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Roberto Motta

Sangue: Ensaio sobre o Sacrifício


no Xangô de Pernambuco

Roberto Motta, Ph.D.*

Resumo
O sacrifício sangrento de animais é o ato central do culto do Xangô, confor-
me atesta a experiência etnográfica do autor nos terreiros e nos rituais dos
mais diversos pais-de-santo: Mário Miranda (de onde, em tarde memorável,
partiram minhas grandes intuições sobre o sacrifício e a economia da religião
afro-pernambucana), Badia, Edu, Raminho, Amara, Babá e outros, além de
sua própria participação pessoal. A iniciação ao Xangô não só acarreta muita
efusão de sangue animal, como também, de certo modo, a transformação do
devoto no alimento dos deuses. O sacrifício representa igualmente a supre-
ma forma de terapia. O artigo também registra que o sacrifício, apesar do seu
alto valor simbólico, não deixa de desempenhar funções muito práticas, de
caráter econômico e nutricional.
Palavras-Chave: sacrifício de sangue; festa; fluxos de renda.

Abstract
Blood sacrifice is the basic cultic act of the Xangô religion of Recife, Brazil,
as it is, too, the basic rite of Bahia’s Candomblé. The prominence of this rit-
ual was observed by the author of this paper on countless occasions, among
both well known pais-de-santo and the small fry of the Xangô. The process
of initiation entails a plentiful effusion of animal blood, but sacrifice, though
done with less grandeur, is an ordinary practice of the cult. Sacrifice also
represents a supreme form of therapy for all that may ail the devotees. (But
resource to more conventional, Western forms of medicine is by no means
excluded, if devotees can afford it.) Moreover, in spite of its primarily sym-
bolic value, plays also a significant role of a practical, economic and nutri-
tional importance in the cultists’ lives.
Key Words: blood sacrifice; feast; economic circuits.

Introdução
Este artigo deriva, com alterações, de um cia (ou titularização) em Antropologia, na
dos capítulos de minha tese de livre-docên- Universidade Federal de Pernambuco, de-

* Roberto Mauro Cortez Motta. PH.D em Antropologia pela Columbia University, Prof. Adjunto do Depar-
tamento de Antropologia da UFPE. E-mail: rmcmotta@uol.com.br

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Sangue: ensaio sobre o sacrifício no Xangô de Pernambuco

fendida em dezembro de 1991. Tratava-se Muita gente já disse e eu agora repito, a


de um concurso para professor-titular, no propósito do meu trabalho, que nossos olhos
qual fui candidato único. A tese se intitula- muitas vezes contemplam a luz de estrelas
va Edjé Balé: Alguns Aspectos do Sacrifício mortas. Não estou nada certo de que o Xan-
do Xangô em Pernambuco. Este trabalho, gô que conheci, estudei e amei nas últimas
devido essencialmente à minha inação e ao décadas do século XX, sobretudo no período
meu perfeccionismo, ficou até hoje inédi- compreendido entre 1973 e 1983, ainda exis-
to. Note-se que esta não foi a minha única, ta como o descrevo. Mas não vou penetrar
nem a minha primeira tese sobre o Xangô nesta questão.
de Pernambuco. Em 1984, defendi, na Uni- Quero terminar esta introdução agrade-
versidade de Columbia da cidade de Nova cendo a meu caríssimo amigo Ivaldo Mar-
Iorque outra tese bem maior, dessa vez de ciano pela solicitação que me fez de um ar-
doutorado (Ph.D.), intitulada Meat and tigo inédito, para uma publicação que está
Feast: The Xangô Religion of Recife, Bra- organizando e, entre outros possíveis, ter
zil. Acredite o leitor que as duas teses estão preferido este, a preferência dele coinci-
longe de representarem a tradução uma da dindo com a minha. E, sem outra forma de
outra. Há, sem dúvida, alguns temas co- processo, confio a Ivaldo e a meus eventuais
muns a ambas, entre eles o sacrifício, mas leitores, as reflexões, as bobagenzinhas, que
tratados de maneira diferente. Espero que ousei redigir e que confio agora às suas mãos
meu leitor venha a considerar-me um bom e para as quais eu suplico a sua indulgência.
etnógrafo. Minha experiência de campo foi
muito intensa e fui, durante anos, um ena- Descoberta da Matança
morado do Xangô, embora jamais eu tenha
Eu ainda hoje vivo sob o impacto da des-
chegado a ser propriamente um crente da
coberta que fiz na tarde do dia 21 de abril
religião dos orixás. Mas ambas as teses, e
de 1974. Foi exatamente naquele dia que
o presente capítulo em particular, abordam
descobri, em casa do pranteado Mário Mi-
também, do modo mais sutil ao meu alcan-
randa, a importância do sacrifício no culto
ce, alguns problemas teóricos fundamen-
do Xangô. Até aí o motivo de meu interesse
tais. Um deles se relaciona à questão da in-
pelo Xangô consistia, sobretudo no estudo
fluência das forças materiais na constitui-
do sincretismo... Por casualidade, eu tinha
ção do Xangô, que eu não hesitei em consi-
sabido que a festa do sétimo aniversário da
derar como uma religião “boa para comer”.
iniciação de Iranete, filha-de-santo e prima
Os sacrifícios, as festas, representam, entre
querida do ilustre babalorixá, coincidindo
outras coisas, estratégias de sobrevivência,
com a festa de Ogum (celebrada no dia, ou
acionadas por uma parte da população de
ao redor do dia de São Jorge), seria prece-
Pernambuco, mais especificamente do Re-
dida por uma matança importante. Haveria
cife e de municípios vizinhos, caracterizada
uma sessão semipública de sacrifícios, em
por determinadas características étnicas,
honra dos orixás. Encontrei,1 naquela tarde,
sociais, econômicas e culturais. Mas estou
talvez mais bichos do que gente no terreiro.
longe de, apenas neste capítulo esgotar a
descrição etnográfica e o debate teórico 1 Ou, melhor dito, encontramos, pois eu estava
acompanhado por minha colega Maria do Car-
suscitados pela existência e permanência mo Brandão, coautora do meu projeto de pes-
do Xangô. quisa sobre o Xangô de Pernambuco.

