Flavio Villacaipitulo 6
Capitulo 7
Introdugao
Espago intra-urbano: esse desconhecido
Aquestao semantica
Espagos regional e intra-urbano
Especificidades do espaco intra-urbano
Abordagens dos espacos intra-trbano e regional
Espaco e sociedade
Os processos espaciais de conurbagio
Dire¢gdes de expansao urbana
Introdugao
Os setores vidrios
Localizacao, valor e prego da terra urbana
Vias regionais e urbanizagio
O perfodo pré-ferrovidrio
Setores ocednicos
A estrutura urbana basica
A metr6pole interior
Sao Paulo
Belo Horizonte
A metr6pole litoranea
Os setores industriais. A articulagéo espacial entre
metrépole e regiao
A segregacao urbana
O conceito de segregacao
Os setores
BE
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153\ Capitulo 8
Capitulo 9
Capitulo 10
Capitulo 11
Capitulo 12
Capitulo 13
Os bairros residenciais das camadas de alta renda
O Rio de Janeiro
Oséculo XIX
O século XX.
Deslocamentos, incorporagao imobilidria, forma
urbana e estilos de vida
Sao Paulo
Belo Horizonte
Porto Alegre
Salvador
Recife
Os bairros residenciais das camadas populares ~
Os centros principais
Anatureza do centro principal
O valor simbélico do centro
O surgimento dos centros principais
Rio de Janeiro
Sto Paulo
Porto Alegre
Belo Horizonte
Os centros principais e as camadas de alta renda
O centro principal e a nova mobilidade territorial
O centro principal e as camadas populares
O centro do Recife
Os subcentros
A evohucao dos subcentros
Rio de Janeiro
Sao Paulo
Porto Alegre e Belo Horizonte
O shopping center
Segregacao e estruturag&o do espago intra-urbano
ReflexGes finais
O consumo e a estruturagao do espaco intra-urbano
A segregagao e o controle do espaco intra-urbano
Segregacao, controle do Estado e ideologia
O controle do espaco intra-urbano e o controle do tempo
Referéncias bibliograficas
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363Capitulo 1
Introdugao
O objetivo deste livro é procurar entender as localizagoes intra-urbanas, a
constituicao e 0s movimentos do espaco intra-urbano das metropoles brasileiras —
entendido como uma estrutura territorial. Serao estudadas as areas metropolitanas
de Sao Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador e Recife.
No Capitulo 2, so feitas consideragGes sobre o espaco intra-urbano e a pou-
ca atengiio que tem sido dispensada ao seu estudo, tanto do ponto de vista tedrico
como do empirico. Registra-se, particularmente, o pouco interesse, no Brasil, quan-
to aos estudos espaciais de nossas metrdpoles e, quando sao realizados, t¢m-se li-
mitado, em geral, as cidades (ou munic{pios) centrais das areas metropolitanas. Além
disso, cabe destacar a inexisténcia de estudos sobre os aspectos comuns aos espa-
os urbanos das diversas metrépoles. Afinal, se todos vém sendo produzides num
mesmo pais, pela mesma formagiio social, num mesmo momento histérico — os
tiltimos 150 anos —, sob um mesmo modo de producao, através das mesmas rela-
cOes sociais e sob o mesmo Estado, deve haver muito em comum entre seus espa-
cos. No entanto, pouco se tem estudado sobre tais aspectos, com excegao do fato de
todas as metrdpoles terem, de um lado, uma area central mais bem atendida por
equipamentos urbanos e onde mora uma minoria que participa dos frutos do tra-
balho social, e de outro, uma enorme periferia, onde mora a maioria excluida dessa
participagao. De maneira geral, os paulistas estudam Sao Paulo; os cariocas, 0 Rio;
os baianos, Salvador, ¢ assim por diante. Quando um estudioso paulista comenta
com um earioca algum processo espacial que ocorre em Sao Paulo, ouve quase in-
variavelmente como réplica: “Nao... aqui no Rio é diferente”. Mas, 0 que ndo é dife-
rente? e o que hd de comum?
