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RESUMO
Neste artigo, objetiva-se analisar a territorialidade em uma organização-cidade. Em uma rua do centro de Belo Horizonte, foi
conduzida uma pesquisa exploratório-descritiva com base em observação sistemática e material iconográfico. Os principais
resultados sugerem que, como um mesmo espaço pode abrigar vários lugares, a territorialidade é dinâmica, o que leva
a encarar o lugar como uma construção social. As principais contribuições do estudo se relacionam a considerar as
intervenções sociais no espaço urbano sob a ótica simbólica, devendo ser a cidade vista para além de seus limites físicos
e geográficos, já que ela é o que o seu povo acredita, vivencia e (re)cria.
Abstract
In this paper we analyze the territoriality in a city-organization. On a street in Belo Horizonte downtown, it was conducted
an exploratory and descriptive research based on systematic observation and iconographic material. Main results suggest
that, as the same space can house several places, territoriality is dynamic, which leads to comprehend place as a social
construction. Main contributions of this study are related to consider social interventions in urban space from symbolic
perspective, the city should be seen beyond its physical and geographical boundaries, once it is what its people believe,
experience and (re)creates.
Optou-se por investigar a Rua Santa Catarina, locali- passo que os fluxos recriam condições ambientais e
zada no centro da referida cidade, pelo fato de esta sociais na redefinição de um lugar. Os “fixos são cada
apresentar um movimento territorial frequente desde vez mais artificiais e mais fixados ao solo; os fluxos são
2004: o Quarteirão do Soul. Essa rua foi analisada em cada vez mais diversos, mais amplos, mais numerosos,
dois momentos: o momento rotineiro, quando é ape- mais rápidos” (SANTOS, 2006, p. 38).
nas mais uma das inúmeras ruas de Belo Horizonte;
e num segundo momento, quando é apropriada e se O espaço social também despontou como assunto
transforma no Quarteirão do Soul. Nas seções que de interesse pela psicologia ambiental, que reconhe-
se seguem, serão explorados os principais conceitos ceu a importância dos fatores espaciais da realidade
e implicações do estudo da cidade e da territorialidade social, concebendo tal espaço (e, em especial, os
nas organizações. Posteriormente, será apresentada a espaços de trabalho) em seus aspectos físico e simbó-
metodologia de pesquisa adotada e os resultados aos lico. Esse campo de conhecimento, que tem o espaço
quais este estudo chegou. Por fim, serão realizadas as como objeto social, preocupa-se com as relações
considerações finais sobre a mistura desses dois corpos indivíduo-ambiente, buscando compreender o papel
teóricos na esfera organizacional. desse ambiente e suas múltiplas influências sobre o
comportamento humano. A psicologia dos espaços de
1.1. A (re)produção de espaços trabalho erige um novo domínio do saber sobre como
e lugares na organização-cidade a organização e o trabalho sustentam a importância
psicossocial do ambiente organizacional, propondo
A palavra espaço é utilizada em diversas conota- uma leitura alternativa às interações entre compor-
ções — não é casual ser um dos termos com mais tamento humano e organização. Assim, a natureza
significações em dicionários e enciclopédias. Há o psicossocial do espaço de trabalho permite visualizar
espaço da sala, do verde, de um país, de um refrige- como o trabalhador aceita, utiliza, investe ou rejeita
rador, o espaço ocupado pelo corpo etc. Na busca seu trabalho (FISCHER, 2010).
