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“Viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres

de todas as que escolheram.” —Gênesis 6.2

Esse é um texto de difícil interpretação. Há basicamente três interpretações para os “filhos


de Deus”: (1) anjos caídos, (2) filhos de Sete e (3) homens poderosos. Neste texto, Walter
Kaiser Jr. resume as três posições, defendendo a última.

Existem três posicionamentos para explicar Gênesis 6.1-4. Podem ser designados da seguinte
forma: (1) a visão das raças mistas cosmologicamente (a mistura de anjos e humanos); (2) a
visão das raças mistas religiosamente (os piedosos setitas e os mundanos cainitas); e (3) a
visão das raças mistas sociologicamente (aristocratas despóticos e formosas plebeias).

O ponto de vista mais antigo e conhecido é aquele segundo o qual os filhos de deus eram
“anjos” que abandonaram o céu, vieram para a terra e mantiveram relações sexuais “com as
filhas dos homens”, deixando uma raça de “gigantes” (hebr. Nephilim). O livro pseudepigráfico
do Enoque (c. 200 a.C.), nos capítulos 6.1 – 7.6, apresenta essa teoria, assim como fizeram o
historiador Josefo (Antiguidades 1.3.1) e a Septuaginta, a tradução grega do Antigo
Testamento feita no século III a.C. (todavia, apenas o manuscrito Alexandrino o faz; a edição
crítica da Septuaginta, por Alfred Rahlfs, não o faz). Todos eles explicam “filhos de Deus” como
anjos, mas esse emprego do termo ocorre apenas em Jó 1.6; 2.1 e 38.7 (com possível paralelo
no Salmo 29.1 e 89.6 para “filhos do poderoso”).

Em lugar algum das Escrituras, nem mesmo em Gênesis 6, é dito que anjos casaram-se com
humanas. Na realidade, Marcos 12.25 declara que anjos não se casam. Mais sério ainda é o
fato de que, se o problemas começou com a iniciativa dos “filhos de Deus” – nessa
perspectiva, os anjos -, por que Deus não inundou o céu em vez de trazer julgamento sobre a
terra? Como fundamentação adicional para a teoria de anjos, alguns recorrem também a
1Pedro 3.18-20; 2Pedro 2.4 e Judas 6,7. Essas passagens, no entanto, não mencionam
casamentos angelicais.

O ponto de vista das raças mistas religiosamente dá-se tão bem quanto a perspectiva das raças
mistas cosmologicamente. Segundo essa visão, a linhagem apóstata de Sete cometeu o pecado
de colocar-se em jugo desigual com as descrentes “filhas dos homens”, isto é, mulheres da
linhagem de Caim. Porém, esse ponto de vista fracassa, pois emprega o termo “homens” no
versículo 1 de maneira distinta daquela do versículo 2; no versículo 1, significa “humanidade”
de maneira geral, mas, no versículo 2, significa a “linhagem de Caim” especificamente.
Seguindo o raciocínio, por que será que uma raça mista religiosamente teria resultados físicos
tão dramáticos como a concepção de “gigantes”, conforme se interpreta a expressão hebraica
nephilim gibborim? Até onde se sabe, a religião não afeta o DNA desse modo!

O melhor ponto de vista é das raças mistas sociologicamente. Os títulos de “filhos de Deus” era
há muito atribuído a reis, nobres e aristocratas no Antigo Oriente Próximo. Esses déspotas
sedentos pelo poder chegavam a ser “homens de renome” (Gn 6.4). Em sua busca por poder,
eles usurpavam controle despoticamente. Pervertiam o conceito de governo entregue por
Deus, fazendo o que bem entendessem. Não se preocupavam com a atribuição primária de
Deus ao estabelecer os governos: trazer alívio por meio de melhorias e correções das injustiças
e iniquidades terrenas. Além disso, eram polígamos (6.2).

As evidências a favor dessa visão são as seguintes: (1) os targumins aramaicos antigos
traduziam os “filhos de Deus” como “filhos de nobres”; (2) a tradução grega feita por Símaco
trazia a mesma frase como “os filhos de reis ou senhores”; (3) a palavra hebraica para

“Deus/deus” é ‘elohim, empregada nas Escrituras e traduzida em diversas versões como


“magistrados” ou “juízes” (Ex 21.6; 22.8; Sl 82.1,6); e (4) descobertas do Antigo Oriente
Próximo validam o emprego pagão de nomes de muitos deuses e deusas como forma de trazer
mais prestígio e poder aos reis e governantes de seus dias.
Em relação aos chamados gigantes, a palavra nephilim ocorre apenas em Gênesis 6.4 e
Números 13.33 – neste último trecho, refere-se aos anaquins, pessoas de grande estatura. A
raiz da palavra nephilim vem da naphal, “cair”. Ademais, em alguns contextos, a palavra
nephilim está associada à palavra gibborim, que vem de gibbor – ou seja, “homem de valor,
força, riqueza ou poder”. Por exemplo, Ninrode, em Gênesis 10.8, era um gibbor. Parece ter
sido também um rei na terra de Sinar (i.e., provavelmente a Babilônia). Portanto, o significado
de nephilim, nesse contexto, não parece ser “gigantes”, mas algo como “aristocratas”,
“príncipes” ou “grandes homens” que governavam.

Dessa maneira, Gênesis 6.1-4 é melhor compreendido como um retrato de governantes


ambiciosos, despóticos e autocráticos que se agarravam ao poder e a mulheres como lhes
aprouvesse. Faziam isso na tentativa de construir sua própria notoriedade e reputação. Não é
nada surpreendente que esse mesmo espírito fosse transmitido à prole deles. Como resultado,
toda inclinação dos corações de homens e mulheres, de governantes ao populacho, ficava
cada vez mais perverso. Foi por isso que adveio o dilúvio: a humanidade tinha de ser julgada
por sua perversão daquilo que é certo, com e justo, enquanto também se lançava julgamento
sobre a instituição do estado e do governo, que provocaram Deus até o limite.

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