Procuramos nesta obra dar amplitude e profundidade & andlise por meio de
uma dupla abordagem, a saber a andlise comparativa entre varias metrdpoles ea
iinvestigagao de um amplo perfodo histérico da formacao de seus espacos, de ma-
neira a captar os aspectos efetivamente estruturais,
Com apoio em Bastide (1971,1) chamaremos de estrutura um todo constitui-
do de elementos que se relacionam entre si de tal forma que a alteracao de um ele-
mento ou de uma relagao altera todos os demais elementos e todas as demais rela-
Ges. As estruturas sao dotadas de movimento e o grande desafio intelectual reside
em desvendar a fonte desse movimento. Sao considerados elementos dessas estru-
turas 0 centro principal da metrépole (a maior aglomeragao diversificada de em-
pregos, ou.a maior aglomeragao de comércio e servigos), os subcentros de comércio
eservicos (aglomeracées diversificadas de comércio e servicos, réplicas menores do
centro principal), os bairros residenciais, ou melhor, os conjuntos de bairros
residenciais segundo as classes sociais e as areas industriais. Essa estrutura est4
imbricada a outras estruturas territoriais, como os sistemas de transportes e de sa-
neamento. Entretanto, consideramos ser a primeira mais importante, pois inclui,
incorpora e subjuga as demais, mais do que 0 contrério, embora nao possa existir
sem elas.
Essa estrutura territorial mais importante est4 também articulada a outras,
nao territoriais, como a econémica, a politica e a ideoldégica. Como é sabido, estas,
na concep¢ao original de Marx (1977, 24), esto organizadas em “base” e “superes-
trutura’. A estrutura territorial 6 socialmente produzida e ao mesmo tempo reage
sobre 0 social. Evidentemente essas consideragoes sto de enorme amplitude e ge-
neralidade e dar conta desse emaranhado de inter-relacdes é uma epopéia que a
mente humana jamais podera ambicionar. Obvio que nao temos tal pretensao. En-
tretanto, nesta obra, procurar-se-:
1. Detectar tracos e movimentos comuns a todas as estruturas territoriais anali-
sadas; dai a importancia da historia territorial e da andlise comparativa de
varias metrdpoles. Por exemplo, o que hé de comum entre a distribuigao
territorial das classes sociais, além da dbvia distinciio entre centro e periferia?
A chamada “decadéncia” do centro principal é um processo comum a todas
as nossas metrépoles. Qual sua fonte? Em que consiste na realidade? Qual
sua esséncia? Que relacées hé entre o elemento “centro principal” e outros.
elementos das estruturas territorial e social?
2. Relacionar os movimentos da estrutura territorial com os das estruturas so-
clais (lato sensu) e—o que ébem mais dificil —vice-versa. Veja este exemplo:
que papel desempenham as classes sociais na estruturacio territorial urba-
na? Qual o papel que sua segregacdo espacial desempenha na dominaciio
politica? E na ideologia urbana? Em que consiste e como se da essa domina-
Gao politica através do espaco urbano? Que participacao tem 0 espaco pro-
duzido em Copacabana sobre os valores ¢ estilo de vida de seus moradores e
dos cariocas da zona Sul em geral?
3. Relacionar entre si os movimentos dos diversos elementos das estruturas
territoriais urbanas — os varios bairros, o centro urbano, a estrutura de trans-
Portes, etc. — e com os de outras estruturas articuladas.
12A expressio “estrutura urbana” — e sua correlata “reestruturagaio urbana’ —
tem sido vitima de muitos abusos. E freqiientemente utilizada como sindnimo de
cidade enquanto elemento fisico, de cidade como um todo material, sem conside-
rar a inter-relago entre seus elementos, alids sem considerar sequer que elementos
sao esses. Constantemente se usa 0 termo reestruturagao para qualquer alteragao
do espaco urbano, sem maiores preocupacoes com os elementos espaciais da estru-
tura e com as relagées existentes entre eles. O simples registro de transformacées
espaciais nao é suficiente para caracterizar a estruturacao ou a reestruturacao. E
preciso mostrar como mudangas em um elemento da estrutura provocam mudan-
Gas em outros elementos.
