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O RAPTO IDEOLOGICO DA CATEGORIA SUBURBIO RIO DE JANEIRO 1858 | 1945 Nelson da Nobrega Fernandes 1 Nelson da Nobrega Fernandes ‘rodos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edica0 pode ser utilizada ou reproduzida - em os veto ow formula, seja mecanico ou eletrOnico, por fotocdpia, por gravacio etc, ~ nem Sropriada se crocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorizacio da editora, Este livro esté revisado segundo o Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa de 1990, que entrou ‘em vigor no Brasil em 2009 Edicho apoiada pela Fundasio Carlos Chagas Filho de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Copyright © 201 Janeiro (FAPER)) Editora responsavel ROSANGELA DIAS Preparacao de originais MAIRLON MELO Revisao CAROLINA LIPPI Revisio tipografica MAIRLON MELO Capa e projeto grafico JOAO MARCELO (O Méier e sua paisagem urbana na década de 1950. Acervo Instituto Brasileiro de Geografia ¢ Estatistica (18GE) CIP-BRASIL. CATALOGACAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ F398R FERNANDES, NELSON DA NOBREGA y O RAPTO IDEOLOGICO DA CATEGORIA SUBURBIO : RIO DE JANEIRO 1858/ 1945 / NELSON D* NOBREGA FERNANDES. - RIO DE JANEIRO : APICURI, 2011. 176P, INCLU BIBLIOGRAFIA ISBN 978-85-61022-60-0 on 1. SOCIOLOGIA URBANA. 2. SUBURBIOS - RIO DE JANEIRO (R)). 3. TERRITORIALIDADE HE 4. URBANIZAGAO - RIO DE JANEIRO (RJ). 5. RIO DE JANEIRO (RJ) - Historia. 1. Titul 11-7290. CDD: 307.76098153 CDU: 316.334.56(815.3) 030986 27.10.11 07-11-11 AGRADECIMENTOS Este trabalho foi possivel gracas ao apoio de diversas pessoas e institui- g6es. Ao Instituto do Patriménio Histérico e Artistico Nacional (IPHAN), especialmente, ao escritdrio técnico do municipio de Vassouras, pela reta- guarda institucional concedida. Ao Conselho Nacional do Desenvolvimen- to Cientifico e Tecnolégico (cnpq), pela bolsa de mestrado, e a Fundacio Carlos Chagas Filho de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (rapeR}) pelo apoio financeiro para a sua publicacao. A professora Ind Elias de Castro, cuja orientagao se pautou pelo vivo interesse, podando irrefre- aveis excessos, sem empobrecer a complexidade e a paixao. Por tudo isto, © meu mais profundo agradecimento. Ao professor Mauricio de Almeida Abreu, pelas indica¢ées preciosas e essencial contribuicio para o desenvol- vimento da pesquisa sobre a cidade e 0 subtirbio do Rio de Janeiro. Ao pro- fessor Roberto Lobato Corréa, pelo estimulo e pelas ferramentas tedricas fundamentais ao desenvolvimento da discussao sobre a organizacao inter- na das cidades. A professora Ana Clara Torres Ribeiro, que sempre ofertou seu entusiasmo critico e sua sensibilidade. Aos amigos, Elizabeth Dezouzart Cardoso e Marcio de Oliveira Pifion, pela constante manifestagao do dese- jo da realizagao deste trabalho. A Paulo César Pires Menezes, pelo socorro providencial e afetuoso no processo de edigao da Tese. A Antonio Carlos de Souza de Lima, pelo apoio em todas as frentes possiveis. A Hélio Vianna, por suas palavras que foram luz em meio as brumas da inseguranga. A Taam Salim Assaad, sempre um grande amigo, em cuja biblioteca encontrei refe- réncias fundamentais para a realizagao deste trabalho. A Isabel Rocha, por sua compreensao, incentivo e acolhida na cidade de Vassouras. A professora Claudia Teresa Tavares da Silva, pela revisdo de nossos escritos ¢ sua auspi- ciosa e abalizada consideragio de que este trabalho pode ter algum interesse para o campo da literatura, indicando que trilhamos certos caminhos trans- disciplinares. A professora Ana Maria de Paiva Macedo Brandao, por aco- lher generosamente um cansado viajante que, muitas vezes, fez de sua sala um revigorante pouso. A Jasson Mendes Carlos, exemplo de perseveranga luta, pela finalizacao eletrénica dos mapas e figuras. PREFACIO. N INTRODUCAO 15 Capitulo] | SuBURBIOS 1.1 = Breve panorama do subdrbio na histéria da cidade 19 1.2 -O conceito carioca de subtrbio 33 1.3 - Delimitagao espago-temporal do subtirbio no Rio de Janeiro 39 Capitulo 2 | O CONCEITO CARIOCA DE SUBURBIO COMO FENOMENO IDEOLOGICO 2.1 — Mito ou ideologia? 