de um conceito sobre espaço, este texto se apoia nos
argumentos de Milton Santos, que o define como um Tido também como sinônimo de espaço, lugar
produto da ação dos homens sobre si mesmo (o pró- significa um conjunto de objetos que tem autonomia
prio espaço), por meio da intermediação de objetos, de existência pelos elementos que o formam, porém
sejam eles naturais e/ou artificiais. Nesse sentido, o sem autonomia de significação, pois ao longo do
espaço constitui um conjunto indissociável de sistemas tempo surgem novas funções atribuídas aos lugares
de objetos e de sistemas de ações onde, de um lado, em substituição às antigas, ininterruptamente. As ruas
os sistemas de objetos determinam a forma como se são um exemplo disso, uma vez que, em princípio,
estabelecem as ações e, do outro, o sistema de ações servem a uma determinada função, mas em momen-
resulta na criação de objetos novos ou se realiza sobre tos distintos podem vir a desempenhar outras. Assim,
objetos preexistentes; e é a partir dessa dinâmica con- embora os lugares possam continuar sendo os mes-
tínua que o espaço se transforma. Espaço significa mos, as situações e o contexto histórico relaciona-
movimento (SANTOS, 1988; 2006). dos a eles mudam, havendo a possibilidade de um
mesmo lugar assumir funções diferentes (SANTOS,
Conforme Milton Santos, o espaço hodierno repre- 1988). De acordo com Spink (2001), o conceito de
senta um sistema de objetos cada vez mais artificiais, lugar remete a um espaço ocupado de uso para um
povoado por sistemas de ações igualmente artificiais, determinado fim ou, de maneira mais simples, um
cujos fins causam estranheza ao lugar e a seus habi- local povoado. O lugar está em constante construção
tantes. O autor compreende o espaço como um con- e representa aquilo que os homens possuem, onde
junto interativo de fixos e fluxos — enquanto os fixos os horizontes e limites dos lugares são produzidos e
são elementos estabelecidos em determinado lugar, disputados pelos próprios homens.
os fluxos são o produto (direto ou indireto) de inter-
venções nos fixos, modificando tanto sua significação, O lugar também remete a uma história, a percep-
seu valor e eles mesmos, concomitantemente. Os fixos ções e valores relacionados à memória que conferem
permitem ações que alterem a dinâmica do lugar, ao múltiplos significados que refletem a identidade cultural
dos povos que se relacionam com eles (STEPHENSON, dos estudos organizacionais, passou a reconhecê-la
2010). Assim, numa perspectiva mais abrangente, o como organização, ou seja, a organização-cidade.
lugar e o espaço podem extrapolar a visão de uma Cidades e organizações têm em comum a complexi-
representação estática do mundo natural, chegando dade, a diversidade, a singularidade, a contradição e
a uma ótica que reconheça tais termos dentro de uma a ambiguidade (FISCHER, 1996; 1997).
dinâmica de construção social (SOJA, 1989), pois espa-
ços e lugares são meios onde se estabelecem experiên- Ao examinar aquilo que chamamos de organiza-
cias, significados e simbolismos humanos (MESQUITA, ções formais a partir do lugar, lançando, portanto,
1998; IPIRANGA, 2010). um olhar metaforicamente de fora para dentro, e
tendo de descrevê-las para iniciar seu estudo, talvez
Para Santos (2006), a compreensão dos fenôme- nosso ponto de partida não seja nem o tipo, nem a
nos espaciais não se dá sem levar em consideração estrutura, nem o tamanho, nem a tecnologia, nem
o tempo, visto a inseparabilidade dessas categorias a estratégia, nem a meta, mas o simples fato social
(espaço-tempo). Diferentes dimensões de espaço e de sua existência ou presença como espaço social
tempo convivem, nem sempre em harmonia. Passado delineado, com acesso restrito e parcialmente priva-
e presente estão articulados com vistas à produção e tizado (SPINK, 2001, p. 20, grifo do autor).
difusão de uma cultura local que simboliza o patrimô-
nio da cidade. Os universos locais são multifacetados, A cidade pode ser entendida, então, como uma
policromáticos, singulares e diversos, formando teias megaorganização — real e virtual, concreta e simbólica.