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Dois carneiros, um bode, cinco cabras, um do o sangue nas pedras pretas e nos triden-
galo, dois pombos brancos, dois pombos tes de metal que representam Tata Caveira e
cinzentos, além de um gradil abarrotado de Pomba-Gira, divindades infernais.4 Depois,
galinhas. Foram, ao todo, naquela ocasião, crucificou um pombo no pau que represen-
oito bichos de quatro pés e 35 aves que Má- tava a árvore da Jurema.
rio imolou. Aquele rito marcou indelevelmente toda
O pai-de-santo, ajudado por quatro ou a minha vida e não só nos aspectos mais in-
cinco rapazes, ia cantando e matando den- telectuais. Tudo que desde então – inclusi-
tro do pegi, onde eu também me encontrava. ve este trabalho – eu tenho escrito sobre o
Um coro de mulheres, que me fazia pensar culto do Xangô e sobre o sacrifício deriva do
no coro de tragédia grega, respondia do lado feixe de intuições que tive naquela tarde e
de fora, ao mesmo tempo em que se ocupa- que venho procurando traduzir – até para
va, como é costume nos grandes sacrifícios, mim mesmo – em conceitos claros e distin-
da imediata transformação das vítimas em tos e em hipóteses testáveis. Logo depois eu
refeição. Vinha-me um sentimento de terror registrei em meu diário que
indefinido, com aquela cerimônia aparente-
“durante a cerimônia tive a impressão de
mente improvisada, o terreiro desarrumado, assistir ao nascimento do ‘homo sapiens’,
a morte encarada com toda a naturalidade. como ser da natureza e ao mesmo tempo da
A morte daqueles animais com os quais cada cultura. Pois uma finalidade da matança era
um de nós se identificava, Mário tendo mis- proporcionar alimentação para o grupo dos
turado nossas cabeças com a do primeiro iniciados. Mas a natureza não era aceita crua,
mas sim mediada pela cerimônia. Era como
bode que degolou, tocando sucessivamente
se a necessidade de comer precisasse de ser
na testa das pessoas e na fronte do bicho, justificada por alguma coisa de totalmente
aves esfregadas em nossos corpos, para que outra, essa outra coisa com sua própria lógi-
nos descarregássemos de nossos males. ca, com suas próprias exigências... O grande
Como alguns bichos sobrassem depois acontecimento da natureza mascarada se fa-
das homenagens aos dez grandes orixás e zia acompanhar de um ímpeto aterrorizador,
aos Ibêji,2 perguntei a Mário o que ia acon- de gatos matadores de pombos e canários...
tecer com eles. Ele respondeu “agora eu vou 4 Tata-Caveira e Pomba-Gira pertencem à classe
dos exus (as divindades afro-brasileiras, espe-
matar para a Jurema”. E então assisti a um cialmente Exu, sendo tratadas ora como indiví-
dos espetáculos mais cruéis de toda a minha duos, ora como uma categoria de indivíduos). A
vida.3 Mário matou duas galinhas, despejan- associação dessas entidades com os demônios
da crença católica transparece na iconografia
2 A tradição recifense reconhecia dez deuses prin- e no vocabulário, inclusive no hinário, onde se
cipais: Exu, Ogum, Odé, Obaluaê, Nanan, Ian- alude a Pomba-Gira como “a mulher de Lucifer”
san, Xangô e Orixalá (ou Oxalá). Existia ainda a (sic) e ao “paraíso infernal” onde habita. Mas
categoria que tenho denominado (Motta 1984b) a fusão sincrética antes assimila os diabos aos
dos “santos especializados”, responsáveis menos exus que o contrário, pois estes não dão mostra
pela “cabeça” (alma ou identidade) das pessoas, da perversidade essencial postulada pelo dogma
como é o caso dos dez grandes orixás, do que por cristão, fazendo o mal só na medida em que o
certas situações, acontecimentos ou coisas. As- bem de uma pessoa pode implicar o mal de ou-
sim, Orumilá-Ifá é o responsável supremo pelo tra. Daí inclusive as guerras mágicas, típicas dos
jogo divinatório, Ossanhe é o senhor das folhas terreiros, nas quais se supõe que, de acordo com
e das ervas, enquanto Bêji (ou Ibêji) é o protetor as ofertas recebidas, as entidades possam trocar
da infância. Na prática, não deixa de haver uma de partido da maneira mais inesperada. Já tratei
certa confusão entre donos de cabeças e donos do caráter bifronte das entidades afro-brasilei-
de situações, sobretudo no caso de Exu. ras – e não só dos exus – em alguns de meus
3 Episódio que se sobrepõe a lembranças infantis trabalhos anteriores (MOTTA, 1979).

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como se a força da natureza indomada qui- Fluxos de Renda