45 2.2 — As ideologias e as palavras 47 2.3 — O significado do espaco e da categoria subirbio no século xx 53 2.4—O “rapto ideolégico” da categoria subtirbio 58 Capitulo 3 | RELACOES ENTRE TEORIA E IDEOLOGIA NA REPRODUGAO DO CONCEITO CARIOCA DE SUBURBIO 3.1 - Consideragées preliminares 69 3.2 - Bases da interpretacdo da estrutura urbana do Rio de Janeiro segundo o padrao tradicional latino-americano ee 3.3 -O modelo setorial de Hoyt como padrao geral da urbanizacio capitalista 73 3.4 -O desenvolvimento do modelo de Hoyt na estrutura urbana do Rio de Janeiro 82 3.5 - A reificacao do conceito carioca de suburbio ¢ 0 pensamento sobre a estrutura urbana do Rio de Janeiro 89 O RAPTO IDEOLOGICO OA CATEGORIA SUBU?B'O Capitulo 4 | RELEITURA HISTORICA DO ESPACO E DA CATEGORIA SUBURBIO NO RIO DE JANEIRO DA SEGUNDA METADE DO SECULO XIX 4.) - Problemas e premissas na interpreta¢ao do suburbio carioca na segun. 94 da metade do século x1x 4.2 - Suburbios “a la” Burgess na estrutura urbana do Rio de Janeiro da segunda metade do século x1x? 4.3 - O papel dos bondes e dos trens na evolugao dos suburbios no século xix 4.31 - A opacidade dos bondes na formagao dos suburbios ferrovidrios | 4.3.2 - A expansao suburbana nos setores sul e norte da cidade promovida pelos bondes 433 - O lugar da ferrovia na ocupacao dos suburbios do século xx 120 4A - Significado social e perspectiva do subtirbio ferroviario no contexto da expansao suburbana da segunda metade do século xx 1 Capitulo 5 | A PRODUGAO E OS SENTIDOS DO CONCEITO CARIOCA DE SUBURBIO (1889-1945) 5.1 - A produgao do conceito carioca de suburbio (1889-1945) 5.2 - A ideologia do habitat entre nds, a producdo e o sentido do conceito 144 143 carioca de suburbio 5.3 - O conceito carioca de subtirbio: uma estratégia de desmoralizacao da 150 classe trabalhadora CONSIDERACOES FINAIS 161 BIBLIOGRAFIA 165 PREFACIO \ /~ X30 éde hoje que os suburbios aparecem como o lugar de desaguadouro\\ das tramas das cidades, extensao de suas malhas e depositario de oo) @ solucdo para os seus problemas ¢ dilemas. No apenas 0 Estado tem convergido seus projetos para os suburbios, como decorréncia do crescimento ¢ expansio urbana das cidades contem- porineas. Tanto a burguesia, com a instalagdo de suas empresas ou residén- cias, tantos os incorporadores imobiliérios e sua voracidade especulativa, as classes médias e trabalhadoras nos seus diferentes matizes, tem encontrado nos suburbios um lugar de abrigo ou de disputa privilegiada para a sua re- produgao no espaco urbano. ‘Em nossas grandes cidades ou metrépoles (e esse € um fendmeno que também jd se estende as cidades médias), os subtirbios tem dado lugar ao que se chama de “periferia” - com forte estigma social, lugar de moradia de populacao de baixa renda, sem infraestrutura e equipamentos urbanos — ‘ou mesmo a condominios “chiques”, como Alphaville e outros congéneres, em geral murados e apartados espacialmente, buscando, pela negagao da “cidade-problema’, afirmar, no contraponto, as suas amenidades. Esse ponto médio entre o campo e a cidade, mais claramente identifica- do no passado, como seus arredores ou arrabaldes, esse lugar de espaciali- dade plastica e de constantes transformagées econémicas e sociais, é cada vez menos facilmente identificado como tal, a medida em que a urbaniza¢ao avanga e estende o tecido urbano sobre o campo, modernizando-0 e tornan- do-o mais assemelhado a cidade e ao seu modo de vida. Assim, se por um lado o processo de urbanizagao e de produgao do ur- bano torna mais dificil e complexo o emprego da categoria suburbio na no- minagio de espacos periurbanos e de mediacao geografica, cultural e social, Por outro, “a visdo de sobrevdo” a que se refere Marcelo Lopes de Souza,! em trabalho recente, também se aplica, a nosso ver, a categoria suburbio. A obra de Nelson da Nobrega Fernandes, O rapto ideoldgico da categoria subtirbio: Rio de Janeiro 1858/1945, € uma busca na diregao do esclareci- 1 “Considerar as sociedades e seus espacos a partir de uma ‘visio de sobrevéo' implica ana- lisé-los do alto’ ea distancia’ (..