado na citada lei. condenatório será de um sujeito distinto do juiz.
A nosso juízo, o princípio acusatório, avaliado corporificação da acusação ², obedece-se também a uma
estaticamente, consiste na distribuição do direito de ação, lógica de distribuição de funções que respeita a divisão entre
do direito de defesa e do poder jurisdicional, entre autor, os poderes do Estado, bem ao estilo proclamado por
réu (e seu defensor) e juiz. Tal consideração conduz ao Montesquieu, como observa, percucientemente, Karl-Heinz
esclarecimento, pelo menos sucinto, do que se considera Gössel.164
direito de ação penal condenatória. Assim compreendida a ação penal, o princípio
Vale a pena tornar a sublinhar que para a maioria dos acusatório postulado demandará, para sua real fixação, na
doutrinadores o direito de ação é concebido como direito via do autor, a determinação de algumas premissas:
público subjetivo, instrumentalmente conexo à pretensão de ‡RGLUHLWRGHDomRWDQWRFRPRRGHGHIHVDHVWiYROWDGR
exigir do Estado a prestação jurisdicional, em determinado à conformação da decisão jurisdicional, em um caso
caso concreto, isso ao menos desde a evolução iniciada em penal concreto;
meados do século XIX, com o desdobramento das posições ‡ p H[HUFLWDGR SRU SHVVRD RX yUJmR GLVWLQWR GDTXHOH
ardorosamente defendidas por Windscheid (La acción del constitucionalmente incumbido de julgar;
derecho civil romano desde el punto de vista del derecho ‡ QmR VH OLPLWD D LQLFLDU R SURFHVVR SRLV R DXWRU
actual) e Muther (Zur Lehre von der Römischen Actio),161 pretende ver a pretensão que deduz reconhecida,
passando por Adolf Wach, até chegar aos dias de hoje. embora o não-reconhecimento não implique em
Não se esgota, porém, na simples provocação do Estado, afirmar-se a inexistência do direito de ação;
primeiro ato do exercício do citado direito.162 ‡ LQFOXL SRU FHUWR R GLUHLWR Ge provar os fatos que
Assim compreendido o direito de ação - e naturalmente consubstanciam a acusação deduzida e de debater as
o direito de defesa ± aquele foi percebido por Ada Grinover questões de direito que surgirem;
como não limitado ao poder de impulso, e, no caso da defesa, ‡DDFXVDomRLQWHJUDRGLUHLWRGHDomRH QDPHGLGDHP
ao recurso às exceções, englobando o conjunto de garantias que dela se defenderá o acusado, delimita o objeto da
que, no arco de todo o procedimento, asseguram às partes a contenda, tal seja o objeto pretensamente litigioso do
possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de produzirem processo;
suas provas, de aduzirem suas razões, de recorrerem das ‡ H SRU ILP OHJLWLPD R DXWRU D SUHSDUDU-se
decisões, de agirem, enfim, em juízo para a tutela de seus adequadamente para propô-la, na medida em que,
direitos e interesses.163 afetando gravemente o status dignitatis do acusado,
Visto dessa forma, pode-se acrescentar, relativamente à não deve decorrer de um ânimo beligerante temerário
ação penal condenatória, que, ao atribui-la a sujeitos ou leviano, mas fundar-se em uma justa causa
distintos daquele que julgará o pedido formulado ² seu (indícios de autoria e da existência da infração penal).
SULQFLSDO HOHPHQWR H MXQWR FRP D ³FDXVD GH SHGLU´
Com efeito, visto pela perspectiva do direito de ação o
princípio acusatório inclui entre seus elementos o princípio
161 Chiovenda, Giuseppe. La Acción en el Sistema de los Derechos, Bogotá:
Temis, 1986. Muther, Theodor e Windscheid, Bernhard. Polemica Sobre La
³$FWLR´%XHQRV$LUHV(GLFLRQHV-XULGLFDV(XURSD-America, 1974.
162 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, pp. 164 Gössel, Karl-+HLQ] ³Ministerio Fiscal y Policia Criminal en el
282-291; Afrânio Silva Jardim, Ação Penal Pública: Princípio da 3URFHGLPLHQWR 3HQDO GHO (VWDGR GH 'HUHFKR´, in Cuadernos de Política
Obrigatoriedade, p. 33; e Grinover, As Garantias Constitucionais, ob. cit. Criminal, nº 60, Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1996, pp. 614-
163 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, p. 11. 616.
da demanda, que não se confunde com o princípio situações.168
dispositivo, corrente no processo civil, bem como não lhe é Finalmente, há, na referida resenha de Barbosa
contraposto, em que pese a opinião de alguns autorizados Moreira, menção ao princípio da demanda, sob a designação
doutrinadores165. Da mesma maneira, enquanto princípio de de parteibetrieb, integrado pelo poder de instauração do
iniciativa do processo, não está prejudicado pela processo, diferente do princípio dispositivo stricto sensu,
obrigatoriedade da ação penal, no caso brasileiro, da pública. visto como poder de dispor sobre o objeto do processo já
Para efeito de distinguir o princípio acusatório do pendente.
dispositivo é precioso assinalar quais são os elementos Pensamos que, por princípio dispositivo, há de se
habitualmente invocados como componentes do segundo, entender aquele que permita dispor sobre o objeto do
como o faz Barbosa Moreira,166 sublinhando os pontos processo em tramitação, não sendo caracteristicamente
sensíveis da problemática, que envolvem, quase sempre, os acusatório ou inquisitório. Em processo por crime de ação
seguintes aspectos: iniciativa da instauração do processo; penal privada, conforme o Direito brasileiro, ocorrerá a
delimitação do objeto do litígio e do julgamento; impulso perempção, por exemplo, sempre que o autor abandonar o
processual; aquisição do material de fato e de direito a ser processo (artigo 60 do Código de Processo Penal),
utilizado na motivação da sentença; extinção do processo por implicando em verdadeira disposição sobre o conteúdo
ato dispositivo. deste.
Conforme aduz o ilustre processualista, a doutrina De outra maneira, não é impensável um procedimento
alemã caminhou em direção à tendência de distinguir duas inquisitorial, iniciado para apurar o cometimento, por
classes de situações, uma relacionada com a liberdade do alguém, de uma infração penal, que não se conclua por
titular do direito de utilizar ou não o instrumento do deliberação exclusiva do juiz-inquisidor, motivado por
processo para a respectiva vindicação, outra com o modo questões de política criminal.
de funcionar do mecanismo processual no tocante aos fatos É bem verdade que principalmente no direito
e à prova destes,167 prevalecendo, atualmente, a concepção estrangeiro há quem vincule o princípio dispositivo ao
em relação à qual por princípio dispositivo compreende-se o princípio acusatório, em virtude da possibilidade de retirada
poder de decidir sobre a instauração do processo, respectiva da acusação ou pedido de absolvição influindo na
subsistência, e delimitação do litígio, enquanto um princípio determinação da concreta providência a que o tribunal
de debate se caracterizaria pelos poderes de aquisição e estaria conectado.169
introdução das provas no processo. Badaró irar usar as A nosso juízo, porém, a questão corretamente enfocada
expressões princípio dispositivo material e princípio envolve a natureza do direito material em disputa e a
dispositivo processual para distinguir as mesmas consideração que se faça, em um determinado contexto
histórico e político, a respeito do titular deste direito.
Como atualmente predomina a concepção da natureza
165 Chiavario, Mario. Processo e Garanzie Della Persona, p. 5. É valioso
investigar a conceituação aceita por Gustavo Badaró acerca do princípio 168
dispositivo. Ônus da Prova no Processo Penal, São Paulo, RT, 2003, p. 96 - Badaró, ob. cit., p. 97-98.
100. 169 Asencio Mellado, José Maria. Principio Acusatorio y derecho de defensa en
166 Moreira, José Carlos Barbosa. O Problema da Divisão do Trabalho entre el proceso penal, Madrid: Trivium, 1991, p. 22. É a posição de Paulo
Juiz e Partes, p. 35. Rangel, em Direito Processual Penal, 8ª edição, Rio de Janeiro, Lumen
167 Moreira, José Carlos Barbosa. Ob. cit., pp. 39-40. Juris, p. 63-65.
pública do conflito de interesses penal, que se transforma em Isso não significa dizer que o juiz está autorizado a
caso penal, sendo a sanção penal170 pública e portanto condenar naqueles processos em que o Ministério Público
resultante de uma atribuição estatal, a vedação cada vez haja requerido a absolvição do réu, como pretende o artigo
menos rigorosa à disponibilidade do conteúdo do processo 385 do Código de Processo Penal brasileiro172.
penal está guiada pela assunção do interesse público Pelo contrário. Como o contraditório é imperativo para
subjacente. a validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de
Diferente seria se inseríssemos a ação penal outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua
condenatória em um contexto meramente formal, em virtude decisão condenatória em provas ou argumentos que não
do qual pudéssemos confundi-la exclusivamente com o tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença
poder de iniciativa, quando então todos os demais atos, dos condenatória proferida quando a acusação opina pela
quais os de instrução são talvez o principal exemplo, absolvição.173
ficassem à mercê dos poderes de investigação do juiz. Não O fundamento da nulidade é a violação do contraditório
haveria aí disponibilidade do conteúdo do processo não (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República).
porque a natureza jurídica do direito material levado à pugna &RPR GHVWDFD %DGDUy ³D UHJUD GD FRUUHODomR HQWUH
a interditasse, mas por força de ser o juiz e não o dominus acusação e sentença é uma decorrência do princípio do
litis, isto é, o Ministério Público, a personificação do Estado FRQWUDGLWyULR´174 Avançando sobre o tema, o culto professor
como titular do direito material em questão. paulista sublinha que, na atualidade, não é correto limitar a
E a rigor quem não é o titular do direito dele não pode idéia ± e o alcance ± do contraditório apenas ao debate sobre
abdicar. Também seria diferente se admitíssemos a retirada questões de fato.175 Também as questões de direito estão
da própria acusação e, apesar disso, a emissão de sentença afetas ao contraditório, pois que podem estar marcadas pela
de mérito pelo juiz. Neste outro caso, teríamos de concordar controvérsia a ser esclarecida mediante escolha entre duas
com Mellado e assinalar que a decisão judicial importaria em ou mais teses pertinentes ao mesmo tema.176
verdadeiro exercício de acusação de ofício, pelo tribunal.171
Mas como o critério de disponibilidade deve ser ditado
172
pelo direito positivo, levando em conta a natureza do direito O texto no corpo do livro, seguinte à nota, foi incluído na terceira
de punir (aspecto material e não processual), vinculando edição para sanar qualquer dúvida acerca da posição do autor sobre
o tema.
obrigatoriamente o Ministério Público naqueles casos 173
Não é este o entendimento do Supremo Tribunal Federal. No acórdão
reputados de prevalecente interesse público pelo legislador, proferido em HC 82.844/RJ, 2ª Turma, Relator Min. Nelson Jobim, publicado
o princípio dispositivo em si, relacionado com a disposição em 28/05/04, fixou-se que é significativo o fato de o Ministério Público ter
sobre o objeto do processo, não integra ou se opõe ao sugerido a absolvição do réu, sugestão acatada pelo juiz de primeiro grau, para
determinar a absolvção. No caso o Assistente do Ministério Público recorreu da
princípio acusatório, sendo importante, porém acidental. A sentença absolutória e obteve a condenação em segundo grau. Esta condenação
prevalência do interesse público tem a ver com a inibição da foi atacada por Habeas Corpus.
174
iniciativa particular a remarcar o caráter não vingativo mas BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy. Correlação entre acusação e
de composição do processo penal. sentença, São Paulo, RT, 2000, p. 27.
175
Idem, p. 32.
176
170
Exemplo disso é a questão sobre a insignificância de determinada ação não
A sanção penal é tomada como conseqüência jurídica da infração penal negada pelo réu. O único debate no processo pode ser acerca da qualificação de
perseguida pela atividade processual do autor da ação penal. comportanto insignificante ± e atípico ± ou não. Negar o contraditório sobre
171 Asencio Mellado, José Maria. Ob. cit., p. 23. este ponto é esvaziar o princípio constitucional e retornar ao tempo do
Assim, quando em alegações finais o Ministério Público impedido de recorrer da sentença absolutória, apesar dos
opina pela absolvição do acusado o que ocorre em concreto, termos do artigo 598 do Código de Processo Penal, pois a
no processo, é que o acusador subtrai do debate condenação em segundo grau violará, ela própria, o
contraditório a matéria referente à análise das provas que contraditório e a correta função do segundo grau, definida no
foram produzidas na etapa anterior e que possam ser Pacto de São José da Costa Rica, que prevê recurso exclusivo
consideradas desfavoráveis ao réu. Como a defesa poderá da Defesa.
reagir a argumentos que não lhe foram apresentados? Esta é, Voltando ao ponto inicial: nos processos inquisitórios
em resumo, a posição de Santiago Martínez, ao avaliar a nada obsta a que o juiz/acusador desista do processo e o
posição dos tribunais argentinos sobre o assunto.177 encerre mediante arquivamento. Isso não transformará o
É interessante notar certa peculiariade do processo processo inquisitório em acusatório.
penal brasileiro: a figura do Assistente de Acusação. Com No processo acusatório, porém, o juiz não poderá
previsão no artigo 268 do Código de Processo Penal, o condenar o réu diante de um requerimento/alegação final do
Assistente poderá habilitar-se ao processo e participar dos acusador (Ministério Público ou querelante) pela absolvição,
atos processuais. Em alegações finais o Assistente se sob pena de ofender o contraditório.
pronunciará antes da Defesa. Ultrapassada esta fase, as demais questões são, a nosso
Nestes termos, se o Assistente do Ministério Público, juízo, próprias do princípio acusatório, uma vez que se
devidamente habilitado, se pronunciar em alegações finais referem ao poder de iniciativa (demanda, com exclusão,
pela condenação, opondo argumentos que poderão ser portanto, da atuação inquisitorial do juiz), delimitação do
respondidos pela Defesa, a exigência do contraditório terá objeto (por meio da acusação, elemento da própria ação
sido atendida. penal) e demonstração da verdade dos fatos e argumentos
No caso do direito brasileiro o ofendido fiscaliza a (direito à prova).179
obrigatoriedade do exercício da ação penal pública (artigo Por sua vez, a oficialidade do processo penal
5º, inciso LIX, da Constituição da República). Essa condenatório e a obrigatoriedade da ação penal pública,
fiscalização é realizada, via de regra, por meio da ação penal
privada subsidiária da pública (artigo 29 do Código de Processo Penal), há também a possibilidade de inércia superveniente, a ser
Processo Penal). Todavia, se a ação pública foi combatida pela atuação do Assistente.
179 Em excelente trabalho, intitulado Direito à Prova no Processo Penal,
oportunamente proposta, fica para o ofendido apenas a Antonio Magalhães Gomes Filho traça o perfil do que conceitua como direito à
possibilidade de acompanhar o processo, habilitando-se prova, lembrando que a inserção da figura do juiz, como protagonista da tarefa
como assistente178. Caso não o faça, creio que estará de aquisição das provas, representou uma postura metodológica fundada no
escopo específico do processo, subordinado ao ideal de defesa social contra a
delinqüência, e inspirado num conceito de Estado que pretendia organizar a
vida dos indivíduos e conduzir a sociedade. Por sua vez, a aceitação da prova
paleopositivismo, abandonado pela ideologia de princípios da Constituição da
como direito das partes, conseqüente aos direitos de ação e de defesa,
República de 1988, no Brasil.
177 pressupunha uma organização estatal preocupada apenas em manter o
MARTÍNEZ, Santiago. La acusacion como presupuesto procesal y alegato equilíbrio social, preservando a autodeterminação dos indivíduos. Acatando-se
absolutorio del Ministerio Publico Fiscal,: observaciones sobre una cuestión uma visão não interventiva do Estado, no campo processual, chega-se, conforme
recurrente, Buenos Aires, Fabian J. Di Placido, 2003. Gomes Filho, a uma concepção de prova como argumentum, que não pode
178
Por coerência sistêmica não se pode esquecer que o direito de ação é prescindir do momento de persuasão, sendo a verdade por ela perseguida
exercido pelo Ministério Público ao longo do processo, não se esgota com a própria das coisas humanas, que sem a pretensão de ser absoluta, não exclui
apresentação da denúncia. Assim, além da inércia inicial, superável pelo uma probabilidade contrária, mas é escolhida por razões de caráter ético (O
oferecimento de queixa substitutiva da denúncia (artigo 29 do Código de Direito à Prova no Processo Penal, São Paulo: RT, 1997, p. 39).
malgrado reflitam uma postura de preocupação com o valor juridicamente inibidor da propositura da ação penal. Assim,
segurança e, por igual, intransigência referente à apuração e o juiz fica excluído, por imperativo lógico, da tarefa de
repressão das infrações penais, não desnaturam a controlar o princípio processual da obrigatoriedade, quando
acusatoriedade do processo, na medida em que a ação penal exigível, nos casos de não-exercício da ação penal182.
não é deduzida por quem haverá de julgá-la, não implicando Acrescente-se, por oportuno, ao ensejo de se conceber
sempre, ou necessariamente, em que o réu se veja diminuído um princípio de obrigatoriedade, que não exclui a
em suas condições de resistência. acusatoriedade nem com ela se confunde, mas se contrapõe
Neste sentido, Navarrete tem completa razão ao frisar tão-somente aos princípios de conveniência e
que, frente a tendências doutrinárias amparadas oportunidade183, que tal obrigatoriedade impelirá o órgão de
principalmente no modelo alemão, alguns doutrinadores acusação a se interessar pelo desenvolvimento das
opõem-se, sem razão, ao reconhecimento de um processo de investigações criminais necessárias à colheita de material
partes, salientando unicamente a existência de partes que sirva ao propósito de demonstrar a viabilidade da
formais.180 pretensão que se deseja deduzir.
Tal concepção, sob a ótica de Navarrete, não reproduz a Sendo assim, ainda na fase pré-processual é possível
verdade dos fatos, porquanto o órgão acusador funciona vislumbrar o princípio da acusatoriedade, o qual aparecerá
substancialmente como parte, interessado no proveito de sempre que, de algum modo, o titular da ação penal atuar
direito material perseguido, em virtude do qual atuará com vista à aquisição de elementos de formação da convicção
durante o processo.181 judicial, mesmo que superficial, voltada ao recebimento da
Esta é, também, a razão por que há de ser prestigiada a denúncia ou queixa.
autonomia do acusador (Ministério Público ou ofendido), até É imperioso ressaltar, sobre este tópico, que também o
mesmo no que respeita à convicção da ausência do suporte princípio acusatório, refletindo o duelo entre acusação e
mínimo probatório ou da presença de algum fator defesa, obstará o reconhecimento da validade dos meios de
prova adquiridos e conservados nesta fase pré-processual,
180 Lorca Navarrete, Antonio María. El Proceso Penal de La Ley de
salvo no tocante ao objetivo de conferir suporte mínimo
Enjuiciamiento Criminal, p. 52. probatório à pretensão ou se a defesa intervier, plenamente,
181 Em realidade, se Carnelutti está certo, quando assevera que a atitude de corroborando para a sua aquisição, em atividade
advocatus diaboli, adotada pelo Ministério Público, ao início e durante o
processo penal, é imprescindível à conformação dialética do processo de partes
antecipatória da aquisição e preservação de provas para o
(e à operação do princípio acusatório, acrescentamos), motivo por que deve futuro, sob o signo do contraditório, conforme o modelo das
resultar de uma autêntica convicção do órgão de acusação sobre a procedência providências cautelares.
do seu pedido. É inegável, também, a correção da tese contida na observação de
Jorge de Figueiredo Dias, no sentido de que, ao Ministério Público interessa
incondicionalmente o descobrimento da verdade e aplicação da justiça, III. DA DEFESA
atendendo a critérios de estrita legalidade e objetividade. Em vista disso,
compreende-se possa o Promotor de Justiça pedir a absolvição do acusado se,
ao final do processo, estiver convencido da inocência dele, ou recorrer a favor do
condenado. Nestas duas hipóteses, não há prejuízo à máxima acusatoriedade
182 É a posição de Marcellus Polastri Lima, avançada em Curso de Processo
possível, isto porque, ao longo do processo de conhecimento, funcionou
plenamente a estrutura dialética, ensejando a produção, em síntese, de um Penal, vol. 1, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 147-150, neste passo
convencimento oposto ao da pretensão deduzida mas conforme os princípios de simétrica a de Paulo Rangel (Direito Processual Penal, op. cit., p. 182).
183
justiça, a que o Ministério Público rende vassalagem (Sobre os Sujeitos Princípios que, de acordo com determinados modelos, conformam o
Processuais no Novo Código de Processo Penal, p. 25). chamado espaço de consenso.
Por sua vez, sobre a Defesa é válido relembrar a lição de dependerá de o Estado atuar ele próprio conforme o Direito.
Jorge de Figueiredo Dias, referida anteriormente: Daí, no entanto, é impossível conceber soluções de
compreende-se como categoria aberta, à qual devem ser natureza penal que não levem em conta tal verdade,
imputados todos os concretos direitos, de que o arguido contentando-se com comportamentos processuais do
dispõe, de co-determinar ou conformar a decisão final do imputado, pois quando isso ocorre termina anulada a
processo.184 Isso coloca o acusado, e, dadas as atuação da Defesa em busca da efetivação da contraposição
especificidades técnicas relativas ao mecanismo de co- dialética no processo.
determinação e conformação da decisão judicial, também A marca característica da Defesa no processo penal está
seu defensor, na condição de sujeitos de direitos, deveres, exatamente em participar do procedimento, perseguindo a
ônus e faculdades. tutela de um interesse que necessita ser o oposto daquele a
É preciso pontuar a tendência acentuada, revelada nos princípio consignado à acusação, sob pena de o processo
últimos anos, de comprimir o espaço do direito de defesa no converter-se em instrumento de manipulação política de
processo penal. Ora o direito de defesa é substituído por pessoas e situações.
comportamentos processuais do acusado, aos quais se O espaço de consenso deve ser medido cuidadosamente,
atribui eficácia jurídica no plano da resolução da questão para evitar prejuízo ao princípio acusatório, observando ao
principal ² assim são as chamadas soluções de consenso ², menos:
ora pura e simplesmente este espaço é reduzido, a pretexto a) que a publicidade interna do procedimento no
de controlar as formas graves de criminalidade que estão se interior do qual se pretende desenvolver a solução
manifestando nos dias atuais. consensual não seja restringida. Restrição dessa
Como ao nosso juízo o princípio acusatório se ordem equivale a recusar ao imputado acesso a
distinguirá do inquisitivo não somente em virtude da informações vitais para balisar sua conduta
diferenciação forçada entre acusação e julgamento, portanto, processual e isso independe da formalização da
entre acusador e juiz, tarefas a cargo de sujeitos que não se condição de acusado;
confundem, entrará em cena aí a problemática derivada das b) que o imputado tenha à sua disposição todas as
novas maneiras de o imputado participar do processo. informações necessárias a respeito do significado da
Com efeito, desde o início salientamos que a adoção dos comportamentos processuais possíveis,
legitimidade democrática do processo penal - e da solução com esclarecimentos acerca das conseqüências de
que ele adjudica - depende do valor de verdade adotar tal ou qual caminho;
consubstanciado na sentença. c) que o imputado possa até mesmo agregar
A verdade é aí concebida como relação possível ou informações relevantes para que se decida sobre a
adequada entre a imagem que o juiz constrói acerca do fato e conveniência da aplicação das medidas consensuais,
a forma real como este fato supostamente ocorreu. É claro, exercitando contraditório compatível com a espécie
tivemos a oportunidade de ressaltar, que a verdade que se de procedimento simplificado, que de um modo geral
pode alcançar no processo e que oporá esta forma de identifica as espécies de solução de consenso;
solução, baseada no saber, a outras, fundamentadas em d) finalmente, que não haja redução ou eliminação da
convicções de variada natureza, é contingente e histórica e presunção de inocência, com inaceitável inversão do
ônus da prova mediante pressão sobre o imputado
184 Ver nota nº 122. para que aceite soluções consensuais, muitas vezes
orientadas pragmaticamente ao fim de desafogar os busca de suporte probatório, pelo acusador, para
serviços judiciários, com independência da justiça posteriormente deduzir sua acusação, e as atuações durante
das composições185. a fase preliminar, voltadas à limitação ao exercício de
direitos fundamentais do imputado.
O princípio acusatório pode igualmente aparecer Há atos de investigação que precisam permanecer sob
prejudicado de forma séria, no plano da Defesa, quando sigilo, durante algum tempo, sob pena de fracassarem os fins
estivermos diante das modalidades de procedimento cujo da própria investigação. Entre eles não se inclui, certamente,
objeto se caracteriza por ser infrações penais consideradas a produção antecipada de provas, que somente estará
graves. justificada diante do risco de perda da prova em virtude da
Com efeito, a limitação da publicidade interna do natural demora do processo, e as ações que visam restringir
procedimento afeta primordialmente o contraditório e deste o exercício de direitos fundamentais do imputado ² tais
modo atinge as posições defensivas, impedindo o imputado- como a prisão processual e a interceptação das comunicações
acusado e seu Defensor de terem acesso a informações telefônicas ², que só poderão ter validade jurídica se
importantes, de poderem contrariá-las e, destarte, de submetidas ao contraditório pelos menos diferido, isto é,
contribuírem para a formação da convicção do juiz. As realizado em um momento posterior ao da adoção da
estratégias de combate à criminalidade organizada, por meio providência187.
da infiltração de agentes policiais, do estímulo à cooperação Com isso, a compatibilidade com o princípio acusatório
de arrependidos e, principalmente, por conta das restrições dependerá de a Defesa concretamente estar em condições de
que impõem à publicidade interna do processo, negando ao participar em contraditório do processo com as
imputado participação nos procedimentos preliminares, características acima mencionadas.
mesmo quando se trata de medidas de natureza cautelar, Os atos de natureza cautelar que são levados a cabo sem
correspondem a métodos pré-modernos de atuação da audiência prévia da parte contrária - inaudita altera pars -,
justiça penal cujo propósito é tornar efetivo o direito penal a dependerão do contraditório a posteriori para estarem
qualquer preço.186 revestidos de validade jurídica.
Note-se que há significativa diferença entre a necessária De todo modo, quando as condições de participação da
Defesa são canceladas, os atos eventualmente realizados
185 podem estar entre dois extremos: são simplesmente
A violação da presunção neste caso ocorre quando o juiz ou o Ministério
Público advertem o autor do fato (artigo 76 da Lei n. 9.099/95) para os riscos de informativos, e o juiz não poderá considerá-los no processo.
recusar a proposta de aplicação direta de pena e partir para o processo Quando muito os levará em conta para ajuizar a presença de
WUDGLFLRQDO (VVD ³DGYHUWrQFLD´ HPEXWH FRQVLGHUDomR SUpYLD GD ³FXOSD´ GR justa causa para a ação penal; ou não valerão de modo
investigado, pessoa que segundo a Constituição da República deve ser tratada
como inocente (artigo 5º, inciso LVII). algum. Nesta categoria será possível inscrevermos a
186 De algum modo, todas estas formas eram conhecidas ao tempo em que
predominava, na Europa Ocidental, o processo inquisitorial de influência
eclesiástica. O e. Supremo Tribunal Federal tem enfrentado com freqüência a 187
questão e decidido pela inoponibilidade do sigilo do inquérito policial ao O procedimento das interceptações é autuado em apartado, nos termos da
advogado do indiciado. HC 82354 / PR ± PARANÁ HC - Relator: Ministro Lei n. 9.296/96. Permanece em sigilo durante o período de captação das
Sepúlveda Pertence. 1ª Turma. Julgamento em 10 de agosto de 2004. conversas telefônicas (prazo de quinze dias, prorrogável por mais quinze) e
Publicação: DJ DATA-24-09-2004 PP-00042 EMENT VOL-02165-01 PP- depois deve ser objeto de controle dos interessados. Ver do autor o livro Limites
00029. às Interceptações Telefônicas e a Jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005.
denominada delação premiada188, isoladamente insuscetível
de ser alcançada pelo contraditório, pois contrapõe com 3.2.2.2. Da Perspectiva Dinâmica do Processo: Da Atuação
exclusividade versões apresentadas por interessados, sendo dos Sujeitos Processuais
meramente uma questão de fé o convencimento dela
derivado. Na linha do que se refere ao autor, ao acusado e ao juiz,
Também neste âmbito se enquadra a infiltração, considerados estaticamente, são essas a nosso juízo as
medida que consiste, do ponto de vista filosófico, no fato de o principais observações. Como foi sublinhado antes, é hora de
Estado permitir aos seus agentes que participem pelo menos passarmos ao exame da dinâmica processual e ver como
do crime de formação de quadrilha a pretexto de controlar e reagem os diversos sujeitos à ação dos demais. Equivale à
combater a criminalidade. A par da grave concessão de tentativa de captar a atuação dos sujeitos como em um filme.
ordem ética, haverá sempre a possibilidade de se atribuir a É válido, no entanto, acrescentar, pelo que há de
priori valor superior às informações adquiridas desta comum a acusado e acusador, que a modalidade de
maneira em oposição aos demais elementos de convicção configuração dos respectivos estatutos jurídicos, erguida em
introduzidos no processo pelas partes, reconduzindo o bases de liberdade com responsabilidade, caracteriza a
sistema das provas tarifadas ao ambiente processual, moderna concepção das partes como sujeitos do processo
dissimuladamente189 penal.
Por fim, ressalte-se que a atuação do imputado e de seu Começaremos pelo estatuto da Defesa em movimento,
Defensor deverá se projetar no processo de execução penal, porque este é, em nossa opinião, o que mais diretamente
porque nele o comando contido na sentença poderá tornar- VRIUH FRP DV ³QRYDV´ LQWHUSUHWDo}HV TXH GH XP ODGR
se realidade. resgatam a inquisitorialidade e do outro vestem com figurino
Da participação efetiva da Defesa na execução penal acusatório o que necessariamente não é. Como parece que o
dependerá a natureza processual, ou apenas administrativa, fenômeno decorre da prevalência da ideologia de lei e ordem,
desta modalidade de procedimento. para restringir os direitos da Defesa no processo, como
afirmamos na última parte do item 3.2.2 III, é oportuno
examiná-lo em primeiro lugar.
188
Há vários dispositivos legais que cuidam da delação premiada. O mais I. -O Estatuto da Defesa em Movimento: O Conflito entre os
abrangente está definido no artigo 14 da Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, Interesses do Defensor e do Acusado e o Limite às
pelo qual é possível reduzir a pena em até dois terços, desde que o acusado haja Soluções de Consenso
colaborado voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal,
visando a identificação de co-autores e partícipes, a localização da vítima com Com efeito, sobre o acusado deve-se sublinhar, com
vida e a recuperação total ou parcial do produto do crime. O artigo 13 da citada reservas, que não corresponde ao anseio de justiça qualquer
Lei chega a prever o perdão judicial para o agente colaborador, desde que a proposta fundada na idéia de que não possa dispor da
personalidade do beneficiado, a natureza, circunstâncias, gravidade e
repercussão social do fato criminoso indiquem a conveniência da medida. capacidade de autodeterminação, que não é um direito, mas
189 uma característica inerente à sua condição de ser humano.
O texto Da Lei de Controle do Crime Organizado: Crítica às Técnicas de
Infiltração e Escuta Ambiental, publicado originalmente no Livro Escritos de Pode, pois, em uma lógica não-paternalista, mas
Direito e Processo Penal em Homenagem ao prof. Paulo Cláudio Tovo (Rio de responsável desde que consciente da situação gerada pelo
Janeiro, Lumen Juris, 2002), sob coordenação de Alexandre Wunderlich, está
ao fim, como Anexo I. Trata da matéria e o autor acredita que será útil processo e dos cenários hipotéticos que a eleição de algumas
complemento ao que está sendo examinado neste trabalo. alternativas de comportamentos poderá implicar, escolher
mesmo soluções que resultem na disposição sobre o E a criminologia crítica irá demonstrar que as
conteúdo do processo acusatório. desigualdades sociais no mínimo são responsáveis pela
É claro que em um Estado Democrático, que aspira a definição da criminalidade de determinados setores da
consecução da máxima justiça social, tais eleições inspiram- sociedade. O emprego do poder de selecionar condutas
se no propósito de resolução justa dos conflitos de interesses delituosas está na base do princípio da reserva legal, mas na
penais, razão pela qual a lógica da produtividade, verificada realidade os Parlamentos contemporâneos ainda o põem a
em ordenamentos jurídicos coincidentemente acusatórios, funcionar para conter grandes massas sociais190.
não é válida. Não se trata de viabilizar acordos penais para Desse modo, não é razoável admitir igualdades
aumentar o número de pessoas condenadas. materiais onde elas não existem e hipoteticamente transferi-
Ponderando-se, porém, os bens e interesses em jogo las para o processo penal, que muito pouca contribuição
com a disciplina da autodeterminação de um ser, que pode oferecer para superar essas desigualdades.
compreende em seu particular estatuto essa característica O chamado processo penal consensual se esforça para
como essencial, é válido considerar a importância e o relevo realizar essa tarefa inatingível. Baseado no princípio da
que tem a vontade do acusado para o desfecho de um autodeterminação do acusado, que não se coloca em cheque,
processo penal de natureza acusatória. O limite das sustenta a possibilidade de o réu decidir não se defender e
possibilidades da autodeterminação no campo jurídico-penal aceitar, diretamente, uma pena ou medida criminal (é o que
se põe principalmente quando outra característica inerente à ocorre com a transação penal e a suspensão condicional do
condição de ser humano puder ser suprimida, tal como, por processo, ambas previstas nos artigos 76 e 89 da Lei dos
exemplo, a liberdade pessoal. Juizados Especiais Criminais).
Entre as edições anteriores do Sistema Acusatório e a O problema está em que o réu tem chances reduzidas de
atual (3ª) há o hiato no qual foi pesquisado e produzido o não ser punido, desde o processo de criminalização primária,
livro Elementos para uma Análise Crítica da Transação que seleciona condutas em que na maioria das vezes ele está
Penal, fruto de tese de doutorado. previamente enquadrado por pertencer a certo grupo social,
As conclusões da pesquisa, para a qual remeto o leitor, até a hora em que a pressão do tempo191 e o ambiente, ambos
recomendam cuidado na interpretação e reconhecimento do desfavoráveis, termina pesando para que aceite as soluções
espaço de decisão de que o acusado pode dispor acerca de penais aparentemente mais generosas, sob pena de ter que
uma série de direitos e garantias processuais que lhe são encarar o rigoroso processo tradicional! Em suma, o acusado
assegurados pela Constituição da República e pelos tratados é ameaçado com a presunção de culpa!
internacionais de direitos humanos. As chamadas soluções consensuais não estão no círculo
Assim, o afastamento do paternalismo no tratamento temático do Sistema Acusatório (como foi sublinhado antes),
dispensado ao acusado não pode levar a supor que as pois visam resolver conflitos extra-processuais e, portanto,
condições concretas de funcionamento do Sistema Penal
proporcionem igualdades de toda natureza, a ponto de ser
190
sempre considerada válida a decisão pessoal de não se WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados
defender! Unidos, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 2001.
191
As desigualdades materiais não desaparecem por A abordagem de Aury Lopes Jr. sobre o papel do tempo no processo, levada
a termo no livro Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da
decreto, como a história não chega ao fim simplesmente Instrumentalidade Garantista), (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004), é
SRUTXHXPFLHQWLVWDVRFLDOGHFUHWDR³ILPGDKLVWyULD´ sugestiva.
não objtivam apurar fatos para com base nisso arbitrar
responsabilidades. II. -O ESTATUTO DA ACUSAÇÃO EM MOVIMENTO: A
Há de se pensar uma dogmática apropriada para elas, OPORTUNIDADE REGULADA NA AÇÃO PÚBLICA E A VEDAÇÃO
tarefa-desafio segundo Alberto Binder192. ORDINÁRIA À INVESTIGAÇÃO DIRETA
As decisões pessoais do acusado são relevantes no
processo penal acusatório (confessar ou não, recorrer ou Sobre o estatuto do acusador, em decorrência do
não, falar por si mesmo em audiência, não apenas no ato princípio de liberdade responsável, também são devidas
formal de interrogatório, indicar provas), mas não devem ser algumas considerações.
confundidas com aquelas outras, do processo consensual,
que podem ser oportunas e talvez funcionem como estratégia A. A Oportunidade Regulada na Ação Pública
de abrandamento do rigor punitivo, todavia sistematizadas e
difundidas levam paulatinamente ao retorno do modelo A primeira delas reside na seguinte premissa, segundo
inquisitorial que mira a pessoa, o corpo do acusado, como nosso pensamento, fundamental: a oficialidade do exercício
alvo da ação estatal. da ação penal e, conseqüentemente, da tarefa de dedução da
Em que pesem as oposições existentes,193 o estatuto do acusação, não modifica substancialmente o estatuto do
defensor no processo penal, por sua vez, coaduna-se com acusador, a ponto de criar uma absoluta incompatibilidade
propósitos de resolução justa do caso penal, observada a entre decisões de conveniência ou oportunidade e de estrita
adequada tutela jurídica dos direitos e interesses do acusado. obrigatoriedade.
Assim, é lícito acentuar que o advogado ou defensor Com efeito, não há exercício de função pública salvo por
exerce um munus público (contribuindo em grande parte seres humanos e a liberdade de autodeterminação é, como
para a resolução da causa conforme o direito) equilibrado assinalamos em lance anterior, da natureza humana.
por tudo quanto, no exercício da sua atividade, imponha a É evidente que, no exercício da função pública,
atuação ou omissão, ambas necessárias à preservação ou submete-se o agente ao império da legalidade, que, no
conquista de posições jurídicas de vantagem para o acusado, campo penal, em consideração à máxima da isonomia,
conforme o direito. obedece a princípios de moralidade e impessoalidade. Apesar
Essa é a razão pela qual se concebe, em um processo disso, sempre há um espaço no qual é possível eleger
acusatório, a positivação de poderes do advogado do acusado alternativas e se os critérios de escolha variam conforme seja
para se opor à vontade deste último, sempre que divise, nas o acusador particular ou oficial, para o último hão de levar
conseqüências da manifestação dela, a operação de grave em conta a moralidade, impessoalidade e, via de
prejuízo jurídico. Daí porque se constata uma dualidade de conseqüência, a objetiva isonomia, que não o impedirão de
estatutos ² defensor/acusado ², apta a ensejar a contribuir decisivamente para a implementação da política
juridicidade do recurso da defesa contra a vontade do réu. criminal mais justa.
Neste caso, a perspectiva histórica há de por acento no
192 fato de o Ministério Público ter nascido, com a sua
BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos
para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de conformação próxima à atual, como fruto do processo de
Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44, citado anteriormente. revisão crítica do exercício do poder, provocada pela
193 Referidas e analisadas por José Narciso GD &XQKD 5RGULJXHV ³6REUH R
3ULQFtSLRGD,JXDOGDGHGH$UPDV´in Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
ano 1, nº 1, Lisboa: Aequitas, jan-mar/1991, pp. 77-103).
Revolução Francesa,194 objetivando desempenhar decisivo GHIRUPDQWH¶ \ GLULJLU ORV UHFXUVRV GHO (VWDGR DO
papel na persecução penal, mas inserido em um projeto control sobre el tipo de criminalidad que mayor
orgânico de vigência real do conjunto de garantias costo social genera y más dificultades manifiesta
indispensáveis à dignidade da pessoa humana. en la investigación, representa sin duda una
Em um modelo acusatório, que historicamente se funda opción de limitación del poder penal del Estado...
no protagonismo das partes, há de se conceder espaço para Además de las razones expuestas, es preciso
uma atuação mais flexível do Ministério Público, porquanto insistir en una de máxima importancia: que el
a noção da persecução penal em todas as circunstâncias, Ministerio Público sea el operador de los criterios
referida a todas as infrações penais (ainda que consideremos de desjudicialización a través de la aplicación
somente as noticiadas), rende louvor ao fim de defesa social, concreta del principio de oportunidad, asegura
perseguido no processo inquisitório, acima e além dos que dicha aplicación no viole la garantía
limites de humanidade necessários à harmônica convivência FRQVWLWXFLRQDO GH µLJXDOGDG DQWH OD OH\¶ GHELGR D
social. que por su especial función de formulación de la
Um estatuto jurídico do acusador que reprima política criminal del Estado y gracias a que ciertos
completamente as suas potencialidades de conformação da principios aseguran que esa formulación sea
política criminal, a pretexto de vincular a ação do Ministério coherente...
Público à legalidade, esconde deliberadamente a
possibilidade da legalidade surgir em ambientes de E, conclui, objetivamente, com a observação de que
flexibilidade, de acordo com critérios de impessoalidade e princípios de unidade, hierarquização e verticalidade,
moralidade e também de acordo com propostas de redução configurando o Ministério Público, asseguram às pessoas
do caráter flagrantemente elitista da justiça penal, que estarão sempre submetidas às mesmas regras e não a
redistribuindo as forças de persecução conforme uma mais uma arbitrária disposição de vontade do acusador.
coerente e justa avaliação do que deve merecer o dispêndio Nestes termos a realidade coloca o Ministério Público
de energia do Estado. diante da possibilidade/necessidade de se organizar de modo
Na perfeita compreensão de Maximiliano Rusconi, eficiente e orientar a aplicação de seus recursos na direção de
sobre o estatuto jurídico do acusador público no âmbito do políticas criminais democráticas, definidas com
sistema acusatório e de acordo com o princípio acusatório, transparência e em documentos discutidos internamente e
centrado na idéia do justo processo, alerta-se:195 com representantes da comunidade.
Cumprida esta etapa, em homenagem aos princípios
El principio de oportunidad como elemento constitucionais mencionados linhas atrás, cada Promotor de
para racionalizar el uso de poder de persecución Justiça ou Procurador da República terá conhecimento dos
FULPLQDO HYLWDU XQD VHOHFFLyQ µLUUHJXODU \ parâmetros que nortearão escolhas entre acusar ou requerer
o arquivamento das investigações criminais e até sobre
194 Rusconi, 0D[LPLOLDQR $ ³Luces y Sombras en la Relación Política recorrer ou não de sentenças.
Criminal ² Ministerio PúEOLFR´, in Ministério Público, Revista A interpretação constitucionalmente adequada do artigo
Latinoamericana de Política Criminal, ano 2, nº 2, Buenos Aires: Editores 129, inciso I, da Constituição da República, é esta. Não se
del Puerto, 1997, p. 156.
195 5XVFRQL 0D[LPLOLDQR $ ³Luces y Sombras en la Relación Política trata, apenas, de assegurar ao Ministério Público o
Criminal ² 0LQLVWHULR3~EOLFR´, ob. cit., pp. 158-159. monopólio do exercício da ação penal pública, na forma da
lei. Nos dias de hoje é concebível extrair da norma tutela jurídica por intermédio de procedimentos de garantia
constitucional a autorização para definir critérios e casos de previstos nas Constituições.
atuação, sempre tendo em mente os princípios da No plano específico do princípio acusatório exige
moralidade e impessoalidade. extraordinário cuidado o saber como articular estes
Por último, não custa lembrar que a dogmática penal procedimentos e a teoria jurídica.
avançou o suficiente para engendrar critérios de definição de Assim é que, ao se falar em proibição de prova no
crimes, de tipicidade penal, bem mais exigentes que a mera processo penal, está se afirmando que o juiz não poderá levar
subsunção da tipicidade objetiva tradicional. em consideração determinado elemento de convicção, no
A potencialidade de dano da conduta, a ofensividade a momento de proferir a decisão, se este elemento de
bens jurídicos, a própria dimensão do dano provocado e o convicção foi obtido indevidamente.197 Mas a proibição da
desvalor da ação são elementos que o Direito Penal oferece prova vai muito além do mero dado procedimental.
ao Ministério Público para determinar as hipóteses de Para entendermos o fenômeno que orienta a atividade
atuação ou não. probatória, é preciso compreender como a teoria do
conhecimento cuida do assunto e perceber que provar é
B. A Vedação Ordinária à Investigação Direta196 convencer, que a atividade probatória consiste em introduzir
Em contrapartida à maior liberdade de ação, que deve no processo elementos que servirão para formar a convicção
inspirar a atuação do Ministério Público, em um processo do juiz.
penal democrático, temos que, além dos mencionados Portanto, a atividade probatória é atividade de
controles, funcionam outros, direcionados a impedir ou a ministrar elementos de conhecimento. O juiz deverá
coibir os excessos e a tentar garantir que o valor de verdade conhecer determinado fato e este conhecimento se dará
da sentença penal não venha a naufragar por conta de uma indiretamente,198 porque o juiz não presenciou o fato. Ao
acentuada e irracional atividade probatória. final, o convencimento do juiz representará a formulação de
Por conta disso, convém dedicarmos alguma atenção à uma idéia acerca do fato. Da comparação desta idéia com a
matéria prova penal e às atividades de investigação pretensão deduzida pela acusação e com a pretensão de
diretamente a cargo do Ministério Público. resistência deduzida pela Defesa nascerá a decisão.
Com efeito, o estudo sistemático da teoria jurídica Diante das conseqüências advindas da consideração de
relativamente à questão da prova está a demonstrar que não que um fato está ou não provado no processo é necessário
se trata simplesmente de problemas de método de aquisição, levar em conta que, em primeiro lugar, a atividade
introdução e avaliação das provas no processo. probatória é uma atividade de pesquisa.
No campo da prova há também aspectos subjetivos, isto É assim em qualquer ramo do conhecimento e não pode
é, referidos à perspectiva de quem pode provar, além de ser diferente quando o objeto do conhecimento é um fato
outros objetivos, ambos importantes, que estão a merecer ideal ² a suposição a respeito da existência de uma infração
penal.
196 Sobre o assunto, recomendo a leitura do livro Investigação Criminal
Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica, 2ª ed. de Paulo Rangel, tema
de sua dissertação de mestrado (Lumen Juris, 2005) e o Crime e 197 A Constituição da República estabelece, em seu artigo 5º, inciso LVI, que
Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público, são inadimissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
2ª ed., de Lenio Luiz Streck e Luciano Feldens, Rio de Janeiro, Forense, 198 Evidentemente, se o juiz for testemunha da infração penal, não
2005. poderá julgar. Artigo 252, inciso II, do Código de Processo Penal.
Neste sentido convém recordar que os pesquisadores a Por essa razão, até mesmo de acordo com a lógica
princípio definem o que se pretende pesquisar. Em termos imperante em determinado modelo de funcionalismo, se a
de Processo Penal, o objeto da pesquisa é um fato com verdade é sempre contingente e histórica, o uso da tortura e
coloração diferenciada, dada pelo Direito Penal. o emprego de recursos que historicamente foram criados e
A pesquisa só será possível se o pesquisador tiver em ditados para produzir uma verdade real não têm peso
mente um fato da realidade, hipoteticamente ocorrido, a que algum. Neste caso, o resultado da atividade probatória
terá de somar os elementos peculiares à adequação típica, objetivamente estará sujeito ao mesmo tipo de crítica cabível
pois apenas a infração penal lhe interessará. em todas as pesquisas e eticamente representará a opção por
Duas notas distintas passam a ser objeto da atividade mecanismos tão censuráveis quanto a infração penal que se
mencionada: a existência de um fato, propriamente dito; e a pretende apurar.
presença das características que poderão atribuir a este fato A restrição relativa aos meios de prova, no processo
relevância jurídico-penal. Em outras palavras e a título de penal, tem a ver com o conjunto de valores sociais
exemplo, no processo penal interessa saber se houve morte considerados conforme o estatuto ético da sociedade.
de alguém e se esta morte pode ser derivada de conduta Do ponto de vista objetivo, a proibição de provas
dolosa ou culposa prevista como crime. O processo penal não exprime as hipóteses de violação a este estatuto ético,
deve perseguir a prova de fatos atípicos! previsto principalmente na Constituição. Desse modo, são
Verifica-se, agora sim, que a atividade probatória não se inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios
limita a um debate no processo, com introdução de provas, a ilícitos conforme a idéia de que o meio utilizado para
não ser que entendamos que a produção de provas é sempre obtenção da prova viola valores éticos mínimos considerados
produção de provas direcionada a determinação da essenciais para a existência de uma sociedade civilizada, ou,
existência e da vinculação subjetiva de um fato típico, ilícito usando a expressão de Schmidt-Leichner,199 o Estado não
e culpável, ou seja, de uma infração penal. pode se tornar receptador de material probatório.
Mesmo quando, aparentemente, a lei é clara na Do ponto de vista objetivo há um limite,
definição da infração penal, sempre se exigirá um mínimo tradicionalmente investigado: a prova ilícita não pode ser
processo de interpretação que passa tanto pela introduzida no processo. Caso seja introduzida, não poderá
reconstituição do fato no plano das idéias, o que dependerá, ser avaliada pelo juiz porque o Estado não pode atuar
é certo, da qualidade dos elementos que serão oferecidos ao criminosamente para investigar o crime.
juiz, como pela compreensão do significado das palavras Do ponto de vista subjetivo, ninguém, nem mesmo o
empregadas na Lei para indicar o crime ou contravenção. juiz, pode ter a pretensão de dominar toda a realidade, de
Saber se a interrupção voluntária da gravidez de feto enunciar a verdade real. A atividade de busca da verdade
anencéfalo configura aborto ou fato atípico é algo que impõe processual deve se desenvolver de acordo com princípios
antes estabelecer consenso sobre o que significa a expressão republicanos e democráticos.
³SURYRFDU DERUWR´ SUHYLVWD QR DUWLJR  GR &yGLJR 3HQDO O processo penal não pode fugir, na essência, à
brasileiro. estrutura do Estado e da sociedade onde está fadado a atuar.
Como não há verdade absoluta, verdade real, a maneira É necessário que seja assim, porque a consolidação da forma
mais segura de se alcançar o melhor resultado certamente
não justificará o desrespeito aos valores fundamentais da 199 Apud Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em
pessoa humana. Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 44.
jurídica do Estado, na Constituição, estabelece que os linha do brasileiro há uma instituição, a rigor o Ministério
poderes emanam do povo e que no seu exercício concreto Público, que fica encarregada de fiscalizar os atos de
devem ser distribuídos entre diversos órgãos, e executados investigação.200
por diferentes agentes de modo a que possa haver controles Em vista dessa opção legislativa, o Ministério Público
recíprocos e eficazes. não pode investigar diretamente, prescindindo da polícia,
A estrutura democrática se contrapõe à forma sem atentar contra o princípio republicano de controle.
autoritária de Estado, de sorte que em um processo penal Nicolas Becerra, Chefe do Ministério Público Federal da
democrático as funções acabam distribuídas entre órgãos Argentina, salienta o seguinte:201
distintos obedecendo a esta mesma lógica.
Há uma conexão que vincula os três principais sujeitos Como ponto de partida o Ministério Público
do processo, de modo que a um deles se entregue a atividade deve garantir que no exercício do Poder de Estado
de exercer a ação penal, a outro a atividade de defesa e a um se respeitem OS PARADIGMAS DO MODELO
terceiro, eqüidistante e imparcial, a atividade de julgar. REPUBLICANO. Como um dos operadores centrais
O sistema de controle das atividades processuais, que se do sistema penal, o Ministério Público deve ser
desdobra em função dos meios e recursos colocados à consciente de quem tem em suas mãos uma
disposição das partes, termina por alcançar também a ferramenta que lhe permite executar uma das
atividade de polícia judiciária, na medida em que tal formas mais violentas de exercício do poder do
atividade representa, por si só, uma espécie de poder capaz Estado. Este exercício por fim deve demarcar-se no
de afetar gravemente o patrimônio de direitos da pessoa programa constitucional, que não só institui o
investigada. modo de relação institucional entre órgãos, senão
A atividade de polícia judiciária, que consiste na que, ao estabelecer o sistema de divisão no
apuração das infrações penais e sua autoria, amiúde invade a exercício do poder por intermédio de freios e
esfera de privacidade alheia e atenta, legalmente, contra a contra-pesos, exige também o controle externo.
reputação pessoal da pessoa sob suspeita. É muitas vezes
imprescindível que seja dessa maneira, pois a aquisição de E conclui com aquilo que é o ponto mais importante:202
informações demandará pesquisa a respeito da vida privada
do investigado. As fronteiras entre o permitido e o proibido Neste controle externo o Ministério Público
durante uma investigação criminal aparecem pois marcadas deve colaborar com a consolidação de um sistema
por balisas tênues e não raro, em busca de maior eficiência, o no qual, ninguém, ninguém deve ser NEM BOM,
investigador cede à tentação de violar determinadas normas NEM MAU GUARDIÃO DE SEUS PRÓPRIOS ATOS, o
jurídicas de proteção da intimidade e da vida privada do que significa entre muitas outras coisas, que quem
investigado. Quanto mais grave a infração penal e mais investiga não pode ao mesmo tempo controlar.
convencido o investigador a respeito da procedência da sua
suspeita, maiores são as chances de não ser rigoroso quanto 200 No Brasil, a Constituição da República prescreve, em seu artigo 129, inciso
à obediência aos direitos fundamentais do indiciado. VII, que é atribuição institucional do Ministério Público exercer o controle
Por conta disso, os parâmetros de legalidade na externo da atividade policial.
201 Becerra, Nicolas. El Ministerio Público y los Nuevos Desafíos de la Justicia
investigação criminal são sempre bem definidos e em Democrática, Buenos Aires: AD-HOC, 1998, p. 12 ± tradução livre.
praticamente todos os ordenamentos jurídicos que seguem a 202 Idem.
pesquisa da ocorrência de crime de furto de que foi vítima
Por que a polícia pode investigar, por exemplo, e o um Governador de Estado, por mais chocante que o fato
Ministério Público não pode investigar? Que tipo de possa parecer à opinião pública. Por outro lado, o
conseqüência jurídica, poderia advir de uma investigação reconhecimento de que a polícia está limitada em certas
realizada por quem não está incumbido de fazê-lo circunstâncias, por ausência de autonomia, além de ser uma
constitucionalmente? constatação servirá para permitir que polícia e Ministério
À vista do exposto, as possibilidades de o Ministério Público atuem em conjunto, visando o melhor proveito da
Público investigar diretamente dependem da previsão legal investigação, que de outro modo estaria condenada a chegar
de disposições regulando a investigação, de tal sorte que as a lugar algum.
lesões decorrentes do abuso na investigação possam ser E isso nada tem a ver com uma função pós-moderna do
objeto de reclamação perante o Judiciário ² princípio da Ministério Público ou com a natureza diferenciada dos
inafastabilidade da jurisdição ² e que o sistema de freios e chamados bens jurídicos penais transindividuais ou
contra-pesos possa funcionar. coletivos.
Além disso, é imprescindível assinalar a Agora, a investigação criminal na grande maioria dos
excepcionalidade desta atuação, que tão-só estará justificada casos não se enquadra no modelo excepcional citado acima e
naqueles casos em que o sucesso da pesquisa impõe o aspecto subjetivo termina ganhando importância neste
extraordinária reserva em relação a quem está sendo contexto, pois não se trata apenas de demonstrar alguma
investigado. coisa, mas de saber quem deve demonstrar e a quem deve ser
É o caso das investigações criminais acerca do demonstrado.
envolvimento sistemático de policiais com ações de Quando o padrão de legalidade na apuração dos fatos
corrupção ou criminalidade acentuada no âmbito da própria não é respeitado também em sua perspectiva subjetiva, a
polícia. prova dele decorrente é igualmente ilícita.
Caberia à lei fixar estes contornos de forma clara, pois Provar é atividade de sujeito. Prova-se um fato que tem
também para a investigação criminal do Ministério Público determinada qualidade, mas se prova por intermédio da
prevalece a garantia constitucional do devido processo legal. atividade de sujeitos e as Constituições hoje não podem ficar
A excepcionalidade dos casos de investigação criminal limitadas em sua interpretação, quando se cuida da
do Ministério Público, de lege ferenda, há de ser proibição de provas no processo penal, aos casos de obtenção
compreendida, do ponto de vista do direito, como emanação de provas por meios ilícitos. Também deverão dirigir a
do critério da proporcionalidade. Nos limites do devido atenção à questão a respeito de quem foi o sujeito produtor
processo legal, sacrifica-se o ideal de afastamento do daquela prova, quais são os limites subjetivos da produção
Ministério Público da investigação criminal, pelo qual é da prova e o que ocorre quando um sujeito que não poderia
viabilizado o controle constitucional da atividade de polícia realizar atividade probatória a realiza, fazendo valer o
judiciária, para permitir a investigação de crimes que de sistema de ineficácia dos atos jurídicos.
outra maneira não seriam investigados. Por último, não custa destacar que os Sistemas
Ora, isso impõe limites à própria lei que porventura vier Processuais são configurados historicamente. O que é
a ser editada. Esta não poderá atribuir ampla liberdade ao atribuído a cada Ministério Público depende muito do papel
Ministério Público para escolher o que investigar. Não cabe, que a instituição exerceu ao longo do tempo. O mesmo
por exemplo, deixar em mãos do Ministério Público a ocorre com a tarefa incumbida à autoridade policial.
No Brasil, durante muito tempo a autoridade policial Agora cumpre dedicar ao órgão de resolução do caso
esteve encarregada de investigar e processar. Essa realidade penal algumas considerações, pertinentes ao seu
do Império, retratada no Código de Processo Criminal de enquadramento conforme o princípio acusatório e a relação
 ILFD FRPR ³SHUPDQrQFLD´ Dté a promulgação da que se estabelece entre ele, juiz (lato sensu considerado),
Constituição da República de 1988, que afastou de juízes e acusador e acusado.
delegados de polícia o poder de iniciar processos por crimes Com efeito, excluídas desde logo a iniciativa para o
de homicídio e lesão corporal culposa e por contravenções processo e a tarefa de aquisição das provas na fase
penais (Lei n. 4.611/65 e artigo 531 do Código de Processo precedente203, resulta que o princípio acusatório repercute
Penal). Desde então, somente o Ministério Público está no estatuto judicial, conferindo ao magistrado reserva da
autorizado a promover a ação penal pública. função jurisdicional.
Acontece que a história da investigação criminal Destaque-se que o juiz não produz provas na
brasileira é também história de repressão e autoritarismo, investigação criminal não só porque a preparação da ação
com abusos em investigação e recurso freqüente à tortura. O penal, respeitada a máxima acusatoriedade, implica em
distanciamento que a Constituição da República de 1988 afastamento do juiz da fase preparatória,204 mas também
impôs ao Ministério Público é coerente com a sua função de pelo fato de a presunção da inocência comportar, até o
fiscal das atividades de polícia judiciária, criando estrutura trânsito em julgado da condenação, uma postura de
confiável de controle dirigida à redução dos abusos. preservação pelo juiz de um papel de verdadeira
Quando o Ministério Público abdica disso retorna ao imparcialidade,
passado, fundindo funções, pois a questão não está no nome A implicância prática da reserva em questão consiste,
da instituição que investiga, mas na função que as segundo pensamento dominante, na garantia da liberdade de
instituições exercem. Quem investiga exerce função de avaliação das provas, convicção fundada sobre a qualificação
polícia judiciária. Pode ser o juiz, como no passado jurídica da infração penal e arbitramento motivado da
brasileiro; poderá vir a ser o Ministério Público, como alguns correspondente sanção.
doutrinadores pretendem. Não importa, porque se houver
investigação será necessário criar estruturas de controle A. Livre Convencimento e os Poderes de Investigação do Juiz
dessa investigação e não fará sentido pensar em um outro
Ministério Público do Ministério Público.
203
Porque as linhas deste estudo são traçadas pelo As objeções opostas ao extinto inquérito judicial, na falência (ver item I, em
princípio acusatório não convém avançar mais, valendo 3.2.2.1) são igualmente válidas quando se trata da investigação de magistrados.
notar, porém, que as fronteiras probatórias instituídas pelas Com efeito, a Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979, ainda em vigor até
a edição do Estatuto da Magistratura, em seu artigo 33, parágrafo único, prevê
leis e pela Constituição devem valer não somente em relação que a investigação da prática de crime atribuído a magistrado deverá ser
ao Ministério Público mas até mesmo quando se tratar de realizada pelo Tribunal ou Órgão Especial competente. Além do óbvio
Comissão Parlamentar de Inquérito. desrespeito ao princípio da igualdade de tratamento, que exigiria outro livro
para ser explicado e contestado à luz da Constituição da República de 1988, há a
questão prévia de se atribuir à autoridade encarregada do julgamento a
III. -O ESTATUTO DO JUIZ EM MOVIMENTO: LIVRE atribuição para apurar o fato.
CONVENCIMENTO E OS PODERES DE INVESTIGAÇÃO DO JUIZ 204 A intervenção do juiz, nesta fase, só se explica, conforme o princípio
acusatório, quando necessária para, conforme a Constituição, preservar ou
² A MUTATIO LIBELLI comprimir, legitimamente, o exercício de direitos fundamentais, porquanto o
julgador não tem interesse jurídico na propositura da mencionada ação.
seja considerado conseqüência do primeiro.
Comecemos, portanto, pela análise da tarefa de A ordem das coisas colocadas no processo permite,
avaliação das provas. A primeira e mais importante pragmaticamente, constatarmos que a ação voltada à
observação deriva da necessária distinção entre as ações de introdução do material probatório é precedida da
introduzir e avaliar as provas no processo penal consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado
condenatório. material possa determinar, se efetivamente incorporado ao
A propósito, salienta Gomes Filho que, em um modelo processo.208
processual duelístico, como o adversary, existente na Ao tipo de prova que se pesquisa corresponde um
Inglaterra, por exemplo, a iniciativa da atividade probatória prognóstico, mais ou menos seguro, da real existência do
incumbe preponderantemente aos próprios litigantes, daí thema probandum, e, sem dúvida, também das
decorrendo o papel de mero moderador e mediador, conseqüências jurídicas que podem advir da positivação da
desempenhado pelo juiz que preside o julgamento, o qual questão fática.
raramente intervém, como os jurados.205 Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e
Nessa direção, fundamenta-se uma estrutura processual isso, em termos de processo penal condenatório, representa
preocupada em evitar injustificadas e errôneas privações de uma inclinação ou tendência perigosamente
direitos e em garantir a participação e o diálogo dos comprometedora da imparcialidade do julgador.
interessados no processo de decisão.206 Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na
Por outro lado, convém assinalar que, no modelo direção da introdução de meios de prova que sequer foram
inquisitório, o princípio é justamente o oposto, refletindo a considerados pelo órgão de acusação, ao qual, nestas
proeminência da figura do juiz e a subalternidade das circunstâncias, acaba por substituir. Mais do que isso, aqui
partes na tarefa de obtenção do material probatório, o igualmente se verificará o mesmo tipo de comprometimento
dogma da verdade real, a preocupação com a economia psicológico objeto das reservas quanto ao poder do próprio
processual e, sobretudo, uma concepção peculiar de livre juiz iniciar o processo, na medida em que o juiz se
convencimento, visto, consoante precisamente remarca fundamentará, normalmente, nos elementos de prova que
Gomes Filho, como liberdade absoluta na própria condução ele mesmo incorporou ao processo, por considerar
do procedimento probatório, e não na sua real e histórica importantes para o deslinde da questão. Isso acabará
dimensão de valoração desvinculada de regras legais, mas afastando o juiz da desejável posição de seguro
incidente sobre um material constituído por provas distanciamento das partes e de seus interesses contrapostos,
admissíveis e regularmente incorporadas ao processo.207 posição essa apta a permitir a melhor ponderação e
Ora, se estamos convencidos, o que é certo, da conclusão.
vinculação entre direito de ação (e, naturalmente, também Entre os poderes do juiz, por isso, segundo o princípio
de defesa) e direito à prova, é razoável supor que haja mais acusatório, não se deve encontrar aquele pertinente à
do que uma simples relação jurídica, pela qual o segundo investigação judicial, permitindo-se, quando muito, pela
coordenação dos princípios constitucionais da justiça

