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4052-Texto Do Artigo-10753-1-10-20171008
4052-Texto Do Artigo-10753-1-10-20171008
Resumo
O sacrifício sangrento de animais é o ato central do culto do Xangô, confor-
me atesta a experiência etnográfica do autor nos terreiros e nos rituais dos
mais diversos pais-de-santo: Mário Miranda (de onde, em tarde memorável,
partiram minhas grandes intuições sobre o sacrifício e a economia da religião
afro-pernambucana), Badia, Edu, Raminho, Amara, Babá e outros, além de
sua própria participação pessoal. A iniciação ao Xangô não só acarreta muita
efusão de sangue animal, como também, de certo modo, a transformação do
devoto no alimento dos deuses. O sacrifício representa igualmente a supre-
ma forma de terapia. O artigo também registra que o sacrifício, apesar do seu
alto valor simbólico, não deixa de desempenhar funções muito práticas, de
caráter econômico e nutricional.
Palavras-Chave: sacrifício de sangue; festa; fluxos de renda.
Abstract
Blood sacrifice is the basic cultic act of the Xangô religion of Recife, Brazil,
as it is, too, the basic rite of Bahia’s Candomblé. The prominence of this rit-
ual was observed by the author of this paper on countless occasions, among
both well known pais-de-santo and the small fry of the Xangô. The process
of initiation entails a plentiful effusion of animal blood, but sacrifice, though
done with less grandeur, is an ordinary practice of the cult. Sacrifice also
represents a supreme form of therapy for all that may ail the devotees. (But
resource to more conventional, Western forms of medicine is by no means
excluded, if devotees can afford it.) Moreover, in spite of its primarily sym-
bolic value, plays also a significant role of a practical, economic and nutri-
tional importance in the cultists’ lives.
Key Words: blood sacrifice; feast; economic circuits.
Introdução
Este artigo deriva, com alterações, de um cia (ou titularização) em Antropologia, na
dos capítulos de minha tese de livre-docên- Universidade Federal de Pernambuco, de-
* Roberto Mauro Cortez Motta. PH.D em Antropologia pela Columbia University, Prof. Adjunto do Depar-
tamento de Antropologia da UFPE. E-mail: rmcmotta@uol.com.br
Dois carneiros, um bode, cinco cabras, um do o sangue nas pedras pretas e nos triden-
galo, dois pombos brancos, dois pombos tes de metal que representam Tata Caveira e
cinzentos, além de um gradil abarrotado de Pomba-Gira, divindades infernais.4 Depois,
galinhas. Foram, ao todo, naquela ocasião, crucificou um pombo no pau que represen-
oito bichos de quatro pés e 35 aves que Má- tava a árvore da Jurema.
rio imolou. Aquele rito marcou indelevelmente toda
O pai-de-santo, ajudado por quatro ou a minha vida e não só nos aspectos mais in-
cinco rapazes, ia cantando e matando den- telectuais. Tudo que desde então – inclusi-
tro do pegi, onde eu também me encontrava. ve este trabalho – eu tenho escrito sobre o
Um coro de mulheres, que me fazia pensar culto do Xangô e sobre o sacrifício deriva do
no coro de tragédia grega, respondia do lado feixe de intuições que tive naquela tarde e
de fora, ao mesmo tempo em que se ocupa- que venho procurando traduzir – até para
va, como é costume nos grandes sacrifícios, mim mesmo – em conceitos claros e distin-
da imediata transformação das vítimas em tos e em hipóteses testáveis. Logo depois eu
refeição. Vinha-me um sentimento de terror registrei em meu diário que
indefinido, com aquela cerimônia aparente-
“durante a cerimônia tive a impressão de
mente improvisada, o terreiro desarrumado, assistir ao nascimento do ‘homo sapiens’,
a morte encarada com toda a naturalidade. como ser da natureza e ao mesmo tempo da
A morte daqueles animais com os quais cada cultura. Pois uma finalidade da matança era
um de nós se identificava, Mário tendo mis- proporcionar alimentação para o grupo dos
turado nossas cabeças com a do primeiro iniciados. Mas a natureza não era aceita crua,
mas sim mediada pela cerimônia. Era como
bode que degolou, tocando sucessivamente
se a necessidade de comer precisasse de ser
na testa das pessoas e na fronte do bicho, justificada por alguma coisa de totalmente
aves esfregadas em nossos corpos, para que outra, essa outra coisa com sua própria lógi-
nos descarregássemos de nossos males. ca, com suas próprias exigências... O grande
Como alguns bichos sobrassem depois acontecimento da natureza mascarada se fa-
das homenagens aos dez grandes orixás e zia acompanhar de um ímpeto aterrorizador,
aos Ibêji,2 perguntei a Mário o que ia acon- de gatos matadores de pombos e canários...