sesse vingar-se de todas as limitações impos-
tas pela cultura”. Eu também cheguei, em decorrência das
intuições daquela tarde, a algumas hipóte-
Admito atualmente que, sem necessi- ses, prontamente anotadas no meu diário de
dade de maior argúcia, logo se percebe, no campo, das quais, em essência, até o dia de
texto de meu diário, o estudante pós-gra- hoje não me afastei:
duado de Antropologia, preocupado com a
distinção lévi-straussiana entre a natureza “O Xangô – eu escrevi – estaria relacionado
com um ambiente de po eradamente nova
e a cultura. Talvez se chegue mesmo a sus-
as observações e entrevistas dos últimos 20
peitar das ligações desse estudante com o dias, posso sugerir as seguintes hipóteses a
Departamento de Antropologia da Univer- respeito da economia do Xangô, tendo como
sidade de Columbia, em Nova Iorque, no protótipo o Palácio do Oxum.5 As fontes de
qual, efetivamente, fui estudante residente renda (“inputs”) do culto consistem das ta-
durante cinco períodos letivos, do outono xas dos afiliados [que eu então imaginava
que fossem pagas com grande regularida-
de 1970 à primavera de 1973. E isso por-
de], dos agrados e presentes dos clientes
que a grande questão teórica de nosso de- e dos pagamentos pelas ‘obrigações’, por
partamento, naquele período era, além do parte de indivíduos ou de grupos (como
estruturalismo lévi-straussiano, o “mate- times de futebol em disputa de campeona-
rialismo cultural”, que tinha no Professor tos), ‘obrigações’ essas que começam pelo
Marvin Harris seu mais notável represen- jogo dos búzios (forma normal de mancia
no Xangô), levando a outras cerimônias –
tante. Tentarei resumir numa só citação a
incluindo o sacrifício, ou mesmo incluindo
essência desta orientação: sobretudo o sacrifício – com o objetivo de
“Até as crenças e práticas aparentemente evitar os males previstos ou confirmados
mais extravagantes, quando atentamente pelos búzios. Do lado da despesa penso que
examinadas, baseadas em considerações, se encontram as despesas com os ritos, os
necessidades e atividades comuns, banais animais a sacrificar, os banquetes e as re-
ou mesmo vulgares. A meu ver, uma solução feições, direta ou indiretamente ligados ao
banal ou vulgar é a que se apoia na realidade ritual”.
e é constituída a partir de vísceras [“guts”],
Eu eventualmente viria a burilar e – es-
sexo, energia, ventos, chuvas e outros fenô-
menos tangíveis e comuns” (HARRIS, 1978, pero – aperfeiçoar este modelo, o qual po-
p.14). rém, com meus 45 anos de conhecimento,
em alguns aspectos muito íntimo, do Xangô,
A tendência do pesquisador partidário
considero ainda como válido em suas gran-
do “materialismo cultural” seria encarar o
des linhas.
sacrifício, tal como o presenciei no terreiro
de Mário, como uma operação simplesmen-
5 Denominação nada modesta do terreiro de Má-
te econômica e nutricional, reduzindo as pa- rio, localizado no Alto de Santa Isabel, entre os
lavras, os cânticos, os gestos de homenagem bairros recifenses de Casa Forte e Casa Amarela.
Mário quis certamente imitar o Palácio de Ie-
aos deuses (inclusive a terrível cena da cru-
manjá, de Pai Edu, situado no Alto da Sé, em
cifixão do pombo) a parte do “mundo cole- Olinda, e vizinho (o que não deixa de ser emble-
tivo dos sonhos, cuja função é evitar que as mático dos tempos e dos costumes) da própria
Sé, a catedral metropolitana, ali estabelecida
pessoas compreendam o que realmente seja desde o tempo de Duarte Coelho, primeiro do-
sua vida em sociedade” (ibidem, p. 15). natário da Capitania de Pernambuco.

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Sacrifício Fundamental vai pessoalmente iniciar em todas as partes


do Brasil, incluindo Rondônia e Acre), supe-
O sacrifício, designado ordinariamente pe-
rava amplamente Edu em pompa e magni-
los cultistas como “obrigação”, “matança”
ficência. Assim é que, em 1981, ele matou,
ou “ebó”, constitui a regra – a regra abso-
ou fez matar, um boi, dez caprinos e 240
luta e não a exceção-- no culto do Xangô.
aves para a festa de Viramundo, que é o seu
Volto-me para minhas notas e para meus
principal Exu. Eu, naquele ano, não assisti
trabalhos anteriores. Sangue na casa de Má-
à matança, mas o que, no dia seguinte, em
rio. Sangue da grande obrigação anual de
companhia do pranteado sociólogo paulista
Badia,6 a grande festa de outubro, provável
Cândido Procópio Ferreira Camargo, eu vi e
sobrevivência da festa da colheita do inha-
cheirei, em matéria de penas e carcaças, bas-
me no país iorubá. Badia, nessa ocasião, ja-
tou para deixar-me inteiramente satisfeito.
mais oferecia menos de 15, às vezes mesmo,
Em 1989, Raminho convidou-me, na mes-
nos anos de maior prosperidade, 40 ou 50
ma data (24 de agosto, que é sempre quando
bichos de quatro pés, caprinos e ovinos, em
ocorre no Recife, a festa de Exu e outras en-
seu terreiro, situado bem no centro do velho
tidades, assimiladas ou dependentes desse
Recife (Pátio do Terço). Nessa área, segundo
orixá), para o sacrifício, a que também não
antigas tradições (RIBEIRO, 1978), teria se
pude assistir, de três bois, acompanhados,
originado o Xangô de Pernambuco.
como se pode imaginar, de muitas cabras,
Sangue dos 500 frangos, que Pai Edu
muitos bodes e grande multidão de aves.
proclamava altamente ter sacrificado para
Porém, a minha frustração de sempre ter
a festa de seu Exu (sem contar com os qua-
sido impedido de estar presente às grandes
drúpedes), convidando ainda por cima, para
obrigações de Raminho, foi amplamente
as comemorações, os banquetes e as liba-
compensada, no ano de 1991, já nem digo no
ções, os membros do “café society” de Olin-
dia, mas no ciclo da festa de Exu. Na segun-
da e Recife, além de intelectuais – o próprio
da-feira, 19 de agosto, testemunhei a mor-
Gilberto Freyre dignou-se comparecer ao
te de três caprinos, ofertados às divindades
menos uma vez – e jornalistas, estes muito
infernais, Tata Caveira, Pomba-Gira e Maria
apreciados inclusive por causa da assesso-
Padilha. No sábado, dia 24, vi três garro-
ria literária que forneciam às entidades, que
tes pretos degolados no salão de danças (e
costumavam ditar mediunicamente, ao ilus-
não falo dos quadrúpedes menores nem das
tre babalorixá, obras de vulgarização litúrgi-
aves) e fui ainda convidado para o abate de
ca e mesmo biografias romanceadas, como
outro bovino, no dia 28, em homenagem ao
Magdala, A Cigana (SILVA, 1978).
orixá Xangô, que poderia ficar enciumado
Mário Miranda sempre teve muita von-
se também não recebesse alguma marca de
tade de igualar as cifras de Edu, mas nunca o
apreço.
conseguiu. Já Raminho, embora menos co-
Os termos “diabo”, “diaba”, “satanás” ou
nhecido fora dos ambientes da Seita6 (o que
equivalentes eram abertamente empregados
ele compensava, ou ainda compensa, pela
pelos próprios participantes, que inclusive
grande quantidade de filhos-de-santo, que
se referiram, em determinado cântico, ao já
6 O termo seita é, ou era, correntemente utilizada mencionado “paraíso infernal”. A iconogra-
para se referirem a seu próprio grupo religioso,
pelos filhos-de-santo, falando entre si ou com fia se encontrava bastante próxima do que
pesquisadores de sua confiança. se poderia chamar de “kitsch” brasileiro,

