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Foto: Museu de Ciências da Terra – Alexis Dorofeef

Solo vivo: objetivo do manejo sadio

Agroecologia
e manejo do solo Ana Maria Primavesi

tualmente, exis- • A calagem corretiva, que provoca a rápida decompo-

A tem três formas


principais de se
manejar o solo agrícola: o manejo

sição da matéria orgânica do solo.
A aração profunda, que areja o solo favorecendo o
desenvolvimento dos organismos que decompõem a
matéria orgânica. Após quatro horas da aração, uma
convencional (ou químico), o orgâ- grossa nuvem de gás carbônico paira sobre o solo. Em
nico por substituição de insumos e seguida, ela é dissipada na atmosfera, aumentando o
efeito estufa.
o agroecológico. • A adubação nitrogenada, que, por aportar grande quanti-
dade de nitrogênio ao solo, favorece igualmente a decom-
O manejo convencional (ou químico) posição acelerada da matéria orgânica. Isso acontece por-
que a relação entre os teores de carbono e nitrogênio (C/
No sistema de manejo convencional, o solo é N) nos restos vegetais do solo é reduzida – passando de
considerado somente como suporte físico para as plantas. 45/1 para 15/1, por exemplo –, possibilitando que os
Esse sistema foi disseminado em todos os continentes e se microrganismos consumam inclusive a porção da matéria
baseia no emprego de pacotes químicos destinados a nutrir orgânica com alta relação C/N e, portanto, com maior
as plantas cultivadas. A verdade, porém, é que são manejos resistência à decomposição biológica (como as ligninas,
que matam os solos, ao utilizarem as seguintes práticas: muito presentes em palhadas de gramíneas).

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Com a redução dos teores de matéria orgânica tados e mantidos limpos se aquecem muito, junta-
do solo, a maior parte da vida microbiana não sobrevive, pois mente com a camada de ar sobre eles. Devido ao
fica sem alimento. Sem a ação da matéria orgânica e dos fenômeno da convecção, esse ar quente sobre o solo
microrganismos, o solo desagrega, compacta e endurece. sobe em direção à atmosfera em velocidades tanto
Assim, sua capacidade de produção fica cada vez mais de- maiores quanto mais quente estiver, podendo atin-
pendente do pacote químico da agricultura convencional. gir até 400 km/h. Como esse ar quente é impedido
de se dissipar para o espaço devido ao efeito estufa,
O manejo convencional provoca ainda os que vem se agravando com o aumento das emissões
seguintes efeitos negativos sobre a vida do solo: de gases, especialmente o gás carbônico, o metano e
o óxido nitroso, o nosso Planeta está aquecendo e
• Agrotóxicos (inseticidas e fungicidas): como em geral secando, sendo esta a razão pela qual formam-se a
as adubações químicas fornecem apenas cinco dos 45 cada ano mais de 10 milhões de hectares de desertos.
nutrientes de que as plantas necessitam, elas ficam Para concluir, podemos afirmar que a agricul-
desnutridas, tornando-se suscetíveis ao ataque de in- tura convencional está diminuindo cada vez mais as possi-
setos e microrganismos, especialmente fungos, mas bilidades da continuação de vida em nosso Planeta.
também bactérias e vírus. O ataque desses organis-
mos sobre as plantas cultivadas é uma estratégia da
natureza para eliminar as plantas que sofrem deficiên-
A agricultura orgânica por
cias nutricionais e que por isso não conseguem elabo- substituição de insumos
rar suas substâncias essenciais (como as proteínas, for-
A agricultura orgânica produz alimentos mais