tecer com eles. Ele respondeu “agora eu vou 4 Tata-Caveira e Pomba-Gira pertencem à classe
dos exus (as divindades afro-brasileiras, espe-
matar para a Jurema”. E então assisti a um cialmente Exu, sendo tratadas ora como indiví-
dos espetáculos mais cruéis de toda a minha duos, ora como uma categoria de indivíduos). A
vida.3 Mário matou duas galinhas, despejan- associação dessas entidades com os demônios
da crença católica transparece na iconografia
2 A tradição recifense reconhecia dez deuses prin- e no vocabulário, inclusive no hinário, onde se
cipais: Exu, Ogum, Odé, Obaluaê, Nanan, Ian- alude a Pomba-Gira como “a mulher de Lucifer”
san, Xangô e Orixalá (ou Oxalá). Existia ainda a (sic) e ao “paraíso infernal” onde habita. Mas
categoria que tenho denominado (Motta 1984b) a fusão sincrética antes assimila os diabos aos
dos “santos especializados”, responsáveis menos exus que o contrário, pois estes não dão mostra
pela “cabeça” (alma ou identidade) das pessoas, da perversidade essencial postulada pelo dogma
como é o caso dos dez grandes orixás, do que por cristão, fazendo o mal só na medida em que o
certas situações, acontecimentos ou coisas. As- bem de uma pessoa pode implicar o mal de ou-
sim, Orumilá-Ifá é o responsável supremo pelo tra. Daí inclusive as guerras mágicas, típicas dos
jogo divinatório, Ossanhe é o senhor das folhas terreiros, nas quais se supõe que, de acordo com
e das ervas, enquanto Bêji (ou Ibêji) é o protetor as ofertas recebidas, as entidades possam trocar
da infância. Na prática, não deixa de haver uma de partido da maneira mais inesperada. Já tratei
certa confusão entre donos de cabeças e donos do caráter bifronte das entidades afro-brasilei-
de situações, sobretudo no caso de Exu. ras – e não só dos exus – em alguns de meus
3 Episódio que se sobrepõe a lembranças infantis trabalhos anteriores (MOTTA, 1979).
com os símbolos tradicionais das potências cido como Plutão. Não é este aliás o único,
infernais, tais como os concebe a tradição nem sequer o mais notável, ponto de contac-
ocidental. No “corpus” da bibliografia afro to entre a religião afro-brasileira e o paga-
-brasileira, parecem-me ter sido Georges nismo greco-romano.
Lapassade e Marco Aurélio Luz que, num Mário, Badia, Edu, Raminho são ou fo-
pequeno livro, menos divulgado, com certe- ram alguns dos grandes da Seita em Per-
za, do que mereceria e nunca reeditado, O nambuco. Suas oferendas situavam-se aci-
Segredo da Macumba (LAPASSADE; LUZ, ma da média, tanto pelo número de vítimas,
1972), melhor captaram e descreveram o como pelo esplendor litúrgico com que eram
ambiente a dinâmica do culto de Exu e “suas imoladas. Porém a tese essencial deste ca-
mulheres Pomba-Gira e Maria Padilha” (ibi- pítulo não diz respeito nem à grandiosidade
dem, p. XVI). Foi efetivamente o “ritual ver- do sacrificador, nem ao terror e à admiração
melho e negro”, a “festa negra” ou mesmo a do observador, mas antes a que o sacrifício é
“missa negra”, que fui reencontrar em casa o rito fundamental do Xangô, constituindo,
de Raminho (situada no jardim Brasil, mu- ainda que em proporções bem mais modes-
nicípio de Olinda), em agosto de 1991. tas que as dos exemplos até agora apresen-
Um colega francês que me acompanhou tados, uma prática corriqueira e quotidiana.