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com os símbolos tradicionais das potências cido como Plutão. Não é este aliás o único,
infernais, tais como os concebe a tradição nem sequer o mais notável, ponto de contac-
ocidental. No “corpus” da bibliografia afro to entre a religião afro-brasileira e o paga-
-brasileira, parecem-me ter sido Georges nismo greco-romano.
Lapassade e Marco Aurélio Luz que, num Mário, Badia, Edu, Raminho são ou fo-
pequeno livro, menos divulgado, com certe- ram alguns dos grandes da Seita em Per-
za, do que mereceria e nunca reeditado, O nambuco. Suas oferendas situavam-se aci-
Segredo da Macumba (LAPASSADE; LUZ, ma da média, tanto pelo número de vítimas,
1972), melhor captaram e descreveram o como pelo esplendor litúrgico com que eram
ambiente a dinâmica do culto de Exu e “suas imoladas. Porém a tese essencial deste ca-
mulheres Pomba-Gira e Maria Padilha” (ibi- pítulo não diz respeito nem à grandiosidade
dem, p. XVI). Foi efetivamente o “ritual ver- do sacrificador, nem ao terror e à admiração
melho e negro”, a “festa negra” ou mesmo a do observador, mas antes a que o sacrifício é
“missa negra”, que fui reencontrar em casa o rito fundamental do Xangô, constituindo,
de Raminho (situada no jardim Brasil, mu- ainda que em proporções bem mais modes-
nicípio de Olinda), em agosto de 1991. tas que as dos exemplos até agora apresen-
Um colega francês que me acompanhou tados, uma prática corriqueira e quotidiana.
nestas visitas, espontaneamente associou o Não há Xangô sem sacrifício de
sacrifício dos caprinos, na segunda-feira, às sangue. Foi isso, justamente, o que com-
“missas negras” da tradição francesa, rela- preendeu muito bem Amara, quando quis,
cionadas inclusive com o “Affaire des Poi- não apenas iniciar-se como filha-de-san-
sons” (“O Escândalo dos Venenos”), no tem- to (o que, já por si, exige todo o sangue ao
po de Luís XIV (1680, aproximadamente), alcance da bolsa do neófito), mas, ato con-
no qual estiveram implicados membros dos tínuo, abrir o seu próprio terreiro.7 Depois
mais altos círculos da Corte. Eu, entretanto, de muito pelejar, Amara, residente no Alto
não sigo Lapassade & Luz em sua talvez ex- do Bonfim, município de Olinda8, conseguiu
cessiva dependência teórica com relação a atingir seus objetivos. Mas, sendo uma mu-
Marx, Nietzsche e Wilhelm Reich. À guisa de lher pobre, vivendo com dificuldade do exer-
mera especulação, poder-se-ia sugerir certa cício da magia do Catimbó9 e de seu ofício
aproximação da macumba e da quimbanda, de chapeleira, sem vínculo formal de empre-
ultrapassando o satanismo da tradição eu- go, essa filha/mãe-de-santo não pôde, em
ropeia (bem conhecido no Brasil, inclusive 7 O término da iniciação confere ao filho-de-san-
através do sempre reeditado e bem vendido to a faculdade de abrir o seu terreiro e mesmo a
de iniciar seus próprios filhos rituais (neste caso
Livro de São Cipriano), com o culto às di-
geralmente sob a supervisão de seu próprio pai-
vindades infernais no mundo greco-roma- de-santo), e isto apesar da ficção teológica se-
no. Ou talvez com os próprios mistérios de gundo a qual sete anos deveriam decorrer entre
a iniciação e a plena maturidade religiosa.
Elêusis, sobre os quais existe uma vastíssi- 8 Mas a área adjacente ao vale do Beberibe, mes-
ma literatura. Walter Burkert (1983) repre- mo quando localizada no município de Olinda,
senta eminente exemplo dessa bibliografia como é o caso do Alto do Bonfim, pouca rela-
ção possui com o núcleo histórico da cidade de
e fornece muitas outras indicações. Sabe- Olinda.
se do papel capital aí desempenhado pelos 9 Trato com mais detalhadamente do Catimbó do
Recife, muitas vezes também denominado Jure-
sacrifícios e pelos mitos de Koré-Perséfone, ma, em vários de meus trabalhos, dentre os qual
esposa de Hades (Inferno), também conhe- destaco Motta 2005.

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tudo e por tudo, compreendendo a iniciação prinos e sete aves.11


