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Formas de Ver:

A Imagem Fotográfica como Construção Social e


Cultural
Livia Gabriela dos Santos Diniz∗
Adriana Imbriani Marchi Veiga†

Índice Resumo
1 Introdução 2 O presente estudo é uma análise da imagem
2 Objetivos 3 fotográfica sob o olhar da antropologia vi-
3 Revisão Bibliográfica 3 sual, de forma que a mesma não seja en-
4 Metodologia 6 tendida apenas como mero documento ou
5 Resultados e Discussão 7 uma referência exata do real nela represen-
6 Conclusão 10 tado, mas seja concebida e analisada como
7 Referências 10 um instrumento de construção social. Para
∗ tal, foram levantados conhecimentos teóri-
Acadêmica do Curso de Artes Visuais Ű Multi-
mídia da UNOPAR Ű Universidade Norte do Paraná. cos a partir de autores que abordam a fo-
Endereço: Av. Juscelino Kubtscheck, 1429. CEP: tografia como uma construção social e que
86020-000. Londrina Ű Paraná. Fone (43) 324- analisam o campo de visualidade das ima-
4874; (43) 9122-8260. E-mail: lgdiniz@uol.com.br. gens. Com base nesse referencial teórico,
Aluna de iniciação científica com o Subprojeto inti-
buscou-se subsídios para embasar uma re-
tulado "Formas de ver: A imagem fotográfica como
contrução social e cultural", vinculado ao projeto de flexão crítica sobre a imagem e o campo
pesquisa ŞNo Campo da Visualidade: Criação e Man- de visualidade, foco deste estudo. A partir
ifestação ImagéticaŤ, sob orientação da Prof. Adriana das reflexões levantadas no campo teórico,
Imbriani Marchi Veiga. buscou-se responder as seguintes questões:

Mestre em Ciências Sociais Ű UEL; Especial-
Por que, geralmente, a fotografia é conce-
ista em Fotografia Ű UEL; Graduada em Artes Vi-
suais/Licenciatura Ű UEL; Docente do Curso de bida como realidade? É possível aceitar-se a
Artes VisuaisŰMultimídia Ű UNOPAR; Responsável hipótese de que o observador é intérprete das
pelo projeto de pesquisa: ŞNo Campo da Visual- imagens que o rodeiam? A imagem fotográ-
idade: Criação e Manifestação ImagéticaŤ Ű UN- fica pode ser entendida como construção so-
OPAR. Endereço: Rua Conrado Sheller, 81 Ű Pq.
Sella. CEP: 86192-430 Ű Cambé - Paraná. Fone:
cial e cultural? Para enriquecer a discussão
(43) 3035-3320; (43) 9965-1598. E-mail: adri- acerca dessas questões, foram realizadas im-
marchiveiga@hotmail.com. agens fotográficas da favela Marízia, situada
no município de Londrina – PR, as quais
2 Livia Gabriela dos Santos Diniz, Adriana Imbriani Marchi Veiga

carregam fragmentos expressivos da reali- readers who will be encouraged to reflect by


