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Cachorro Velho parou diante da porta entreaberta. Uma brisa fria the trespassou a camisa, Sentiu um arrapio nas costelas. 0 que havia feito? Estava louco? Aisa era s5 uma menina, ndo saberia se defender. Beira a CO enue aus ROM amen cute n tary existéncia, mandara a gerota ki para fora. Exposta a noite e ao medo, Aos CCE ERC LR EE Neco atecne ene On Te aC te SS Neca et Meeker eae ence ey Pee tO ene eae em nS Oe ety significa estar longe, muito longe. Entao, a velha es Eee ecm MeN ae TM era Omn eee: duro © comovente da desumaniciade da escraviddo. *O velho nao temia 0 Inferno: tinha vivido nele desde sempre. Cone er Me Ne Cen aca s amc nn eee Tee er oor CeCe Mee ene cn Ganhador do Casa de las Américas, a mais alta honra iterévia de Cuba e um dos prémios mais importantes do mundo ce fala hispanica, este lio abalara pete ae SBN 978-85-347-0450.5 SUNN Cr Cs@nneme VELHO — . G Ys ( a diy ~ Américas Ee iB Beene ELHO ee yS oe of ELH Q ELHO TRADUGAO JOANA ANGELICA D'AVILA MELO Copyright © 2006 ‘Teresa Cardenas ‘Todos os direttas reservados Primera edit publicada no Canad enes EUA em 2007 por Groundwwood Books ‘Tilo original: Pero Velo ‘eaitoras Cristina Fernandes Wart ‘MarianaVerth ‘Coordenapao editarial ‘Silvia Rebello ‘Tadugio Joana Angdlica Auta Melo Revisio de tradugio Rafaelta Lemos Revista Tals Monteiro Projo gratco de miolo e dagramagao ‘Aron Balas capa Brune, Bonvegnts (tee segue as norasregras do Acordo Ortogdfic da Lingua Portugues) Toot eto reservados Pals Editor Distibuidora Li veda a eproduica porqinique melo mecanicn eeronica rerogrfco ec. sem a Deunisde por eset da editor de parte ou toiled donates escto, ‘im-anasn, cararocagio na roxte smspicata nACIONAE DO? BDITOREE DE LIVEOS,W) / Teresa Cadena; radugdo Joana Angtica dole Melo - Rode Janeico “Pallas, 2010. 1p, ISBN s7a-8947-0159.5, 1. ego mexicana Nel, oan Angie dA. Tel, ros, ‘epb: 00093219 (CDU; 821.134.2170. Pals Fern e Dictrbuidora ted, ua Frederico de Alouquerue, 6-—Higienopais ‘co 20st Rio de Hero RI "else 21 2270-0105, sworupalaeitovecom.be pallasepallesoditoracembe A Zenita, em sua memoria Para Susy e Felipe Café de montanha Cachorro Velho aproximou do rosto a borda da cuia e cheirou. O aroma do café adogado com mel lhe entrou em cheio, reconfortando-o. Sempre cheirava primeiro. J4 era um costu- me, um ritual aprendido com os anos. Uniu 0s labios grossos e bebeu um gole. O liquido des- ceu numa onda ardente até seu est6mago. “Bendita Beiral”, sussurrou, satisfeito. _ No fundo da choupana, uma mulher robus- tae calada se movia com agilidade, afastando jarros enegrecidos e cagarolas. Diante dela, a lenha crepitava no fogao nistico. 8 teresa cardenas Olhando-a, o velho reconheceu que aquela mulher silenciosa e meio desajeitada fazia 0 café como ninguém em todo o engenho: chei- Toso, amargo, de montanha, silvestre, livre... Cachorro Velho parou de beber. “Café de montanha...?”, murmurou para si mesmo, sem compreender o sentido daquelas palavras que se enredavam em sua cabega. Pousou a cuia na mesa e foi mancando até a porta da choupana. 14 fora havia uma escuridao quase absoluta. Algumas estrelas brilhavam morticas no céu opaco, sem lua. Um ventinho frio balangou os ramos das embatibas e 0 mato da cancela. 0 velho estremeceu. No patio, os cachorros co- megaram a latir. Eram quatro da manha. Sentou-se dificultosamente num tamborete € cravou os olhos neblinosos nas sombras e si- Ihuetas que se moviam perto do barracao, ar- rastando enxadas e faces. “De que montanha?”, perguntou-se, com uma careta amarga. cachorro velho 9 Jamais tinha estado numa. Nem sequer sa- bia aonde levava 0 caminho poeirento que se perdia além da fileira de imburanas e flam- boyants. Nunca em sua vida havia ultrapassa- do acancela do engenho. Tinha setenta anos e nao se lembrava de ter vivido em outro lugar. Cachorro Velho fechou os olhos e suspirou baixinho. No outro extremo do cubjiculo, Beira cantarolava num idioma remoto. Ao longe, abafado pelos latidos dos caes, ou- viu-se o estalar de um chicote. Beira A voz soou dura, enrouquecida: — Quer mais um pouco? Cachorro Velho se voltou sobressaltado. Beira o encarava fixamente. Seus grandes olhos pareciam trespassd-lo. Numa das maos ela trazia a cuia e, na outra, um jarro peque- noe fumegante. Tinha o rosto largo e tao des- povoado de emogées quanto o canavial depois da queimada. Vestia uma bata largona de teci- do grosseiro, sem bolsos nem forma. Nao usa- va sapatos nem lengo na cabega. 12 teresa cardenas O velho recordou 0 que os homens do bar- racao diziam de Beira. $6 que ele nao acredita- va em coisas sobrenaturais, ndo em sua idade. Em sua longa vida tinha aprendido a nao espe- rar demais do outro mundo, onde se supunha que habitassem os deuses e os espiritos dos antepassados. “Tudo o que acontece na terra, de bom e de ruim, é coisa dos homens e de mais ninguém’, dissera a eles uma noite. Mesmo assim, Cum- ba, Eulogio Malembe e os outros continuavam culpando 0s espiritos malignos pelas esquisi- tices daquela mulher. Cachorro Velho sabia que o fogo queimava. Ele mesmo tinha um brago crestado e quase imprestavel desde aquele incéndio no qual ti- nham morrido a velha Aroni, Mos e Micaela Lucumi, a cozinheira. Havia acontecido trinta anos antes ea pele do anciéo ainda ardia. Ele sacudiu a cabeca com forga. As vezes, as coisas que lhe dofam demais desapareciam com uma boa sacudidela. cachorro velho 13 No fogao a lenha, o lume comegou a defi- nhar. A 4gua parou de borbulhar nas panelas. A fumaga invadiu o cubiculo. —Vai tomar ou nao? Tenho coisas a fazer — disse Beira, impaciente. O anciao se remexeu inquieto no