como filha, a consagração como mãe, apta a Semelhante, Zé Lins, que, mesmo no am-
gerar seus próprios filhos, e a fundação ofi- biente da Seita, jamais recebeu, em decor-
cial do novo terreiro, ofertar mais que duas rência de sua timidez ou falta do imponderá-
cabras e dez galináceos, realmente o mini- vel carisma, o reconhecimento devido a sua
mum minimorum em ocasião de tanta im- minuciosa informação mitológica e perfeita
portância.10 Seus pai e mãe-de-santo, que só competência ritual, e isso tanto no Xangô e
haviam concordado com a abertura do novo no Catimbó quanto, com toda a probabili-
centro por logo terem percebido que, por dade, na Umbanda, não pôde oferecer, esse
sua localização numa rua de morro de difícil meu valioso informante e amigo, mais que
acesso, dificilmente atrairia muitos fiéis, ou duas cabras e seis galinhas, quando de sua
pelo menos não atrairia aqueles com maior iniciação como filho de Orixalá. Zé Lins é
poder aquisitivo, olharam com desprezo na verdade tão ou mais pobre que a Amara
para aquelas oferendas. O pai chegou mes- do exemplo anterior. Mas suas ligações de
mo a insinuar, que, quando Amara caiu em família dentro da Seita, os serviços rituais e
transe, não devia ser de Orixalá, o próprio pessoais que, com muita modéstia e simpli-
pai dos deuses, que só se “faz” às custas de cidade, sempre se apressou a prestar dentro
muito sangue, mas antes de um desses es- de vários terreiros (foi mesmo, durante al-
píritos caboclos que às vezes se intrometem gum tempo, “acipa” de Babá)12, afastam, em
no meio dos orixás, querendo participar de seu caso, as suspeitas de arrivismo e opor-
suas homenagens, mas que, como na fábula tunismo.
do veado escondido na vacaria, dificilmente
escapam ao olhar experiente de um autênti- Sacrifício do Autor
co pai-de-santo.
Eu próprio, quando cogitei de fazer-me for-
Mas esse mesmo babalorixá, que chama-
malmente iniciar num terreiro de Xangô,
rei aqui Pedro dos Santos, ao mesmo tempo
também ofereci alguns sacrifícios. Minha
em que transformarei em Babá o carinhoso
história ritual começou em janeiro de 1976,
diminutivo com que é geralmente designa-
quando, pela primeira vez em caráter pes-
do, quando, há um certo número de anos
soal – e não mais simplesmente como pes-
(ele hoje convive de igual a igual com an-
quisador –, solicitei a Pai Pedro (Babá), que
tropólogos e museólogos, não só do Recife,
jogasse os búzios para mim, de modo a que
mas de todo o Brasil), precisou de oferecer
11 Informaram-me, entretanto, que além da ceri-
um sacrifício a Obaluaê, seu segundo santo, mônia que presenciei, Babá, alguns dias antes,
acompanhado da oferta que não poderia fal- havia oferecido outra cabra (ou uma ovelha),
com mais três aves, na chamada “obrigação de
tar a Iemanjá, que é seu primeiro santo, a
balé”. Esta é uma cerimônia em honra dos an-
dona por excelência de sua cabeça ou “ori”, tepassados (“eguns”) e dos deuses que os acom-
sem contar com a parte de Exu, por quem panham, que são Iansã, a “Iansã de balé”, que
alguns pretendem realmente distinta da Iansã
tudo deve necessariamente começar, ele não dona das cabeças dos vivos, e Exu, que de todos
teve condições de oferecer, na esperança de os orixás é o que mais se divide e subdivide, ha-
melhores dias, mais que um total de dois ca- vendo-os para praticamente todas as situações.
O ritual do balé é uma obrigação “de rigueur”
antes de todo ritual de grande porte.
10 Trato com mais vagar da história de Amara 12 O acipa (ou cipa) é, no Xangô de Pernambuco,
(também chamada Teresa) noutros de meus ar- o assistente do pai-de-santo, tornando-se mui-
tigos, entre eles Motta 1984. tas vezes seu substituto e herdeiro.

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Sangue: ensaio sobre o sacrifício no Xangô de Pernambuco

eu ficasse sabendo, de uma vez por todas, sobre os assentamentos. Toadas de Exu,
qual era o dono de minha cabeça e o que eu das quais algumas são também de toque,
devia fazer para agradá-lo. Babá então jogou outras parecem exclusivas de matança. O
frango morto é levado para a cozinha.
e resultou que meu santo era Xangô, ao qual
2. Oxalá. Matança de um frango branco.
eu devia oferecer o sacrifício de um carneiro
Toada de cortar pescoço de bicho: edjé
logo que me fosse possível. Mas por enquan- balé cararô. Outras toadas também
to, Babá me advertiu, havia qualquer coisa usadas nos toques, como Orixalá é um
de ainda mais urgente. Eu devia propiciar funfunhê. O uso de toadas comuns à
Exu (por quem tudo deve sempre começar) matança e ao toque (sessão pública de
e dar uma comida a Oxum, que sem ser pro- danças) põe as duas ocasiões em relação
metafórica. (A oferenda a Oxalá é um
priamente minha santa, havia me cumpri-
complemento habitual dos sacrifícios a
mentado insistentemente durante o jogo, a Xangô.)
que eu não poderia deixar de retribuir sem 3. Bêji. Matança de dois frangos. (Esse ofe-
incorrer em desrespeito e atrair castigos. recimento foi, a rigor, um ato pessoal de
Cumpri essas exigências preliminares nos devoção por parte do pai-de-santo.)
dias seguintes e deixei o tempo passar. 4. Xangô. Oferecimento de um carneiro,
A julgar pelo silêncio de minhas notas, aparentemente em ótimas condições, e de
decorreram meses até que eu tornasse a dois galos. Mas antes, deposição de peda-
aparecer em casa de Babá e de sua consor- ços de carne de boi no assentamento.
te Diva. Mas já em outubro do mesmo ano 5. Final. Prosto-me diante de Xangô. Acen-
do uma vela para cada santo. Nos assen-
(1976), encontro um relato detalhado no
tamentos, até que as carnes se cozinhem,
meu caderno, do qual passo a transcrever os somente penas e a cabeça do carneiro.13
trechos principais:
6. Oficiantes. Babá, naturalmente, Zé Lins,
“Visitei Babá e Diva a semana passada, a e mais um novato que recentemente as-
razão dessa visita sendo certas informações sentou Ogum, Hermógenes Malta. As da-
sobre ritos de caboclo, de que preciso para mas acolitaram, cantaram, cozinharam,
redigir um artigo. O casal – Diva sobretudo etc.. Meu investimento total foi de 866
– foi logo me lembrando que meu santo deve cruzeiros. Babá me dá a entender que re-
estar com fome, talvez mesmo irritado, e daí teve 140 como gratificação, mas se deve
os recentes furtos de que tenho sido vítima. acrescentar que as carnes, salvo os axés,14
Babá jogou. Dito e feito, tenho um inimigo,
que é um colega de trabalho, e que anda fa- 13 Este ato de aberta idolatria ainda hoje causa
escrúpulos à minha consciência judeo-cristã e,
zendo trabalhos contra mim. Prescrição:
com certeza, influenciou minha transferência do
dar um bicho de quatro pés a Xangô, com o Xangô para as sutilezas das teorias weberianas e
acompanhamento habitual. Essa obrigação assemelhadas.
ficou marcada para o sábado à noite e eis 14 Existe, no Xangô uma oposição fundamental
como transcorreu: entre o axé, representado pelas partes dos ani-
mais sacrificados que normalmente só os deu-
1. Exu. Um frango. Consulta com os oito ses comem, sendo a princípio depositadas nos
búzios da qual resulta que devo dar um seus assentamentos e depois “despachadas” em
bode a Exu logo que possa. Limpeza. algum lugar apropriado, seco ou molhado, e o
Toada sararé... bocunan... A limpe- eran, representado, por assim dizer, pelas par-
za consiste essencialmente em esfregar tes profanas dos animais. De longe o sangue,
que representa a vida, é o principal entre os
o frango por cima de todo o corpo das axés. Há analogias, quanto a esta oposição, en-
pessoas. Matança do frango. Toada edjé tre o Xangô e o antigo ritual hebraico, tal como
balé cararô. Ó sangue derramado sobre codificado em diversas passagens do Pentateuco
a terra, dá-nos paz! Deposição do sangue e dos seus comentários. Até hoje nenhum Judeu,

