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A lontra

Igual a quem forma para si, a partir da casa onde mora e da cidade apenas por um momento, pois logo o reluzente habitante daquela
que habita, uma idéia de sua própria natureza e índole, eu fazia o cisterna sumia de novo para dentro da noite aquosa. Na verdade, o
mesmo com os animais do jardim zoológico. A começar pelos aves- alojamento da lontra não era nenhuma cisterna. No entanto, sem-
truzes, que se perfilam contra um fundo de esfinges e pirâmides, pre que olhava para aquelas águas, era para mim como se a chuva
até o hipopótamo, que habitava seu pagode como um mago em repentina recolhida em todos os bueiros da cidade viesse desem-
via de amalgamar o corpo ao do demônio, de quem é servidor, bocar naquela bacia e alimentar o animal. Pois o animal que aqui
praticamente não existia animal cuja morada eu não amasse ou morava era mimado, e as grutas vazias e úmidas lhe serviam mais
temesse. Entre eles, os mais estranhos eram os que, pela local- como templo que como abrigo. Era o animal sagrado das águas da
ização da morada, tinham algo de especial – na maioria dos casos, chuva. Mas eu não teria condições de dizer se fora formado nessas
animais que viviam nos confins do zoológico: os setores nos quais águas de despejo e na própria água do reservatório ou se apenas se
limitava com os cafés e os sítios de exposição. Porém, de todos os alimentava de suas torrentes e filetes. Todo o tempo estava suma-
habitantes dessas áreas, a lontra era o mais notável. Dos três aces- mente ocupado, como se sua presença nas profundezas fosse in-
sos, era-lhe mais próximo o da Ponte de Lichtenstein. De longe, dispensável. Mas teria podido ficar ali, com a testa grudada àquela
o acesso menos usado e que conduzia às regiões mais desoladas grade, por dias a fio, sem me cansar de vê-lo. E com isso ele tam-
do zoológico. A aléia que aí recebia o visitante, com as luminárias bém provava seu parentesco íntimo com a chuva. Pois nunca era
brancas de seus postes, se assemelhava a um passeio abandonado para mim o querido longo dia mais querido nem mais longo do que
de Eilsen ou Bad Pyrmont, e muito antes de esses lugares ficarem quando a chuva, com seus dentes finos ou rudes, o penteava vaga-
desertos e parecerem mais antigos que as termas, esse canto do rosamente, por horas e minutos. Tão dócil como uma garotinha, a
zoológico trazia em si as feições do porvir. Era um rincão profético. lontra inclinava a risca da cabeça sob aquele pente cinzento. Então,
Pois como há plantas que, segundo dizem, possuem o dom de nos não me cansava de olhar para ela. Esperava. Não que a chuva abran-
fazer ver o futuro, também há lugares que têm esse mesmo pod- dasse. Mas sim que caísse cada vez mais torrencial. Ouvia-a tam-
er. Em geral, são sítios abandonados, e também copas de árvores borilar nos vidros da janela, afluir nas canaletas e cair gargarejante
acuadas contra muros, becos sem saída ou entradas de jardim, nas sarjetas. Naquela chuva boa, sentia-me totalmente protegido.
onde jamais ninguém se detém. Em tais lugares, parece ser coisa E meu futuro vinha a meu encontro rumorejando à semelhança da
do passado tudo o que nos espera. Portanto, sempre que me perdia cantiga de ninar entoada ao lado do berço. Facilmente percebi que
naquele trecho do zoológico, regalava-me com uma espiadela por aquela chuva fazia crescer. Em tais horas, atrás da janela embaça-
sobre o parapeito do poço, que se erguia ali como se fosse no centro da, sentia-me como em casa da lontra. No entanto, só percebi isso,
de um parque de águas termais. Era a jaula da lontra. Uma jaula de fato, na vez seguinte em que me encontrei defronte da jaula.
de verdade, pois barras robustas gradeavam o parapeito do tanque, Então, mais uma vez, tive de esperar um longo tempo até que o
no qual morava o animal. Pequenas construções imitando gru- corpo negro e brilhante subisse à tona e mergulhasse logo em se-
tas e rochedos orlavam, ao fundo, a parte oval do tanque. Foram guida para tratar de alguns assuntos urgentes.
concebidas como a casa do animal, embora nunca o encontrara lá
dentro. E assim, amiúde, deixava-me ficar numa espera infindável Walter Benjamin
em frente daquela profundeza escura e insondável a fim de desco-
brir a lontra nalgum ponto. Se, por fim, conseguia, certamente era

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