madas a partir dos aminoácidos livres). Assim, os
saudáveis do que aqueles produzidos pela agricultura con-
agrotóxicos são utilizados para evitar que as chama-
vencional. Mas quando ela não é baseada em princípios
das pragas e doenças eliminem as plantas que apresen-
ecológicos, e sim na mera lógica de substituição de insu-
tam deficiências nutricionais causadas justamente
mos, pode ser bastante trabalhosa e exigir muitos sacrifí-
pelo sistema de manejo da agricultura convencional.
cios do agricultor. Nesse caso, sua base é o uso intensivo
• Herbicidas (mata-mato): são utilizados para manter de compostos e estercos que nem sempre têm procedên-
os solos limpos de plantas nativas que, assim como cia em sistemas orgânicos de produção. Além disso, sua
os insetos e os microrganismos, são excelentes produtividade é, em geral, baixa, fazendo com que depen-
indicadoras ecológicas, pois evidenciam deficiências da de mercados que remunerem com um preço acrescido
minerais e condições físicas adversas nos solos, como para que seja viável economicamente. Por essa razão, tra-
compactação, ausência de arejamento, baixa ta-se de uma produção de luxo e não acessível a todos.
permeabilidade, etc. Do ponto de vista do manejo dos solos, a agri-
• Irrigação intensiva: nos solos mortos e compactados a cultura orgânica por substituição de insumos costuma
taxa de infiltração de água das chuvas é muito reduzi- apresentar as seguintes limitações e equívocos:
da. Um solo agregado e vivo, por exemplo, apresenta
taxas de infiltração de 100 até 400 mm/h. Mas essas • Continua trabalhando em solos mortos, embora apli-
taxas podem ser reduzidas para 7 a 8 mm/h quando ele que grandes dosagens de compostos orgânicos e es-
é manejado de forma inadequada. Com essas baixas tercos com base na crença de que esses materiais
taxas de infiltração, os cultivos sofrem com a falta de sempre melhoram o solo e nutrem as plantas.
água logo após pequenos períodos sem chuvas e os • Trabalha com arações profundas, revirando o solo
lençóis freáticos deixam de ser reabastecidos em sua até uma profundidade de 45 cm. Dessa forma, traz
plenitude. Para compensar esse efeito gerado por ela para a superfície as camadas mortas do solo que se
mesma, a agricultura convencional preconiza a irriga- desagregam facilmente sob o impacto da água das
ção intensiva, prática que acelera ainda mais os proces- chuvas ou da irrigação.
sos que levam à degradação dos solos. Dessa forma, • O material orgânico é enterrado com a suposição de
cria-se um círculo vicioso em que a maior demanda por que as raízes se desenvolvem em sua direção em bus-
água doce na agricultura é gerada justamente em re- ca de nutrientes. Mas essa suposição está duplamen-
giões onde esse recurso escasseia cada vez mais em te equivocada. Primeiro, porque a função do com-
razão do manejo inapropriado do solo. posto e dos estercos não é a de nutrir as plantas dire-
• Aquecimento do clima: com o crescente desma- tamente, mas sim os organismos do solo. São esses
tamento das florestas nativas, especialmente para a organismos que mobilizam os nutrientes minerais do
implantação de monoculturas de cana-de-açúcar e solo para em seguida deixá-los disponíveis para as
de soja, os ventos passam livremente sobre as áreas plantas. Segundo, porque esses materiais deverão ser
cultivadas, chegando a evaporar o equivalente a 750 completamente decompostos pelos organismos do
mm de chuva por ano. Além disso, os solos compac- solo até se converterem em água, minerais e gás

