Você está na página 1de 5

O PAPEL DAS MENTIRAS POLÍTICAS NO NAZISMO

1
Por Harald Welzer
2
Tradução: Perla Monteiro

O regime nazista não apenas espalha mentiras;


ele muda toda a linguagem
– e com ela, a percepção do mundo.

"O que Hitler diz, eu acredito”

John Oliver, o inteligente apresentador do Talkshow Late-Night, descreveu


recentemente o papel das mentiras políticas na Rolling Stone da seguinte forma:
"Trump faz milhares de afirmações bizarras, e cada afirmação nova relativiza a
loucura das outras. O „Princípio Trump‟ funciona como uma tábua cheia de pregos:
se você pisa em um prego, é doloroso; se você pisa em mil pregos, não percebe
mais a dor de cada prego separadamente.“
A credibilidade do mentiroso político aumenta com a quantidade e o tamanho
das mentiras que ele apresenta – Adolf Hitler e Joseph Goebbels entendiam muito
bem isso. A mentira do tipo "tábua com pregos" é uma estratégia política linguística
característica dos propósitos totalitários, visando conquistar a soberania da
interpretação. Mentiras desse tipo tem importância primordial na transição dos
sistemas.
Se esse tipo de mentira é usado na democracia, a credibilidade das
declarações políticas diminui em geral. Se torna cada vez menos claro o que pode
ser verdadeiro ou falso, o que também reduz a confiança geral na própria
capacidade de julgamento diante de notícias que antes seriam consideradas apenas
pura bobagem.
Essa é a chance do político mentiroso, já que a confiança das declarações
geralmente diminui, e com isso há um declínio na confiança do sistema. Isso é
especialmente problemático quando mentiras óbvias são usadas sem hesitação por
um lado do espectro político, enquanto o outro lado se sente comprometido com
fatos verificáveis.

1 Sociólogo e psicólogo social alemão. Professor de Design da Transformação na Universidade de


Flensburg. Diretor da Fundação Futurzwei.

2 email: perlamonteiro@gmx.de

1
Ao final da República de Weimar, seria esclarecedor registrar a frequência em
que eram criadas mentiras políticas do tipo “punhalada nas costas”3, “criminosos de
novembro”4 e “conspiração judaico-plutocrática”5. É provável que tenha havido um
aumento significativo de tais mentiras.
Por sua vez, as mentiras do tipo "tábua de pregos" preparam o terreno para
um fenômeno que Sebastian Haffner, preciso cronista da rápida mudança de
interpretação e atitude na Alemanha desde 1933, menciona em seu livro "História de
Um Alemão". Trata-se de um mecanismo importante do debate público: apesar das
ações anti-judaicas dos nazistas, não havia "questão anti-semita" na Alemanha
naqueles anos, e sim, uma "questão judaica".
Ao ameaçar publicamente alguém à morte, seja este um país, um povo ou um
grupo de pessoas, os nazistas conseguiram fazer com que fosse discutido e
questionado o direito de viver, não destes mas sim dos outros, Haffner escreve.
Todos de repente se sentiram obrigados e autorizados a ter e expressar uma opinião
sobre os judeus. Faziam distinções sutis entre os judeus "decentes" e os outros.
Uns mencionavam o desempenho científico, artístico e médico deles, enquanto
outros os acusavam de tomar controle da ciência, da arte e da medicina. Do ponto
de vista psicológico, isso seria descrito como uma transferência de objeto: o
problema não são os que atacam a democracia e a justiça, mas sim os que são
atacados.