205 Gomes Filho, Antonio Magalhães. O Direito à Prova no Processo


Penal, pp. 59-60.
206 Idem, p. 60. 208 Ver críticas à investigação direta pelo Ministério Público, texto
207 Idem, p. 63. acrescentado a esta edição.
material209 e presunção da inocência, que moderadamente pela impossibilidade de interdição da defesa.
intervenha, durante a instrução, para, na implementação de Em que pesem o respeito e admiração que merece a
poderes de assistência ao acusado, pesquisar de maneira doutrinadora, que profundamente estudou o princípio
supletiva provas da inocência, conforme a(s) tese(s) acusatório, não é possível concordar com ela porque o
esposada(s) pela defesa. contraditório é medida de duelo, como categoria processual
Neste caso, assimila-se a real natureza do princípio que reúne a ciência do ato praticado pela parte contrária à
acusatório como garantia que comporta para a defesa do possibilidade de uma atitude em sentido contrário ou
imputado conforme assinala Grau.210 O destinatário da objetivando contrariar o prefalado ato. Difícil será, a nosso
posição jurídica favorável não pode ser prejudicado pela juízo, estabelecer-se um duelo entre o acusado e o juiz, pois
aplicação, contra si mesmo, daquele benefício instituído pela este último detém o poder de decidir a causa, elegendo, como
Constituição. assinalou Carnelutti, a alternativa de solução que lhe pareça
Ao mesmo tempo, incrementa-se, por meio desta mais viável.
excepcional e restrita iniciativa judicial, o princípio da Há de se acrescentar, por oportuno, que, se o princípio
paridade de armas de modo efetivo, tal seja, garantindo, pela da paridade de armas não integra o princípio acusatório,
intervenção mediadora do juiz, tratamento desigual aos reduzido este à divisão tricotômica de funções, é, todavia,
desiguais, sobretudo em face da ausência de identidade entre importante para a implementação da justa solução do caso
as partes, agindo assim em busca do equilíbrio no processo, penal, a ponto de ser considerado integrante de um sistema
razoavelmente justificado à luz de critérios de reciprocidade cuja base é a acusatoriedade (novamente aí a distinção entre
e evitação de um dano irreparável. sistema e princípio, entre continente e conteúdo).
Teresa Armenta Deu pensa, todavia, diferentemente, Por isso, cabe destacar, com Chiavario212, que a parità
defendendo a tese da possibilidade da introdução de fra le armi fornece um critério resoluto fundado não no
elementos de prova, pelo juiz, de forma limitada, mesmo na sentido de simetria das situações das partes, porém
fase de debates, visando completar o panorama sobre o qual justamente na dissimetria de posições, observável na prática,
recairá o juízo211. Giza a referida autora que, nas de tal sorte que não é razoável admitir um Ministério Público
circunstâncias, a importação de elementos de prova pelas despreparado para o exercício dos direitos de ação e prova,
mãos do juiz será controlada pelo sucessivo contraditório e enquanto, lamentavelmente, acontece de se encontrar
defensores inaptos para a melhor forma de representação
209 O princípio de justiça material, conforme o magistério de Canotilho, dos interesses do imputado.
UHPHWHj&RQVWLWXLomRXPIXQGDPHQWRGH³reserva´H³garantia´GDMXVWLoD Para ser assimilada pelo princípio acusatório, a
pelo que se assinala a intencionalidade do Direito Constitucional não estrutura de cooperação do processo jurisdicional penal
esgotar a positividade das normas da Constituição na mera edição formal,
mas sim na correspondente justiça deste direito. Portanto, a função de moderno, de que nos fala Ada Grinover,213 há de ser filtrada
³reserva de justiça´ PHQFLRQDGD SHOR PHVWUH SRUWXJXrV VXJHUH D pelo contraditório, que opõe de forma dialética as teses da
fundamentação dos princípios que se constituem em favor rei, desde o da acusação e da defesa, levando em consideração a
presunção da inocência, justificando a compressão de outros princípios,
como, por exemplo, o acusatório, em vista da referida reserva de justiça desigualdade real entre as partes e a necessidade imperativa
(Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, p. 3). de equilíbrio técnico e de posições jurídicas visualizadas
210 Grau, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio, p.
13. 212
211 Teresa Armenta Deu defende ponto de vista diverso em Principio Processo e Garanzie Della Persona, pp. 27-28.
Acusatorio y Derecho Penal, pp. 27-28. 213 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, pp. 8-9, 14-15 e 19-21.
reciprocamente. acusatório contemporâneo, que atribui poderes probatórios
A estrutura de cooperação busca o resultado prático da ao juiz.
conversão das garantias das partes em garantias da própria Gustavo Badaró, por exemplo, assinala que:
jurisdição. ³HPERUDVHMDFDUDFWHUtVWLFDKLVWyULFDGRSURFHVVR
Daí porque a doutrinadora, consolidando seu acusatório a inércia probatória do juiz, que tinha apenas
pensamento, assevera que existe um perfil objetivo de defesa uma função passiva em relação à atividade instrutória,
a condicionar a validade do processo penal e legitimar a tal aspecto não lhe é fundamental. A evolução de tal
própria jurisdição, cumprindo ao juiz zelar para que a modelo, principalmente em decorrência da publicização
desigualdade real não desemboque em desigualdade do processso, fez surgir um processo em que há clara
processual comprometedora da verdade que deve alicerçar a separação de funções entre acusação, defesa e julgador,
sentença penal. a despeito de o juiz poder ser dotado de poderes
No fundamento desta desigualdade, cuja constatação LQVWUXWyULRV´215
nos dias de hoje dispensa comentários, é possível identificar
na estrutura de cooperação citada certa semelhança com o Badaró remete para posição secundária a inércia do
processo trabalhista, no qual a inferioridade econômica do juiz, salientando que há características secundárias que
trabalhador, numa estrutura capitalista, cria novos hábitos possibilitam a existência de um processo acusatório à
assistenciais ao juiz.214 semelhança do júri inglês, em que o juiz não tem poderes
De toda sorte, a intervenção judicial na atividade instrutórios, e um pretenso processo acusatório do tipo
probatória a favor do acusado há de ser moderada, como brasileiro ou português no qual o juiz pode determinar a
antes frisamos, enquanto estará interditada em relação à produção de provas de ofício.
acusação, que nos dias de hoje dispõe de aparato Marcos Alexandre Coelho Zilli é partidário da posição
suficientemente bem constituído para pelejar em juízo. assumida por Badaró, em sua análise sobre o sistema
A supressão ou redução dos poderes de investigação adversarial216.
judicial esbarra, contudo, na cultura desenvolvida Não é necessário lembrar que o artigo 156 do Código de
secularmente com base nos ordenamentos jurídicos de Processo Penal brasileiro, em sua parte final, que contempla
inspiração européia continental, acostumados, pela o juiz com poderes probatórios, na linha do artigo 209 do
experiência haurida na ordem jurídica romano-canônica, à mesmo código, é fruto do processo penal do Estado Novo,
busca da verdade real, de sorte que a máxima período autoritário em que a supressão das liberdades
acusatoriedade postulada pelo princípio em questão, na contava com apoio do Sistema de Justiça Penal, para fazer
equação juiz penal versus prova, quase sempre é bastante valer os interesses da ditadura Vargas.217
limitada.
E é com inspiração nestes modelos que configuram um 215
BADARÓ, Gustavo. Ônus da prova, op. cit., p. 137.
processo acusatório mitigado ou temperado pelo princípio da 216
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no
investigação judicial, segundo Manuel da Costa Andrade, que processo penal, São Paulo, RT, 2003, p. 44-45.
217
vem tomando corpo no Direito Brasileiro a tese da distinção $UWLJRGR&yGLJRGH3URFHVVR3HQDO³$SURYDGDDOHJDomRLQFXPbirá a
entre o sistema acusatório de estrutura adversarial e outro, quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir
sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto
UHOHYDQWH´ H DUWLJR  ³2 MXL]TXDQGRMXOJDUQHFHVViULR SRGHUi RXYLU RXWUDV
214 Idem, p. 19. testemunhas, aléPGDVLQGLFDGDVSHODVSDUWHV´
Supor generosidade, espírito científico ou público em repressão aos hereges e a manutenção da ordem. E essa
regimes ditatoriais significa desconhecer a lógica que domina repressão era feita em sigilo. Talvez seja possível encontrar
o manejo, a manipulação do Sistema de Justiça Penal em tais neste sigilo a simetria com as motivações do juiz na
circunstâncias. determinação da prova de ofício, uma vez que a declaração
No caso brasileiro, a regra de produção de provas pelo dos reais motivos da produção da prova pode implicar pré-
juiz, de ofício, tão-só consolida aquilo que desde as julgamento.
Ordenações, passando pelo Código de Processo Criminal do A simetria entre processo inquisitório e regimes
Império, de 29 de novembro de 1832 e pelas Reformas autoritários não é gratuita e não se fixa exclusivamente nos
Prcessuais de 3 de dezembro de 1841 e 20 de setembro de regimes políticos, inscrevendo-se na cultura dos povos. Não
1871, tornara-se regra em um ambiente em que a por acaso o Brasil resiste como um dos poucos Estados da
Intendência, espécie de Secretaria de Segurança Pública, fora América do Sul a ter ultrapassado a fase de transição
desde o início entregue a um Desembargadior, juiz de corte democrática sem ter editado um novo Código de Processo
superior. Penal em seguida à sua Constituição.
Hoje, a volta a esse estado de coisas não pode ser Por essa razão é importante insistir no ponto delicado
compreendida como evolução. A artificial designação de da dogmática do processo. O estudo das formas de
sistema adversarial, para definir o acusatório em que a conhecimento dos fatos não é próprio à disciplina do Direito.
inércia probatória do juiz é regra, para distingui-lo de outro 2 'LUHLWR VH DSURSULD ³SROLWLFDPHQWH´ GR GLVFXUVR VREUH D
sistema acusatório em que o juiz tem poderes instrutórios, só ³YHUGDGH UHDO´ PDV R SUySULR 'LUHLWR QmR HVWi GRWDGR GH
atende ao propósito de tentar prolongar a vida do Código de instrumentos científicos para investigar a possibilidade de
Processo Penal de 1941, da era autoritária, naquilo que nele é ser estabelecida uma verdade real.
central, tal seja, a filosofia de que se trata de instrumento da Johannes Hessen recordará que é a epistemologia que
política de segurança pública do Estado e não de previsão se dedica a investigar as possibilidades de conhecimento219 e
das regras do devido processo legal, conforme a Constituição Juan Antonio Nicolás e Maria José Frápolli resenharão as
da República de 1988. sete principais correntes de pensamento sobre a Verdade no
O alegado caráter público do caso penal, para justificar Século XX, com seus desdobramentos, a enterrar
a ação probatória do juiz, conforme Badaró, merece reflexão definitivamente o conceito de verdade real e a retirar o
histórica e técnica. Em termos de Justiça Penal a palavra sujeito do conhecimento da posição de aparente neutralidade
³S~EOLFR´ VHUi WRPDGD QR VHQWLGR GH DOJR GHULYDGR GR que a filosofia positivista do século XIX entronizara.220
H[HUFtFLR GR SRGHU SROtWLFR 1mR KDYLD QDGD PDLV ³S~EOLFR´ O juiz é o destinário da prova e, sem dúvida alguma,
no sentido de expressão de poder político, que o processo sujeito do conhecimento. Quando, porém, se dedica a
penal da Inquisição.218 Tampouco havia algo mais sigiloso produzir provas de ofício se coloca como ativo sujeito do
que este mesmo processo. conhecimento a empreender tarefa que não é neutra, pois
O público na citada acepção deve ser compreendido sempre deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver
como em oposição ao privado. Para o processo da Inquisição
os interesses privados eram secundários. Importava a 219
HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes,
2000.
218 220
MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires, NICOLÁS, Juan Antonio e FRÁPOLLI, María José. Teorías de la verdad en
Editores del Puerto, 2002, p.151. el siglo XX, Madrid, Tecnos, 1997.
confirmada. Como as hipóteses do processo penal são duas: A.1. -Do Livre Convencimento e a Confissão do Acusado ²
há crime e o réu é responsável ou isso não é verdade, a prova Soluções Consensuais
produzida de ofício visará confirmar uma das duas hipóteses
e colocará o juiz, antecipadamente, ligado à hipótese que Com efeito, uma nova concepção de retribuição,
pretende comprovar. arrimada no propósito de provocar recíprocas influências
Assim, por exemplo, se uma testemunha X afirma sem entre acusado, vítima e sociedade, aproximando-os, resgata
muita convicção que viu o réu subtrair o carro da vítima e o valor da confissão para o processo penal, dessa vez,
que estava ao lado de outra testemunha Z, não arrolada, a diferentemente do passado inquisitório, voltada a uma
decisão do juiz, de ofício, de ouvir a mencionada testemunha solução de compromisso que restaure a paz social.
Z só pode ser determinada pela convicção honesta de que a A idéia é evitar o processo de marginalização induzido
testemunha Z confirmará o fato. É evidente que se a pela pena de prisão, sacrificando, em uma mínima porção e
testemunha Z negar o fato, o juiz tenderá a levar isso em nos limites que o próprio acusado e seu defensor
consideração. Caso, porém, a testemunha confirme as entenderem razoáveis, o patrimônio jurídico do primeiro.
declarações da outra, dificilmente o réu poderá acreditar que Para tanto, renove-se a advertência, há de se conceber o
o juiz dará crédito a testemunhas que vier a arrolar para acusado como ser dotado de autodeterminação e
desmentirem as duas primeiras. Com isso estará quebrado o responsabilidade, que não podem ser legítima e
frágil equilíbrio em que se sustenta a imparcialidade do juiz paternalmente tuteladas, reivindicando-se, nessa postura,
no processo penal. uma reação do juiz limitada pelo definido espaço de
No exemplo anterior o juiz não pesquisou fontes de consenso e não subordinada à busca da descoberta da
prova, ressalva feita por Badaró para tentar fixar algum verdade real a qualquer preço.222
limite à atividade probatório de ofício do juiz.221 Neste ponto, modificamos parcialmente o entendimento
De todo modo, aceita a tese da inércia judicial, esposado até esta edição (3ª). Sustentamos no passado que
prosseguimos no plano específico da avaliação do material não havia dúvida de que a implementação do princípio
probatório recolhido pelas partes, para averbarmos que a acusatório, na hipótese, consideraria não somente o conjunto
plena liberdade de avaliação cede hoje, fora do Sistema de poderes, direitos e deveres dos sujeitos processuais,
Acusatório, perante duas distintas situações: o valor de perspectivados estaticamente, mas ainda nas suas relações
compromisso da confissão do acusado, como assunção de sucessivamente desenvolvidas.
um princípio de autonomia da vontade, nos casos de justiça Com base nisso, ao se analisar a posição do acusado e
penal consensual para os quais a resposta penal implique em seu defensor em um regime inspirado no princípio
uma solução mais favorável ao réu; e a admissão de um acusatório, novamente em que pese à força dos argumentos
conjunto mínimo de provas legais negativas. de Teresa Armenta Deu,223 teríamos de reconhecer que o
exercício concreto do direito de defesa pode ser renunciado,
sublinhe-se, excepcionalmente, desde que admissível à luz
221 da Constituição e conforme os interesses peculiares do
De acordo com Gustavo Badaró (Ônus da prova..., p. 119) a busca da prova
pelo juiz não fere a imparcialidade desde que tais poderes de instrução sejam
exercitados dentro de determinados limites. Para Badaró o juiz não está
DXWRUL]DGR D EXVFDU ³IRQWHV GH SURYD´ DWLYLGDGH SURSULDPHQWH LQYHVWLJDWLYD 222 Dias, Jorge de Figueiredo. Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código
PDV SRGHUi DJLU GLDQWH GD QRWtFLD GH XPD SURYD ³FRPR D LQIRUPDomR GH TXH de Processo Penal, p. 29.
FHUWDSHVVRDSUHVHQFLRXRVIDWRV´ 223 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 26-28.
acusado, interditada a resposta penal tradicional, tal seja, a inviolabilidade do domicílio, das comunicações telefônicas e
prisão ou outra qualquer, de significativa gravidade.224 de dados tutelam a dignidade da pessoa humana e acabam
Na realidade, o princípio acusatório oferece pouca funcionando como barreira ao retorno automático e
contribuição na análise das soluções consensuais, irreversível ao princípio inquisitório.
especialmente fundadas na renúncia ao direito de defesa. Os modelos consensuais da atualidade, portanto, estão
Com efeito, toda construção acusatória foi concebida em um meio caminho. Inspirados, por um lado, na ideologia
para edificar o direito de defesa. A partir da experiência das da inquisitorialidade, organizam o procedimento de sorte a
práticas judiciais não-penais, que há séculos reconheciam a torná-lo mais célere, para tanto requisitando o
importância do direito de defesa, os autores iluministas e os consentimento do próprio suspeito ou acusado. Limitados,
primeiros penalistas do século XIX, Carrara à frente, por outro lado, pelas garantias constitucionais acima
sustentaram a importância de levar a Defesa ao processo referidas, só servem ao direito processual penal do Brasil
penal. para evitar a aplicação de pena de prisão e, assim, reduzem o
A principal diferença prática entre os processos nível de violência que normalmente marca o funcionamento
acusatório e inquisitório, além da distinção entre juiz e dos Sistemas Penais da periferia.
acusador, consiste na previsão de defesa. Embora fora da matriz acusatória o consentimento do
Portanto, quando o processo abre mão das atividades acusado em sofrer pena sem se defender pode, porém,
defensivas clássicas ± de resistência à pretensão de beneficiar-se do Sistema Acusatório. Com efeito, como a
condenação -, caminha-se para trás, ressuscitando o modelo defesa é da essência do citado sistema, as possibilidades de
inquisitório. se abrir mão dela devem proporcionar a preservação da
É certo que os modelos de solução consensual da liberdade do imputado, no grau máximo de desvantagem a
atualidade ± como a transação penal e a suspensão que estará sujeito o réu. Caso o acusado esteja sujeito a
condicional do processo ± não podem ser comparados às sofrer pena privativa de liberdade, risco que corre no
práticas brutais da inquisição. processo tradicional, o procedimento automaticamente se
A configuração constitucional de várias garantias, como transforma, convertendo-se naquele que garante ao réu o
as que proíbem o juiz de considerar as provas obtidas por direito ao devido processo legal.
meios ilícitos, vedam a tortura e estabelecem a A condição de validade indispensável à produção de
efeitos da dispensa de defesa está vinculada ao direito de o
acusado ser cabalmente informado da acusação e das
224 Sobre a renúncia ao exercício de direitos fundamentais em consideração à alternativas que lhe são postas, conhecimento inerente ao
relação jurídica estabelecida entre o sujeito titular do direito e o Estado, princípio do contraditório que, por sua vez, integrando
devedor, convém examinar Novais, Jorge Reis, in Renúncia a Direitos
Fundamentais: Perspectivas Constitucionais, vol. I, org. Jorge Miranda, aquele conjunto de direitos invocado por Figueiredo Dias,
Coimbra, 1996. Salienta textualmente o autor, forte nas lições de Dworkin, serve à conformação da convicção judicial e, portanto,
que, se a titularidade de um direito fundamental é uma posição jurídica também é condição de eficácia do princípio acusatório.225
GH YDQWDJHP GR LQGLYtGXR IDFH DR (VWDGR p XP ³WUXQIR´ QDV PmRV GR
indivíduo... então da própria dignidade da pessoa humana e do princípio Vale frisar que o comportamento processual do
da autonomia e de autodeterminação individual... decorre o poder de o
titular dispor dessa posição de vantagem, inclusivamente no sentido de a
enfraquecer, quando desse enfraquecimento, e no quadro da livre 225 No sentido do direito à informação integrar o princípio contraditório e este,
conformação da sua vida, espera retirar benefícios que de outra forma por seu turno, o princípio acusatório, ver, por todos, Joan Vergé Grau, La
não obteria (p. 287). Defensa del Imputado, pp. 119-120, ao contrário de Teresa Armenta Deu.
acusado, caracterizado por aceitar passivamente a inflição de provas como postulações da limitação ao livre
pena sem defesa, é equiparado à confissão porque na convencimento do juiz, para condenar.226 Isso acontece
perspectiva psicológica é assim que as pessoas sentem e sempre que as provas legais negativas resultarem de uma
reagem ao fenômeno. medida de cautela do legislador, adotada ponderada e
O fato de as leis, como a brasileira, proibirem a restritamente, em observância às regras retiradas da
consideração da transação penal como causa de reincidência experiência ordinária.
e não extraírem conseqüências civis, vedando a produção de A exigência do exame de corpo de delito, estatuída no
efeitos civis em favor do lesado, não muda a realidade. O réu artigo 158 do Código de Processo Penal, para
é tratado como culpado, não incidindo aqui a presunção de reconhecimento do fato típico que deixa vestígios, serve de
inocência. Outros efeitos, civis e penais, que não se exemplo de prova legal negativa. Sem o exame de corpo de
produzem são opções de política criminal para estimular a delito, em regra, o juiz não poderá reconhecer o fato típico e
aceitação da proposta de pena sem defesa. sequer poderá afirmar o vínculo de causalidade.227
Ao juiz nestas hipóteses fica muito pouco a fazer. A sua O princípio acusatório é um princípio de garantia e,
atuação é residual. Deve comprovar a existência das pois, não pode ser incompatível com uma regra também de
condições para a formulação e aceitação das propostas de garantia, extraída da incontestável comprovação da
consenso e diante destas condições deverá homologar as falibilidade humana.
soluções. Neste aspecto o convencimento do juiz fica restrito Na projeção da divisão de poderes do Estado, no
aos limites construídos consensualmente pelas partes. processo penal, típica do princípio democrático,
conformador do acusatório, enquanto ao juiz cabe julgar, isto
A.2. Das Provas Legais Negativas é, apresentar imperativamente a solução do caso penal, e ao
executivo deduzir a pretensão condenatória ou encarregar-se
O segundo limite a considerar, relativamente ao da investigação criminal, ao legislador incumbe prover as
estatuto jurídico do juiz, no processo penal condenatório, regras de garantia que viabilizem o justo processo.
tem a ver com o reconhecimento de que as decisões judiciais Neste equilíbrio que tantos vezes é precário, a previsão
não são emanações de um poder divino e que a divindade legal de determinado tipo de prova para a proclamação do
que podem em si mesmas carregar é aquela própria ao que veredicto condenatório é perfeitamente assimilável, assim
de sublimemente divino é inerente a todo ser humano. como é aceitável a proibição, em tese, da aquisição e
Assim, temos de aceitar o erro como algo típico da ingresso, no processo, de determinados meios de prova, em
natureza humana e admitir que o juiz, por mais ponderado, alusão a princípios éticos.
sensível e preparado que seja, não está imune a errar.
Ocorre, todavia, que o erro em desfavor do acusado, no B. Da Alteração dos Fatos
processo penal, quando é descoberto converte-se em um
drama público que afeta a quase todas as pessoas e, quando
permanece encoberto, corresponde à mais terrível das 226 Gomes Filho, Antonio Magalhães. O Direito à Prova no Processo Penal,
injustiças, porquanto o acusado não tem sequer meios de pp. 32-33.
227
compartilhá-la. O artigo 167 do Código de Processo Penal prevê, excepcionalmente, a
possibilidade de suprir a ausência do exame por prova testemunhal, em virtude
Deste modo, a instituição de provas legais negativas tem de haver desaparecido os vestígios. De toda maneira, em nenhuma hipótese será
inequívoco valor garantístico, assim compreendidas estas aceita a confissão do acusado para suprir a ausência do citado exame.
Para finalizarmos a abordagem relativa ao estatuto do alguien es acusado de hurto y de este delito se
juiz, de conformidade com o princípio acusatório, é defiende, si se encuentra, después, com una
necessário ainda enfrentarmos dois pontos nevrálgicos: a condena por coacciones, aunque la pena sea
convicção fundada sobre a qualificação jurídica da infração inferior y hasta le pueda producir satisfacción
penal; e, conseqüentemente, o arbitramento motivado da espiritual el cambio del título de imputación, por
correspondente sanção. tener este último una menor carga de reproche
Trata-se, dito de outra maneira, do princípio da social, no cabe duda de que há quedado indefenso
congruência ou da correlação entre acusação e porque frente a esse delito de coacciones no se há
sentença.228Pode o juiz, validamente, condenar o réu por fato podido defender de una manera eficaz.
distinto daquele que é imputado na denúncia ou queixa?
É básico o princípio jura novit curia, em vista do qual o Como mencionamos, ao aludirmos ao estatuto jurídico
juiz certamente pode resolver a questão de mérito de acordo do autor, uma das suas facetas mais importantes está em
com a qualificação jurídica que estime mais ajustada aos determinar o objeto do processo, em relação ao qual serão
fatos provados. deduzidas as provas e haverá de se circunscrever a sentença.
Porém, em se tratando de processo penal condenatório, Trata-se de exercício da função de acusar, pois fundada
cabem alguns cuidados, em vista do fim de evitação de em um juízo provisório da existência de determinada
prejuízo ao exercício da defesa e, principalmente, com o infração penal (a existência de justa causa), coloca-se ao réu
objetivo de preservar a dinâmica dialética, pela qual às a infração que se lhe imputa, no plano duelístico peculiar à
partes incumbe a apresentação de tese e antítese e ao juiz, relação processual.
como coroamento do processo, a produção da síntese ou a É exatamente isso, ou, com outras palavras, cuida-se
escolha da tese que reputa mais acertada. aqui do fenômeno da imputação, ao qual em um processo
Enrique Ruiz Vadillo assinala o seguinte:229 penal democrático há de corresponder a atividade de defesa,
por força das garantias das convenções internacionais.
Es imprescindible que entre el objeto de la Assim, quando por exemplo o Ministério Público atribui ao
acusación y el qui sirve de soporte a la condena réu a prática de determinado furto, imputando-lhe esse
haya homogeneidad. La razón de la exigencia es la furto, permite que o réu se defenda dessa imputação. O
misma: la proscripción de toda indefensión. Son acusado pode confiar na eficiência da defesa, pois sabe que é
todas ellas manifestaciones del mismo principio. Si o acusador que lhe imputa o delito e não o juiz.
Também Grau, na linha de pensamento aduzida por
228 Sobre o tema, além dos textos adiante referidos, cumpre examinar duas
Vadillo, concorda que, com independência de suas mais ou
obras de inequívoco valor: Contributo alla Teoria della Sentenza Istrutoria menos amplas faculdades de modificar a qualificação
Penale, de Pietro Nuvolone, Padova: Cedam, 1969; e ³/D&RUUHOD]LRQHIUD jurídica do fato, não pode o Tribunal alterar o objeto do
$FFXVD H 6HQWHQ]D QHO 3URFHVVR 3HQDOH´, de Giuseppe Bettiol, in Scritti processo, nem, e isto é sumamente importante, condenar por
Giuridici, tomo I, Padova: Cedam, 1966. No direito brasileiro há também
os extraordinários trabalhos: A Sentença incongruente no processo penal, fatos de que o acusado não tenha podido defender-se.230
de Diogo Malan (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003) e Correlação entre Caso seja admitida a alteração substancial dos fatos, por
acusação e sentença, de Gustavo Badaró (São Paulo, RT, 2000). iniciativa do tribunal, ainda quando seja dada oportunidade
229 Vadillo, Enrique Ruiz. El Principio Acusatorio y su Proyeccion en la
Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y Tribunal
Supremo, p. 27. 230 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 43.
ao contraditório, do ponto de vista psicológico sem dúvida artigo 41 do Código de Processo Penal brasileiro. Conforme o
estará sensivelmente diminuída a possibilidade de o acusado caso, matar alguém é crime ou não e poderá caracterizar
se defender de verdade. A partir do exemplo anterior, ação dolosa ou culposa. Não são irrelevantes as distinções
podemos imaginar como deve se sentir o acusado ao saber (homicídio doloso, culposo, latrocínio, indiferente penal por
que é o juiz que lhe imputa o crime de furto. culpa exclusiva da vítima etc.).
A alteração da acusação equivale à alteração do pedido e Ao juiz caberá, de acordo com o princípio tantas vezes
da causa de pedir da ação penal, caso se queira trabalhar aludido ² jura novit curia ², a dicção do direito aplicável à
com categorias herdadas do processo civil, e a espécie. Assim, ao reconhecer que o fato provado é diverso
implementação da alteração da acusação representa daquele imputado ao réu pelo acusador, o juiz não poderá
modificação de elementos capitais da ação, direito do autor. proferir decisão condenatória. Não é possível tomar o lugar
Ao fazê-lo, isto é, ao se permitir que o juiz altere o teor da do juiz nesta tarefa de reconhecer o direito que regula a
acusação, na verdade o que ocorre é que se admite que o juiz situação concreta.
revolva a substância do direito da parte, que não lhe O juiz não poderá, entretanto, levar em consideração
pertence. Voltando ao exemplo anterior, podemos imaginar a suposto de fato, ainda que verdadeiro, diferente daquele
posição do acusado diante do quadro criado por uma posto em causa pela acusação, nem tampouco deverá propor
acusação do Ministério Público por receptação, qualificação jurídica distinta daquela apresentada pelo autor
transformada em acusação de furto pelo juiz. da ação penal se isso significar surpresa para a defesa em
Um contraditório porventura instaurado nestes termos razão das peculiaridades do processo penal, como é o caso do
é irreal, pois não há reação possível se o ato de conformação concurso aparente de normas (de tipos penais coexistentes),
da acusação não parte do adversário mas do julgador, ou, de para cuja solução nem sempre doutrina e jurisprudência
outra maneira, se o julgador se transforma em adversário. De estão pacificadas.232
que adiantará ao réu receber os autos do processo por oito Podemos acentuar que o princípio da substanciação no
dias para falar e, se quiser, poduzir provas (artigo 384, processo penal é mitigado, em face do princípio da ampla
caput, do Código de Processo Penal brasileiro) se está defesa.
evidente que será condenado por furto? Apenas critérios de obrigatoriedade da ação penal, de
Assinale-se com isso que não se trata de retornar ao economia processual e da necessidade de reafirmação do
tempo da teoria da individualização da causa de pedir, poder do Estado frente à criminalidade, os dois últimos
superada nesta quadra do desenvolvimento do processo tipicamente decorrentes do princípio inquisitório, que
penal pela teoria da substanciação.231 Em termos gerais,
contudo, podemos aduzir que se a identificação da causa de 232
Pela atual redação o artigo 383 do Código de Processo Penal brasileiro
pedir, base da pretensão, está determinada pelo suposto de permite que o juiz atribua nova qualificação jurídica ao fato imputado ao réu,
fato, tal seja, pelo elemento fático invocado, a realidade é que para corrigir erro de qualificação, ainda que em razão disso venha a aplicar pena
tal elemento só tem relevância no processo penal na medida mais grave. É a denominada emendatio libelli, descrita nestes termos: Art. 383.
O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou
em que está abrigado em uma moldura normativa definida da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.
(tipo penal de crime) e vem descrito, com seus elementos e Com essa redação e a pretexto de corrigir erro de qualificação da denúncia, o
circunstâncias, no ato formal de acusação, como exige o juiz poderá, por exemplo, reconhecer o concurso material entre o crime de falso
e o de estelionato, quando o Ministério Público imputou somente o de
estelionato em virtude de entender que este crime absorveu o falso (crime fim
231 Mellado, ob. cit., p. 39. absorvendo o crime meio). E tudo isso sem a audiência prévia do réu.
repudiamos, conferirão suporte a atitudes do tipo que acusatório, pelo qual responsavelmente o autor avalia e
autoriza o juiz, de ofício, a proceder à modificação da causa ajuíza a sua pretensão, consoante a compreensão que detém
de pedir. da qualificação jurídica dos fatos provados.
Em percuciente análise acerca da correlação entre Supor que o Ministério Público não saiba qualificar
acusação e sentença, no direito brasileiro, Diogo Malan juridicamente os fatos apurados no inquérito policial é estar
talvez seja hoje o único autor a chamar atenção para a em rota de colisão com a realidade. Eventuais erros materiais
permanência inquisitorial embutida no Código de Processo podem ser corrigidos pelo juiz, ouvido o acusador e o réu.
Penal de 1941, nesta área específica e para a política de Pontos de vista diferentes sobre a qualificação jurídica,
segurança pública que ela expressa. porém, não podem ser impostos ao acusador, sob pena de o
Assinala Malan: juiz tomar o lugar dele.
³2 JROSH GH (VWDGR GH  IRL MXVWLILFDGR SHOD É razoável que se possibilite ao acusador modificar, em
necessidade de se reforçar a autoridade governamental, face das provas surgidas durante a audiência, a qualificação
garantindo-se a ordem pública, a legalidade e as jurídica do fato, quer reconhecendo outro mais grave, quer
instituições sociais ± em meio a uma conjuntura de reconhecendo outro de igual ou menor gravidade que o
crise de autoridade, causada pelas tensões sociais: a original. Porém, admitir que o juiz o faça afronta o princípio
autoridade nacional pressupõe uma ordem una e acusatório, o que não é aceitável, mas se admite, quando
orgânica, e o princípio da autoridade é reforçado como muito, em uma medida de preservação das garantias do
um pilar em torno do qual se constrói a acusado, modificando-se a qualificação jurídica do fato para
nacionalidade´233 outra, que corresponda à infração de igual ou menor
Acrescenta Malan: gravidade.
³$V IHUUDPHQWDV TXH VHUYLUDP D HVVD restauração São, contudo, condições sine qua non de validade da
da autoridade estatal foram o estado de guerra, o alteração que o fato novo esteja descrito na acusação inicial
Tribunal de Segurança Nacional, a reforma da Lei de (ou no chamado aditamento), portanto deve estar contido
Segurança Nacional e o próprio Digesto Processual nela com todas as suas circunstâncias, e à defesa deve ser
Penal: o terreno da lei surge, assim, como um espaço oferecida oportunidade de debater e, eventualmente, se
privilegiado para a racionalização da autoridade e entender o defensor necessário, produzir provas, para que
para a ocultação do discurso da violência, uma vez que somente então seja proferido decreto condenatório. A
este utiliza a linguagem da ordem e da lei´234 desclassificação de roubo para furto, por exemplo, será
possível porque o fato furto está contido no roubo. Não será
Ora, quando ocorre de o processo penal assumir as possível, porém, reconhecer uma qualificadora do furto não
prerrogativas de Estatuto de Segurança Pública, no lugar de descrita de forma expressa na denúncia por roubo.
Código de implementação de garantias constitucionais, o O ideal, conforme o princípio acusatório, é que apenas
processo se afasta, naturalmente, do leito seguro e ao autor seja permitido alterar a qualificação jurídica do
democrático de um processo de partes, conforme o princípio fato, em qualquer hipótese. Se o acusador persistir na
posição original, com a qual o juiz não concorda, cabe a este
absolver o acusado, o que não impediria o processo pelo fato
233
MALAN, Diogo Rudge. A Sentença..., op. cit., p. 4. realmente verificado, já que este não foi objeto de
234
Idem. deliberação, com força de coisa julgada.
Aqui, entretanto, mudamos nossa opinião em relação às acusatoriedade.236
duas edições antecedentes do Sistema Acusatório. No início Na Espanha, decidiu o Tribunal Constitucional, sobre o
defendíamos que não afetava a hipótese o princípio da assunto, da seguinte forma:
proibição de bis in idem235 porque o fato julgado,
independentemente da qualificação jurídica que as partes lhe Correspondiendo, ante todo, al Tribunal la
atribuam, é diferente do fato real, revelado ao longo do calificación jurídica de tales hechos en virtud del
processo. principio iura novit curia, sin que pese a ello esa
Não é bem assim, A regra é que ninguém será calificación sea aleja al debate contradictorio, el
processado duas vezes pelo mesmo fato. A exceção em cual recae no sólo sobre los hechos, sino también
termos de garantia em prol do acusado só pode favorecer o sobre su calificación jurídica. (STC. 105/1993, de
acusado. Assim, independentemente de o fato real ser 23 de novembro de 1993)237
reconduzido de alguma forma ao tipo de crime expressado
na causa de pedir da ação penal deduzida no processo Em Portugal, onde há constitucional previsão da adoção
concluído, numa relação qualquer de continente a conteúdo do sistema acusatório, a disciplina da alteração substancial
(como no exemplo de furto e roubo, em que o furto está dos fatos está condicionada à seguinte máxima: Para além
contido no roubo), o segundo processo está proibido. da introdução do facto em juízo, à acusação tem por função
A oportunidade de a acusação demonstrar o fato sobre o a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do
qual funda a sua pretensão é única. De acordo com a processo, é ela que delimita o conjunto dos factos que se
Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto n. entenderem consubstanciarem um crime.238 Assim, há para
678/92) ou o acusador demostra a correção da sua pretensão
ou não poderá mais processar o réu.
236
Assim ocorre, segundo defendemos, como conseqüência O artigo 385 do Código de Processo Penal brasileiro dispensa a audiência
das implicações políticas e jurídicas do princípio do favor prévia da defesa e da acusação nos casos em que o juiz reconhece agravantes
não alegadas pelo autor da ação penal. Isso também viola o princípio acusatório.
rei, atuando como obstáculo aos abusos que inevitavelmente 237 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 121. Enrique Ruiz Vadillo
poderiam advir da divergência de juízos entre o acusador e o também, por sua vez, traz à luz decisão do Tribunal Superior Espanhol,
julgador. proferida em 28 de setembro de 1989, cujos termos são, literalmente, os
seguintes: No se puede penar un delito más grave que el que haya sido
Em conclusão, diga-se também que mesmo o simples objeto de acusación; No se puedem castigar infracciones que no hayan
ajustamento da qualificação jurídica da infração penal, em sido objeto de acusación; No se puede considerar un delito distinto del que
obediência ao princípio jura novit curia, ainda quando a fue objeto de acusación, aunque las penas sean iguales o incluso cuando la
petição inicial acusatória descreva minuciosamente o fato, correspondiente al delito innovado sea inferior a la del delito objeto de
acusación a menos que reine entre ellos una patente y acusada
haverá de ser promovido antes da emissão da sentença, homogeneidad; No puedem apreciarse circunstancias agravantes o
assim como as partes têm de ser provocadas para se subtipos penales que no hayam sido invocados por la acusación... (El
manifestarem sobre circunstâncias que agravam ou Principio Acusatorio y su Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del
Tribunal Constitucional y Tribunal Supremo, pp. 33-34). Acrescenta este
diminuem a pena, tornando a matéria alvo do debate último que o processo penal é um tríptico, sendo imprescindível que exista
contraditório, que é o núcleo fundamental da máxima um acusador, um acusado e um juiz, o qual não pode ocupar outra posição
que não seja a de julgar, porque, de outro modo, estará sendo, ao mesmo
tempo, acusador e juiz.
235 Ver artigo 8º, nº 4, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - 238 Isasca, Frederico. Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no
Decreto nº 678/92. Processo Penal Português, Coimbra: Almedina, 1992, p. 54.
o juiz limitação temática, traçando-se as fronteiras da De tudo quanto foi exposto, acredita-se tenhamos
pesquisa das provas. A ampliação da acusação, como abordado os elementos que emolduram o princípio
registramos, demanda a iniciativa do acusador e, a partir de acusatório, quer avaliado na estática observação das funções
determinada etapa do processo, consentimento do próprio primordiais no processo, quer em vista da dinâmica
réu em se ver processado conforme a alteração, dando determinada pelas relações sucessivas e ordenadas entre os
origem ao chamado caso julgado de consenso.239 principais sujeitos: autor, réu e juiz.
O foco no poder de definição do crime imputado ao réu Cabe, do que foi referido, mencionar que a presença, no
e o tratamento dispensado à matéria pelo Código de Processo ordenamento jurídico, do princípio acusatório, é
Penal brasileiro de 1941, inspirado no Código Rocco, fundamental para a constituição do sistema acusatório, mas
demonstram que a manipulação das funções processuais não suficiente.
para atribuir ao juiz atividade de parte autora, com Os clássicos autores, citados na introdução deste item,
independência da gestão da prova, encarna a política tiveram, a nosso juízo, a lucidez de perceber que o princípio
criminal da inquisitorialidade. democrático projetado no processo penal não se esgota, tão-
A gestão das provas nas mãos do juiz também somente, no modo como os sujeitos processuais se portam,
caracteriza a inquisitorialidade. E é assim porque deduzir em relação à lide ou ao caso penal. É indispensável, também,
provas e deduzir a acusação são comportamentos estabelecer um estatuto do próprio processo, concernente à
processuais das partes que se movem no processo motivadas forma como aparece perante a sociedade, na qualidade de
por interesses distintos do interesse do juiz. Este é ditado instrumento legítimo de solução deste caso.
pela imparcialidade e a presunção de inocência atua como Nesta hipótese, as normas e princípios sobre a forma
princípio constitucional de controle dessa imparcialidade. processual estão reciprocamente vinculados ao modelo de
Modificar o teor da acusação e produzir provas de ofício são processo penal democrático, apenas uma das variáveis
atividades que, em suma, atentam contra a presunção de possíveis, mas aquela escolhida politicamente para ser
inocência.240 implementada. Aí entram em jogo a oralidade e a
publicidade.
239 Isasca, Frederico. Ob. cit., p. 59. 3.2.3. CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA ACUSATÓRIO
240
Comissão instituída no âmbito do Miistério da Justiça, mediante Aviso n.
1.151, de 29 de outubro de 1999, presidida por Ada Pellegrini Grinover,
apresentou diversos anteprojetos de reforma do Código de Processo Penal
brasileiro. Entre eles está o que se transformou no Projeto de Lei n. 4.207/01, serão encaminhados os autos. Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se
que cuida da emendatio libelli e da mutatio libelli, respectivamente previstas entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova
nos artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal. Para adequar os citados existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida
dispositivos legais ao princípio acusatório estes passaram a ter a seguinte na acusação, o Ministério Público poderá aditar a denúncia ou queixa, se em
redação: Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública,
ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em reduzindo-se a termo o aditamento quando feito oralmente. §1º. Ouvido o
conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. § 1º. As partes, todavia, defensor do acusado e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de
deverão ser intimadas da nova definição jurídica do fato antes de prolatada a qualquer das partes, designará dia e hora para a continuação da audiência, com
sentença. §2º. A providência prevista no caput deste artigo poderá ser adotada inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de
pelo juiz no recebimento da denúncia ou queixa. §3º. Se, em conseqüência de debates e julgamento. §2º. Aplicam-se ao previsto no caput deste artigo as
definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão disposições dos §§ 3º e 4º do art. 383. §3º. Havendo aditamento, cada parte
condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. §4º. poderá arrolar até três testemunhas, no prazo de três dias. §4º. Não recebido o
Tratando-se de infração da competência do Juizado Especial Criminal, a este aditamento, a audiência prosseguirá.
‡DSUHGRPLQkQFLDGDSDODYUDIDODGD
Com efeito, Ferrajoli destaca que a oposição dicotômica ‡DLPHGLDWLGDGHGDUHODomRGRMXL]FRPDVSDUWHVHFRP
entre acusatório e inquisitório implica em designar uma os meios de prova;
dupla alternativa: de um lado, modelos opostos de ‡ D LGHQWLGDGH ItVLFD GR yUJmR MXGLFDQWH HP WRGR
organização judicial; de outro, métodos diferentes de decorrer do processo;
averiguação judicial. ‡DFRQFHQWUDomo da causa no tempo.
Do primeiro ponto defluem distintas concepções de juiz
penal, enquanto do segundo dimanam dois tipos diversos de Não se concebe procedimento penal no curso do qual
juízos.241 Na seqüência, adverte o doutrinador que se pode atos de instrução criminal, tal seja, de aquisição e
chamar acusatório a todo sistema processual que concebe o conservação das provas e de debates sobre o material
juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das incorporado, para o fim de conformação da convicção
partes e o juízo como uma contenda entre iguais iniciada judicial, desdobrem-se no tempo, distantes uns dos outros e
pela acusação, a quem compete o ônus da prova, praticados perante diferentes juízes.
enfrentada a defesa em um juízo contraditório, oral e Desde o interrogatório do acusado, nas hipóteses legais
público e resolvida pelo juiz segundo sua livre convicção. em que esteja previsto, até a audiência das razões finais das
A organização da Justiça Criminal, portanto, configura partes, a concentração dos atos processuais é imperativo de
o ambiente em que o processo será instaurado e se bom senso e de respeito ao direito ao julgamento justo, o que
desenvolverá. E as estruturas processuais terminam demanda, dadas as peculiaridades da expressão oral,
contaminadas pelas modernas burocracias em que se fundamente o juiz sua decisão sobre aquilo com o que
constituem os Poderes Judiciários atuais, de tal modo que a diretamente teve contato.
Justiça Criminal será mais ou menos acusatória, com Deve ser salientado que não é necessário que a sentença
independência da previsão legal do princípio da tripartição seja proferida oralmente, desde que seus fundamentos
de funções, conforme forem mais ou menos favoráveis a isso tenham decorrido da força do contato imediato com as
as próprias burocracias estatais. provas, que vão impregnar o raciocínio judicial. Nem
O princípio acusatório não sobrevive em modelos de tampouco se dispensa a documentação dos atos praticados.
Justiça Criminal dominados pela escrituração. Tampouco Porém, o que é virtualmente da natureza do sistema
tem espaço em processos sigilosos. acusatório, como proposição de uma estrutura voltada à
É isso que será examinado nos itens subseqüentes. efetivação do justo processo, é que, consoante há mais de
cinqüenta anos afirmava Chiovenda, a audiência seja
3.2.3.1. Da Oralidade utilizada para o trato da causa.243
Lúcio Bittencourt advertia com precisão que livre
Na lição clássica de Francisco Morato,242 compreende- convencimento sem processo oral é pura ficção.244
se por oralidade a forma procedimental em virtude da qual
estão reunidos os seguintes caracteres:

243 Chiovenda, *LXVHSSH ³$ 2UDOLGDGH H D 3URYD´ in Processo Oral, Rio de


241 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 564. Janeiro: Forense, 1940, pp. 1-24 e 129-149.
242 Morato, )UDQFLVFR ³$ 2UDOLGDGH´ in Processo Oral, Rio de Janeiro: 244 Lúcio Bittencourt apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito
Forense, 1940, pp. 1-24. Processual Penal, vol. I, p. 73.
Há que se considerar também, como faz Hassemer,245 em conta as impressões registradas por ele durante o
que o caráter do processo penal reflete com grande clareza a processo, formando sua convicção com base nelas, mas
racionalidade de uma cultura jurídica e a discussão política explicitando-a por meio de referência a métodos de
acerca das posições jurídicas na produção do caso e na interpretação ² gramatical, histórica, teleológica ou
preparação da sentença,246 postulado fundamental em sistemática ² que em verdade servem apenas para expor
nosso pensamento a respeito do sistema acusatório. O racionalmente a própria conclusão, definida com
processo penal tem caráter histórico e político. anterioridade.
Este tipo de processo se orienta em direção a uma Os que têm experiência forense sabem que não
espécie de procedimento que assegure a máxima raramente as partes acreditam, em virtude do modo como o
contraposição dialética, sem perder de vista a noção básica juiz dirige a audiência, que determinado tipo de prova está
de que não há dialética sem possibilidade de diálogo (dia: exercendo significativa influência na formação da convicção
reciprocidade; logos: razão). E o diálogo pressupõe a do julgador e acabam se surpreendendo quando leêm a
compreensão do caso e das posições que os sujeitos sentença e descobrem que para o juiz a prova decisiva era
processuais legitimamente devem ocupar, assim como a outra, sobre a qual as partes não perceberam qualquer
existência de um espaço onde possa ser travado. espécie de atenção diferenciada. Isso ocorre quando o
Explicando: a ênfase na oralidade como componente mesmo juiz preside o processo do início ao fim e é ainda
democrática do processo penal e elemento constitutivo do mais grave e perigoso quando são diferentes juízes, cada qual
sistema acusatório tem a ver com o reconhecimento de que participando de uma etapa processual, os responsáveis pela
os métodos de aplicação do direito, ou melhor, de aquisição e ingresso da prova no processo e por sua avaliação
interpretação das regras jurídicas e de sua efetiva aplicação definitiva.
aos casos concretos, não abrangem toda a atividade Daí Hassemer distinguir, a nosso juízo com razão, entre
intelectual do juiz quando sentencia. os métodos de produção e de apresentação do resultado do
Os que conhecem a atividade de decidir têm clara a processo, relacionando as chamadas técnicas de
idéia de que a valoração dos fatos pelo juiz não se expressa interpretação ao último caso.248
de forma completa na sentença. Novamente recorrendo a Para que a análise dos casos penais não se perca em um
Hassemer, vale dizer que haverá sempre uma parte de dita círculo de interpretação de textos ² dos textos que
valoração que permanece oculta, que fica no âmbito da registram, nem sempre fielmente, os depoimentos das
CONVICÇÃO ÍNTIMA.247 Nem mesmo o dever de motivação testemunhas, aos das razões das partes e da sentença ² é
das decisões tem o poder de fazer revelar todas as forças que indispensável que o diálogo processual tenha lugar em um
combinaram para levar o julgador a adotar determinada tese. ambiente apropriado, no qual as provas sejam produzidas, as
Mais do que isso, na constituição da conclusão a partes possam debater livremente e o juiz decida
propósito da existência da infração penal e da compreendendo na maior e melhor dimensão possível o que
responsabilidade do imputado há a tendência de o juiz levar provavelmente aconteceu.
A interpretação de textos será sempre atribuição de
significados pelo intérprete; no entanto, como sublinha Lage,
245 Hassemer, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, Barcelona: Bosch,
1984.
246 Ob. cit., p. 172, tradução livre.
247 Hassemer, Winfried. Ob. cit., p. 145. 248 Hassemer, Winfried. Ob cit., p. 148.
todo texto implica versões ou teorias sobre os fatos,249 razão tradição burocrática do Estado moderno.251
por que não existe texto descomprometido, o que em A admissão de que a forma oral faz diferença ± e não é
processo penal pode constituir veículo de injustiças e de mero capricho da moderna doutrina do processo penal -, está
perseguição política, social ou econômica. ditada pela compreensão da ideologia que orientou a
A oralidade deixa de ser, exclusivamente, uma questão escrituração no início do Séc. XX.
de predominância da palavra falada para se constituir em Com efeito, como bem ressaltou Josefina Martinez, a
exigência de que uma causa não seja decidida por juiz que forma escrita foi implementada como resultado do
não haja tido contato direto com as provas e com os reconhecimento da superioridade da razão. A suprema
argumentos das partes, em um ambiente capaz de capacidade humana de compreender a sua existência e
proporcionar condições ideais de diálogo. perceber as leis da natureza que a regem refletia a postura
Conseqüência do que está assinalado é que, além da científica positivista dominante no início do século passado.
natural identidade física do juiz, o julgamento dos recursos Quebrar as amarras com o divino (com suposta ordem
deve ficar restrito ao conhecimento de matéria natural emanada de Deus) e descobrir fórmulas racionais de
exclusivamente jurídica, a não ser que seja permitido às regulação de todos os fenômenos passou a ser a obsessão
partes desenvolver atividade probatória em segundo grau de daqueles tempos.
jurisdição; ademais, o emprego das modernas tecnologias de O governo dos homens também haveria de ser
comunicação terá de considerar a possibilidade de o juiz, orientado pela racionalidade e as burocracias deveriam
destinatário das provas, ouvir, pessoalmente, as testemunhas exprimir esse domínio da razão em todas as etapas da gestão
mas não se deve aceitar que a inquirição delas, do réu ou pública dos conflitos.
mesmo que toda audiência tenha lugar em um ambiente Paradoxalmente, a realidade é que em termos de
hostil à liberdade de todos os envolvidos. processo penal a burocracia da Inquisição fora a primeira a
O Tribunal Constitucional Espanhol, na sentença se instalar na Europa, muito antes do sucesso do positivismo
96/1987, decidiu que o vínculo entre o Estado de Direito e a e do direito natural fundado na razão. E a funcionalidade da
exigência de imparcialidade do julgador impunha a burocracia do Sistema de Justiça Criminal da inquisição,
declaração de nulidade de julgamento levado a cabo em com a previsão de seus recursos de ofício e a forma escrita
prisão de segurança máxima, onde supostamente foram dos atos processuais, revelara-se eficiente mecanismo de
cometidas pelos funcionários as agressões contra os controle social.252
detidos.250 Assim, apesar de um primeiro momento de Reformas
Não custa lembrar, com María Josefina Martinez, que a Processuais ter-se voltado à oralidade,253 o século XIX e o XX
tensão entre forma escrita e oral do processo penal foi
resolvida no século passado (Séc. XX), em favor da forma
escrita, porque os autos do processo (registro escrito dos atos 251
JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, in: Sistemas Judiciales, Ano 4,
processuais) tornaram-VH HVSpFLH GH ³SURGXWR GLUHWR´ GD n. 7, Buenos Aires, Centro de Estudios de Justicia de las Americas ± CEJA,
2004, p. 4.
252
MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires,
Editores del Puerto, 2002, p.261.
253
Vale a pena acompanhar a resenha de Franco Cordero acerca do
249 Lage, Nilson. Controle da Opinião Pública, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 103. desaparecimento e da reencarnação da Ordenação Criminal francesa de 26 de
250 López Ortega, ob. cit., p. 87. agosto de 1670, eliminada entre 1790 e 1800 e ressurgida dos debates
viram florescer os processos penais da matriz européia processuais. A defesa oral, na frente do réu, exige que o
continental (de que o nosso Código de Processo Penal de defensor demonstre conhecimento da causa e se empenhe
1941 é herdeiro direto) construídos em cima de estruturas em busca do resultado mais favorável ao acusado. Não
burocráticas da inquisição. bastam reiterações de manifestações escritas anteriores. Da
Como foi dito, a forma escrita subtrai o contato do juiz mesma maneira a acusação deverá se posicionar sobre a
com acusado e testemunhas. Incensada pelo culto à razão, prova. E o juiz exporá as razões de sua decisão. A troca de
faz supor que este contato é desnecessário: afinal, o que a papéis (mutatio libelli) entre acusação e juiz é bastante
visão direta da audiência pode ministrar que já não esteja dificultada.
nos autos?! O que não está nos autos não está no mundo! É bem verdade que a cultura autoritária, legado da
O mesmo poder de dominação que a Justiça Eclesiástica Inquisição, produz suas permanências. Assim, é válida a
exercia por meio da Inquisição, em um mundo de poucos advertência de Josefina Martinez quanto à tendência de
letrados e multidões de analfabetos, passou a ser exercido transformar os processos orais criados com as Reformas na
pelos órgãos do Estado, que manejavam (manejam) a América Latina em processos escritos, na prática, com a
linguagem técnica do Direito (e ainda mais técnica dos recolocação da escrituração no centro mediante recurso a
autos) para impor o Poder do Estado ao ditar decisões apresentação de memoriais após as audiências.254 O cuidado
penais. está em não permitir que isso signifique a renovação da
Novo paradoxo: ninguém poderá escusar-se de cumprir centralidade da escrituração, com todos os defeitos acima
a lei por alegar ignorância, desconhecimento da lei! Ainda enunciados, preservando-se a identidade física do juiz e o
que seja analfabeto. Todavia, as fórmulas escritas dos pronunciamento fundamentado das partes.
procedimentos penais estão acessíveis a poucos! Como Meios mecânicos ou eletrônicos de registro fiel das
controlar o conteúdo de justiça da sentença penal se não se intervenções de partes e testemunhas contribuirão, por
compreende os termos da sentença fora do linguajar técnico- certo, para a adoção da filosofia da oralidade.
jurídico? E, também e mais importante, como participar do
³GLiORJR´ SURFHVVXDO VH D PDLRULD GDV LQWHUYHQo}HV QR 3.2.3.2. Da Publicidade
processo é escrita e, por isso, essas intervenções exigem
habilidade especial de que só advogados, Ministério Público A publicidade também se insinua como característica do
e juízes são dotados? sistema acusatório, na medida em que o segredo, como ficou
A oralidade converte-se em condição de participação assentado em outra passagem, é compatível, como regra
efetiva no processo. Sem a mediação da forma escrita o geral, exclusivamente com regimes autoritários e processos
acusado poderá se fazer ouvir, a vítima e as testemunhas penais inquisitórios.
também, e as decisões não terão como se ocultar em
linguagens estranhas à vida cotidiana. I. DA PUBLICIDADE TRADICIONAL
Neste ponto percebe-se que oralidade não é mera
questão de forma. A matriz acusatória depende dela para Cumpre dizer, em abono ao acima mencionado, que a
definir os papéis concretos exercitados pelos sujeitos publicidade tanto pode ser analisada como decorrência da

legislativos, na forma do Código de Instrução Criminal de 1808. CORDERO, 254


Franco. Procedimiento..., op. cit., p. 26-59. JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, op. cit., p. 6.
necessidade de participação do público na gestão da coisa atos processuais das partes, do juiz e dos demais sujeitos
pública, inclusive, evidentemente, na gestão das decisões deverão ser conhecidos na totalidade e tempestivamente pela
judiciais sobre os casos penais, como pode ser vista na parte adversa,257 razão por que defende que este modelo de
condição de dar ao público, na qualidade de espectador, publicidade está ligado ao princípio do contraditório.
satisfação a respeito da maneira como os agentes do Estado É evidente que os atos de investigação criminal
exercem as suas funções. (inquérito policial e outros) dependerão, na maioria das
Neste último caso, frisa com seguro fundamento Vicente vezes, da preservação do sigilo para que conduzam a
Greco Filho, atende a publicidade à função de garantia das resultados positivos. Pode-se dizer, então, que estes atos,
outras garantias, inclusive da reta aplicação da lei,255 por embora procedimentais e sujeitos ao princípio da legalidade,
cujo meio podem os cidadãos controlar, de forma adequada, não têm valor processual, não são atos processuais, e,
o cumprimento da exigência de respeito aos direitos básicos, independentemente de passarem pelo filtro do contraditório,
além da moralidade e impessoalidade da ação estatal. Sem nunca estarão dotados da aptidão para produzir efeitos
perigo inaceitável para o sistema, a publicidade fica limitada jurídicos. Todavia, no curso da investigação preliminar, atos
somente nas situações pertinentes à preservação de outros processuais de natureza cautelar poderão ser necessários e
direitos fundamentais, por meio da coordenação do exercício deverão ser praticados. Neste caso, a publicidade interna
de tais direitos, de acordo com o princípio da funciona como referimos anteriormente, ao tratarmos da
proporcionalidade. Defesa, de forma diferida, muito embora não se possa
Justamente em virtude das restrições designadas recusar à Defesa acesso às informações porventura obtidas e
expressamente na Constituição da República de 1988, aos procedimentos adotados por ordem judicial.
classifica-se em publicidade para as partes e em geral e, sob Em perspectiva parecida colocam-se as questões dos
outro aspecto, em imediata e mediata, definindo-se a procedimentos híbridos, que não são exclusivamente
publicidade interna como orientada com exclusividade às investigação criminal (etapa de preparação para o exercício
partes.256 da ação penal) e também não são processos penais em sua
A eleição da publicidade como elemento comum e inteireza, pois nem sempre estão munidos de eficácia
permanente do processo permite-nos chegar à conclusão de jurídica para dar ensejo a soluções de mérito definitivas,
que, contemporaneamente, o próprio processo pode ser capazes de submeter decisões à qualidade de coisa julgada
definido como procedimento público em contraditório. material.
Reduzida a publicidade, fora dos casos expressamente No Brasil, temos o termo circunstanciado, previsto no
previstos nas Constituições e nas leis (no Brasil, na artigo 69 da Lei no 9.099/95, que substitui o inquérito
Constituição da República), os atos processuais não estarão policial em relação às chamadas infrações penais de menor
aptos a produzir efeitos jurídicos, sendo, por isso, inválidos. potencial ofensivo. Trata-se, sem dúvida, de modalidade de
De acordo com o magistério de López Ortega, a investigação criminal cuja instauração define a priori quem é
publicidade para as partes, ou interna, significa que todos os o investigado e quem é o suposto ofendido, de sorte a
estabelecer posições processuais que serão importantes
conforme o desenrolar do procedimento.
255 Greco Filho, Vicente. Tutela Constitucional das Liberdades, São Paulo: A rigor, como procedimento de investigação, o termo
Saraiva, 1989, p. 113.
256 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. 1, p.
75. 257 López Ortega, ob. cit., p. 41.
circunstanciado deveria estar protegido pelo sigilo peculiar a presença, em determinados atos, às próprias partes e seus
toda investigação criminal. No entanto, as regras dos artigos advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a
74, 75 e 76 da Lei, prescrevendo a possibilidade de o preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo
investigado, do ofendido e do Ministério Público chegarem a não prejudique o interesse público à informação.
acordo sobre a composição do conflito em torno de infração Em nossa opinião, a mudança do dispositivo
penal de menor potencial ofensivo, transação a ser constitucional há de ser interpretada com todo cuidado. A
homologada por sentença, gera a necessidade de dotar estes regra permanece sendo a publicidade dos atos processuais. A
procedimentos do mesmo tipo de publicidade que exceção não pode prejudicar o direito de defesa a ponto de
acompanha os processos penais tradicionais. inviabilizá-OR 3RUWDQWR D FOiXVXOD ³HP FDVRV QRV TXDLV D
De outra maneira, estaríamos subtraindo do público os preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo
mecanismos de solução destes conflitos de interesses, cuja não prejudiqXH R LQWHUHVVH S~EOLFR j LQIRUPDomR´ Ki GH VHU
solução, em que pese não importar em aplicação de pena interpretada como exigência de ponderação dos interesses
privativa de liberdade, poderá representar frustração aos em jogo, com prevalência do interesse público à informação.
princípios de moralidade, legalidade e impessoalidade. Somente quando o predomínio deste interesse público
Convém ressaltar que no caso brasileiro a Emenda transformar-se em causa de dano à honra, imagem ou
Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004, modificou qualquer outro direito protegido por estar inserido na esfera
a redação do artigo 93, inciso IX, da Constituição da de intimidade da pessoa afetada (que, por exemplo, pode ser
República, no trecho em que trata do sigilo. a vítima do processo), caberá ao juiz, fundamentadamente,
A redação original era a seguinte: restringir o sigilo.
Art. 93. [...] Não será possível inverter a regra de tutela prevista na
IX ± todos os julgamentos dos órgãos do Poder Constituição para restringir sempre a publicidade e limitar
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as os casos de presença do acusado em sala de audiências, e
decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse somente em casos excepcionais autorizar a presença dele.
público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às A publicidade externa será tratada no item subseqüente,
próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes. tendo em vista as características dos atuais meios de
Este dispositivo está em harmonia com o artigo 5º, comunicação.
inciso LX, da Constituição da República brasileira, que não
foi alterado pela referida Emenda: II. DOS JUÍZOS PARALELOS DA IMPRENSA
Art. 5º. [...]
LX ± a lei só poderá restringir a publicidade dos atos É preciso salientar que nos dias atuais a nota de
processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse democracia referida ao moderno processo penal há de
social o exigirem. propor nova reflexão no tocante à publicidade, por conta da
Pela nova redação, trazida pela Emenda 45, o artigo 93, modificação tanto da esfera pública, que não mais se
inciso IX, da Constituição da República brasileira passa a ter restringe ao Estatal ou não se confunde com ele, como em
a seguinte redação: virtude da verdadeira revolução proporcionada pelo
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder desenvolvimento das tecnologias de comunicação e sua
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as forma de penetração e influência na complexa sociedade de
decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a massas.
Habermas recorda a trajetória liberal do princípio da tornar público; ao invés de controlar o exercício da
publicidade, focalizando o fato de, nos tempos das justiça por meio dos cidadãos reunidos, serve cada
revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, na Europa vez mais para preparar processos trabalhados
Ocidental, a publicidade procurar submeter a pessoa ou a judicialmente para a cultura de massas dos
questão ao julgamento público, tornando as decisões consumidores arrebanhados.
políticas sujeitas à revisão perante a opinião pública.258
Nos dias de hoje, porém, o controle empresarial dos Garapon igualmente adverte para o poder (contrapoder)
meios de comunicação de massas, a lógica da da mídia e a maneira como é empregado especialmente nos
competitividade e do mercado que orienta a atuação deles e a casos penais,260 ao tempo em que Pierre Bourdieu analisa
distorção da própria noção de publicidade, que, antes de com competência a influência da sociedade espetacular, da
incentivar a participação democrática da maioria das pessoas ansiedade midiática e da informação como mercadoria de
relativamente aos negócios da sua cidade e de seu país, anula consumo sobre os juízes, destacando que há aqueles que nem
essa participação, constroem uma nova realidade, sempre são os mais respeitáveis do ponto de vista das
paradoxalmente virtual ou espetacular. normas internas do campo jurídico mas que podem servir-
No mesmo texto, Habermas provoca nossa observação, se da televisão para mudar as relações de força no interior
acentuando que:259 de seu campo e provocar um curto-circuito nas hierarquias
internas.261
Na mudança de função do Parlamento, torna- Nos mesmos moldes, em 1995, chamávamos atenção
se evidente a natureza problemática da SDUD LVVR QR DUWLJR ³2SLQLmR 3~EOLFD H 3URFHVVR 3HQDO´262
µPUBLICIDADE¶HQTXDQWRSULQFtSLRGHRUJDQL]DomR preconizando nova postura diante do fenômeno da mídia e
da ordem estatal: de um princípio de crítica das suas relações com o processo penal.
(exercLGD SHOR S~EOLFR  D µPUBLICIDADE¶ WHYH A exploração das causas penais como casos
redefinida a sua função, tornando-se princípio de jornalísticos, com intensa cobertura por todos os meios, leva
uma integração forçada (por parte das instâncias à constatação de que, ao contrário do processo penal
demonstrativas ² da administração e das tradicional, no qual o réu e a Defesa poderão dispor de
associações, sobretudo dos partidos). Ao recursos para tentar resistir à pretensão de acusação em
deslocamento plebiscitário da esfera pública igualdade de posições e paridade de armas com o acusador
parlamentar corresponde uma deformação no formal, o processo paralelo difundido na mídia é superficial,
consumismo cultural da esfera pública jurídica. emocional e muito raramente oferece a todos os envolvidos
Com efeito, os processos penais que são igualdade de oportunidade para expor seus pontos de vista.
suficientemente interessantes para serem A disparidade de tratamento que, em muitas ocasiões, é
documentados e badalados pelos meios de
comunicação de massa, invertem, de modo
260 Garapon, Antoine. Juez y Democracia, Espanha: Flor del Viento, 1997, pp.
DQiORJR R SULQFtSLR FUtWLFR GD µPUBLICIDADE¶ GR 90-110.
261 Bourdieu, Pierre. Sobre a Televisão, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.
81.
258 Habermas. Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro: Tempo 262 3UDGR *HUDOGR ³2SLQLmR 3~EOLFD H 3URFHVVR 3HQDO´ in Ensaios Críticos
Brasileiro, 1984, p. 235. sobre Direito Penal e Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen
259 Habermas. Mudança Estrutural da Esfera Pública, ob. cit., pp. 241-242. Juris, 1995.
tratada como cobertura isenta e lisa do meio de organização do sistema de direitos fundamentais em sua
comunicação, que procura acentuar sua liberdade em face etapa inicial considerou a necessidade histórica de conter o
dos investigados quando porventura estes integram ou são poder do Estado, opondo-lhe barreiras consistentes nas
vistos como parte das elites políticas, econômicas ou liberdades públicas.
intelectuais, na verdade está a descobrir um fato e produzir Era e de alguma maneira ainda é assim porque ao
algumas danosas conseqüências: a presunção de inocência Estado são conferidos poderes cujo exercício implica em
sofre drástica violação, pois a imagem do investigado é virtual interferência na esfera privada das pessoas,
difundida como da pessoa responsável pela infração penal; e ameaçando o status de dignidade de que devem ser
em vista disso, o desequilíbrio de posições que os sujeitos portadores todos os seres humanos, independentemente de
têm de suportar durante o período de exposição do caso pela quaisquer outras considerações.
mídia transfigura os procedimentos seculares de apuração e No plano do processo penal, a proibição do emprego da
punição, passando subliminarmente a idéia do caráter tortura, a garantia da inviolabilidade física, do domicílio, das
obsoleto e ineficiente das garantias processuais, a que se comunicações e do patrimônio, conjugam-se como regras
soma a percepção do processo penal como meio demorado destinadas a proteger a honra, a liberdade e a vida dos
GHVHID]HUMXVWLoDHPFRPSDUDomRFRPD³FpOHUH´H³SHUIHLWD´ indivíduos, sendo que a crônica do exercício arbitrário do
investigação da mídia. poder registra o emprego do processo penal como forma de
É indiscutível que em semelhante situação o devido exclusão e controle dos grupos sociais indesejáveis,
processo legal e a liberdade de imprensa sofrem e assim esta naturalmente ao mesmo tempo em que se procurava
última, que se apresenta como direito civil elementar em controlar as ações que realmente atentavam contra
uma sociedade democrática, pode terminar produzindo em interesses expressivos das comunidades.
seu extremo aquilo que deveria evitar: um modelo Ter tudo em um mesmo conjunto sempre facilitou o
autoritário de exercício de poder, em virtude de que os poder no instante de encontrar um pretexto para
procedimentos acabam tendo valor exclusivamente formal. excepcionar o emprego de meios processuais racionais e
Convém aprofundar um pouco mais a análise para éticos de apuração das infrações penais, de sorte que a defesa
trazer à tona a questão dos procedimentos ilegais de social fundamentou discurso de compressão de exercício de
apuração dos fatos, de que os meios de comunicação se direitos fundamentais em condições de justificar o processo
socorrem em muitas oportunidades, e que transmitem a penal dos regimes autoritários de meados do século XX, na
imagem do crime flagrado enquanto ocorre (a antiga Europa Ocidental.
verdade real, agora com nova roupagem), amplamente Apesar disso, o movimento de internacionalização dos
documentado e provado, supostamente cabendo à Justiça direitos fundamentais, iniciado após o fim da Segunda
tão-só sacramentar o veredicto de condenação e punir o Guerra Mundial, ocupou espaços e detonou irreversível
culpado.263 conscientização do caráter inalienável e irrenunciável destes
Como consignado na primeira parte deste trabalho, a direitos, obrigando o Estado a perseguir o delito e punir o
delinqüente com as armas dispostas em um regime de estrita
263
legalidade e eticidade.
Renovo aqui a sugestão da leitura do texto de Aury Lopes Jr. sobre Ocorre que o desenvolvimento da comunicação de
evidência, prova, tempo e processo penal. Introdução Crítica ao Processo Penal:
Fundamentos da Instrumentalidade Garantista, Rio de Janeiro, Lumen Juris, massas, em um contexto de sociedade capitalista e tomando
2004. a forma cada vez mais acentuada de empresas transnacionais
de comunicação (as grandes corporações, que monopolizam interesses de natureza penal é ² e sempre deverá ser ² o
estes meios), edificou novo tipo de poder, neste caso fora do processo judicial. Portanto, o ponto de vista defendido em
Estado. ³2SLQLmR 3~EOLFD H 3URFHVVR 3HQDO´ HP  FRQWLQXD
A lógica de freios e contra-pesos não funciona em válido. Nos casos de intensa exploração pela mídia, é
relação a eles, que preconizam auferir legitimidade em conveniente que se proceda ao desaforamento temporal,
virtude do consumo massivo das informações que veiculam. suspendendo o curso do procedimento enquanto durar o
O emprego da censura não é aceitável, pois no lugar de estado de excitação social.
eliminar a doença mata o paciente, abrindo caminho para o Finalmente, visando resguardar a coerência interna
extermínio da liberdade de informação e expressão.264 entre os diversos elementos constitutivos do sistema
Embora se saiba que, no tocante ao funcionamento acusatório, quando confrontados com a publicidade pós-
geral das corporações do ramo, a liberdade de imprensa é moderna, convém seguir e ampliar o exemplo espanhol, pelo
ditada por interesses mercadológicos, sobrevive em qual, em virtude da ordem ministerial de 27 de novembro de
importante medida a liberdade de informação de que fazem 1959, completada pelo ofício circular de 22 de abril de 1985,
uso os operadores da imprensa e que tem sido fundamental o Ministério Público está autorizado a emitir comunicados
para esclarecer as pessoas (detentoras do direito a serem escritos, destinados à imprensa, a fim de evitar informações
informadas) a respeitos de fatos relevantes da vida pública e errôneas.266 A propósito destes comunicados, deve a lei
social. garantir à parte que se sentir prejudicada o direito de fazer
Com base nisto, parece que o controle das situações de uso de igual expediente, assegurando-se, assim, não só a
conflito entre liberdade de imprensa e devido processo legal liberdade de informação como também o exercício desta
está em se proibir à imprensa aquilo que é igualmente liberdade verdadeiramente como função social.
proibido ao Estado, isto é, fazer uso de informações obtidas É sempre bom lembrar que as portas fechadas aos
criminosamente. esclarecimentos públicos ² que devem ocorrer
Como a censura prévia é impossível,265 duas alternativas excepcionalmente, em casos de repercussão, quando
podem ser consideradas: o recurso aos mecanismos de flagrantemente uma informação tida como errônea ganha
responsabilidade tradicional, de natureza reparatória; e a curso livre e é capaz de conformar a opinião pública ² são
intransigente proibição de que as partes do processo lancem ultrapassadas por conta de práticas clandestinas,
mão das provas obtidas dessa maneira, a qualquer título. insuscetíveis de serem controladas.
Ademais, a fidelidade ao sistema acusatório implica em O processo penal democrático necessita da publicidade
estipular que a sede para a solução dos conflitos de dos seus procedimentos e assegurá-la pode impedir que se
coloque no seu lugar a publicidade espetacular dos atores
264 que deles tomam parte, além de facilitar o controle e coibir
Sobre censura é indicada a leitura de Liberdade de Informação e o Direito
Difuso à Informação Verdadeira, de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de os excessos.
Carvalho, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 129-135, que no mesmo trabalho
SHVTXLVDRSURMHWRGDFKDPDGD³/HLGD0RUGDoD´
265 López Ortega refere a experiência do direito inglês, com as limitações 3.2.4. A TÍTULO DE CONCLUSÃO
prévias à liberdade de informar asseguradas pelo emprego da medida
denominada contempt of court, prevista no Contempt of Court Act, de 1981. São estas, em síntese, as características de sistema e
Assinala que na Grã-Bretanha o interesse do público na liberdade de expressão
deve ceder ante o interesse do público de não impedir ou ameaçar gravemente
o curso da justiça. Ob. cit., p. 70. 266 López Ortega, ob. cit., p. 74.
princípio acusatórios, pesadas e sopesadas as correntes
doutrinárias envolvidas em seu estudo. Várias também são,
como vimos, as opiniões, algumas das quais são até mesmo
opostas ou conflitantes entre si, motivo por que é
conveniente encerrar este tópico com a advertência de José
António Barreiros:267

Não há, assim, um conceito aprioristicamente


fundado de estrutura acusatória ² a que os
concretos ordenamentos processuais penais se
tenham que sujeitar ² mas uma filosofia da
máxima acusatoriedade possível, que só após a
análise especificada de cada ordenamento
processual penal se poderá delinear
concretamente no que à sua caracterização
fundamental respeita.
A aferição da constitucionalidade de um
sistema processual penal passa, deste modo, não
pela subsunção estática dos institutos jurídicos
concretos que ela admita aos comandos abstractos
da Constituição mas pela análise ponderada da
respectiva estrutura constitutiva, tendo em vista
recortar-lhe os grandes princípios estruturadores,
reconstituir-lhe o jogo de inter-relações dos vários
agentes nele participantes, extractar-lhes os
módulos, fases e graus de procedimento.
Trata-se, ao invés de muitos outros casos em
que a constitucionalidade esteja em causa, de
aferir um sistema, com toda a globalidade de
inter-relações, uma estrutura, com toda a
complexidade do seu modo particular de
configuração.