dade sofrida das pessoas que ali sobrevivem themselves.
com carência de recursos financeiros e de in- Key-words: Visual Anthropology; Fo-
fraestrutura social. As imagens apresentadas toetnografia; Photography; Visuality.
foram analisadas e podem ser interpretadas
pelos leitores que serão, por elas, instigados
1 Introdução
à reflexão.
Palavras-chave: Antropologia Visual; O presente estudo tem como objetivo discutir
Fotoetnografia; Fotografia; Visualidade. duas questões em relação à imagem fotográ-
fica. A primeira delas diz respeito à fotoetno-
grafia como meio de se levar a sociedade a
Abstract
refletir sobre as diferenças sociais que per-
This study is an analysis of the photographic meiam a realidade contemporânea. A fo-
image from the viewpoint of the visual an- toetnografia possibilita a construção de nar-
thropology, so that it shall not only be un- rativas sociais e culturais por meio de ima-
derstood as simple document or a accurate gens fotográficas contextualizadas que, por
reference of the represented reality, but be si só, contam a sua história, não necessitando
designed and analyzed as an instrument of de outros recursos auxiliares para sua com-
social construction. For this purpose, there preensão.
were collected theoretical information from A segunda questão a ser analisada é a da
authors that deal with photography as a so- fotografia e o campo da visualidade: Como
cial concept and that examine the field of vi- a fotografia vem sendo concebida? Ela ainda
sual images. Based on this theoretical frame- tem o papel de ser um registro fidedigno da
work, grants were pursued for critical reflec- realidade? Percebe-se que pouco se discute
tion on the image and field of visuality, the a respeito da autenticidade da fotografia, ou
focus of this study. From reflections raised o quanto esta é aberta a diferentes formas de
from the theoretical field, we tried to an- interpretação. Entende-se que, desde o mo-
swer the following questions: Why, gener- mento em que a fotografia é concebida pelo
ally, is the picture conceived as reality? Can fotógrafo, ela sofre influências, visto que o
one accept the hypothesis that the observer recorte fotográfico é uma interpretação que
is an interpreter of the images that surround o mesmo faz da realidade. O receptor da im-
him? Can the photographic image be un- agem fotográfica, por sua vez, naturalmente
derstood as social and cultural construction? inserido em outro contexto social, faz uma
To improve the discussion about such issues, segunda leitura da mesma realidade. Desta
there were taken photographic images of the forma, discute-se a ambiguidade das ima-
Marisa Slum, located in the city de Londrina gens por suas múltiplas significações, pois,
- PR, which carry expressive fragments of independente da intenção do fotógrafo ao
the suffered reality of people that there sur- produzi-las, admite-se que um simples de-
vive with the lack of both financial resources talhe pode atrair mais atenção do que o todo
and social infrastructure. The presented im- intencionalmente previsto dentro do campo
ages were analyzed and can be interpreted by visível exposto.

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Formas de Ver 3

A partir de imagens fotográficas real- corriqueiras. É por meio desse processo de


izadas na Vila Marízia, situada no municí- percepção e compreensão da realidade que
pio de Londrina, e com base nos conteú- são construídos os valores culturais e soci-
dos teóricos levantados, buscou-se estimu- ais, ou seja, a partir do momento em que os
lar a percepção visual e a capacidade de re- olhos percebem, o indivíduo faz a sua leitura
flexão dos espectadores em relação ao cotidi- de uma determinada realidade, evento ou im-
ano dos moradores da localidade em questão. agem, o que o leva a uma reflexão e, conse-
Buscou-se também, verificar e, a partir das quentemente, a formulação de conceitos.
leituras apresentadas, estabelecer a relação A utilização da fotoetnografia, neste tra-
entre a fotografia e o campo de visualidade. balho, contribuiu, significativamente, para a
construção de novas possibilidades de narra-
tiva visual. A fotoetnografia, assim nomeada
2 Objetivos
por ACHUTTI (1997), é a utilização da im-
1. Geral: - Refletir sobre a fotoetnografia agem como instrumento narrativo etnográ-
e sobre o campo da visualidade. fico, ou seja, como um documento que traz
consigo dados culturais numa perspectiva
2. Específicos: - Verificar a veracidade etnográfica.
da imagem fotográfica, ou seja, se ela É de extrema importância que a sociedade
ainda mantém seu papel documental de tenha informações que possam contribuir
representação do real; para o seu desenvolvimento social. Neste
sentido, a imagem fotográfica pode ser uti-
• - Refletir sobre as diferentes inter- lizada como instrumento de interpretação do
pretações de uma mesma imagem real e, assim, favorecer o processo de análise
por parte de espectadores diver- de um determinado campo proposto, em re-
sos; lação à verdade apresentada e ao recorte ou
• - Ressaltar que há diversas formas fragmento da realidade selecionada, o que
de se ler e interpretar uma mesma estimula o desenvolvimento de uma interpre-
imagem; tação crítica e sensível do quadro e do extra-
• - Mostrar a imagem fotográfica, quadro da fotografia.
no campo da antropologia visual, A imagem fotográfica utilizada nesse es-
como construção social e cultural, tudo busca apresentar a realidade visível,
a partir de reflexões sobre um en- através do olhar crítico do pesquisador. Por
saio fotográfico no âmbito social. meio de recortes diferenciados, pretende-se
destacar alguns detalhes, muitas vezes não
percebidos ao primeiro olhar. Assim, a uti-
3 Revisão Bibliográfica lização do caráter fragmentário da fotografia,
A antropologia visual estuda como se dá, no de acordo com Humberto,
ser humano, o processo de conhecimento e pode atribuir importância a certas
compreensão da realidade sensível e do co- questões que, ao serem retiradas de
tidiano dos indivíduos em suas atividades uma realidade maior e tridimensional,