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carbônico. Quando enterrados, os materiais orgâni- do ressecamento das camadas superficiais do solo.
cos são decompostos essencialmente por organismos Nesse sentido, a necessidade de irrigação freqüente,
anaeróbicos por meio de um processo biológico que mesmo com solos encharcados, é um sintoma de
produz o gás sulfídrico (SH2) e o metano (CH4), em manejo inadequado do solo e não de um problema
vez do gás carbônico (CO2). Como ambos os gases climático. Manejos simples como a manutenção de
são altamente tóxicos para as raízes das plantas, elas cobertura morta e a instalação de quebra-ventos po-
desviam seu crescimento em direção às camadas su- dem minimizar muito a necessidade de irrigação.
perficiais do solo que se encontram empobrecidas
em nutrientes, resultando numa baixa produtividade O manejo agroecológico
das culturas. Nesse sentido, podemos afirmar que
um composto produzido com grande esforço mas A Ecologia se refere ao sistema natural de cada
mal aplicado no solo pode gerar um efeito contrário local, envolvendo o solo, o clima, os seres vivos, bem como
ao desejado, fazendo com que o agricultor produza as inter-relações entre esses três componentes. Trabalhar
muito menos do que poderia. ecologicamente significa manejar os recursos naturais res-
• Mal posicionamento da raiz. Uma agricultura limita- peitando a teia da vida. Sempre que os manejos agrícolas
da unicamente à lógica da substituição dos insumos são realizados conforme as características locais do ambi-
químicos por orgânicos emprega o mesmo procedi- ente, alterando-as o mínimo possível, o potencial natural
mento de plantio de mudas (de hortaliças, de flores e dos solos é aproveitado. Por essa razão, a Agroecologia
de árvores) adotado nos sistemas convencionais que, depende muito da sabedoria de cada agricultor desenvol-
graças à adubação química freqüente e à irrigação vida a partir de suas experiências e observações locais. O
constante, dispensa maiores cuidados nessa opera- manejo agroecológico dos solos se baseia em cinco pon-
ção. Mas, como já mencionado, o cultivo convencio- tos fundamentais:
nal não depende do solo como um organismo vivo.
Funciona praticamente como um cultivo hidropônico Solos vivos e agregados (bem estruturados)
ao ar livre, no qual o solo exerce apenas a função de
suporte físico para as plantas, não sendo reconheci- Um solo vivo pressupõe a presença de variadas
do como um meio de cultura físico-químico-biológi- formas de organismos interagindo entre si e com os com-
co. Não dispondo dos adubos químicos altamente ponentes minerais e orgânicos do solo. Essa dinâmica bio-
solúveis da agricultura convencional, qualquer siste- lógica exerce uma função essencial na agregação do solo,
ma orgânico de produção deve se basear na intensa de modo a torná-lo grumoso e permeável para o ar e para a
inter-relação solo-planta. Nesse sentido, o cuidado água. Além disso, são esses organismos que mobilizam os
com o desenvolvimento das raízes é essencial para o nutrientes e os disponibilizam para as plantas.
sucesso da agricultura orgânica. Se a muda for bem Sob clima temperado os solos tendem a ser ra-
plantada com sua raiz orientada para baixo, sua ten- sos e ricos quimicamente. Já os solos sob clima tropical
dência será a de se desenvolver bem, caso o solo não tendem a ser mais profundos e empobrecidos em elemen-
apresente impedimentos físicos e/ou químicos na tos minerais. Apesar disso, os ecossistemas tropicais têm
subsuperfície. Por outro lado, se a muda for mal im- uma produtividade biológica 5 a 6 vezes superior aos dos
plantada, a raiz pode se desenvolver lateralmente e ecossistemas temperados. Uma das razões para esse fato
não se aprofundar no solo. Esse fato ocorre com fre- se encontra exatamente na diversificada teia da vida exis-
qüência quando a muda vai para o campo com a raiz tente nos solos tropicais que atua de forma eficiente na
muito comprida e a sua ponta volta-se para cima e se mobilização dos nutrientes necessários ao desenvolvimen-
desenvolve em direção à superfície, explorando pe- to das plantas.
queno volume de solo. Nessa condição a planta tam-
bém se desenvolve mal e sua produção é muito baixa. Biodiversidade
• Manejo inadequado da irrigação. A murcha das plan- A manutenção de grande diversidade de plan-
tas cultivadas logo após duas a três horas da inter- tas em uma mesma área é uma estratégia da natureza para
rupção da irrigação não significa necessariamente construir maiores níveis de estabilidade na produção bio-
falta de água no solo. Provavelmente as raízes não se lógica. Um dos mecanismos naturais que asseguram a di-
desenvolveram bem por alguma das razões já expos- versidade biológica nos ecossistemas é a secreção de subs-
tas (como solo compactado ou presença de substân- tâncias tóxicas por determinadas espécies de plantas (como
cias tóxicas na subsuperfície), o que faz com que as as seringueiras, as castanheiras, o mogno, o pau-brasil)
plantas não absorvam água de camadas mais profun- com a função de evitar o nascimento de sua própria se-
das no solo. Adicionado a isso, talvez haja um vento mente em um raio de até 50 metros. Essa é a razão biológica
seco permanente sobre a área de cultivo devido à que explica o fato de serem encontrados apenas 35 m3 de
ausência de florestas na região, promovendo o rápi- madeira de lei (8 a 10 árvores) em um hectare de floresta