267 %DUUHLURV -RVp $QWyQLR ³$ 1RYD &RQVWLWXLomR 3URFHVVXDO 3HQDO´ in


Portugal ² O Sistema Político Constitucional. Mario Batista Coelho
(coord.), Lisboa: Instituto de Ciências Jurídicas, 1989, p. 769.
4. A Eleição Constitucional do Sistema oculta, pelo que pode nos ensinar de nós mesmos e das
Acusatório alternativas que a ordem social, política e jurídica tem
condições de oferecer.
Neste contexto, quase sempre olvidamos que os
portugueses, ao chegarem nestas terras, encontraram uma
população de cerca de dois milhões de pessoas, que
No Brasil, certamente não é tarefa simples assinalar
ocupavam a Costa Atlântica e tinham a partilhar, em
com precisão que sistema processual penal vigora ou em
circunstâncias desconhecidas para os europeus,
outras épocas que sistema imperou. A forma de definir a
características comuns.1
questão passa pelos interesses que movem os juristas,
É da tradição dos nossos estudos jurídicos, talvez para
motivados pelo sentido e função que atribuam ao Processo
não termos de refletir sobre as condições e as conseqüências
Penal e pela maneira como vivem ou viveram a experiência
do genocídio perpetrado desde o ciclo das grandes
política do seu tempo,
navegações, nada dedicarmos a esta quadra da nossa vida
política e social ou, quando muito, situarmos o estudo do
4.1. Breve Histórico do Processo Penal Brasileiro período indígena e dos índios de um modo geral como
atividade secundária e não influente, situada na ante-sala de
Na verdade, até mesmo o estudo da história do processo um edifício maior onde reside a escravidão negra.2
penal no Brasil, e por conta disso o estudo dos sistemas Nilo Batista acrescenta a estes aspectos duas outras
processuais penais, não é fácil, na medida em que o olhar do dificuldades, opostas agora aos que se animam ao estudo das
pesquisador tantas vezes está condicionado às formas mais práticas penais no direito indígena: de uma delas falamos
visíveis nos dias atuais, resultantes da predominância quando abordamos o desenvolvimento das estruturas de
cultural, política e econômica de origem européia. composição dos conflitos nas sociedades simples e consiste
Do modo de enxergar a sociedade e os mecanismos de na ausência de distinção entre um direito penal e um direito
composição dos conflitos de natureza penal e de solução dos civil e, conseqüentemente, entre métodos específicos de
casos penais é possível deduzir uma maneira de ver o resolução dos conflitos que eventualmente se verifiquem. A
processo penal brasileiro aceita passivamente como natural. diferença não se resume aos métodos ou procedimentos e
A partir dessa forma naturalizada de enxergar o processo envolve uma concepção de organização social e econômica
penal emitem-se juízos de valor e se consideram ² ou não ² homogênea e coletivista, em relação à qual as demandas por
válidas e científicas determinadas experiências históricas justiça acabam sendo de tipo diverso; da outra pode-se dizer
com exclusão de outras, sobre as quais não é raro a doutrina que se trata da técnica de interpretação das práticas penais
sequer dedicar alguma mínima atenção. mediante a correta aplicação daquilo que foi chamado de
É o que ocorre com as práticas penais mais antigas. Em raciocínio ou pensamento pré-lógico.3
realidade, se o esquecimento ou falta de curiosidade sobre os Pode-se extrair para o nosso estudo, todavia, a
tempos primitivos, no Brasil, pode haver sido gerado pelo
que Eduardo Galeano designou como o fato de até que os 1 Ribeiro, Darcy. Diários Índios, São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p. 12.
leões tenham seus próprios historiadores, as histórias das 2 Monteiro, John Manuel. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens
caçadas continuarem glorificando apenas o caçador, é de São Paulo, São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 8.
importante, em uma perspectiva crítica, resgatar a história 3 Batista, Nilo. ³3UiWLFDV 3HQDLV QR 'LUHLWR ,QGtJHQD´ in Revista de Direito
Penal, vol. XXXI, Rio de Janeiro: Forense, 1982, pp. 75-86.
constatação que os nativos organizavam-se em conjuntos Com efeito, a República dos Guaranis, instituída no sul
tribais, com lideranças bélicas mas responsáveis pelo da América do Sul, em área parcialmente compreendida em
provimento de decisões da vida material e social, que território brasileiro, nos dias atuais, caracterizou-se pela
estavam sempre sujeitas ao consentimento de seus manutenção dos aspectos igualitários da ordem econômica
seguidores. indígena, englobando, por princípio de fraternidade e em
Ao lado dos rituais místicos e das guerras entre tribos, consideração a inimigos comuns, significativa parcela de
decisivamente influentes na ordem social, dada a povos que antes viviam em antagonismo.
fragmentação política existente, havia a propriedade comum Talvez comunista demais para os cristãos burgueses ou
dos meios de produção, despreocupada do sentido de cristã demais para os comunistas da época burguesa, como
circulação de bens e acumulação de riquezas que está na base salientou Lugon,6 a comunidade então estabelecida conheceu
da organização produtiva capitalista.4 um modelo de direito penal com as características das
Com tal conformação social, não é de estranhar que as práticas penais indígenas, mencionadas por Nilo Batista,
situações de conflito segundo a nossa percepção não mas com a mediação efetiva de procedimentos em virtude
merecessem dos indígenas a atenção que lhes dispensamos, dos quais um homem presumivelmente culpado era
salvo quando derivadas da ação de pessoas de outros grupos conduzido ao juiz, sem correntes nem algemas de espécie
sociais, gerando aí confrontos e guerras. alguma, por muito grave que fosse o delito. Nenhuma pena
Ainda assim, pelo que disso resultou, o conjunto destas era aplicada arbitrariamente ou sem prévio inquérito.
práticas pode ser interessante quando visto no contexto da Cada caso, mesmo pouco importante, era
convivência com costumes europeus. Se o processo de conscienciosamente estudado. As testemunhas eram
expansão cultural dos portugueses, difundido no Brasil em ouvidas e acareadas.7
virtude da dominação político-econômica e da subjugação Comparada com a violência da justiça pública que
das populações nativas, determinou o desenrolar histórico estudaremos em seguida, herdada de Portugal e Espanha, e
adiante analisado, não é inviável do ponto de vista da mesmo com a brutalidade da justiça privada, feudal,
antropologia lançar mão da idéia de sistemas de adaptação, implementada inicialmente pelos donatários das capitanias
desenvolvida entre outros por Darcy Ribeiro,5 para hereditárias e depois pelos senhores de escravos, não há
considerarmos a experiência da chamada República dos dúvida de que a justiça dos guaranis e dos jesuítas
Guaranis (1610 ² 1768). representou inestimável registro de progresso em direção à
humanidade.
Do ponto de vista hegemônico na doutrina, começamos
4 Colocando em termos adequados a questão da influência que a interação com a nossa história de independência processual penal quase
os portugueses e a suposta influência destes últimos podem haver tido sobre a
ordem econômica indígena, Monteiro salienta que A oferta de gêneros por simultaneamente com a história da nossa independência
parte dos índios (aos colonos) QmR IRL XPD VLPSOHV µUHVSRVWD¶ HFRQ{PLFD D política. A Constituição de 1824, outorgada pelo Imperador,
uma situação de mercado... Assim, cabe ressaltar que o escambo ganha depois da dissolução autoritária da Assembléia Constituinte,
sentido apenas na medida em que se remete à dinâmica interna das sociedades
indígenas. Longe de se enquadrarem no contexto de uma economia de trouxe, em seu artigo 179, a previsão dos denominados
mercado em formação, as relações de troca estavam vinculadas
intrinsecamente ao estabelecimento de alianças com os europeus (ob. cit., p.
32), estratégia que se revelou desastrosa e contribuiu para o declínio intenso da 6 Lugon, Clovis. A República Comunista Cristã dos Guaranis, Rio de Janeiro:
população nativa, submetida ao processo de incorporação da cultura européia. Paz e Terra, 1977.
5 Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatório, p. 68. 7 Lugon, Clovis. A República Comunista Cristã dos Guaranis, ob. cit., p. 93.
direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, relação às contravenções penais, e mais tarde, aos crimes de
estabelecendo significativas garantias, conforme o espírito homicídio e lesões corporais culposos, viria a acontecer, com
liberal que impregnou o século XIX. a edição do Código de Processo Penal de 1941 e da Lei n o
À euforia liberal correspondeu, no plano específico do 4.611/65. Na época, a transmutação rigorosa deu ensejo à
processo penal, a edição das Decisões nos 78 e 81, do observação, também de grande atualidade, do deputado
Governo, determinando aos juízes a fundamentação das liberal Álvares Machado, cuja reprodução é merecida:10
sentenças e declarando a incompetência, para funcionar no
julgamento, daqueles que houvessem atuado na fase de Parece que os meus colegas entendem que,
devassa. Em 1832, finalmente, editou-se o Código do restringindo liberdades, evitarão crimes e
Processo Criminal de Primeira Instância, o primeiro Código desordens. Por ventura, o Livro V das Ordenações,
de Processo Penal brasileiro. apesar das penas e dos castigos horrorosos, evitou
Pierangelli destaca, argutamente, que toda e qualquer aquele caso de tentativa de morte contra a pessoa
crítica que se faça ao Código do Processo Criminal do VDJUDGD G¶(O 5HL ' -RVp" (YLWRX D SUiWLFD GH
Império, deve ter em conta o momento histórico que era crimes comuns? Evitou a nossa independência e o
vivido.8 Por essa razão, se considerarmos a brutalidade dos nosso sistema liberal?
procedimentos das Ordenações Filipinas haveremos de
acatar a tese da evolução do sistema processual que as Com a proclamação da República, em 1889, voltou-se a
sucedeu, em que pese a intensa concentração de poderes nas sentir os solavancos das mudanças políticas, muito embora,
mãos dos juízes de direito, municipais e de paz, encarregados desde 1871, houvesse ganhado corpo o movimento de
de deflagrar o processo penal condenatório, por crime reforma da lei processual anterior.
público, independentemente de provocação do ofendido ou A introdução de um modelo federalista, inspirado no
de qualquer do povo. norte-americano, repercutiu de modo a deferir aos estados
Cumpre salientar que, ao lado da atuação judicial ex- membros a competência legislativa em termos de processo
officio, que permitia ao magistrado iniciar e formar o corpo penal, malgrado alguma reserva decorrente das disposições
de delito e iniciar e concluir a sumária inquirição das sobre direitos fundamentais, na Constituição de 1891 (artigo
testemunhas (sumário de culpa), havia as designadas ação 72), bem como uma limitada previsão, em termos de
penal pública (a cargo do promotor público ou de qualquer processo penal, contida em várias leis federais.11
do povo, ut civis), particular e as denúncias policiais.9 A verdade sobre o(s) sistema(s) do processo penal no
Situação interessante ocorreu depois da abdicação do Brasil, a partir de então, pode ser resumida nas anotações de
primeiro Imperador, com a edição da Lei nº 261, de 3 de Frederico Marques:12
dezembro de 1841, que veio a tornar mais rigoroso o Quando a pluralidade processual foi
procedimento, entre outros motivos, pelo deslocamento das instaurada, era nosso processo penal informado
funções jurisdicionais dos juízes municipais e de paz para o pelos seguintes princípios: oralidade de
chefe de polícia e seus delegados, antecipando o que, em
10 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 180.
11 Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes
8 Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, p. 160.
Legislativas, p. 99. 12 José Frederico Marques, apud José Henrique Pierangelli, Processo Penal:
9 Idem, pp. 107-118. Evolução Histórica e Fontes Legislativas, pp. 158 e 160.
julgamento e processo escrito para a instauração Frederico Marques, Hélio Tornaghi e Rogério Lauria Tucci.
ou formação da culpa; contraditório pleno no O primeiro, em obra lapidar, recentemente republicada,
julgamento e contraditório restrito no sumário de assinala a existência de uma estrutura acusatória de nosso
culpa; processo ordinário para os crimes processo penal, salientando que o chamado sistema misto
inafiançáveis e afiançáveis comuns ou de ou francês, com instrução inquisitiva e posterior juízo
responsabilidade, com plenário posterior à contraditório e de forma amplamente acusatória, também
formação da culpa; inquérito policial servindo de não pode informar nossas leis de processo,14, enquanto
instrumento de denúncia ou queixa, apenas nos Tornaghi sublinha que o Direito brasileiro segue um sistema
crimes comuns; o processo especial estabelecendo que, com maior razão, se poderia denominar misto, isto
desde logo a plenitude da defesa nos crimes porque a apuração do fato e da autoria é feita no inquérito
comuns; a propositura e titularidade da ação policial (somente nos crimes falimentares o inquérito é
penal, de acordo com o que dispunha o artigo 407, judicial), enquanto o processo judiciário é acusatório, em
do Código Penal... essa fragmentação contribuiu suas linhas gerais.15 Tucci também esposa a tese do sistema
para que se estabelecesse acentuada diversidade misto, fundado na inquisitoriedade peculiar dos atos
de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou preliminares de apuração das infrações penais.16
a aplicação da lei penal.
4.2. Características do Sistema Processual Brasileiro
Nova mudança política, em 1930, traz consigo,
naturalmente, novos ventos, valendo mencionar que, em Ainda restringindo nossa abordagem ao texto do Código
1935, por força das disposições transitórias da Carta de 1934 de Processo Penal, conforme aplicado por juízes e tribunais,
(artigo 11), nomeou-se uma comissão de juristas para passamos ao exame do estatuto jurídico dos sujeitos
proceder à elaboração do projeto do novo código unificado, principais e da forma como a atuação deles se desenvolve,
havendo sido cogitada, na ocasião, a adoção do modelo do ordenada e sistematicamente, objetivando, deste modo,
juizado de instrução. avaliar em que medida a lei processual penal modelo abraça
Finalmente, depois da instalação do Estado Novo, um dos sistemas.
mediante o golpe de estado de 1937, veio à luz, pelo Decreto- Com efeito, iniciamos pela aproximação às atividades
Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941, o Código de Processo debitadas ao autor da ação penal e ao juiz, na forma como se
Penal brasileiro, que, salvo por algumas alterações pontuais, articulam e se desenvolvem a partir do instante em que se
vigora até hoje, produto do labor e da cultura de Cândido noticia a existência da infração penal.
Mendes de Almeida, Vieira Braga, Narcélio de Queiroz, Desde a promulgação da Constituição da República de
Florêncio de Abreu, Roberto Lyra e Nelson Hungria. 1988, em 5 de outubro, está vedada a iniciativa em processo
Encontrar a melhor qualificação do sistema processual, condenatório, por crime de ação pública, salvo pelo
cuja estrutura13 decorre das normas editadas no atual Código Ministério Público ou, em excepcional hipótese, pelo
de Processo Penal, repita-se, não é tarefa fácil. Para tanto,
basta considerarmos as opiniões antagônicas dos mestres
14 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, pp.
73 e 71, respectivamente.
13 Perspectivada, aqui, como conjuntos pré-relacionantes e conformativos da 15 Tornaghi, Hélio, Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 20.
realidade (Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, p. 5). 16 Tucci, Rogério Lauria. Persecução Penal, Prisão e Liberdade, pp. 79-80.
ofendido, conforme dispõem, respectivamente, os artigos reunirem-se indícios de autoria e prova razoável da
129, inciso I, e 5o, inciso LIX,17 da Carta Magna, sendo certo existência da infração penal.20
que há crimes cuja ação penal é de iniciativa privativa do Pelas leis vigentes, o inquérito policial, quase sempre
ofendido e há outros que, embora de ação pública, exigem a um procedimento de natureza jurídica administrativa, é
representação do ofendido (ou de quem tenha qualidade dirigido pela autoridade policial encarregada do exercício da
para representá-lo) ou a requisição do Ministro da Justiça.18 atividade de polícia judiciária (artigo 144, § 1o, inciso IV, e §
A propositura da ação penal condenatória, todavia, está 4o, da Constituição da República), enquanto as peças de
condicionada à demonstração prévia, pelo autor, das informação, de caráter oficial, têm lugar em crime de ação
condições mínimas de viabilidade da pretensão que objetiva pública, quando a notícia da infração penal é levada
deduzir. Isso decorre, não se questiona, da tutela diretamente e por escrito ao conhecimento do Ministério
constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1 o, Público.
inciso III, da Constituição da República), projetada, no O inquérito policial, pelas regras atuais, é sigiloso,
campo do processo penal, pela exigência de justa causa para escrito e não contraditório, podendo ser instaurado, em todo
a sua deflagração, sob pena de caracterizar, o caso, se for hipótese de apuração de crime de ação pública
irremediavelmente, coação ilegal, a ser arrostada por habeas incondicionada, de ofício, pela autoridade policial, ou por
corpus.19 requisição do juiz ou do membro do Ministério Público, ou
Assim, faz-se necessária, antes da propositura da ação em decorrência de notícia crime levada à autoridade policial
penal condenatória, qualquer que seja ela, a realização de por qualquer pessoa.
uma investigação criminal, que a rigor demanda a Ainda em se tratando de crime de ação pública
instauração de inquérito policial ou peças de informação incondicionada, é possível a instauração do inquérito, à vista
(artigos 5o e 27 do Código de Processo Penal), visando da comunicação espontânea do próprio indiciado ou em
virtude da instauração de auto de prisão em flagrante ou de
auto de resistência (artigos 301 e 292 do Código de Processo
17 Artigo 129, inciso I, da Constituição da República: São funções institucionais
do Ministério Público: I- promover, privativamente, a ação penal pública, na
Penal), ou, por derradeiro, a requerimento do ofendido, em
forma da lei; artigo 5º, inciso LIX, da Constituição da República: será admitida consideração ao interesse público na repressão das infrações
ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo e punição de seus autores, que irá refletir na obrigatoriedade
legal.
18 Embora polêmico o tema, não há despropósito em afirmar a existência de
da ação penal pública. Se o crime a apurar, contudo, for de
uma ação popular de natureza mista, político-penal, como a definiu o Supremo ação penal privada ou pública condicionada, o início do
Tribunal Federal, ao julgar o Mandado de Segurança nº 21.263-DF, em inquérito demandará manifestação do ofendido ou de quem
28/5/1993, relator Ministro Carlos Velloso (publicado no Ementário de decisões tenha qualidade para representar ou requisitar (artigos 5o, §§
do STF, volume 1.705, p. 202), a respeito da ação de impeachment do
Presidente da República, dos Ministros de Estado e Ministros do Supremo 4o e 5o, e 24 do Código de Processo Penal).
Tribunal Federal. Logo se vê, pela distribuição da legitimidade para início
19 Artigo 1º, inciso III, da Constituição da República: A República Federativa
do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do 20
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como Em realidade, a investigação criminal não é obrigatória, desde que o autor da
fundamentos: III- a dignidade da pessoa humana; artigos 647 e 648, inciso I, ação penal apresente ao juiz indícios de autoria e da infração penal, o que
do Código de Processo Penal: Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém poderá ser feito por meio de documentos particulares, nos casos de ação penal
sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua privada. Todavia, a forma mais comum de pesquisar o suporte probatório
liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar. A coação mínimo e demontrar a existência de justa causa tende a ser a investigação
considerar-se-á ilegal: I- quando não houver justa causa. criminal e entre as suas espécies predomina o inquérito policial.
das investigações, que, embora a ação penal só possa ser jurídicos, vinculado ao valor segurança, explicitamente
proposta pelo Ministério Público ou pelo ofendido (ou seu prestigiado no caput do artigo 5o da Constituição. Sendo
representante legal), conforme o caso, além deles está o juiz assim, qualquer que seja a modalidade de intervenção
autorizado a ordenar a instauração de inquérito, em crime de judicial, voltada à comunicação oficial da existência provável
ação pública incondicionada. de infração penal a apurar, o magistrado que vier a noticiá-la
Verberando contra a previsão, salientou Sérgio Demoro estará comprometido na sua imparcialidade, razão por que,
Hamilton, nos idos de 1974, que a ortodoxia acusatória do nas duas hipóteses, sustentamos que estará quebrado um
processo penal brasileiro exigia mais do que simplesmente dos pilares básicos do sistema e também do princípio
afastar do juiz a possibilidade de iniciá-lo, mediante o acusatório, tal seja, a imparcialidade judicial.
procedimento aventado no artigo 531 do Código de Processo A medida da violação do sistema, porém, corresponde
Penal, sendo caso, também, de proibir-lhe a requisição da ao anseio de não deixar fora da persecução penal fatos que,
instauração de inquérito, como, aliás, previa o artigo 249 do de ordinário, não chegariam ao conhecimento da autoridade
denominado Anteprojeto Frederico Marques (artigo 221 do policial ou do Ministério Público, critério de ordem política
Anteprojeto relacionado à Portaria no 320, de 26 de maio de que, incidindo no campo do processo, ainda que antes da
1981, do Ministério da Justiça),21 recomendando noticiasse o instauração deste, pode ser equilibrado pelo afastamento do
magistrado o fato delituoso do qual tomasse conhecimento feito daquele juiz que noticiou a infração. O juiz de um
ao Ministério Público. processo civil entre partes capazes, sem intervenção do
Cremos, todavia, em que pesem o prestígio intelectual e Ministério Público, que constate o emprego de documento
a cultura do ilustre processualista, que a permissão para o falso deverá comunicar o fato ao Ministério Público. Sem
juiz requisitar a instauração de inquérito não difere, essa comunicação dificilmente o Ministério Público tomaria
substancialmente, da autorização legal para noticiar crime de conhecimento da existência do crime previsto no artigo 304
ação pública, diretamente ao Ministério Público, como, é do Código Penal.
certo, já estatui o código em vigor, por meio da disciplina Aplica-se, assim, o princípio da proporcionalidade, para
contida em seu artigo 40. Em ambos os casos, coordenar a atuação dos direitos fundamentais à segurança e
independentemente de quem seja o destinatário da ao justo processo, sempre à base do princípio acusatório.
informação sobre a infração penal, o juiz, ao noticiá-la, É imperioso ressaltar que, se a instauração da
elabora, ainda que provisoriamente, um juízo de valor a investigação pode, em excepcionais situações, derivar de
respeito da existência do crime e, eventualmente, da ordem judicial, a orientação sobre os caminhos a seguir e a
positivação de indícios de autoria, dando origem a pesquisa e a crítica ao material probatório colhido, em todos
procedimentos oficiais, que não poderão ser desprezados. os casos a cargo do juiz, na fase pré-processual,
A base de sustentação da autorização legal parece especialmente se a ação penal pública não é proposta por
situar-se na compreensão da necessidade de repressão penal, falta de suporte mínimo probatório (artigos 10 e 28 do
na grande maioria dos casos, em vista do interesse Código de Processo Penal), violentam, decisivamente, o
predominantemente público na tutela penal dos bens princípio acusatório.
Com efeito, não há razão, dentro do sistema acusatório
ou sob a égide do princípio acusatório, que justifique a
21 Hamilton, Sérgio Demoro. ³$ )RUPD $FXVDWyULD 3XUD XPD &RQTXLVWD GR
$QWHSURMHWR´ in Revista de Direito Penal, nº 13/14, jan-jun/1974, pp. 64- imersão do juiz nos autos das investigações penais, para
67. avaliar a qualidade do material pesquisado, indicar
diligências, dar-se por satisfeito com aquelas já realizadas Tribunal Federal, sem notícia de deferimento de medida
ou, ainda, interferir na atuação do Ministério Público, em liminar ou julgamento da causa até a presente data.
busca da formação da opinio delicti.22 Vale, pois, reproduzir aqui o texto do Provimento no 07,
A imparcialidade do juiz, ao contrário, exige dele acima referido, pelo que tem de bem ilustrativo a respeito do
justamente que se afaste das atividades preparatórias, para tema:
que mantenha seu espírito imune aos preconceitos que a Considerando que o Ministério Público é
formulação antecipada de uma tese produz, alheia ao instituição essencial à função jurisdicional do
mecanismo do contraditório. Estado;
Assim, por ocasião do exame da acusação formulada, Considerando que a Constituição Federal de
com o oferecimento da denúncia ou queixa, o juiz estará em 1988 conferiu ao Ministério Público relevantes
condições de avaliar imparcialmente se há justa causa para a funções na defesa da ordem jurídica e dos direitos
ação penal, isto é, se a acusação não se apresenta como individuais e coletivos, redefinindo sua
violação ilegítima da dignidade do acusado. competência e atribuições;
Neste plano, a manutenção do controle, pelo juiz, das Considerando que pela atual Constituição são
diligências realizadas no inquérito ou peças de informação, e funções institucionais do Ministério Público, entre
do atendimento, pelo Promotor de Justiça, ao princípio da outras, promover privativamente a ação penal
obrigatoriedade da ação penal pública, naquelas hipóteses pública; exercer o controle externo da atividade
em que, em vez de oferecer denúncia, o membro do policial; requisitar diligências investigatórias e a
Ministério Público requer o arquivamento dos autos da instauração de inquérito policial;
investigação, constitui inequívoca afronta ao princípio Considerando as medidas adotadas pelo
acusatório, como foi analisado anteriormente. Tribunal Regional Federal da 1a Região, Estados
Em vista disso, e por considerarem que a partir de 1988, do Rio de Janeiro e Bahia, no sentido de adequar
com a nova Constituição, o processo penal brasileiro os procedimentos investigatórios aos atuais
realmente aderiu ao modelo acusatório, alguns tribunais, a mandamentos constitucionais;
nosso juízo acertadamente, têm editado atos normativos que Considerando que a remessa, distribuição e
regulam a tramitação dos autos de investigação criminal exame de inquéritos policiais, e ordenação de
diretamente entre as unidades de polícia judiciária e os diligências pelo Juiz, antes da remessa ao
órgãos do Ministério Público. Ministério Público, ensejam a demora nas
Assim, o Provimento no 07, de 14 de abril de 1997, do investigações em detrimento da rápida apuração
Corregedor Geral de Justiça do Distrito Federal e dos da verdade real;
Territórios, e o Provimento no 47, de 12 de novembro de Considerando a decisão proferida pela 2a
1996, do Vice-Presidente e do Corregedor do Tribunal Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito
Regional Federal da 1a Região, ambos impugnados por Ações Federal e dos Territórios na Reclamação no
Diretas de Inconstitucionalidade,23 perante o Supremo 1.068/96;
Considerando o requerimento encaminhado
22 pelo Procurador-Geral de Justiça do Ministério
Ver item 3.2.2.1 ± II ± Da Acusação.
23 Respectivamente, ADIN 1605-9-DF, Relator Ministro Sydney Sanches, e Público do Distrito Federal e dos Territórios, que
ADIN 1579-6-DF, Relator Ministro Sepúlveda Pertence. originou o P. A. nº 03.912/97;
RESOLVE: iniciativa do Senador Pedro Simon, sendo certo que, se o
Artigo 1o Somente serão admitidos para segundo postula a tramitação direta dos autos de inquérito,
distribuição às Varas Criminais da Justiça do entre o membro do Ministério Público e a autoridade
Distrito Federal os inquéritos policiais e outras policial, retirando do juiz também a possibilidade de
peças de informação, nos casos de intervenção requisitar a instauração da investigação, o primeiro, ainda
obrigatória do Ministério Público, quando houver: mais completo e sistemático, acrescenta que o controle da
a) denúncia ou queixa; obrigatoriedade, no (não) exercício da ação penal pública,
b) pedido de arquivamento; fica entregue ao próprio Ministério Público, por meio do seu
c) inquérito instaurado, a requerimento da Conselho Superior, notificando-se o indiciado e o ofendido.24
parte, para instruir ação penal privada e que deve Em idêntico sentido dispõe o Projeto de Lei n. 4.209/01,
aguardar, em juízo, sua iniciativa (Código de preparado por Comissão presidida pela jurista Ada Pellegrini
Processo Penal, artigo 19); Grinover, nos termos da Portaria 61 do Ministério da Justiça,
d) pedidos de prisão preventiva, busca e editada em 20 de janeiro de 2000.
apreensão, prisão temporária e outras medidas Este projeto traz a seguinte redação para o artigo 28 do
cautelares; Código de Processo Penal:
e) comunicação de prisão em flagrante ou Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, após a
qualquer outra forma de constrangimento aos realização de todas as diligências cabíveis, convencer-se da
direitos fundamentais previstos na Constituição; inexistência de base razoável para o oferecimento de
Parágrafo único. Independentemente de
distribuição, o Juiz encarregado de supervisionar
o Serviço de Distribuição encaminhará ao
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios 24 Anteprojeto, artigo 234: Se o órgão do Ministério Público, esgotadas todas
o inquérito policial, peças de informação ou as diligências cabíveis, se convencer da inexistência de fundamento
razoável para a propositura da ação penal, promoverá o arquivamento
procedimento em que não couber distribuição dos autos de inquérito policial ou das peças informativas, fazendo-o
(Código de Processo Penal, artigos 5o e 40). fundamentadamente. § 1º Cópia da promoção de arquivamento será
Artigo 2o A devolução do inquérito pelo remetida pelo signatário, sob pena de incorrer em falta grave, no prazo
de três dias, ao Conselho Superior do Ministério Público, intimados dessa
Ministério Público à autoridade investigante, para providência, dentro de igual prazo, mediante carta registrada, o
novas diligências, far-se-á independentemente de indiciado e o ofendido, ou seu representante legal. § 2º Até que, em sessão
sua tramitação pelo Judiciário, mesmo nos casos do Conselho Superior do Ministério Público, seja homologada ou rejeitada
anteriores à vigência deste provimento onde o a promoção de arquivamento, poderão o indiciado e o ofendido, ou seu
representante legal, apresentar razões escritas, que serão autuadas com a
inquérito policial tenha sido distribuído a uma das cópia referida no § 1º. § 3º A promoção de arquivamento, com ou sem
varas criminais. razões dos interessados, será submetida a exame e deliberação do
Artigo 3o Este provimento entrará em vigor Conselho Superior do Ministério Público, conforme dispuser o seu
Regimento. Se, deixando de homologá-la, concluir o Conselho pelo
30 (trinta) dias após a sua publicação, revogadas cabimento da ação penal, designará, desde logo, outro órgão do
as disposições em contrário. Ministério Público para oferecer a denúncia. § 4º O membro do Conselho
Publique-se, registre-se e cumpra-se. Superior do Ministério Público, a quem incumbir relatar a deliberação de
que trata o § 3º, poderá, quando entender necessário, requisitar os autos
Na mesma direção estão o anteprojeto de código de de inquérito policial ou peças informativas, bem como quaisquer
processo mencionado e o projeto de lei n o 31, de 1995, de diligências (art. 227).
denúncia, promoverá, fundamentadamente, o arquivamento outro representante do Ministério Público para oferecer a
dos autos da investigação ou das peças de informação. denúncia."(NR)