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ganham novos e especiais contornos. Essa subjetividade presente no pro-


Isso não determina, necessariamente, cesso de criação não compromete as suas
a falsificação de uma verdade ou pa- atribuições de informar e retratar a realidade.
trocínio artificioso de uma relevância, Entretanto, conforme Barthes (1995), em-
mas apenas a descoberta de uma nova bora, na fotografia, a imagem representada
essência legítima. (HUMBERTO, 2000, não seja ”o real”, é uma analogia do contexto
P. 46). que intentou eternizar, não apresentando,
contudo, um significado único, pois seria
Segundo Bittencourt, as várias disciplinas inexato. Segundo Barthes:
responsáveis pela criação do conhecimento diante de uma fotografia, o sentimento de
e da verdade utilizam a fotografia como ”denotação”, ou de plenitude analógica, é tão
importante recurso para a comprovação de forte, que a descrição de uma fotografia é, ao
seus objetivos. Neste sentido, é conhecido pé da letra, impossível; pois que descrever
o fato de que fotografias e textos escritos consiste precisamente em acrescentar à men-
sempre foram documentos importantes na sagem denotada um relais ou uma segunda
construção de estereótipos, ao estabelecer a mensagem, extraída de um código que é a
noção de Outro em relação e em contra- língua [..] (BARTHES, 1990, P. 14)
posição à de nós. Para Bittencourt: Outro autor, Boris Kossoy, acredita que
a fotografia é um ”duplo testemunho: por
Na construção da alteridade, fotografias
aquilo que ela nos mostra da cena pas-
criaram a realidade destes estereótipos,
sada, irreversível, alí congelada fragmentari-
em grande parte devido à noção de obje-
amente, e por aquilo que nos informa ac-
tividade ligada à imagem no pensamento erca de seu autor” (2001. p. 50). Ex-
do século XIX. (BITTENCOURT 1994, atamente por esse caráter de apresentação
p. 226).
da realidade fragmentada, a fotografia, neste
estudo, contribui, expressivamente, para a
Para o autor, a subjetividade é um ele-
pesquisa etnográfica, por mostrar a maneira
mento presente tanto no fazer fotográfico
como vivem as pessoas no seu cotidiano.
quanto na interpretação da imagem:
Kossoy define a fotografia como ”resíduo
”a fotografia está embebida em subjetivi- do passado”, uma fonte histórica aberta a
dade no que diz respeito à interpretação múltiplas significações, tanto para o histo-
das imagens, não podemos negar que a riador da fotografia, como para os demais
subjetividade está presente também no historiadores, cientistas sociais e outros estu-
processo de criação da imagem [..] ao diosos. ”Assim, uma mesma fotografia pode
mesmo tempo a fotografia mantém seu ser objeto de estudos em áreas específicas
compromisso com o real e a evidencia das ciências e das artes” (2001. P. 47).
dos fatos. A essência da fotografia con- Barthes via a fotografia como unária pois
siste no seu compromisso com o real” acreditava que por esta ser produzida em
(BITTENCOURT, 1994, p. 229). uma única tomada, capta o real daquele es-
pecífico momento e o congela. Para ele, a
foto pode mentir quanto ao sentido, mas ja-

