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PA nDe

M I H S
O N O
PANDEMOINHOS

antologia de artigos, poemas,


histórias, diálogos & oráculos
sobre a pandemia de
coronavírus
Alberto Lins Caldas

Ana Laudelina F. Gomes

Cris Lucena

Igor de Sousa

Jan Clefferson

Juliet Durchamp

Lina Marcela Arredondo

Marina Drehmer

Nivaldete Ferreira

Rômulo Angélico

Sabrina Pereira

Sulma Montero

Túlio Madson Galvão

Wagner Uarpêik
[tradução, revisão, redação, edição & arte]

[vários autores] Pandemoinhos: antologia de artigos, poemas, histórias,

diálogos & oráculos sobre a pandemia de coronavírus

Direitos reservados

Editora Eriom [Coleção Alyans]

Natal [Rio Grande do Norte, Brasil] | Agosto de 2020

Primeira edição | Exclusivamente digital | 164 páginas

Distribuição gratuita

Edição e projeto gráfico: Francisco Huachalla e Wagner Uarpêik

Convite e seleção de autores: Editora Eriom

Diagramação: Gustavo Gomes e Wagner Pinheiro

Revisão: Gustavo Gomes e Wagner Uarpêik

Figuras na contracapa e penúltima página: Wayraluna [arte digital]

A revisão textual desta obra é voluntariamente e soberanamente incompatível

com algumas regras defendidas pelos gramáticos. Em respeito aos estilos de es-

crita dos autores, foram mantidas certas maneiras ortográficas e estilísticas de

cada um, ainda que divergentes entre si.

EDITORA ERIOM

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Apresentação
9

Dos autores
12

NOTAS SOBRE A PANDEMIA:


perspectivas para o fim de um mundo
[Túlio Madson Galvão]
18

POLARIZAÇÃO
[Igor Sousa]
37

______________ [Sulma Montero]


48

COVID DESENVOLVE UM NOVO SER HUMANO


[Cris Lucena]
49

COROA OU VÍRUS?
[Lina Marcela Arredondo]
55
CORONA DE FLORES & ESPINHOS:
a pandemia como karma, álibi e dádiva
[Juliet Durchamp e Wagner Uarpêik]
58

______________ [Nivaldete Ferreira]


103

PANDEMIA:
Morte e Renascimento da Consciência
[Jan Clefferson]
104

O LEITE DOS UNGULADOS


[Alberto Lins Caldas]
130

AS INFLUÊNCIAS ASTRAIS EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS


[Sabrina Pereira]
133

PALAVRAS DE UM MESTRE JUREMEIRO


[Rômulo Angélico]
150
TIGRESA
[Marina Drehmer]
155

PÓS-PANDEMIA FICCIONAL
[Ana Laudelina F. Gomes]
160
Notas sobre a pandemia:
perspectivas para o fim de um mundo

Túlio Madson

Desastre cultural

A pandemia causada pelo novo coronavírus só pode ocorrer


em uma cultura global como a nossa. Isso porque a magnitude do
avanço do contágio foi possibilitada por escolhas culturais. Afinal,
inúmeros avisos foram dados pela comunidade científica sobre a
possibilidade de haver uma pandemia, e ignorá-los foi uma
escolha.
Terremotos como o de Lisboa, que tanto indignou Voltaire,
assim como erupções vulcânicas como a que dizimou Pompeia,
podem ser previstos. Podemos identificar as placas tectônicas e as
falhas geológicas que causam tais catástrofes, assim como sua
recorrência.
Graças à ciência, a natureza deixou de nos surpreender.
Vírus sofrem mutações e trocam de hospedeiros por incontáveis