§ 1o Cópias da promoção de arquivamento e das


principais peças dos autos serão por ele remetidas, no prazo Como se vê, a tendência consiste em afastar o juiz desta
de três dias, a órgão superior do Ministério Público, sendo etapa, entregando-lhe apenas a função de decidir sobre
intimados dessa providência, em igual prazo, mediante carta medidas cautelares que incidam sobre direitos
registrada, com aviso de retorno, o investigado ou indiciado e fundamentais.
o ofendido, ou quem tenha qualidade para representá-lo. Na verdade, não há motivo para ser de outra forma,
uma vez que é inconcebível, sistematicamente, desconfiar-se
§ 2o Se as cópias referidas no parágrafo anterior não do Promotor de Justiça que pleiteia o arquivamento, uma vez
forem encaminhadas no prazo estabelecido, o investigado, o que a ação do integrante de uma instituição permanente e
indiciado ou o ofendido poderá solicitar a órgão superior do essencial à função jurisdicional do Estado, como é o caso do
Ministério Público que as requisite. Ministério Público (artigo 127, caput, da Constituição da
República), está erguida sobre princípios de legalidade e
§ 3o Até que, em sessão de órgão superior do Ministério moralidade, próprios a toda atividade estatal. É de se
Público, seja ratificada ou rejeitada a promoção de presumir que o Promotor de Justiça atue de conformidade
arquivamento, poderão o investigado ou indiciado e o com tais máximas, funcionando o controle interno e a
ofendido, ou quem tenha qualidade para representá-lo, intervenção do ofendido como mecanismos suficientes para
apresentar razões escritas. velar pela legalidade da decisão do Ministério Público.
Portanto, o controle interno do princípio da
§ 4o A promoção de arquivamento, com ou sem razões obrigatoriedade da ação penal, em uma segunda etapa, por
dos interessados, será submetida a exame e deliberação de órgão colegiado do próprio Ministério Público, a nosso juízo,
órgão superior do Ministério Público, na forma estabelecida desde que permeado pela intervenção do ofendido e do
em seu regimento. indiciado, satisfaz plenamente à aspiração de exame da
legalidade da atuação do representante do parquet, sendo
§ 5o O relator da deliberação referida no parágrafo absolutamente desnecessária, e até mesmo indesejável, a
anterior poderá, quando o entender necessário, requisitar os intervenção judicial para assinalar ao órgão de acusação
autos originais, bem como a realização de quaisquer pública, como hoje ocorre, que deve acusar, ainda que a
diligências reputadas indispensáveis. decisão definitiva esteja nas mãos do Procurador-Geral de
Justiça.
§ 6o Ratificada a promoção, o órgão superior do Acaso atendido o pleito judicial, manifestado pela
Ministério Público ordenará a remessa dos autos ao juízo discordância quanto ao pedido de arquivamento dos autos de
competente, para o arquivamento e declaração da cessação investigação criminal, pedido este formulado pelo Promotor
de eficácia das medidas cautelares eventualmente de Justiça, não há dúvida de que o acusado tem a temer pela
concedidas. tendenciosidade precocemente demonstrada pelo juiz, antes
mesmo da dedução da ação penal. Dizia-se com razão, na
§ 7o Se, ao invés de ratificar o arquivamento, concluir o
órgão superior pela viabilidade da ação penal, designará Idade Média, que aquele que tem um juiz por acusador,
precisa de Deus como defensor. E, às vezes, isso não é Assim, objetivada, pelo virtual autor, providência
suficiente. preparatória que implique em restrição a direito
Portanto, na linha perspectivada em um sistema fundamental (liberdade, disponibilidade sobre o patrimônio,
acusatório, ainda que nesta hipótese o sistema esteja intimidade), a medida só poderá concretizar-se depois de
reduzido à sua expressão mais pura, a do princípio ponderado exame, pelo juiz, da presença dos pressupostos
acusatório, a intervenção judicial, voltada ao controle da característicos das cautelares, além, é claro, da subsunção do
realização das investigações básicas para a deflagração da caso concreto às hipóteses de cabimento legalmente
ação penal, é algo completamente anômalo, a ser expurgado previstas, com a ressalva constitucional da prisão em
do ordenamento jurídico, sob pena de violação das regras flagrante, sujeita, por sua própria natureza, a exame
básicas pertinentes à distribuição de funções, com a garantia posterior de legalidade e necessidade.27
para o acusado da imparcialidade do seu julgador. Cabe ao juiz decidir pela decretação da prisão
Ocorre, todavia, que, até a presente data, pelo que se preventiva, no curso do inquérito policial, ou ainda pelo
tem notícia, o eg. Supremo Tribunal Federal não só não deferimento da interceptação das comunicações telefônicas e
declarou a invalidade da norma contida no artigo 28 do busca e apreensão de bens ou pessoas. Estas medidas estão
Código de Processo Penal, aplicada com alguma freqüência incluídas na chamada reserva jurisdicional de função.
em todos os Estados da Federação, como ainda, conforme Sabe-se que, se não há, à semelhança do Processo Civil,
veremos, ao tratarmos da Lei no 9.034/95, em um primeiro disposições específicas sobre um processo penal cautelar, em
momento ratificou a atuação preliminar de investigação, livro próprio, no Código de Processo Penal, de fato é inegável
desenvolvida ou diretamente controlada pela autoridade a existência de medidas cautelares no processo penal,
judiciária25. destinadas à proteção dos processos de conhecimento e
Releva frisar que diferente é a situação gerada pelo execução penais.28
indispensável controle pelo juiz, na etapa preliminar, das Como sublinhado linhas atrás, na fase preparatória há
medidas constritivas de direitos fundamentais, pela reserva um número significativo de providências que inauguram
de função jurisdicional, estabelecida no artigo 5o, incisos relações jurídicas de natureza cautelar, predispostas à tutela
XXXV, LIII, LIV e LV, da Constituição da República.26 da liberdade do investigado, virtual acusado, ou da aquisição
das provas, tais como a autorização para busca domiciliar,
25
Ao apreciar requerimento de medida liminar para sustar a aplicação do artigo
3º da Lei nº 9.034/95, em ação direta de inconstitucionalidade promovida pela aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral
Associação dos Delegados de Polícia do Brasil ± ADEPOL ± (ADI 1517 MC/UF), são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
o Ministro relator, Maurício Corrêa, entendeu que as atividades de investigação inerentes.
do juiz, na fase de inquérito, não violavam regras constitucionais. Ocorre que, 27 Artigo 5º, inciso LXI, da CR: ninguém será preso senão em flagrante delito
por maioria de votos, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente,
julgar procedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade promovida salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar,
pelo Procurador-Geral da República, com o mesmo objeto, e declarar a definidos em lei; inciso LXII: a prisão de qualquer pessoa e o local onde se
inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.034/95, que instituiu a figura do encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do
juiz investigador (ADI 1570/UF, rel. Ministro Maurício Corrêa, julgamento em preso ou à pessoa por ele indicada; inciso LXVI: ninguém será levado à prisão
12 de fevereiro de 2004, com voto vencido do Ministro Carlos Velloso). ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem
26 Artigo 5º, inciso XXXV, da CR: A lei não excluirá da apreciação do Poder fiança; inciso LXV: a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela
Judiciário lesão ou ameaça a direito; inciso LIII: ninguém será processado autoridade judiciária.
nem sentenciado senão pela autoridade competente; inciso LIV: ninguém será 28 Barros, Romeu Pires de Campos. Processo Penal Cautelar, Rio de Janeiro:
privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; inciso LV: Forense, 1982.
apreensão de coisas, prisão temporária e preventiva etc. exclusivamente sua, do juiz, de que se trata da arma do
Neste caso, embora a natureza preponderante das crime.
investigações continue sendo administrativa, adere a ela a Para isso, estão equipados a Polícia e o Ministério
cautelaridade singular das referidas providências, sujeitas, Público, os quais, por lidarem diretamente com a matéria e
naquilo que importa em compressão de direitos possuírem interesse na elucidação da infração penal, com a
fundamentais, ao conhecimento e deliberação judicial e às condenação de seu eventual autor, são, a nosso juízo, os
regras do devido processo legal, ainda que, por conta dos legitimados a requererem providências cautelares, o mesmo
objetivos visados e da eficácia da própria investigação, o se aplicando, mutatis mutandis, ao ofendido, se o crime é de
contraditório tenha de ser diferido. ação que dependa da sua iniciativa.
Portanto, a coerência com os ditames do princípio A exceção é pertinente à tutela da liberdade, mediante
acusatório, à vista da implicação de um devido processo determinação, de ofício, da liberdade provisória, em
penal cautelar, em fase anterior ao processo de consideração ao princípio do favor rei, à presunção da
conhecimento condenatório, exigirá a iniciativa dos inocência e ao papel garantista do princípio acusatório na
encarregados da investigação ou do titular do direito de ação, sua harmonia com os demais princípios.
até o que o juiz deverá permanecer inerte, sob pena de Portanto, é estranho ao sistema acusatório, porque
quebra da imparcialidade. incompatível com o princípio acusatório, o poder do juiz, por
Não se diga que o juiz penal dispõe de um poder geral exemplo, de ofício decretar a prisão preventiva do indiciado
de cautela, que o autoriza a, ex officio, promover as (artigo 311 do Código de Processo Penal).31 Em que pese tal
providências cautelares que julgue pertinente, pois tal poder, conclusão, também neste tópico não há, do Supremo
como no processo civil, não se exercita sem provocação da Tribunal Federal, reserva quanto à declaração da
parte no feito cautelar,29 compreendendo-se como especial constitucionalidade (ou expresso reconhecimento de
permissão para prover, na tutela dos processos principais, inconstitucionalidade) da mencionada previsão.
atuais ou potenciais, medidas a rigor não previstas na Visto o que antecede o processo condenatório, cabe
casuística típica das cautelares.30 agora passar ao tratamento de algumas questões pertinentes
Quando se trata da tutela dos mais importantes bens de ao processo propriamente dito.
um indivíduo, não é admissível supor que o encarregado de Com efeito, ficou salientado que, pelo princípio
decidir sobre a sua fruição ou não seja alguém que tenha, na acusatório, cumpre ao acusador, público ou particular,
fase que antecede ao processo, espontaneamente tomado a determinar o objeto do processo, o que faz por meio da
iniciativa de ordenar a prisão do investigado ou a apreensão articulação da acusação, definindo a causa de pedir da ação
de uma arma que esteja na casa dele, sob a suspeita penal, que sustentará o pedido de aplicação da sanção. Isso
não significa que o juiz esteja vinculado à qualificação
jurídica atribuída ao fato pelo acusador, porque ao juiz
29 Galeno Lacerda, todavia, sustenta que a disposição do artigo 797 do Código
de Processo Civil, autorizando o juiz a determinar medidas cautelares, sem
audiências das partes, em caráter excepcional, configura verdadeira permissão 31 Artigo 311. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal,
legal, excepcional, de provimento cautelar ex officio, ao contrário da regra caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do
instituída no artigo 2º do mesmo diploma e da posição adotada por muitos Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da
tribunais (RT 607/57). Lacerda, Galeno. Comentários ao Código de Processo autoridade policial. Também a revogada Lei de Falências (Decreto-lei 7.661/45,
Civil, vol. VIII, tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1984, pp. 110-111. artigo 193) previa a inconstitucional decretação da prisão preventiva de ofício. A
30 Lacerda, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 135. regra não foi reproduzida na Lei n. 11.101/05.
cumpre conhecer o direito ² jura novit curia ² nem Em 1989, no exercício das funções judicantes,
tampouco que o réu seja prejudicado por um equívoco de recebemos denúncia do Ministério Público, por crime de
expressão da tipificação penal mais adequada, na medida em desacato à autoridade judiciária, cometido por advogado, no
que se defende do fato, que deve estar descrito, curso de um processo civil, com atribuição ao juiz da prática
satisfatoriamente, na inicial.32 de fato definido como crime, isso por petição.
Mas, nos dois casos, alguns cuidados são absolutamente No despacho inicial, na verdade, decisão, haja vista a
essenciais, uma vez que a casuística sistemática dos conduta efetivamente descrita, a denúncia foi recebida,
procedimentos penais, no direito brasileiro, leva em conta a emendando-a para classificar o crime na moldura penal da
qualificação jurídica da conduta e, ainda, no que toca ao calúnia, detalhada na vestibular com todos os seus elementos
exercício da defesa, esta não pode pressupor, sob pena de e circunstâncias.
prejudicar-se, que o juiz venha a corrigir a classificação A alteração pareceu apropriada, tendo em conta a
jurídica do fato e, quiçá, aplicar ao acusado pena mais grave, diversidade de procedimento, um dos quais, acertado, com a
ou seguir o caminho equivocado inicialmente trilhado pelo possibilidade de oferecer ao acusado a exceção da verdade.35
acusador. Justamente este tipo de controle, deduzido, a princípio
Em vista do exposto, o sistema acusatório, que demanda ou no decorrer do processo, até a sentença, permitirá que o
plenitude de defesa e contraditório, em face da pretensão do acusado não fique refém da classificação jurídica emanada
processo justo, assegura a emendatio libelli, prevista no da acusação, em virtude da qual poderá, ou não, incidir um
artigo 383 do Código de Processo Penal,33 na fase de modelo de processo consensual, poderá, ou não, ser cabível a
sentença, mas aplicável a todo o tempo (quanto antes, prisão preventiva ou a liberdade provisória, com ou sem
melhor), principalmente se resultar em significativa fiança.
alteração do procedimento.34 Os critérios de classificação das infrações penais são,
pois, na exata medida em que se respeita o princípio
32 constitucional da reserva legal,36 na edição de leis
Ver item 3.2.2.2 ± III ± A Mutatio Libelli.
33 Artigo 383. O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que
incriminadoras, determinados por modos de apreciação
constar da denúncia ou queixa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar dogmaticamente objetivados e, assim, passíveis de serem
pena mais grave. controlados pelo juiz sem ferimento ao direito de iniciativa
34 Muito embora preconizemos aqui, para validade do processo, que a
emendatio libelli em nenhuma hipótese surpreenda a defesa, instituindo-se o
das partes.
debate contraditório em consideração ao reconhecimento daquela que é,
segundo o juiz, a acertada qualificação jurídica da infração, o eg. Supremo Da mutatio libelli
Tribunal Federal decidiu diferentemente, como se pode observar no habeas
corpus nº 73.389-SP, julgado pela 2ª Turma, cujo relator foi o Exmo. Ministro
Maurício Correa, publicada a decisão em 6 de setembro de 1996, no Diário de constitui cerceamento de defesa ou oblívio ao devido processo legal, porquanto
-XVWLoDGD8QLmR³+DEHDV&RUSXV´³(PHQGDWLROLEHOOL´ Réu denunciado pelos o acusado se defende dos fatos narrados na denúncia e não do delito nela
crimes de estelionato e de apropriação indébita e condenado pelo crime de qualificado. 3. Hipótese em que a falta de intimação do acusado, em face da
falsidade ideológica. Falta de intimação do acusado em face da desclassificação do delito, não configura cerceamento de defesa. 4. Habeas
desclassificação: cerceamento de defesa não configurado. 1. Ocorre emendatio Corpus indeferido.
libelli (CPP, art. 383) e não mutatio libelli (CPP, art. 384) quando o réu é 35 Em decisão proferida em 26/11/1990, no habeas corpus nº 11.896/90,
denunciado pelos crimes de estelionato e de apropriação indébita, porém julgado pela 1ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal, tendo como relator o
resulta condenado por falsidade ideológica, uma vez que a denúncia descreve eminente juiz Pirajá Pires, a emendatio libelli inicial foi mantida.
perfeitamente o fato delituoso mas nela consta qualificação penal diversa. 2. A 36 Artigo 5º, inciso XXXIX: Não há crime sem lei anterior que o defina, nem
nova tipificação emprestada pelo juízo, em face da instrução processual, não pena sem prévia cominação legal.
da modificação da causa de pedir.
Porém, se é viável, conforme a máxima acusatoriedade, Como tivemos a oportunidade de ressaltar, uma
a aplicação do disposto no artigo 383 do Código de Processo alteração dessa natureza só é compatível com o princípio
Penal, o mesmo não acontece com a previsão contida no acusatório se decorrer da iniciativa do autor. De outro modo,
dispositivo seguinte, que autoriza, sob diferentes aspectos, a violado estará sendo o mencionado princípio, ainda que, pela
modificação substancial da acusação, por força da alteração ponderação com o da justiça material, mitigado o efeito
do fato investigado, consoante as provas produzidas,37 negativo pela implementação do contraditório que terá de
ultrapassando-se, em alguns casos, o perímetro traçado pela instaurar-se, possa, com as reservas indicadas no item
imputação contida no pedido acusatório. 3.2.2.2, aceitar-se o tratamento legal dispensado.
É imperioso, desde logo, ressaltar que a mutatio libelli A Comissão referida anteriormente, presidida por Ada
se refere a uma mudança de perspectiva, relativamente a Grinover, propõe que a mutatio libelli em qualquer
elementares ou circunstâncias do fato sobre o qual se funda a circunstância dependa de modificação da acusação pelo
pretensão, em decorrência de provas surgidas durante a autor da ação penal, estando vedada alteração de ofício.
instrução, mas não corresponde ao acréscimo de uma nova A nosso juízo, contudo, a mais grave violação ao
acusação ou de uma acusação por novos fatos. princípio da congruência, decorrente do acusatório, é vista,
Se isso ocorrer, se na instrução vierem à tona novas no processo penal brasileiro, no artigo 408, § 4o, do Código.
infrações penais de ação penal pública incondicionada, No citado dispositivo está consignado que, por ocasião da
lembra Frederico Marques,38 cabe ao juiz dar a notícia crime Pronúncia ² decisão interlocutória que admite a acusação
a quem de direito (artigo 40 do Código de Processo Penal). por crime doloso contra a vida e remete o processo ao
Apesar disso, no primeiro caso previsto na lei ² Tribunal do Júri ² o juiz não ficará adstrito à classificação
mudança das circunstâncias ou elementares da conduta, com do crime, feita na queixa ou denúncia, embora fique o réu
preservação ou atenuação da pena ² sem que seja necessária sujeito à pena mais grave, atendido, se for o caso, o disposto
ou exigível qualquer intervenção do acusador, admite-se que no art. 410 e seu parágrafo.
o juiz amplie a esfera das quaestiones facti, como, A dispensa do aditamento à denúncia corresponde a
igualmente, assinala Frederico Marques,39 intervenha o uma verdadeira autorização deferida ao juiz, para que este
magistrado no âmbito interno do direito de ação, por meio modifique a acusação, independentemente da vontade do
acusador, ainda que importe na aplicação, no futuro, de pena
37 Artigo 384: Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica mais grave. Só precioso critério de matiz inquisitória,
do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância disfarçado em economia processual e obrigatoriedade da
elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, ação penal (de ofício), para explicar a medida. Ainda assim,
baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se
quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas. Parágrafo o Supremo Tribunal Federal não lhe declarou, que seja do
único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe nosso conhecimento, a inconstitucionalidade,40 embora
aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o
Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta
houver sido instaurado o processo em crime de ação penal pública, abrindo-se, 40 O Supremo Tribunal Federal contenta-VH FRP D ³LPSOtFLWD´ GHVFULomR GD
em seguida, o prazo de 3 (três) dias à defesa, que poderá oferecer prova, novel figura jurídico-penal na inicial, o que, à toda evidência, é o mesmo que
arrolando até três testemunhas. dispensar o juiz de concitar o acusador a alterar a acusação (aditar a inicial).
38 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. II, p. Assim, na decisão transcrita na RT 336/495, referida por Hermínio Alberto
239. Marques Porto (Júri, 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 87). No mesmo
39 Marques, José Frederico. Elementos... , vol. II, ob. cit., p. 238. diapasão segue o Superior Tribunal de Justiça, conforme a decisão no Recurso
setores significativos da doutrina concordem que a real perfeita sintonia.
aplicação da disposição está condicionada à manifestação do Pode ser, por exemplo, que os fatos apurados na
acusador.41 investigação criminal sejam diferentes do narrado na inicial
Finalmente, também em termos de mutatio libelli, (possuir drogas para uso próprio em lugar da conduta de
temos no Brasil o mesmo tipo de resistência que em Portugal trazer substância entorpecente, para fins de venda); pode ser
se enfrenta quanto ao que se considera violação, pelo que a descrição contida na denúncia ou queixa seja fruto de
Ministério Público, da reserva de função jurisdicional, por algum delírio, estando desconectada dos fatos efetivamente
pretender atribuir ao fato que descreve na denúncia uma investigados.
qualificação jurídica,42 dispondo, deste modo, do poder de Há, portanto, nestas hipóteses, desrespeito à exigência
determinar o tipo de procedimento e, o que nessa linha de de justa causa para a ação penal pelo fato delirantemente
argumento também se deduz, de até mesmo impedir a deduzido, se a inicial for recebida pelo juiz e o processo penal
liberdade provisória,43 ou estabelecer, conforme perspectiva condenatório seguir o seu curso normal, conformado à
criativa, uma nova forma de prisão que não seja em flagrante equivocada e abusiva classificação.
ou decorrente de ordem escrita e fundamentada da O caso é de rejeição da inicial, liminarmente ou pela via
autoridade judiciária competente: a prisão por opinio do habeas corpus, por falta de justa causa, extinguindo-se o
delicti,44 não prevista na Constituição. processo, e não de se modificar o teor da acusação, por ato
Em que pese o respeito que merece quem sustenta a do juiz, com significativa perda da confiança que o acusado e
violação do monopólio de função jurisdicional pelo acusador, a própria sociedade possam depositar na imparcialidade do
ao classificar juridicamente o fato, daí decorrendo uma série magistrado e, o que é relevante, com ingerência do juiz sobre
de conseqüências no conjunto das relações jurídicas a causa de pedir e o pedido, isto é, em suma, sobre o
processuais, sob pena de arrostar o princípio acusatório o conteúdo da própria acusação, direito do autor.
juiz não pode atribuir à conduta do acusado objeto de sua A rejeição da denúncia ou queixa, nesta situação, apesar
atenção, e limite da sua futura decisão, uma qualificação dos autos de investigação criminal revelarem
distinta da operada pela denúncia ou queixa, se entre o fato superficialmente a existência de uma infração penal,
narrado e esta qualificação promovida pelo acusador há garantindo o princípio acusatório, coloca-o em primeiro
plano e reserva ao princípio da obrigatoriedade da ação
Especial nº 11070, da 6ª Turma, publicado no Diário de Justiça da União, p. 477
penal pública, quando for o caso, uma posição secundária,
(citado por Damásio Evangelista de Jesus, in Código de Processo Penal porque a liberdade do acusado é mais importante, como
Anotado, 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 283). direito fundamental, que a suposta necessidade de processar
41 Marrey, Adriano; Franco, Alberto Silva; e Stoco, Rui. Teoria e Prática do sempre, por todos os fatos.
Júri, 6ª ed. São Paulo: RT, 1997, pp. 226-227.
42 Pode-se dizer, naturalmente, o mesmo do ofendido, na ação penal de Ademais, conciliam-se os princípios, ulteriormente, se,
iniciativa privada. transitada em julgado a decisão de rejeição da inicial, nova
43 De acordo com o artigo 2ª, inciso II, da Lei nº 8.072/90, Lei dos Crimes acusação for formulada, pelo fato verdadeiramente
Hediondos, nos processos por crimes definidos como hediondos e assemelhados
em seus efeitos, todas essas infrações são insuscetíveis de liberdade provisória. verificado na investigação, não estando ao abrigo da coisa
44 Embora não concordemos com o argumento, temos de reconhecer a força da julgada, pois esta só alcança o fato principal, que tiver sido
inteligência do Defensor Público fluminense, Paulo Alves Ramalho, que, em objeto da sentença (artigo 110, § 2o, do Código de Processo
suas defesas nos Tribunais criminais do Rio de Janeiro, e em Brasília, nos
Tribunais superiores, cunhou, pelo que é do nosso conhecimento, a expressão
prisão por opinio delicti do acusador.
Penal).45 vista da jurisprudência do Tribunal, que tanto o
De se notar que a rejeição da denúncia ou queixa, por ofendido quanto o Ministério Público têm
falta de justa causa, corresponde a uma decisão legitimidade concorrente para promover ação
necessariamente provisória sobre o mérito, à semelhança da penal, quando se trate de ofensa propter officium.
sentença em processo cautelar, desde que não verse a Precedentes citados: RE 104.478-MS (DJU de
propósito de causa extintiva da punibilidade. 4/10/85), HC 64.966-SP (DJU de 12/6/87), HC
Malgrado todas as considerações expostas, a linha 74.649-DF (DJU de 10/10/97) e INQ. 726-RJ (RTJ
decisória predominante no eg. Supremo Tribunal Federal é 154/410). HC 76.024-RJ, rel. Min. Maurício
outra, como se pode aferir do relato de julgamento, pela Corrêa, 12/12/97.
Segunda Turma, divulgado no denominado Informativo STF
de 8 a 12 de dezembro de 1997, no 96, publicado em 17 de Releva salientar, no tocante à disciplina das provas, que
dezembro, no Diário de Justiça da União e elaborado pela a autorização prevista na parte final do artigo 156 do Código
Assessoria da Presidência do Supremo Tribunal Federal a de Processo Penal, assim como, por exemplo, a disposição
partir de notas tomadas nas sessões de julgamento das contida no artigo 209 do mesmo diploma,46 conferindo ao
Turmas e do Plenário: juiz poderes processuais de produção da prova, representa,
conforme assinalamos ao abordarmos as características do
Segunda Turma sistema acusatório, violência flagrante ao referido modelo,
Recebimento da Denúncia e Desclassificação quer em razão de atribuir ao juiz o que é direito das partes,
Considerando que não cabe ao juiz, ao receber conexo ao de ação e de defesa, e portanto, no primeiro caso,
a denúncia, desclassificar o crime nela narrado ² vinculado à acusação, quer por colocá-lo na difícil posição de
hipótese distinta da prevista do art. 383 do CPP investigador imparcial.
³2 MXL] SRGHUi GDU DR IDWR GHILQLomR MXUtGLca Todo investigador parte de uma premissa, que aceita
diversa da que constar da queixa ou da denúncia, como verdadeira, a ela se vinculando psicologicamente. No
ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena máximo, no exercício de poderes assistenciais ao acusado,
PDLV JUDYH´  TXH IDFXOWD DR PDJLVWUDGR WDO visando tornar real a desejável paridade de armas e, em
possibilidade no momento de prolatar a sentença busca da justiça material, sem violar o princípio da
² a Turma deferiu, em parte, habeas corpus presunção da inocência, estará o juiz autorizado a
interposto contra decisão do Tribunal de Justiça determinar provas cuidadosamente, mas consciente de que
do Estado do Rio de Janeiro que recebera queixa- não respeitará, em concreto, o princípio acusatório.
crime oferecida contra o paciente pelo crime de Embora em outros julgados não siga essa linha, na
injúria e não de calúnia contra autoridade pública, irretocável decisão do Pretório Excelso, que inicia o nosso
tal como descrito na queixa (arts. 20, combinado
com o art. 23, III, da Lei 5.250/67, Lei de
46 Artigo 156 do Código de Processo Penal: A prova da alegação incumbirá a
Imprensa). No mesmo julgamento, ponderou-se, à quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir
sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto
relevante; artigo 209 do citado diploma: O juiz, quando julgar necessário,
45 Artigo 110, § 2º, do Código de Processo Penal: A exceção de coisa julgada poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes. § 1º Se ao
somente poderá ser oposta em relação ao fato principal, que tiver sido juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se
objeto da sentença. referirem.
trabalho, visualiza-se, em determinado ponto, que merece que concede a reabilitação (artigo 746 do Código de Processo
ser transcrito, a idéia-força da atividade probatória como Penal), ou ainda arquiva inquérito ou absolve acusado, em
pertinente às partes, em especial à acusação, que tem o ônus crime contra a saúde pública ou economia popular (artigo 7o
de demonstrar os fatos sobre os quais alicerça a sua da Lei no 1.521/51), deve o juiz, independentemente de
pretensão. Assim, pois, está consignado: provocação, submetê-la ao reexame obrigatório.
Ada Grinover, Antônio Magalhães e Antônio Scarance
Nenhuma acusação penal se presume asseveram que não encontra embasamento a classificação
provada. Não compete ao réu demonstrar a sua dos recursos, quanto à iniciativa, em voluntários e de ofício.
inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, Para os doutrinadores, qualquer recurso depende da
de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. iniciativa da parte, sendo sempre meio voluntário de
Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito impugnação.48 Daí concluem que o chamado recurso de
positivo, a regra, que, em dado momento histórico ofício se apresenta como condição de eficácia da sentença.
do processo político brasileiro (Estado Novo), Apesar disso, a doutrina tem considerado a categoria jurídica
criou, para o réu, com a falta de pudor que em questão como recurso, malgrado anômalo49 ou
caracteriza os regimes autoritários, a obrigação necessário,50 cujo fundamento reside em se tratar de
de o acusado provar a sua própria inocência exigência do Estado, ditada por razões diversas, para
(Decreto-Lei no 88, de 20/12/37, art. 20, no 5).47 assegurar obrigatoriamente, o duplo grau de jurisdição...
para maior tutela dos interesses em jogo.51
Do recurso de ofício Por isso, igualmente é recusada a alegação de sua
inconstitucionalidade por contrastar com a norma
Para finalizar, limitando o exame aos aspectos predisposta no artigo 129, inciso I, da Constituição da
principais do processo de conhecimento, sem prejuízo de República, conforme leciona Mirabete.52
reconhecer na execução penal, atualmente, carente da Com a devida vênia dos que defendem ponto de vista
iniciativa do autor (salvo de modo restrito no caso de contrário, nossa posição está em não ter sido acolhido pela
aplicação exclusiva de multa), da oralidade e de mais intensa Constituição, com a conformação que atualmente lhe defere
publicidade, uma forma inquisitória mitigada pelo a lei processual, o chamado recurso de ofício.
contraditório, deve ser objeto de menção o duplo grau Sem dúvida alguma, não se trata de recurso, pois como
obrigatório, denominado também recurso de ofício. tal entendemos o desdobramento do exercício dos direitos de
No artigo 574 do Código de Processo Penal está prevista
a submissão da decisão proferida ao exame obrigatório pelo
48 Grinover, Ada Pellegrini; Gomes Filho, Antônio Magalhães; Fernandes,
tribunal, como condição de eficácia da sentença. Assim, em Antônio Scarance. Recursos no Processo Penal, São Paulo: RT, 1996, p. 34.
relação à absolvição sumária do procedimento do júri, à 49 Mirabete, Processo Penal, p. 587.
decisão que concede habeas corpus, como também àquela 50 Tourinho Filho, Processo Penal, tomo 4, p. 263.
51 Idem, p. 266.
52 Convém analisar a decisão proferida no Recurso em Sentido Estrito nº
248/97-Cabo Frio, pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de
47 Habeas Corpus nº 73.338-7, impetrado em favor de José Carlos Martins Janeiro, relator Desembargador Paulo Ventura, dando integral aplicação à
Filho em face do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Relator Min. Súmula 423 do e. Supremo Tribunal Federal (Não transita em julgado a
Celso de Mello. Acórdão da 1ª Turma, publicado no Ementário nº 1.855-2, do sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex
Supremo Tribunal Federal. lege).
ação e de defesa, que deve exigir como requisito prévio o recurso, por óbvio que com mais razão atuará o princípio se
interesse da parte, e promover, no seu processamento, de houver sido absolvido, não concorrendo em nenhum sentido
acordo com as normas de um devido processo legal, o a quantidade de pena cominada ou a gravidade da infração
contraditório interpretado como a dialeticidade que limitará penal. Somente em um Estado extraordinariamente
o meio de impugnação, objetiva e subjetivamente, e displicente com os princípios basilares das liberdades
proporcionará melhores condições de uma justa solução do públicas, semelhante norma haveria de produzir efeito.
conflito. E é exatamente isto o que ocorre com o recurso de
Como não há contraditório possível entre juiz e acusado ofício, no processo penal brasileiro, hoje. O acento da
no processo penal inspirado pelo princípio acusatório e como preocupação do legislador não está, como deveria, na
temos como imperativo constitucional este princípio, adequada tutela dos direitos fundamentais, de que tanto se
verdadeira condição de validade constitucional dos atos falou neste trabalho. A ênfase toda recai na suspeição
processuais, a sua dedução, visando impugnar decisão incidente sobre sentenças favoráveis ao acusado (ou
favorável ao acusado, é contrária à Constituição. investigado, ou condenado, no caso do habeas corpus), que
É preciso que se afirme claramente que, mesmo despido podem indevidamente beneficiá-lo.
da roupagem de recurso, pela ausência do requisito da Ora, não é possível esconder que a dúvida sobre o acerto
voluntariedade, o duplo grau obrigatório está previsto na lei de tal tipo de decisão representa uma dupla desconfiança:
exclusivamente para condicionar a eficácia de decisões primeiramente, suspeita-se que o juiz não saiba apreciar
favoráveis ao acusado, tais como as que o absolvem corretamente os casos em que beneficia o acusado, muito
sumariamente, no procedimento do júri ou por crime contra embora, quando a sentença é condenatória, não se presuma
a saúde pública, ou ainda julgam procedente pedido de a mesma dificuldade; em segundo lugar, e mais uma vez,
habeas corpus. admite-se que o Ministério Público pode ficar
Não há como disfarçar que o interesse público (estatal?) negligentemente inerte diante de decisão injusta ou nula
protegido mediante a atual conformação do duplo grau favorável ao réu, apesar de também não se cogitar de
confunde-se com os interesses de defesa social que são negligência se a decisão é contrária ao acusado.
perceptíveis a partir da consideração da repressão penal Em ambos os casos, a tutela levada a efeito nada mais
como vetor de uma ordem social que prestigia tal tutela significa que uma presunção contra a inocência do agente,
prioritariamente. presunção que além de tudo está calcada na suposição da
Em tudo se assemelha a disposição ao contido no inciso inércia do Ministério Público e, portanto, na necessidade de
II do artigo 669 do Código de Processo Penal, que prevê que prolongar o processo penal para além do provimento judicial
só depois de passar em julgado a sentença absolutória, por de resolução do conflito acatado pelas partes.
crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por Há contraste com o princípio acusatório. Mas esta
tempo igual ou superior a oito anos, será ela exeqüível. confrontação seria aceitável, na perspectiva constitucional,
À evidência o requisito acima mencionado, quanto à se estivesse voltada à tutela dos interesses do acusado. Nesta
suspensão da imediata execução da sentença (art. 669, inciso hipótese, o princípio da proporcionalidade, somado ao favor
II, do Código de Processo Penal), não tem mais aplicação rei e inspirado no de justiça material, justificariam a
porque atinge de plano o princípio da presunção da compressão das normas que positivam o princípio
inocência. Se o réu é presumido inocente mesmo diante de acusatório. Um recurso de ofício de decisão condenatória,
sentença condenatória ainda passível de ser impugnada por aplicando pena de prisão por longo período, em regime
rigoroso, violaria o sistema acusatório, todavia poderia ser cautela, porém, não devemos nos esquecer da advertência do
aceito em face do critério de proporcionalidade antes escritor: cuidado com o que só existe no Brasil e não é
mencionado. jaboticaba!
Como acontece exatamente o oposto, há de ser afastado A razão dessas linhas é comentar que a combinação de
o duplo grau obrigatório ou recurso de ofício. 53 princípios e regras que compõem o Sistema Acusatório,
definindo seus elementos, deve ultrapassar o umbral das
Da compreensão cênica coisas teóricas e chegar à cultura. Sem a vivência cotidiana a
nos revelar as contradições entre o dever ser de respeito às
Neste capítulo 4, dedicado ao Sistema Acusatório e o igualdades e o ser concreto de frustração deste objetivo, nós
processo penal brasileiro, na terceira edição acrescento este brasileiros em determinado momento chegamos a achar
item, sobre posicionamento das partes em sala de natural e perfeita a instituição da escravidão.
audiências. Muitas vezes somente a ruptura tem capacidade de
Para o leitor estrangeiro desta obra (se é que existe) transformar a realidade. Persuadir as forças dominantes a
falar em assento das partes em sala de audiências criminais abrir mão da situação de conforto gerada pela dominação é
pode parecer, à primeira vista, incompreensível. Afinal, na acreditar em uma inocência do poder desmentida no dia-a-
caminhada em direção ao estabelecimento do status de dia.
autonomia das partes frente ao juiz, que marca o Para a ruptura, porém, é preciso antes a posição de
enraizamento do Sistema Acusatório no resto do mundo, o estranhamento. São os antropólogos que nos lembram disso.
lugar ocupado pelas partes na sala de audiências é Quando todos os conviventes de uma determinada sala
considerado projeção desse status e tem a finalidade de diariamente se encontram e estão de terno e gravata, há a
deixar evidente a independência do Ministério Público e da tendência a aceitar que os demais seres viventes também
Defesa em relação ao juiz. usam terno e gravata o dia todo! É preciso, pois, estranhar,
E o Sistema Acusatório é isso: ausência de vínculo de duvidar da normalidade das coisas e fixar o espírito
subordinação das partes ao juiz e compreensão de que, se o questionador para buscar na história a razão de ser das
juiz tem o poder de decidir, as partes têm o direito de categorias e instituições do direito e, sendo o caso,
participar do processo e cooperar no sentido de que se transformá-las.
produza a melhor (mais justa) decisão possível. A se DFUHGLWDU QD ³QRUPDOLGDGH´ da escravidão,
Em todos os lugares, portanto, é questão elementar estaríamos ainda hoje sob a égide do estado anterior à Lei
distinguir o Ministério Público do Tribunal, assegurando ao Áurea, que libertou os escravos no Brasil em 13 de maio de
Ministério Público local na sala de audiências que não o 1888. A tradição que nos orienta é aquela que condiz com os
confunda com o juiz. propósitos democráticos de expansão da liberdade que, no
Há, porém, as jaboticabas. Estas são tipicamente passado, era bem de posse de poucos, mas hoje é promessa
brasileiras, já se disse. Talvez elas não sejam os únicos constitucional para a fruição de todos.
produtos exclusivamente brasileiros que deram certo. Por Feita a digressão necessária é o caso de registrar que em
nenhum outro país o Ministério Público com atuação na área
53 criminal se senta no lugar destinado ao tribunal, isto é, ao
Marcellus Polastri Lima igualmente salienta a inconstitucionalidade do
recurso de ofício, com precisa fundamentação, com a qual concordamos. Curso lado do juiz. Não se trata de um problema na Europa ou nos
de Processo Penal, vol. 1, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 151. Estados Unidos da América, pois quando o Ministério
Público conquistou autonomia em face do juiz, com o fim da responsabilidade dessa instituição.55
inquisição, conquistou, conseqüentemente, o direito de não A autonomia administrativa, econômica e financeira do
ser confundido com o tribunal. Trata-se de direito do Ministério Público também foi alcançada em boa medida, da
Ministério Público. mesma forma que o poder de gestão da própria instituição
Por que no Brasil, hoje, ainda é diferente e na sala de com independência do poder de origem político-partidária.
audiências criminais o Ministério Público se senta ao lado do A questão examinada neste tópico se coloca, pois, com
juiz? exclusividade na seara penal. E o campo penal, no Brasil,
O antropólogo Roberto DaMatta, na explêndida análise como demonstrado ao longo do trabalho, que tem ficado
do dilema brasileiro e no tópico dedicado à igualdade, impermeável à cultura da acusatoriedade.
formula uma tentativa de explicar outra genuína criação Foi visto como ainda hoje se defende a existência de
brasileira: o argumento de autoridade expresso na máxima poderes probatórios do juiz. Ligou-se o fato à idéia de que a
³YRFrVDEHFRPTXHPHVWiIDODQGR´ jurisdição penal está inserida no programa de segurança
De acordo com Roberto DaMatta, a definição de traços pública do Estado e não dirigida à defesa das garantias
hierarquizantes na sociedade brasileira, percebida por processuais, entre as quais há de ser ressaltado o direito ao
Machado de Assis, explica a reinvenção do princípio da julgamento por juiz imparcial. Salientou-se que o mesmo
igualdade, por meio da qual a posição social assegura a ocorre quando se trata de deferir ao juiz o poder de modificar
validade do argumento que é empregado não para o conteúdo da acusação (mutatio libelli). Em ambas as
convencer, mas para dissuadir.54 situações a ordem jurídica infraconstitucional procura
Na realidade, segundo nossa ótica, a diferença do estado enquadrar as funções do Ministério Público, que é olhado
da matéria no Brasil, em comparação com outros países, é com desconfiança, como se seus membros não pudessem ser
ditada pelo fato de não ter se completado o processo de dotados de liberdade para agir em defesa da sociedade. É
autonomia do Ministério Público. preciso, segundo a lógica inquisitorial que preside estes
Com efeito, o Ministério Público é instituição institutos (artigos 156, parte final, e 384 do Código de
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado. Isso Processo Penal), transformar o juiz em fiscal do Ministério
é indiscutível. Também merece ser colocado em relevo que Público. E isso é feito desde antes do processo (artigo 28 do
em sociedades com baixa densidade de organização social, Código de Processo Penal), com a atribuição ao juiz do
como é o nosso caso, instituições como o Ministério Público controle da obrigatoriedade da ação pública.
são fundamentais para a consolidação da democracia, pois Como sabem os sociológos56 as práticas sociais têm
que postulam a tutela efetiva de direitos difusos e coletivos
que beneficiam grandes setores da população que, de outra
55
maneira, estariam fora do circuito de gozo desses direitos. Basta ver neste ano de 2005 as ações efetivas do Ministério Público contra a
De 1988 para cá o Ministério Público deu passos largos remanescência do trabalho escravo e a negação de efetividade aos direitos à
saúde e educação. Com base em ações coletivas promovidas pelo Ministério
para ocupar espaço condizente com as funções Público, vários grupos de pessoas foram libertados da cndição análoga a de
constitucionais e hoje, no horizonte das vitórias que a escravo e outros tantos tiveram acesso a remédios e escolas que, de outro modo,
democracia brasileira computa é inegável a parcela de não ficariam acessíveis.
56
Convém examinar a pesquisa coordenada por Sérgio Adorno, na USP,
54
intitulada Dossiê Judiciário.: Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica: as
DAMATTA, Roberto. Carnaval, malandros e heróis: para uma sociologia do mortes que se contam no Tribunal do Júri (Revista USP, 21, março-abril-maio
dilema brasileiro, 6ª ed., Rio de Janeiro, Rocco, 1997, p. 203. de 1994, p. 132).
mais força que as ordens do direito emanadas Rubens Casara e André Nicolitt, nas decisões pioneiras
abstratamente. Não fossem suficientes as amarras jurídicas proferidas na 2ª Vara Criminal de Itaperuna (MS/proc.
mencionadas, a enlaçar o Ministério Público ao juiz, coloca- 2004.078.00039) e em Arraial do Cabo (proc.
se o próprio Promotor de Justiça fisicamente ao lado do juiz. 2003.005.000056-7), objeto de mandado de segurança, com
É claro que além da óbvia mensagem subliminar base em conceitos defendidos por Hassemer e Habermas.
endereçada ao réu, de que a justiça penal tem função Também foram considerados os argumentos do voto
repressiva, motivo pelo qual juiz e Ministério Público estão condutor do acórdão proferido na Sétima Câmara Criminal
aliados na tarefa de punir, há outra igualmente sutil, dirigida do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pelo
ao próprio Ministério Público. Segundo esta interpretação, a Desembargador Eduardo Mayr, Relator do Mandado de
posição do Ministério Público ao lado do juiz é justificada Segurança n. 035/04, que manteve a decisão de deslocar o
por discurso que ressalta a importância da instituição, Ministério Público da posição ao lado do juiz para outra
todavia deixa abaixo da superfície a intenção de controle simétrica a da Defesa e a tese exposta pelo jurista e
judicial das funções de persecução. Desembargador do Rio de Janeiro, Silvio Teixeira, citado por
Não há dúvida de que os objetivos latentes podem não Rubens Casara nas informações do mandado de segurança.
se realizar por conta da autonomia com que cada membro do Por igual foram considerados os argumentos de Lênio
Ministério Público se comporta. Isso, também, é aplicável ao Luiz Streck, em artigo denominado A CONCEPÇÃO CÊNICA
instituto da mutatio libelli, à produção de provas de ofício DA SALA DE AUDIÊNCIA E O PROBLEMA DOS
pelo juiz e à posição do Procurador-Geral de Justiça, que no PARADOXOS, recebido com carinho e que em breve será
exercício da atividade posta pelo artigo 28 do Código de publicado no site www.leniostreck.com.br.
Processo Penal poderá manter o ponto de vista (decisão) do
Ministério Público que oficiou pelo arquivamento da
investigação criminal.
A questão está naquilo que foi objeto de advertência no Conclusão do capítulo 4
início do trabalho. Em uma democracia privilegia-se o
governo sob a égide das leis e não de acordo com a De tudo o que foi visto é possível ratificar a advertência
arbitrariedade incontrolável do ser humano. feita no começo deste item. Tal seja, de que no Brasil,
Assim, não basta ao juiz a confiança na própria certamente não é tarefa fácil assinalar com precisão, acima
imparcialidade. É necessário que se afaste do processo se dos interesses que movem os juristas, motivados pelo
antes funcionou como perito (artigo 252 do Código de sentido e função que atribuam ao Processo Penal e pela
Processo Penal). Assim, não basta para as partes (Ministério maneira como viveram a experiência política do seu tempo,
Público e Defesa) confiança na autonomia do Ministério que sistema processual vigora ou que sistema em outras
Público e na não intervenção do juiz na atuação do épocas imperou.
Ministério Público. É necessário que o Ministério Público Assim, se aceitarmos que a norma constitucional que
ocupe o seu lugar de parte, na sala de audiências, mantendo assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício
o juiz eqüidistante do Ministério Público e da Defesa. da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos
Essas são considerações sobre o tema que, em os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e
realidade, não deixam de levar em conta os argumentos contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado
apresentados pelos juzes criminais do Rio de Janeiro, da sentença condenatória, a presunção da inocência, e a que,
aderindo a tudo, assegura o julgamento por juiz competente
e imparcial, são elementares do princípio acusatório,
chegaremos à conclusão de que, embora não o diga
expressamente, a Constituição da República o adotou.
Verificando que a Carta Constitucional prevê, também,
a oralidade no processo, pelo menos como regra para as
infrações penais de menor potencial ofensivo, e a
publicidade, concluiremos que se filiou, sem dizer, ao
sistema acusatório.
Porém, se notarmos o concreto estatuto jurídico dos
sujeitos processuais e a dinâmica que entrelaça todos estes
sujeitos, de acordo com as posições predominantes nos
tribunais (principalmente, mas não com exclusividade no
Supremo Tribunal Federal), não nos restará alternativa salvo
admitir, lamentavelmente, que prevalece, no Brasil, a teoria
da aparência acusatória.
Muitos dos princípios opostos ao acusatório
verdadeiramente são implementados todo dia. Tem razão o
mestre Frederico Marques ao assinalar que a Constituição
preconiza a adoção e efetivação do sistema acusatório.
Também tem razão Hélio Tornaghi, ao acentuar que há
formas inquisitórias vivendo de contrabando no processo
penal brasileiro, o que melhor implica em considerá-lo, na
prática, misto. O princípio e o sistema acusatórios são, por
isso, pelo menos por enquanto, meras promessas, que um
novo Código de Processo Penal e um novo fundo cultural,
consentâneo com os princípios democráticos, devem tornar
realidade.
5. -O Sistema Acusatório e a Legislação constitucional e o Estado Democrático.2
Processual Posterior à Constituição Em todos os casos, é possível perceber o reflexo
imediato da atitude constitucional no campo processual, não
só pela mecânica de compressão dos direitos fundamentais,
com diferentes propósitos, mas também porque o
procedimento penal consensual não pode ser exatamente
Um exame mesmo superficial da Constituição da
igual ao de apuração de infrações penais mais sofisticadas.
República revela ao estudioso do Direito Penal que a
A natureza desigual das ações delituosas e das formas
preocupação dos constituintes, em matéria penal, não se
mais recomendadas à eficácia da apuração, levando em
restringiu somente à determinação de normas de conteúdo
consideração os fins manifestados pela Carta Constitucional,
ético-jurídico, voltadas à contenção do poder punitivo
impele o ordenamento jurídico a estruturar diferentes
estatal, mas agora, também, demonstrou significativa
procedimentos. A isso podemos denominar princípio da
mobilização, em face da disposição de juízos de valor sobre a
adequação dos procedimentos, cujos mandamentos têm por
substância da proibição.
destinatários tanto o legislador como o juiz penal.
Trata-se de uma perspectiva de incriminação de
Dedicaremos este capítulo ao estudo das características
condutas cogitada pela própria lei maior.
do modelo processual pertinente à investigação da
Temos, assim, a previsão, no artigo 98, inciso I, da
denominada ação de organizações criminosas, daquele
instituição de juizados especiais criminais, competentes para
relativo às infrações penais de menor potencial ofensivo, e da
o julgamento de infrações penais de menor potencial
disponibilidade jurídica de uma importante técnica de
ofensivo,1 correspondendo tal juízo à tese, amplamente
aquisição de provas ² a interceptação das comunicações
difundida na Alemanha e em outros países, de que há um
telefônicas ², não avançando sem, antes, advertir que
número importante de fatos delituosos que justificam a
objetivo da abordagem não é o de comentar as leis, mas de
intervenção do Estado, porém não exigem, como natural
verificar apenas aquilo que nelas as vincula ao sistema
contrapartida, a imposição de graves sanções penais.
acusatório, eleito também na Constituição da República,
No pólo oposto, há as infrações de especial ou maior
teórica e praticamente.
gravidade, tendo a Constituição se referido diretamente aos
Comecemos, pois, em obediência à ordem cronológica
crimes hediondos, à tortura, ao tráfico ilícito de
do aparecimento dos diplomas legais e à forma instrumental
entorpecentes, ao terrorismo, à prática de racismo e à ação
como se articulam.
de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem

2 Artigo 5º, inciso XLII, da Constituição: a prática do racismo constitui


1 Artigo 98, inciso I, da Constituição: A União, no Distrito Federal e nos crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos
Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por da lei; XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de
juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e
julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles
infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se
oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a omitirem; XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de
transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o
grau. Estado Democrático.
5.1. -A Lei de Controle do Crime Organizado3 e a Lei Em 4 de maio de 1995, entrou em vigor a Lei n o 9.034,
das Interceptações Telefônicas que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a
prevenção e repressão de ações praticadas por
organizações criminosas.
Observo ao leitor que permanecem válidas todas as A iniciativa demonstra a preocupação dos poderes
objeções formuladas sobre o tema nas duas primeiras públicos com a adequação da legislação, para tentar
edições do Sistema Acusatório. controlar o crime organizado, na seqüência da tendência de
Assim, a análise crítica acerca da cultura inquisitorial aumento da repressão, denominada de filosofia, política
identificada na aceitação inicial da aplicação do artigo 3º da criminal ou movimento de Lei e Ordem, em consideração ao
Lei nº 9.034/95, percebida no indeferimento de medida afirmado incremento da criminalidade violenta e sofisticada.
liminar em ação direta de inconstitucionalidade promovida Em concreto, a lei editada procurou aparelhar os órgãos
pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil ± encarregados do controle social repressivo, conferindo,
ADEPOL ± (ADI 1517 MC/UF), sob o argumento de que as especialmente ao Judiciário, instrumentos normativos, por
atividades de investigação do juiz, na fase de inquérito, não meio dos quais deseja alterar o panorama processual,
violavam regras constitucionais, é válida, ainda que o incentivando a participação do juiz na busca da verdade real.
Supremo Tribunal Federal tenha mudado completamente Na época da edição da mencionada lei, comentamos que
sua posição. foram instituídas, para isso, novas atribuições do juiz.4
Por maioria de votos, Tribunal Pleno do Supremo Acentuávamos, já naquele momento, que a busca das provas
Tribunal Federal decidiu julgar procedente pedido em ação da autoria e da existência da infração penal, pelo juiz, por
direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador- mais grave que possa parecer o delito, compromete a
Geral da República, com o mesmo objeto, e declarar a imparcialidade daquele que vai decidir, dentro de uma
inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.034/95, que perspectiva de que a jurisdição difere do exercício da ação
instituiu a figura do juiz investigador (ADI 1570/UF, rel. penal e que este, por sua vez, não se resume a deflagrar-se o
Ministro Maurício Corrêa, julgamento em 12 de fevereiro de processo por meio da petição inicial, compreendendo, ainda,
2004, com voto vencido do Ministro Carlos Velloso). as práticas da ação cautelar, no tocante à aquisição e
São vários, porém, os projetos de lei com previsão de preservação das provas, além dos demais atos desenvolvidos
criação da figura do juiz de instrução no Brasil e a atualidade no curso do processo de conhecimento, com o escopo de
da crítica reforça a tarefa de defesa da Constituição da conformar a convicção judicial.
República de 1988, que também está a cargo da doutrina. Tratando a lei da disciplina da persecução preparatória
Também a análise sobre sigilo bancário está superada da ação penal, inseriu o juiz nesta tarefa, em que pesem às
pelo advento da Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de conseqüências do seu envolvimento, nas atividades
2001. preliminares à apresentação da lide.
Por isso e pelo valor histórico dos argumentos que Repita-se, portanto, que, pelo menos do ponto de vista
foram apresentados por ocasião de defesa pública deste psicológico, por mais sereno que seja o magistrado, sua
trabalho, o texto a seguir foi mantido inalterado. inserção na mencionada atividade implicará certo grau de