banqui- nho. Tinha se esquecido dela por completo. Ultimamente, esquecia-se de tudo. — A madruga’ té fria — disse, s6 para di- zer alguma coisa, e estendeu a cuia. Beira ser- viu um jorrinho de café no recipiente, e entao o velho atentou para a mao feminina. Era es- cura e sedosa. Talvez suave demais para a de uma escrava. Sulcos finfssimos cruzavam os nds e desenhavam estranhos meandros ao re- dor dos dedos. Oanciao sentiu o toque da mao de Beira. Es- tava fresca como a dgua do rio no qual ele mer- gulhava quando menino. Pensou que era imposstvel que aquelas maos tirassem caldeirdes e jarros do fogo sem a aju- da de nenhum pano, como contavam os ho- 14 teresa cdrdenas mens do barracao. Também diziam que ela era capaz de saltar entre as chamas sem se quei- mar e de comer fogo, e que, quando os senho- res iam dormiz, voava pelo engenho em um enorme caldeirao que soltava faiscas ao rogar as copas das arvores. Sem dtivida, eles fanta- siavam. — Coisas de negros ignorantes! — soltouem voz alta, sem perceber. — O que foi que o senhor disse, taita?’ — perguntou a mulher, que voltava a se atarefar no fundo do compartimento. Com um leve sorriso, Cachorro Velho se vi- rou para ela, na intengdo de lhe contar o que se dizia no barracao. Nao péde. Beira, inclinada sobre o fogao, juntava sem pressa os carvoes acesos. As brasas, brincalho- nas, ardiam entre suas maos. * Em Cuba, “taita” é tratamento que se dispensa aos ancios negros, correspondente ao brasileiro “pai (“Pai José”) ou"tio’. (N. da‘T) Além do caminho Cachorro Velho nao sabia 0 que aconteceria quando morresse. Na realidade, isso nao Ihe importava muito. As vezes, pensava no que o padre Andrés dizia sobre o Inferno, o fogo eter- noe tudo 0 mais, e se sentia inquieto, cheio de dtividas e perguntas. Nao por achar que sua alma arderia se ele no obedecesse ao patrao, conforme lhe asseguravam, mas porque co- nhecia de perto o fogo e sabia do que ele era capaz. O velho nao temia o Inferno: tinha vivido nele desde sempre. 16 teresa cardenas Pelo contrario, 0 escravo gostava de se ima- ginar morto, Com frequéncia, fechava os olhos para que as imagens lhe viessem mais nitidas. Em sua cabega, via-se vestido num pano es- tranhamente branco, Com um bonito relégio de ouro pendente do colete, tomando a fresca da tarde, na varanda da casa-grande, refestela- do na poltrona do senhor, enquanto este ou a senhora lhe serviam café numa xicara de cristal. Outras vezes contemplava sua alma, seu es- pirito ou seja 14 o que fosse, flutuando além da cancela e do renque de embatibas, perdendo- -se de vista no caminho poeirento pelo qual, seguramente, se chegava a uma vida menos dura do que a dele. Ou, talvez, por ali nado se fosse para o Céu nem para 0 Inferno, mas dire- tamente para a Africa, a terra de selvas e plani- cies onde sua mae nascera. Cachorro Velho suspirou, balangando a ca- bega, como costumava fazer para espantar o que o perturbava. cachorro velho 17 Quantos anos de vida lhe restavam: trés, quatro, vinte? Toda uma eternidade? Dificil sa- ber. Os escravos nasciam com a morte dentro de si e, as vezes, esta se mostrava de maneira caprichosa. Ou nao se manifestava tao rapida- mente quanto alguns prefeririam ou aparecia quando menos esperavam. Oanciao recordou Nsasi, o menininho de cin- co anos atingido por um tiro escapado do rifle do senhorzinho quando este limpava a arma. Nsasi estava alimentando as galinhas e tom- bou entre os graos de milho sem um suspiro, com os olhos abertos, como alguém a quem arrancam algo das maos. As galinhas, depois do alvoroco, continuaram bicando os graos espalhados entre as roupas dele e ao redor de seus dedos mortos. ‘Tudo aconteceu em menos de um segundo, Na mesma noite, enquanto enterravam Nsasi, a senhora mandou que dessem uma ttinica nova 4 mae do menininho para que ela paras- se de gritar. O caso do congo Tumba Cerrada 18 reresa cirdenas foi outra coisa. Ele tinha quase cem anos e ain- da caminhava ereto e ligeiro, sem bengala para se apoiar. S6 que nao podia trabalhar no cam- Po: suas forgas Ihe faltavam para um trabalho tao duro. Também nao podia ser porteiro, pois estava meio cego e dormia em todo canto. En- tao 0 senhor mandou que 0 tirassem do barra- cdo e nao lhe dessem mais comida, para ver se ele acabava de morrer. Mas Tumba era de espi- rito forte. $6 para contrariar, viveu mais cinco anos, alimentando-se das frutinhas do jam- beiro-rosa, como os pdssaros do monte, e de uma ou outra boia que o pessoal do barracéo lhe dava as escondidas. Dormia a céu aber- to ou entre as velhas pas da antiga moenda. Qualquer lugar era bom para ele. Teria vivido daquele jeito por muitos anos mais. Um dia, porém, amanheceu pendurado numa drvore enorme, no fundo do engenho. Quando contaram ao senhor, este assegurou que Tumba Cerrada se cansara de viver. Nin- guém acreditou. Tumba nao podia se pendu- cachorro velho 19 rar sozinho numa 4rvore tao alta. Ao chegar a esse ponto, Cachorro Velho suspirava e dava uma cusparada no chao empoeirado. “Vida de merda!”, grunhia, e entao deseja- va com todas as suas forgas enveredar pelo ca- minho, muito além de onde seus olhos viam. Além de onde seus pés cansados poderiam leva- -lo. Fugir para longe. Longe do Inferno e do se- nhor, Longe. Osenhor Com 0 toque madrugador do sino, os escravos inclinavam a cabega ante o Senhor que pendia nu de uma cruz ao lado do barracao, perto do bebedouro dos porcos. Depois partiam para 0 canavial cheio de cobras e escorpides, com a béngao do senhor vigario. Sob o sol, cortavam canas e cipds, temendo o agoite do feitor. Na enfermaria, eram tratados com arnica e vinagre, mas convinha fazer siléncio, pois os gritos de dor incomodavam a sesta da senhora. 