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gerações. Mas esse dado natural só se converte em uma epidemia
como a atual devido a contextos culturais específicos.
Há décadas sabemos da viabilidade de uma vacina
universal contra a gripe. A escolha de não canalizar esforços
suficientes para obtê-la foi uma escolha cultural. O Oriente,
assolado por epidemias recentes, soube conter o surto com maior
eficiência, pois já vislumbravam esse horizonte com maior
clareza.
Hoje em dia, catástrofes naturais são como magmas
emergindo de alguma falha ocorrida na crosta cultural. São,
portanto, catástrofes culturais. O patógeno atuou nas fissuras
culturais que possibilitaram sua erupção. As narrativas que
pregam uma vingança da natureza só camuflam a
responsabilidade cultural de não ter evitado tais eventos.
Não se trata aqui de afirmar que os eventos naturais não
causam nenhuma influência em nossas sociedades, mas, sim, que
seus impactos dependem de um contexto cultural específico. Desse
modo, o imperialismo de Atenas, o Império Romano, as hordas
asiáticas de Gengis Khan, o mercantilismo europeu, as guerras
mundiais e a globalização, foram eventos culturais que
propiciaram a difusão de diversos patógenos responsáveis por
epidemias catastróficas.
A relação entre grandes movimentações de corpos em
escala intercontinental seguidas por grandes epidemias constitui
uma “placa tectônica” conhecida há milênios. A erupção de uma

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nova pandemia em um contexto de globalização era apenas uma
questão de tempo. Pequenos “terremotos” como o Ebola, as
gripes suína e aviária, e a SARS, prenunciavam, nas últimas
décadas, a inevitável erupção de uma grande epidemia. Apesar
disso, ignoramos todos esses “abalos sísmicos”, sobretudo no
mundo ocidental.
Levando isso em consideração, pretendemos problematizar
aqui como essa escolha cultural possibilitou o agravamento da
crise. Em seguida, especularemos sobre como a confiança no
discurso científico, em detrimento dos discursos econômico e
espiritual, moldará nossas vidas, sobretudo com o advento e a
consolidação da vida virtual em um contexto de corpos isolados
em localidades. Também refletiremos sobre os efeitos políticos
(reforçados pelo combate à pandemia) dos mecanismos de
controle social através do uso de dados. Por fim, alertaremos
sobre os perigos advindos do avanço de narrativas fascinadas e
delirantes, ávidas por certezas em tempos tão incertos.
A expectativa pelo fim do mundo, por um apocalipse
zumbi, presente no imaginário ocidental, encontrou no vírus uma
oportunidade de efetivar-se. Mas não é o mundo que acaba – ele
segue –: é o céu que cai! A queda do céu ocorre quando nossas
certezas não inspiram mais confiança. Quando nossas perspectivas,
nossas visões de mundo, se estreitam. A queda do céu é o
desaparecimento de um modo de vida. Mas a vida segue.
Também o céu pode ser suspenso.

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Narrativas escatológicas, que pregam o fim dos tempos, são
difundidas há séculos, sobretudo no mundo cristão. Por trás delas
está a ânsia por um evento mirabolante que ponha sentido na
falta de sentido do mundo. Desde a virada do milênio nossa
cultura anseia por um final trágico e catastrófico para nosso
mundo. Essa visão reflete a perda de confiança na nossa própria
capacidade de lidar com nossos problemas. Como se uma grande
hecatombe fosse necessária para que a humanidade possa se unir
em torno do bem comum.
No teatro grego, havia um recurso retórico para dissimular
uma falha no roteiro chamado deus ex machina. Quando a
história parecia não funcionar, quando o enredo não se
encaminhava para um desfecho coerente, descia um deus pelo
guindaste – isto é, pela máquina – com uma solução sobrenatural
e inquestionável. Uma forma arbitrária e fantástica para explicar
o desenrolar de uma trama complicada. A pandemia não
solucionará nossos problemas; suas consequências não serão nem
absolutamente melhores, nem piores.
Enquanto afeto político, o deus ex machina é um tipo de
otimismo que acredita que uma solução mirabolante aparecerá de
repente e resolverá todos os problemas da sociedade, por
intermédio de um salvador da pátria. Entretanto, não vivemos um
apocalipse, e nenhuma solução milagrosa irá emergir diante da
crise. A atual pandemia não será um deus ex machina existencial.