nestas visitas, espontaneamente associou o Não há Xangô sem sacrifício de
sacrifício dos caprinos, na segunda-feira, às sangue. Foi isso, justamente, o que com-
“missas negras” da tradição francesa, rela- preendeu muito bem Amara, quando quis,
cionadas inclusive com o “Affaire des Poi- não apenas iniciar-se como filha-de-san-
sons” (“O Escândalo dos Venenos”), no tem- to (o que, já por si, exige todo o sangue ao
po de Luís XIV (1680, aproximadamente), alcance da bolsa do neófito), mas, ato con-
no qual estiveram implicados membros dos tínuo, abrir o seu próprio terreiro.7 Depois
mais altos círculos da Corte. Eu, entretanto, de muito pelejar, Amara, residente no Alto
não sigo Lapassade & Luz em sua talvez ex- do Bonfim, município de Olinda8, conseguiu
cessiva dependência teórica com relação a atingir seus objetivos. Mas, sendo uma mu-
Marx, Nietzsche e Wilhelm Reich. À guisa de lher pobre, vivendo com dificuldade do exer-
mera especulação, poder-se-ia sugerir certa cício da magia do Catimbó9 e de seu ofício
aproximação da macumba e da quimbanda, de chapeleira, sem vínculo formal de empre-
ultrapassando o satanismo da tradição eu- go, essa filha/mãe-de-santo não pôde, em
ropeia (bem conhecido no Brasil, inclusive 7 O término da iniciação confere ao filho-de-san-
através do sempre reeditado e bem vendido to a faculdade de abrir o seu terreiro e mesmo a
de iniciar seus próprios filhos rituais (neste caso
Livro de São Cipriano), com o culto às di-
geralmente sob a supervisão de seu próprio pai-
vindades infernais no mundo greco-roma- de-santo), e isto apesar da ficção teológica se-
no. Ou talvez com os próprios mistérios de gundo a qual sete anos deveriam decorrer entre
a iniciação e a plena maturidade religiosa.
Elêusis, sobre os quais existe uma vastíssi- 8 Mas a área adjacente ao vale do Beberibe, mes-
ma literatura. Walter Burkert (1983) repre- mo quando localizada no município de Olinda,
senta eminente exemplo dessa bibliografia como é o caso do Alto do Bonfim, pouca rela-
ção possui com o núcleo histórico da cidade de
e fornece muitas outras indicações. Sabe- Olinda.
se do papel capital aí desempenhado pelos 9 Trato com mais detalhadamente do Catimbó do
Recife, muitas vezes também denominado Jure-
sacrifícios e pelos mitos de Koré-Perséfone, ma, em vários de meus trabalhos, dentre os qual
esposa de Hades (Inferno), também conhe- destaco Motta 2005.
eu ficasse sabendo, de uma vez por todas, sobre os assentamentos. Toadas de Exu,
qual era o dono de minha cabeça e o que eu das quais algumas são também de toque,
devia fazer para agradá-lo. Babá então jogou outras parecem exclusivas de matança. O
frango morto é levado para a cozinha.
e resultou que meu santo era Xangô, ao qual
2. Oxalá. Matança de um frango branco.
eu devia oferecer o sacrifício de um carneiro
Toada de cortar pescoço de bicho: edjé
logo que me fosse possível. Mas por enquan- balé cararô. Outras toadas também
to, Babá me advertiu, havia qualquer coisa usadas nos toques, como Orixalá é um
de ainda mais urgente. Eu devia propiciar funfunhê. O uso de toadas comuns à
Exu (por quem tudo deve sempre começar) matança e ao toque (sessão pública de
e dar uma comida a Oxum, que sem ser pro- danças) põe as duas ocasiões em relação
metafórica. (A oferenda a Oxalá é um
priamente minha santa, havia me cumpri-
complemento habitual dos sacrifícios a
mentado insistentemente durante o jogo, a Xangô.)