22 teresa cdrdenas No almogo, quando 0 patrao descia até 0 pa- tio da fazenda, todos deviam olhar para 0 chao. Ese o senhorzinho cismasse de sair cavalgando pela propriedade, entao Cachorro Velho devia abrir a cancela, cabisbaixo e sem dar um pio. Para o porteiro, todos aqueles senhores eram um s6. Quer tivessem cruz, bengala, cavalo, ar- nica, chicote, brevidrio ou coroa de espinhos, dava tudo no mesmo. Um escravo nunca pode- ria ficar ereto diante deles e muito menos fita- -los nos olhos. Os escravos sabiam que o patrao era o dono de suas vidas, seu senhor, aquele que deci- dia se eles mereciam viver ou nao, se estavam prontos para constituir familia, se podiam fi- car com os préprios filhos ou se estes seriam vendidos como cestas de frutas. O patrao deliberava sobre tudo o que se rela- cionasse as suas vidas e mortes, com mais po- der do que Deus e do que todos os santos dos quais 0 vigario falava aos domingos. cachorro velho 28 Um escravo era apenas um pedaco de carne malcheirosa e mais nada. Um negro era uma besta de carga, um bicho, um bruto, um la- drao, uma alimaria, um saco de carvao... Ape- nas uma pega. Um senhor e um negro jamais poderiam ser iguais. Cachorro Velho sabia disso. Os negros nunca dariam chicotadas em uma crianca que tivesse apenas apanhado um pedago de pao. Ele nunca tinha visto Cumbé matar outro homem de pancada, nem Beira cortar a orelha de al- guém, nem Malongo estuprar uma mocinha... Todas aquelas atrocidades tinham vindo sempre dos brancos do engenho ou do feitor. Catecismo Para o vigdtio Andrés, Cachorro Velho era seu melhor aluno nas aulas de catecismo. Aos do- mingos, quando os escravos eram agrupados no patio e o padre pregava sob o brilho do sol, falando do Céu e dos anjos, o porteiro baixavaa cabega, humilde e absorto, Felizmente para 0 velho escravo, o vigdrio nao podia ler pensamentos. Se o fizesse, teria descoberto que, em vez de prestar atencdo aos sermées, Cachorro Velho recuava no tempo e se via em crianga, com as pernas encolhidas, sentado no chao do barracao, escutando co- 26 teresa cdrdenas movido a cerimoniosa voz da negra Aroni con- tando-Ihe fabulosas histérias da Africa. Aroni “Beeeiiii, escutem todos! O que eu vou contar assombraré vocés! Uma vez conheci um ho- mem que tinha cabelo de marfim e olhos da cor do mar quando se enfurece...” Aroni. Feiticeira das palavras. Bruxa dos de- vaneios. Narrava a qualquer hora e em qualquer lu- gar. Seus contos eram para todos. Sentada no chao, perto das criangas, ou em um tambore- te, junto aos mais velhos. Contava a negros e brancos, aos vivos e aos mortos, ao vento e as canas, aos patos e as formigas que subiam pe- las paredes do barracao. 28 teresa caindenas Nao estava louca nem hticida. Nao era alegre nem triste. Nao chorava nem cantava. Apenas contava hist6rias, fabulas que tinha escutado quando era menina em sua aldeia, na Africa. De seus labios brotavam histérias de magos, de animais ferozes e encantados, de diabos e de anjos, de peixes de prata e madrepérola, de duendes barbudos, de principes guerreiros que cafam em desgraca. As vezes, Cachorro Velho € 0s outros nao en- tendiam suas palavras, mas a escutavam do mesmo jeito. Acompanhando-a, metiam-se, sem saber como, pelo ttinel estreito que ia até a caverna do ogro; ou viajavam até a Lua le- vados por um peixe magico; ou eram reis com chapeloes vermelhos dos quais safam relam- Ppagos. Ou eram simplesmente homens e mu- jheres livres, com longos e belos caminhos a percorrer, Aroni € sua voz grossa e melodiosa, como a de um homem que canta. Aroni contando com os bragos abertos sob as arvores; contando de- cachorro velho 29 brugada sobre Cumba castigado no cepo; con- tando aos filhos dos feitores, Falando do fogo e da gua; do tempo e da morte; dos homens e de um pais onde todos podiam se olhar nos olhos. Pobre Aroni. Mae dos contos, mulher de ventre murcho. Quando jovem, havia tomado uma pogao para abortar o filho que um feitor deixara a forga em suas entranhas. A pogdo era de cuieira e fedegoso. Galhos ar- rancados da arvore a meia-noite. Secou-a para sempre. Foi a mais breve e ter- rfvel de suas histdrias, a tinica que ela nunca contou aos outros. Para Cachorro Velho, a ancia era como um amuleto. S6 porque ela vivia, a certeza de que sua mae tinha realmente existido nao o aban- donava. — Aroni 0 trouxera ao mundo, tirando-o do ventre morno e acolhedor de sua mae. Ela a conhecera, olhara-a nos olhos, escutara sua voz, e seus gemidos de parturiente, secara suas lagrimas. 80 teresa cardenas As vezes, 0 ancifio gostaria de fazer o tempo recuar, de entrar nos olhos de Aroni para des- cobrir em seu interior 0 rosto materno, mistu- rado a contos e recordagoes, e trazé-lo a luz. Mas ja nao se podia fazer nada. O fogo e o tempo haviam cafdo sobre a velha contado- ra de hist6rias, devorando-a junto com as coi- sas da infancia de Cachorro Velho que ele nao conseguia recuperar. Avoz € os contos de Aroni permaneciam na cabega do porteiro, mas a verdadeira histéria de sua vida tinha terminado sem um final feliz. Antes Agora, quase com a morte em seus calcanhares, era porteiro. Mas, quando ainda lhe restavam forgas, havia trabalhado cortando cana, desma- tando, carregando as carrogas com o bagaco, cortando lenha, empilhando carvao, alimen- tando os fornos, esfregando os tachos, lubrifi- cando as pegas da moenda todas as semanas, consertando as portas do barracao, construin- do cepos... E antes, quando rapazinho, tinha sido en- carregado de levar a lenha cortada para a co- zinha da casa-grande; de plantar inhame, B2_leresa cdrdenas cenoura, banana, taioba e abdbora; de limpar os chiqueiros; de levar os cavalos