Jéhouve época em que se tentou descrever as estruturas territoriais urbanas
através de“modelos” espaciais que tiveram grande prestigio intelectual. Pelo menos
um desses modelos — o de Burgess (1968) — tinha ambigoes tedricas e pretendia,
inclusive, dar conta dos movimentos da estrutura urbana. Mais recentemente, os
modelos matematicos incorporaram os movimentos da estrutura, escolhendo mais
ou menos arbitrariamente, entretanto como motor desse movimento, a partir de
um momento inicial em que este é congelado, “forcas externas” cuja origem e papel
séo pouco questionados.
O modelo de Burgess, da década de 1920, 6 certamente o mais famoso. Sob
sua influéncia, e em oposigao a ele, foram propostos outros, menos pretensiosos e
famosos; o chamado modelo de “setores”, de Homer Hoyt (1939), e o de “nticleos
mutiltiplos”, de Harris e Ullman (1945)*. O primarismo descritivo desses modelos fez
com que tivessem vida curta. O de Hoyt, entretanto, é mais 1itil do que parece, desde
que nao sejam superestimados sua finalidade e seu alcance. Vamos nos utilizar bas-
tante dele.
Seguem-se capitulos em que sio analisados os processos hist6ricos de cons-
tituig&o das estruturas territoriais metropolitanas aqui estudadas. Inicialmente as
formas metropolitanas como um todo, os processos de conurbacao e as direcdes
preferenciais de crescimento da urbanizagao. Desde af, as condicées de transporte
aparecem como fator decisivo na estruturagao do espago urbano.
Em segujda sdo analisados os processos de constituicao das grandes dreas-
onde se segregam as nossas burguesias urbanas. Esses processos se destacam como
os mais distintivos de nossas estruturas territoriais metropolitanas. Nossas metr6-
poles — com excec¢ao de Sao Paulo e do Rio de Janeiro — sé nas tiltimas décadas
comegaram a desenvolver dreas industriais significativas. Suas estruturagdes tem
sido dominadas, entao, pelos centros principais, seus subcentros e por suas éreas
residenciais das camadas de alta renda. Sao, por isso, os elementos das estruturas
metropolitanas aqui privilegiados.
Como as areas industriais sfio elementos cujas localizagées sao determina-
das por forcas externas aos espacos metropolitanos, a segregaciio espacial das ca-
* Para uma visdio geral dos modelos, ver a série CHORLEY, R. e HAGGETT, P Modelos em Geografia. Rio de
Janeiro, EDUSP, 1975.
13madas de alta renda surge como o elemento interno mais poderoso no jogo de for-
cas que determina a estruturagao do espaco intra-urbano de nossas metrdpoles.
A obra se fecha com algumas conclusdes teéricas sobre o material empirico
apresentado,
Por tratar de tema pouco abordado, esta é uma obra heterogénea, nao sé quan-
to aos temas propostos, como principalmente quanto aos niveis das andlises. Elas
variam desde os estgios mais rudimentares — e por isso um pouco magantes — da
investigacao cientifica, como a descricao de tipologias e a classificagaio de processos
(no inicio da obra), até niveis teoricamente mais ambiciosos (no final).
‘As express6es camadas de alta renda e burguesias foram utilizadas como si-
nénimos. Por burguesias entende-se tanto a pequena, média e alta burguesias como
as burguesias industrial, mercantil ou financeira
Quando houve necessidade de separar classes dentro desses grandes
conjuntos,utilizaram-se expresses como alta burguesia e classe média, Nesses con-
juntos, reconhece-se a hegemonia da alta burguesia enquanto classe dominante.