organizacionais mais ou menos densas. No mesmo Essa megaorganização contém espaços e ciberespa-
espaço podem conviver, por exemplo, um shopping ços que são ocupados por diversas outras organiza-
center e um estádio de futebol, um bloco de carnaval ções, também reais e virtuais, concretas e simbólicas,
e um mosteiro, uma empresa de ônibus e uma baiana das mais simples às mais complexas. Existem ainda
microempresária de acarajé (FISCHER, 1996; 1997). as micro-organizações, que podem conviver em um
Nesse contexto, “a cidade, suas ruas, seus bairros mesmo espaço, vivendo tempos distintos, formando-
e equipamentos são espaços e suportes concretos se a partir de interesses episódicos (arrecadação de
de sociabilidade e experiências, formando uma base fundos para uma campanha social), momentâneos
material com a qual é possível pensar, avaliar e reali- (passeata), ou intermitentes (um time de futebol de
zar uma possível gama de sensações e práticas sociais domingo ou ainda um grupo de vendedores ambu-
compartilhadas” (IPIRANGA, 2010, p. 68). lantes). A cidade é constituída, assim, por diversas
unidades organizativas (organizações e micro-organi-
A cidade, uma realidade plural e polifônica é, antes zações) que, juntas, representam um todo maior que
de qualquer outra classificação, o sentido que a ela a soma das partes (FISCHER, 1996; 1997).
se atribui. A memória de uma cidade é observada,
percebida e interpretada “por meio dos seus lugares, Nesse sentido, as organizações-cidade têm tanto
das suas falas e dos seus silêncios, das suas lembran- aspectos estruturais e formais, quanto simbólicos.
ças e dos seus esquecimentos, da conservação e da Assumido que esses últimos não são passíveis de
invenção” (IPIRANGA, 2010, p. 70). Em geral, ao se gerenciamento em razão do caráter subjetivo dos
falar de cidades, remete-se, sem maiores análises, à que atribuem significados aos fatos sociais e organi-
sua compreensão como o espaço que é distinto do zacionais, a concepção de organização-cidade que
campo, composto por “um amontoado de prédios, será aqui adotada trata dos aspectos simbólicos da
avenidas e veículos, jardins e detritos, pontes, esca- cidade, concebendo-a como “projeto de produção
darias e pessoas em movimento” (IPIRANGA, 2010, de espaço urbano em um contexto geográfico per-
p. 70). Contudo, as cidades são muito mais do que meado por uma dinâmica sociosimbólica territorial”
isso. Se a cidade é olhada de maneira ampla, ela pode (SARAIVA, 2009, p. 82).
ser enxergada como uma organização, um fluxo em
transformação compreendido por meio de realidades Ao falar de espaço, fala-se de cultura — o berço
e metáforas. A inclusão da cidade como objeto no no qual indivíduos e grupos absorvem códigos de
campo da Administração, e em especial no campo aprendizagem e interações com o ambiente (FISCHER,
2010). A cultura, entendida em um sentido abran- grupos sociais em seus diversos tempos e espaços na
gente, agrupa três sistemas: cultural, simbólico e ima- produção de signos, linguagens e, em última instân-
ginário; e se as organizações podem ser consideradas cia, de linguagem da cidade ou linguagem urbana.
culturas — com base na metáfora de organização Mac-Allister (2001) aponta para a cultura citadina
de Morgan (1996) — a cidade, organização local como um conjunto que abraça diversas outras cultu-
por excelência, passa a ser um espaço de ressonân- ras que interagem entre si, criando, entre outros ele-
cia cultural, produtora de continuidades, rupturas e mentos, sentimentos, o que foi ratificado por Saraiva
inovações culturais. “Ao inovar em suas formas de (2009). Assim, vale ressaltar as ideias de Roncayolo
apropriação e gestão do espaço, a cidade pode estar (1986) sobre a importância do simbólico para expli-
garantindo continuidade cultural quando elementos car ambos, estrutura e tecido urbano, e como esses
tradicionais são reinventados e reintegrados em novas símbolos são criados, para quem e por quem.