até o rio para lhes dar banho e dgua; de consertar as carro- cas; de destripar patos, frangos e porcos; de ti- rar a lama das botas do senhorzinho... E quando nao media nem trés palmos de al- tura alimentava as galinhas; guiava as mulas impava o milho; reco- da carroca de bagag: Ihia a roupa suja da casa-grande; enrolava as tiras de couro para o chicote novo do feitor. E ao nascer... tivera que trabalhar? Cachorro Velho achava que sim, que ja tra- balhava desde o ventre de sua mae. Ja era escravo desde entao. Pulsagées : O porteiro tinha conhecido a tristeza, a dor in- cessante de todas as suas perdas, a inquietagao do medo que nao ia embora, 0 cheiro ameaga- dor da tortura e da morte. No entanto, desconhe- cia qualquer coisa que tivesse a ver com 0 amor. Duvidava de que seu coragao tivesse a forga ou a resisténcia necessdrias para encontrar 0 caminho correto e chegar aquele sentimento. ‘Talvez a verdadeira razaio para nao o encontrar fosse simples: seu coragaio nao o desejava. Na primeira vez que o sentiu bater com in- tensidade, era um menino. Aroni contava so- 84 teresa cdrdenas bre o garoto pobre que encontrou um peixe de prata e foi até a Lua para resgatar sua mae das garras do Diabo. Cachorro Velho gostava tanto daquela histéria que seria capaz de jurar que seu coragio, ao desfrutd-la, ficava mais po- deroso do que as moendas do engenho. Pelo menos 0 rufdo com que ele pulsava era bem semelhante, Depois cresceu e nao voltou a ouvi-lo, até que uma tarde 0 feitor estalou o chicote per- to de sua cabega e o mandou de castigo para o tronco. Ele nao recordava exatamente o moti- vo, talvez nao fosse importante. Um negro nao tinha que fazer muito para ser castigado. De qualquer maneira, todo 0 seu corpo havia vi- brado como um tambor antes que ele sentisse a primeira chicotada. No entanto, 0 pior momento que ele atra- vessou com seu coracdo foi quando viu 0 cor- po de Ulundi sumir numa nuvem de poeira atrds do cavalo que o arrastava: ele quase lhe fugiu do peito, seguindo seu amigo. cachorro velho 35 O anciao tinha certeza de que os urubus ti- nham devorado seu coragao junto com 0 cad4- ver de Ulundi, pois desde entao nao o sentia. As vezes pousava a mao no peito e era como. pousd-la sobre uma pedra. Nenhuma pul- sagao, sequer um rumor. De seu interior nao vinha nada que lhe garantisse que ele ainda estava vivo. Via os outros trabalhando embaixo de sol ou de chuva, suportando as picadas dos insetos, dormindo amontoados no barracao, e se per- guntava se com eles acontecia 0 mesmo. Por essa €época, duvidou mais do que antes da existéncia de algo acima de suas cabegas. Se nem sequer podia garantir que tinha um coragdo no peito, como esperar que alguém vivesse entre as nuvens? Cachorro Velho entendia cada vez menos as coisas dos brancos. No domingo seguinte ao do suplfcio de Ulundi, quando o padre assegurou que o acontecido com seu amigo tinha sido obra da 36 teresa cardenas vontade divina e Ihe achegou o brevidrio e a cruz para que os beijasse e pedisse perdao pe- Jos seus pecados, cuspiu neles, como se lan- gasse uma cutilada. O sacerdote fugiu correndo da capela, Para seu azar, escorregou na lama e quebrou uma perna e dois dedos da mao direita. Foi a segunda vez de Cachorro Velho no tronco. Por sua “blasfémia’, recebeu de castigo cem chicotadas. A pele de suas costas, sanguinolenta e ras- gada, parecia ferver. Ele quase morreu. No en- tanto, agarrou-se a sua raiva, ofegante. Nao tivera outro remédio a nao ser dar a eles sua vida, mas estava empenhado em no hes pre- sentear sua morte. Asuncién Cachorro Velho n4o tivera oportunidade de sa- ber o que era carinho. Essa palavra nem sequer Ihe soava familiar. Claro, tinha estado com mulheres no escuro do barracao, rodeado pelos roncos dos outros. Ou no canavial, ou atrés da cozinha da casa- -grande. Mas nfo havia nele a paixao que, por exemplo, percebia nos olhos de Luciano quan- do ele via Keta voltar do rio, trazendo na ca- bega sua cesta de roupas imidas. Ou o afeto de Malongo pelos cavalos e outros animais do engenho. Nem a devogao dos homens pelos 8B teresa cdrdenas deuses que viviam e morriam com eles no bar- racdo ou no tronco. E muito menos a ternu- ra de Carlota na hora de semear flores, A terra parecia retumbar quando ela se aproximava. Avida de suas flores era respeitada do mesmo modo por secas, por inundagées, pelo vento selvagem que soprava sobre os canaviais e pe- las abelhas vorazes que enxameavam depois do aguaceiro. Suas maos pareciam ter um pac- to magico com a natureza E nem assim comoveram o coragao de Ca- chorro Velho. Depois da morte de Ulundi, ele nao queria ter pactos com ninguém. Nem com mulhe- res, nem com bichos, nem com plantas. Ficava com uma mulher se ela o quisesse; dava ba- nho nos cavalos e cuidava de patos e porcos porque era sua tarefa; cortava as canas e os ci- p6s no campo porque era obrigado, como to- dos og outros escravos. Nao procurava se envolver com algo fora dis- so. Nao queria se comprometer nem. sequercom cachorro velho 39 seu coragao. Que este pulsasse como quisesse, mas que nao o incomodasse com outras coisas. Achava que, se cada um se mantivesse nos trilhos, tudo iria bem. Na vida de um escra- vo, 0 amor s6 poderia ser um estorvo. Disso tinha certeza. Nao queria correr mais riscos além dos que ja corria por ser uma “pega” do senhor. No entanto, em meio as suas meditagées, 0 velho mentia. Antes que se afastasse definiti- vamente do Amor, ele o conhecera. Naquela época, 0 patrao ainda nao havia comprado Ulundi no barco, nem o senhor- zinho tinha nascido. Cachorro Velho era um rapaz e Aroni continuava viva e contando his- tdéria aos menores. Amanha em que tudo aconteceu nao era di- ferente das outras que a tinham precedido. O sol flutuava sobre 0 campo como em todas as alvoradas, e os seixos do caminho se insinua- vam entre os dedos dos pés descalgos, como de costume. 