“Elites” (sempre socioecondmicas), alta burguesia e classe dominante também fo-
ram empregados como sindnimos. Consideramos que num trabalho da amplitude
deste, que analisa seis metrdpoles por um periodo de mais de um século, as dife-
rengas entre esses conceitos poderiam ser minimizadas sem prejuizo da andlise.
Se ha diferenga entre classes de renda e classes sociais, hé bem menos diferenga
entre as regides das cidades por elas ocupadas — que, alias, nunca sao totalmente
homogéneas.
Quando se trata de quantificar ou medir as classes, em seis metrépoles, por
longos perfodos, nao hé como escapar da utilizacdo dos indicadores aqui utiliza-
dos: faixas de renda e aparéncia dos bairros ou das habitagées. Por outro lado,
para os tempos atuais, a faixa de renda utilizada para caracterizar as camadas de
alta renda ¢ tao “folgada” — acima de vinte salérios-minimos — que ela enquadra
satisfatoriamente “as burguesias’, a burguesia, ou a classe dominante, indepen-
dentemente de variacées conceituais. O importante é que na definigao espacial
seja enquadrada a classe dominante, que comanda a estruturagao do espaco. E
valido admitir que as espacialidades das classes ou camadas sociais nao variam
significativamente segundo os varios conceitos. Uma monografia sobre a “geogra-
fia social” do municfpio do Rio de Janeiro, usando técnicas da ecologia fatorial e
dados do censo de 1960 (Morris, 1973, 48), ponderou 22 variaveis para definir e
mapear a populagio segundo status. O mapeamento revelou uma espacialidade
da populagiio de mais alto status exatamente igual ao que ja é sabido em termos
de renda ou classe social e simples conhecimento superficial: a drea de mais alto
status engloba Flamengo, Catete, Botafogo, Urca, Copacabana, Leme, Ipanema,
Leblon e Lagoa e Gavea. Segundo Short (1976, 77), “o aspecto mais consistente
que emana das ecologias fatoriais da cidade tem sido a identificactio de padroes
de segregagao com base no status social. Embora uma variedade de técnicas te-
nha sido utilizada e embora as varidveis selecionadas tenham sido diferentes, os
resultados, em geral, confirmaram essa descoberta. Na verdade, as confirmagées
14tém sido registradas com regularidade quase montona’.* Se fosse necessdria a de-
finigao prévia, consensual, quantificdvel e espacializavel de classe social, classe de
renda, lite socioeconémica, alta, média e pequena burguesias e classe dominante,
para seis metrépoles durante 150 anos, este trabalho seria inviavel.
Uma palavrinha sobre “relagées espaciais”. Claro que espacos nao mantém
relacées sociais entre si. Entretanto, hd certos processos sociais nos quais espaco e
sociedade esto de tal forma imbricados que é impossivel entender as relagGes so-
ciais sem uma visdo espacial. Isso é particularmente verdadeito quando se trata do
espaco intra-urbano, onde a presenga do espaco nas telagdes sociais é marcante.
Algumas das conclusées desta obra contrariam posigées fundamentais do
materialismo hist6rico. A soberania do consumidor — desde que este sejam as ca-
madas de alta renda— na escolha da localizagao de seus bairros, 0 primado do con-
sumo naestruturacdo do espaco intra-urbano (mas nao na sua produ¢ao), a relagaio
entre o setor imobilidrio e a classe dominante sdo algumas. Isso nos preocupa. Acre-
ditamos, entretanto, que as evidéncias empiricas que sustentam aquelas conclu-
ses sao fortes. Se elas fertilizarem discussées, daremo-nos por satisfeitos.