} Signfica, essencialmente, emular ou adotar a perspectiva tipica do aparelho de Estado". Souza, M. L. A cidade, a palavra e o poder: praticas, imagina. Fos e discursos heterdnomos e autnomos na produgao do espaco urbano In: Cantos A. F A Souza, M. L; Spostto, M. E. B. (orgs.). A produ : . ME. sao do espaco urbano: escalas edesafos. Sao Paulo: Contextos 2011. p.148. asnaitntedea sep nls: categoria suburbio, de seu uso estereotipado e senso comum na cidade do Rio de Janeiro, na historia e na cultura da cj. mento ¢ desmistificagao da ideolégico que permeia todo 0 Para tanto, Fernandes procura re dade, 0 Conceito de Suburbio € 0s se cuperar, us usos e aplicagdes na vida urbana, a ratura académica, referentes ao tema partir de importantes classicos da lite em diferentes areas do conhecimento. A didlogo entre Lewis Mumford ¢ Henri Lefe sobre o suburbio, A primeira aborda 0 suburbio d que exclusivamente como um espago destinado as el ! constituindo-se, assim, em refugio da cidade insalubre e socialmente pe. rigosa. A segunda sustenta que a ideologia do habitat foi uma estratégia de classe bem sucedida em seu objetivo de empurrar o proletariado para 0 0 fazé-lo, o autor estabelece um rico febvre, em duas vis6es distintas 10 da cidade moderna quase ites e classes médias, suburbio na cidade industrial. Em seguida, o autor mergulha densamente na génese do que foi deno- minado pela gedgrafa Maria Therezinha Segadas Soares como “o conceito carioca de suburbio”, nos conduzindo pelos meandros da cidade do Rio de Janeiro € sua evolucao urbana, a partir de meados do século x1x. Em sua anilise, situa-nos sobre 0 sentido e a nogdo de suburbio em uma perspec- tiva espaco-temporal, nos lembrando que o suburbio era um confim que estava logo ali e articulado pelos trens e pelos bondes a vida cotidiana da cidade. Bairros que nos dias atuais estao longe do rétulo “suburbano”, como a Gavea, Botafogo e Sao Cristovao, eram denominado suburbios na cidade do Rio de Janeiro de entdo, o que nos causaria grande estranheza nos dias de hoje. Para Fernandes, “o conceito carioca de suburbio”, embora justificado aca- demicamente, apresenta-se como um fendmeno ideoldgico, fruto de uma es- tratégia de desmoralizacao da classe trabalhadora na cidade do Rio de Janei- _fo, uma vex que apenas os “bairros ferrovidrios e populares, desprestigiados _tanto do ponto de vista social quanto pelo poder publico”, permaneceram 2M 9 nome subuirbio. Apoiado em Henri Lefebvre, o autor langara mao da nogao de rapto ideologico de categorias sociais e espaciais para explicar 4 ocorréncia de tal fendmeno, seu desenvolvimento e permanéncia. oe) A obra tem como grande mérito, nao apenas o esforco de desmistificar © conceito de suburbio tornado ideoldgico na cidade do Rio de Janeiro, come estabelecer um didlogo critico entre modelos de interpretacées tedricas OU Icituras sobre a estrutura urbana, 0 padrio geral da urbanizagao capitalist@ a realidade empirica da cidade, peerAc Por fim, cabe ressaltar a clareza ¢ fluidez do texto que, passo a paso, nos permite rever 0 nosso olhar sobre a cidade do Rio de Janeiro € exca para leituras dualistas ¢ distorcidas do seu processo de urbanizay.io, Cujo. conceito carioca de suburbio apresenta-se, de fato aqui, como um “concerto ~ obstaculo”, impeditivo de nos revelar a sua geografia real, sem mascaras € representagoes ideologicas. Marcio Pinon de Oliveira Professor dr. do Programa de Pos-graduayio em Geogratia da Universidade Federal Fluminense INTRODUGAO O tema deste livro é a transformacao da categoria espacial suburbio nos discursos sobre 0 espaco da cidade do Rio de Janeiro, particularmente en- tre os estudiosos que trataram de sua estrutura e evolucao urbana. Nosso objetivo é investigar os processos € as motivacdes que levaram 4 mudanga do significado da categoria subuirbio nesta cidade, jA que