3 A respeito do tema, remeto o leitor ao nosso trabalho Crime Organizado, 4 Prado, Geraldo; Douglas William. Comentários à Lei Contra o Crime
Rio de Janeiro: Impetus, 2000. Organizado, Belo Horizonte: Del Rey, 1995.
comprometimento com os fatos apurados, afastando-se o consiga uma concordância entre a norma
julgador do ponto de equilíbrio que, como garantia das infraconstitucional e as normas constitucionais.6
partes, traduz-se no princípio do juiz imparcial.5 Ao afiançarmos a constitucionalidade dos dispositivos
Com efeito, a imparcialidade do juiz é o pilar de da Lei no 9.034/95, designadores ao juiz de funções de
sustentação do tríptico do princípio acusatório, basilar em persecução,7 porque poderia dar cabo delas com isenção,
um processo penal democrático, de tal sorte que lhe entregar sem parcialidade, ou com fundamento em uma intervenção
funções diversas daquelas típicas do exercício da jurisdição cautelar jurisdicional, assinalamos à lei uma interpretação
² dizer o direito e atuá-lo praticamente ² acaba que não condiz com a sua letra e com o seu espírito.
desnaturando o instrumento. O que realmente deseja o legislador é maior eficácia
Apesar dos avisos de preocupação que na ocasião persecutória, mais repressão, e por essa razão antecipa a
emitimos, concretamente acabamos por sustentar que não se intervenção judicial e oferece ao juiz as condições que o
devia, a priori, acoimar de inconstitucional a entrega de titular da ação penal deveria dispor, para preparar-se com
atividades probatórias ao juiz, na fase preliminar, porquanto, vista à deflagração da citada ação, e exigindo do magistrado,
ainda que limitadamente, este teria condições de desenvolver em troca, sutilmente, a incorporação de um interesse público
a sua atuação com base nos poderes processuais conferidos ou institucional voltado à repressão dos delitos.
pelo abordado artigo 156, parte final, do Código de Processo No mesmo sentido, em 24 de julho de 1996, foi editada
Penal ou, com maior freqüência, ou propriedade, no âmbito a Lei no 9.296, que regulamenta o inciso XII do artigo 5o da
do processo penal cautelar, preservando os direitos Constituição, dispondo sobre os casos e formas de
fundamentais do investigado. interceptação das comunicações telefônicas.
Acrescentamos que, nas hipóteses em que a obtenção e O que nos interessa para o exame da conformidade ao
seleção de dados viessem a servir de pilar da denúncia, não sistema acusatório é o artigo 3o, caput, pelo qual são
estaria o magistrado impedido de funcionar no processo de designados os legitimados a por em marcha o procedimento,
conhecimento, salvo se resultasse da instrução preliminar a aparecendo menção à atuação do juiz, de ofício,8 enquanto
emissão de um juízo de valor. ao acusado e seu defensor negou-se qualquer referência
Hoje vemos este posicionamento como típica expressa.
interpretação da lei, em conformidade com a Constituição, Reafirma-se que a pesquisa e seleção de provas,
porém, contra legem, modalidade interpretativa reputada
por Canotilho como inapta a conferir validade à norma
interpretada. 6 Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, pp. 235-236.
Segundo o mestre português, impõe que o aplicador de 7 Funções que este deve desempenhar pessoalmente, recolhendo e
selecionando informações que venham a servir de suporte para potencial
uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa acusação
norma através de uma interpretação conforme à 8 Artigo 5º, inciso XII, da Constituição: é inviolável o sigilo da
constituição, mesmo que através dessa interpretação correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação
5 Garantia forte, assinalaria Ferrajoli, como tal classificando aquelas que, em criminal ou instrução processual penal; artigo 3º da Lei nº 9.296/96: A
um sistema garantista, comportam diretamente a nulidade dos desvios, a interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo
minimização da discricionariedade dos poderes de investigação e a juiz, de ofício, ou a requerimento: I ² da autoridade policial, na
supressão dos poderes de disposição impróprios, cujo exercício é fonte investigação criminal; II ² do representante do Ministério Público, na
inevitável de abusos (Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 594). investigação criminal e na instrução processual penal.
principalmente se não há ação penal proposta, para o comunicações telefônicas como meio de prova:
julgador importa na emissão, expressa ou tácita, de juízos de
mérito antecipados, que não se confundem, por exemplo, Art. 3o Nas hipóteses do inciso III, do art. 2o
com as sentenças estatuídas no artigo 516 do Código de desta Lei, ocorrendo possibilidade de violação de
Processo Penal ² que rejeitem a denúncia ou queixa em vista sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a
do convencimento da improcedência da ação penal ² ou diligência será realizada pessoalmente pelo juiz,
que igualmente rejeitem a inicial acusatória fundada na falta adotado o mais rigoroso segredo de justiça.
de justa causa, porquanto nestes casos a ação penal é § 1o Para realizar a diligência, o juiz poderá
proposta pelo autor, que para ela se prepara sem a requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza
colaboração do juiz. da função ou profissão, tenham ou possam ter
Muito embora não se controverta sobre o fato de que a acesso aos objetos do sigilo.
preservação do sistema acusatório não inviabiliza a adoção § 2o O Juiz, pessoalmente, fará lavrar auto
de medidas destinadas a garantir o êxito ou evitar a circunstanciado de diligência, relatando as
frustração dos processos de conhecimento condenatório e de informações colhidas oralmente e anexando cópias
execução penal, tratando-se aí de tutela cautelar. Também autênticas dos documentos que tiverem relevância
neste caso são requisitadas as manifestações dos probatória, podendo, para esse efeito, designar
interessados (a Polícia ou o virtual autor da ação penal) uma das pessoas referidas no parágrafo anterior
consoante as considerações anteriores, não tendo sentido como escrivão ad hoc.
que o juiz atue de ofício, implementando providências que se § 3o O auto de diligência será conservado fora
mostrem inúteis para aqueles interessados ou denunciem a dos autos do processo, em lugar seguro, sem
suspeita do juiz em relação ao investigado ² com a inversão, intervenção de cartório ou servidor, somente
na prática, do princípio da presunção da inocência. podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as
Numa solução de compromisso, chegamos a concluir, a partes legítimas da causa, que não poderão dele
respeito da Lei no 9.034/95, que só seriam considerados servir-se para fins estranhos à mesma, e estão
constitucionais os atos do juiz, relativos à obtenção, sujeitas às sanções previstas pelo Código Penal em
pessoalmente, de elementos de prova, se decorrentes da caso de divulgação.
necessidade da medida, na presença do fumus boni juris, § 4o Os argumentos de acusação e defesa que
devendo, todavia, à vista da imprescindível preservação da versarem sobre a diligência serão apresentados
imparcialidade do julgador, dar-se este por impedido sempre em separado para serem anexados ao auto da
que, à colheita de dados ou informações, seguir-se a sua diligência, que poderá servir como elemento na
seleção, de modo a executar tarefa típica de perito.9 formação da convicção final do juiz.
Pode-se compreender a dificuldade de conciliação dos § 5o Em caso de recurso, o auto de diligência
preceitos, à luz da matéria que se avalia, e que, com efeito, será fechado, lacrado e endereçado em separado
consiste nas disposições adiante transcritas, reforçadas, para o juízo competente para a revisão, que dele
posteriormente, pela regulação da interceptação das tomará conhecimento sem intervenção das
secretarias e gabinetes, devendo o relator dar
9 Prado, Geraldo e Douglas, William. Comentários à Lei Contra o Crime vistas ao Ministério Público e ao Defensor em
Organizado, pp. 36-37. recinto isolado, para o efeito de que a discussão e o
julgamento sejam mantidos em absoluto segredo autônoma da verdade.13
de justiça. Muito embora a concordância das duas afirmações que
se seguem tenha a aparência de uma evidência, incontestável
Luiz Flávio Gomes apresentou objeção à à primeira vista, uma delas a respeito da eleição
constitucionalidade dos referidos dispositivos que, constitucional do sistema acusatório e, portanto, do
inegavelmente, deferem ao juiz iniciativas probatórias, princípio que lhe confere a designação, e a outra, resultante
assinalando que a lei de controle do crime organizado do reconhecimento que, ao atribuir ao juiz a realização
acabou criando... uma monstruosidade, qual seja, a figura pessoal de diligências de investigação, com seleção do
do juiz inquisidor, nascida na era do Império Romano, mas material apurado, sem provocação dos interessados, tais
com protagonismo acentuado na Idade Média.10 sistema e princípio são violados, concretamente o Supremo
Salienta o culto professor paulista, na esteira do Tribunal Federal não a aceita assim e se posiciona
magistério de Ferrajoli, que o sistema acusatório configura- diferentemente.14
se à base de um juiz como sujeito passivo, rigidamente Duas ações diretas de inconstitucionalidade foram
separado das partes, ao passo que, no sistema inquisitório, o propostas perante a e. Corte, com pedido de medida liminar,
juiz procede de ofício, na busca das provas,11 sendo sob o fundamento da invalidade de se conferir as atividades
exatamente essa última a atitude esperada dele, pelo persecutórias em questão ao juiz, sendo certo que, até a
legislador, diante dos diplomas estudados. presente data, apenas um dos casos foi apreciado,
A motivação psicológica ou social do deslocamento da indeferindo-se a liminar. Vale, pelo que importa em termos
figura do juiz, conforme a função de investigação que lhe é de assinalar à eleição do sistema acusatório uma
designada pelas citadas leis, consiste em uma concepção do constitucionalidade meramente simbólica, na linha
poder jurisdicional e da verdade que a sentença há de conter, preconizada por Marcelo Neves, transcrever a nota do
ao final de um virtual processo condenatório, em tudo julgamento da liminar, pelo Plenário, divulgada no
distinta dos padrões epistemológicos encarnados pelo Informativo no 69, de 28 de abril a 5 de maio de 1997, do eg.
sistema acusatório. Ferrajoli aduz com convicção que o Supremo Tribunal Federal:
método inquisitivo expressa uma confiança
tendencialmente ilimitada na bondade do poder e na sua Diligências realizadas por juiz - I
capacidade de alcançar a verdade.12 É exatamente esta Indeferida a cautelar requerida pela
confiança resoluta na bondade do poder que o sistema Associação dos Delegados de Polícia do Brasil ²
acusatório renega, afastando o juiz do conflito, antes da sua ADEPOL em ação direta de inconstitucionalidade
dedução pelas partes, e complementando a atividade contra o art. 3o e seus parágrafos da lei federal no
jurisdicional com preceitos de oralidade, publicidade,
legalidade dos procedimentos e motivação das decisões, pois
13 Idem.
que se tem por premissa a desconfiança no poder como fonte 14
Ver mudança de posição do Supremo Tribunal Federal, noticiada no início
deste item O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu julgar
procedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo
10 Gomes, Luiz Flávio. Crime Organizado: Enfoques criminológico, jurídico Procurador-Geral da República, para declarar a inconstitucionalidade do artigo
(Lei 9.034/95) e Político-criminal, 2ª ed. São Paulo: RT, 1997, p. 133. 3º da Lei nº 9.034/95, que instituiu a figura do juiz investigador (ADI 1570/UF,
11 Idem, p. 135. rel. Ministro Maurício Corrêa, julgamento em 12 de fevereiro de 2004, com voto
12 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 604. vencido do Ministro Carlos Velloso).
9.034/95, que ² dispondo sobre o acesso a dados, por violação ao princípio do devido processo legal
documentos e informações fiscais, bancárias, por entender que a coleta de provas desvirtua a
financeiras e eleitorais durante a persecução função do juiz de modo a comprometer a
criminal que verse sobre ação praticada por imparcialidade deste no exercício da prestação
organizações criminosas ² estabelece que, jurisdicional. ADIN 1.517-DF, Rel. Min. Maurício
³RFRUUHQGR SRVVLELOLGDGH GH YLRODomR GH VLJLOR Corrêa, publicada em 30 de abril de 1997.15
preservado pela Constituição ou por lei, a diligência
VHUi UHDOL]DGD SHVVRDOPHQWH SHOR MXL]¶ R TXDO µIDUi Sublinhando o Supremo Tribunal Federal a existência
lavrar auto circunstanciado da diligência, relatando de poderes judiciais de investigação, opta a e. Corte por uma
as informações colhidas oralmente e anexando concepção restrita de princípio acusatório, excluindo do
cópias autênticas dos documentos que tiverem conceito os elementos pertinentes à atuação do juiz, na
relevância probatória...´. A referida lei determina, instrução, e sinalizando neste sentido não apenas na direção
ainda, que ³R DXWR GH GLOLJrQFLD VHUi FRQVHUYDGR dos procedimentos que a Lei no 9.034/95 criou, como
fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem também em relação a todos aqueles instituídos para o
intervenção de cartório ou servidor, somente processo penal de conhecimento condenatório, o que vai
podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as refletir, sem dúvida, na validade da interceptação telefônica
partes legítimas na causa, que não poderão dele determinada de ofício. Ada Grinover, militando entre os que
servir-se para fins estranhos à mesma, e estão declaram a inconstitucionalidade dos citados preceitos da Lei
sujeitas às sanções previstas pelo Código Penal, em no 9.034/95,16 concita a não-aplicação desta lei, editada
FDVRGHGLYXOJDomR´ muito mais em conta da sua eficácia simbólica, como
Diligências realizadas por juiz - II verdadeiro e acabado exemplo de legislação-álibi, do que
O Tribunal, por maioria de votos, entendeu propriamente por causa de alguma fé inabalável nos
que os argumentos sustentados pela autora da predicados intelectuais dos juízes.
ação ² usurpação da função de polícia judiciária Outro importante ponto de (des)conexão com o sistema
(CF, art. 144, § 1o, IV, e § 4o), ofensa ao devido acusatório, na Lei nº 9.034/95, refere-se à publicidade dos
processo legal (art. 5o, LIV) devido ao procedimentos.
comprometimento da imparcialidade do juiz na Deve ser observado que o cuidado que a legislação
apreciação de provas por ele próprio colhidas e aparenta dispensar à intimidade e vida privada pode ser
ofensa ao princípio da publicidade (CF, art. 5o, LX) alcançado sem distorção do sistema acusatório, e com a
² não possuíam a relevância jurídica necessária exigência, aliás sempre presente, em se cuidando de
para o deferimento da liminar. À vista dessas
alegações, considerou-se: a) que o magistrado tem
poderes instrutórios e a investigação criminal não 15 As Ações são as seguintes: Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.517-6-
DF, requerida pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil ²
é monopólio da polícia judiciária; b) que a coleta ADEPOL, sendo relator o Ministro Maurício Corrêa, e Ação Direta de
de provas não antecipa a formação de juízo Inconstitucionalidade nº 1.570-2-DF, requerida pelo Procurador-Geral da
condenatório; c) que a CF autoriza restrições ao República, sendo relator também o Ministro Maurício Corrêa.
16 Grinover, $GD 3HOOHJULQL ³2 &ULPH 2UJDQL]DGR QR 6LVWHPD ,WDOLDQR´ in O
princípio da publicidade (CF, art. 5o, LX). Vencido Crime Organizado (Itália e Brasil): A Modernização da Lei Penal. Penteado,
o Min. Sepúlveda Pertence, que deferia a liminar Jaques de Camargo (coord.), pp. 13-29.
informações bancárias, dos interessados na aquisição dos requisitar informações e documentos para instruir
elementos de convicção baterem à porta do Judiciário, procedimentos administrativos de sua
requerendo-os17. competência.
Cumpre à justiça, então, o papel que a Constituição lhe O pressuposto é a existência de procedimentos
impõe, de garante dos direitos fundamentais, sem embaraçar administrativos de competência do Ministério
a ação de investigação e atormentar a consciência dos Público.
acusados com especulações sobre a imparcialidade do Além disso, o dispositivo carece de
julgador. regulamentação por lei complementar (art. 129,
Exemplo disso pode ser visto na jurisprudência pacífica VI). Quanto ao artigo 29 da Lei no 7.492/86,
do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal permite ele a requisição pelo Ministério Público de
Federal, que deliberaram, em várias oportunidades, antes da GRFXPHQWRRXGLOLJrQFLDD³TXDOTXHUDXWRULGDGH´
edição da lei sob comento, o modo de ordenação e execução A autoridade, no caso, seria dirigente do
da colheita de informações pertinentes à esfera íntima do Banco Central e não o gerente do banco, que não é
indivíduo. O objetivo da orientação jurisprudencial consistiu titular de cargo ou função pública. Em suma,
na proteção do direito à vida privada, de índole mesmo em se admitindo a legitimidade do
constitucional, isso embora o Ministério Público, mesmo Ministério Público para requisitar a quebra do
antes do advento da Lei no 8.625/93, tenha reivindicado, à sigilo bancário em caso de crime econômico, tal
luz do artigo 29 da Lei no 7.492/86, o acesso às informações requisição deveria ter sido dirigida ao Banco
bancárias, o que só lhe era deferido no estreito âmbito dos Central, ao qual poderiam as impetrantes fornecer
crimes previstos no citado estatuto. os dados sem incidir nas penas cominadas ao
A este respeito, convém trazer à colação ao menos o crime de quebra de sigilo bancário.
seguinte acórdão, do não menos prestigiado Tribunal II ² Ordem de habeas corpus concedida.18
Regional Federal da 2a Região:
Convém destacar que no plano constitucional agitou-se
Habeas Corpus ² Gerentes Administrativos a problemática da reserva da vida privada em face dos
de Bancos Particulares ² Quebra de Sigilo processos judiciais, consignando-se, textualmente, a
Bancário. providência de restrição da publicidade nas estritas
I ² 6RPHQWHDR3RGHU-XGLFLiULRHjV&3,¶VGR hipóteses de defesa da intimidade e interesse social ² artigo
Legislativo cabe decidir sobre quebra do sigilo 5o, inciso LX, da Constituição da República ² sem perda de
bancário, ex vi do art. 38 da Lei no 4.595/64. O consistência do aspecto de garantia do sistema acusatório,
dispositivo não foi revogado pelo artigo 129, VI, da porque, em verdade, preserva do dano quer o agente, cuja
Constituição Federal que, dispondo sobre os inocência se presume, quer a vitima, que poderia ficar
poderes do Ministério Público, inclui os de submetida a vexames e constrangimentos com a exibição
pública dos seus tormentos.
17
Hoje a matéria pertinente ao sigilo bancário está tratada na Lei
Complementar n. 105, de 10 de janeiro de 2001. Recomenda-se a leitura do 18 Habeas corpus nº 93.02.18736-5-Rio de Janeiro. Tribunal Regional
excelente livro de Juliana Garcia Belloque, Sigilo Bancário (São Paulo, RT, Federal da 2ª Região. Impetrante: Miguel Reale e outro. Relator:
2003). Desembargador Federal Chalu Barbosa. 7/3/1994.
A esse propósito, salientou Celso Ribeiro Bastos que em acusado e de seu defensor entre os legitimados a propor a
muitas circunstâncias o interesse maior de reserva se opõe à interceptação das comunicações telefônicas, como meio de
publicidade. Sem dúvida a publicidade funciona como demonstrar os fatos alegados e obter um resultado
garantia das partes, da coletividade em geral e do processual favorável, denota inconsciente voto repressivo
magistrado, as primeiras colocadas ao abrigo de medidas quanto ao emprego da lei, com prejuízo do princípio da
arbitrárias e premeditadamente injustas, a comunidade paridade de armas, sequer objeto de especulação justamente
resgatada em um conceito de controle democrático sobre os em virtude da percepção das funções repressivas da
atos judiciais, e o magistrado protegido contra insinuações e jurisdição penal.
maledicências19. Esta lacuna deve ser colmatada pela aplicação do
O segredo de justiça, contudo, não anula as conquistas princípio da igualdade das partes, de índole constitucional,
da democracia burguesa, relativas à exigência de motivação estendendo-se ao acusado os mesmos recursos de que pode
das decisões judiciais, celebração do devido processo legal e, dispor a acusação.
como sua conseqüência lógica, a estabilização do Em vista do exposto, concluímos acentuando a
contraditório e da ampla defesa em um processo de estrutura inconstitucionalidade do tratamento dispensado pelas Leis
acusatória. no 9.034/95 e no 9.296/96 ao juiz, levando em conta a
Somente quando o interesse público determinar, ou a quebra do princípio acusatório.
preservação da intimidade não puder prescindir do sigilo, Somente forte inclinação cultural a favor de uma
caberá excluir a publicidade, com as cautelas recomendadas postura tipicamente inquisitória, sem que isso possa
pelo artigo 93, inciso IX, da Constituição da República, sem representar qualquer juízo de valor que não seja jurídico,
que fique afetado o sistema acusatório, pois se preserva, por fundamenta a preservação das medidas reguladas no citado
vassalagem à própria Constituição, o acesso à informação diploma, cuja invalidade deve ser objeto de declaração, pelos
pela parte e seu advogado, inclusive, se for o caso, pelo juízes e tribunais mediante recusa de aplicação da lei
representante do assistente, durante o processo, pois que a inconstitucional.
assistência só poderá ser adequadamente exercida com o No tocante à publicidade do processo, com a reserva de
conhecimento integral do material probatório.20 que a sua limitação deve obedecer a critérios fixados pela
Ao final, a própria sentença há de ser publicada, não se própria Constituição ² defesa da intimidade e interesse
lhe colocando as fronteiras do segredo, incompatível com o social ² fica consignado que o procedimento do primeiro
processo penal democrático, de tal sorte que os elementos de estatuto especial só é aplicável, sem os excessos que prevê,
convicção poderão vir a público para o julgamento da resguardando-se a intimidade dos envolvidos até o instante
opinião pública sobre a ação da própria justiça, forma da prolação da sentença, ato público por excelência,
legítima de controle dos atos dos agentes estatais. garantindo-se, assim, outra pilastra do sistema acusatório.
Diga-se ainda, ao final deste tópico, que a omissão do
5.2. A Lei dos Juizados Especiais21
19 Bastos, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, vol. II. São
Paulo: Saraiva, 1989, p. 285.
20
Verificar o comentário sobre a nova redação do artigo 93, inciso IX, da 21 Especificamente sobre a suspensão condicional do processo remeto o leitor
Constituição da República, determinada pela Emenda Constitucional n. 45. A ao nosso trabalho Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais: Comentários e
matéria foi comentada neste livro quando da análise da publicidade interna do Anotações, 3ª ed., em co-autoria com Luis Gustavo Grandinetti Castanho de
processo. Carvalho, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. Pequeno enxerto consta do
consciência das duras críticas decorrentes de se aceitar
Também aqui o leitor deve ser advertido que entre as soluções penais que não tenham sido fundamentadas em
duas edições anteriores e esta terceira o autor aprofundou provas, mas em acordo entre o Ministério Público e o réu.
idéias e modificou pontos de vista. Nestes termos, começamos pela observação de
As obras citadas na nota de rodapé anterior indicam as )LJXHLUHGR 'LDV DFHUFD GDV ³QRYLGDGHV´ GR SURFHVVR SHQDO
obras específicas sobre Juizados Especiais Criminais nas português, engendradas no Código que foi editado para
quais o leitor terá a oportunidade de examinar a fundo os consolidar os ideais e princípios introduzidos pela
mecanismos de solução consensual dos casos penais. Constituição democrática.
Este item, todavia, oferece visão panorâmica da Figueiredo Dias salientou que a atitude de legalidade
estrutura processual da suspensão condicional do processo e que caracteriza o direito penal, não significa exigência de que
da transação penal, ambas à luz dos princípios que regem o a cada crime cometido e esclarecido corresponda, por
sistema acusatório. necessidade, um processo penal.22
O leitor não deverá desconsiderar o registro anterior, no Soluções que representem a assunção do papel do
sentido de que as práticas penais de consenso, tais como a direito punitivo como ultima ratio são alternativas de
suspensão condicional do processo e a citada transação controle social indispensáveis nessa virada de milênio23.
penal, ainda estão em busca de sua teoria processual e que os Assim, consagra-se o princípio da mínima intervenção, pelo
ajustes ao modelo acusatório são forçados. qual, dada a gravidade indiscutível da sanção penal, com
Ficou consignado que os elementos que determinam a todas as deletérias conseqüências que a acompanham,
existência dos sistemas processuais estão vinculados aos recomenda-se a ativação da força máxima penal somente em
sujeitos processuais e ao modo como atuam, além da relação situações de real seriedade.
que se estabelece entre o juiz e a busca de informações sobre As inovações incorporadas ao cenário do processo penal
o fato. Por isso estas categorias não se prestam ao fim de brasileiro, por meio da Lei no 9.099, de 26 de setembro de
definir o modelo fundado no consenso. Para este modelo está 1995, procuram acompanhar os grandes movimentos
colocado o desafio da sua compreensão, que significará ideológicos, políticos e culturais que têm motivado os ramos
desenhar com clareza o estatuto do juiz e das partes. mais progressistas da criminologia, no chamado Mundo
Entenda-se que a análise destas categorias de acordo Ocidental.
FRPRVSDGU}HVGRVLVWHPDDFXVDWyULRp³IRUoDGD´SRUFRQWD O passo dado, se não foi o ideal em alguns aspectos,
das diferentes funções que o processo penal tradicional conferindo mínima margem de elasticidade ao conceito de
desempenha, quando comparado ao processo penal de infração penal de pequeno potencial ofensivo, representou,
consenso, o que foi objeto de análise no item 3.1. obediente à nossa Constituição, profunda ruptura de dogmas
Apesar disso, hoje o complexo de garantias processuais intocáveis, até 1988, no campo do direito e do processo
que está à disposição é fruto da busca pela implementação do penal.
sistema acusatório. Justifica-se, assim, que se parta daí para A singular aplicação de dois institutos diferentes de
uma teoria garantista da Justiça Penal Consensual, com tudo quanto até então existia ² a transação penal,

comentário à suspensão condicional do processo. Acerca da transação penal 22 Dias, Jorge de Figueiredo. Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de
volto a recomendar a leitura do livro Elementos para uma Análise Crítica da Processo Penal, p. 25.
23
Transação Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. A obra originalmente é do fim do século XX.
principalmente, e a suspensão condicional do processo ² e,
mais do que isso, opostos ao pensamento corrente da 5.2.1. DA TRANSAÇÃO PENAL
aplicação da pena como forma exclusiva de resolução dos
casos penais,24 talvez nos tenha encontrado despreparados. Para iniciarmos o estudo, a partir da transação penal,
De se dizer que a tônica das modificações em questão visando identificar a existência de pontos de contato entre a
envolveu aspectos tais como a efetividade do processo, o estrutura sobre a qual se ergue e o princípio acusatório,
acesso à justiça e a concepção unitária do conflito, algumas considerações preliminares são essenciais.
revitalizando também o papel da vítima e a promoção do Com efeito, na maioria estamos todos de acordo em que
consenso, palavra-chave para entendermos os novos o processo é instrumental e, destarte, tudo o que vier a
institutos, tudo conforme uma visão prática e real do operar nesta perspectiva há de considerar a natureza e as
processo, desafetado e, em alguns pontos, imunizado contra características do direito material em disputa, pela via do
o vírus do excesso de formalismo.25 instrumento.
Ressalva deve ser feita ao papel da vítima, pois que se Contudo, Barbosa Moreira já advertia para o fato de
cabe ao Direito Penal tutelar os interesses dela, o processo que, mesmo simplificada, a relação processual se desenvolve
penal pouco pode fazer para ajudá-las, pois que é disposto a como atividade realizada, por assim dizer, intra muros, em
proteger a situação do acusado. De toda forma, a justiça grande parte a cargo de pessoas nas quais se presumem
penal consensual reposiciona a vítima no cenário do conhecimentos especializados,26 sendo necessária a
processo. compreensão dos conceitos e alcances verdadeiros de cada
Compreender as novas categorias processuais ² mecanismo posto à disposição dos sujeitos. Para isso deverá
transação e suspensão condicional do processo ² só é viável, o intérprete e operador do Direito se valer de dados que
eficazmente, recorrendo-se ao dogmatismo jurídico, fogem muito ao senso comum, sob pena de naufragarmos em
apontado algumas vezes como o principal responsável pelo uma vã tentativa de modernização.
divórcio entre o mundo dos fatos e a realidade do processo, Alguns anos passados da edição da Lei no 9.099/95, e
com o conseqüente desprestígio da Justiça. até agora a doutrina diverge sobre o que efetivamente
Nessas horas de ausência de paradigmas próximos, e de significa a transação penal no Direito Brasileiro.
alguma perplexidade, o dogmatismo resgata o seu real valor, A medida está prevista como resultado de uma
na medida em que encerra as variedades de técnicas de atividade iniciada pelo Ministério Público quando, em caso
abordagem de um fenômeno da vida em sociedade, acima e de infração penal de menor potencial ofensivo, o juiz
além de qualquer polêmica, em si mesmo complexo. homologar proposta do órgão estatal de acusação, aceita pelo
investigado, orientado por defensor, aplicando pena não-
24 Desprezou-se, em nosso caso necessariamente, a prudente recomendação de restritiva da liberdade.27 A infração penal deverá ser de ação
introduzir o novo sem perder de vista o tradicional, que assinala a nossa
identificação cultural e histórica, a partir do peculiar modo de vermos o mundo
(Exposição de Motivos do Código de Processo Penal Português). 26 Barbosa Moreira, José CarORV ³6REUH D 0XOWLSOLFLGDGH GH 3HUVSHFWLYDV QR
25
Em Elementos para Análise uma Crítica da Transação Penal (op. cit.) (VWXGRGR3URFHVVR´ in Temas de Direito Processual - Quarta Série, São
procuramos demonstrar que a Justiça Penal Consensual adota discurso de Paulo: Saraiva, 1989, p. 11.
suavidade em termos de aplicação do Direito Penal, todavia aprofunda o 27 Artigo 61 da Lei nº 9.099/95: Consideram-se infrações penais de menor
processo de expansão deste Direito, para alcançar conflitos que ficariam de fora potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os
da incursão do Sistema Penal caso valesse de fato o princípio da intervenção crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano,
mínima. excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial; artigo
penal pública incondicionada ou condicionada28 e, além suspensão condicional do processo, vinculando as categorias
disso, a hipótese não poderá ser de arquivamento da ao sistema processual sufragado pela Constituição.
investigação (arquivamento do termo circunstanciado). Acreditamos, de início, que os argumentos elencados
Querem certos autores qualificar como sentença em defesa deste ou daquele ponto de vista, apesar da
meramente declaratória a decisão que lhe dá vida, enquanto qualidade dos doutrinadores, não compreenderam todas as
outros, enxergando na decisão função ou efeito possibilidades da classificação. Sem dúvida serviram ao
condenatório, assim a classificam e a partir daí tendem a propósito de validar o esforço de sistematização, porque
negar-lhe a constitucionalidade.29 Há, finalmente, os autores expuseram as conseqüências práticas de considerarmos a
que optaram por terceiro gênero, tal seja, o de ser sentença em tela condenatória ou não condenatória, de sorte
simplesmente homologatória, com ou sem eficácia de título a determinarmos o âmbito integral de aplicação da norma.
executivo.30 Nosso pensamento é de que a sentença em questão é
Da definição do modelo de sentença, acreditamos seja condenatória, de tipo sumário, e que emerge em seu meio
possível investigar a questão básica da iniciativa para a instrumental definido por alguns doutrinadores como o
transação, cujo resultado, a nosso juízo, será idêntico ao da devido processo legal da transação penal, apesar da objeção
de inconstitucionalidade oposta pelo esvaziamento de
76: Havendo representação ou tratando-se de crime de ação pública qualquer tipo de atividade considerada própria ao devido
incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público processo legal (atividade probatória, fundamentação das
poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou
multas, a ser especificada na proposta. § 1º Nas hipóteses de ser a pena de decisões e efetividade do contraditório).
multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade. § 2º Não se Pelo que de elucidativo importará ao nosso estudo
admitirá a proposta se ficar comprovado: I - ter sido o autor da infração passemos, então, ao exame da classificação das sentenças.
condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por
sentença definitiva; II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no A sentença, ato pelo qual se põe fim ao processo, com ou
prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos sem julgamento do mérito (artigo 162, § 1o, do Código de
termos deste artigo; III - não indicarem os antecedentes, a conduta social Processo Civil), pode ser classificada de diversas maneiras,
e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser
necessária e suficiente a adoção da medida. § 3º Aceita a proposta pelo
predominando a sistematização que a considera a partir das
autor da infração e seu defensor, será submetido à apreciação do Juiz. § funções ou efeitos que produzirá. Com isso as sentenças são
4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da distinguidas entre as que meramente declaram, constituem
infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não
importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir
e condenam, conforme produzidas em processos cujas ações
novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos. § 5º Da sentença sejam, por sua vez, predominantemente do mesmo tipo, ao
prevista no parágrafo anterior caberá apelação referida no art. 82 desta exigirem como provimento jurisdicional o simples
Lei. § 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não acertamento de um situação jurídica duvidosa, a criação,
constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins
previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos modificação ou extinção de uma situação ou relação jurídica,
interessados propor ação cabível no juízo cível. ou a imposição ao réu de uma prestação ² no caso do
28 Nesta última hipótese, se tiver havido representação e não se tiver processo penal, de uma sanção.
conseguido a conciliação entre a vítima e o suposto autor do fato.
29 Assim, Rogério Lauria Tucci, apud &OiXGLR $QW{QLR 6RDUHV /HYDGD ³$ Esta é a classificação tradicional, denominada
6HQWHQoD GR DUWLJR  GD /HL Qž  p GHFODUDWyULD´ in Boletim do tripartida,31 em oposição à classificação quíntupla, em
Instituro Brasileiro de Ciências Criminais, nº 35, novembro, 1995, São
Paulo.
30 Grinover, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais, São Paulo: RT 31 Pará Filho, Tomás. Estudo Sobre A Sentença Constitutiva, São Paulo:
1995, p. 134. LAEL, 1973, p. 39.
sentenças de declaração, constitutivas, de condenação, posicionarmos sobre se é ou não condenatória a decisão de
executivas e mandamentais, de Pontes de Miranda, que não homologação da transação penal.32
logrou sucesso na doutrina nacional. Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, por
Tendo por pressuposto quer a função exercitada pelo sua vez inovam, pois defendem que a multa ou a providência
ato judicial ² como é o caso da sentença constitutiva ² quer restritiva de direitos incidentes em razão da sentença de
os efeitos que produz, autorizando o exercício pelo Estado do transação penal, do artigo 76 da Lei do Juizado Especial
monopólio da força para concretizar a sanção imposta ² Criminal, não caracterizam sanção penal em sentido estrito,
como ocorre com a sentença de condenação ² a decisão entre outros motivos porque o caráter imperativo das penas
aparece ao fim de um processo dialético, no qual as partes não se coadunaria com o consenso pretendido, em virtude do
estão contrapostas, porém não necessariamente imunes aos qual a decisão depende da aceitação, pelo suposto autor do
argumentos umas das outras. fato, da proposta levada a efeito pelo órgão do Ministério
Sendo assim, é natural, e com freqüência acontece no Público, ensejando a prolação de uma sentença sui generis,
processo civil, que o exercício da função ou a produção do de mera homologação da transação.33
efeito venham a ser queridos por autor e réu, Ao aceitarmos o ponto de vista dos ilustres professores,
simultaneamente, e que, em se tratando de direito nem mesmo assim teríamos condições de deferir à sentença
disponível, somente caiba ao juiz homologar tal disposição em questão esta classificação especial, isto porque ainda que
de coisas, extinguindo o processo. não autorize a execução em caso de não implemento
Há efetivo poder discricionário na atuação das partes, espontâneo34, quando há condições para se cumprir o
que elegem, em consenso, a solução que reputam a mais pactuado, é indiscutível que se vislumbra uma alteração na
viável, conforme o direito. situação jurídica do agente, permitindo a extinção da
Resolve-se o conflito de interesses por mútua punibilidade e com isso vedando a dedução em juízo de
concessão, muitas vezes arrimada em estado de ânimo pretensão punitiva baseada no mesmo fato.
prévio, no entanto impossível de ser validado Outra vez ocorre a tendência de a sentença inserir-se em
independentemente da intervenção estatal, tal como ocorre uma das classificações tradicionais, embora discordemos,
com as ações constitutivas necessárias, das quais a de pelas razões mais adiante expostas, do interessante ponto de
separação judicial é a sua mais famosa ilustração. vista deduzido.
Releva notar, portanto, que a homologação nada mais É curial recordar-se que as sentenças de mera
representa senão a forma pela qual o juiz soluciona o conflito declaração, constitutivas e de condenação distinguem-se
ou o caso, impondo uma determinada sanção ou criando, entre si em razão dos efeitos principais perseguidos pelas
modificando ou extinguindo situações jurídicas. Todas as partes e produzidos pelo ato judicial, não importa a forma
sentenças de homologação, ditadas em processo de
conhecimento, cabem em um ou outro modelo, conforme o
32 Grinover, Ada Pellegrini et al., ob. cit,. pp. 90 e 134.
conteúdo do ato ou os efeitos que intenta produzir. 33 Demercian, Pedro Henrique e Maluly, Jorge Assaf. Juizados Especiais
Sendo assim, a classificação apresentada pelos ilustres Criminais: Comentários, Rio de Janeiro: AIDE, 1996, pp. 61-66.
34
doutrinadores Ada Grinover, Antonio Magalhães, Antonio A impossibilidade de execução das penas impostas via transação penal
Scarance e Luiz Flávio Gomes não resolve a questão de nos decorre da ausência de previsão legal, exceto para a cobrança da pena de multa.
Não se pode perder de vista o princípio da reserva legal, pelo qual não há crime
nem pena sem prévia cominação legal (artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição
da República).
que tomam ao surgirem. sentença condenatória com base em uma cognição
Eduardo Couture asseverava, a propósito, que são sumária (isto é, incompleta ou superficial) dos seus
sentencias declarativas, o de mera declaración, aquellas pressupostos substanciais normais; e, justamente
que tienen por objeto la pura declaración da existencia de por essa razão, leva o nome de ação condenatória
un derecho,35 enquanto são chamadas constitutivas as sumária.39
decisões que:
As ainda recentes inovações no Processo Civil
En primer término... cream un estado jurídico trouxeram à tona a discussão acerca das cognições possíveis
nuevo, ya sea haciendo cesar el existente, ya sea nos diversos procedimentos, conforme a natureza das
modificándolo, ya sea sustituyéndolo por otro... En decisões perseguidas. Sobre o assunto, aliás, o magistério de
segundo lugar, integran esta clase de sentencias Cândido Dinamarco não podia ser mais feliz, ao distinguir
aquellas que deparan efectos jurídicos de tal índole entre cognição exauriente e cognição sumária, a primeira
que no podrían lograrse sino mediante la destinada a provocar na convicção do julgador a certeza
colaboración de los órganos jurisdiccionales: el jurídica, enquanto à outra basta o convencimento sobre a
divorcio etc.36 probabilidade40 de existência dos fatos alegados pelas partes,
dos quais são extraídas certas conseqüências jurídicas.
Finalmente, são de condenação todas aquellas que A discutível constitucionalidade da cognição sumária,
imponen el cumplimiento de una prestación, ya sea en no âmbito de um processo penal condenatório marcado pela
sentido positivo... ya sea en sentido negativo...37 articulação entre a busca da verdade e o pleno exercício da
Mantendo, entretanto, a classificação original, não deve ampla defesa, garantia constitucional, será avaliada mais
ser totalmente afastada a conclusão de Enrico Tulio adiante.
Liebman, no sentido de se aceitar a existência da sentença De acordo com o que vimos, digladia-se na doutrina
condenatória sumária, fruto de um processo condenatório sobre ser a sentença homologatória em exame declaratória
especial, que assim se caracteriza em face do tipo de ou condenatória.
cognição que admite.38 Apesar de não ter se pronunciado expressamente,
A lição do mestre peninsular, muito embora haja tido acreditamos que para Damásio de Jesus a sentença de
por inspiração procedimentos diversos daquele objeto de transação penal é declaratória, até porque, ao se manifestar
nosso estudo, aplica-se à hipótese vertente, como pode ser sobre os efeitos da decisão judicial, aduz que esta não gera:
visto do seguinte texto: a) condenação; b) reincidência (§ 4o); c)
Nesses casos, pois, taxativamente previstos lançamento do nome do autor do fato no rol dos
em lei, a ação condenatória considera-se culpados (§ 4o, parte final); d) efeitos civis; e)
privilegiada, porque pode levar à prolação da maus antecedentes.41

