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Ex Tenebrae

Ex Tenebrae
Gustavo Martins
Ex Tenebrae

As chamas da lareira crepitavam soturnas enquanto eu olhava para o


mundo escuro separado de mim por uma janela. Um objeto simples e frágil,
uma porção de um material que qualquer criatura da noite poderia quebrar, é
tudo que me separa das trevas onipresentes da noite. Tão distraído estava que
sequer a vi chegar.

Ellaine Portman, minha filha e meu maior tesouro. Era jovem e ainda
mais bela do que jamais fora a falecida mãe, linda mulher, e tinha pela frente
um futuro por vezes mais brilhante do que o meu. Sempre era ela a me
ajudar em minhas pesquisas e experimentos e sabia que naquele momento
era por essa razão que ela vinha me falar.

—Com licença. – pediu ela, entrando logo em seguida – Quase todos os


preparativos estão prontos, pai.

—Vá à frente e diga que já estou a caminho.

—Como quiser.

Ela fez então um educado cumprimento e virou-se de costas para mim.


Até então não havia notado quão longos ela deixara seus cabelos ficarem.
Mesmo presas num rabo de cavalo, as madeixas negras caíam-lhe às costas.

—Sente-se bem? – ela questionou, virando-se de leve em minha direção –


Sei como deve ser difícil para o senhor ter de suportar toda a pressão por
conta desse experimento.

—Não se preocupe. – retruquei – Já passei por muitas situações similares.

Ellaine sorriu amavelmente, de modo saudosamente similar àquele de


minha esposa.

—Tome cuidado. – disse ela, retirando-se.


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Assim que ela se retirou, fui até minha escrivaninha, donde retirei os
registros que guardava numa gaveta secreta. Naqueles papéis estavam
gravados os resultados de oito anos de pesquisas e descobertas sobre as
criaturas que hoje convimos em chamar de “Forasteiros”. Desconhecemos
sua origem e sua essência como seres, pois todas as informações que deles
temos são provenientes de relatos agonizantes daqueles que por tais seres
foram vitimados. Mesmo tais depoimentos, entretanto, em muito divergem
entre si, dando pouco ou nenhum dado concreto sobre esses misteriosos
entes.

Guardei os documentos no bolso do meu paletó e tranquei novamente a


gaveta. Eis que senti um toque quente no ombro e virando-me para trás vi,
olhando-me sedutora, a mulher responsável por todos os avanços que nossa
pesquisa obteve nos últimos meses. Féris Dóeite era o nome com o qual se
apresentara na ocasião de nosso primeiro encontro, mas dizia sempre preferir
ser referida apenas por Féris. Seus vibrantes cabelos castanhos ondulados
caíam por sobre os seios, cobrindo uma parte significativa do gracioso que
trajava. Era uma criatura de compleição belíssima, capaz de causar a inveja
no coração de Deusas e Ninfas, e conhecimento que parecia transcender
aqueles que um humano poderia conseguir em toda a sua vida. Muitos eram
os que diziam ser ela uma Lunagên.

—Está nervoso, professor? – ela questionou com sua voz atraente.

—Há muito em jogos nessa noite. Faz ideia do que poderá ocorrer se
cometermos mesmo um ínfimo deslize?

Ela sentou-se sobre minha escrivaninha, cruzando as pernas e deixando a


mostra sua pele perfeita.

—Se fez tudo como disse que deveria fazer não há razões para
preocupação. – Féris aproximou seus lábios de minha orelha, dando uma
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risada de uma Deusa que zomba dum mortal – Tudo dará certo, professor. –
sussurrou ela.

Cada fibra de meu corpo foi atiçada por aquele gesto sensual. O esforço
que fiz para não agarrá-la naquele instante foi maior do que me imaginava
capaz. Afastei-me dela, tentando diminuir a tensão por ela exercida sobre
mim.

—Espero que tenha razão. – disse, tentando recompor-me – Tudo isso me


parece por demais surreal.

—O mesmo foi dito a mim por Marksman quando lhe apresentei a


Kadingir.