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Formas de Ver 5

mais quanto à existência. O autor acredita são conferidas, a fotografia consegue trazer,
num ”real no estado passado”, como se fosse para o tempo presente, fragmentos do pas-
possível, por mágica, reter o real passado. sado como representação verídica de uma re-
Segundo o autor, alidade, de modo que o leitor os aceite sem
questionamentos e sem qualquer tipo de ex-
O referente da foto não é o mesmo que planação ou provas de sua verdade.
o dos outros sistemas de representação. Como exemplo da influência da im-
Chamo de referente fotográfico não a agem na (re)construção de realidade, Glauce
coisa facultativamente real a que me Rocha de Oliveira, em sua tese de mestrado
remete uma imagem ou um signo, mas a (2002), defende a ”imagem como con-
coisa necessariamente real que foi colo- strução” e faz comparações entre fotografias
cada diante da objetiva, sem a qual não de duas notícias publicadas em jornais reno-
haveria fotografia. A pintura pode simu- mados, sobre um mesmo acontecimento,
lar a realidade sem tê-la visto (imitações). porém, de jornalistas / fotógrafos distintos.
Na foto jamais posso negar que a coisa Observou-se que um mesmo fato pode tomar
esteve lá. Há dupla posição conjunta: proporções diversas, devido às diferentes
de realidade e de passado (BARTHES, formas de captura da imagem e à maneira
1984, p. 115). como é apresentado.
Assim, o ângulo em que a imagem foi cap-
A fotografia tem um caráter de teste- tada e as inúmeras possibilidades que se ap-
munha da história, dos fatos sociais, e, com resentam ao fotógrafo no momento da cap-
base nisso, Simonetta Persichetti considera tura desta, levam o leitor a fazer uma inter-
que, ao ”fotografar” busca-se a compreensão pretação influenciada pelo fotógrafo, a qual,
desses eventos históricos, ou seja, procura-se nem sempre condiz com a realidade dos fatos
ou de uma situação. Glauce traz a questão da
condição natural do ser humano de aceitar o
[...] transformar a consciência do ser hu- que lhe é proposto, acreditando na fotografia
mano através das emoções que as im- como base do real, ao afirmar que:
agens nos provocam [...]. A fotografia
pede uma abordagem crítica para que Nessa crença ou postura de olhos de
possa ser compreendida, levando à re- ler, nós não nos questionamos sobre as
flexão e a uma possível transformação bases do que tomamos por real. Pelo
de percepção. (PERSICHETTI, 1997, p. contrário, aceitamos o modelo de reali-
11). dade preexistente a nós, a qual, herdamos
no momento de nosso nascimento dentro
A imagem fotográfica, diferentemente de de nossa cultura e reproduzimos até hoje.
uma imagem pintada (produzida para retratar (OLIVEIRA, 2002. P. 53, 54).
uma realidade exposta) ou de um texto nar-
rativo (como os jornalísticos), adquiriu a Observa-se que os diversos olhares para
função de retratar a realidade com grande uma mesma direção podem ser distintos
propriedade. Devido às atribuições que lhe quanto às suas percepções. Cada um

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dos envolvidos (seja o sujeito de pesquisa, a nossa tendência é aceitar essas sig-
ou o pesquisador, ou ainda o observador- nificações quase que como expressões
interprete) tem uma percepção que se rela- espontâneas das imagens. Às vezes pode
ciona à sua realidade subjetiva, entendendo- ocorrer que o espectador alcance um rela-
se que o conhecimento interno é influenciado cionamento mais rico com essas ima-
pelo externo, como bem analisa o antropól- gens, subvertendo o filme, isto é, escaap-
ogo Gilberto Velho ndo às significações, especificações, se-
leções etc., que criam a locução e a mon-
Assim, seja a interação, a sociedade ou a tagem. Tal olhar, que os mecanismos de
cultura, a subjetividade - interno – é pro- significações do filme rejeitam, ou não
duzida, condicionada, fabricada pelo ex- destacam, poderá ser valorizados por um
terno. O indivíduo ou o self, dependendo espectador, por cima da construção do
da vertente, é essencialmente social. Ou filme, poderá encontrar outras leituras,
como representação ou como conteúdo, ou mesmo entrar no campo ambiguidade
o interno so pode ser explicado pelo ex- da imagem. (BERNARDET, 2003, P.
terno. Dependendo da teoria, a ênfase 249).
pode ser colocada na ideologia individ-
ualista, no desempenho de papeis , na di- A fotografia, assim, pode despertar no ob-
visão social do trabalho etc. (VELHO, servador aquilo que ele crê, não sendo, desse
2006, p. 21). modo, referência a uma única verdade preex-
istente, como ressalta Oliveira (2002). Neste
Assim, levanta-se a questão da ambigu- contexto, é necessário que se questione o
idade das imagens fotográficas, em relação que se vê em uma imagem e que se recon-
ao esforço de cada um dos envolvidos em heça que a interpretação realizada vem sem-
interpretar o campo visível sob seus aspec- pre carregada da subjetividade, que é fruto
tos críticos. Neste sentido, pode ocorrer que do meio sócio-cultural em que se está in-
um pequeno detalhe na imagem fotográfica serido.
desperte mais atenção do leitor do que, ex-
atamente, a ideia proposta pelo fotógrafo,
quando a produziu. 4 Metodologia
Jean Claude Bernandet, crítico cine- Para o desenvolvimento deste estudo foi re-
matográfico, fez um apontamento, em seu alizada uma pesquisa bibliográfica, tendo
livro ”Cineastas e imagens do povo”, sobre como base diferentes autores que versam
essa questão de espectadores que aceitam a sobre fotografia, fotoetnografia, antropolo-
informação tal como ela é, enquanto outros, gia social e campo da visualidade, para a
valorizam outros aspectos, fugindo do tema construção do referencial teórico. Assim,
central proposto pelo locutor. O autor afirma buscou-se a discussão proposta acerca da fo-
que: tografia e do campo de visualidade, bem
Há como que temor, por parte da locução, como, a prática fotográfica desenvolvida na
que se estabeleça ente o espectador e as pesquisa de campo.
imagens uma relação não prevista. E