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circulam na casa e entre os amigos da denominados Xangô, Iemanjá, Oxalá, etc.17


casa.15 A realidade fundamental na base de meus
Poucas semanas depois dei a obrigação sacrifícios era a dependência psicológica em
de Exu, como os búzios haviam requerido, que eu me encontrava com relação a Babá e
compreendendo um bode e seu acompanha- sua consorte Diva... Eu acrescentaria ainda,
mento alado habitual.16 O próximo ato veio em clave mais durkheimiana ou turneria-
mais de um ano depois, com a oferta a Xan- na (Durkheim 1960, Turner 1969), que me
gô de outro carneiro, de que não redigi rela- deixei arrebatar pela efervescência da fes-
to detalhado, mas que, em grandes linhas, ta, da comunhão, do “comitatus”, daquele
seguiu o mesmo esquema do sacrifício an- “momento dentro e fora do tempo” de onde
terior. nascem as representações e os sonhos. Não
Depois do segundo carneiro, eu tinha creio que nem no aspecto freudiano, nem no
duas opções. Eu poderia elevar o nível de durkheimiano ou turneriano, meu caso seja
meus sacrifícios e partir para os ritos de ini- único na história da pesquisa sobre o Xangô
ciação propriamente ditos (lavação de cabe- e o Candomblé. Muito pelo contrário.
ça, sacrifício à cabeça, assentamento, oberê
e cerimônias complementares) ou ficar no Regra Geral
ciclo obsessivo-compulsivo das ofertas de Minha experiência pessoal serve para ilus-
um bicho ora a Xangô, ora a Exu, o sacrifí- trar a regra geral – de que não conheço ex-
cio seguinte já constituindo uma exigência ceções – pela qual todos os oráculos do jogo
do anterior. No caso concreto, resolvi o di- divinatório conduzem ao sacrifício. Este,
lema cortando o nó górdio de minha depen- na realidade, compreendido como o derra-
dência, em que um psicanalista descobriria mamento do sangue dos animais, constitui,
sem dificuldade uma problemática edipiana vale a pena reiterar, o ato essencial do culto,
no melhor estilo Totem e Tabu. Desde en-
tudo o mais, jogo de búzios, toques, danças,
tão não reincidi, nem com Babá nem com
possessões, etc., a ele conduzindo ou dele
nenhum outro pai-de-santo. Minha partici-
resultando. Os ritos de iniciação, além de o
pação no culto, chegando até o ponto do ofe-
implicarem a cada etapa, resultam em que o
recimento de sacrifícios, não deixava aliás
próprio devoto, recebendo em seu corpo os
de trazer-me problemas de ordem ética. Eu
“axés” (que são os temperos sagrados) atra-
me comportei com sinceridade, declarando,
vés do ritual dos cortes, transforma-se na
sempre que se oferecia ocasião, minha con-
comida dos deuses.
dição de pesquisador. Em nenhum momen-
to acreditei na existência pessoal de seres
Sangue e Remédio
mesmo que não seja muito ortodoxo, consumirá
o sangue de um animal abatido para consumo Na perspectiva do Xangô, nenhum remé-
doméstico. “Edjé balé cararô”, possa o sangue na dio é mais eficaz do que o derramamento de
terra derramado trazer paz!
15 Por ocasião desse sacrifício meus colares de sangue. Assim quando Creuza, uma filha-
contas, um, vermelho e branco, representando de-santo com que travei conhecimento nos
Xangô, outro, só branco, representando Oxalá, primeiros meses de meu trabalho de cam-
foram consagrados pelo contacto com o sangue
e com as carnes. Eu nunca uso esses colares, mas po, apareceu com um problema circulató-
deles jamais me desfiz.
16 É praxe no Xangô que cada bicho de quatro pés 17 Mas nada disso me impediu, como já relatei, de
seja “coberto” por pelo menos duas aves. praticar um ato de aberta “idolatria”.

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Sangue: ensaio sobre o sacrifício no Xangô de Pernambuco