40 teresa cdrdenas Ja no rio, ele arregacou a calca e meteu os cavalos na dgua, sem perder tempo. Ainda de- via colher as hortaligas para 0 almogo, empi- lhar carvao e ajudar as escravas domésticas em qualquer outra tarefa. Pensando em tudo © que lhe faltava fazer, comecou a esfregar o lombo do primeiro animal com suavidade. A Agua do rio estava fria e transparente. Al- guns peixinhos vinham espiar perto de suas pernas. Na margem, abundavam os buracos de caranguejos e paguros. Cachorro Velho mo- lhou a cabega do cavalo como pano, e entaoa viu. Ela vinha nadando em sua diregao e, por momentos, 0 sol, que se filtrava entre as folhas das drvores proximas, desenhava de luz sua pele morena. O cabelo curto e muito crespo se apertava ao redor de sua testa e dos lados do rosto. Os olhos eram de gazela, amendoados € escuros. Derepente, ela submergiu na 4gua como um peixe e na mesma hora emergiu muito perto dele, se agitando e rindo. cachorro velho 41 Somente nesse instante Cachorro Velho no- tou que a moga estava completamente nua. Desconcertado, enredou-se entre os ca- brestos dos animais e caiu ao comprido no tio. Quando conseguiu se levantar, estava encharcado dos pés a cabega e ela ria sem parar. Era a jovem mais bonita que ele vira em sua vida. Poderia ficar contemplando-a para sempre. Nesse momento, ela voltou a cabega e se afastou nadando corrente abaixo. Sem pensar, ele se atirou ao rio e nadou de- senfreadamente. Mas a moga j4 estava longe demais. Um momento antes de sumir na curva, po- rém, levantou uma mao, dizendo-Ihe adeus. — Como é 0 seu nome? — esgoelou-se Ca- chorro Velho, quase sem forgas. Ela sorriu de novo e lhe gritou: — Asuncidn! Eu me chamo Asuncién! — E sua silhueta desapareceu entre as sombras. 42 teresa cdrdenas Ele ficou boiando, sem saber se voltava A margem ou se continuava atras da moga. Finalmente, saiu. Sentado numa Pedra, co- megou a chorar sem saber por qué, Desde aquele dia, procurava ir sempre ao tio. Para lavar cavalos, pescar, pegar tarta- ruguinhas de agua doce para a fonte que a senhora mantinha no jardim; para fazer qual- quer coisa, enfim, na esperanga de reencon- tar Asunci6n. Foi inttil, ela nao apareceu mais, A fuga Cinquenta anos depois, e ainda pensando em Asunci6n, Cachorro Velho se apoiou na paliga- dae olhou na diregao do rio. De repente, uma lufada o golpeou na cabega e levou o chapéu para além da cancela. Praguejando, 0 velho empurrou 0 postigo de troncos e saiu para 0 caminho. Entardecia. A luz do sol dourava as folhas das rvores. Cachorro Velho comegou a caminhar pe- nosamente. A perna lhe dofa. Vinha sentin- do aquela dor havia dias. Beira lhe preparara 44 teresa cardenas varios cataplasmas de artem{sia e mastruz, mas ele, atarefado com as galinhas e os pa- tos, abrindo e fechando a cancela a cada momento, plantando taioba e quiabo atras da choga, nao tinha achado tempo para aplicd-los. Nesta noite, faria isso. Também se untaria com sebo de carneiro bem quente e depois amarraria 0 pé com uma tira de saco. Ovelho caminhava devagar, profundamente mergulhado em seus pensamentos. Precisava de uma bengala, um pedago de pau qualquer para se apoiar. Pediria a Cumbé que lhe pre- Parasse um. De majdgua ou, melhor ainda, de magaranduba. Uma vez, fazia muito tempo, Aroni lhe dis- sera que a magaranduba era a madeira mais dura ¢ resistente da floresta. Avelha Aroni contava muita coisa, muita... O porteiro recordou seu rosto e viu seus olhos cheios de névoa e seu cabelo ainda preto, ape- sar da idade. Quantos anos teria? cachorro velho 45 Os pés de Cachorro Velho entraram numa moita de losna-branca, espantando borbole- tas e mamangabas. Dentro em pouco o feitor distribuiria as rou- pas. No ano anterior, s6 coubera ao anciao um gorro de bombazina encarnada. Era um bom gorro, mas durante o dia, com o calor, esquentava demais a cabega. Certa noite, ele desfechou um golpe de facdo numa jiboia:ver- melha que havia rastejado para dentro da cho- a e, sem perceber, rasgou 0 gorro. Mas nada podia ser jogado fora. Cachorro Velho continuou a usd-lo, aberto sobre a cabega. Até que Bibijagua, a galinha de Beira, escolhera-o como ninho. O porteiro tossiu. Estava encatarrado. Lan- cou a cusparada para um lado, despreocu- padamente, e continuou andando, falando consigo mesmo. Talvez lhe dessem um paleté ou um corte de pano cru para se cobrir. Com frequéncia acordava no meio da noite tremen- do de frio. Ja estava velho, velho demais. Como 496 teresa ceirdenas Aroni, como Tumba Cerrada. Os velhos pega- vam friagem nos ossos. O porteiro recordou os dedos retorcidos e rachados de Aroni; os tre- mores de Ma Rufina, os passos vacilantes de Goyo, a bengala de Tumba. .. Quando era rapa- zinho, tinha rido deles, e agora... ficara igual- mente velho. Havia sido 4gil, forte, montava os cavalos de um salto, mergulhava até o fundo do rio... Agora era sé um ancifio pensando em coisas passadas. Uma libélula esvoagou pelo seu rosto. Ca- chorro Velho afugentou-a com uma mao, Manquejou mais trés ou quatro passos e, es- pantado, parou de chofre. Ja nao estava no caminho poeirento. De um lado viu umas doze arvores grandes, de som- bras frondosas. De outro, os cipés-de-cabaca se enredavam silvestres, apoderando-se da terra. Por toda parte floresciam a maravilha, a prodi- giosa e a esponjinha. Havia siléncio, Nao se es- cutavam os latidos dos caes nem os relinchos dos cavalos da fazenda. cachorro velho 47 Onde estava? De repente, alguma coisa se mexeu na