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Ex Tenebrae
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Gustavo Martins
Ex Tenebrae
Ellaine Portman, minha filha e meu maior tesouro. Era jovem e ainda
mais bela do que jamais fora a falecida mãe, linda mulher, e tinha pela frente
um futuro por vezes mais brilhante do que o meu. Sempre era ela a me
ajudar em minhas pesquisas e experimentos e sabia que naquele momento
era por essa razão que ela vinha me falar.
—Como quiser.
Assim que ela se retirou, fui até minha escrivaninha, donde retirei os
registros que guardava numa gaveta secreta. Naqueles papéis estavam
gravados os resultados de oito anos de pesquisas e descobertas sobre as
criaturas que hoje convimos em chamar de “Forasteiros”. Desconhecemos
sua origem e sua essência como seres, pois todas as informações que deles
temos são provenientes de relatos agonizantes daqueles que por tais seres
foram vitimados. Mesmo tais depoimentos, entretanto, em muito divergem
entre si, dando pouco ou nenhum dado concreto sobre esses misteriosos
entes.
—Há muito em jogos nessa noite. Faz ideia do que poderá ocorrer se
cometermos mesmo um ínfimo deslize?
—Se fez tudo como disse que deveria fazer não há razões para
preocupação. – Féris aproximou seus lábios de minha orelha, dando uma
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risada de uma Deusa que zomba dum mortal – Tudo dará certo, professor. –
sussurrou ela.
Cada fibra de meu corpo foi atiçada por aquele gesto sensual. O esforço
que fiz para não agarrá-la naquele instante foi maior do que me imaginava
capaz. Afastei-me dela, tentando diminuir a tensão por ela exercida sobre
mim.
Me virei para ela, estupefato, tentando articular uma frase, mas emitindo
apenas sons desconexos. Joguei-me até meu armário, retirando dele a garrafa
de bebida a qual tantas vezes recorrera nos anos seguintes à perda de minha
mulher. Atirei parte do conteúdo para dentro de minha garganta, ávido pelo
frescor embriagado do álcool. Não muito demorou até que começasse a
sentir os efeitos do licor sobre mim e rapidamente me encontrei jogado no
sofá, imobilizado pelo choque do que ouvira e pela ação estonteante da
bebida. Por longos segundos permaneci parado, tonto, tentando recompor-
me para então continuar aquele diálogo e mais ainda para o que viria em
breve. Quando finalmente me recobrei, ergui-me e tampei a garrafa,
atirando-a num dos bolsos internos do meu casaco.
—E como pode então ter conhecido Marksman e ainda viver? Por acaso é
uma Prisca pura, uma Vampira ou uma Ninfa. Uma Demônio talvez. Não,
nenhum desses é uma opção possível. – parei por um segundo, imaginando
todas as possibilidades plausíveis, mas sem chegar a nenhuma conclusão – O
que é você?
—Digamos apenas que aqueles como eu podem viver muito mais do que
qualquer outro ser pode sequer sonhar.
Antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, Féris não mais se
encontrava na sala. Senti minha cabeça latejar e joguei minha cabeça para
trás, tentando digerir todas as informações que me haviam sido apresentadas.
Aquela noite estava por demais agitada para meus padrões e isso forçava
meu corpo envelhecido além do que ele podia suportar. Suspirei, nervoso, e
mais uma vez levei o bocal da garrafa aos meus lábios, despejando outra
considerável quantia de álcool em meu sangue. Agitei o pequeno recipiente
metálico, apenas para me assegurar de que havia o bastante para a possível
comemoração que ocorreria após o sucesso do experimento que me
aguardava. Olhei para aquele consolo líquido dado a mim pela ocasião de
minha promoção a supervisor de pesquisas, fazendo aflorar em meu peito
antigas mágoas que achava terem ficado para trás. Mas inscrições em alto
relevo da parte inferior do objeto li o cumprimento de minha falecida esposa
e nas gravuras se faziam presentes todos os rostos que hoje não mais me
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diziam respeito. Quão duro é o tempo para aqueles que o presenciam por
longos períodos. Após anos de decisões inexoráveis em prol da evolução da
Magia no mundo, começava a me questionar se tudo aquilo valia mesmo a
pena.
Uma ardorosa salva de palmas seguiu o fim de minha fala. Procurei pelo
rosto de minha Ellaine e a encontrei a me apoiar com seu sorriso gentil. Sua
presença naquele ambiente era a única coisa que me impedia de sair de lá
correndo. Olhei para minha mesa e na superfície de vidro do retrato da
minha esposa e vi Féris a sorrir, como se me dizendo para seguir em frente.