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No entanto, esse sebastianismo cultural arraigado em nosso país
clamará por alguém que encarne esse papel.
O céu já havia caído há séculos na América Latina. Os
povos originários são veteranos em desaparecimento de mundos.
Seu mundo ruiu há séculos. A maioria morreu não pela espada
ou pólvora, mas pelas enfermidades trazidas de outros
continentes. Enfermidades que seus xamãs não podiam curar. No
final, eles já não tinham em quem confiar.
Nosso céu, mal se erguera em pequenos voos democráticos,
caiu novamente com a pandemia. Não podemos confiar mais nas
promessas que sustentavam nossos modelos políticos e
econômicos. Nações tidas como referências de desenvolvimento
parecem perdidas na resolução da crise. Na escassez de leitos de
UTI, respiradores, medicamentos e mantimentos, os sonhos de
consumo se esvaem – já não prometem felicidade. O último
lançamento de celular, o carro do ano, a roupa da estação, já
não encantam tanto.
Apesar da perda de confiança nos governos, nas instituições
multilaterais e no próprio modo de produção global, baseado no
consumismo, a ciência ainda inspira confiança. Igrejas, sinagogas
e mesquitas são fechadas por líderes espirituais que seguem as
recomendações dos cientistas. O céu apontado pela ciência
continua suspenso.
Especular sobre como a pandemia moldará o mundo de
amanhã é tarefa arriscada, pois o futuro depende de decisões que

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ainda vamos tomar. Contudo, pretendemos aqui apontar algumas
perspectivas, alguns horizontes que podem ser ampliados.
Podemos arriscar, portanto, que num futuro próximo a ciência
sairá fortalecida em detrimento do cristianismo e do capitalismo –
as duas outras grandes referências do mundo ocidental.
Com o advento do neopentecostalismo e da teologia da
prosperidade, observamos, nos últimos anos, uma aproximação
entre capitalismo e cristianismo que alcançou efeitos políticos
consideráveis no país. Testemunhamos a ascensão de uma agenda
econômica de austeridade e controle dos gastos sociais, bem como
de uma política conservadora nos costumes, acompanhadas por
um ataque sem precedentes às universidades públicas, centros de
excelência da produção científica brasileira.
Todavia, a despeito dos ataques aos cientistas e do
negacionismo em relação às mudanças climáticas, os líderes
religiosos e os sacerdotes do capital financeiro não sabem como
lidar com os efeitos da pandemia. Eles acabam oscilando entre a
negação e a confusão. O céu caiu especialmente para eles.
A globalização provocada pela livre circulação do capital,
que possibilitou uma rede de produção global fragmentada em
diversas nações, mostra-se insustentável sem um sistema de saúde
global, ou seja, uma gestão pública de saúde capaz de monitorar
e combater os patógenos que circularão por intermédio dessa
integração global. Enquanto isso não for possível e organizações
como a OMS sofrerem ataques de nações importantes como EUA

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e Brasil, seremos forçados num futuro próximo a manter as
fronteiras fechadas e repensar toda a cadeia de produção global,
assim como o turismo internacional.
O conservadorismo cristão, com seus ataques à ciência, e o
fortalecimento do neoliberalismo, com a contenção dos gastos
sociais, tornaram as duas maiores nações das Américas
especialmente vulneráveis aos efeitos econômicos e sociais do
novo vírus. Não é à toa que EUA e Brasil estão entre os países
com maior número de mortes pela pandemia. Essa foi a falha
cultural local por meio da qual o vírus pôde aflorar de forma
mais intensa.
O vírus é pop e não poupa ninguém. A etimologia da
palavra pandemia (pan/demos) remete a todos os povos. No
entanto, apesar do contágio ser democrático, nem todos os povos
possuem a mesma vulnerabilidade aos efeitos sociais da
pandemia. Prova disso é a eficiência que nossos vizinhos sul-
americanos têm demonstrado na contenção e gestão dos efeitos da
pandemia na saúde pública. Não por acaso, são países que
resistiram ou se decepcionaram com a aliança entre
conservadorismo e capital financeiro.
Desse modo, a releitura do grito integralista (“Deus, Pátria
e Economia”) produziu a fissura cultural ideal para a erupção do
patógeno. Em alguns casos, como o nosso, o governo nacional é
o principal aliado da propagação do vírus.