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Formas de Ver 7

Juntamente com o referencial teórico, são Em alguns casos, pode ocorrer que nem
apresentadas algumas imagens fotográficas mesmo o pesquisador tenha pensado em uma
que foram capturadas na Vila Marízia, lo- determinada interpretação sugerida por um
calizada no munícipio de Londrina. Para observador a partir de uma dimensão mais
que se retratasse a realidade do cotidiano expandida do campo de visualidade. Assim,
dos seus moradores, buscou-se fragmentos por estar inserido num determinado con-
que evidenciassem a particularidade viven- texto, o pesquisador pode não perceber um
ciada alí, no momento exato das ações, ”detalhe” que é notado pelos observadores, o
sem qualquer interferência do pesquisador. qual pode sobrepujar-se à ideia inicial, à in-
Desta forma, apresentando o cotidiano real tenção do autor. A imagem, neste caso, passa
desses moradores, propõem-se desenvolver a ser considerada a partir de outras leituras,
a percepção visual dos leitores / intérpretes, muitas vezes, mais intensas e reflexivas do
explorando-se o campo da visualidade e que aquela proposta pelo fotógrafo.
destacando as diversas formas de se ver. Entende-se, desta forma, que as imagens
não representam exatamente aquilo que se
vê, e que seus sentidos e funções dependem,
5 Resultados e Discussão
exclusivamente, da interpretação e do olhar
Pode-se observar que a imagem fotográfica do leitor, que, por sua vez, carrega suas práti-
tem o poder de retratar a realidade e, por este cas culturais e sociais, que são constante-
motivo, acaba por convencer o receptor de mente reconstruídas.
que ela é legítima e assim, quase nunca é É com base na antropologia, ciência que
questionada em relação à sua autenticidade. auxilia o homem a conhecer-se a si mesmo e
A fotoetnografia, além de propiciar o estudo a sua própria história, que se buscou levantar
do homem inserido em sua realidade, busca apontamentos sobre a realidade ”fragmen-
instigar a percepção visual e reflexão acerca tada” da fotografia que, ao ser produzida,
dessa realidade, auxiliando, desse modo, a já embute o olhar crítico e influenciador do
construção sócio-cultural. pesquisador, e que, por manter um alto poder
Apesar dos mal-entendidos no que diz re- de convicção, geralmente, é aceita, pelo es-
speito às interpretações de imagem e ações, pectador, como cópia fiel da realidade, sem
entende-se que jamais será possível linear que este faça qualquer questionamento sobre
os conhecimentos culturais e sociais que a sua autenticidade.
cada indivíduo apresenta ou utiliza-los com a Reconhece-se, assim, a fotografia como
mesmo desígnio. O pesquisador pode inter- um instrumento eficaz para o desenvolvi-
pretar uma realidade e retirar dalí um frag- mento da percepção visual e capaz de levar
mento que condiz com as suas expectivas, o ser humano a uma reflexão de vida, aux-
as quais são influenciadas por suas práticas iliando, contudo, na construção social e cul-
sociais e culturais. Todavia, o receptor tam- tural, pois a imagem fotográfica, por usa ve-
bém está embebido numa realidade subje- racidade, pode propiciar a transformação da
tiva, influenciada por seus conhecimentos e consciência humana devido às reflexões e às
limitações, a qual nem sempre está aquém emoções que provoca.
do que lhe é proposto.