Me virei para ela, estupefato, tentando articular uma frase, mas emitindo
apenas sons desconexos. Joguei-me até meu armário, retirando dele a garrafa
de bebida a qual tantas vezes recorrera nos anos seguintes à perda de minha
mulher. Atirei parte do conteúdo para dentro de minha garganta, ávido pelo
frescor embriagado do álcool. Não muito demorou até que começasse a
sentir os efeitos do licor sobre mim e rapidamente me encontrei jogado no
sofá, imobilizado pelo choque do que ouvira e pela ação estonteante da
bebida. Por longos segundos permaneci parado, tonto, tentando recompor-
me para então continuar aquele diálogo e mais ainda para o que viria em
breve. Quando finalmente me recobrei, ergui-me e tampei a garrafa,
atirando-a num dos bolsos internos do meu casaco.

—Marksman? – questionei, ainda muito surpreso, mas devidamente


sóbrio – As histórias sobre você ser uma Lunagên são verdade, afinal?

Féris sorriu enigmática, passando a mão pelos cabelos num movimento


que beirava a arrogância.

—Na verdade não são. – disse ela.


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—E como pode então ter conhecido Marksman e ainda viver? Por acaso é
uma Prisca pura, uma Vampira ou uma Ninfa. Uma Demônio talvez. Não,
nenhum desses é uma opção possível. – parei por um segundo, imaginando
todas as possibilidades plausíveis, mas sem chegar a nenhuma conclusão – O
que é você?

—Digamos apenas que aqueles como eu podem viver muito mais do que
qualquer outro ser pode sequer sonhar.

—Não respondeu minha pergunta! – exclamei, começando a me


preocupar – O que é você?

—Apenas uma observadora. Alguém que há muito assiste ao desenrolar


da história desse mundo e que, as vezes, resolver ajudar alguns indivíduos.
Pode-se dizer que eu sou uma Deusa do Conhecimento. – Féris olhou em
meus olhos, rindo num tom baixo – Agora vá, professor. Sua pesquisa o
espera.

Antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, Féris não mais se
encontrava na sala. Senti minha cabeça latejar e joguei minha cabeça para
trás, tentando digerir todas as informações que me haviam sido apresentadas.
Aquela noite estava por demais agitada para meus padrões e isso forçava
meu corpo envelhecido além do que ele podia suportar. Suspirei, nervoso, e
mais uma vez levei o bocal da garrafa aos meus lábios, despejando outra
considerável quantia de álcool em meu sangue. Agitei o pequeno recipiente
metálico, apenas para me assegurar de que havia o bastante para a possível
comemoração que ocorreria após o sucesso do experimento que me
aguardava. Olhei para aquele consolo líquido dado a mim pela ocasião de
minha promoção a supervisor de pesquisas, fazendo aflorar em meu peito
antigas mágoas que achava terem ficado para trás. Mas inscrições em alto
relevo da parte inferior do objeto li o cumprimento de minha falecida esposa
e nas gravuras se faziam presentes todos os rostos que hoje não mais me
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diziam respeito. Quão duro é o tempo para aqueles que o presenciam por
longos períodos. Após anos de decisões inexoráveis em prol da evolução da
Magia no mundo, começava a me questionar se tudo aquilo valia mesmo a
pena.

Já não havia, porém, tempo para arrependimentos. Muitos eram os


pesquisadores que me aguardavam para perpetrar o experimento de suas
vidas e recuar apenas faria tudo pelo que passei perder por completo o
significado.

Minutos depois adentrava a sala onde minha filha aguardava juntamente


aos diversos outros pesquisadores que conosco estiveram nos oito anos que
precederam a chegada de Féris. Ao passo em que me dirigia ao meu lugar,
todos se erguiam respeitosos à minha posição. Durante esse curto trajeto,
mantive os olhos focados no chão onde estavam escritas as fórmulas
resultantes de tanto tempo de trabalho. Levariam anos ainda até que aquilo
pudesse vir a ser transformado em encantamentos e várias pessoas ainda
haveriam de melhorar o sistema, permitindo que um dia ele fosse utilizado
por pessoas comuns. Essa é a essência de toda pesquisa mágica.

Chegando ao meu lugar, coloquei os documentos que trouxera comigo


sobre a mesa e peguei as anotações que preparara na noite anterior. Havia
dentre elas um longo discurso, entretanto não me achava em condições para
falação. Não bastasse isso, todos pareciam ansiosos e prorrogar aquela
espera por muito mais acabaria por eventualmente reduzir as chances de
sucesso. Já haviam aguardado demais, era chegada a hora de colhermos os
frutos de nosso esforço.