configurações dinâmicas de ação” (FISCHER, 1997,
p. 257). Inovações e continuidades, produtos e pro- 1.2. Territorialidade
cessos das dinâmicas urbanas e suas manifestações,
podem estar integrados em um mesmo movimento, A configuração territorial ou geográfica é o conjunto
a exemplo de centros históricos. Dessa forma, a cul- formado pelos sistemas naturais de uma determinada
tura da cidade erige como espaço de enraizamento, área e pelos “acréscimos que os homens superim-
memórias, interação, fronteiras e hibridismo, constroi puseram a esses sistemas naturais” (SANTOS, 2006,
no tempo identidades, produz e reflete identificações, p. 38). Apesar de os conceitos de configuração ter-
símbolos, signos e significados (IPIRANGA, 2010). ritorial e espaço se diferenciarem em sua natureza,
um pode ser incorporado pelo outro, respectiva-
Mac-Allister (2001) desenvolveu o conceito de mente. Enquanto a configuração territorial significa
organização-cidade com base no conceito de signo ou tão somente uma realidade material de existência
uma prática semiótica. Para sustentar a concepção de própria, o espaço integra a ela aspectos vitais que a
organização-cidade de signos, a autora se valeu dos animam. Em outras palavras, a configuração territo-
argumentos de Roncayolo (1986) sobre cidade como rial existe por si só, mas a partir da inserção de rela-
representação ou um conjunto de representações, que ções sociais ela passa a existir socialmente; ou seja,
terminam por mesclar duas realidades distintas: a rea- reunindo materialidade e vitalidade, a configuração
lidade dos habitantes e a dos produtores do espaço. territorial se torna um espaço (SANTOS, 1988; 2006).
O autor enfatiza que as representações da cidade
devem passar dos produtores do espaço — modelos No começo da história do homem, a configuração
construídos pelos urbanistas — aos habitantes, aos territorial é simplesmente o conjunto dos complexos
citadinos, na medida em que estes “actores passi- naturais. À medida que a história vai fazendo-se,
vos ou, embora dominados, são capazes de modifi- a configuração territorial é dada pelas obras dos
car, graças às suas práticas, o sentido atribuído aos homens: estradas, plantações, casas, depósitos,
objectos e aos locais urbanos” (RONCAYOLO, 1986, portos, fábricas, cidades etc.; verdadeiras próteses.
p. 478 apud MAC-ALLISTER, 2001, p. 136). Cria-se uma configuração territorial que é cada vez
mais o resultado de uma produção histórica e tende
Mac-Allister (2001) aponta que as representações a uma negação da natureza natural, substituin-
da cidade são divididas entre as representações dos do-a por uma natureza inteiramente humanizada
produtores do espaço (urbanistas e gestores), dos habi- (SANTOS, 2006 p. 39).
tantes, dos turistas e dos frequentadores, o que mostra
a cidade como um processo representativo de vários As práticas e intervenções sobre o espaço são lidas
sujeitos, sejam eles indivíduos ou grupos de indivíduos, por Fischer (2010) como apropriação — formas de
em uma infinidade de tempos e espaços. A autora interação que expressam aspectos subjetivos dos ato-
sustenta que é nesse campo de conhecimento da res sociais por meio de ocupação ou utilização espe-
semiótica, em conjunto com os demais, que se pode cífica do espaço. Em poucas palavras, apropriar-se
interpretar a representação da cidade como um pro- significa “tornar seu, se atribuir, se dar a propriedade
cesso atribuído por um sem-número de indivíduos e de alguma coisa, mesmo que ela não nos pertença
legalmente”. Este processo apropriativo revela que (FISCHER, 2010). Comportamentos territoriais são
o comportamento humano não é passivo, ficando o usados para construir, comunicar, manter e restaurar
espaço sujeito à intervenção física e/ou psicológica dos territórios nas organizações. Brown (2005) caracteriza
sujeitos. Partindo dos estudos etológicos sobre como dois tipos de comportamentos territoriais: as marca-
os animais se comportam em seus hábitats, a psico- ções e as defesas. A marcação (marking) se refere
logia ambiental incorporou a ideia, aplicando-a ao aos comportamentos dos membros que constroem
contexto humano. A psicologia ambiental faz uso e comunicam aos outros na organização sua ligação
do conceito de território para “designar um lugar ou com objetos organizacionais particulares, demarcando
uma área geográfica ocupada por uma pessoa ou um fronteiras territoriais e indicando a relação entre um
grupo: o território é nessas condições a propriedade território e um indivíduo. Exemplos incluem aspectos
de uma pessoa ou de um grupo que se torna, de certa físicos, como uma placa de identificação na porta da
maneira, proprietário dele” (FISCHER, 2010, p. 84). sala de um empregado, fotos dos filhos na mesa do
computador ou um casaco jogado em uma cadeira.
