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Por Harald Welzer
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Tradução: Perla Monteiro
2 email: perlamonteiro@gmx.de
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Ao final da República de Weimar, seria esclarecedor registrar a frequência em
que eram criadas mentiras políticas do tipo “punhalada nas costas”3, “criminosos de
novembro”4 e “conspiração judaico-plutocrática”5. É provável que tenha havido um
aumento significativo de tais mentiras.
Por sua vez, as mentiras do tipo "tábua de pregos" preparam o terreno para
um fenômeno que Sebastian Haffner, preciso cronista da rápida mudança de
interpretação e atitude na Alemanha desde 1933, menciona em seu livro "História de
Um Alemão". Trata-se de um mecanismo importante do debate público: apesar das
ações anti-judaicas dos nazistas, não havia "questão anti-semita" na Alemanha
naqueles anos, e sim, uma "questão judaica".
Ao ameaçar publicamente alguém à morte, seja este um país, um povo ou um
grupo de pessoas, os nazistas conseguiram fazer com que fosse discutido e
questionado o direito de viver, não destes mas sim dos outros, Haffner escreve.
Todos de repente se sentiram obrigados e autorizados a ter e expressar uma opinião
sobre os judeus. Faziam distinções sutis entre os judeus "decentes" e os outros.
Uns mencionavam o desempenho científico, artístico e médico deles, enquanto
outros os acusavam de tomar controle da ciência, da arte e da medicina. Do ponto
de vista psicológico, isso seria descrito como uma transferência de objeto: o
problema não são os que atacam a democracia e a justiça, mas sim os que são
atacados.
3 A Lenda da Punhalada pelas Costas (em alemão: Dolchstoßlegende) foi uma popular lenda política
do período entre-guerras na Alemanha, que se manteve até às vésperas da Segunda Guerra
Mundial. A lenda atribuía a derrota do Império Alemão na Primeira Guerra Mundial ao fracasso do
povo em responder ao "chamado patriótico" e à sabotagem do esforço de guerra pelos socialistas,
bolcheviques e judeus alemães, e não pela incapacidade do Reichsheer de participar da batalha,
exonerando os militares do país de sua perda.
Historicamente, a Dolchstoßlegende revelou-se importante para a ascensão política de Adolf Hitler e
para o crescimento do Partido Nazista, já que muito de sua base política original consistia de
veteranos da Primeira Guerra Mundial e muitos estavam próximos à interpretação Dolchstoß da
história recente alemã.
Fonte: www.pt.wikipedia.org/wiki/Lenda_da_punhalada_pelas_costas
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Como os termos sempre são também interpretações das realidades
percebidas, há com isso uma mudança nas regras do que possa ser dito e na visão
da realidade. Historicamente ninguém demonstrou isso de modo mais claro do que
Victor Klemperer em seu livro "Lingua Tertii Imperii", a "Língua do Terceiro Reich".
O estudioso da literatura, que foi perseguido por ser judeu, interpretou a entrada de
termos antidemocráticos e racistas no discurso social como um sinal de mudança
rápida de clima ético.
A linguagem do Nazismo
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Na política da linguagem totalitária fica evidente que os "pensamentos dos
dominadores" podem se tornar os "pensamentos dominantes". O que Friedrich
Engels não contava ao formular esse aforismo era que pensamentos e conceitos
também ganham domínio, na medida em que a realidade é estabelecida de acordo
com eles. "A alegação de que apenas Moscou tem metrô só é uma mentira se os
bolcheviques não tiverem poder para destruir todos os outros metrôs", como Hannah
Arendt colocou.
Exatamente nesse sentido, a mentira transformada na realidade é o
instrumento de poder que mais se destaca nos sistemas totalitários. "O fascínio ",
escreve Arendt, "não era simplesmente o domínio de Stalin e Hitler da arte de
mentir, mas o fato de que eles eram capazes de organizar as massas de maneira
que suas mentiras se realizassem".
Os nazistas agiram contra os judeus como se a conspiração mundial judaica
realmente existisse. E eles enviaram para as câmaras de gás aqueles que, “de
acordo com as leis da natureza, não deveriam ter existido". O mundo é moldado de
acordo com as mentiras que os governantes totalitários seguem.