3 A Lenda da Punhalada pelas Costas (em alemão: Dolchstoßlegende) foi uma popular lenda política
do período entre-guerras na Alemanha, que se manteve até às vésperas da Segunda Guerra
Mundial. A lenda atribuía a derrota do Império Alemão na Primeira Guerra Mundial ao fracasso do
povo em responder ao "chamado patriótico" e à sabotagem do esforço de guerra pelos socialistas,
bolcheviques e judeus alemães, e não pela incapacidade do Reichsheer de participar da batalha,
exonerando os militares do país de sua perda.
Historicamente, a Dolchstoßlegende revelou-se importante para a ascensão política de Adolf Hitler e
para o crescimento do Partido Nazista, já que muito de sua base política original consistia de
veteranos da Primeira Guerra Mundial e muitos estavam próximos à interpretação Dolchstoß da
história recente alemã.
Fonte: www.pt.wikipedia.org/wiki/Lenda_da_punhalada_pelas_costas

4 Em 9 de novembro de 1923, Adolf Hitler, na liderança do Partido Nacional Socialista dos


Trabalhadores Alemães (NSDAP) e partidários seus, como Heinrich Himmler, Hermann Göring e
Rudolf Hess, tentaram tomar o poder por meio de um golpe de Estado que começou em uma
cervejaria de Munique. Hitler subiu em um cadeira e atirou para o teto antes de proclamar o fim do
"governo dos criminosos de novembro", um termo utilizado pelos detratores do Armistício.
A polícia e os militares abortaram esta intentona golpista. Hitler foi detido. Fracassou em sua
tentativa, mas usou o julgamento para ganhar popularidade e propagar seu ódio aos judeus. Foi um
mito fundador do futuro Terceiro Reich.
Fonte: www.nsctotal.com.br/noticias/dia-9-de-novembro-uma-data-gravada-a-fogo-na-historia-da-
alemanha

5 A Conspiração Judaico-Maçônico-Comunista Internacional, às vezes chamada de Conspiração


Judaico-Maçônico-Marxista Internacional, ou simplesmente de Conspiração Judaico-Maçônica, é uma
teoria da conspiração envolvendo uma aliança secreta entre judeus, maçons e comunistas. O
objetivo obscuro da aliança seria a dominação do mundo.
A partir do século XIX, os autores conspiracionistas combinam o judaismo e a Maçonaria sob o termo
polêmico "judaico-maçônico". Desenvolvida novamente no Mein Kampf, esta teoria recuperou a
popularidade na Europa durante os anos de crise. Dez anos depois, a solução final seria
implementada.
Fonte: www. pt.wikipedia.org/wiki/Teorias_conspirat%C3%B3rias_judaicas

2
Como os termos sempre são também interpretações das realidades
percebidas, há com isso uma mudança nas regras do que possa ser dito e na visão
da realidade. Historicamente ninguém demonstrou isso de modo mais claro do que
Victor Klemperer em seu livro "Lingua Tertii Imperii", a "Língua do Terceiro Reich".
O estudioso da literatura, que foi perseguido por ser judeu, interpretou a entrada de
termos antidemocráticos e racistas no discurso social como um sinal de mudança
rápida de clima ético.