que eu não poderia deixar de retribuir sem 3. Bêji. Matança de dois frangos. (Esse ofe-
incorrer em desrespeito e atrair castigos. recimento foi, a rigor, um ato pessoal de
Cumpri essas exigências preliminares nos devoção por parte do pai-de-santo.)
dias seguintes e deixei o tempo passar. 4. Xangô. Oferecimento de um carneiro,
A julgar pelo silêncio de minhas notas, aparentemente em ótimas condições, e de
decorreram meses até que eu tornasse a dois galos. Mas antes, deposição de peda-
aparecer em casa de Babá e de sua consor- ços de carne de boi no assentamento.
te Diva. Mas já em outubro do mesmo ano 5. Final. Prosto-me diante de Xangô. Acen-
do uma vela para cada santo. Nos assen-
(1976), encontro um relato detalhado no
tamentos, até que as carnes se cozinhem,
meu caderno, do qual passo a transcrever os somente penas e a cabeça do carneiro.13
trechos principais:
6. Oficiantes. Babá, naturalmente, Zé Lins,
“Visitei Babá e Diva a semana passada, a e mais um novato que recentemente as-
razão dessa visita sendo certas informações sentou Ogum, Hermógenes Malta. As da-
sobre ritos de caboclo, de que preciso para mas acolitaram, cantaram, cozinharam,
redigir um artigo. O casal – Diva sobretudo etc.. Meu investimento total foi de 866
– foi logo me lembrando que meu santo deve cruzeiros. Babá me dá a entender que re-
estar com fome, talvez mesmo irritado, e daí teve 140 como gratificação, mas se deve
os recentes furtos de que tenho sido vítima. acrescentar que as carnes, salvo os axés,14
Babá jogou. Dito e feito, tenho um inimigo,
que é um colega de trabalho, e que anda fa- 13 Este ato de aberta idolatria ainda hoje causa
escrúpulos à minha consciência judeo-cristã e,
zendo trabalhos contra mim. Prescrição:
com certeza, influenciou minha transferência do
dar um bicho de quatro pés a Xangô, com o Xangô para as sutilezas das teorias weberianas e
acompanhamento habitual. Essa obrigação assemelhadas.
ficou marcada para o sábado à noite e eis 14 Existe, no Xangô uma oposição fundamental
como transcorreu: entre o axé, representado pelas partes dos ani-
mais sacrificados que normalmente só os deu-
1. Exu. Um frango. Consulta com os oito ses comem, sendo a princípio depositadas nos
búzios da qual resulta que devo dar um seus assentamentos e depois “despachadas” em
bode a Exu logo que possa. Limpeza. algum lugar apropriado, seco ou molhado, e o
Toada sararé... bocunan... A limpe- eran, representado, por assim dizer, pelas par-
za consiste essencialmente em esfregar tes profanas dos animais. De longe o sangue,
que representa a vida, é o principal entre os
o frango por cima de todo o corpo das axés. Há analogias, quanto a esta oposição, en-
pessoas. Matança do frango. Toada edjé tre o Xangô e o antigo ritual hebraico, tal como
balé cararô. Ó sangue derramado sobre codificado em diversas passagens do Pentateuco
a terra, dá-nos paz! Deposição do sangue e dos seus comentários. Até hoje nenhum Judeu,
rio que em pouco tempo fez com que uma tos sânscritos. E acrescentam: “Notemos a
de suas pernas tivesse de ser amputada, ela função desta palavra, particípio presente do
compreendeu, depois que seu pai-de-san- verbo yaj (sacrificar). O sacrificante, para os
to jogou os búzios, que aquilo, como se ex- autores hindus, é aquele que espera o retor-
pressou, era “couro” mandado por Xangô. E no à sua própria pessoa dos efeitos de suas
isto pelo seguinte. Creuza, que era filha de ações” (ibidem). (Sobre o yajamâna ver
Oxum, sempre tinha sido sempre muito ze- também Le Sacrifice dans I’Inde Ancienne
losa (“desde que fiz meu santo”, como fazia (BIARDEAU; MALAMOUD, 1976) e, sobre-
questão de salientar), com relação à dona de tudo com referência a transformações mais
sua cabeça. Mas tinha se esquecido de Xan- recentes do conceito, a seção sobre o “siste-
gô, seu segundo santo, que é, como se sabe, ma jajmâni” em Dumont (1967, p. 124- 138).