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No Brasil, apesar de termos um sistema de saúde público
integrado e presente em todos os municípios, este vem ano a ano
sofrendo perdas bilionárias devido à política de contenção de
gastos sociais. Esse custo está sendo cobrado em vidas. A gestão
pública da saúde é o meio mais eficiente para controlar a
disseminação do novo vírus e mitigar o número de mortes.
O sistema de saúde privado precisa manter uma taxa
elevada de ocupação de leitos de UTI para otimizar os lucros.
Sendo assim, o custo dos novos leitos de emergência em situações
atípicas como essa recai para o sistema público.
Os últimos ministros da saúde brasileiros possuem fortes
ligações com os planos de saúde, que precisam do SUS para
desafogar a demanda quando sua rede satura, e absorver
pacientes advindos do sistema público quando há vagas: uma
forma de privatizar os ganhos quando há leitos e de socializar os
custos quando não há.
A saúde pública não pode estar sujeita a uma lógica de
mercado. O capital de saúde, ao contrário do capital financeiro,
não pode ser gerido de modo individual. Os cuidados que tenho
com minha saúde podem não ser suficientes para uma vida
saudável se o meu vizinho negligencia a dele. Essa lição não
aprendemos agora: os inúmeros surtos de varíola e o esforço
coletivo para erradicá-la já haviam anunciado a necessidade de
uma gestão pública da saúde coletiva.

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A valorização da saúde pública encontrará refúgio nas
ciências médicas, auxiliadas por uma biopolítica digital. O
biopoder é a prática estatal de regulamentar todos os aspectos da
vida de uma população. O controle populacional utilizado para
decretar isolamentos, monitorar movimentações e exigir a adoção
de determinadas práticas, é um exemplo de biopoder. A
biopolítica encontrou na saúde pública uma oportunidade de se
legitimar.
Foucault apontava para a transição do poder dos indivíduos
para as populações, num processo que se consolida desde o século
XIX. A pandemia servirá de laboratório para o desenvolvimento
de novas práticas de controle populacional, baseadas na análise
de dados, acelerando uma dinâmica que está em curso há séculos.
A biopolítica exercida através do uso de dados tem se
mostrado eficiente na contenção da epidemia. No entanto,
devemos estar atentos. A confiança depositada nesses recursos não
pode se converter em fascínio. A biopolítica digital é um fármaco
que cura o tecido social quando utilizado para a gestão pública
de saúde; mas adoece quando utilizada por governos autoritários
como ferramenta de controle social.
Ora, qual é a diferença entre a confiança e o fascínio? O
fascínio possui um elemento mágico, supersticioso e intempestivo.
Fascinus, deus representado por um falo, era utilizado na Roma
antiga em amuletos que garantiam uma proteção mística aos seus
portadores – tal qual a semente vendida como promessa de cura

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por um pastor televisivo. Acreditar que sementes curam apenas
pela palavra de um pastor não é confiança: é fascínio.
A fé insensata e desmedida produz o fanus, o fanático.
Máscaras e álcool em gel não são amuletos, embora possam ser
usados como tais quando utilizados sem as devidas
recomendações. Sendo assim, quando utilizamos tais recursos de
acordo com as recomendações dos cientistas o fazemos porque
elegemos a ciência como nossa fiadora, temos confiança nela,
depositamos alguma fé em seus recursos. Não é fascínio porque
há espaço para o contraditório, existe a possibilidade de negação.
Por isso, as recomendações podem mudar, assim como os
medicamentos e tratamentos aconselhados. Há, inclusive, a
possibilidade de recomendações contraditórias.
A ciência é um tipo de abordagem metodológica que lida
com incertezas. Desse modo, a fé que depositamos na ciência não
está em seus postulados, nem nos recursos propostos, mas no
método utilizado. A possibilidade de incerteza separa o confiante
do fanático.
A peculiaridade da ciência em contraposição ao cristianismo
e ao capitalismo é a ausência de certezas; em detrimento do deus
mercado, ou do deus cristão, a ciência presta contas ao deus da
incerteza. Embora a ciência também possua seus fanáticos, eles
costumam ser um ponto fora da curva.
Dentre as seitas científicas, aquelas menos dogmáticas e
mais pragmáticas serão as protagonistas. Sobretudo a ciência de