folhagem. Assustado, virou-se a tempo de perceber a cabega inquieta de uma cutia. O animal o encarou por alguns instantes e em seguida desapareceu. Um estremecimento 0 sacudiu da cabega aos pés. Nao entendia 0 que havia acontecido. Girou devagarinho sobre os calcanhares. Seu coragao deu um salto. O chapéu continua- va jogado no caminho, mas cem metros atras. Ele o tinha ultrapassado sem se dar conta. ‘Aonde diabos estava indo? Por que se afas- tara do caminho? Para onde suas pernas de homem velho, seus pés de escravo queriam lev4-lo? Em que estava pensando? O que ia fa- zer, fugir? _ O velho sentiu a camisa se grudar as suas costas. Estava suando. Aterrorizado, comegou a correr. Sabia o que poderia lhe acontecer se 0 feitor ou o patrao o pegassem fora de seu lu- gar, longe da cancela, de seu quartinho, fora da propriedade. Ele era um escravo, e nao um 48 teresa cardenas homem que pudesse caminhar por onde lhe desse na telha. Nao era dono de seus Passos nem de seu caminho. Nem sequer lhe perten- ciam os ossos que tremiam, de noite, sobre o catre. Subiu para o caminho com esforgo, arras- tando a perna, ofegando, maldizendo sua len- tidao de velho, rezando para que nao 0 vissem. Teve a impressao de que 0 terreno se alon- gava, de propésito, para fazé-lo demorar ainda mais, para nao o deixar chegar. Para que o sur- Preendessem escapulindo, como Cumbé ha- via feito, como Coco Carabalf e muitos outros. Cachorro Velho recordou aquelas noites de Cepo, recordou o cheiro do sangue e da morte. O cheiro de seu proprio temor, Passou ao largo do chapéu, com os bragos estendidos para diante. Chegou sem félego, mais morto do que vivo, e se abragou ao tron- co rugoso da cancela, sentindo-se a salvo. Pouco depois, abriu-a com um empurrao e se langou para dentro. cachorro velho 49 Percorreu apressadamente a trilha. Jé nao sentia a perna nem o suor frio que Ihe banha- va a cara e lhe deslizava pelo pescogo. Saltava por cima dos seixos sem se deter. Jé na penumbra de sua choga, jogou-se tré- mulo no catre, chorando, envergonhado por aquele medo terrivel de se sentir livre. Fornecimento de roupas Ofeitor tocou o sino e todos se aproximaram do patio central. O sol da manha era suave e 0 ven- to trazia, quase impercepttvel, 0 cheiro enjoati- vo da moenda. Os ajudantes do feitor entregaram as mulhe- res umas batas de tecido cru, com bolsos gran- des, e lencos coloridos. Os homens receberam camisas grossas e calgas para o trabalho no campo. Os menincs ¢ as meninas também ti- veram direito a roupas e chinelos. Quando a distribuigao acabou, Cachorro Ve- lho continuava ali, sob 0 sol, com as maos va- 52 teresa cdrdenas zias dentro dos bolsos de sua calga de saco. De cabega baixa, disse: — Me desculpe, seu feitor, mas falta o meu fornecimento. O homem tocou a bota com a ponta do re- benque e olhou carrancudo para 0 anciao es- qualido. — 0 que tinha para distribuir jé foi distri- buido. Suma-se daqui pro seu canto e nao me chateie! — resfolegou o feitor, dando-lhe as costas para ir saindo, —Achei que este ano talvez sobrasse um pe- dago de... — tentou prosseguir o velho, mas, com 0 rapido golpe que recebeu, s6 se deu conta do que havia acontecido quando o san- gue ja Ihe ganhava o rosto e ele nao conseguia se mover, porque estava caido no chao, coma bota do feitor Ihe apertando 0 peito. Mochila Beira tocou a ferida e o velho gemeu. A aresta do rebenque havia aberto sua pele. Da bochecha ao queixo. O rosto, inflamado e sanguinolento, ardia. “Fique quieto!”, ordenou a mulher, enquan- to lhe passava no corte uma gororoba vegetal. Cachorro Velho se queixou de novo. 0 céu escurecia lentamente. Dali a pouco dariam o toque de siléncio. Ouviram-se passos 14 fora. Alguém bateu a porta. 34 teresa cdrdlenas Beira limpou as maos num pano e foi abrir. Ali, no umbral cheio de sombras, estavam os homens do barracao. Encabulado, Cachorro Velho virou o ros- to inchado para a parede coberta de fuligem, mas, a ténue luz da vela, j4 reconhecera José Marufina, El Negro, Carlota Palo ‘Tengue, Ma- nuelito, Cumb4, Stiyere... — Tome — disse um deles, e colocou um volume sobre a mesa. — Foi o que a gente conseguiu. — O velho agradece — interveio Beira, de- pois de contemplar os ombros trémulos do porteiro. — O que é que ele tem? — perguntou Stiyere, meio inquieto. —Nada, sé um pouco de febre. —E melhor a gente ir, ele precisa descansar — disse entaéo Cumbé, e todos se retiraram. Amulher fechou a porta com suavidade e foi até a mesa. cachorro velho 55 — Nao vai ver o que lhe trouxeram? — per- guntou, desatando o né da mochila. — Deixe isto af! —atalhou o velho com cer- ta rudeza. Depois suavizou a voz: — Amanha eu vejo. Magoada, Beira recolheu seu xale de cima de um tamborete. —Vou pro meu cafofo — respondeu, e saiu para a noite. Cachorro Velho se virou de barriga para cima no catre. Na penumbra, a trouxa Ihe pareceu um animal agachado, pronto para lhe cair em cima. Levantou-se a duras penas, sentindo a cabega grande e inflada como uma abdbora. Aproximou a vela ¢ abriu a mochila. Dentro havia uma manta desbotada e um paleté fura- do nos cotovelos. Nessa madrugada fez frio como nunca, mas o velho, embrulhado nos presentes do pessoal do barracao, quase nao o sentiu. Stiyere —Achei 0 chapéu do senhor um dia desses — disse Styere, como quem se desculpa. O velho desviou 0 olhar. Tinha vergonha de que 0 garo- to o visse assim, marcado como uma das reses do curral. —Onde?_ —Por ai. Stiyere alternava insistententemente os pés. Seu corpo, franzino e leve, se balangava de um Jado para outro. Cachorro Velho olhou os pés dele, cobertos de chagas. 