muito exigente. Daí a doença. E daí a neces- Já o sacrificador (“sacrificateur”), por
sidade, como Creuza também explicou, de outro lado, é “um intermediário... um guia...
uma grande obrigação,18 compreendendo sacerdote... [tendo] de um lado o mandatário
um total de nove bichos de quatro pés e 40 do sacrifício, de cujo status partilha e cujas
aves, além do “ebori” (um sacrifício ofere- faltas assume; por outro lado está marcado
cido especificamente à cabeça da pessoa, pela divindade... é seu ministro, sua própria
ou ao duplo invisível dessa cabeça) e de dez encarnação ou, no mínimo, o depositário de
dias de resguardo no terreiro. As despesas – seu poder. É o agente visível da consagra-
inclusive os honorários dos oficiantes e dos ção, situando-se, em suma, no limite entre o
acólitos – ficaram naturalmente por conta mundo sagrado e o mundo profano e repre-
de Creuza, pois é o sacrificante, e não o sa- sentando ambos ao mesmo tempo, que nele
crificador, que lucra essencialmente com o se encontram” (ibidem, p. 52-53). Com toda a
sacrifício. probabilidade, Hubert & Mauss, embora não
a citem, direta ou indiretamente conheciam
Pequena Digressão Teórica a passagem de Tomás de Aquino, onde este,
Adoto, no decorrer deste trabalho, a distin- retomando Agostinho, afirma que “quatro
ção por assim dizer consagrada por Hubert coisas devem considerar-se em todo sacrifí-
& Mauss em seu Essai sur la Nature et la cio: a quem se oferece, por quem se oferece,
Fonction du Sacrifice (HUBERT & MAUSS, o que [ou quem] se oferece e em proveito de
1898), entre, por um lado o sacrificante quem se oferece” (Suma Teológica, 3a par-
(“sacrifiant”), ou seja, “o fiel que fornece a te, questão 48, artigo 30). No mesmo artigo,
vítima... [e] que recebe assim os benefícios Santo Tomás, antecipando Hubert & Mauss,
do sacrifício ou pelo menos alguns de seus mas já em sequência a uma longa tradição
efeitos. Essa pessoa pode ser um indivíduo de comentadores, assinala que “quem quer
ou uma coletividade” (op. cit., p. 37). Hubert que oferece um sacrifício faz alguma coisa
& Mauss aproximam imediatamente o con- ficar sagrada, como demonstra a própria
ceito de “sacrifiant” do yaja-mâna dos tex- palavra sacrifício”, o que não se encontra
tão distante da definição huberto-maussia-
18 Não imaginemos que Creuza deixou de também
recorrer à medicina convencional, para tratar-se na do “sacrifício como um ato religioso que,
daquela doença, cujo nome desconhecia – em- pela consagração de uma vítima, modifica o
bora afirmasse taxativamente que não era dia-
bete – e para a qual deveria tomar determinado estado da pessoa moral que o realiza ou de
remédio, todos os dias, pelo resto da vida. certos objetos de seu interesse” (ibidem, p.
41). Mas essa definição não deixa de suscitar poucos terreiros os igualassem na quantida-
alguns problemas. Inclusive pareceria que a de de vítimas, no número de oficiantes e em
coisa a definir (o sacrifício) já se encontra, todas as pompas do ritual –, como também
com ligeira transformação terminológica, na acontece que as notas que em seguida repro-
definição (“consagração de uma vítima”), o duzo, tomadas no decorrer do próprio sacri-
que implicaria numa petição de princípio... fício (e aqui transcritas só com um mínimo
Quase como uma espécie de apêndice, a de explicitações), constituem, estou persua-
seguinte descrição de uma grande obrigação, dido, um dos documentos mais importantes
em casa da Badia, quer transmitir alguma do arquivo etnográfico que consegui reunir
coisa da intensidade desse rito fundamental. sobre a religião afro-pernambucana.