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dados, que abarcará todas as outras liturgias científicas. Em
breve, não será mais possível produzir ciência de ponta sem o
uso da ciência de dados.
A catástrofe cultural ocasionada pela pandemia deverá
acelerar o desenvolvimento da ciência de dados. Médicos,
cientistas e políticos não serão substituídos por máquinas nem
algoritmos, mas o uso destes será cada vez mais imprescindível
para lidar com ameaças como o aquecimento global, outra
catástrofe cultural que nos espreita.
A complexidade e a multidisciplinaridade exigidas pela
resolução de problemas de escala global exigirão o uso de redes
neurais integradas sob supervisão humana. Sendo assim,
especialistas em diversas áreas e autoridades competentes
precisarão se unir em uma mesma plataforma gerida por
inteligência artificial. A resolução desses problemas não será dada
apenas por mentes humanas. O biopoder será cada vez mais
digital.
No entanto, embora seja eficiente na resolução de
problemas epidemiológicos e ambientais, o uso da ciência de
dados trará consequências políticas ainda difíceis de ser
dimensionadas. A afirmação da soberania nacional, por exemplo,
passará cada vez mais pela capacidade de analisar e dispor dos
dados da população. Mas ficam as questões: com tanto poder
delegado aos governos, podemos confiar na ciência de dados?;
como conviver com a biopolítica digital?

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A ciência de dados será segura na medida em que a
confiança nela não se converter em fascínio. A era digital não
será um novo deus ex machina, não solucionará todos os nossos
problemas, tampouco será um novo apocalipse. Processos como o
aprendizado de máquinas não são infalíveis e necessitarão da
supervisão humana para evitar erros. O uso de máquinas não
substituirá os humanos, mas os potencializará.
Por isso, para que possamos confiar na ciência de dados,
precisamos nos desvencilhar da visão de que as máquinas nos
darão novas certezas. Ao contrário, as máquinas trarão novas
dúvidas. Da mesma maneira, devemos conviver com a biopolítica
digital na medida em que houver espaço para o contraditório.
Os algoritmos não são agentes de transformação social. Eles
são programados e, portanto, refletem um passado, reproduzem
erros do passado. No convívio com estados regulamentadores,
auxiliados por uma infraestrutura de dados, devemos ter cautela
para que a relação entre governantes e governados seja de
confiança, não de fascínio.
Neste momento, o aumento da vigilância aos cidadãos é
um meio para preservar a saúde pública. Exemplo disso é o
monitoramento da adesão à quarentena através da rede de
celulares. No entanto, esse aumento do controle estatal deve vir
acompanhado por uma maior vigilância dos governos pela
sociedade, sobretudo quando a quebra de privacidade não ecoar

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em políticas públicas de contenção à pandemia, como ocorre com
os governos contrários ao isolamento.
Sendo assim, se devemos ser mais transparentes em nossas
ações perante as autoridades competentes, informando nossa
localização e itinerário, o governo deve igualmente ser
transparente com seus cidadãos e informar os gastos volumosos
legalmente respaldados pela calamidade social. Além disso, é
necessário ser transparente com os dados relativos ao avanço do
contágio, os casos confirmados e a possibilidade de
subnotificação, além da quantidade de respiradores e leitos de
UTI. O uso dos dados da população deverá ser feito do modo
mais aberto possível. A transparência deve ser uma via de mão
dupla entre os cidadãos e o governo.
Assim sendo, toda instituição ou corporação que vende
certezas e não é transparente, deve ser encarada com
desconfiança. Na ausência de sentido, o mercado das certezas se
fortalece. Sendo assim, narrativas ideológicas e espirituais serão
ofertadas e tentarão se valer dos mecanismos de controle
populacional para impor suas certezas.
O delírio é o excesso de certezas; poucos indivíduos que
deliram e possuem poder de controle social ameaçam a liberdade
de todos. Os delirantes morais, quando corrompem as instituições,
fazem com que elas deixem de buscar o bem comum e passem a
perseguir o objeto de seu delírio.