desde o inicio do século xx ela passou a representar uma realidade bastante estranha ao seu sentido geografico original. Seguimos trilhas abertas pela professora Maria Therezinha Segadas Soares que, na década de 1950, verificando a extensio da especificidade da categoria subirbio entre nés, fez uma profunda pro- posigao da existéncia de um/conceito carioca de subirbio. Sendo assim, voltamo-nos para o estudo da produgao e do sentido do conceito carioca de suburbio tal como definido por Soares." A importancia das observagées de Soares nao se limita ao reconheci- mento ea identificagao de que a palavra suburbio no Rio de Janeiro é desig- nacao conferida apenas aos bairros ocupados pelas classes médias baixos extratos sociais dispostos ao longo das ferrovias. Na verdade, sendo uma categoria do senso comum, tal significado pode ser facilmente constatado no linguajar corrente do Rio de Janeiro. Por isto mesmo, gedgrafos, socid- logos e arquitetos que trataram da cidade e do subtirbio carioca, a exemplo de Lysia Bernardes, Frederic Morris, Pedro Geiger, Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Anthony Leeds & Elizabeth Leeds e Mauricio Abreu, anotaram tal particularidade e sempre procuraram deixar claro que o que se entende _por subuirbios no Rio de Janeiro so apenas bairros ferroviarios e populares, desprestigiados tanto do ponto de vista social quanto pelo poder publico. Nesta discussio, Soares tem rélevincia nao s6 por ter elevado tal par-_! ticularidade a situacdo de um conceito, mas, sobretudo, porque apontou este significado como algo novosfruto da histé: iayum detalhe essencial que muitos outros nao deram a devida atengao. Ao contrario do que estes nos levam a crer, nem sempre a palavra suburbio significou, entre nés € antes de tudo, falta de cultura e sofisticacdo, como identificou Morris (1973, p.22). Além de situar sua particularidade geografica - um conceito carioca — Soares estabelece sua historicidade quando demonstra que, até o final do 1 Nos trabaihos de ‘Therezinha Soares e Lysia Bernardes produzidos nas décadas de 1950 ¢ 1960 estio grande parte das fundacdes da geografia urbana carioca. Em prefécio de uma Coletanea desses trabalhos, publicada em 1987, Milton Santos afirmou que eles logo se con- Verteram em “verdadeiros classicos, nao apenas da Geografia, mas da literatura explicativa do Brasil” (Santos, 1987, p.9). ORAPTO IDL OLOGICD DA CATEGORI Si io conservava seu velho significado de zong indo qualquer sentido socialmente deprecia. alde,? suburbio era igualmente empregad, lo xx com grande densidade de residén. Sao Cristovao, Botafogo, Engenho Ve. século x1x, a palavra suburb periférica 4 cidade, nao possuii tivo. Assim como a palavra arrab: para as periferias urbanas do sécul cia das camadas superiores: como lho, Engenho Novo. Soares assinala q veio a se instalar a partir das primeiras Ihe uma historicidade fundamental para o desenvolvimento de nossa hi- potese central: a categoria suburbio foi objeto de um rapto ideolégico no ue 0 conceito carioca de suburbio sé décadas do século xx, conferindo- Rio de Janeiro. A nogao de rapto ideoldgico de categorias sociais e espaciais foi expos- ta pela critica do filésofo Henri Lefebvre ao empirismo, 4 despolitizacao ea falta de espessura histérica predominante na sociologia e na geografia (Lefebvre, 1991, p.22-5). Podemos entender o rapto ideolégico Como uma mudanga brusca e drastica do significado de categorias e conceitos, quando entao os atributos mais originais e essenciais que os definiam sao expurga- dos de seu contetido e substituidos por significados novos e completamente estranhos a sua extracdo mais genuina, operacao que, para o socidlogo José de Souza Martins tem por objetivo atender a necessidades politicas e ideo- légicas (1982, p.59-60). Aqueles que descrevem a atmosfera politica e ideolégica do Rio de Ja. neiro do inicio do século xx expdem uma sociedade sedenta em reformara velha cidade colonial e implantar uma ordem espacial profundamente dis- criminatoria e