A linguagem do Nazismo

"20 de abril. Outra ocasião festiva, um novo feriado ("Volksfeiertag"), o


aniversário de Hitler. Para escrever ou falar, 'Volk'(povo) agora é uma palavra usada
tantas vezes quanto sal o é para comer. Em tudo se adiciona uma pitada de "Volk":
Volksfest (festa do povo), Volksgenosse (camarada do povo), Volksgemeinschaft
(comunidade do povo), volksnah (próximo do povo), volksfremd (alheio ao povo),
volksentstammt (descendente do povo) ..." foi assim que Klemperer registrou isso
em 1933, no primeiro ano de seu caderno. O estudioso literário era sensível à
linguagem e notou imediatamente o quanto é importante criar e ocupar termos para
estabelecer não apenas o domínio totalitário físico, mas também o mental. "Novas
palavras aparecem", ele escreve , “as antigas adquirem novos sentidos especiais ou
novas composições são formadas que rapidamente se tornam estereotipadas".
Essa política de linguagem não usa a mentira óbvia, mas cria uma percepção
diferente do mundo. A mentira descarada, por outro lado, funciona menos no nível
dos termos, mas põe os fatos de cabeça para baixo. Isso é especialmente
importante quando se trata de conquistar poder; faz uma grande diferença se o que
pode ser dito é mudado pelo povo, tanto em uma democracia ou sob um regime
totalitário em que não existe esse domínio público.
Mesmo termos mentirosos e inumanos podem ser negociáveis numa
democracia. No entanto, uma vez estabelecida a ditadura, os termos e seu uso são
impostos pela força. Declarações descuidadas ou "erradas" levam diretamente à
perseguição. Desse ponto em diante, as críticas linguísticas ao regime limitam-se a
insinuações irônicas, razão pela qual era popular no "Terceiro Reich" adereçar
pessoas e situações de acordo com o jargão nazista. A atriz Kristina Söderbaum,
por exemplo, foi chamada "Reichswasserleiche"(A Afogada do Reich), por causa de
seus papéis melodramáticos; Robert Ley, o líder da Frente Trabalhista Alemã, era o
"Reichtrunkenbold" (O Bebum do Reich); e a noite de 9 de novembro de 1938,
"Reichskristallnacht" (A Noite de Cristal do Reich).
Há uma certa ironia que a aparente precisão histórica tenha transformado
este termo em "Reichspogrommnacht" (A Noite da Perseguição das Minorias do
Reich), como se tivesse sido uma explosão espontânea e descontrolada de
violência, na qual a "vontade popular" foi expressa. A propaganda nazista queria dar
exatamente essa impressão: o Ministro da Propaganda certamente teria se divertido
com essa vitória póstuma da política linguística.

3
Na política da linguagem totalitária fica evidente que os "pensamentos dos
dominadores" podem se tornar os "pensamentos dominantes". O que Friedrich
Engels não contava ao formular esse aforismo era que pensamentos e conceitos
também ganham domínio, na medida em que a realidade é estabelecida de acordo
com eles. "A alegação de que apenas Moscou tem metrô só é uma mentira se os
bolcheviques não tiverem poder para destruir todos os outros metrôs", como Hannah
Arendt colocou.
Exatamente nesse sentido, a mentira transformada na realidade é o
instrumento de poder que mais se destaca nos sistemas totalitários. "O fascínio ",
escreve Arendt, "não era simplesmente o domínio de Stalin e Hitler da arte de
mentir, mas o fato de que eles eram capazes de organizar as massas de maneira
que suas mentiras se realizassem".
Os nazistas agiram contra os judeus como se a conspiração mundial judaica
realmente existisse. E eles enviaram para as câmaras de gás aqueles que, “de
acordo com as leis da natureza, não deveriam ter existido". O mundo é moldado de
acordo com as mentiras que os governantes totalitários seguem.
Há outra vantagem estratégica em fazer das mentiras a realidade: essa forma
de afirmação falsa permite prever o futuro. "Hoje quero ser profeta novamente" , foi
o começo de uma frase no discurso de Hitler, seguida por uma ameaça de
extermínio contra os judeus. Nesse contexto, intenções e planos, por mais absurdos
que sejam, são classificados em uma cadeia de necessidades, que
consequentemente são implementadas. Tal profecia dá ao ditador habilidades
sobrenaturais e tem grande parte na crença no Führer, que permaneceu forte até os
últimos anos da guerra, apesar de todas as suspeitas e temores de colapso.

A redução da "Curva de Adolf"

Mesmo com o sucesso militar desaparecendo, muitos soldados da


Wehrmacht confiavam no Führer. Nos registros de escutas que foram feitos com as
conversas entre prisioneiros de guerra alemães nos campos britânicos e
americanos, destaca-se a confiança cega que os soldados colocam em Hitler: "Se o
Führer disse isso, pode confiar.", ou "O Führer conseguiu tudo até agora. Não
imagino que não terá sucesso desta vez.", ou "Hitler fez um grande trabalho. Ele
cumpriu o que prometeu. Todos nós confiamos totalmente nele". Essa errada e
forte confiança em Hitler não se refere simplesmente a sua pessoa, mas a suas
previsões. "Eu não sou um nazista ferrenho", diz um tenente da Força Aérea, "mas
se Hitler diz que a guerra terminará este ano, eu creio". Mesmo depois de
Stalingrado, quando surgem dúvidas sobre a "vitória final", a confiança em Hitler não
foi afetada. Um sargento, por exemplo, declara: “Não está bom pra nós ", e um
soldado responde: "Sim, mas o Führer sempre soube disse, que se trataria de 'ser
ou não ser' ".
E quando Hitler erra nitidamente em sua onipotência profética, procuram uma
causa externa para isso. Em 28 de junho de 1942, dois tenentes da força aérea
quebravam a cabeça se perguntando se a personalidade do Führer teria mudado
tanto apenas por razões psicológicas, já que à beira do colapso nervoso, ou por
motivos conspiracionistas: "Hitler não é mais ele mesmo, ele foi substituído por um
ator".