Procurei pela garrafa em meu bolso e apenas com grande força de vontade
pude me impedir de beber o que restava nela. Ergui a cabeça, tentando
parecer confiante, e juntando as forças que me restavam dei o comando para
que se iniciasse o experimento.
—Falhamos. – murmurei.
Senti sua respiração cálida sobre minha pele e voltei-me para trás,
achando-a do mesmo modo que da ultima vez.
—Fiz tudo como disse e ainda assim o experimento foi um fracasso! Por
quê?
—Você diz que foi um fracasso, entretanto eu não faria o mesmo. – disse
ela – Vocês disseram que queriam trazer um Forasteiro a esse mundo, eu
dei-lhes condições para tal e vocês fizeram exatamente o que eu disse. Não
houve falhas, vocês apenas não puderam detectar a chegada do seu
“convidado”.
—Ele ainda está lá, esperando por vocês. Ou quem sabe já não está
dentro de um de vocês. Forasteiros são muito imprevisíveis, professor.
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—Espere! Você não está dizendo que aquela coisa que vi… – murmurei
nervoso.
—Você não conseguirá fazer nada. – disse ela – Forasteiros não são como
os seres normais, limitados pela matéria e pelo senso comum. Mesmo que
cause ferimentos infinitos nele, o corpo continuará a se regenerar. Destruir
completamente a forma física ou impor a eles as limitações da matéria são as
únicas maneiras de se aniquilar um deles.
—Quando se está viva por quase mil anos acaba-se conhecendo todo tipo
de coisa, Professor.
Não havia escolha. Cada minuto que perdia com questionamentos dava à
aberração maior vantagem diante de mim. Ignorando o aviso dado por Féris,
peguei meu automóvel e dirigi mais imprudentemente do que jamais fizera
em toda minha vida. Nunca antes me queixara da velocidade de um veículo,
ainda mais de um que não exigia a força de animais para se locomover, mas
naquela hora desejei que pudesse pegar um trem.
E tudo aquilo era minha culpa. Cada grito de dor, cada membro decepado
e órgão despedaçado era minha responsabilidade. O peso de tamanha culpa
me fez perder o chão. Pensei em me atirar de uma janela, pondo fim a tanto
tormento, porém a ideia de causar qualquer sofrimento a Ellaine era amarga
demais. Isso e apenas isso me impediu de pôr fim à minha vida naquele
instante.
Eis que fui tomado por um terror maior que qualquer outro. Lembrara-me
que muitas vezes era eu obrigado a mandar que minha filha se retirasse para
sua casa, pois era costume seu permanecer até horas mais tarde, em especial
nos dias em que experimentos eram feitos. Tremi ao pensar que ela ainda
poderia estar naquele lugar e por muito pouco não caí no chão, vitimado por
um infarto, ao imaginar que poderia ela também ter sido vítima do
Forasteiro. Corri até sua sala, atormentado a cada segundo pela visão dos
corpos mutilados. Meu pavor apenas cresceu quando, chegando ao corredor
onde ela trabalhava, vi as janelas quebradas, machadas de sangue, e os
corpos de alguns de meus preciosos colegas esmagados ao ponto de apenas
vagamente lembrarem aqueles de um ser humano. Olhando pelo vidro
destroçado vi mais corpos no térreo, atirados do sétimo andar do para uma
morte violenta e terrível. Mas o maior de todos os golpes veio a seguir,
quando já na sala de Ellaine, encontrei a agenda que ela sempre carregava
junto a si. Estava rasgado e manchado de sangue, estado em qual minha filha
jamais permitiria que alguém o deixasse, ao menos não enquanto estivesse
viva para defendê-lo.
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Erguendo o rosto, Ellaine olhou-me com uma expressão sofrida. Sua face
manchada de sangue transmitia o sentimento pelo qual havia passado e em
seus olhos vi um doloroso desespero. Tentei me aproximar, mas um odor de
podridão fez arder minhas narinas, impedindo-me de dar um passo sequer
adiante.
—Por favor pai… não quero fazer tudo aquilo outra vez…
Termino hoje, dia em que foi a mim noticiado meu estado terminal, este
curto relato dos eventos ocorridos no centésimo quarto dia do primeiro
semestre do ano de 1894.
F. R. Portman