excludente. Principal cidade do Pais em franco processo de modernizacao capitalista, o Rio de Janeiro vivia uma necessidades no plano politico e ideoldgico, reordena¢ao material e simbélica do espago ui modelo perseguido e mais ou menos alcanca (1903 -1906) foi o da célebre reforma urbana € 1869 pelo Bardo de Haussmann, A reforma urbana de Haussmann foi a grande estratégia pela qual a bur- Suesia conquistou Paris e, segundo Henri Lefebvre, constituiu-se de dois grandes atos (1991, p.15). No primeiro ato construiu-se uma nova 4rea central . amplos boulevards, pracas Monumentos, teatros, prédios publi- Cos, hotéis, comércio de luxo - sobre os escombros da cidade antiga, com 4 consequente expulséo de sus antigos habitantes, em sua mei peso conjuntura de grandes especialmente o problema da rbano antigo. Neste sentido, 0 do pelo prefeito Pereira Passos de Paris, executada entre 1853 iTRODUGAO as pobres. No segundo ato para o controle da cidade a burguesia desen- volveu 0 que Lefebvre chamou de ideologia do habitat, que pode ser resu- mida na promogao da casa propria no suburbio como meio de resolver 0 problema da habitacao proletaria. Este dois atos sao visiveis na reforma de Pereira Passos. Contuda, isto nao significa que propomos uma transposicao direta do caso da ideologia do habitat em Paris e a interpretagao deste processo no Rio de Janeiro. Ha diferengas que devem ser levadas em conta. Em primeiro lugar, Lefebvre nao nos fala que o suburbio tenha se tornado uma nogao necessariamente depreciativa e associada exclusivamente a proletarios, pois parte dos suburbios parisienses foram ocupados pelas classes dominantes. Em segundo lugar, ele afirma que a ideologia do habitat em Paris teve 0 sentido de moralizar a classe operdria, garantido na pratica a habitacao su- burbana ao proletariado e, principalmente, alcangando o objetivo politico ¢ ideolégico de colocar “os produtores assalariados naquela hierarquia (...] das propriedades e dos proprietarios, das casas e dos bairros” (Lefebvre, 1991, p.17). A escassez de tal sentido moralizador na pratica da ideologia do habitat no Rio de Janeiro é a principal diferenga para o que foi descrito por Lefebvre, pois, em nosso caso, quase sempre as intengdes e o desenvolvi- ‘a urbana tiveram o sentido exatamente oposto, isto é, pro- mento da pol. curaram desmoralizar 0 suburbio enquanto o lugar das classes subalternas na cidade. Descrevemos a produgao do rapto ideolégico da categoria subtirbio € sua transformagio no conceito carioca de suburbio em cinco capitulos, abrangendo o periodo entre as duas metades dos séculos x1x € xx. No pri- meiro capitulo, partindo do geral para o particular, procuramos estabelecer © significado da categoria e do espago suburbio na histéria, a historicida- de do conceito carioca de suburbio e seus limites no espaco urbano cario- ca da segunda metade do século xx. No segundo capitulo, apresentamos © instrumental tedrico-metodoldgico que utilizamos para a interpretar 0 rapto ideoldégico da categoria suburbio, as origens, o desenvolvimento e a permanéncia do conceito carioca de suburbio enquanto um fendmeno ide- oldgico. No terceiro capitulo, aprofundamos a permanéncia e reprodugao deste fenémeno ideoldégico através de uma revisdo critica das teorias de estrutura urbana aplicadas na interpretacao do Rio de Janeiro, particular- mente do modelo nucleo (ricos) x periferia (pobre) inspirado pela teoria da dependéncia e pela nocao de cidade subdesenvolvida. No quarto capitulo, mostramos como no século x1x a categoria suburbio foi uma representacao 0 RAPTO [OL JLUGICU UA CATELUKIA SUBUMEIU tirbio que se desenvolvey espacial bem diferente do conceito carioca de subi investigamos 0 process e se consolidou ao longo do século xx, bem como i de expansao suburbana, considerando principalmente uma interpretagao re- novada dos modelos de estrutura urbana e do papel dos bondes e dos trens na distribuicao espacial das classes sociais. Dedicamos 0 quinto capitulo ao exame do desenvolvimento da ideologia do habitat no