“Cheiro de temperos na cozinha. Água ferven-
Festa de Outubro do. Comentários sobre “obrigações”. Viagens
Começando em 1974, tive por regra geral, de Raminho. Vai a Rondônia fazer cabeça de
filho. Conversa em “xangozês”.19 Amassi.20
sempre que me encontrasse no Recife, ir as-
Filho de Babá, que está atrasado, “canta” fo-
sistir à grande festa de Badia no mês de outu- lhas. Ninguém presta atenção. Sacrifício no
bro. Era a festa do inhame, cujo primeiro quarto de balé.21 Limpeza dos assistentes com
ato consistia no bori, (ou ebori), a “comida o primeiro frango. Um bode, quatro frangos.
da cabeça”, que Badia reiterava anualmente Presencio tudo (ordem de Raminho). Volta ao
– o que não constitui a regra geral entre os pegi.22 Exu xoxô. Edjé balé cararô. Um
bode, quatro frangos. Tiriri lonan! Ó meu
membros do Xangô –, por causa – eu mais
senhor, poderoso no meio da estrada! Todos
do que presumo – da maneira muito intensa muito à vontade. Sal no sangue. Chegam Babá
com que se dedicava às artes mágicas, inclu- e Diva. “Nego, você sabe (ela esnoba), teve ou-
sive à frente da “Sociedade de São Bartolo- tra obrigação esta manhã: vinte e oito de pe-
meu”. Esta é apenas uma das sociedades, ou nas e dois de quatro pés.”
“devoções”, ostensivamente dedicadas ao
19 Xangozês é português (dialeto recifense),
culto desse santo – cujo dia coincide tradi- cheio de expressões técnicas do culto e palavras
cionalmente com a festa de Exu – situadas em nagô (iorubá).
no Pátio do Terço (ou em sua vizinhança). 20 Amassi, neste caso, significa a extração do
sumo de certas folhas e ervas para lavagem ri-
Daí, como já se mencionou, é tradição que tual.
se originou o Xangô de Pernambuco, que só 21 O quarto de “balé” é destinado ao culto dos
antepassados rituais, enquanto persiste a sua
por volta de 1910 – conforme a lembrança lembrança. Nem as mulheres nem qualquer de
que eu próprio ainda fui capaz de recolher pessoa também do sexo masculino que não te-
em 1974 – foi instalar-se no vale do médio nha sido formalmente iniciada na hierarquia do
Xangô pode ter acesso a esse recinto. Eu uma
Beberibe, que, nos anos 1970, representava vez burlei essa proibição. Sendo eu um rapaz de
sua grande reserva étnica e cultural, corres- boa posição social, os devotos preferiram achar
pondendo aproximadamente à região atra- graça no meu atrevimento. Mas quando, pouco
tempo depois, eu apareci com uma patologia of-
vessada pela Avenida Beberibe, com alguns talmológica potencialmente grave, meu proble-
prolongamentos nos municípios de Olinda e ma foi interpretado como um castigo de origem
sobrenatural.
de Paulista. 22 O pegi pode ser compreendido como a capela
Tenho em meus arquivos muitos relatos do terreiro. Nele se guardam não só as imagens
detalhados de matanças rituais. Mas não (de tipo católico romano) de cada um dos san-
tos, mas também as pedras e os metais em que
só as obrigações de Badia representavam o se concebe que estejam realmente e sobre os
“tipo ideal” ou a norma do Xangô – embora quais se derrama o sangue dos sacrifícios.
“Mau cheiro. Até agora dois bodes e oito nas, um peixe. Ainda Xangô. Mais duas aves
aves. São 10 e 30. Matança começou há e mais uma ave. Badia pede saúde, felicida-
20 minutos. Bode para Ogum. Edjé balé. de, tudo de bom. Toadas de Xangô (como
Ogum pá, Ogum pá, ô! Ogum mata, ah, num toque). Títulos de glória. Raminho me
ele mata! Dois frangos e mais dois frangos. oferece pedaços de carne. Recuso (estou fa-
Mulher com cara de portuguesa. Almoço em zendo regime para colesterol). Mais uma
preparo. Muitos temperos. Bode para Odé, guiné. Poça de sangue vermelho-claro no as-
Bola de gordura atirada na parede. Dois sentamento do santo.”