—Damas e cavalheiros… – disse, olhando para o rosto de cada um dos


presentes – Nossos anos de pesquisas e esforços finalmente darão resultados!
Nesta noite traremos um Forasteiro ao nosso mundo, abrindo um sem
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precedentes de possibilidades para a Magia moderna! Não nos prolonguemos


mais, companheiros, pois o futuro nos aguarda!

Uma ardorosa salva de palmas seguiu o fim de minha fala. Procurei pelo
rosto de minha Ellaine e a encontrei a me apoiar com seu sorriso gentil. Sua
presença naquele ambiente era a única coisa que me impedia de sair de lá
correndo. Olhei para minha mesa e na superfície de vidro do retrato da
minha esposa e vi Féris a sorrir, como se me dizendo para seguir em frente.
Procurei pela garrafa em meu bolso e apenas com grande força de vontade
pude me impedir de beber o que restava nela. Ergui a cabeça, tentando
parecer confiante, e juntando as forças que me restavam dei o comando para
que se iniciasse o experimento.

As travas de segurança foram retiradas e a energia contida adentrou o


sistema. Os códigos escritos adquiriram um aspecto luminescente e um
círculo formou-se no centro da sala, circundando todas as escritas. O brilho
intensificou-se e então cessou, tornando-se num buraco negro que puxava
para dentro de si toda a luz que se aproximava, gerando em seu centro um
núcleo brilhante digno de Sirrah. O crescimento do espectro luminoso seguiu
por alguns minutos, até que bruscamente cessou por completo, deixando a
sala na mais profunda escuridão. Era impossível para mim enxergar qualquer
coisa a mesmo um nanômetro de mim e mesmo o som parecia bruscamente
distorcido. Por toda a duração desse fenômeno, eu permaneci absolutamente
imóvel, paralisado pelo terror do que estava a ocorrer. A criação de buracos
negros era prática já comum e conhecida na magia da época, porém jamais
havia-se criado um que possuí-se tais propriedades gravitacionais que o
permitissem absorver apenas ondas e não partículas. O que presenciei
naquela noite punha em xeque toda a teoria quântica, amplamente aceita pela
comunidade mágica.

Subitamente, flashes curtos, frios, estarrecedores em seu silêncio e


magníficos em seu brilho sobrenatural. Durante o festival elétrico tive a
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impressão de ver algo brotar do núcleo rotacional que se formava no buraco


negro. Pude vê-lo com aterradora clareza, mas descrevê-lo em palavras é
impossível. Aquilo que vi surgir não era algo que uma mente sã poderia
conceber. Sua estruturação física e padrões visuais em nada lembravam a
maneira como a matéria deveria se comportar em nossa realidade
dimensional. Rejeita aquela imagem como advinda dum delírio, algo comum
para aqueles que se encontram num estado avançado de estresse físico e
mental.

Quando a luz finalmente retornou encontrei um grupo tão ou mais


abismado que eu. O círculo sumira, assim como seu estranho conteúdo,
deixando para trás apenas um espaço estranhamente distorcido pela brusca
alteração do campo gravitacional sobre ele exercido.

—O que houve? – berrou alguém.

Olhei para o resultado daquele experimento, buscando por uma resposta


ao menos aceitável para aquela questão. Encontrei-a e, embora não fosse
satisfazer as ânsias dos presentes, entreguei-a aos meus colegas.

—Falhamos. – murmurei.

A decepção era plenamente visível nos olhos de cada um dos presentes. O


sentimento de falhar após anos de esforços era capaz de esmagar a mente e
alma de qualquer pesquisador.