* “The most consistent feature arising from factorial ecologies of the city has been the identification of
patterns of segregation on the basis of social status. Although a variety of techniques have been used and
variables selected have differed, the results have generally confirmed this finding, Indeed, confirmation
has been reported with almost monotonous regularity
15Capitulo 2
Espaco intra-urbano:
esse desconhecido
No amplo campo dos estudos territoriais, tém havido nas titimas décadas um
crescente desenvolvimento das investigages regionais e uma surpreendente estag-
nagio dos estudos intra-urbanos. Estes, pouco de relevante produziram desde a dé-
cada de 1970. Mesmo no perfodo entre as décadas de 1930 e 1970, foram frageis as
contribuigées nessa drea (embora abundassem as anilises regionais), dadas, porexem-
plo, pela economia e geografia neocléssicas (William Alonso, Brian Berry, R. F Muth,
HS. Perloff e Lowdon Wingo Jr, para citar apenas alguns expoentes). Decompés-se a
cidade em varios elementos e produziu-se uma série de estudos atomizados sobre
temas espectficos, como a densidade demogréfica, as areas industriais, as comerciais,
0 preco da terra, etc,; além disso, produziram-se as conhecidas teorias pontuais da
localizacao. Uma fragil visdio de conjunto, incapaz de ajudar a construgao de uma base
teorica mais ampla sobre o espago intra-urbano, foi apresentada. Nesse sentido, pou-
co se avancou nas investigacdes sobre o conjunto da cidade e sobre a articulagio en-
tre suas varias areas funcionais, ou seja, sobre a estrutura intra-urbana.
‘Avisao articulada e de conjunto foi, alias, a grande contribuigao da Escola de
Chicago. As tentativas de formulacio de modelos espaciais — tao difundidas por
Chorley & Haggett no final dos anos 60 (meados dos anos 70, no Brasil) — tiveram
curta duragao, pois foram atropeladas pelos estudos territoriais de base marxista
surgidos igualmente naquela época e que passaram a dominar 0 assunto; esses es-
tudos, entretanto, vém ignorando quase totalmente o espago intra-urbano. Desde
entao, a mais notavel tentativa de teorizagao desse espago como um todo tenha
sido, talvez, a feita por Castells em La question urbaine. Esse autor, porém, abando-
nou o campo de estudo em foco e ninguém o retomou a partir do ponto em que ele
odeixou. Pelo menos, a partir dele, nao se formou uma corrente ou escola de pensa-
mento sobre 0 espao intra-urbano.Nesta obra procura-se desenvolver a tese de que os processos que, de um
lado, podem ser identificados coma estruturagio das redes urbanas, com o elemen-
to urbano das estruturas espaciais regionais, ou com o process espacial de urbani-
zagao, e de outro, os processos de estruturagdo interna do espaco urbano nao se-
guem a mesma ldgica, nao passam pelas mesmas mediacoes (desde as macroanilises
socioeconémicas até as transformacées espaciais intra-urbanas) e nZo podem ser
abordados pelos mesmos paradigms tedricos. Partindo de uma dada formagao so-
cial, para se chegar ao espaco intra-urbano, ha necessidade de passar por media-
goes diferentes das requeridas para chegar ao espaco regional. No entanto, nas tilti-
mas décadas tém havido transbordamentos equivocados das anilises regionais —
que constituem a maioria — para as intra-urbanas.
A fundamentagao teérica desenvolvida para demonstrar essa tese sera ex-
posta a seguir, organizada em quatro itens, a saber:
* aquestao semantica. Aqui pretende-se explicar por que é utilizada nesta obra,
acontragosto, a redundante expressao intra-urbano;
* breves consideracées sobre a distingdo entre espaco intra-urbano e regional;
* aespecificidade do espaco intra-urbano;
* confuses nas abordagens dos espacos intra-urbano e regional.
Seguem-se depois breves consideracées sobre a relacio entre espaco e so-
ciedade.
A questao semantica
Trata-se de entender ¢ justificar a expresséo intra-urbano. Como veremos
adiante, essa questo nao é mera ¢ inconseqiiente formalidade.
Aexpressdo intra-urbano nao deveria ser necessdria, pois “espaco urbano” é
uma expressio satisfatéria. Por que, entio, é utilizada?