Rio de Janeiro na pri- meira metade do século xx, de modo a compreender como a produgio do espaco subtrbio e 0 conceito carioca de suburbio se entrelagam e expressam, de forma literal, um projeto, uma estratégia e uma pratica politica ¢ ideologi- ca que nega as classes subalternas 0 direito a cidade e de estar na cidade, re Capitulo 1 | SUBURBIOS BAIAO DA PENHA Demonstrando a minha fé Vou subir a Penha a pé Pra fazer uma oragéo Vou pedir a padroeira Numa prece verdadeira Que proteja o meu baido Nossa Senhora da Penha Minha voz talvez nao tenha O poder de te exaltar Mas dé bengdo padroeira Pra essa gente brasileira Que quer paz pra trabalhar Penha, Penha Eu vim aqui me ajoelhar Venha, venha Trazer paz para o meu lar. Guio de Morais e David Nasser 1.1 - BREVE PANORAMA DO SUBURBIO NA HISTORIA DA CIDADE Neste passo inicial, pretendemos proporcionar uma visao do suburbio na historia da cidade e seu significado para a vida e a cultura urbana. A intencao é fixar as variagdes e recorréncias do significado do suburbio ao longo do tempo, em diversos estudos sobre a cidade. Para tanto, afirmamos que é fundamental levar em conta as adverténcias que autores tao diferen- tes, como Lewis Mumford e José de Souza Martins, fazem as perspectivas que orientam os estudos sobre o suburbio. Para o primeiro, “a maior parte dos intérpretes da cidade, ainda ontem, estranhamente deixou de perceber” (Mumford, 1961, p.521) as implicagées ‘SUBLRBIO @.RAPIO IDFOLOGICO OA CATEGORIA SUBLREHO 1m espacial urbana, tratando. u 1] e na orde 0 no conteudo socia leste desconhecimento deve do suburbi eno relativamente recente. Muito d como fendm ser debitado ao imagindrio daqueles: {..] que encabegaram a “marcha da civilizagao"[e] a partir do século xvii, inclinavam-se a mostrar certo desdém para com 0 campo, morada de agricultores atrasados, risticos, sem maneiras ou aristocratas que procuravam 0 prazer 4 cus- ta de suas rendas ¢ nao dos lucros obtidos no comércio € na indistria. Contudo, mesmo entre os lideres € beneficidrios utilitaristas, 0 impulso no sentido de escapar ao ambiente industrial era comum; na verdade possuir riqueza bastante para fugir a cle era marca de éxito (Mumford, 1961, p.521). O segundo também compreende que os estudos sobre a cidade tém por tradigao reservar pouco espaco e atengao para o suburbio, considera-lo fe- némeno recente e conservar uma perspectiva de desdém quanto a realidade suburbana, nao mais por nele ver o lugar do camponés, do aldedo ou da nobreza decadente, mas por imaginar apenas “um suburbio rural, invadi- do pela cultura metropolitana, um subirbio industrial invasor e portador da incultura das concepgdes métricas da fabrica e sua légica linear pobre, opressiva e disciplinadora” (Martins, 1982, p.10). Contudo, quando se observa o suburbio na historia da cidade, tal como Mumford, o primeiro aspecto que salta aos olhos ¢ a sua antiguidade: O fato é que 0 subiirbio se torna visivel quase tao cedo quan- to a propria cidade, e talvez explique a capacidade da sobre- vivéncia da cidade antiga, frente as condicdes de insalubrida- de que predominava dentro de seus muros (Wooley encon- trou restos de nicleos suburbanos fora da drea construida da “Grande Ur” - edificios dispersos, tao distantes quanto 0 templo de al'Ubaid, a seis quilémetros). Se temos dividas quanto ao tracado ¢ ao nucleo central da cidade egipcia, ha tantas pinturas quanto modelos funerarios que nos mostram avila suburbana com seus espacosos jardins. Nos tempos bi- blicos encontramos referéncias a pequenas tendas que eram construidas no meio dos campos e vinhais abertos, talvez Para guardar as safras noite e dia, quando estavam prestes a serem colhidas, mas sem duivida também para refrescar a alma, cansada dos tijolos cozidos e dos maus odores da pré- Pria cidade. Aqueles frageis abrigos ainda sio comemorados nas festas da colheita dos judeus (Mumford, 1982, p.522)- 20 Capitulo | | SUBURBIOS Surpreendentemente para a tradi¢o do pensamento que omite o subur- bio de grande parte da historia