—Quero relatórios pela parte de cada um de vocês! – ordenei –


Analisaremos o que houve hoje e repetiremos o experimento quão
brevemente for possível. Agora, – continuei, cumprimentado a todos meus
colegas com um gesto falsamente tranqüilo – senhoras, senhores, podem
descansar.
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Quando, horas depois, me encontrava sozinho em minha casa, as imagens


daquilo que pensei ter visto surgir das profundezas escuras do buraco negro
se recusavam a deixar-me só. Sentado diante de todas as informações
daquele experimento, senti uma ira animalesca surgir dentro do meu ser.
Mais uma vez recorri à garrafa que carregava comigo, dessa vez eliminando
todo o conteúdo nela guardado. Olhei então para mim mesmo no reflexo da
foto de minha Ellaine. Estava velho, cansado, e essa ultima falha roubara de
mim grande parte da curiosidade que ainda me restava. Por muito tempo
adiara esse momento, todavia agora já não mais conseguiria levar minha
carreira acadêmica adiante. Era chegada a hora de parar, de deixar aos
jovens as descobertas, de passar para minha filha o legado de minhas
descobertas. Porém, antes disso, iria descobrir o que falhara naquela noite.

—Féris! – erguendo-me chamei.

Senti sua respiração cálida sobre minha pele e voltei-me para trás,
achando-a do mesmo modo que da ultima vez.

—Fiz tudo como disse e ainda assim o experimento foi um fracasso! Por
quê?

Sorrindo com arrogância, Féris cruzou os braços e deu de ombros.

—Você diz que foi um fracasso, entretanto eu não faria o mesmo. – disse
ela – Vocês disseram que queriam trazer um Forasteiro a esse mundo, eu
dei-lhes condições para tal e vocês fizeram exatamente o que eu disse. Não
houve falhas, vocês apenas não puderam detectar a chegada do seu
“convidado”.

—Que quer dizer?

—Ele ainda está lá, esperando por vocês. Ou quem sabe já não está
dentro de um de vocês. Forasteiros são muito imprevisíveis, professor.
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—Espere! Você não está dizendo que aquela coisa que vi… – murmurei
nervoso.

—Era o que você estava tentando trazer. Esperava que vocês


conseguissem chamar um Deus Espacial, um Grande Antigo ou ao menos
um Ser Profundo, mas no fim das contas a energia foi tão ínfima que só
chamou a atenção de um Forasteiro qualquer.

Estava obstupefato. Como podia ela conhecer ter tantas informações


sobre Forasteiros? Começava a duvidar das intenções de Féris e temia as
conseqüências do que havia feito. Entretanto minha preocupação no
momento era capturar a criatura que havia invocado.

Peguei meu casaco e um punhado de fórmulas genéricas e dirigi-me para


a saída. Quando me encontrava no limiar da porta, porém, ouvi o chamado
de Féris.

—Você não conseguirá fazer nada. – disse ela – Forasteiros não são como
os seres normais, limitados pela matéria e pelo senso comum. Mesmo que
cause ferimentos infinitos nele, o corpo continuará a se regenerar. Destruir
completamente a forma física ou impor a eles as limitações da matéria são as
únicas maneiras de se aniquilar um deles.

—Como pode saber tanto sobre Forasteiros?

—Quando se está viva por quase mil anos acaba-se conhecendo todo tipo
de coisa, Professor.

Tudo enfim se encaixou. Os conhecimentos improváveis, a beleza irreal,


as aparições impossíveis, absolutamente tudo passou a fazer sentido. Dentre
alguns poucos conhecedores dos segredos do passado desse mundo correm
histórias sobre uma mulher que se apresenta perante homens por toda a
história, oferecendo-lhes conhecimentos e poderes inimagináveis. Tal
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mulher, segundo as lendas, seria a própria Valena, traidora de Galatéa,


responsável pela fim da Era dos Deuses e levantar do tempo dos homens.
Até então via tinha tais contos como fábulas montadas, ilusões religiosas de
pessoas que necessitavam culpar alguém pelos erros que cometeram, porém
agora ela se mostrava diante de mim. Havia sido eu nada mais que um
instrumento para um ser de vontade eterna? Mas se mesmo a maior dentre
deidades caiu pelas palavras de Féris, que poderia eu, velho e falho, longe da
virilidade e sagacidade de meus tempos de moço, ter feito? Entretanto essa
mesma serpente que me fizera cair no erro agora me indicava o caminho a
seguir pela redenção. Deveria eu confiar em tais palavras?

Não havia escolha. Cada minuto que perdia com questionamentos dava à
aberração maior vantagem diante de mim. Ignorando o aviso dado por Féris,
peguei meu automóvel e dirigi mais imprudentemente do que jamais fizera
em toda minha vida. Nunca antes me queixara da velocidade de um veículo,
ainda mais de um que não exigia a força de animais para se locomover, mas
naquela hora desejei que pudesse pegar um trem.