Brown (2005) define territorialidade como a expres- Também se referem a aspectos sociais, como títulos
são comportamental de um indivíduo, bem como seus usados por alguns profissionais, os rituais sociais que
sentimentos de posse em relação a um objeto físico transmitem pertencimento e acesso ou pronunciamen-
ou social. Mas, ao contrário de estudos tradicionais de tos públicos da própria ideia para garantir que todos
territorialidade, que limitam a análise desse fenômeno saibam a quem ela pertence. As marcações podem
ao espaço ou até mesmo a objetos físicos, o autor pon- ser orientadas para a identidade, quando refletem os
tua que a territorialidade pode envolver, para além dos aspectos identitários dos sujeitos, e orientadas para o
aspectos tangíveis, tais como espaço físico e bens, os controle, quando dizem respeito a sinalizações que visam
aspectos intangíveis (ideias, papeis e responsabilidades) comunicar o uso ou a posse de determinado espaço.
e entidades sociais (pessoas e grupos). Essa definição
inclui comportamentos para a construção, comunica- As defesas (defenses) são o segundo tipo de com-
ção, manutenção e restauração de territórios em torno portamento territorial apontado por Brown (2005) e
desses objetos na organização para a qual existe um constituem, como o próprio termo sugere, ações vol-
sentimento de propriedade. tadas para a defesa de territórios. Territórios também
geram conflitos, principalmente quando são invadidos
Brown (2005) aponta que territorialidade implica a ou violados por terceiros. Por isso, o medo de que a
presença e aplicação do domínio psicológico, que se violação do território venha a acontecer ou mesmo
refere a sentimentos de posse e apego em relação a raiva resultante de uma violação são sentimentos
a um determinado objeto. A territorialidade remete a que desencadeiam as defesas territoriais. As defesas
ações ou comportamentos que, muitas vezes, ema- podem ser, assim, antecipatórias, prevenindo a violação
nam de propriedade psicológica dos sujeitos para fins de espaços/objetos, e reativas, isto é, ações do sujeito
de construção, comunicação, manutenção e restau- em relação à violação de seu espaço/objeto.
ração de uma ligação com um objeto. Entretanto,
esse fenômeno não acontece simplesmente para O território implica, assim, a delimitação de uma
expressar alguma forma de apego em relação a um área de influência e de controle particular, compor-
objeto (“meu escritório”), pois está centralmente tando, simultaneamente, funções apropriativas e
preocupado em estabelecer, comunicar e manter identitárias. Os territórios podem ser delimitados de
a relações com esse objeto que não se aplicam a várias formas, mas tendo sempre em seu plano
outros objetos no meio social (“meu escritório e não de fundo aspectos culturais e sociais intrínsecos.
o seu”), o que denota o caráter idiossincrático — e Uma das formas dessa demarcação são as fronteiras,
mesmo exclusivo — da territorialidade. limites, zonas reais ou simbólicas que expressam que
algo está sendo guardado, protegido e que não será
Quando um indivíduo ocupa um determinado penetrada, sem que desencadeie reações de defesa.