frangos. Gestos de dança. (Os gestos cheios
“Babá canta folhas. A mesma toada, uma vez
de graça do jovem caçador.). Bode para Oba-
para cada orixá. Ogum tori bomim... Odé
luaê. Duas aves. Mais cochichos e risinhos,
tori bomim... Xangô tori bomim... Em
dentro e fora do pegi. Atotô! Tememos tua
minha cabeça, meu pai.”
força. Excitação de repente aumenta. Cheiro
de penas fervendo.” “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.”
“Oxum. Duas cabras. Filhas d’Oxum se pros- “Que foi que houve, Raminho?”, Badia per-
ternam. Toada eran, eran, eran orixá, gunta. – “Tem muito azeite no chão. O sol
carne, carne, carne para a deusa. Cheiro ati- está muito quente. A gente estamos cansa-
vo de aguardente. Sangue jorra e escorre. dos. Vamos almoçar e descansar. Mais tarde
Quatro aves. Mais gordura na parede. As for- a gente mata pra Oxalá. Ei, professor, o seu
ças vitais se soltaram. Cheiro insuportável de regime também proíbe cerveja? ”
sangue. Açougueiros (aprendizes de pais-de-
santo) trabalhando no quintal. Raio de sol
pela telha de vidro. Meio-dia astronômico.
Referências
Povo começa a comer.” BIARDEAU, Madeleine; CHARLES, Malamoud.
Le Sacrifice dans l`Inde Ancienne. Paris:
“Iemanjá. Vasconcelos – homem branco PUF, 1978.
– cliente de Badia, patrono do sacrifício de
hoje? Edjé Balé. Carneiro. Duas galinhas. BURKERT, Walter. Homo Necans: The An-
Um peixe (já morto). Mais gordura na pare- thropology of Ancient Greek Sacrificial
Ritual and Myth. Berkeley: University of Cali-
de. Fogos de artifício. Um pato. Uma guiné.
fornia Press, 1983.
Pombo degolado em cima da cabeça de uma
noviça.23 Pato em contacto com sua cabe- DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus. Paris:
ça. Outra galinha por cima dela. Noviça em Gallimard, 1967.
transe. Sai do pegi toda coberta de sangue,
DURKHEIM, Emile. Les Formes Élémentai-
que nem tão cedo deverá ser lavado.”
res de la Vie Religieuse. Paris: PUF (Quadri-
“Xangô. Libações em cima da pedra. Um car- ge), 1960. (Or. 1912.)
neiro, enfeitado de vermelho e branco. Car- HARRIS, Marvin. Vacas, Porcos, Guerras e
neiro degolado com todo o respeito devido Bruxas: Os Enigmas da Cultura. Rio de Ja-
ao deus. Outro carneiro. Janda exclama “é neiro: Civilização Brasileira, 1978.
muito!”. Badia diz que devo entrar. “Agora
você entre e adore: é seu santo!”Recuso. Eu LAPASSADE, George; LUZ, Marco Aurélio. O
Segredo da Macumba. Rio de Janeiro: Paz e
sou só pesquisador... (Vão pensar que estou
Terra, 1972.
de corpo sujo.) 24 Foguetes. Mais gordura na
parede. Até agora 11 de quatro pés, 26 de pe- MAUSS, Marcel ; HUBERT, Henri. “Essai sur le
23 Badia sempre aproveitava a festa de outubro Sacrifice”. L’Année Sociologique. deuxième
para a iniciação de um ou dois filhos ou filhas. année, 1898, p. 24-138.
24 Talvez por causa de recente emissão de sêmen.
Durante toda a cerimônia eu fiquei sentado jun-
MOTTA, Roberto. Protesto e Conformismo no
to da soleira, sem jamais entrar no pegi propria- Xangô do Recife. Ciência & Trópico (Recife),
mente dito. v. 7 (2), 1979, p. 255 – 262, 1979.
_______________ Cultos Populares e Fon- de Poder. Campinas; São Paulo: Mercado das
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