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É importante ressaltar que é necessário


que o pesquisador procure aproximar-se
e familiarizar-se com o meio a ser fo-
tografado, principalmente quando os sujeitos
da pesquisa são indivíduos que se sentem
excluídos, como é o caso do presente es-
tudo. Embora esta não seja uma tarefa sim-
ples, o pesquisador precisa incentivar estes
sujeitos a agirem de forma natural, pois es-
tão no espaço do seu cotidiano. Entretanto,
pode-se questionar: como manter a natural-
mesmo cortantes, que, juntamente com os
idade diante de um contexto subjetivamente
demais lixos expostos, causam proliferação
dramático, frente a uma câmera fotográfica
de doenças. Sabe-se que tais ”brinquedos”
que promete revelar toda a fragilidade latente
jamais poderiam estar nas mãos de crianças
desses indivíduos?
e é por isso que uma imagem como esta traz,
Este é um exercício de relacionamento que
naturalmente, um efeito impactante.
deve ser desenvolvido com bastante sinceri-
Se por um lado essa criança apresenta-se
dade e respeito pelo fotógrafo-pesquisador,
de maneira desprotegida, exposta a riscos de
para que este possa conquistar a confiança
acidentes e a doenças, pode-se, em contra-
dos sujeitos objeto do estudo.
partida, levantar uma discussão: como essa
Assim, quanto maior for a naturalidade
criança vê a si mesma? Supondo-se que
dos sujeitos, mais facilmente as imagens
essa criança soubesse falar e soubesse ex-
transmitirão a realidade vivida pelos mes-
pressar seus sentimentos e, assim, descrever
mos. Quanto à interpretação das imagens
os motivos da escolha deste ”brinquedo” ou
pelo leitor, este deve procurar ”sentir” o que
daquele, o que ela diria? E quando adulta,
cada uma delas buscou, de fato, represen-
que sentimento teria diante de sua própria
tar. A seguir, serão apresentados alguns ex-
imagem? Claro que, neste sentido, a re-
ercícios de percepção que exploram questões
sposta dependeria, integralmente, das conse-
simples do olhar, com o objetivo de mostrar
quências e dos rumos que a sua vida tomou.
que a subjetividade influencia a percepção da
Se estiver bem sucedida, poderá agradecer a
fotografia.
liberdade e a oportunidade de escolha que
O primeiro exemplo é a imagem abaixo,
lhe foi naturalmente apresentada desde cri-
retirada de um cotidiano da Vila Marízia.
ança. Por outro lado, se sua vida estiver em
Vê-se (figura 01), uma criança, com, mais
dificuldades, certamente encontrará alí uma
ou menos, dois anos de idade, ainda chu-
brecha para justificar tal fim.
pando chupeta, em meio ao lixo, seu am-
A finalidade da pesquisa não é, obvia-
biente natural. Os brinquedos que manu-
mente, apoiar situações de risco a que estão
seia não foram escolhidos, mas naturalmente
expostas muitas crianças, o que viria a ferir
adquiridos.
o que estabelece o Estatuto da Criança e do
Percebe-se, em toda a parte, muitas peças
Adolescente:
eletrônicas, metais e outros materiais, até