A expresso espaco urbano, bem como “estrutura urbana’, “estruturagao ur-
bana’, “reestruturagéo urbana” e outras congéneres, s6 pode se referir ao intra-ur-
bano. Tal expressao deveria ser, pois, desnecessaria, em face de sua redundéncia
Porém, espaco urbano — ¢ todas aquelas afins — esta hoje de tal forma comprome-
tida com 0 componente urbano do espaco regional que houve necessidade de criar
outra expresso para designar o espago urbano; daf o surgimento e uso de intra-
urbano.
Aquilo que grande parte da recente literatura espacial progressista tem cha-
mado de espago urbano refere-se, na verdade, ou ao processo de urbanizacao gene-
ricamente abordado, ou a espagos regionais, nacionais, continentais e mesmo pla-
netario. Nos tiltimos casos, 0 espago urbano aparece como elemento de estruturas
espaciais regionais, nacionais, continentais ou planetéria.
Com efeito, das duas uma: ou se estuda o arranjo interno dos espacos urba-
nos, ou se estuda o arranjo interno dos espacos regionais, nacionais ou planetario.
Nos dois casos, dbvio, 0 espago ¢ intra. Portanto, a expressao espaco urbano — nao
ha como ser diferente — s6 pode referir-se ao espago intra-urbano, assim como a
18expressio espaco regional se refere ao intra-regional. No entanto, nao se usa a ex-
pressio espaco intra-regional. A redundancia da expresso espaco intra-urbano fica
evidente quando se imagina o uso da expressao espago intra-regional. Parece ab-
surda, nao & Parece, nao: é absurda, pois espago regional basta, mesmo que— como
é a maioria dos casos — se queira privilegiar 0 componente urbano nos estudos
regionais, Entao a expressao intra-urbano também deveria ser absurda, e espago
urbano também deveria bastar.
Ecurioso que pouco ou nada se fale deestrutura regional, ou dereestruturagao
regional, enquanto se fala abundantemente de estruturacao e reestruturagao urba-
nas. Por qué? O que comumente se chama de estruturagao urbana nao ¢ estrutura-
cdo (ou reestrutura¢ao) urbana, mas estruturagao (ou reestruturacao) regional, pois
abordao elemento urbano da estrutura regional, o processo de urbanizagaio enquan-
iH processo do espago regional, seja de uma regiao, de um pais, de varios paises ou
do mundo.
Tomem-se, por exemplo, algumas excelentes obras langadas recentemente
entre nds: Reestruturagéio urbana: tendéncias e desafios (Valladares ¢ Preteceille,
org. 1990), ou Reestruturagao do espaco urbano e regional no Brasil (Lavinas et al.
org, 1993). De que tratam elas? Ou do processo geral da urbanizagao brasileira, ou
da reestruturagao de nossa rede de cidades, ou seja, das cidades enquanto ele-
mentos do espaco regional ou nacional {desmetropolizagao, desconcentragao re-
gional, etc). Por que nao reestruturacdo regional? O que se analisa nesses livros é a
reestruturacao de uma regiao (o espago nacional brasileiro), embora o tinico ele-
mento da regido analisado sejam as cidades. Sao, claramente, estudos de
reestruturacao regional.