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amazônica e de os seringueiros terem que caminhar bas- ser tomadas para que o sistema radicular das plantas culti-
tante entre um pé e outro de seringueira. vadas tenha um bom desenvolvimento e explore grande
Outra razão para a existência dessa diversida- volume de solo:
de de vegetação no ecossistema natural é a necessidade
a) o uso de um pau pontudo para fazer a covinha de plan-
de fornecimento de matéria orgânica diversificada que,
tio, orientando a raiz obrigatoriamente para baixo;
por sua vez, fomenta o desenvolvimento de variadas for-
b) a poda da raiz;
mas de vida no solo, aumentando assim o leque de nutri-
c) evitar a deficiência de boro, uma vez que a falta desse
entes mobilizados. Nesse sentido, a produtividade do
micronutriente compromete o desenvolvimento da
ecossistema depende da manutenção da diversidade ve-
raiz mesmo quando todas as demais condições são
getal que fornece as condições necessárias para a diversi-
adequadas. Isso porque o boro é um nutriente indis-
dade biológica nos solos.
pensável para que substâncias fotossintetizadas se-
É certo, entretanto, que nos ecossistemas agrí-
jam translocadas das folhas para as raízes.
colas a biodiversidade vegetal não pode ser tão grande
como nos ecossistemas naturais. Mas algumas práticas Autoconfiança do agricultor
são importantes para aumentar o nível de biodiversidade
no agroecossistema. Entre elas, destacam-se: Nas últimas décadas incutiu-se nos agricultores
• Rotação de, no mínimo, cinco culturas na mesma área. a crença de que eles dependem de assistência técnica para
Essa prática muitas vezes encontra limitações em lo- manejar seus solos já que não conseguem interpretar por si
cais nos quais os mercados não absorvem os produtos sós as análises químicas. Como não foram capacitados para
das espécies cultivadas que entram nas rotações. fazer essas análises, passaram a ser condicionados a rece-
• Plantio de coquetéis de adubação verde compostos ber orientações sobre o quê e como fazer. Esse foi o cami-
por até cinco ou sete espécies diferentes. nho pelo qual foram induzidos a adquirir máquinas e
• Rotação entre áreas com lavouras e com pasto. insumos químicos, tornando-se assim co-financiadores da
• Manejo do mato mole, mantendo vivas as plantas industrialização, ao mesmo tempo em que perderam a auto-
nativas que não prejudicam as culturas. Cultivos como confiança em seus conhecimentos adquiridos pela expe-
alface, repolho, cebola e outros se desenvolvem mui- riência e pela observação da natureza.
to bem (e até melhor) quando associados ao mato Já na Agroecologia, o agricultor deixa de per-
mole, muitas vezes sem a necessidade de irrigação. guntar “O que faço?” e passa a questionar “Por que ocor-
• Policultivos que associam várias espécies (como mi- re?”. Simplesmente ao reorientar o tipo de pergunta dian-
lho, feijão, mandioca, abóbora, melancia, tomates, te de um problema técnico em seus cultivos, ele muda a
etc.) na mesma área e ao mesmo tempo. sua atitude em relação à forma de praticar a agricultura.
Em vez de receber receitas técnicas prontas, passa a obser-
Proteção do solo contra o aquecimento var, pensar e experimentar. Com o tempo ele começa a
excessivo, o impacto da chuva e o vento produzir melhor que a agricultura convencional e ganha
permanente autoconfiança. E é assim que ele se dá conta de que é
produtor de alimentos junto com a natureza que Deus criou,
Para a proteção contra a insolação direta (aque- que respeita as leis eternas e que acredita em si mesmo.
cimento excessivo) e o impacto das gotas de chuva, os
solos devem ser cobertos o máximo possível, seja por uma Ana Maria Primavesi
camada de palha, ou mulch, ou por uma vegetação densa.
Com a manutenção de uma cobertura perma-
nente, nem que seja com uma camada de palha de dois Referências bibliográficas:
centímetros de espessura, a água se infiltra com mais faci-
lidade do que nos solos desnudos e compactados. Além MOLDEN, D. Water for food, water for life. Wa-
disso, com o solo descoberto e sem proteção contra os shington: International Water Management
ventos, a água que se infiltra é facilmente evaporada. Mas Institute/Earthscan, 2007.
se essa evaporação é evitada com a cobertura do solo e PRIMAVESI, A. Manejo ecológico do solo. 18
com quebra-ventos, a água do solo pode se conservar ao ed. São Paulo: Nobel, 2006.
alcance das raízes mesmo após longo período sem chuvas,
propiciando produções significativamente maiores. PRIMAVESI, O; ARZABE, C; PEDREIRA, M. dos S.
Aquecimento global e mudanças climáticas.
Bom desenvolvimento das raízes São Carlos: EMBRAPA, 2007.
UPHOFF, N. Biological approaches to sustainable
Além da manutenção do solo bem estruturado soil systems. Flórida: CRC Taylor & Francis,
e sem impedimentos físicos e/ou químicos ao apro- 2006.
fundamento das raízes, algumas medidas simples podem

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