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Formas de Ver 9

viver alí? Quantos se colocariam naquele


meio sem sentir qualquer rejeição ou incô-
modo? Por outro lado, quem tiver uma
consciência de mundo e capacidade de con-
templação da realidade mais próxima dessas
pessoas, verá que nesse contexto também
pode existir uma alegria inexprimível, pois,
nas particularidades, existem valores difer-
entes dos visíveis e alí estão discretamente
apresentados.
Pode-se pensar: qual o sentido desse
É dever da família, da comunidade, da so-
abraço? Seria apenas uma pose para uma
ciedade em geral e do oder público assegu-
foto? O que de fato seria?
rar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
Quando se vive em uma situação finan-
direitos referentes à vida, à saúde, à alimen-
ceira precária, esses sentimentos de posses
tação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
materiais e o desejo de manter uma imagem
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
fantasiosa de si e de sua realidade dificil-
respeito à liberdade e à convivência familiar
mente existem.
e comunitária.(Estatuto da criança e do Ado-
Percebe-se que nesse abraço pode haver
lescente, 1994).
valores muito mais intensos do que, por ex-
Pode-se porém, entender que uma situ-
emplo, entre amigos que vivem em uma
ação como esta apresentada, na imagem
situação financeira boa. Em comparação,
(figura 01), adquire duas grandes cono-
pode-se imaginar estes dois, em meio a uma
tações: de um lado, evidencia o olhar pro-
festa requintada, com fartura de comida, de
tetor e crítico da sociedade que, certamente,
bebida, enfim, em uma situação financeira
se pudesse, livraria esta criança desse ambi-
oposta à da imagem. Qual valor teria um
ente; do outro lado, a sensação de liberdade
abraço nesse meio? Provavelmente, estariam
e a sede de conquistar o mundo, coberto de
alegres e expressariam sua ”alegria” devido
”brinquedos”, os quais jamais poderão ser
às circunstâncias, bem contrário ao sentido
comprados, pela ótica da criança.
proposto pela imagem.
Ainda sob esse aspecto comparativo, será
Neste sentido, as pessoas são interprétes
analisada, também, a imagem abaixo, reti-
não somente dos elementos estáticos que
rada da vila Marízia.
compõem as imagens, mas também, da vida,
Muitos destacariam, nessa imagem (figura
de acordo com o conhecimento e as práti-
02), o aspecto feio de suas casas e a julgar-
cas culturais e sociais que adquirem. As-
iam pelas madeiras quebradas e pelo chão de
sim, por essa imagem (figura 02), pode-se
barro, ou seja, a avaliariam devido à deno-
concluir que se vê um abraço entre pessoas
tação explícita de pobreza. Sensibilizar-se-
que dividem experiências difíceis e que, mu-
iam de forma triste e viriam esse cotidiano
tuamente, agarram-se a valores que não são
como algo indesejável, pois quantos recep-
visíveis. Da mesma forma, a imagem fo-
tores, num primeiro olhar, poderiam desejar
tográfica pode ter um valor que não está

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10 Livia Gabriela dos Santos Diniz, Adriana Imbriani Marchi Veiga

apenas no visível concretamente retratado, 7 Referências


mas, principalmente, no que é sugerido e
ACHUTTI, L. E. R. Fotoetnografia: um es-
que se revela de acordo com a bagagem
tudo de antropologia visual sobre co-
sócio-cultural de cada leitor que, a partir das
tidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre:
reflexões realizadas, avança, ampliando os
Tomo Editorial: Palmarinca, 1997.
seus horizontes e a sua forma de ver.
BARTHES, R. A câmara clara: nota so-
6 Conclusão bre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
Observa-se que uma mesma imagem dá
margem a diversas interpretações, o que de- BARTHES, R. O óbvio e o obtuso: En-
pende, essencialmente, da vivência, da sensi- saios críticos III . Rio de Janeiro: Nova
bilidade visual e do conhecimento social que Fronteira, 1990.
cada um apresenta.
Assim, o olhar para uma imagem fotográ- BERNARDET, J.C. Cineastas e imagens do
fica pode ser comparado a um olhar para povo. São Paulo: Companhia das Le-
vida, porque distintos seres humanos, me- tras, 2003.
diante uma mesma realidade e um mesmo BITTENCOURT, L. A. 1994. A fo-
problema, podem reagir de forma absoluta- tografia como instrumento etnográ-
mente diferente, ou seja, positiva ou negati- fico. Anuário Antropológico/92. Rio de
vamente, pois o que é de extrema importân- Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.
cia para uns, pode não ter nenhum signifi-
cado para outros. Tudo depende da visão de HUMBERTO, L. Fotografia, a poética do
mundo e da concepção de realidade de cada banal. Brasília: Editora Universidade
indivíduo. de Brasília, 2000.
Todavia, a imagem fotográfica não é um
instrumento passivo, pois tem o poder de KOSSOY, B. Fotografia & História; 2ł ed.
transformar por meio da reflexão que instiga rev. – São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
no observador. Assim, ao mesmo tempo em OLIVEIRA, Glauce Rocha de . Ver para
que a bagagem cultural de cada indivíduo in- Crer: A Imagem como Construção,
fluencia na interpretação da imagem, a im- 2002 (Dissertação de mestrado).
agem convida o observador a refletir, ques-
tionar, analisar, fato que propicia o desen- PERSICHETTI, S. Imagens da fotografia
volvimento da construção social e cultural, brasileira I. 2ł Edição – São Paulo:
possibilitando, até mesmo, a diminuição de Senac, 1997.
preconceitos. Assim, a percepção sensível
do leitor interfere na construção de narrati- VELHO, G. Subjetividade e Sociedade:
vas etnográficas que auxiliam a aproximação Uma experiência de geração. 4ł
dos indivíduos em uma sociedade. edição – Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

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