rio que em pouco tempo fez com que uma tos sânscritos. E acrescentam: “Notemos a
de suas pernas tivesse de ser amputada, ela função desta palavra, particípio presente do
compreendeu, depois que seu pai-de-san- verbo yaj (sacrificar). O sacrificante, para os
to jogou os búzios, que aquilo, como se ex- autores hindus, é aquele que espera o retor-
pressou, era “couro” mandado por Xangô. E no à sua própria pessoa dos efeitos de suas
isto pelo seguinte. Creuza, que era filha de ações” (ibidem). (Sobre o yajamâna ver
Oxum, sempre tinha sido sempre muito ze- também Le Sacrifice dans I’Inde Ancienne
losa (“desde que fiz meu santo”, como fazia (BIARDEAU; MALAMOUD, 1976) e, sobre-
questão de salientar), com relação à dona de tudo com referência a transformações mais
sua cabeça. Mas tinha se esquecido de Xan- recentes do conceito, a seção sobre o “siste-
gô, seu segundo santo, que é, como se sabe, ma jajmâni” em Dumont (1967, p. 124- 138).
muito exigente. Daí a doença. E daí a neces- Já o sacrificador (“sacrificateur”), por
sidade, como Creuza também explicou, de outro lado, é “um intermediário... um guia...
uma grande obrigação,18 compreendendo sacerdote... [tendo] de um lado o mandatário
um total de nove bichos de quatro pés e 40 do sacrifício, de cujo status partilha e cujas
aves, além do “ebori” (um sacrifício ofere- faltas assume; por outro lado está marcado
cido especificamente à cabeça da pessoa, pela divindade... é seu ministro, sua própria
ou ao duplo invisível dessa cabeça) e de dez encarnação ou, no mínimo, o depositário de
dias de resguardo no terreiro. As despesas – seu poder. É o agente visível da consagra-
inclusive os honorários dos oficiantes e dos ção, situando-se, em suma, no limite entre o
acólitos – ficaram naturalmente por conta mundo sagrado e o mundo profano e repre-
de Creuza, pois é o sacrificante, e não o sa- sentando ambos ao mesmo tempo, que nele
crificador, que lucra essencialmente com o se encontram” (ibidem, p. 52-53). Com toda a
sacrifício. probabilidade, Hubert & Mauss, embora não
a citem, direta ou indiretamente conheciam
Pequena Digressão Teórica a passagem de Tomás de Aquino, onde este,
Adoto, no decorrer deste trabalho, a distin- retomando Agostinho, afirma que “quatro
ção por assim dizer consagrada por Hubert coisas devem considerar-se em todo sacrifí-
& Mauss em seu Essai sur la Nature et la cio: a quem se oferece, por quem se oferece,
Fonction du Sacrifice (HUBERT & MAUSS, o que [ou quem] se oferece e em proveito de
1898), entre, por um lado o sacrificante quem se oferece” (Suma Teológica, 3a par-
(“sacrifiant”), ou seja, “o fiel que fornece a te, questão 48, artigo 30). No mesmo artigo,
vítima... [e] que recebe assim os benefícios Santo Tomás, antecipando Hubert & Mauss,
do sacrifício ou pelo menos alguns de seus mas já em sequência a uma longa tradição
efeitos. Essa pessoa pode ser um indivíduo de comentadores, assinala que “quem quer
ou uma coletividade” (op. cit., p. 37). Hubert que oferece um sacrifício faz alguma coisa
& Mauss aproximam imediatamente o con- ficar sagrada, como demonstra a própria
ceito de “sacrifiant” do yaja-mâna dos tex- palavra sacrifício”, o que não se encontra
tão distante da definição huberto-maussia-
18 Não imaginemos que Creuza deixou de também
recorrer à medicina convencional, para tratar-se na do “sacrifício como um ato religioso que,
daquela doença, cujo nome desconhecia – em- pela consagração de uma vítima, modifica o
bora afirmasse taxativamente que não era dia-
bete – e para a qual deveria tomar determinado estado da pessoa moral que o realiza ou de
remédio, todos os dias, pelo resto da vida. certos objetos de seu interesse” (ibidem, p.

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41). Mas essa definição não deixa de suscitar poucos terreiros os igualassem na quantida-
alguns problemas. Inclusive pareceria que a de de vítimas, no número de oficiantes e em
coisa a definir (o sacrifício) já se encontra, todas as pompas do ritual –, como também
com ligeira transformação terminológica, na acontece que as notas que em seguida repro-
definição (“consagração de uma vítima”), o duzo, tomadas no decorrer do próprio sacri-
que implicaria numa petição de princípio... fício (e aqui transcritas só com um mínimo
Quase como uma espécie de apêndice, a de explicitações), constituem, estou persua-
seguinte descrição de uma grande obrigação, dido, um dos documentos mais importantes
em casa da Badia, quer transmitir alguma do arquivo etnográfico que consegui reunir
coisa da intensidade desse rito fundamental. sobre a religião afro-pernambucana.
“Cheiro de temperos na cozinha. Água ferven-
Festa de Outubro do. Comentários sobre “obrigações”. Viagens
Começando em 1974, tive por regra geral, de Raminho. Vai a Rondônia fazer cabeça de
filho. Conversa em “xangozês”.19 Amassi.20
sempre que me encontrasse no Recife, ir as-
Filho de Babá, que está atrasado, “canta” fo-
sistir à grande festa de Badia no mês de outu- lhas. Ninguém presta atenção. Sacrifício no
bro. Era a festa do inhame, cujo primeiro quarto de balé.21 Limpeza dos assistentes com
ato consistia no bori, (ou ebori), a “comida o primeiro frango. Um bode, quatro frangos.
da cabeça”, que Badia reiterava anualmente Presencio tudo (ordem de Raminho). Volta ao
– o que não constitui a regra geral entre os pegi.22 Exu xoxô. Edjé balé cararô. Um
bode, quatro frangos. Tiriri lonan! Ó meu
membros do Xangô –, por causa – eu mais
senhor, poderoso no meio da estrada! Todos
do que presumo – da maneira muito intensa muito à vontade. Sal no sangue. Chegam Babá
com que se dedicava às artes mágicas, inclu- e Diva. “Nego, você sabe (ela esnoba), teve ou-
sive à frente da “Sociedade de São Bartolo- tra obrigação esta manhã: vinte e oito de pe-
meu”. Esta é apenas uma das sociedades, ou nas e dois de quatro pés.”
“devoções”, ostensivamente dedicadas ao
19 Xangozês é português (dialeto recifense),
culto desse santo – cujo dia coincide tradi- cheio de expressões técnicas do culto e palavras
cionalmente com a festa de Exu – situadas em nagô (iorubá).
no Pátio do Terço (ou em sua vizinhança). 20 Amassi, neste caso, significa a extração do
sumo de certas folhas e ervas para lavagem ri-
Daí, como já se mencionou, é tradição que tual.
se originou o Xangô de Pernambuco, que só 21 O quarto de “balé” é destinado ao culto dos
antepassados rituais, enquanto persiste a sua
por volta de 1910 – conforme a lembrança lembrança. Nem as mulheres nem qualquer de
que eu próprio ainda fui capaz de recolher pessoa também do sexo masculino que não te-
em 1974 – foi instalar-se no vale do médio nha sido formalmente iniciada na hierarquia do
Xangô pode ter acesso a esse recinto. Eu uma
Beberibe, que, nos anos 1970, representava vez burlei essa proibição. Sendo eu um rapaz de
sua grande reserva étnica e cultural, corres- boa posição social, os devotos preferiram achar
pondendo aproximadamente à região atra- graça no meu atrevimento. Mas quando, pouco
tempo depois, eu apareci com uma patologia of-
vessada pela Avenida Beberibe, com alguns talmológica potencialmente grave, meu proble-
prolongamentos nos municípios de Olinda e ma foi interpretado como um castigo de origem
sobrenatural.
de Paulista. 22 O pegi pode ser compreendido como a capela
Tenho em meus arquivos muitos relatos do terreiro. Nele se guardam não só as imagens
detalhados de matanças rituais. Mas não (de tipo católico romano) de cada um dos san-
tos, mas também as pedras e os metais em que
só as obrigações de Badia representavam o se concebe que estejam realmente e sobre os
“tipo ideal” ou a norma do Xangô – embora quais se derrama o sangue dos sacrifícios.