da cidade, que deduz de sua posi¢ao perifé- rica 4 cidade a sua valorizacio social, o que se constata, sobretudo na Anti- guidade, é que as circunvizinhangas da cidade, suas paisagens verdejantes, ensolaradas e seus horizontes amplos destinaram-se a frui¢ao, aos prazeres, 4 meditacao, aos esportes e educacdo. Como lembra Mumford, os mora- dores da cidade antiga nao ficaram reclusos em seus muros, esperando que os transportes modernos lhes permitissem alcangar esses privilégios. Com estes elementos é possivel imaginar que desde os periodos mais remotos 0 suburbio foi vinculado ao prazer e as necessidades nobres dos moradores da cidade, ao lado, é claro, daquela agricultura vital para a sobrevivéncia, e por isto seus habitantes eram merecedores de cuidados e protesao. Em todos os tempos os novos grupos ¢ institui¢oes que demandaram espagos, muitas vezes inexistentes em uma cidade congestionada, tiveram que se instalar fora de seus muros. Na cidade helénica era comum o gind- sio, 0 teatro e a academia se situarem no suburbio. E mais recentemente, 0 mesmo foi o lugar do novo e portador de elementos que vieram a caracteri zar a ordem urbana burguesa. Isto foi o que constatou 0 historiador Henri Pirenne na aurora da cidade medieval, na medida em que foi no suburbio comercial, instalado ao lado da cidadela, que encontrou a origem das diver- sas iniciativas que culminaram com a criago da comuna urbana burguesa, seus direitos e cidadania. © povoamento das cidades escapa-nos em seus pormenores. Nao se sabe como os primeiros mercadores que ai se vie- ram fixar se instalaram no meio ou & margem da populagdo preexistente, As cidades, cujos limites abarcavam frequente- mente espacos vazios ocupados por campos ou jardins, for- osamente tinham de lhes fornecer, a principio, um lugar que em breve se tornou demasiado exiguo. E certo que, a partir do século x, em muitas dentre elas, foram forcados a esta- belecer-se fora das muralhas. Em Verdun construiram um recinto fortificado (negotiatorum claustrum), ligado & cida- de por duas pontes; em Rastibona, a cidade dos mercadores (urbs mercatorum), ergue-se, ao lado da cidade episcopal, € ‘© mesmo facto é comprovado em Utreque, Estrasburgo ete (Pirenne, s.d., p.111). Por volta do século x11, 0 subtirbio dos mercadores em muitas cidades j4 encerrava por todos os lados a primitiva cidadela, sendo necessario criar no- a “= ORAPTO IDEOLOSICO DA CATEGORIA SUBUREIO vas paréquias, cujos membros mais abastados contribuiam para a Construcgg de suas igrejas. Foi neste espago que se originaram a guilda e outras forma. de associagdo de classe que pletearam e conquistaram a autonomia urbana, jg, levou Pirenne a concluir que, para a historia da formacio das cidades; © suburbio comercial ultrapassou em muito a importincia do burgo feudal. £ ele que € o elemento-agente e é através dele que se explica a renovacao da vida municipal, que no é senao a consequéncia do renascimento econdmico (Pirenne, sd., p.115). Ainda que essas primeiras observagées sobre a valorizagao do suburbio na vida e na historia da cidade antiga e medieval seja uma palida apresenta. ¢éo de um rico panorama visto em classicos como Mumford e Pirenne, tas elementos podem ser suficientes para que desviemos o olhar das hegeméni- cas perspectivas que encaram 0 subuirbio como o lugar do atraso rural e dos Privilégios aristocraticos — 0 que de fato ocorreu — ou ainda daquelas que enxergaram apenas 0 arido, repetitivo ¢ esfumacgado suburbio industrial. Mas antes de prosseguirmos em nosso roteiro sobre o significado histérico do subuirbio, devemos fixar a origem de tal designa¢ao: suburbiu, do latim, as cercanias da cidade. Trata-se de espagos definidos por sua posi¢ao em re- lagao a cidade, e na geografia dos romanos, como em toda parte, o subirbio abrigou a producdo agricola e os espacos de vilegiatura e refiigio daqueles que podiam se ausentar periodicamente das tensées, conflitos e insalubrida- de urbanas.' Muito ao contrario do que veio a prevalecer posteriormente, o subir- bio