lugar, tende a desenvolver comportamentos que des- Nessa perspectiva, as fronteiras assumem um papel
pontam para a dominação territorial, isto é, exercem preventivo, anunciando a outrem que determinado
maior influência nesse local em detrimento de outros espaço já está sendo ocupado. Os territórios são,
portanto, marcados por meio de objetos, sinais ou (1) pela Rua Curitiba, percorrendo 2.300 metros em um
símbolos (FISCHER, 2010), podendo ser considerados tempo médio de 7 minutos; (2) pela Avenida Olegário
construções sociais (BERGER; LUCKMANN, 2002), visto Maciel, percorrendo 2.700 metros em um tempo médio
que alteram a lógica formal de determinado espaço de 8 minutos; (3) ou ainda pela Avenida Olegário Maciel
em detrimento das aspirações subjetivas dos sujeitos. e Rua Curitiba, percorrendo 3.100 metros em um tempo
médio de 9 minutos. Entretanto, o espaço da Rua Santa
Catarina ao qual nesse artigo se limita a estudar com-
2. PERCURSO METODOLÓGICO preende o fim da rua — um espaço de 140 metros
localizado geograficamente entre a Rua dos Tupis e a
Nesta pesquisa, analisou-se a territorialidade em Avenida Amazonas. Essa limitação se deu em razão de
uma organização-cidade a partir da observação da esse ser um local territorializado pelos participantes do
Rua Santa Catarina, localizada no centro da cidade movimento Quarteirão do Soul. Portanto, nesta análise
de Belo Horizonte. Sob uma abordagem qualitativa, descritiva, ao mencionar “Rua Santa Catarina” estará
foi conduzido um estudo exploratório-descritivo, por se referindo a esse fragmento local específico.
meio da observação sistemática do lugar, onde foram
analisados: a) suas características, b) sua funcionali- Trata-se de um espaço majoritariamente comer-
dade, fluxo e frequentadores, e c) práticas territoriais. cial, conforme a Figura 1. São 28 estabelecimentos
Segundo Gil (1987), a pesquisa social exploratória ao todo: 1 frigorífico, 2 sapatarias, 1 loja de porcela-
é satisfatória quando o fenômeno estudado ainda é nas, 1 panificadora, 1 estacionamento, 2 biscoiterias,
novo; já a pesquisa social descritiva é utilizada quando 1 queijaria, 1 restaurante, 4 mercados de hortifruti-
se pretende descobrir as características de um grupo ou granjeiros, 1 alfaiataria, 1 motel, 1 loja de temperos,
fenômeno ou a relação entre variáveis. O autor ressalta 3 mercearias, 2 bares, 1 drogaria veterinária, 1 salão
que a pesquisa descritiva vai além da simples identifi- de beleza, 1 loja de confecções, 1 loja de chapéus, 1
cação de relações entre variáveis, mas suscita descobrir chaveiro e 1 prédio disponível para aluguel. Durante
sua natureza. A ligação desses dois tipos de pesquisa a semana, a função maior que a Rua Santa Catarina
ocorre quando o que se pretende estudar sugere uma assume é a de lugar comercial e lugar de passagem,
atenção diferenciada sobre o problema proposto. com muitos e variados frequentadores. Há os traba-
lhadores dos estabelecimentos comerciais, os tran-
A coleta de dados se deu a partir da observação e seuntes (pedestres, motoqueiros, condutores de veí-
registro de campo dos três elementos acima descritos culos, vendedores ambulantes) e os mendigos. Por ser
para análise. Para dar suporte às descrições, também um espaço repleto de lojas e localizado no centro da
foram realizados registros fotográficos, que ilustram cidade, há um intenso movimento comercial, no qual
a dinâmica territorial do lugar estudado1. Também os frequentadores, intencionalmente ou não, estabe-
foram realizadas buscas e análises documentais rela- lecem relações de compra.