4
O mais interessante é que as críticas e dúvidas sobre o sistema nazista
aumentavam significativamente com o decorrer da guerra, mas o Führer ficava
excluído dessa crítica. Isso vale tanto para os soldados da Wehrmacht, quanto para
a população civil alemã. O historiador britânico Ian Kershaw examinou os obituários
postos nos jornais alemães por membros da família dos mortos como um indicador
disso.
Considerando a política linguística do regime há uma grande diferença se um
anúncio diz que o filho "aos 18 anos de idade deu sua vida pelo Führer, pelo povo e
por sua pátria amada durante os combates no leste, na região de Bjelgorod.", ou
apenas abreviado: “... morreu em 17 de agosto nos combates no leste aos 20 anos
de idade...”
Götz Aly e uma equipe de estudantes mostram em seu livro "A voz do povo"
que, no início da guerra, 90% dos anúncios funerários eram "conforme o sistema" e
que esse percentual caiu para 20% em 1944. Outros indicadores da perda da
confiança no sistema expostos por Aly incluem o declínio da "Curva de Adolf". Esta
curva mostra o registro de nomes próprios dados à crianças. A curva também
retrata a mudança nos padrões de poupança, que passaram de investimentos de
longo prazo para investimentos de curto prazo no final da guerra.
A sustentabilidade da política linguística através de mentiras explícitas é,
portanto, limitada quando a própria experiência sugere o contrário. No entanto,
deve-se notar que a forma totalitária da mentira, que se torna realidade através do
auto-cumprimento das profecias, é a forma mais eficaz de mentir politicamente.
Com certeza mentiras sempre foram um instrumento político, mas somente os
sistemas totalitários do século XX, com a ajuda da mídia, as transformaram em um
instrumento de poder adequado para formar multidões políticas e, com isso,
organizar a transformação de mentiras em realidades.
Paradoxalmente, a condição para isso foi a individualização e a
vulnerabilidade das pessoas, surgidas na era moderna com o rompimento dos laços
tradicionais. O regime totalitário elimina essa separação fazendo as pessoas
pertencerem a um grupo e expressando anseios coletivos. "Nós sabemos como a
propaganda totalitária atende às necessidades das multidões politicamente
indecisas e despatriadas. Também sabemos quantos déspotas usaram essa
necessidade para suas finalidades. O que não sabemos é quantas pessoas nesta
era das multidões[...] concordariam alegremente com aqueles „políticos‟ que
frequentemente eliminam o „inútil‟ sob esse ou aquele pretexto ideológico. Também
não sabemos, mas podemos imaginar quantas pessoas, ao perceber sua crescente
incapacidade de suportar e carregar o fardo da vida nos dias de hoje,se
submeteriam voluntariamente a um sistema que retira sua autonomia bem como a
responsabilidade pela sua própria vida", escreve Hannah Arendt.
Arendt expressa aqui por que, sob certas condições, não importa se as
alegações na comunicação política são verdadeiras ou falsas: se correspondem às
necessidades de identidade e comunidade, mentira e verdade tem o mesmo valor.
Para a política totalitária, a verdade é uma função do acordo social, no qual a política
da mentira aposta com sucesso. Verdade é o que faz pertencer. Isso se aplica não
apenas ao passado, mas também ao presente.
O autor agradece à Fundação Gerda Henkel, que financiou o projeto, no qual
este texto se baseia.
5

Você também pode gostar