35 Couture, Eduardo J. Fundamentos Del Derecho Procesal Civil, Buenos 39 Liebman, Enrico Tulio. Manual de Direito Processual Civil, vol. I. Rio de
Aires: Depalma, 1988, p. 315. Janeiro: Forense, 1985, p. 187.
36 Idem, p. 320. 40 Dinamarco, Cândido Rangel. A Reforma do Código de Processo Civil. São
37 Idem, p. 318. Paulo: Malheiros, 1995, p. 144.
38
Hipótese de cognição sumária pode ser extraída das tutelas de urgência, quer 41 Jesus, Damásio E. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. São
no processo civil, quer no processo penal. Paulo: Saraiva, 1995, p. 68.
que sucede o de conhecimento condenatório.
Certamente segue a mesma linha Claudio Antonio Não deve assustar a idéia de transação sobre a sanção,
Soares Levada, no ensaio a que nos referimos. partindo-se do correto pressuposto de que, se é pena, não
É natural que todos os juízos que decorram da cabe negociar a sua aplicação.
investigação científica sejam provisórios, de sorte que, feita O que ocorre, a nosso juízo, é que se transaciona tendo
essa ressalva, não aceitamos a classificação. por objeto a qualidade e a quantidade de determinadas
Segundo a própria Constituição, ninguém será privado sanções, nunca se serão ou não aplicadas, pois, em se
da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal tratando de infrações de ação penal pública, cumpre ao
(artigo 5o, inciso LIV), garantindo-se, assim, a Ministério Público propor a ação penal tradicional, em não
jurisdicionalização da sanção penal, em virtude do que, como havendo acordo.
foi dito no início do trabalho, é necessário que haja processo O princípio da consensualidade, de magnitude
para que se imponha a pena. Nulla poena sine judicio. constitucional, resolve a questão, possibilitando assim a
Ora, sendo ponto pacífico o dever de existência do convergência de vontades exclusivamente sobre a sanção,
processo, pois não há sentença sem processo, refletimos que pois que não se negocia a realidade de se exigir a sua
a função da sentença nele emitida não seja meramente imposição.
declarar o que, sem a decisão, seria considerado incerto. Finalmente, entendemos que o sofisticado argumento,
Nunca se pensou que, sendo a pena por definição a trazido à colação por Demercian/Maluly, em artigo citado,
conseqüência jurídica da infração penal a sanção penal sobre não serem a multa e as providências restritivas de
preexista ao processo. A infração penal é reconhecida pelo direito sanções penais em sentido estrito, também colide de
processo, mas tem a sua existência como fato histórico frente com o texto legal e não merece ser aceito, porque é a
marcada, independentemente do ajuizamento da ação. própria lei que denomina de pena restritiva de direito ou
Basta considerarmos a cifra oculta dos crimes para multa (artigo 76, caput) as medidas em tela, assinalando que
concluirmos que não são todas as infrações penais seguidas a condenação não fique constando dos registros criminais
da aplicação da sanção, bem como as penas só aparecem (artigo 84, parágrafo único).
como tais se logicamente antes, na sentença mesma, Nem sempre a escolha do nomen juris do instituto, pelo
reconhecer o juiz a ocorrência do crime. legislador, é a mais feliz. Todavia, tanto a multa como as
Observe-se que ainda que se convença da prática do penas restritivas de direito são consideradas sanções penais,
delito, se extinta a punibilidade por alguma causa, o juiz não em razão de que sempre se tenha exigido fossem aplicadas
imporá pena, motivo suficiente, segundo pensamos, para não somente pelo devido processo legal em resposta ao
aceitarmos a idéia de que a sanção antecede ao processo, reconhecimento da responsabilidade penal do acusado.
sendo apenas declarada, quando da homologação. Ainda que o suposto autor do fato queira submeter-se à
A sentença que impõe a pena, ainda que fruto de acordo multa, sem o processo não poderá fazê-lo e a própria relação
entre as partes traz algo mais, além do simples processual, sem os requisitos mínimos para a sua existência
reconhecimento da existência do crime ou da contravenção. e validade ² prova da existência da infração penal e indícios
Carrega em seu bojo a autorização para que se exija do de autoria ² não será instaurada por falta de justa causa.
suposto autor do fato, coativamente, determinada prestação. Portanto, se as medidas em foco derivam de um crime
A execução de forma autônoma, tendo por base uma (ou contravenção), não se discute a nosso ver que se trata de
sentença ² título judicial ² é uma característica do processo sanções penais, nada havendo de sui generis no seu processo
de imposição que lhe contamine a natureza jurídica, embora novidade, adverte com razão Alberto Silva Franco, que
seja diferente no que toca a diversos aspectos de seu provoca a meditação quando, por oportuno, acrescenta:
procedimento e ao tipo de cognição que é produzida em seu
interior. Como entender que se possa, mediante um
Poder-se-ia argumentar, dada a novidade da matéria, acordo, aplicar, por força do art. 76 da Lei no
que estamos diante de uma sentença constitutiva necessária, 9.099/95, pena restritiva de direitos ou multa,
no plano penal. conversíveis em pena privativa de liberdade, sem
Em um primeiro instante ficamos animados a deste que o acusado responda ao devido processo
modo caracterizar a sentença, pois que, diferentemente da legal?43
decisão emitida em processo condenatório comum, o
princípio da consensualidade opera em certa medida, Mais ainda, na mesma linha e levando em conta o
fazendo valer ² ainda que com restrições ² a vontade dos fundamento de legitimidade democrática do exercício da
principais atores: o acusador oficial e o (suposto) autor do função jurisdicional, cabe também indagar com Ferrajoli
fato. como é possível conceber o nexo entre crime e sanção a
Seria o caso de imaginarmos uma deliberação anterior partir de um comportamento processual do acusado e não
ao processo, condicionada ao ajuizamento da manifestação, do valor de verdade sobre a existência da infração penal e a
para que se transforme a situação jurídica do autor do fato. responsabilidade de seu autor, demonstrado ao longo do
Clamam-se como constitutivas as decisões proferidas na processo, em contraditório.44
Revisão Criminal e a de interdição de direitos prevista no Parece que a resolução da perplexidade não decorre da
artigo 47 do Código Penal,42 na sentença condenatória. admissão de que, à vista dos requisitos definidos em Lei, o
Na segunda hipótese, porém, como também na que está Ministério Público esteja vinculado ao ato de propor o
sendo objeto de nossos estudos, não parece correto falar em acordo sobre a pena, porque se constitui em direito público
função constitutiva, quando temos a imposição de uma subjetivo do autor do fato, o que só faz aumentar as
prestação, cuja execução poderá ensejar ² em alguns casos dificuldades.
necessariamente ensejará ² um processo autônomo de Segundo essa linha de pensamento, recusando-se o
execução. Ministério Público a oferecer a proposta, o juiz não está
A sempre lembrada distinção de Pará Filho, em virtude inibido de tomar a iniciativa, como parte da doutrina e
da qual a imposição de uma prestação (leia-se, sanção penal) mesmo alguns tribunais se inclinam a aceitar.45
faz a diferença entre a sentença condenatória e a
constitutiva, que se basta a si mesma, na medida em que
43 %ROHWLP ,%&&ULP6mR3DXORQžS QRY³2V TXHVWLRQDPHQWRV
transforma uma situação jurídica, deve ser invocada para SURYRFDGRV SHOD /HL Qž ´ $WXDOPHQWH SRU IRUça do disposto na
afastarmos a idéia de função constitutiva. Lei nº 9.268, de 1/4/1996, a multa penal é considerada dívida de valor e
Resta, pois, trabalharmos com o modelo de sentença de não pode mais ser convertida em prisão.
44 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 609.
condenação, em face do qual existem algumas causas de 45 A Escola Superior da Magistratura criou uma Comissão Nacional para a
perplexidade. A prudência é a melhor conselheira diante da Interpretação da Lei nº 9.099/95, presidida pelo Ministro Sálvio de
Figueiredo Teixeira e composta dos Ministros Luiz Carlos Fortes de Alencar
e Ruy Rosado de Aguiar Júnior, dos Desembargadores Weber Martins
42 Cintra, Antonio Carlos de Araújo, et al. Teoria Geral do Processo. 10ª ed. Batista, Fátima Nancy Andrighi e Sidnei Augusto Beneti, dos Professores
São Paulo: Malheiros, 1994, p. 304. Ada Pellegrini Grinover e Rogério Lauria Tucci e do Juiz Luiz Flávio
Fosse dessa maneira, estaríamos diante de literal promotor de justiça terá que, oralmente como na
desrespeito ao que dispõe o artigo 129, inciso I, da denúncia, descrever e atribuir ao autor do fato
Constituição, que defere ao Ministério Público privatividade uma conduta típica, ilícita e culpável,
para a propositura da ação penal pública, pois outra não individualizando-a no tempo (prescrição) e no
pode ser a natureza da iniciativa do Ministério Público, salvo espaço (competência de foro). Deverá, outrossim, a
a de exercício de direito de ação condenatória, pela forma nível de tipicidade, demonstrar que tal ação ou
sumária e consensual, porquanto não há pena sem processo omissão caracteriza uma infração de menor
e, pelo princípio acusatório, não há processo condenatório potencial ofensivo (competência de juízo), segundo
sem ação. Nulla poena sine judicio. Nullum judicium sine definição legal (art. 61). Vale dizer, na proposta se
accusatione. encontra embutida uma acusação penal
Para Afrânio Silva Jardim o procedimento instituído (imputação mais pedido de aplicação de pena).47
pelo artigo 76 da lei é o devido processo legal para a
imposição daquelas sanções,46 cumprindo, pela clareza e Talvez careça de explicação a questão probatória,
objetividade da abordagem, transcrevê-la: colocada em relevo à luz da consensualidade, pela qual a
Por outro lado, estabelecemos uma premissa busca da verdade é substituída pela prevalência da vontade
para compreensão do sistema interpretativo convergente das partes ou, como prefere Ferrajoli, porque a
proposto: quando o Ministério Público apresenta prova e a sanção penal não são mais objeto principal da
em juízo a proposta de aplicação de pena não atividade jurisdicional, que se concentrará na conduta
privativa de liberdade, prevista no art. 76 da Lei processual do réu e na (escassa) gravidade da infração penal.
no 9.099/95, está ele exercendo a ação penal, pois Para os defensores do devido processo legal da
deverá, ainda que de maneira informal e oral ² transação penal a resposta é encontrada no fato do
como a denúncia ² fazer uma imputação ao autor dispositivo legal conter regras gerais e abstratas, aptas a
do fato e pedir a aplicação de uma pena, embora considerar o desenvolvimento regular do processo de
esta aplicação imediata fique na dependência do proposta de pena, iniciado a partir do oferecimento, pelo
assentimento do réu. Em outras palavras, o Ministério Público, de sua proposta de sanção.
Existem requisitos objetivos e subjetivos que devem ser
Gomes. Das conclusões a que chegaram ressalta a Décima Terceira (Se o
observados, sendo certo que o autor do fato estará
Ministério Público não oferecer proposta de transação penal e suspensão acompanhado de defensor, sob pena de nulidade da
do processo nos termos dos arts. 79 e 89, poderá o juiz fazê-lo), que transação.
preserva a iniciativa do órgão de acusação estatal, quanto a transação, na Entendemos que o exercício da ampla defesa vem
fase preliminar, o que é inócuo, se admite a iniciativa judicial,
posteriormente, após o ajuizamento da causa mediante denúncia oral. O sustentado na obrigatoriedade da orientação do autor do fato
Superior Tribunal de Justiça, no recurso de Habeas Corpus nº 6.410-PR, por advogado, além da necessidade de se documentar a
na sua 6ª Turma, tendo por relator o Ministro Vicente Leal (Recorrentes: proposta, que será feita oralmente.
Omires Pedroso do Nascimento e outro e recorrido o Tribunal Regional
Federal da 4ª Região), em decisão de 13/5/1997, deliberou que a suspensão A escrituração, nestes casos, não fere o objetivo de
condicional do processo é direito subjetivo do réu, cabendo ao juiz decidir diminuição da formalidade do procedimento, porque
por ela mesmo quando omisso o órgão de acusação pública.
46 Jardim, $IUkQLR 6LOYD ³2V 3ULQFtSLRV GD 2EULJDWRULHGDGH H GD
Indisponibilidade nos Juizados EspecLDLV &ULPLQDLV´ in Boletim do 47 Jardim, $IUkQLR 6LOYD ³2V 3ULQFtSLRV GD 2EULJDWRULHGDGH H GD
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 48, São Paulo, nov/1996. ,QGLVSRQLELOLGDGHQRV-XL]DGRV(VSHFLDLV&ULPLQDLV´REFLW
resultará da redução a termo de pronunciamento oral do comunidade mereçam mais séria reprovação.
Ministério Público, servindo ao propósito de precisar a res in Positivada a constitucionalidade da transação penal48,
judicio deducta, para o fim de evitar a renovação indevida da apesar da baixa densidade das garantias fundamentais, cabe
demanda e assegurar que o procedimento está sendo sublinhar que, ao contrário do que já foi defendido,49 a
aplicado a fatos legalmente previstos, conforme suporte consciência da prevalência constitucional do princípio
mínimo probatório que também está sujeito a ser analisado acusatório não permite que o juiz inicie, de ofício, como
pelo defensor e pelo juiz. verdadeira jurisdição sem ação, tal modelo processual, ainda
Em conjunto com este dado, que expõe claramente a que o representante do Ministério Público não tenha
justa causa para a modalidade especial de ação penal oferecido a proposta à luz do entendimento pessoal da
condenatória, acrescentamos que a tese da impossibilidade ausência de condições subjetivas, do que discorda o
de se renunciar ao exercício de direitos fundamentais, em magistrado.
vista de um conflito instaurado entre o particular e o Estado, Pode-se frisar, embora não seja certo, que semelhante
está sendo mitigada pela própria Constituição da República postura equivale a estabelecer um âmbito de
em consideração à autodeterminação do acusado e por conta discricionariedade para a atuação do órgão de acusação, a
do juízo de benefício que possa concretamente auferir se ponto de introduzir, indiretamente, o princípio da
transacionar. Se o réu pode confessar, apesar de lhe ser oportunidade.
assegurado o direito a não se incriminar ² nemo tenetur se Tratando do sistema espanhol Teresa Deu menciona
detegere ², estamos andando na mesma direção quando que tal campo de discricionariedade não pode ser justificado,
aceitamos possa ele transigir sobre a sanção penal, desde que de maneira semelhante ao que ocorre no Direito
não se lhe sacrifique a própria liberdade, nem mesmo Administrativo, isto porque a aplicação do princípio da
indiretamente, o que o princípio da proporcionalidade legalidade penal, em sua faceta jurisdicional, impede a
estaria a impedir. implantação de critérios de oportunidade que incidam sobre
Mais importante de tudo está em que ao acusado, que a a existência, ou não, da persecução penal.50
lei por estranhas razões quis denominar autor do fato, é A primeira ressalva, incidente sobre a objeção, deflui do
necessário informar minuciosamente em que consiste a fato de que as alternativas postas à disposição do órgão de
transação penal e quais são as suas conseqüências. Trata-se acusação implicam, necessariamente, na propositura da ação
do dever de instrução que condiciona a validade que se penal.
operará da renúncia a mais ampla defesa. Não sendo caso de arquivamento, ou o Promotor de
Enquanto o ideal da jurisdição penal está relacionado ao Justiça oferece a proposta de pena não restritiva da liberdade
grau de verdade que a sentença deve conter, e, portanto, a ou oferece a denúncia. Nos dois casos, oferecendo-se
limitação à ampla defesa e ao contraditório, ainda que proposta de transação penal ou denúncia, não vigora
prevista na Constituição, deve ser evitada, a projeção das
alternativas penais derivadas das soluções consensuais é, no 48
Essa é hoje a posição dominante, contra a qual nos manifestamos em
marco cultural de hoje, representativa da estratégia em Elementos, op. cit.
direção a descriminalização das condutas, reservando-se o 49 Prado, *HUDOGR ³'D 1DWXUH]D -XUtGLFD GD 6HQWHQoD +RPRORJDWyULD GH
direito e o processo penal para as infrações que ao juízo da Acordo sobre a Pena ² /HLQž´in Caderno Científico do Mestrado e
Doutorado em Direito da Universidade Gama Filho, nº 4, ano III, Rio de
Janeiro, 1996, pp. 31-46.
50 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 38-39.
princípio algum de oportunidade. A segunda oposição refere- ao investigado. Chancelada a solução, em instância superior,
se à possibilidade do acusado deixar de fruir um benefício teríamos o controle da atuação do Promotor de Justiça sem
acessório, embora importante, ao tipo específico de incluir o juiz em uma etapa ainda precoce e preparatória da
condenação, em consideração à opinião do Promotor de ação penal tradicional.
Justiça. Figueiredo Dias, tantas vezes citado, assevera que A objeção de ordem prática derivada quer da
deferir ao Ministério Público alguma discricionariedade não dificuldade que o acervo de autos de investigação pudesse
significa criar um espaço onde possam frutificar tratamentos opor ao eficiente funcionamento do Conselho Superior do
privilegiados ou discriminatórios, mas, sim, reconhecer a Ministério Público, ou ainda em virtude da perda de
importância que a instituição merece no contexto da celeridade que a implantação da providência poderia
construção democrática da política criminal. acarretar, teria de ser arrostada pela adequada estruturação
Aos abusos que podem decorrer do fato do Promotor de pessoal e material da instituição, de modo a torná-la apta a
Justiça indevidamente, na visão do juiz, não oferecer a apresentar respostas rápidas e eficazes às demandas que
proposta de pena, opõe-se a possibilidade de controlar-se a dizem respeito à persecução penal.
ação, no âmbito interno do Ministério Público, velando-se A garantia da preservação do princípio acusatório, com
por sua moralidade e impessoalidade. Basta, para isso, o inegável reconhecimento das graves funções atribuídas aos
recorrer-se à aplicação analógica do controle pelo membros do Ministério Público, justificaria com sobra o
Procurador-Geral, regulado no artigo 28 do Código de aperfeiçoamento da instituição.
Processo Penal. A objeção de ordem jurídica dos defensores da
Mesmo se no lugar da proposta o representante do transação penal como direito público subjetivo do acusado,
Ministério Público opte pelo oferecimento direto da quanto ao exercício deste direito ser controlado não pelo
denúncia, o procedimento deverá ser sustado para que o juiz Judiciário, do qual não se pode excluir a apreciação de lesão
remeta ao Procurador-Geral os autos, alertando quanto à ou ameaça de lesão a direito, mas pelo titular da ação
desatenção sobre a obrigatoriedade da solução consensual. condenatória, estará superada à vista da natureza jurídica da
Caso o Procurador-Geral concorde com o Promotor de proposta de transação ² ação penal condenatória especial
Justiça, não haverá o necessário consenso a conferir base à não tradicional e não direito público subjetivo do réu ² em
transação e, em vista disso o processo retomará seu curso razão do que se pode afirmar que ninguém pode invocar o
natural. Se for o contrário, caberá ao próprio Procurador- direito de sofrer sanção penal.
Geral formular a proposta de pena ou delegar a formulação a Quando se assevera que, em determinadas condições, o
outro Promotor de Justiça, homologando o juiz o acordo, se condenado tem direito público subjetivo ao sursis se está
este for concretizado, e deixando de receber a denúncia já afirmando que, com a sua responsabilidade determinada
oferecida porque o conflito haverá sido resolvido legalmente, em um processo penal com ampla defesa e
definitivamente. contraditório, reconhece-se que entre as alternativas de pena
O ideal, todavia, para a completa aproximação ao a correta e adequada é aquela representada pelo sursis.
princípio acusatório, estaria em a lei prever que antes de Entretanto, na ausência de proposta de pena não temos
oferecer a denúncia oral e à semelhança do que propomos como argumento as alternativas de sanção consideradas
sobre o arquivamento, o Promotor de Justiça comunicasse concretamente, porque sequer se concluiu sobre a existência
ao Conselho Superior do Ministério Público as razões do não da infração penal e a responsabilidade do agente. Há um
oferecimento da proposta, disso dando ciência ao ofendido e processo condenatório, com requisitos de validade e eficácia,
a ser percorrido e superado antes das alternativas penais assinado, sem iniciativa ou concordância do autor, é dispor
emergirem. do conteúdo material do feito, à revelia de uma das partes,
quebrando, assim, uma das estacas de sustentação do
5.2.2. DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO triângulo.52

O mesmo acontece quando se trata da suspensão do 5.2.2.1. Da Natureza Jurídica ² Primeira Parte
processo.51 Ficou consignado em passagem anterior que o
exercício do direito de ação não se esgota com o Afirmar a natureza jurídica de um determinado
oferecimento da acusação. Pelo contrário, o conjunto de instituto significa indicar a que categoria geral aquele
relações processuais que ordenadamente se sucedem, a instituto específico está integrado.
partir daí, depende dos atos processuais que, No caso da suspensão, o fenômeno percebido consiste
reciprocamente, vinculam, ligam, autor, réu e juiz. em o Ministério Público formular proposta ao réu, visando
Admitir-se, como o faz a conclusão da Comissão de obter dele certos comportamentos positivos e negativos ao
Interpretação da Lei no 9.099/95 ou o mencionado acórdão longo de um tempo determinado, de modo a ver declarada
do e. Superior Tribunal de Justiça, que o juiz pode propor extinta a punibilidade do acusado pelo crime que funda a
(ou decidir pela, forma literal que não esconde a realidade da causa de pedir da ação penal.
medida) a suspensão do processo, que, por sua vez, resultará Para que a extinção da punibilidade se concretize, é
na extinção da punibilidade do acusado, ao final do prazo necessário que o acusado, orientado por seu Defensor, aceite
a proposta e o juiz a homologue. Provas não serão
produzidas e o acordo somente será válido se aperfeiçoado
51 Artigo 89 da Lei nº 9.099/95: Nos crimes em que a pena mínima
cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, depois de recebida a denúncia, com a constatação da
o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão existência de justa causa para a ação penal.
do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo Finalmente, a medida só é cabível para determinado
processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os
demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art.
grupo de infrações penais, originando-se a extinção de
77 do Código Penal). § 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, punibilidade na hipótese de consumação do período de prova
na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o sem revogação.
processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes
condições: I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; II -
Parece fora de dúvida que há dois aspectos distintos a
proibição de freqüentar determinados lugares; III - proibição de serem estudados: a proposta que se formula e a decisão que a
ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz; IV - homologa, depois da proposta ser aceita pelo réu. Além
comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para disso, há de se considerar os efeitos que gera a não-
informar e justificar suas atividades. § 2º O Juiz poderá especificar
outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que revogação da suspensão.
adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado. § 3º A suspensão será No tocante à formulação da proposta, duas correntes
revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por
outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano. 52
§ 4º A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, O Supremo Tribunal Federal resolveu em definitivo a questão por meio do
no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra verbete 696 da Súmula, cujo teor é o seguinte: Reunidos os pressupostos legais
condição imposta. § 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o
extinta a punibilidade. § 6º Não correrá a prescrição durante o prazo de Promotor de Justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao
suspensão do processo. § 7º Se o acusado não aceitar a proposta prevista Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo
neste artigo, o processo prosseguirá em seus ulteriores termos. Penal.
digladiam no direito brasileiro. De um lado, estão os restritas aos casos de julgamento do pedido do autor, com a
defensores de que se trata de direito público subjetivo do condenação ou absolvição do réu. Também no âmbito penal
acusado; do outro, estão os que postulam sua qualidade de as soluções consensuais impõem definitiva resolução do
parte integrante do direito de ação. conflito (vide a transação penal), ao tempo em que o
A nosso juízo, a definição da natureza jurídica da reconhecimento da prescrição ou de qualquer causa de
proposta de suspensão do processo está condicionada à extinção da punibilidade cumpre o mesmo papel da
verificação do que acontece quando a proposta é aceita pelo declaração da prescrição e da decadência, no processo civil,
réu e homologada pelo juiz. levando à extinção do processo com julgamento do mérito.
É fácil verificar que a suspensão condicional do Diante deste quadro, é válido assinalar que a suspensão
processo efetivamente nada suspende. Ao contrário da condicional do processo imporá às partes outro percurso
suspensão do processo, prevista no artigo 366 do Código de processual distinto da caminhada probatória, mas orientado
Processo Penal, que paralisa o curso do processo de pelo mesmo fim desta última, tal seja, oferecer definitiva
conhecimento em relação à atividade de instrução, solução ao conflito de interesses penal. Só haverá paralisação
impedindo dessa maneira que o pedido de condenação seja da atividade de instrução mediante produção de provas,
apreciado pelo juiz, e das demais situações de suspensão estando o juiz, por isso mesmo, impedido de julgar o pedido
processual derivadas da necessidade de aguardar decisão de do autor. No mais, o processo seguirá em busca da solução
questão prejudicial pertinente ao estado de pessoa (artigo 92 que, de acordo com a legislação, é eficaz para recompor o
do Código de Processo Penal), e eventualmente nos tecido social supostamente afetado pelo delito. Não há
incidentes de falsidade (artigo 145 do Código de Processo suspensão propriamente dita.
Penal) e de insanidade (artigo 149 do Código de Processo As condições da proposta e da suspensão não são pena
Penal), a suspensão condicional do processo paralisa apenas criminal e a sentença homologatória não tem natureza de
a marcha processual destinada à produção das provas pelas condenação. Antes, a suspensão representa justamente a
partes. opção legislativa pela não condenação como forma de
O autor da ação penal e o réu poderão encontrar uma composição do conflito, em situação bastante semelhante,
forma de composição do conflito de interesses penal que não por exemplo, à prescrição.
dependa de ficar demonstrada a existência da infração penal Como as condições da suspensão do processo não têm
e a responsabilidade do processado. caráter de sanção, nunca poderão equivaler às sanções
No lugar das provas dos fatos que sustentam as principais ou alternativas previstas na legislação penal. A
pretensões das partes, figuram as atitudes que o réu se solução realmente exclui a aplicação de qualquer pena e por
compromete a adotar e o autor entende suficiente. Com isso, essa razão é inviável socorrer-se o juiz das medidas
vencido o período de prova, se a suspensão condicional do prescritas como sanções criminais, ainda que ao argumento
processo não for revogada, considera-se definitivamente de que não poderão ser implementadas compulsoriamente. A
solucionada a questão penal, isto é, com força de coisa implementação compulsória das penas configura mera
julgada material. possibilidade das penas derivadas de condenação criminal
Note-se que se tratará de decisão de mérito, sujeita a transitada em julgado, que poderão ser executadas sem
consolidar coisa julgada material tanto quanto as sentenças oposição do condenado (pagamento de multa, prestação
absolutórias. À semelhança do que acontece no processo pecuniária etc.) e não considera os efeitos psicológicos das
civil, as soluções de mérito no âmbito penal não ficam providências.
Com tudo isso, o que se constata é que a suspensão independência dela ter confessado (incisos LIV e LV do
condicional do processo atua como meio de composição do artigo 5o da Constituição da República e artigo 158 do Código
conflito de interesses penal, pelo qual veicula-se causa de de Processo Penal).
extinção da punibilidade. A decisão de suspensão é Por fim, é necessário sublinhar de uma vez por todas
homologatória e a suspensão tem natureza jurídica de que o direito de ação não se esgota, no processo penal de
procedimento penal de conhecimento. Em si mesma, não é condenação, no ato de oferecer a denúncia ou queixa, como
direito do réu ou do autor. É tão-só o devido processo legal Ada Pellegrini Grinover teve a oportunidade de acentuar.53
de uma forma especial de composição do conflito. Assinala a jurista que:

5.2.2.2. Da Natureza Jurídica ² Segunda Parte Nessa ampla acepção, ação e defesa não se
exaurem, evidentemente, no poder de impulso e no
Com base nestas considerações, é possível definir a uso das exceções, mas se desdobram naquele
natureza jurídica da proposta. conjunto de garantias que, no arco de todo
Com efeito, se a suspensão condicional do processo procedimento, asseguram às partes a
constitui modelo de procedimento de resolução do conflito possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de
de interesses que opõe de forma atenuada a pretensão produzirem suas provas, de aduzirem suas razões,
acusatória à pretensão de resistência da defesa, é natural que de recorrerem das decisões, de agirem, enfim, em
a proposta represente um dos caminhos pelos quais o Estado juízo, para a tutela de seus direitos e interesses,
busca alcançar a efetividade do direito penal, efetividade que utilizando toda ampla gama de poderes e
consiste na restauração de uma hipotética paz social, mas faculdades pelos quais se pode dialeticamente
que também pode ser compreendida como esforço de preparar o espírito do juiz.
harmonização de interesses contrapostos, de sorte a
proporcionar condições dignas de vida para todos os Diante do exposto, mostra-se irrefutável a tese de que a
envolvidos no drama do delito. proposta de suspensão representa um dos elementos
Ora, a instauração do processo penal de condenação constitutivos do direito de ação penal condenatória. Direito
não pode ser tida como direito do acusado. Da mesma de ação que em uma de suas faces se apresenta como o
maneira, não é certo falar que o indivíduo, ainda não direito de estar em juízo e pedir ao juiz a adoção de uma
processado, tem direito a algum tipo de sanção penal. O solução diferente da pena criminal, nos casos em que a lei
acusado terá direitos, deveres, ônus e faculdades no processo autoriza esta solução.
penal. Não terá, porém, direito a que o titular da ação penal O poder de impulso típico da promoção da ação penal é
o processe como o agente não tem direito a sofrer pena. complementado com a indicação, pelo autor, de que o Estado
A submissão do réu ao processo acontece ficará satisfeito com a aplicação de medida distinta da pena
compulsoriamente e depende da presença de requisitos criminal, visando resolver o conflito que a pretensão do
pertinentes à ação (as chamadas condições da ação) e ao acusador carrega.
processo (a justa causa e os pressupostos processuais).
A submissão de alguém a uma sanção criminal depende
53 O Processo Constitucional em Marcha: Contraditório e Ampla Defesa em
de estarem provadas a existência do delito e a Cem Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, São Paulo:
responsabilidade penal da pessoa acusada, com Max Limonad, 1985, p. 11
Esta posição, além de guardar coerência com o sistema agente nada mais caiba senão praticar o ato. O motivo do ato
processual acusatório estruturado constitucionalmente, é motivo de fato e não de direito.
velando pela autonomia da ação em face da jurisdição e Não é o que ocorre relativamente à proposta.
reservando à defesa a tarefa de resistir à pretensão, é a única Examinando o artigo 89 que está sendo comentado, resulta
que assimila por inteiro a idéia da solução consensual do claro que um dos requisitos para a homologação da
conflito de interesses penal. suspensão é a simetria entre a situação pertinente à conduta
Assim é que as soluções só podem ser denominadas de e, do outro lado, aquela que se extrai dos requisitos do
consenso se ambos os interessados estiverem de acordo sursis, o que se traduz da expressa remissão ao artigo 77 do
quanto ao estipulado. O fundamento de uma resolução dessa Código Penal.
natureza é a autonomia da vontade, que só existirá A Lei no 9.099/95 parece orientada a permitir a solução
plenamente se o acusador e o acusado puderem concorrer alternativa somente se for adequada à culpabilidade do
com a sua vontade livremente. Não haveria autonomia de acusado (artigo 77, inciso II, do Código Penal). Ora, isto
vontade se uma das partes estivesse obrigada a transigir! significa dizer que há de ser levado a cabo um juízo prévio ²
Portanto, é acertada a posição do Supremo Tribunal provisório e antecipado ² sobre a reprovação pessoal da
Federal quando aponta para a iniciativa do Ministério conduta indicada na denúncia.
Público relativamente à formulação de proposta de E é inevitável que este juízo seja conotativo, pois apenas
suspensão (Habeas Corpus no 74.153-3±SP, rel. Min. Sydney com atribuição de valor ao comportamento, em caráter
Sanches, impetrante Edmo Pontes de Magalhães, jul. provisório e tendo em vista as informações da investigação
3/12/1996).54 criminal, será possível conceber a correspondência
5.2.2.3. Da Natureza Jurídica ² Terceira Parte hipotética entre a culpabilidade e o merecimento da solução
diferenciada da pena criminal.
Fixada a natureza jurídica da proposta, cabe indagar: o Por conta desse fator, todos os componentes da situação
que fazer se o Ministério Público, sem justificativa, deixar de fática que autoriza a proposta não estão presentes de
formular a proposta? imediato, a ponto de transformar a própria situação de fato
Em primeiro lugar, temos que destacar que a decisão do em motivo de fato e subordinar o ato do Ministério Público,
Ministério Público a respeito do oferecimento da proposta vinculando-o. Uma intervenção do agente (leia-se Ministério
não é ato vinculado, no sentido estrito. Por ato vinculado, Público) se faz necessária e o papel desta intervenção é o de
entende José dos Santos Carvalho Filho55 aquele praticado determinar a concreta política criminal aplicável em cada
em virtude de uma situação de fato, delineada na norma caso, gerando a eleição pelo Ministério Público da situação
legal, de modo tal que, verificada a situação de fato, ao fática que motivará a aplicação da regra jurídica e a
formulação da proposta. A culpabilidade do agente comporta
54 Em outra decisão, porém, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a a solução da suspensão? Em caso afirmativo, o Ministério
necessidade da proposta do Ministério Público, mas o voto expressamente Público formula a proposta; caso contrário, de forma
referiu-se a esta proposta como direito subjetivo do acusado (Habeas
Corpus nº 75.197-1-PR, rel. Min. Moreira Alves, impetrante Lúcio Jatobá, fundamentada deixa de fazê-lo. Somente o exame da
1ª Turma, jul. 19/8/1997, unânime), seguindo assim a posição pioneira do situação de fato, pelo Ministério Público, indicará a
Superior Tribunal de Justiça (RHC nº 6.410/PR, rel. Min. Vicente Leal, propriedade de se formular a proposta de suspensão.
recorrente Omires Pedroso do Nascimento, por maioria).
55 Manual de Direito Administrativo, 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, Com isso, é correto afirmar que o ato do Ministério
2000, p. 82. Público é discricionário, muito embora o espaço de atuação
seja bastante limitado. Acrescente-se que discricionariedade acusatória de nosso processo penal ferirá gravemente o
não se confunde com arbitrariedade, que estará presente na princípio da autonomia de vontade das partes, obrigando o
ação desvinculada de qualquer situação de fato prevista na Ministério Público a acatar solução definitiva do conflito de
lei.56 interesses ainda quando discorde dela. Será o mesmo que
A atuação do Ministério Público deverá ser reduzir o exercício de ação penal ao mero ato de denunciar,
fundamentada, tanto quando oferece a proposta como retirando do Ministério Público a condição de parte.
quando deixa de fazê-lo, propiciando o controle necessário A feição acusatória eleita na Constituição não permite
ao juízo de discricionariedade ² com exclusão da ao juiz tal providência, cumprindo-se o controle da
arbitrariedade ² e às regras que regulam a vida democrática, legalidade, impessoalidade e moralidade da abstenção do
pois não há poder jurídico legítimo em uma democracia que representante do Ministério Público, exclusivamente no
se exerça sem a possibilidade real de controle. âmbito interno da sua instituição, pela provocação ao
Caso o acusado e/ou o juiz entendam que a proposta Procurador-Geral.
tinha de ser apresentada e indevidamente não o foi, terá Por todo o exposto, defendemos que só estará
inteira aplicação o artigo 28 do Código de Processo Penal, preservado o princípio acusatório se a suspensão condicional
por analogia. Com efeito, dispõe este artigo que, se o do processo for homologada em face da livre manifestação
Promotor de Justiça deixar de oferecer denúncia quando do acusador e do acusado.
devia fazê-lo, pronunciando-se pelo arquivamento, o juiz, Este tem sido o entendimento do eg. Supremo Tribunal
discordando, remeterá ao Procurador-Geral os autos de Federal, conforme pode ser vislumbrado das decisões, cujas
inquérito ou peças de informação. O Procurador-Geral então ementas, para finalizar, transcrevemos a seguir:
insistirá no arquivamento ou exercerá a ação penal,
oferecendo denúncia ou designando outro Promotor de Habeas Corpus.
Justiça para oferecê-la. Trata-se de uma forma de controlar o Improcedência da alegação de não ter sido o
exercício da ação penal pública, regulada pelo princípio da defensor do ora paciente intimado para a
obrigatoriedade. apresentação das razões de apelação.
De acordo com nosso entendimento, a proposta de No caso, por não haver o Ministério Público,
suspensão constitui modalidade alternativa de exercício da quando do oferecimento da denúncia, proposto a
ação penal pública. Assim, estará o Ministério Público suspensão do processo, não há razão para
obrigado a exercitá-la sempre que presentes os requisitos decretar-se a nulidade deste a partir desse
legais. Caso o Promotor de Justiça ou Procurador da oferecimento.
República deixe de formular a proposta, o juiz controlará a Habeas corpus indeferido, determinando-se a
inércia relativamente ao exercício da ação penal pública, restituição dos autos da ação penal à origem.57
remetendo os autos ao Procurador-Geral. Ao Procurador-
Geral caberá dar a última palavra, formulando a proposta ou Habeas Corpus. Impetrado contra acórdão
ratificando seu não-oferecimento. que, em 13/12/95, sem pedir manifestação do
Outra solução que despreze a intervenção do Ministério Ministério Público sobre a admissibilidade da
Público além de não preservar a estrutura fundamental
57 Habeas corpus nº 75.197-PB, julgado pela 1ª Turma, relator Ministro
56 Carvalho Filho, José dos Santos. Ob. cit., p. 82. Moreira Alves, publicado do Diário de Justiça da União em 24/10/1997.
suspensão do processo prevista no art. 89 da Lei n o
9.099/95, em vigor desde 27/11/95, confirmou a
sentença de 19/6/95, que condenara o paciente a
15 dias de detenção e 50 dias-multa, por
infringência do art. 330 do Código Penal.
Efeito retroativo das medidas
despenalizadoras instituídas pela citada Lei no
9.099 (Precedentes do Plenário: inquérito no 1.055,
D.J. de 24/5/96).
Pedido deferido para, anulados o acórdão e a
sentença, determinar-se a remessa dos autos da
ação penal ao Tribunal Especial Criminal, para a
aplicação, no que for cabível, do disposto nos
artigos 76 e 89 da Lei no 9.099-95.58

58 Habeas corpus nº 74.017-CE, julgado pela 1ª Turma, relator Ministro


6. A Execução Penal e o Sistema Acusatório1 De concreto, a implementação de uma democracia com
essas características é um projeto dinâmico e sempre não
totalmente realizável, porque pressupõe um nível de
igualdade social, econômica e jurídica que não corresponde à
Com razão, Yadira Calvo lembra, ao tratar da nossa realidade e, o que é mais grave, a um futuro que sequer
discriminação sexual em todos os níveis, que se supõe que hoje a maioria dos brasileiros aspira.
Deus escreve certo por linhas tortas; porém não os seres Da democracia aparente ao processo penal
humanos, que quando torcem as linhas o fazem porque têm democrático aparente o passo não é largo e costuma ser
torcidas também as intenções.2 dado sem dificuldade, infelizmente, por conta do mesmo tipo
Assim é em termos de Direito e da mesma maneira de cultura que embarga os esforços de redução da criminosa
quando tratamos de Democracia, principalmente na América distorção na distribuição de rendas, prêmios e castigos em
Latina e de modo mais específico no Brasil. nossa sociedade.
Muito embora tenha parecido a muitos que a No campo do processo penal de conhecimento, mais
promulgação da Constituição, em 1988, haja representado o visível e interessante para a própria dramaturgia do Estado
ponto culminante da transição para a democracia, os reflexos Espetáculo, várias garantias são dispostas pelo direito para
de uma ordem jurídica democrática não são visíveis para aqueles que têm condições de acesso a melhores recursos
além dos contornos meramente formais da Democracia jurídicos, e também, em grau variável, para todos os demais
procedimental. Por ordem democrática real, é preciso desde acusados. Assim, exige-se que um juiz imparcial aprecie a
logo fixar, entendemos algo mais que a simples conexão de demanda do acusador, em um ambiente filtrado pelo
procedimentos entre elementos dispostos a assegurar a contraditório, que só é possível graças à ampla defesa
participação popular, livre e direta, na eleição dos assegurada pela direta participação do acusado no processo e
representantes no Congresso e no Executivo. Em companhia pela intervenção de Defensor profissional. As provas
de Lola Aniyar, preferimos optar por um conceito valoradas ao final devem ter sido obtidas de forma lícita e o
substancial, em virtude do qual a existência de três pilares julgamento há de ser, normalmente, público,
básicos é imprescindível para condensar o verdadeiro fundamentando-se a decisão.
significado do termo: que o poder seja ascendente, isto é, Cumprida a trajetória do processo de conhecimento,
que vá das camadas populares, para cima; que seja resta, para os definitivamente condenados, expiar a culpa,
utilitário, pois que responda a interesses generalizáveis; termo religioso que bem demonstra o sentido que a aplicação
que tenha capacidade para conter os abusos de poder.3 da sanção e a execução penal ainda têm.
No momento inicial da execução penal, vislumbra-se
1 Trabalho elaborado para publicação na Revista Jurídica da Faculdade de claramente a distorção do primeiro eixo deste tipo de
Direito Iguaçu ± UNIG e na Revista Juris Poiesis, do Curso de Mestrado processo. Antes de ser um árbitro imparcial de um conflito
em Direito da Universidade Estácio de Sá, que serviu de base para a entre partes ² Ministério Público e condenado ² por uma
palestra com o mesmo título, proferida no VI Simpósio Nacional ² Direito
Penal e Processual Penal ² ³1RYDV ,GpLDV ² Novos Rumos´, em dessas situações peculiares à ideologia com projeção no
30/4/1999, no Hotel Glória, Rio de Janeiro, pelo Instituto de Direito. mundo jurídico, o juiz deve tomar e manter a iniciativa da
2 Calvo, Yadira. Las Líneas Torcidas del Derecho, San José: ILANUD, 1996, execução, à semelhança do modelo inquisitório. Do ponto de
p. 5.
3 Aniyar, Lolita. Democracia y Justicia Penal, Caracas: Congreso de la vista subjetivo, verifica-se o fenômeno da transferência, para
República, 1992, p. 7. o magistrado da execução, das responsabilidades geradas
pela suposta expectativa social, de que o condenado seja este devedor de tantos serviços sociais elementares para
efetivamente castigado. diminuir a pobreza; além disso, do condenado não se pode
A teoria crítica, tão importante na década passada, por exigir mais do que a sentença impõe e tudo o que se deve
evidenciar as incoerências do discurso jurídico, exigir dele há de estar condicionado pelo fim de humanizar
desmoralizando a tese de que a prisão é eficaz método de as relações sociais presentes e futuras.
reintegração social do condenado, acaba de certa forma Em um quadro com tais notas, o juiz funciona atento
manipulada pelos defensores de uma vivência social para eliminar os abusos durante este processo e pronto para
autoritária, conservadora e discriminatória, que dela resolver as controvérsias sobre a execução do julgado, seus
recolhem somente um retalho para justificar a retribuição limites e possibilidades, e a respeito da tutela dos inúmeros
pela retribuição, porque possivelmente, dizem, nada mais é interesses jurídicos do condenado.
possível fazer pela socialização! Colocar o juiz no ponto central do procedimento de
Perde-se o contato com o sentido de humanidade que execução penal acarreta, como conseqüência inevitável, levar
deve guiar toda ação estatal opressiva pela própria natureza o Ministério Público para a extremidade da relação, como
e se substitui tal exigência de humanidade pela expectativa permanente parte autora da execução, em todos os seus
de que o juiz fará o condenado perceber de maneira momentos, como acontece em Portugal, enquanto o
indiscutível a gravidade da conduta que o levou a ser punido condenado passa a ter, obrigatoriamente, presença decisiva
e, portanto, a ser afastado real ou simbolicamente, mediante na definição do curso da sua vida, durante a execução da
a prisão ou substitutivos penais, da comunidade dos seres pena, influindo, pessoalmente e por seu Defensor, na
humanos saudáveis! conformação da convicção judicial.4
Tendo por alicerce demandas sociais dessa qualidade é É possível, a partir daí, começar a desenhar um modelo
que um juiz, na execução, é chamado a cumprir o seu papel, de procedimento em contraditório na execução, que, na visão
em flagrante contraste com as exigências constitucionais de de Elio Fazzalari, mencionado por Antônio Magalhães
uma jurisdição imparcial e voltada à implementação de Gomes Filho, pode ser identificado pela simetria das
medidas de justiça social. É justamente por força dessa posições subjetivas, a sua mútua implicação e a substancial
distorção que a posição do juiz no processo de execução tem paridade que se traduzem para cada um dos participantes,
de ser repensada em bases mais democráticas, na possibilidade de dialogar não episodicamente, mas
simultaneamente com a convicção na eficácia dos sobretudo de exercitar um conjunto de controles, reações e
procedimentos jurídicos para conter os abusos. escolhas.5
A falência factual do propósito de ressocialização da
sanção penal, denunciada pela teoria crítica, se não pode 4 Antonio Magalhães Gomes Filho salienta, com razão, que a defesa do
levar, contemporaneamente, à abolição da intervenção condenado no processo de execução penal não se confunde, pois,
punitiva institucionalizada, como a conhecemos, importa em simplesmente, com a eventual oposição às pretensões dos órgãos estatais
duas conclusões que dimensionam a intervenção do juiz na incumbidos de promover o cumprimento das penas impostas, mas se
caracteriza, antes de tudo, como um conjunto de garantias através das
execução da pena: sem que seja necessária uma profunda quais o sentenciado tem a possibilidade de influir positivamente no
reflexão crítica cabe ao juiz compreender que a integração convencimento do juiz da execução, sempre que se apresente uma
social dos condenados, qualquer que tenha sido a sanção oportunidade de alteração da quantidade ou da forma da sanção punitiva
³$ 'HIHVD GR &RQGHQDGR QD ([HFXomR 3HQDO´, in Execução Penal, Ada
eleita, é uma via de mão dupla, exigindo adaptações tanto da Pellegrini Grinover (coord.), São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 41).
parte de quem sofre a pena como da sociedade e do Estado, 5 Antonio Magalhães Gomes Filho, ob. cit.
É verdade que isso não basta e que, se alcançássemos a reclusão, pena mínima, uma solução fora de parâmetros
excelência do procedimento contraditório na execução, ainda puramente ideológicos, com raciocínio do tipo o tráfico de
assim a vida e as perspectivas do condenado sofreriam drogas é um crime grave e, portanto, seus autores a priori
somente pequena alteração. não merecem a substituição, não seria de se esperar.
A nosso juízo, a arquitetura ideal da execução está Vamos buscar um exemplo menos polêmico:
ligada a reformulações na prática e na cultura da execução Caio, reincidente em crime doloso, condenado a dezoito
penal. Na prática porque, como salientava Marcuse, se a anos de reclusão, em regime fechado, trabalha internamente
teoria trabalha com o universo estabelecido do discurso, que durante nove anos. Como para cada três dias de trabalho é
é aquele de um mundo não livre, o pensamento dialético que possível a remição de um dia de pena, Caio tem direito a
na essência nada mais significa que diálogo com a razão, é remir três anos de sua pena, que ficaria reduzida a quinze
sempre destrutivo e qualquer libertação que ele possa trazer anos, nove dos quais cumpridos! Acontece que, de acordo
é libertação em pensamento, em teoria. Porém, o com o artigo 127 da Lei de Execução Penal (Lei no 7.210/94),
desencontro entre pensamento e ação, teoria e prática é, ele o condenado que for punido por falta grave perderá o direito
mesmo, sublinhava o filósofo, parte de um mundo não livre, ao tempo remido, de sorte que se Caio, num dia menos
de sorte que nenhum pensamento e nenhuma teoria podem inspirado, cometer falta grave, por essa indisciplina receberá
desfazê-lo. É necessário atuar incisivamente sobre a a sanção adicional correspondente a três anos de reclusão,
realidade, guiando-se pela teoria, se o propósito é pena superior à de muitos crimes!
transformar para melhor, visando alcançar um modo de O episódio de um único dia de Caio na prisão poderá
tratamento da pessoa condenada mais de acordo com a determinar uma virada decisiva e negativa na continuidade
pauta de valores éticos difundida no meio social. Nesta da vida do condenado, eliminando aquilo que ainda é a
perspectiva, Wolfgang Leo Maar6 adverte que os problemas insulada e frágil garantia da sociedade no retorno dele ao
éticos demandam soluções práticas. A postulação de uma convívio social amplo: sua esperança.
nova praxis importa em modificar a cultura da e na execução Enfrentando a questão no Rio de Janeiro, o juiz Marco
penal, alterar o sentido do patrimônio simbólico dos modos Aurélio Belizze, em decisão fundada na eqüidade,
padronizados de pensar e de saber que se manifestam, reconheceu o excesso imprevisto para o legislador (excesso
expressamente, através da conduta social de todos os culposo, provavelmente) e, aplicando por analogia as
principais atores. condições do indulto, encontrou solução razoável, que não
Compreende-se melhor o desafio à vista da seguinte importou em sacrifício inconstitucional da posição jurídica
hipótese, certamente bem real: mesmo que o processo de do condenado, limitando a perda dos dias trabalhados aos
execução esteja sendo regularmente impulsionado pelo doze últimos meses, parâmetro inspirado nos decretos de
Ministério Público, à diferença do que ocorre hoje, e no seu indulto.7 Hipoteticamente, de três anos de reclusão, o saque
desenvolvimento normal a Defesa postulasse, para ilustrar, em conta de um condenado pode atingir quatro meses!
tutela jurídica consistente na aplicação da lei penal posterior Só se tornou possível a solução equilibrada e justa
benéfica, que prevê substitutivos à prisão (Lei no 9.714/98), a porque o juiz soube, inspirado na constitucional proibição do
um caso de condenação de traficante de drogas a três anos de excesso, mediar o conflito entre partes opostas e atender a