Por outro lado —a nao ser que espago urbano signifique intra-urbano, o que
yaramente acontece —niio tem sentido falar de “espaco urbano” ao lado de “espago
regional’, como na expressdo “espaco urbano e regional’, abundantemente empre-
gada na literatura especializada, inclusive nas obras acima indicadas. J4 ha décadas
que as estruturagdes (ou reestruturagées) regionais, nacionais ou planetaria inclu-
em necessariamente as redes urbanas, pois elas constituem 0 principal elemento
das estruturas territoriais analisadas. Nao cabe, portanto, falar em “reestruturacao
do espaco urbano e regional’, mas t0-somente em reestruttragdo do espaco regio-
nal, O fato de, nessas obras, as cidades serem privilegiadas como elemento da estru-
turagdo regional nao autoriza nem justifica a redundancia “regional ¢ urbano’, pois
toda reestruturacéio de uma rede urbana (que é 0 que tais obras analisam) € neces-
sariamente urna reestruturagao regional. Por outro lado, no Brasil urbano de hoje —
para nao falar do Primeiro Mundo — ¢ inconcebivel uma reestruturagao regional
que nao seja simultaneamente também uma reestruturagao de rede urbana. No
entanto, fala-se, por exemplo, referindo-se ao estado de Sao Paulo atual, em“... es-
tratégias de desenvolvimento urbano e regional”. A palavra urbano € ai certamente
dispensavel, no minimo por dar a falsa impressdo de que poderia haver no estado
em questo uma estratégia de desenvolvimento urbano que nao fosse ao mesmo
tempo regional, e vice-versa.
aMais correta e mais clara é a posicao da revista Espaco & Debates. Deum lado,
editou um numero especial (ano IV, 1984, n. 13) sob o titulo “As mudancas na dina-
mica urbano-regional e suas perspectivas” e, de outro, sua edicdo de ntimero 25
recebeu o titulo de “Reestruturagao: economia e territério”. Em ambos os casos es-
quivou-se muito bem das armadilhas quer da “reestruturacaio urbana”, quer da
“reestruturacao urbana e regional’
O fato é que, dada a importincia do proceso de urbanizagao e das redes ur-
banas na estrutura¢ao regional, expressdes como espaco urbano, estrutura urbana
ou reestruturagao urbana passaram a ser expressdes de prestigio e foram captura-
das e monopolizadas pelos estudos regionais. A vista dessa situagio, foros obriga-
dos a nos render, a contragosto, a terminologia jé cristalizada e anos conformar em
utilizar a expresso — mesmo que redundante— espaco intra-urbano.
Essa questéio semantica, como dissemos, nao é mera e inconseqiiente forma-
lidade. Adiante veremos alguns de seus desdobramentos altamente problematicos.
Espacos regional e intra-urbano
Adistingao mais importante entre espago intra-urbano e espaco regional de-
riva dos transportes e das comunicagoes. Quer no espago intra-urbano, quer no re-
gional, o deslocamento de matéria ¢ do ser humano tem um poder estruturador
bem maior do que o deslocamento da energia ou das informacoes. A estruturacio
do espaco regional é dominada pelo deslocamento das informacoes, da energta, do
capital constante e das mercadorias em geral — eventualmenie até da mercadoria
forga de trabalho, O espaco intra-urbano, ao contrério, é estruturado fundamental-
mente pelas condigées de deslocamento do ser humano, seja enquanto portador da
mercadoria forca de trabalho — como no deslocamento casa/ trabalho —, seja en-
quanto consumidor — reprodugao da forca de trabalho, deslocamento casa-com-
pras, casa-lazer, escola, etc, Exatamente daf vem, por exemplo, o enorme poder
estruturador intra-urbano das areas comerciais e de servicos, a comecar pelo pré-
prio centro urbano. Tais areas, mesmo nas cidades industriais, so as que geram e
atraem a major quantidade de deslocamentos (viagens), pois acumulam os deslo-
camentos de forca de trabalho — os que ali trabalham — com os de consumidores
— 08 que ali fazem compras e Vado aos servigos.
Quanto ao papel espacial das comunica¢oes, trata-se de assunto que ja traz
a baila a confuso entre as andlises dos espagos intra-urbano e regional; ja temos
aqui a oportunidade de mencionar essa questao, que sera desenvolvida logo a se-
guir, mostrando como o dominio dos estudos intra-urbanos tem sido prejudicado
pela indevida adogao de paradigmas, conceitos e metodologias tipicos dos estu-
dos regionais.