Quando enfim cheguei ao prédio onde era localizado o departamento de


pesquisas tentei por várias vezes contatar os seguranças que guardavam o
local, em todas elas não houve resposta alguma. Arrombei a porta frontal e
me deparei com uma incomum escuridão. Aparentemente os cabos de
energia haviam sido severamente danificados, pois as lâmpadas de
emergência estavam acessas e ainda podia sentir o fluxo de Mana em alguns
pontos isolados.

Os elevadores, apesar de mecânicos, também estavam inoperantes,


deixando como única opção de acesso ao local onde os experimentos
ocorreram as extensas escadarias. Porém sequer precisei chegar até elas para
encontrar os rastros do Forasteiro.
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Num dos corredores, espalhados por toda sua extensão, estavam os


corpos mutilados de toda a equipe de segurança. A luz laranja, sombria, das
lâmpadas de emergência projetava-se sobre aquilo que um dia foram seres
humanos. O rubro do sangue respingava do teto, onde vísceras e ossos
pendiam como peças de carne num açougue. Os ácidos gástricos e conteúdos
intestinais exalavam um odor de putrefação que me fez vomitar, adicionador
o fedor acre da bílis à já asquerosa cena.

E tudo aquilo era minha culpa. Cada grito de dor, cada membro decepado
e órgão despedaçado era minha responsabilidade. O peso de tamanha culpa
me fez perder o chão. Pensei em me atirar de uma janela, pondo fim a tanto
tormento, porém a ideia de causar qualquer sofrimento a Ellaine era amarga
demais. Isso e apenas isso me impediu de pôr fim à minha vida naquele
instante.

Eis que fui tomado por um terror maior que qualquer outro. Lembrara-me
que muitas vezes era eu obrigado a mandar que minha filha se retirasse para
sua casa, pois era costume seu permanecer até horas mais tarde, em especial
nos dias em que experimentos eram feitos. Tremi ao pensar que ela ainda
poderia estar naquele lugar e por muito pouco não caí no chão, vitimado por
um infarto, ao imaginar que poderia ela também ter sido vítima do
Forasteiro. Corri até sua sala, atormentado a cada segundo pela visão dos
corpos mutilados. Meu pavor apenas cresceu quando, chegando ao corredor
onde ela trabalhava, vi as janelas quebradas, machadas de sangue, e os
corpos de alguns de meus preciosos colegas esmagados ao ponto de apenas
vagamente lembrarem aqueles de um ser humano. Olhando pelo vidro
destroçado vi mais corpos no térreo, atirados do sétimo andar do para uma
morte violenta e terrível. Mas o maior de todos os golpes veio a seguir,
quando já na sala de Ellaine, encontrei a agenda que ela sempre carregava
junto a si. Estava rasgado e manchado de sangue, estado em qual minha filha
jamais permitiria que alguém o deixasse, ao menos não enquanto estivesse
viva para defendê-lo.
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Fiquei em estado de choque. As chances de algo ter ocorrido a ela já não


era apenas um temor, mas uma realidade aterradora e palpável. Pensei em
me atirar num canto e chorar desesperadamente, porém as chances, mesmo
que ínfimas, dela ainda viver me impediram de cair em tão deplorável
estado.

Usando uma das fórmulas genéricas que trouxera, recitei um curto


encantamento, tentando localizar minha filha dentro daquela construção.
Pequenas marcas de seu padrão de onda estavam espalhadas por vários
lugares, mas uma única fonte grande estava vindo da sala do diretor. Corri
quanto meu corpo cansado permitiu e apenas poucos minutos separaram a
partida da minha chegada ao local onde ela possivelmente estava. E abrindo
a porta, me deparei com Ellaine em posição fetal, chorando e soluçando.

—Ellaine? – chamei-a me aproximando.

—Fique longe de mim! – ela gritou.

—Está tudo bem, filha, sou eu, seu pai.