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Diante disso, a utilização de dados para interferir na
psicologia das massas deve ser acompanhada de perto. Por isso, a
vigilância atenta sobre esses mecanismos é imprescindível, já que
a vigilância, pelos cidadãos ou por uma imprensa livre, resguarda
nossas incertezas.
Todavia, o problema é que os delirantes, os fascinados, não
se reconhecem como tais. Sendo assim, não podemos esperar
bom-senso deles. Dessa forma, precisamos isolar o vírus do
fascínio antes que ele infecte as instâncias de poder que operam
por meio de mecanismos de controle social e análise de dados.
Especialmente em tempos de biopolítica digital, não podemos
tolerar os intolerantes, como diria Popper. Para isso, a atuação
antifascínio deve se voltar para as instâncias locais, onde é mais
fácil combater e isolar o vírus do fascínio.

Contra estados hegemônicos, localidades soberanas

A catástrofe cultural dos nacionalismos no mundo ocidental


não conseguiu dirimir a crise de saúde pública. A tentativa de
solucionar a pandemia por intermédio de medidas estritamente
nacionais se mostrou falha. Na ausência de solidariedade
internacional, restou às localidades, estados e municípios lidarem
com a gestão da crise. Em alguns casos, as localidades foram até
mesmo contra as deliberações dos estados nacionais. Enquanto

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governos nacionais minimizam o valor da vida perante a
economia, na localidade cada vida importa.
A biopolítica digital, quando exercida nas localidades, corre
menos risco de se converter em necropolítica, isto é, um poder
sobre a morte. Nas localidades, onde os corpos são enterrados e
as vítimas conhecidas, o valor da vida é banalizado com maior
dificuldade.
Atualmente, presenciamos a falência dos estados nacionais
(contaminados pelo fascínio religioso ou econômico) em gerir
responsavelmente a crise de saúde pública, jogando o peso do
gerenciamento da crise para as localidades, onde a única
autoridade confiável passou a ser a ciência.
No entanto, enquanto o método da ciência hipotética tende
a ser dedutivo – ou seja, do todo para as partes – quando
diagnóstica os problemas globais, as instituições de poder locais
que tentam solucioná-los se legitimam através de um processo
indutivo – ou seja, das partes para o todo.
Essa situação nos colocou diante de um desafio: como
combater problemas globais através de ações locais? A biopolítica
digital aplicada no microcosmos das populações locais pode ser
um meio mais seguro de fazê-lo. O monitoramento de dados
feitos por autoridades locais, em conformidade com as práticas
científicas internacionais, tem sido um meio eficiente de lidar
com esse problema.

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Uma vez que essas localidades obtenham êxito na gestão
dessa crise global, abrirão precedente para enfrentar outros
problemas globais através de uma autogestão local na resolução
de problemas e conflitos mundiais, articulando-se em uma
dinâmica de redes neurais cada vez mais independentes de um
poder central, dispensando assim o papel centralizador de estados
nacionais hegemônicos.
Trata-se de uma ação local com consciência global. Através
da articulação de localidades soberanas que compartilham dados e
ações com outras localidades em contextos parecidos, cada uma a
seu modo pode resolver questões que afetam todas, em uma
dinâmica parecida com o aprendizado das máquinas, que recebem
instruções gerais mas possuem autonomia para buscar suas
próprias resoluções.
Os discursos políticos fascinados encontram guarida nos
estados nacionais, onde atraem uma coletividade maior que os
fortalece na perseguição às minorias. A ciência de dados, aliada à
psicologia das massas, é um poderoso catalisador para narrativas
delirantes, tornando os rebanhos cada vez mais vulneráveis. Para
evitar os efeitos danosos do comportamento de manada,
precisamos diminuir os rebanhos.
Diante disso, a emancipação das localidades serve como
antídoto contra narrativas hegemônicas, calcadas em um delírio
moral coletivo. Localidades soberanas promovem um isolamento
ideológico que evita a disseminação de narrativas fascinadas e