5B leresa cdrdlenas —0 que foi isso? Sobressaltado, o garoto baixou a vista. — Fui preparar o banho do senhorzinho e a jarra de 4gua quente caiu. —Vocé se queimou — concluiu o velho, le- vantando-se do banco dificultosamente. Re- colheu o chapéu da mao do menino e voltou com um panelao. Sem dizer uma palavra, introduziu os pés dele no recipiente e os refrescou com agua de moringa. Tinha sempre alguma guardada para qualquer remédio. Aquele liquido era qua- se milagroso, e tanto servia para curar um fe- rimento como para tratar uma indigestiio ou afastar um mau espirito. Stiyere notou o tremor das maos do velho, mas nao disse nada. —Vai ficar bom logo, logo — disse Cachorro Velho. Depois envolveu os pés do garoto em fo- Ihas de imburana eatou-as com uma tira desaco. —Nao precisava se incomodar, velho, o mé- dico... cachorro velho 59 —Aquele l4 num é médico nem nada! Stiyere se encolheu no tamborete. O ar flu- tuava timido e leve sobre a choca. Seu voo rasante anunciava chuva. Movendo-se lenta- mente, as nuvens foram se apoderando do céu e escurecendo tudo. Ao longe, 0 horizonte co- megou a se quebrar em relampagos. Um tro- vao soou poderoso, sacudindo a terra. —O tempo nao vai abrir até de manhazinha — disse Stiyere, tirando os pés de cima dos joelhos do velho. —Espera. Cachorro Velho foi até o fundo da choga e voltou com umas graviolas meio moles. Os olhos de Stiyere brilharam. Rapidamente ele pegou as frutas e escondeu embaixo da ca- misa. Devia ter oito ou nove anos. Estava ma- grinho e desgrenhado, mas sua expressao era tranquila e terna. O patrao 0 comprara no ve- rao anterior, para dé-lo ao senhorzinho como presente de aniversario. 60 feresa cardenas Stiyere assomou a porta. Cachorro Velho ob- servava sua prépria perna inflamada. Desde que Beira nao cuidava mais dele, estava pior. Nao sabia preparar aquela gororoba que a mu- Ther confeccionava e que 0 aliviava tanto. — Pode ir— disse ao garoto. Stiyere correu pelo caminho, saltando aqui e ali, desviando-se das pedras e dos arbustos. Quase ao mesmo tempo, as primeiras gotas comegaram a cair. Arvores, plantas, flores Rodeava o engenho um denso manto verde. Tron- cos de todos os formatos, folhas de cores varia- das, flores com todos os perfumes. Cachorro Velho era amigo das arvores. A noi- te, em seu catre, gostava de escuta-las. E de ma- nha tocava suavemente os caules rugosos e cheios de seiva e orvalho, como se os saudasse. Entre as mais altas da floresta, 0 anciao co- nhecia a embatiba, que, multiplicada e sabia, vigiava aqui e ali a paligada e a cancela. Ti- nham ensinado a ele que 0 cozimento quen- te de suas folhas, derramado sobre uma cruz 62 teresa eatrdonas de mel e tomado antes de se deitar, curava 0 catarro e a friagem dos pulmdes. Abrigo das corujas-brancas e dos vagalumes, seus ramos espigados eram amigos do vento e do sussurro. ‘Também admirava os flamboyants, as maja- guas, as gameleiras e até as mutambas, drvo- res sombrias nas quais costumavam aparecer pendurados 0s escravos suicidas. Cedros, palmeiras e cajazeiras se erguiam ao longe, junto de extensas folhagens, reftigios de passaros e abelhas. Embaixo, perfumando a terra, as plantinhas e suas flores. Brilhantina, verbena, cordoba, orégano, espinafre, manjericao, hortela. Giras- sol, jasmim, rosa, alcaguz, amor-agarradinho, jambeiro-rosa. Do outro lado do rio, arvores frutiferas: man- gueiras, goiabeiras, sapotas-mamey, laranjei- ras. Frutos fragrantes, suculentos, tentadores. Alivios para a fome e a inquietacao, Os escravos utilizavam ervas com frequén- cia. Para remédio do corpo e da alma. Com a cachorro velho 63 artemfsia, acalmavam suas dores e febres. O sumo da erva-de-santa-maria servia para afu- gentar as lombrigas da barriga das criangas. Com a resina do cupaf, cicatrizavam-se as feri- das produzidas pelas chicotadas. O cozimento de cuieira e guaco fazia as mulheres aborta- rem suas crias. O néctar do cip6-una acalma- va as picadas de escorpiées e de outros bichos venenosos do campo. Com flores de agucena e dama-da-noite, Carlota esfregou a pele de uma escrava fugiti- vae de seu filhinho e despistou o faro dos caes que os perseguiam. Com folhas de abieiro, lavaram o corpo de Eulogio Malembe antes de enterrd-lo. Com uva-do-mato, enxaguavam os recém- -nascidos antes que cles fossem entregues a casa que servia de bercario. Com pau de quebra-osso, ervas bibona, ci- bianto e garcinia, algodao-da-praia, casedria, figueira-venenosa e pimenta chinesa, os ho- mens do barracao preparavam sortilégios con- 64 teresa cardenas {a a alma do senhor, contra seu corpo e sua mente, Contra o feitor e seu latego. Contra os ces e seus caninos. Contra a vida de trabalhos e infelicidade que levavam no engenho. Mas 0 pattao parecia imune a todos esses fei igos. E nem o feitor nem os caes sucumbiam. O tinico que morreu foi dom Patricio, um dos poucos brancos bondosos que Cachor- ro Velho havia conhecido. Homem rico, de- dicou sua fortuna a dar dinheiro as escravas para lhes comprar o ventre. la de um enge- nho a outro, distribuindo moedas e consolo. Muitas criangas nasceram livres gragas a sua bondade. Morreu pobre, de fome. Um dia amanheceu numa encruzilhada, com os olhos abertos, 0 coracao paralisado, os bragos enredados nos cipds-de-cabaga. O porteiro nao conseguia aceitar 0 designio erratico da vegetacao. Nao a entendia. De sua choga ele via a sumatima, impertur- bavel e solene, abrigando os barracées € os cachorro velho 65 chiqueiros, com os olhos de seu cértex enru- gado enxergando além dos canaviais. Para os escravos, aquela era uma 4rvore sa- grada, guardia das almas e dos deuses. Um lu- gar seguro para deixar oferendas e preces. Cachorro Velho nao rezava por uma vida mais longa, nao pedia permissao para pisar na sombra