nao foi um lugar para onde se deveria mandar os excluidos da cidade. Em Roma, fazer a vilegiatura era passar uma temporada na casa de cam- po, denominada vila, privilégio s6 alcancado por poucos. Parece-nos digno de nota que Mumford nao tenha reconhecido na expresso latina suburbiu uma situacdo juridica especifica para 0 campo que circundava a cidade de Roma. Em sua pormenorizada anilise do urbanismo romano na era do Im- Pério, o historiador Leon Homo (1956, p.50-1) observou que o significado do termo suburbiu tinha uso bastante flexivel, Podia se referir tanto as cif- Cunvizinhangas da cidade quanto a territérios provinciais, tal como fez 0 fildsofo Cicero que chegou a “servir-se desta mesma palavra com respeito 1 Nos autores consultados, nao se faz mengdo de como o subirbio era denominado nas ci dades anteriores a Roma, sendo utilizado este termo para se referis ao suburbio no Egito, n# Babilonia ou na Grécia, 22 Capitulo 1 | SUBURBIOS a Sicilia”. Ele ressalta que, com as reformas administrativas do imperador Augusto em 27 a.C, que instituiu a Cidade das xiv Regides e regulou a ex- pansao territorial de Roma, os nascidos em seus suburbios - “em una zona claramente determinada, a zona suburbana de mil passos, ...] intermediaria entre a Urbs e propriamente 0 campo romano” (Homo, 1956, p.85-6) — go- zavam os mesmos direitos que aqueles nascidos na cidade. A equidade juridica entre os habitantes da cidade e do suburbio foi tam- bém reconhecida pelo historiador Fustel de Coulanges, em quem nao encon- tramos um significado especial para a palavra subérbio em Roma. Em con- trapartida, ele definiu o que é cidade (civitas) e urbe (urb): “cidade e urbe nao foram palavras sinénimas no mundo antigo. A cidade era a associagao politi- cae religiosa das familias e das tribos; a urbe, o lugar da reuniao, o domicilio e, sobretudo, o santudrio desta sociedade” (Colanges,1987, p.138). No caso romano, apenas no inicio, urb e civitas coincidiram, ja que progressivamente civitas (0 direto de cidadao) foi estendido aos povos conquistados. Na cidade “arquetipica ou ideal” de Mumford (1961, p.109), em sua ori- gem e desenvolvimento, consta a ideia de que suas fundacées estao na unido da cidadela e da aldeia, do templo, do recinto fechado, murado (templo ou cidadela), com o que se situa no campo aberto suburbano. Isto significa que nao predominou 0 ideal de uma separagao rigida desejada entre o urba- no e 0 suburbano; o que se buscava era sua integra¢do, tanto que santua- rios e palacios foram construidos e mantidos em seus suburbios. Por outro lado, 0 suburbio, ou pelo menos uma das suas caracteristicas essenciais - a amplidao dos espacos abertos — muitas vezes foi mantido dentro dos mu- ros da cidade. Nao resta divida de que 0 suburbio se destacou na cidade antiga como o lugar daqueles cidadaos ou nobres que tinham o direito de ir e vir, ou reservado a santuarios como Delfos (foto 1). Por outro lado, o significado menos relevante encontrado para 0 suburbio é como o lugar dos grupos excluidos da cidade, o que, de fato, também ocorreu. Contudo, esta exclusdo foi circunstancial, até que os mercadores, artesdos, estrangei- ros e homens livres estabelecidos as portas da cidade fossem admitidos na comunidade original. ‘nur 7 Mie DAE ATE GORI ORAPTO HOE OLOGHCK THOLOS DE DELFOS Segundo Lewis Mumford o subiirbio ¢ Santudrio de Deltas, onde também cao as ruinas do Teatro de Dionisio € do Templo de Apolo, “nio fot apenas o unibigo do mundo kin mas o nucleo civico ativador que deu medida € ordem a suas cidades. [..] Era ai que ficava © wick cultural da cidade grega. Sem mcios para sustentar uma populagdo permanente, continuo come cerimonial, objeto de peregrinagio, um lugar a parte, Plenamente desenvolvida” (Mumford, 1982, Sedo lu ais se tornou una cidade ). al como Olimpia, istrada I - Husteag Ao que tudo indica, 0 suburbio foi um lugar importante demai ficar a margem da cidade antiga, Nas cidades medievais a incorporagio

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