Erguendo o rosto, Ellaine olhou-me com uma expressão sofrida. Sua face
manchada de sangue transmitia o sentimento pelo qual havia passado e em
seus olhos vi um doloroso desespero. Tentei me aproximar, mas um odor de
podridão fez arder minhas narinas, impedindo-me de dar um passo sequer
adiante.

—Afaste-se de mim… – murmurou minha filha.

—Não se preocupe! Aquela coisa não está aqui!

Levantando-se do chão, Ellaine deu um passo atrás e então pude ver,


brotando de suas costas, a mesma coisa indescritível que surgiu durante o
experimento. Tentei me aproximar dela, porém apêndices negros se
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projetaram da massa central da criatura vindo em minha direção com tanta


violência que apenas graças a meus reflexos acelerados não fui atingido. Tão
forte era investida que, com um estrondo colossal, pôs abaixo a parede atrás
de mim.

—Por favor pai… não quero fazer tudo aquilo outra vez…

A voz de Ellaine era um murmúrio choroso, um pedido desesperado de


ajuda. Meu coração de pai ameaça estourar diante de uma situação de
tamanha crueldade. O belo corpo de minha filha estava deformado, tomando
de manchas de protuberâncias negras causadas pela ação corrosiva da
aberração por mim chamada. Era minha responsabilidade como cientista
calar aquela criatura e como pai de apaziguar as dores da criança de meu
sangue.

Lembrei-me então de Féris a me dizer que nada poderia fazer ante a


criatura. Para mim matar uma pessoa jamais fora trabalhoso, porém agora
me deparava com uma situação além de meu controle. Se atacasse não tinha
dúvidas de que Ellaine não sobreviveria, todavia se o que me disse a Valena
fosse verdade, tal sacrifício seria vão. Não podia estava disposto a arriscar
tanto. Tais dúvidas fizerem crescer ainda mais a pressão em meu coração.

Ajoelhei-me diante de Ellaine, implorando-a que se recuperasse. Ainda


que soubesse que de nada significavam minhas súplicas não pude deixar de
fazê-las. Quando em desespero, os homens se atem a qualquer esperança,
mesmo que não passe apenas de um castelo de cartas. Sentia-me abandonado
num mar negro como o espaço profundo, mergulhando cada vez mais em
suas profundezas gélidas. Uma dor fina e anestesiante partiu de meu peito,
alastrando-se por todo o meu corpo numa onda febril. As fórmulas que
carregava comigo caíram de meu bolso e, levadas por uma brisa repentina,
saíram de minha área de alcance. O som do choro de minha filha me enchia
de ira de mim mesmo. Tomado pelo pavor de perder minha filha para um
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Forasteiro qualquer, precipitei-me contra a criatura, conjurando uma magia


que prometera a mim mesmo nunca mais usar. Novamente apêndices negros
atiraram-se contra mim, entretanto dessa vez não recuei. As pontas afiadas
perfurara-me o abdômen com ofensiva facilidade. O jorro de sangue que se
seguiu apagou minha visão, mas não me impediu de continuar avançando. O
ar me faltava cada vez mais, tornando cada passo um desafio crescente.
Gritando com toda a força de meus pulmões feridos, pulei em direção à
Ellaine e tão ferozmente quanto da primeira vez, diversos outros tentáculos
vararam-me a carne. Empalado bem em cima da criatura, pude ver a
expressão desesperada de minha filha, chorando e soluçando pelo que fora
forçada a fazer. Com minha consciência se esvaindo finalizei a conjuração e
num ínfimo instante o Portão de Keres se abria sob mim.

Do que ocorreu em seguida só me lembro de meu despertar na cama de


hospital em que me encontro no momento. Segundo os médicos fui
encontrado gravemente ferido por sobre o corpo nu de Ellaine. Muitos de
meus órgãos haviam sido danificados além do que magia ou medicina
moderna poderia restaurar. Segundo eles não passaria daquela noite. Minha
filha por outro lado sofrera diversos cortes por todo o corpo, principalmente
nas costas, sofrendo pesada hemorragia. Ainda assim ela viverá, embora
tenha que daqui para frente suportar a anemia e as graves sequelas
psicológicas do evento ocorrido.’

Termino hoje, dia em que foi a mim noticiado meu estado terminal, este
curto relato dos eventos ocorridos no centésimo quarto dia do primeiro
semestre do ano de 1894.

F. R. Portman

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