cionadas ao Quarteirão do Soul, tais como o website
do movimento e fotos e vídeos disponíveis na internet. Os prédios da Rua Santa Catarina são de arquite-
tura relativamente antiga, com fachadas explicitando
2.1. A Rua Santa Catarina e seus múltiplos lugares sua natureza comercial, em geral com pequenos espa-
ços com portas de aço monocolores, com o nome
A Rua Santa Catarina é uma via de acesso de mão do estabelecimento e lonas protetoras contra o sol.
única de 1.500 metros de comprimento situada entre Paralelamente ao ambiente artificial construído na rua,
a Avenida do Contorno e a Rua dos Tupis, no centro de o espaço “natural” — elementos ambientais da pai-
Belo Horizonte. Para cruzar toda a extensão da rua, o sagem — é restrito, o que em muito é explicado pela
tráfego motorizado pode ser realizado em três opções: conjuntura dos espaços urbanos e seus elementos que
surgiram a partir da modificação dos espaços naturais.
Das poucas árvores existentes, algumas estão disper-
1
As fotografias foram registradas pelos próprios autores e
não foram objetos de análise, tendo em vista o propósito da
sas, complementando as fachadas das lojas, e outras
pesquisa. Sua inclusão se justifica apenas como elemento concentradas no fim da rua, formando uma espécie
ilustrativo das descrições. de minipraça; isso porque as árvores desse espaço são
Tal figurino compõe-se de tecidos finos, chapéus e vendedores formais já existentes na Rua Santa Catarina.
sapatos bicolores. Os homens geralmente usam calças Os vendedores do movimento comercializam bebidas,
pretas com camisas e/ou ternos brancos, suspensórios e alcoólicas e não alcoólicas, e camisetas personalizadas
chapéus pretos, como pode ser observado na Figura 4. sobre o soul, com verbetes como “I love black soul”
ou com fotos de James Brown. Parte da renda é de
Já as mulheres usam um figurino menos padronizado — usufruto dos vendedores, ao passo que outra ajuda a
algumas um conjunto de calça e blusa de tecido, tam- financiar o transporte do equipamento de som dos DJs.
bém com chapéus e sapatos bicolores, algo característico
do figurino masculino. Outras usam vestidos brilhantes Esse fenômeno evidencia as características de marca-
ou calças coloridas, sandálias, trocando os chapéus por ções e defesas do comportamento territorial (BROWN,
algum acessório no cabelo, conforme a Figura 5. 2005; IPIRANGA, 2010; FISCHER, 2010). Ao limitar a
participação de outros vendedores no local, eles defen-
Entre os participantes, ainda se encontram os ven- dem o seu território e suas funções. A sinalização da
dedores informais, que paralelamente à festa pro- rua com cones de trânsito evidencia uma marcação
priamente dita, comercializam e dançam (Figura 6). orientada para o controle, comunicando aos outros
De acordo com uma espécie de código estabelecido que aquela área está sendo utilizada com outra fun-
entre os próprios integrantes, não é permitida a entrada ção. Já a comercialização exclusiva de bebidas denota
de nenhum vendedor informal avulso, excluindo-se os uma defesa reativa, pois caso algum outro vendedor
um movimento capitaneado por um perfil relativamente modo objetivo, um espaço funcionalmente dado
homogêneo de participantes — homens e mulheres e pré-determinado, e incluir nessa análise as inter-
negros de classe média baixa — não restringe a parti- venções dos sujeitos na construção desses lugares,
cipação de indivíduos e grupos de indivíduos de outros pois um espaço não existe sem os sujeitos que o
perfis sociodemográficos. movimentam (SARAIVA, 2009).