6 ³,QWURGXomR D 0DUFXVH (P EXVFD GH XPD pWLFD PDWHULDOLVWD´ in Herbert 7 Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro, processo nº 90/02843-2,
Marcuse: Cultura e Sociedade, São Paulo: Paz e Terra, 1997. decisão de 10/7/1998.
interpretação legal mais condizente com os direitos procedimento de execução deve ser a oral, ao contrário do
fundamentais, premissa básica da democracia. que está preconizado no artigo 196 da lei de execução. Hoje o
Isso não tira, todavia, o caráter excepcional da decisão. procedimento na execução penal é tudo, menos
A seguir prestigiados autores, como Mirabete,8 os juízes predominantemente oral.
decretam a revogação da remição, que termina por alcançar O Projeto de Lei no 2.687-96, em tramitação no
a totalidade do tempo trabalhado e atingir o condenado, Congresso, prevê a modificação dos artigos 195 a 197 da LEP
punindo-o hoje com o sacrifício de tanto tempo empenhado e introduz o procedimento oral e a audiência como regra. É
muito antes de viver o problema que resultou na falta grave. limitado quanto à possibilidade das partes provarem, o que
Por isso é que, a nosso juízo, a reformulação teórica do deve ser melhorado, contudo, avança ao incorporar a
processo de execução há de implicar em alterações práticas audiência, que tende a reduzir as distâncias entre o juiz e o
sensíveis no plano cultural. Além do deslocamento do condenado, seu jurisdicionado na execução.
julgador para o ponto central do processo de execução, Um procedimento oral, no qual, ainda conforme
deixando ao Ministério Público a iniciativa, é imperativo que Hassemer, o juiz desça do seu pedestal e encare as partes
se assegure a dinâmica do contato pessoal entre juiz e como pessoas portadoras de direitos e deveres, ônus e
condenado, propiciada verdadeiramente pela predominância faculdades, e que esteja inserido em um contexto de
da forma oral de procedimento, que pode oferecer ao juiz distribuição rigorosa das funções na execução, entre juiz,
algo das sensações e das dificuldades experimentadas pelos Ministério Público e condenado, assistido por Defensor,
condenados no cumprimento das mais variadas modalidades pode oferecer soluções equânimes, justas, para situações
de pena e dar ao magistrado, que as desconhece, o sentido diferenciadas no transcurso do processo, em virtude das
dos limites e possibilidades reais dos seres humanos em quais mesmo ao condenado por tráfico não se negue,
condições desfavoráveis. sistematicamente e sem motivação jurídica, quando for o
Hassemer chama a isso de compreensão cênica, cujo caso, a substituição da prisão por outra medida.
objetivo consiste em, reconhecendo-se as peculiaridades da A oralidade envolverá aí, por outro lado, cuidados
comunicação humana que não está limitada a palavras, e especiais com o emprego da tecnologia no procedimento de
menos ainda a palavras escritas, que o juiz interpreta na hora execução. Enquanto é indiscutível que a era da informática e
de julgar como se estivesse interpretando um texto escrito, da telemática pode oferecer vantagens indiscutíveis, em
uma obra literária qualquer, fornecer as condições de termos de controle do tempo de duração das penas e
comunicação próximas ao ideal.9 O sentido dos gestos, tom medidas e da celeridade na produção dos atos jurídicos
de voz, a força de argumentos que um defensor pouco hábil necessários, um dos pressupostos elementares do processo
desconsidera e, principalmente, a possibilidade do oral está em permitir o contato direto entre o juiz e a parte,
condenado sentir-se confiante para revelar ao juiz, contato que não deve ser mediado por sofisticados recursos
diretamente, as experiências mais arbitrárias que possa estar de transmissão de voz e imagem, distanciando fisicamente os
sofrendo, tudo isso demonstra que a forma primeira do protagonistas do processo e deixando um deles isolado em
ambiente que lhe pode ser hostil, justamente aquele sujeito
mais necessitado da segurança que o contato direto
8 Mirabete, Júlio Fabrini. Execução Penal, 5ª ed. São Paulo: Atlas, 1992, p. proporciona.
319.
9 Hassemer, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, Barcelona: Bosch, A cultura pós-moderna implicada em determinadas
1984. atitudes, louváveis sob inúmeros aspectos, porque visam
agilizar e melhorar a prestação jurisdicional, tem de se reforçando o seu dever de fiscalizar ao mesmo tempo em que
render à realidade instrumental da tecnologia. Ela não vale o jurisdicionado tem certeza, porque está em audiência com
por si, como o processo igualmente não é um fim em si o juiz, no próprio ambiente carcerário, que o magistrado
mesmo! haverá de leva-los em consideração na hora de decidir sobre
A tecnologia é importante pelos resultados que a sua os pleitos deduzidos. Se as partes tradicionalmente têm o
aplicação prática proporciona, de modo que, se estes direito de serem ouvidas pelo juiz ² é dito que têm direito ao
resultados não atendem aos objetivos de propiciar uma seu dia na corte ² o juiz passa a ter o direito ao seu dia na
adequada tutela jurídica, devem justificar o abandono, ainda prisão: one day in jail.
que provisório, do recurso mais sofisticado. No caso, o Para os presos, é benéfica a configuração procedimental
contato pessoal, na velha conhecida audiência, se causa com essas características, aproximando o juiz da realidade de
transtornos de locomoção, segurança etc., é um aparente vida do condenado, se houver a pretensão de convencê-los da
atraso que, em termos de processo jurisdicional, humaniza e, justiça intrínseca da ordem jurídica.
neste sentido, acaba sendo um atraso progressista, algo No plano processual, algumas conseqüências podem ser
como DE VOLTA PARA O FUTURO. Seguindo este caminho, desde logo percebidas:
creio que não necessitaremos temer pela advertência de a) quanto ao excesso de execução, além da providência
Boaventura de Sousa Santos, de que um dia teremos jurídica óbvia de eliminação da medida excessiva ou
pateticamente de inventar, sempre com atraso, o que já desviada ² por exemplo, transferindo-se o preso para
tivemos quando éramos atrasados.10 unidade compatível com as exigências da fase de execução ²
Às vantagens da audiência devemos somar a caberá imaginar a viabilidade de pretensões jurídicas que
conveniência, no caso de presos, tendo em vista a sempre não se restrinjam à indenização preceituada no artigo 5o,
alegada dificuldade de transporte e segurança, do ato inciso LXXV, da Constituição da República, mas que,
realizar-se nas unidades prisionais. Um dos pontos mais aplicando o princípio da proporcionalidade, importem na
sensíveis e de mais delicada solução jurídica está relacionado compensação quantitativa de sanção pela violência
aos desvios e excessos de execução, medida que não exclui a qualitativa constatada. Verdadeira e jurídica redução da
audiência no tribunal, mas a complementa. pena. De lembrar que se outro preso, condenado ao mesmo
Quantas vezes o indivíduo devia estar cumprindo pena tempo de reclusão em regime idêntico, vai sofrer uma
em regime semi-aberto ou aberto e, apesar da penitenciária limitação da sua liberdade na mesma porção de tempo a ser
ter essa qualificação, na prática, o sistema é fechado. suportada por este, em visível excesso, há quebra do
Quantas vezes a única progressão se dá exclusivamente de princípio constitucional da isonomia, que o Poder Judiciário
sistemas mais fechados para outros apenas menos fechados! não pode deixar de coibir;
Pior, todos sabemos que o artigo 88 da LEP, que trata das b) QUANTO AOS ADOLESCENTES, rompe-se muitas
mínimas condições físicas dos cárceres, é sistematicamente vezes a ideologia do senso comum, que pode inspirar alguns
desrespeitado pelos governos estaduais. São excessos na juízes, levando-os a crer na eficácia da internação como
execução das penas, conforme a tipologia desenhada no medida estacionária da situação de conflito. Muitas vezes, o
artigo 185 da LEP, que o juiz poderá perceber in loco, caráter banal da internação está fundamentado na crença em
uma eficácia corretiva dela, absolutamente distante da
10 Santos, Boaventura de Sousa. Pelas Mãos de Alice, São Paulo: Cortez, 1995, realidade, como demonstra a criminologia. O juiz, ao ter
p. 67. contato direto com o cárcere e com o adolescente em
cumprimento de medida em condições concretas, estará A democracia no processo penal de execução,
melhor instruído para pesar o que realmente pretende preconizada no início, a ser alcançada, em síntese, por
internando o jovem e não se deixará iludir pela denominação intermédio do reforço à estrutura caracteristicamente de
FRPXP GH ³(VFRODV´ RX ³(GXFDQGiULRV´ TXH PXLWDV GHVWDV acusação, com distribuição rigorosa de funções, e levando em
unidades ostentam. conta, no futuro, um procedimento oral, ainda que repercuta
Muitas outras questões mereceriam ser enfocadas, mas na mentalidade dos operadores jurídicos de modo a torná-
a limitação de tempo permite tão-só citá-las, para orientar a los protagonistas em um enredo de respeito aos direitos
meditação dos interessados: o cabimento da execução penal fundamentais, é só um dos caminhos em direção ao contexto
provisória, idealizada tendo em vista interesses reais do democrático mencionado por Lola Aniyar.
condenado; a possibilidade jurídica do Ministério Público A democracia substancial, que é o nosso postulado,
recorrer a favor do processado, durante a execução; o não acaba algo parecida com a utopia e, como tal, novamente nas
cabimento do mandado de segurança para impedir a palavras de Boaventura de Souza Santos, está a indicar os
imediata execução de decisão favorável ao condenado; o caminhos a seguir, muito embora apenas vislumbre nas
procedimento do recurso de agravo (semelhante na execução sombras de um futuro incerto o lugar de chegada. Semicega
penal ao do recurso em sentido estrito); o caráter a utopia democrática, diria Boaventura, enxerga o processo
jurisdicional pleno da execução, para englobar a questão das de execução penal carente de mudanças, mas reclama
faltas graves e suas conseqüências; a impossibilidade da também a democratização do sistema penal como um todo e
regressão de regime cautelar (objeto de recente decisão do a humanização do controle social hoje extraordinariamente
Des. Valmir da Silva, do Rio de Janeiro); e, finalmente, o brutal. É preciso e urgente redimensionar o papel das classes
debate sobre se o preso tem direito a não progredir de populares em todo o percurso ideal deste sistema. E o fim ou
regime (por conveniência, segurança ou conforto, por destino desta utopia, gostaríamos que fosse a emancipação
exemplo). dos grupos carentes da sociedade. SE É SEMICEGA A UTOPIA
A teoria jurídica pode e deve fornecer os elementos DEMOCRÁTICA, QUEM SABE NÃO É TAMBÉM SEMIVIDENTE
indispensáveis à construção de um processo de execução E NOS INDIQUE, AO FINAL, COMO PONTO DE CHEGADA E
penal mais humanizado e comprometido com os fins da REPOUSO DA EMANCIPAÇÃO, UMA SOCIEDADE JUSTA,
sanção, reformulando em linhas gerais o atual. Já se disse LIVRE E FRATERNA. UMA SOCIEDADE VERDADEIRAMENTE
que, embora disponha de duzentos e quatro artigos, a lei de SOCIALISTA.
execuções penais dedica apenas dezoito ao processo,
demonstrando, em linhas gerais, como há muito salientou
Ada Grinover, uma certa falta de atenção da lei para com as
garantias processuais das partes e da jurisdição.11
Temos certeza que a elaboração de um novo processo de
execução, no entanto, não é suficiente para remodelar as
relações sociais penetradas pelo problema do crime.

11 *ULQRYHU$GD3HOOHJULQL³$QRWDo}HVVREUHRV$VSHFWRV3URFHVVXDLVGD/HL
GH([HFXo}HV3HQDLV´ in Execução Penal. Ada Pellegrini Grinover (coord).
São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 15.
7. Conclusão direitos fundamentais e da disciplina constitucional da
divisão dos poderes em seu interior e resulta na
implementação do princípio da divisão de funções no
próprio processo, atribuindo-se a diferentes sujeitos as
De tudo quanto foi exposto, cabe agora articular os atividades principais de acusar, defender e julgar;
tópicos fundamentais do trabalho, não sem antes registrar 5. o sucesso na implementação de um processo penal
que, malgrado a advertência contida no texto, de que a estruturado dessa forma depende não apenas da
aferição da constitucionalidade de um sistema processual normatividade constitucional, como da existência de um
passa pela estática concordância entre as funções fundo cultural que reconheça a validade prática de um tal
processuais e também pela ponderação da dinâmica de sistema, em atenção aos justos anseios de proteção e
relações que se estabelecem, o fundo cultural é determinante segurança da comunidade;
fator de efetivação de sistema e princípios constitucionais, 6. de outra forma, a Constituição produz eficácia
impondo-se a evolução em direção à plena democracia meramente simbólica e a regulação dos seus princípios
simultaneamente com a aproximação às expectativas sociais. esbarra em processos de interpretação que lhes reduzem o
Desse modo, a recíproca relação entre o mundo direito e o alcance e significado;
mundo real potencializará a semente, no campo do processo 7. visto assim, o processo hermenêutico adquire
penal, de um sistema que não seja apenas aparentemente relevante valor, comportando apenas interpretações
acusatório, mas torne ambos, princípio e sistema conforme à Constituição, como condição de validade das
acusatórios, realidade, conjugando eficaz tutela da segurança normas ordinárias;
de todos e da dignidade de quantos venham a sujeitar-se ao 8. da interpretação derivada da articulação das
processo penal. normas constitucionais que disciplinam direitos
São estas, pois, as principais conclusões: fundamentais, instituem a privativa atuação do Ministério
Público, no exercício da ação penal pública, e reservam ao
1. o processo penal condenatório rege-se por padrões juiz a função de decidir os conflitos de interesses, além de
normativos, de origem constitucional, que traduzem preconizar a publicidade do processo e a oralidade do
limitações significativas ao poder punitivo do Estado; procedimento, resulta a convicção de que a Constituição
2. as limitações do processo penal estão a princípio preocupou-se com a inserção de princípios determinantes da
traçadas, levando em conta a efetivação dos direitos estrutura e do modelo de processo penal;
fundamentais; 9. o modelo eleito não é original mas sim o produto da
3. por sua vez, a efetivação dos direitos fundamentais evolução, cujo conhecimento contribui para edificar critérios
só tem lugar em um Estado Democrático, fundado no de avaliação dos sistema e princípios;
princípio da divisão dos poderes, de tal sorte que o processo 10. não existe uma compreensão exclusiva e
penal, espaço jurídico dentro do qual os direitos unicamente válida sobre que elementos compõem os
fundamentais são mais exigidos, tutelados e, em sistemas processuais, variando conforme a história dos
circunstâncias excepcionais, comprimidos, deve ser um povos e o enfoque teórico que conferem à questão do
processo penal democrático; comportamento delituoso e seu modo de controle, de sorte
4. a democracia no processo penal projeta a tutela dos que nem sempre coincidem as visões histórica e teórica dos
sistemas;
11. é possível, todavia, determinar alguns pontos máxima acusatoriedade, razão pela qual recomenda-se que,
convergentes, sendo que, relativamente ao sistema propondo-se a reforma do processo penal, como
acusatório, há, além do pacífico reconhecimento de que se conseqüência da transformação constitucional operada em
fundamenta na divisão das tarefas de acusar, defender e 1988, coloque-se de lado a aparência acusatória e efetive-se a
julgar (princípio acusatório), concordâncias sobre as estrutura que, democraticamente, divide tarefas, funções e
exigências de publicidade e oralidade; responsabilidades.
12. a definição do que se compreende por acusação é
elementar na delimitação da área de atuação do acusador e
do juiz;
13. optou-se, neste aspecto, por inserir a acusação no
conceito de ação penal ² importando na imputação de uma
infração penal, com pedido de aplicação da sanção ² e,
assim, extrair todas as conseqüências possíveis, quer no
tocante à delimitação do objeto do processo, quer quanto à
distribuição das atividades probatórias ;
14. reconheceu-se que as leis processuais ordinárias
brasileiras, de acordo com o maneira como estão sendo
aplicadas, não respeitam totalmente as fronteiras traçadas
pelo princípio acusatório;
15. ficou evidente, em face da interpretação
predominante, que o conceito de princípio acusatório está
reservado à iniciativa de demandar, a partir do que, o dogma
da verdade real se instala e, com ele, fortes tendências de
investigação judicial;
16. a legislação especial, consoante tem sido
interpretada e aplicada, não foge à regra, vigorando a crença
na existência de poderes de instrução do juiz, além e acima
do direito à prova das partes;
17. finalmente, questiona-se a suposta
discricionariedade do Ministério Público quanto à
implementação das soluções de consenso incorporadas pela
Lei no 9.099/95, a partir da previsão constitucional contida
no artigo 98, inciso I, debatendo-se, em vista disso, sobre o
lugar que ocupa a instituição em um processo penal
democrático, fundado na legalidade e na acusatoriedade;
18. concluímos, afirmando que, de fato, a Constituição
da República optou pelo sistema acusatório, mas o
ordenamento jurídico processual ainda está distante da
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Este artigo sintetiza as idéias apresentadas em 21 de abril de 2001,
VALLE FILHO, Oswaldo Trigueiro. A ilicitude da prova: no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, no Simpósio Novos Rumos, Novas
teoria do testemunho de ouvir dizer, São Paulo: Revista Idéias, promovido pelo Instituto de Direito ± ID.
1. Introdução 2. A proteção da intimidade e da vida privada como direitos

Em 11 de abril passado foi sancionada a Lei n. constitucionais e a autodeterminação informativa

10.217/2001, que alterou dispositivos da Lei n. 9.034/95, Para melhor compreender as questões críticas e

conhecida também como Lei de Controle do Crime problemáticas advindas da aplicação da mencionada lei,

Organizado2. situando a análise tanto no campo do direito processual

É necessário desde logo salientar que em virtude da penal de índole constitucional como no da política criminal,

nova redação conferiu-se previsão legal à interceptação que estabelece as linhas mestras do programa de controle da

ambiental e à infiltração de agentes, consistindo a infiltração, criminalidade, é preciso lançar luz sobre o fato de que, nos

nos termos da Lei, em atuação de agentes de polícia ou de dias atuais, o direito à vida privada e à intimidade pode ser

inteligência em organizações criminosas, sob falsa severamente afetado pela difusão descontrolada de

identidade, para capturar provas de infrações penais informações cuja obtenção acaba sendo facilitada pelo

supostamente praticadas por integrantes das referidas emprego de tecnologias sofisticadas de comunicação e

organizações. informação.

O objetivo deste texto é colocar em destaque a Os modernos bancos de dados pessoais, que evoluem para a

inconstitucionalidade de ambas as providências, inspiradas formação de verdadeiros dossiês de personalidades

em modelos de política criminal dotados de características individuais3, permitem a permanente devassa da vida

distintas daquelas que defluem da ordem jurídica brasileira. privada das pessoas, ao que se soma o aparato de câmaras e

2 O texto da Lei n. 10.217/01 pode ser obtido no site


www.direitosfundamentais.com.br.
microfones capazes de captar imagens e sons, sem que as neutralização dos efeitos perversos conseqüentes à invasão

pessoas visadas ou os interlocutores se dêem conta de que de sua privacidade.

estão sendo vigiados. Isso, é claro, não induz à formação de É bastante razoável supor que a disposição de

juízos de valor a priori. Não se trata de questionar toda e câmaras que ficam parcialmente ocultas em agências

qualquer utilização de meios refinados de registro, bancárias e aeroportos previna situações problemáticas. Da

armazenamento, tratamento e transmissão de dados, mesma maneira, pudesse o médico em caso de emergência

imagens ou sons, como se estivéssemos a julgar e condenar a dispor de informações seguras a respeito das condições de

sociedade tecnológica (ou de informação como preferem saúde daquele paciente até então desconhecido, cujo

alguns), comparando-a com um passado de simplicidade e atendimento de urgência se impõe, é claro que as chances de

harmonia total, que na realidade nunca existiu. que essa pessoa seja atendida satisfatoriamente aumentam

O ponto sobre o qual gira o eixo deste trabalho pode de modo significativo. Ninguém pode ser contra isso.

ser fixado a partir da idéia de que a facilidade de disposição A questão crítica aparece quando as informações não

das citadas informações não raro proporciona o seu emprego são usadas em benefício da maior parte das pessoas que

para fins de controle social e mesmo de violação de compõem o núcleo social ou ainda quando o emprego das

interesses vitais das pessoas, sem que os indivíduos informações é precedido por desproporcional violação da

prejudicados disponham de recursos eficientes e rápidos de esfera privada das pessoas.

Há muito se sabe que a pretexto de controlar (ou

combater) a criminalidade, os grupos e classes sociais


3Chama a atenção para o denominado dossiê genético, questionado
pela incomensurável potencialidade lesiva aos interesses vitais das dominantes empregaram meios violentos voltados,
pessoas.
claramente, à neutralização dos setores sociais isso, tendo sido reduzidos à mínima expressão, de eficácia

desfavorecidos, desprivilegiados ou simplesmente basicamente retórica5.

contestatórios4. Em um mesmo contexto eram tratados os Mesmo assim, a idéia-força de consolidação da

agentes responsáveis por atos que atentavam contra os modernidade, fundada em um direito de cunho ético e

interesses individuais mais importantes (vida, integridade dirigida à transformação social, com redução das

física, honra) e aquelas outras pessoas que reivindicavam desigualdades, proporcionou a edificação de uma estrutura

mudanças radicais da ordem estabelecida, como no caso da de direitos e garantias de natureza penal que, a par de

repressão aos movimentos operários, mediante controlar a resposta estatal aos atos criminosos, atenuando-

incriminação, nos séculos XIX e XX. lhe a brutalidade, buscou definir o Estado como entidade

Em retrospectiva é concebível especular que os cujos atos de seus agentes deveriam situar-se nos marcos de

movimentos de humanização e racionalidade, de corte uma legalidade prenhe de legitimidade e conformada

liberal, que marcaram o iluminismo e a modernidade no eticamente. Desse modo, os atos de repressão, apuração e

plano do direito penal e do processo, tiveram eficácia punição das infrações penais e de seus autores não seriam de

limitada mesmo nos países da Europa Ocidental, onde foram forma alguma equiparáveis aos atos dos próprios agentes de

gerados, sendo que nos chamados Estados periféricos nem delito.

O emprego da tortura e de outros meios cruéis para a

descoberta da verdade foi repudiado ± ainda que na prática

tenha sido tolerado ou incentivado por regimes de vocação

4George Rusche e Otto Kirchheimer.in Pena y Estructura Social,


Colombia, Temis, 1984. 5 Sobre o tema recomendo a leitura do artigo ± Revista Doutrina n. 11,
autoritária ± e a aquisição e introdução de provas obtidas A única solução cabível para resolver este conflito

por meios ilícitos esbarraram em firme objeção doutrinária, entre interesses legítimos repousa em atribuir a órgão

jurisprudencial e, finalmente, legal-constitucional. imparcial o poder exclusivo de conhecer as pretensões de

Não obstante o princípio de reserva de lei para limitação dos direitos fundamentais alheios, julgando

comprimir, legitimamente, o exercício de direitos quando realmente é necessário ou imprescindível reduzir a

fundamentais, o certo é que de nada valeria a citada garantia esfera de exercício destes direitos em prol de interesses

se os agentes do Estado Administração, encarregado da prevalecentes.

repressão e apuração das infrações penais, pudessem decidir Por isso cumpre reconhecer a existência de

diretamente os casos de restrição ao exercício dos direitos YHUGDGHLUD³reserva constitucional de função´ DWULEuível ao

que conformam a dignidade humana. Há aí nesta hipótese, Poder Judiciário para examinar as demandas dos

claramente, a percepção de que o Estado-Administração tem responsáveis pelas investigações criminais, que estejam

interesse direto e atua como parte, de sorte que seus agentes interessados em obter provas ou assegurar a eficácia prática

dirigem suas ações ao fim de coletar provas da existência de de virtual decreto condenatório fazendo uso de medidas

crimes e da responsabilidade dos supostos autores. coercitivas dirigidas contra o investigado ou processado e

A tensão com os interesses das pessoas investigadas seus direitos fundamentais.

± que não são necessariamente culpadas e não podem ser A postura de imparcialidade do juiz, no processo

tratadas como tal até que seja definitivamente pronunciada penal, independentemente de expressar a recomendável

decisão condenatória ± é inevitável. eqüidistância entre pretensões que lhe são submetidas, na

expectativa de que receberão solução justa, não tendenciosa,


Rio de Janeiro, Instituto de Direito (ID) ano 2001.
funciona também como garantia de que os interesses vitais de liberdade provisória em processo por crimes hediondos e

dos membros da comunidade, vinculados entre si por um equiparados8.

moderno pacto social6, não serão postergados salvo em casos O exercício deste controle, que é de necessidade,

extremos, em benefício do conjunto do grupo social após adequação e proporcionalidade, está prejudicado nos termos

ponderada avaliação dos interesses em jogo. da Lei n. 10.217, como veremos adiante.

Nessa dimensão entende-se a razão por que a 3. A infiltração e a escuta ambiental

limitação dos direitos fundamentais não é auto-aplicável e 3.1. Questão prévia

porque o juiz sempre terá de julgar as situações concretas, Antes porém de cuidar de examinar como a Lei n.

padecendo de inconstitucionalidade os dispositivos legais 10.217/01 entrou em rota de colisão com a Constituição da

que imponham, automaticamente, restrição ao exercício de República, no tocante à violação indevida de direitos

direitos fundamentais sem apreciação da necessidade, individuais fundamentais, vale dedicar algumas palavras ao

adequação e proporcionalidade das medidas de limitação7, tipo legal de crime organizado ± ou mais precisamente, ao

como ocorre, por exemplo, com a proibição de deferimento tipo legal de crime de associação criminosa, se neste caso

não há heresia no uso do termo precisar.


6 Vale sublinhar que o pacto social contemporâneo concebido pelo
autor, diferentemente da versão liberal clássica engendrada por Com efeito, o tipo legal de crime tem importantes
LOCKE e HOBBES, compreende as distintas posições sociais dos
membros da comunidade e se orienta a reduzir as diferenças naquilo
em que ± para citar BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS ± a funções, estudadas pela dogmática penal, de que salienta a
diferença desfavorece as pessoas.
7 Trata-se de aplicar à hipótese o critério da proporcionalidade,
função de garantia, exercida de modo a permitir aos
definido por CANOTILHO da seguinte maneira: ³2 SULQFtSLR
considerado significa, no âmbito das leis interventivas na esfera de
liberdades dos cidadãos, que qualquer limitação a direitos seja feita indivíduos em geral conhecer com antecedência os
deve ser apropriada, exigível e na justa medida, atributos que
permitem identificar o conteúdo jurídico do cânone da
proporcionalidade em sentido amplo: adequação; necessidade;
proporcionalidade entre meios e fins (sentido estrito).´ 8 Lei n. 8.072/90.
comportamentos penalmente proibidos, assegurando-lhes a O nullum crimen nulla poena sine legem, deduzido

possibilidade de omitir a conduta capaz de violar a norma do artigo 5o, inciso XXXIX, da Constituição da República,

penal. não se satisfaz apenas com a estipulação prévia da conduta

Para tanto, é imprescindível que a lei penal penalmente relevante. Para que haja perfeita harmonia entre

incriminadora contenha termos e expressões de significado a norma penal incriminadora e a regra constitucional de

inequívoco, isto é, unívoco9, para que a conduta vedada seja garantia é indispensável que a lei realmente defina a conduta

passível de ser apreciada e compreendida por todos. De nada censurável, indicando claramente os seus elementos e as

serviria pois um tipo penal contendo palavras de sentido suas circunstâncias10.

variado, duvidoso, impreciso e até mesmo contraditório, Desde o advento da Lei n. 9.034/95 advertíamos

carecedor de eficácia para orientar o comportamento dos para a grave situação deflagrada por seu artigo 1o., uma vez

indivíduos desejosos de evitar a comissão do ato ilícito penal. que, fazendo menção de regular meios de provas

A mera estipulação prévia, em lei penal, ainda que votada concernentes a associações ou organizações criminosas,

regularmente pelo Parlamento e introduzida de maneira girava sua bateria indistintamente para os integrantes de

formalmente regular na ordem jurídica, não sana deficientes quadrilhas ou bandos, como é natural na forma definida no

redações de tipos penais, com abuso de expressões vagas, artigo 288 do Código Penal11.

ambíguas e polissêmicas, sendo por si só fator de invalidade A atenção foi reivindicada principalmente para o fato

da norma jurídica em posição de contrariedade com a ordem de a lei em questão autorizar providências de intensa

constitucional.

10 Assim, FRANCISCO ASSIS TOLEDO, em Princípio Básicos de


9 JUAREZ CIRINO. Direito Penal, São Paulo, Saraiva.
restrição de direitos fundamentais ± algumas das quais indistintamente, sem a prudência inerente ao critério da

inconstitucionais ±, que poderiam ser aplicadas a autores de proporcionalidade.

infrações penais de escassa gravidade e mesmo aos Para fugir ao desacerto legal parte da doutrina

integrantes de bandos cuja existência, embora perturbadora inclinou-se a sustentar que o legislador havia criado novo

da tranqüilidade social, poderia ser controlada sem recurso a tipo de delito de associação ± tomar parte de organização

medidas extremas. De frisar, uma vez mais, na linha do criminosa -, chegando a indicar os novos elementos em cuja

magistério de CANOTILHO, que a adoção de recursos presença seria possível falar em organização criminosa12.

capazes de cercear o exercício de direitos fundamentais está Ocorre, todavia, que a função de criação de tipos

na direta dependência da necessidade de adotá-los, na penais é reservada, com exclusividade, ao legislador, nos

medida em que de outro modo não é possível evitar a lesão termos do mencionado inciso do artigo 5o, da Constituição

de direitos igualmente significativos e fundamentais. da República. Desse modo, constatando-se a impossibilidade

Na verdade, o alvo da política criminal espelhada na de distinguir em abstrato quais são os destinatários das

Lei n. 9.034/95 eram as organizações criminosas medidas restritivas, sem com isso invadir a seara da lei,

responsáveis por crimes de expressivo potencial ofensivo, ficam os juízes impedidos de aplicá-la. Essa é a única solução

marcadamente os de corrupção estrutural e os violentos, de que preserva a integridade da Constituição mas não foi a

índole patrimonial. Portanto, as medidas de restrição então eleita pelos tribunais.

incorporadas ao arsenal de controle da criminalidade grave


Organizado, Niterói, IMPETUS, 2000.
poderiam, dada a defeituosa redação da lei, ser aplicadas 12 Assim, por exemplo, LUIZ FLÁVIO GOMES reivindica para as

organizações criminosas a previsão de acumulação de riqueza


indevida; hierarquia estrutural; planejamento empresarial, uso de
meios tecnológicos sofisticados, alto poder de intimidação, conexão
11 Ver GERALDO PRADO e WILLIAM DOUGLAS em Crime local, regional ou internacional com outra organização criminosa etc.
É provável, todavia, que o alerta da doutrina tenha O anteprojeto de reforma da Parte Especial do

repercutido nos gabinetes governamentais. Como podemos Código Penal, no Título VIII ± Dos Crimes Contra a Paz

observar com facilidade, o novo texto do artigo 1o, da Lei n. Pública ± inova com redação mais feliz que a atual. De

9.034/95, com a redação que lhe confere a Lei n. 10.217/01, acordo com sua exposição de motivos, destacando que ³R

procura deixar evidente o alcance dos dispositivos legais, fato está em expansão não só no Brasil como no exterior. Se

assinalando que os meios operacionais para a prevenção e a Quadrilha ou Bando, como anota a doutrina, quase

repressão de ações praticadas por organizações criminosas sempre se ajusta aos crimes de bagatela, diferente,

poderão ser utilizados em procedimentos de investigação preocupando se apresenta a ± Organização criminosa (art.

que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas 278)´ VXEOLQKD RV FRQWRUQRV GR WLSR SHQDO Sroposto,

por quadrilhas ou bandos ou, frise-se, associações oferecendo a seguinte redação: ³Constituírem, duas ou mais

criminosas de qualquer tipo. pessoas, organização, comprometendo ou tentando

Portanto, no lugar de corrigir a redação infeliz do comprometer, mediante ameaça, corrupção, fraude ou

texto original, optou-se pela via flagrantemente

inconstitucional, ao negar a diferenciação necessária,


real´ $172/,6(, - Manuale di Diritto Penale - Parte Speciale - II -
reconhecida por várias legislações de outros Estados, como é
Crime contra a ordem pública). GAETANO NANULA (1996), in La
o caso da Italiana, que trata da associação de tipo mafioso13. Lotta Alla Mafia, e GIULIANO TURONE (1995), in Il Delito di

associazione mafiosa, caracterizam a associação de tipo mafioso por

13 A Associação de Tipo Mafioso - artigo 416 bis do Comissões uma rigorosa hierarquia de poder e de funções, exprimindo, ainda,

Parlamentares de InTXpULWR SHOD GRXWULQD LWDOLDQD SUHVVXS}H ³Uma uma poderosa força de intimidação, derivada da eficiência, da unidade

lógica de domínio e de conquista ilegal e violenta do espaço de poder indecifrável e da estrutura organizacional, sujeitando seus integrantes
violência, a eficácia da atuação de agentes públicos, com o O argumento primário dos que postulam expressiva

fim de cometer crimes ± RecluVmR GH TXDWUR D RLWR DQRV´ restrição da proteção à intimidade e vida privada costuma

Ainda conforme a exposição de motivos ³EXVFD-se impedir estar fundamentado politicamente na concepção de que a

também a conexão internacional. Aliás, a literatura garantia destes interesses se coloca como questão típica do

TXDOLILFDHVVHGHOLWRFRPRµ&ULPHVHP)URQWHLUD¶´ direito burguês e que tratar do acesso a informações nesse

Do jeito que está na Lei n. 10.217 a nível significa assegurar a proteção de criminosos do

inconstitucionalidade persiste, uma vez que não diferencia colarinho branco e membros de oligarquias corruptas

situações desiguais, permitindo ao juiz analisar os casos em encastelados nos governos, agentes políticos que

que será necessário reprimir mais intensamente o exercício historicamente estiveram bem protegidos pelo Direito e são

de determinados direitos elementares à dignidade da pessoa grandiosos em suas fraudes e danos que causam a um

humana. número expressivo de pessoas.

Na ótica da efetividade dos direitos que constituem o

3.2. A proteção da intimidade e da vida privada esqueleto normativo do denominado Estado de Direito, na

Examinando agora as novas técnicas de investigação América Latina, é certo que a profundidade e extensão da

introduzidas pela Lei 10.217, é certo que há visível tensão aplicação destes direitos revela-se como mais uma entre

entre elas e a tutela da intimidade e da vida privada. tantas práticas de discriminação e controle social autoritário.

Com efeito, há direitos civis reconhecidos desde a

Constituição do Império do Brasil. A atuação prática destes


à omertà. O tipo penal alcança até mesmo as influências da

organização sobre as ações político-partidárias. direitos, todavia, na maior parte das vezes esteve dirigida à
proteção dos grupos sociais historicamente mais bem injustiça social a pretensão de tutela de interesses vitais para

situados na pirâmide social. Não há erro em afirmar que a todas as pessoas, com independência da sua situação social,

República foi proclamada, no caso brasileiro, mas o nem tampouco deixar de reconhecer que determinados

sentimento republicano raramente foi compartilhado por direitos não são essencialmente fundamentais14, muito

pessoas de todos os segmentos sociais. Isso se deve ao fato de embora sejam tratados como se fossem, ampliando

a República ± como a monarquia pós-independência ± terem indevidamente o âmbito de segurança de valores que

sido movimentos políticos verticais, produzidos de cima para realmente dizem respeito a apenas uma fração da

baixo, do cume para a base da sociedade, base esta que, comunidade.

excluída do gozo das riquezas, permaneceu durante longo Pelo contrário, o viés estritamente discriminatório

tempo desconhecendo o significado da cidadania. que marcou a dura relação entre exercício de direitos

Isso marca sobremodo a percepção peculiar ao senso fundamentais e a condição de determinados atores políticos

comum, nos quadrantes dos países periféricos e semi- serve para demonstrar de que maneira a manipulação destes

periféricos, de que os direitos fundamentais são, na direitos funciona como fonte de contenção das reivindicações

realidade, escudos artificiais de que se valem parcelas das sociais e de que forma a ampliação, tanto no nível horizontal

elites para elidir sua responsabilidade quando flagrados (dos sujeitos que devem ser protegidos das ações contra seus

violando a norma penal. direitos fundamentais) como vertical (da profundidade da

A disfunção histórica em termos de efetividade de proteção, com a implementação de ações judiciais de fundo

direitos fundamentais no Brasil e no restante da América


14 Como é o caso do sigilo bancário, que está baseado em relação de
Latina não nos permite, no entanto, tomar como medida de confiança mas que terminou sendo interpretado, equivocadamente ao
nosso juízo, como emanação da personalidade.
constitucional) poderá servir de instrumento para Diferentemente das tendências de criminologia

neutralizar a tendência de congelamento da atual situação de crítica e sociologia do direito penal, o Movimento de Lei e

desigualdade15. Ordem, a que se filiam as práticas de política criminal

Desprezar a função política dos direitos orientadas à restrição dos direitos à intimidade e vida

fundamentais é, ao meu juízo um enorme equívoco, como privada17, estipula funções basicamente repressivas para

salienta igualmente LÖIC WACQUANT em sua obra PUNIR conter os grupos sociais rebeldes, setores da sociedade que

OS POBRES: A NOVA GESTÃO DA MISÉRIA NOS supostamente põem em risco a lógica do capital e do

ESTADOS UNIDOS16. mercado18.

O exame das estratégias que unem políticas sociais e O fenômeno da criminalidade transnacional, em

criminais em torno do controle social punitivo, nos países grande medida expressão do caráter transnacional que

centrais, demonstra como a penetração na intimidade das caracteriza a economia da era da globalização, com seu

pessoas que integram os chamados grupos sociais marginais permanente e descontrolado fluxo de capitais, recebe o

ou suspeitos (as minorias que atemorizam o imaginário das tratamento de criminalidade grave à semelhança do modelo

classes médias) pode ser empregada para criar novos guetos, de criminalidade política que na década de 1970 marcou

dominados por um moderno, complexo, competente e difuso


17Filiação evidente tanto da Lei n. 9.034/95 como da Lei n. 10.217/01.
PANÓPTICO. 18 Na obra mencionada LÖIC WACQUANT sublinha que as políticas
sociais são quase inexistentes ou nulas e não criam condições reais
para a transferência de rendas e universalização dos benefícios
decorrentes do emprego prático das novas tecnologias. Por outro lado,
as agências sociais norte-americanas dispõem de um completo banco
15 Penso que a difusão dos direitos fundamentais ± políticos e sociais ± de dados que permite controlar as populações empobrecidas, fazendo
contém enorme potencial de transformação da sociedade, com fluir dos bancos de dados sociais aos criminais e vice-versa
capacidade para romper as barreiras erguidas pelas diferenças informações vitais para determinar, por exemplo, áreas de
econômicas e sociais. concentração das populações negras e orientar as investigações
16 Ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 2001. criminais em cima do conhecido perfil de criminoso.
Itália e Alemanha. Com isso, o aparato bélico legalizado fator de corrupção e violência, degradando as relações entre

nestes países ganha insuspeita credibilidade, como conjunto a população e as autoridades. Isso acontece no cotidiano das

de recursos eficazes para a descoberta de criminosos cidades brasileiras, quando as casas da periferia são

perigosos e a punição deles. invadidas sem mandado e quando os informantes da polícia

De lembrar, com MANUEL AUGUSTO ALVES de fato fazem parte dos grupos de criminosos que a mesma

MEIRES19, que é da legislação anti-terrorismo que emerge, polícia devia tentar controlar, de tal maneira que para as

ao nível legislativo, a figura do provocador, parente direto do populações das áreas carentes acaba sendo tarefa difícil

nosso infiltrado, aceita pelo Tribunal Constitucional Alemão, delimitar o espaço dentro do qual os agentes do poder

SRU VXSRU D HILFiFLD GD MXVWLoD SHQDO ³indispensável à público atuam para defendê-las daquele outro em que estas

realização da justiça material´20. mesmas populações são reféns destes agentes como o são

Posta nestes termos, a questão da eficácia repressiva dos grupos criminosos.

destes instrumentos encobre os efeitos negativos que o Nos países centrais o sistema de garantias funciona

cotidiano da justiça criminal no Brasil não cansa de relativamente nas oportunidades em que é acionado para

constatar: a ausência de controle real sobre os agentes proteger os cidadãos. No Brasil e no restante da América

encarregados da investigação criminal, quando estes são os Latina o sentimento difuso de que as garantias processuais

únicos responsáveis pela gestão das técnicas de investigação não alcançam os mais pobres é reforçado pela certeza de que

que invadem o âmbito privado das pessoas, atua como forte os Estados não dispõem de Defensorias Públicas

permanentes e bem equipadas. Aliás, sequer um sistema


19 O Regime das Provas Obtidas por Agente Provocador em Processo

Penal, Coimbra, Almedina, 1999, p. 27. judiciário com plantões freqüentes é encontrado em todos os
20 Idem, p. 28.
lugares, de modo a garantir o rápido acesso à justiça recrutados nas periferias, distinguindo aí, mais uma vez, os

daqueles eventualmente atingidos por atos arbitrários. modelos de criminalidade conforme o grupo social a que

Ora, se diante de quadro semelhante o PANÓPTICO pertencem os agentes de delito.

se instala nos Estados centrais para, a pretexto de combater Neste cenário comprometido pela violação da

a criminalidade, controlar imensas parcelas dos grupos intimidade e vida privada, com escuta ambiental e atuação

sociais tidos como potencialmente perigosos (imigrantes de agentes infiltrados, o chamado direito à

latinos, negros etc.), como supor que no Brasil ± e em AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA, compreendido

qualquer outro país da América Latina ± a liberdade de como direito de o sujeito sobre o qual são armazenadas

invasão na esfera da vida privada e intimidade não servirão informações conhecer previamente os limites de emprego

exatamente para acentuar o grau de discriminação que futuro dessas mesmas informações, está previamente

caracteriza nossos sistemas penais? prejudicado. E mais. Não obstante a exigência legal de o juiz

Até porque, somente para ficarmos com um singelo deferir ambas as medidas ± autorização para que agentes

exemplo, retirado do campo de (im)possibilidade de policiais sob disfarce se infiltrem em quadrilhas e bandos e

aplicação da Lei n. 10.217/01, de onde virão os agentes escuta ambiental ± é indiscutível que nenhum controle

policiais que estarão infiltrados nos órgãos dirigentes dos judicial sobre as informações coletadas e até mesmo sobre as

grandes grupos econômicos, se porventura houver suspeita ações levadas a efeito pelos infiltrados será eficaz.

da prática de crimes do colarinho branco?21 Parece evidente Neste sentido, a lei brasileira criou condições para os

que o alvo são as quadrilhas formadas por sujeitos agentes infiltrados decidirem questões que em muitas

21 No Seminário a que me referi na nota 1 esta foi das indagações da


hipóteses um único Ministro do Supremo Tribunal Federal correção e a proteção absoluta do âmbito básico da pessoa22,

não poderia decidir sem fundamentar sua decisão e é incontestável que pelo menos nestes dois últimos aspectos

submetê-la ao controle do colegiado e do Ministério Público: haverá grave atentado contra a liberdade com a efetivação

tal seja, se é caso ou não de entrar em determinada quer da escuta ambiental quer da infiltração.

residência e ouvir as conversas alheias, interceptando-as por Em NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO

qualquer meio! PROCESSUAL23 ADA GRINOVER advertia para as graves

A constante atuação do infiltrado colocará insolúvel conseqüências advindas do emprego da escuta ambiental.

problema de ordem processual-constitucional: como não SubOLQKDYDDPHQFLRQDGDDXWRUDTXH³o interrogatório sub-

compreendê-la como violação das comunicações e do reptício do indiciado ou acusado, clandestinamente

domicílio sem ordem judicial e como não atentar para a gravado, constitui inequivocamente prova ilicitamente

flagrante violação da AUTODETERMINAÇÃO obtida, não só em face dos princípios gerais (de proteção à

INFORMATIVA? vida privada) acima expostos, mas ainda por contrariar

Aceitando a posição defendida por HASSEMER e frontalmente as regras de advertência quanto ao direito ao

SÁNCHEZ, de que o direito à AUTODETERMINAÇÃO silêncio, incluído na garantia do nemo tenetur´

INFORMATIVA ± que não é nenhum invento de nossos dias A infiltração, por sua vez, representa verdadeira

- tem como elementos constitutivos a transparência do autorização em branco, dada pelo juiz, para que o agente

desenvolvimento para o cidadão, possibilidades de controle e


22 HASSEMER, Winfried e SÁNCHEZ, Alfredo Chirino. El Derecho a
la Autodeterminación Informativa y los Retos del Procesamiento
Automatizado de Datos Personales, Buenos Aires, Del Puerto, 1997,
p. 6.
23 GRINOVER, Ada Pellegrini, Rio de Janeiro, Forense Universitária,

platéia, que realçou o caráter discriminatório da chamada infiltração. 1990, p. 67.


infiltrado ingresse nos mais variados domicílios, suspeitos Na minha opinião, o controle repressivo da

ou não de abrigar provas de infrações penais, criminalidade passa pelo aperfeiçoamento das polícias, a

independentemente do exame judicial prévio de estrita disposição de maiores e melhores recursos materiais e o

necessidade, adequação e proporcionalidade em cada respeito à dignidade dos policiais que atuam em todas as

oportunidade! etapas ± preventivas e de investigação ± que compõem o

Mais grave: a lei permite que o agente infiltrado não circuito de atuação diretamente em contato com as práticas

integre os corpos das polícias responsáveis pela investigação delituosas. Isso não significa que os índices de criminalidade

criminal, indiciando perigosa tendência de militarização da recuarão significativamente, pois é certo que há outros

tarefa de persecução penal, sem embargo de uma nociva vetores ± políticos, econômicos e sociais - que influenciam

espécie de cooperação penal internacional, que poderá decisivamente o processo de incriminação e que parecem

comprometer nossa soberania. não ser afetados imediatamente pela capacidade de reação

do sistema repressivo.

4. A título de conclusão A restrição de direitos fundamentais, por sua vez ±

As medidas previstas na Lei n. 10.217/01 apontam remédio vendido às escâncaras no mercado global ±, poderá

um falso problema: são inconciliáveis as demandas de produzir mais presos mas não necessariamente mais justiça,

punição dos autores das infrações penais se não houver mesmo quando se tem em mente tão-só as decisões do

drástica restrição ao exercício de certos direitos judiciário criminal.

fundamentais. O resultado provável da limitação dos direitos

fundamentais em Estados de escassa tradição democrática e


republicana tende a ser, segundo penso, o aumento das

posições sociais vulneráveis e a fragilidade das próprias

instituições democráticas para atender as demandas sociais.

A promiscuidade no trato de direitos fundamentais nada

acrescenta à cultura da indispensabilidade destes direitos e

ao importante valor da dignidade de todas as pessoas que

integram o grupo social, elemento básico de coesão da

comunidade e de constituição de um ambiente de

solidariedade, compreensão e harmonia.

GERALDO PRADO

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