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hegemônicas pelo corpo social, fazendo um contraponto entre
uma localidade mais delirante e outra mais cautelosa, confiante,
impedindo o avanço do fascínio.
Para integrar localidades, torná-las soberanas, é preciso
garantir que tenham acesso aos dados de seus integrantes. Seja
em nacionalidades ou localidades, o uso e controle de dados é o
principal critério de soberania nos tempos que nos avizinham.
As redes sociais precisam se fragmentar, desvencilhar-se do
domínio de grandes corporações multinacionais. Os dados já são a
principal commodity, empresas de análise de dados já valem mais
do que petroleiras e grandes indústrias. O poder financeiro dessas
corporações advém do poder de manipulação de seus usuários,
através de anúncios e notificações. Como se não bastasse, essas
corporações compartilham dados privados com governos nacionais,
ou os repassam para empresas capazes de influenciar campanhas
eleitorais.
A soberania das localidades deve passar pela análise dos
dados de seus integrantes. Quando os dados são entregues de
modo não transparente para grandes empresas e estados
nacionais, a localidade fica vulnerável.
A mídia local possui um importante papel nesse cenário, ao
analisar os dados disponibilizados pela localidade, como vem
acontecendo no monitoramento dos números de infectados e
mortos pelo novo vírus e de leitos disponíveis. A soberania das
localidades passa também pela soberania das mídias

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independentes, assim como das empresas locais de análise de
dados.
Concluindo, a pandemia nos legou um contexto de
localidade de corpos confinados em isolamentos e quarentenas;
corpos estes conectados em uma rede global possibilitada pelo
espaço virtual, única morada segura nestes tempos. Como antenas
cravadas no solo, mas atentas aos sinais que vêm de fora.
O advento das plataformas virtuais, na medicina e na
educação, assim como a ausência de grandes eventos culturais,
estão gerando demandas por novos espaços virtuais de
convivência e pertencimento. Sendo assim, devemos estar atentos
e vigilantes, para que esses espaços promovam a integração e não
a segregação. Façamos com que esses novos espaços potencializem
a experiência do indivíduo com o entorno onde habita, e o
aproximem das pessoas com as quais convive.
O capitalismo financeiro não amenizou as diferenças
regionais, e o conservadorismo cristão não foi capaz de empunhar
a bandeira da defesa da vida de todos. Desse modo, precisaremos
reaprender a habitar nossas localidades, buscar novas culturas de
pertencimento, como forma de defender a vida como valor maior
e dirimir nossas desigualdades.
A catástrofe cultural da pandemia acelerará processos que
já estavam sendo gestados. As decisões que tomarmos durante
essa tempestade consolidarão o céu de amanhã. Portanto, façamos
com que a crise de saúde seja uma oportunidade para integrar

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nossas localidades. Estejamos atentos, para garantir que a ciência
de dados aprimore nossa convivência e potencialize nossas
habilidades. Busquemos igrejas que preguem a integração e não a
segregação. Façamos com que o consumo não seja uma promessa
de felicidade, mas de necessidade, e que a infraestrutura da
gestão pública de saúde não sirva para alimentar mecanismos de
controle social.
Mesmo que tudo isso seja um desejo, ainda assim, o desejo
é o primeiro passo para a criação e a construção. Desejemos,
portanto, um mundo mais livre e igualitário, para que,
posteriormente, ele seja criado e construído. Que o desejo de um
céu amplo, capaz de iluminar todos nós, prevaleça sobre o céu
fechado do fascínio!
Lutemos para erguer o céu que desejamos!

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