Além disso, o fato de a rua ser pública também A compreensão das intervenções urbanas, em
confere direitos iguais a todos os indivíduos que ali especial a territorialidade, possibilita aperfeiçoar as
desejem estar. Por outro lado, o Quarteirão do Soul tor- práticas de gestão da cidade na medida em que se
na-se algo privado quando limita a Rua Santa Catarina, considerem as manifestações dos indivíduos. O que
aos sábados a tarde, aos usos do próprio movimento. se quer dizer é que as práticas territoriais em uma
A territorialidade fica evidente quando esse grupo de organização-cidade possibilitam que a administração
indivíduos defende o espaço-tempo ocupado, seja pública e sistemas de gestão correlatos desenvolvam
por outros grupos de indivíduos que porventura quei- políticas citadinas levando em consideração as inten-
ram se apropriar da Rua Santa Catarina aos sábados cionalidades e consequências dessas intervenções.
à tarde, seja por vendedores informais que também O Quarteirão do Soul, existente já há oito anos, inter-
desejem atuar no movimento. O espaço de todos fica fere na dinâmica da Rua Santa Catarina ao transfor-
restrito aos desejos e usos de uma pequena parcela mar um simples espaço comercial em um ambiente
de indivíduos que impõem um novo sentido ao que, múltiplo; ali, os indivíduos que já faziam uso do espaço
a princípio, seria público. para o exercício de sua atividade profissional passaram
a dividir esse espaço com outro grupo de indivíduos,
modificando a lógica existente e criando desafios para
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS a gestão urbana, como os ligados à organização do
fluxo de veículos e de pessoas, à segurança pública,
O objetivo deste estudo foi analisar a territo- à estruturação de atrativos turísticos, à recuperação
rialidade em uma organização-cidade, tendo sido de áreas centrais degradadas, à ação social em geral,
especificamente observado como esse fenômeno entre outras possibilidades.
influencia a dinâmica espacial da organização-cidade
Belo Horizonte em três aspectos específicos: a) suas Junto com os blacks do Quarteirão do Soul vieram
características; b) sua funcionalidade, fluxo e frequen- a música, a dança e um maior fluxo de indivíduos
tadores; e c) suas práticas territoriais. O objeto estu- frequentando o local. E como se dá a relação entre
dado foi a Rua Santa Catarina, localizada no centro esses diversos grupos? O Quarteirão do Soul, que já
da referida cidade, pelo fato de ela apresentar um atrai timidamente alguns turistas, alterou positiva ou
movimento territorial frequente há alguns anos: o negativamente a dinâmica daquele espaço comer-
Quarteirão do Soul. Analisou-se essa rua em dois cial? O fato de também comercializarem produtos
momentos: o momento rotineiro, quando é ape- interferiu na movimentação dos estabelecimentos
nas mais uma das inúmeras ruas do centro de Belo comerciais ali fixados? E de que forma é possível
Horizonte, e num segundo momento, quando ela é planejar e desenvolver políticas que beneficiem os
apropriada e se transforma no Quarteirão do Soul. diversos públicos a partir das manifestações urbanas
de caráter simbólico? Todos esses questionamentos
A partir da análise descritiva da Rua Santa Catarina evidenciam a necessidade de se ampliarem os estu-
identificou-se como um mesmo espaço pode abrigar dos sobre territorialidade na organização-cidade,
vários lugares: o lugar dos comerciantes, o lugar de principalmente pelo caráter simbólico que subsidia
passagem dos transeuntes, o lugar dos participan- tais ações. Dessa forma, ao se perceber e aceitar as
tes do movimento Quarteirão do Soul, o lugar dos intervenções sociais no espaço urbano, a cidade é
mendigos. Visualizar o lugar como uma construção vista para além de seus limites geográficos, prédios,
social abre margem para que se trate dos espaços avenidas, bairros, leis, códigos: a cidade é o que o
de maneira ampla — ao invés de percebê-los de seu povo acredita, vivencia e (re)cria.
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