Há outra vantagem estratégica em fazer das mentiras a realidade: essa forma
de afirmação falsa permite prever o futuro. "Hoje quero ser profeta novamente" , foi
o começo de uma frase no discurso de Hitler, seguida por uma ameaça de
extermínio contra os judeus. Nesse contexto, intenções e planos, por mais absurdos
que sejam, são classificados em uma cadeia de necessidades, que
consequentemente são implementadas. Tal profecia dá ao ditador habilidades
sobrenaturais e tem grande parte na crença no Führer, que permaneceu forte até os
últimos anos da guerra, apesar de todas as suspeitas e temores de colapso.
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O mais interessante é que as críticas e dúvidas sobre o sistema nazista
aumentavam significativamente com o decorrer da guerra, mas o Führer ficava
excluído dessa crítica. Isso vale tanto para os soldados da Wehrmacht, quanto para
a população civil alemã. O historiador britânico Ian Kershaw examinou os obituários
postos nos jornais alemães por membros da família dos mortos como um indicador
disso.
Considerando a política linguística do regime há uma grande diferença se um
anúncio diz que o filho "aos 18 anos de idade deu sua vida pelo Führer, pelo povo e
por sua pátria amada durante os combates no leste, na região de Bjelgorod.", ou
apenas abreviado: “... morreu em 17 de agosto nos combates no leste aos 20 anos
de idade...”
Götz Aly e uma equipe de estudantes mostram em seu livro "A voz do povo"
que, no início da guerra, 90% dos anúncios funerários eram "conforme o sistema" e
que esse percentual caiu para 20% em 1944. Outros indicadores da perda da
confiança no sistema expostos por Aly incluem o declínio da "Curva de Adolf". Esta
curva mostra o registro de nomes próprios dados à crianças. A curva também
retrata a mudança nos padrões de poupança, que passaram de investimentos de
longo prazo para investimentos de curto prazo no final da guerra.
A sustentabilidade da política linguística através de mentiras explícitas é,
portanto, limitada quando a própria experiência sugere o contrário. No entanto,
deve-se notar que a forma totalitária da mentira, que se torna realidade através do
auto-cumprimento das profecias, é a forma mais eficaz de mentir politicamente.
Com certeza mentiras sempre foram um instrumento político, mas somente os
sistemas totalitários do século XX, com a ajuda da mídia, as transformaram em um
instrumento de poder adequado para formar multidões políticas e, com isso,
organizar a transformação de mentiras em realidades.
Paradoxalmente, a condição para isso foi a individualização e a
vulnerabilidade das pessoas, surgidas na era moderna com o rompimento dos laços
tradicionais. O regime totalitário elimina essa separação fazendo as pessoas
pertencerem a um grupo e expressando anseios coletivos. "Nós sabemos como a
propaganda totalitária atende às necessidades das multidões politicamente
indecisas e despatriadas. Também sabemos quantos déspotas usaram essa
necessidade para suas finalidades. O que não sabemos é quantas pessoas nesta
era das multidões[...] concordariam alegremente com aqueles „políticos‟ que
frequentemente eliminam o „inútil‟ sob esse ou aquele pretexto ideológico. Também
não sabemos, mas podemos imaginar quantas pessoas, ao perceber sua crescente
incapacidade de suportar e carregar o fardo da vida nos dias de hoje,se
submeteriam voluntariamente a um sistema que retira sua autonomia bem como a
responsabilidade pela sua própria vida", escreve Hannah Arendt.
Arendt expressa aqui por que, sob certas condições, não importa se as
alegações na comunicação política são verdadeiras ou falsas: se correspondem às
necessidades de identidade e comunidade, mentira e verdade tem o mesmo valor.
Para a política totalitária, a verdade é uma função do acordo social, no qual a política
da mentira aposta com sucesso. Verdade é o que faz pertencer. Isso se aplica não
apenas ao passado, mas também ao presente.
O autor agradece à Fundação Gerda Henkel, que financiou o projeto, no qual
este texto se baseia.
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