Trata-se de registrar o hébito dos analistas regionais de utilizar, em andlises
intra-urbanas, estes dois vocdbulos—transportes e comunicacées — e conseqtien-
temente as realidades que exprimem, to amarrados quanto irmaos siameses. Igno-
ra-se assim 0 fato de que seus efeitos sobre os espacos intra-urbano e regional sao
20totalmente distintos. As comunicagGes tém efeito profundo sobre os espacos regio-
nais, nacionais ou planetério, compardvel ao dos transportes. Entre outras razoes,
pelo fato de o espaco regional ser, como dissemos, estruturado pelo deslocamento
de energia, pelas comunicacies ¢ pelo transporte de mercadorias, eo dinheiro, uma
das mercadorias mais transportadas ultimamente no espaco regional, tem-se utili-
zado exatamente das comunicagées. Esta metéfora, muito utilizada, se aplicabema
essa situa¢do: as comunicagoes, tal como os transportes, tém feito com que o mun-
do se“encolha’. As comunicagoes, a certa altura da histéria da técnica, se libertaram
dos transportes. Elas dependiam — pelo menos a grandes distancias — do transpor-
te da mensagem: transporte do jornal, transporte da carta. Foi com a invencaio do
telégrafo que as comunicagoes se libertaram entao. Harvey (1993, 220), alids, utili-
za-se de duas ilustragées para mostrar o “encolhimento” do mundo: uma através
dos transportes e outra — a propaganda de uma empresa de telecomunicacdes —
através das comunicagoes.
Entretanto, a estruturagao do espago intra-urbano é dominada pelo desloca-
mento do ser humano, enquanto portador da mercadoria forca de trabalho ou en-
quanto consumidor tmiais do que pelo deslocamento das mercadorias em geral ou
do capital constante)-Nesses deslocamentos, nao ha espaco para as comunicacoes
ou para o transporte da energia. Assim, o desenvolvimento do transporte de energia
e das comunicagées — que nao envolve o deslocamento do ser humano—tem pro-
vocado no espaco intra-urbano efeitos despreziveis, se é que tem existido. Nao co-
nhecemos nenhum estudo com fundamentagao tedrica e base empirica que mos-
tre, por exemplo, os efeitos que a difusao do telégrafo teve sobre o espaco
intra-urbano. Desconhecemos, igualmente, qualquer investigacao — e muito me-
nos teoria — que tenha abordado 0s efeitos que a introduciio do telefone, ou do fax,
teve sobre o espago interno das metrépoles. Finalmente, desconhecemos qualquer
estudo sobre o impacto intra-urbano de uma das mais fantasticas invengGes de to-
dos os tempos: a energia elétrica. Conjecturas ha, certamente, mas para conjecturas
a mente humana tem a liberdade e o infinito. E curioso registrar, en passant, e nos-
sas experiéncias permitem-nos afirmar isto, que a maioria dos estudiosos do espaco
reage a essas colocaces em geral tio veemente quanto impulsiva e irracionalmen-
te, dada a falta de estudos objetivos e argumentos convincentes contra elas. No en-
tanto, abundam nos estudos espaciais mengGes aos “efeitos dos transportes e das
comunicagées sobre 0 espago urbano ou metropolitano”, quando na verdade tais
efeitos deviam ser apenas os dos transportes, e nao os das comunicacoes. Trata-se
certamente de uma indevida generalizacdo, para o nfvel intra-urbano, dos estudos
espaciais regionais ou planetario. A esse respeito é de se registrar que tais estudos
tém ignorado amplamente 0 fato de que, em qualquer ponto do espaco intra-urba-
no ou intrametropolitano, os custos da energia e das comunicagoes sao iguais (ou
apresentam diferengas despreziveis, quando as tém), tornando esses espacos unifor-
mes ou homogéneos do ponto de vista da disponibilidade de energia e das comunica-
ges. Com os transportes, especialmente o de seres humanos, a questao é totalmente
distinta. No tocante a eles, o espaco intra-urbano é altamente heterogéneo.
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