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Sangue: ensaio sobre o sacrifício no Xangô de Pernambuco

“Mau cheiro. Até agora dois bodes e oito nas, um peixe. Ainda Xangô. Mais duas aves
aves. São 10 e 30. Matança começou há e mais uma ave. Badia pede saúde, felicida-
20 minutos. Bode para Ogum. Edjé balé. de, tudo de bom. Toadas de Xangô (como
Ogum pá, Ogum pá, ô! Ogum mata, ah, num toque). Títulos de glória. Raminho me
ele mata! Dois frangos e mais dois frangos. oferece pedaços de carne. Recuso (estou fa-
Mulher com cara de portuguesa. Almoço em zendo regime para colesterol). Mais uma
preparo. Muitos temperos. Bode para Odé, guiné. Poça de sangue vermelho-claro no as-
Bola de gordura atirada na parede. Dois sentamento do santo.”
frangos. Gestos de dança. (Os gestos cheios
“Babá canta folhas. A mesma toada, uma vez
de graça do jovem caçador.). Bode para Oba-
para cada orixá. Ogum tori bomim... Odé
luaê. Duas aves. Mais cochichos e risinhos,
tori bomim... Xangô tori bomim... Em
dentro e fora do pegi. Atotô! Tememos tua
minha cabeça, meu pai.”
força. Excitação de repente aumenta. Cheiro
de penas fervendo.” “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.”
“Oxum. Duas cabras. Filhas d’Oxum se pros- “Que foi que houve, Raminho?”, Badia per-
ternam. Toada eran, eran, eran orixá, gunta. – “Tem muito azeite no chão. O sol
carne, carne, carne para a deusa. Cheiro ati- está muito quente. A gente estamos cansa-
vo de aguardente. Sangue jorra e escorre. dos. Vamos almoçar e descansar. Mais tarde
Quatro aves. Mais gordura na parede. As for- a gente mata pra Oxalá. Ei, professor, o seu
ças vitais se soltaram. Cheiro insuportável de regime também proíbe cerveja? ”
sangue. Açougueiros (aprendizes de pais-de-
santo) trabalhando no quintal. Raio de sol
pela telha de vidro. Meio-dia astronômico.
Referências
Povo começa a comer.” BIARDEAU, Madeleine; CHARLES, Malamoud.
Le Sacrifice dans l`Inde Ancienne. Paris:
“Iemanjá. Vasconcelos – homem branco PUF, 1978.
– cliente de Badia, patrono do sacrifício de
hoje? Edjé Balé. Carneiro. Duas galinhas. BURKERT, Walter. Homo Necans: The An-
Um peixe (já morto). Mais gordura na pare- thropology of Ancient Greek Sacrificial
Ritual and Myth. Berkeley: University of Cali-
de. Fogos de artifício. Um pato. Uma guiné.
fornia Press, 1983.
Pombo degolado em cima da cabeça de uma
noviça.23 Pato em contacto com sua cabe- DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus. Paris:
ça. Outra galinha por cima dela. Noviça em Gallimard, 1967.
transe. Sai do pegi toda coberta de sangue,
DURKHEIM, Emile. Les Formes Élémentai-
que nem tão cedo deverá ser lavado.”
res de la Vie Religieuse. Paris: PUF (Quadri-
“Xangô. Libações em cima da pedra. Um car- ge), 1960. (Or. 1912.)
neiro, enfeitado de vermelho e branco. Car- HARRIS, Marvin. Vacas, Porcos, Guerras e
neiro degolado com todo o respeito devido Bruxas: Os Enigmas da Cultura. Rio de Ja-
ao deus. Outro carneiro. Janda exclama “é neiro: Civilização Brasileira, 1978.
muito!”. Badia diz que devo entrar. “Agora
você entre e adore: é seu santo!”Recuso. Eu LAPASSADE, George; LUZ, Marco Aurélio. O
Segredo da Macumba. Rio de Janeiro: Paz e
sou só pesquisador... (Vão pensar que estou
Terra, 1972.
de corpo sujo.) 24 Foguetes. Mais gordura na
parede. Até agora 11 de quatro pés, 26 de pe- MAUSS, Marcel ; HUBERT, Henri. “Essai sur le
23 Badia sempre aproveitava a festa de outubro Sacrifice”. L’Année Sociologique. deuxième
para a iniciação de um ou dois filhos ou filhas. année, 1898, p. 24-138.
24 Talvez por causa de recente emissão de sêmen.
Durante toda a cerimônia eu fiquei sentado jun-
MOTTA, Roberto. Protesto e Conformismo no
to da soleira, sem jamais entrar no pegi propria- Xangô do Recife. Ciência & Trópico (Recife),
mente dito. v. 7 (2), 1979, p. 255 – 262, 1979.

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Roberto Motta

_______________ Cultos Populares e Fon- de Poder. Campinas; São Paulo: Mercado das
tes Alternativas de Renda. In: DUARTE, Renato Letras, 2005, p. 279-299.
(org.). Emprego e Renda na Economia In-
formal da América Latina. Recife: Massan- RIBEIRO, René. Cultos Afro-Brasileiros do
gana, 1984 (a), p. 179-186. Recife: Um Estudo de Ajustamento So-
cial. Recife: Massangana, 1978, 2ª. Edição.
_______________Meat and Feast: The
Xangô Religion of Recife, Brazil. Tese SILVA, Edwin Barbosa da. Magdala, A Ciga-
(Doutorado em Antropologia) – Departamen- na. Recife: Editora Star, 1978.
to de Antropologia, Universidade de Columbia, TURNER, Victor. “Sacrifice as Quintessential
1984(b). Process: Prophylaxis or Abandonnement”. His-
_______________ A Jurema do Recife: Reli- tory of Religion, 16 (3), 1977, p. 189-215.
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In: LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART; San- Enviado em: 23/11/2016
dra Lúcia (orgs.). O Uso Ritual das Plantas Aprovado em: 05/12/2016

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