das sumatimas do monte, nao ansiava por aliviar sua alma com as pogées de rafzes e ervas. Sabia que as plantas nao podiam arrancar de dentro dele tanto pesar. Tampouco lhe tra- riam de volta tudo o que ja se fora. Nem as ar- vores milagrosas do campo poderiam fazer isso. Nem a terra fértil onde cresciam as se- mentes, nem sequer a majestosa sumatima pela qual, segundo alguns escravos, Deus des- cia a terra a cada noite. Nenhuma delas tinhao poder de fazé-lo recuperar o que perdera antes mesmo de nascer. O nome O pai do senhor do engenho foi quem o cha- mou assim: Cachorro Velho, e ninguém mais voltou a lembrar seu verdadeiro nome. De modo que 0 apelido nao era novo: acom- panhava-o desde que ele era muito menor do que Stiyere. A velha Aroni, guardia de todas as histérias, contou-lhe como isso havia acontecido. Ca- chorro Velho tivera dois nomes; um, dado pelo antigo vigdrio; outro, por sua mae. O do padre foi Eusebio; o dela, um nome africano do qual nem sequer Aroni se lembrava. 6B teresa cdrdenas Dias depois de seu nascimento, sua mae voltou a trabalhar no campo, cortando cana e desmatando. Quanto a ele, levaram-no para 0 quarto grande, onde trés ou quatro escravas idosas cuidavam dos recém-nascidos. 0 me- nino nao voltou a estar em seus bracos, mas, sempre que alguma mulher passava perto, ele cheirava, buscando 0 aroma perdido. O pai do senhor do engenho achou engraca- do ver o bebé farejando todo mundo. Dizia que isso Ihe recordava os sabujos quando tinham fome, ou quando corriam inquietos para o mato, perseguindo algum escravo fugitivo. Por isso dera a ele aquele apelido. O anciao apertava os olhos até sentir dor, mas nao conseguia se lembrar de absoluta- mente nada. Tentava resgatar 0 rosto e 0 odor amado do meio de tantas lembrangas que tur- vavam sua mente. Em vao. Depois de tanto tempo e sofrimento, sua velha cabega parecia querer esquecer tudo. Sombras Com um gesto rapido, o velho enfiou o chapéu até os olhos. Prendeu a porta desmantelada de sua choca com um pedago de corda gasta e saiu mancando devagar pela trilha salpicada de ma- cela-do-campo e que, apés atravessar uma co- lina suave, desembocava nos chiqueiros e no criadouro de patos e gansos. Acima do arvoredo, 0 céu aparecia violeta e tranquilo, prestes a se encher de estrelas. Cachorro Velho subiu a elevagao olhando para o solo, como se quisesse se apoiar em cada pedra ou matinho. Ao chegar ao cimo, 70 teresa cdrdenas parou. Estava exausto. Apoiou uma mao na cerca coberta de amor-agarradinho e lagai xas fugidias e esperou que passasse a falta de ar. Ultimamente, isso Ihe acontecia. Ele sen- tia os ossos se desconjuntarem sob a pele e se cansava tanto ou mais do que qualquer escra- vo que trabalhasse no campo. As vezes esque- cia recados e rostos e se perdia pelos caminhos do engenho, os mesmos que havia percorrido a vida inteira Certa noite, quando saboreava 0 invaridvel prato de hortaligas e carne-seca, adormecera com a colher na mao. Cachorro Velho nao dava muita importan- cia aqueles percalgos do corpo e da memoria. Com mais de sessenta anos, isso era comple- tamente normal. O estranho era o quanto ele sentia falta de Beira. Antes, quando nao a co- nhecia, a solidao era algo natural, cotidiano. Pertencia-Ihe como um brago ou uma perna. Mas, desde a chegada da mulher, sua roti- na havia mudado. Se passasse varios dias sem cachorro velho 71 vé-la, ele ficava agoniado. Muitas vezes tinha verdadeira saudade dela. O simples fato de permanecer ao seu lado, sem dizer uma palavra, apenas ouvindo aque- le murmurio que ela emitia quando lidava com 0 fogio, fazia-lhe bem. Um de seus olhos comegou a lacrimejar. O velho tocou a face in- flamada. O ferimento, tratado com mele seiva de securidaca, j4 comegava a fechar, mas a ar- déncia nao tinha cedido. Uma revoada de passaros se levantou de uma drvore préxima e passou chilreando so- bre sua cabeca. Lentamente, 0 anciao desceu a ladeira. No comeco da tarde havia cafdo uma chuvi- nha leve e, por isso, ele sentia a terra imida e esponjosa sob os pés. Cachorro Velho sorriu, recordando. Quando crianga, modelava recipientes e bonequinhos em barro. Tinha maos boas, quase mégicas. Até os escravos mais velhos admiravam sua habilidade. Uma vez, encarregaram-no de 72 teresa cdvdenas construir um deus guardiao para proteger de qualquer maleficio a entrada do barraciio. Para isso, Cachorro Velho foi até a margem do rio e escolheu o barro. Jé no barracio, misturou-o com alguns ramos e com fragmentos de cas- cos de tartaruguinha. Com aquela massa fez uma estatueta encurvada, de rosto enfurecido e olhos de pedra. Na testa e nas faces a figura tinha marcas profundas, e nas maos se desta- cava um arco tensionado, pronto para dispa- rar uma pequena flecha de cobre. Os velhos se horrorizaram ante a imagem. Tinham certeza de que o garoto havia mode- Jado Exu Alawana, 0 deus da desesperanga e do inforttinio, aquele que guiava os mortos a golpes de latego até o além, aquele que fazia os cdes do feitor matarem um escravo a den- tadas, aquele que enfurecia o senhor contra 0s negros do engenho. Cachorro Velho nao conhecia esse deus nem nenhum outro. Na verdade, duvidava de que existissem. Para ele, os cdes mordiam os escra- cachorro velho 73 vos porque eram adestrados para isso, e 0 senhor se enfurecia com eles pelo mesmo mo- tivo: nao poderia ama-los, sabia apenas tor- nar-Ihes a vida mais miserdvel. Era uma tolice langar a culpa daquilo sobre outros, principalmente se eram gente que vi- via no Céu e nao se mostrava. Ele tinha apenas tentado fazer a figura de um cagador de veados. Um homem da selva parecido com os que a velha Aroni descrevia em seus contos sobre a Africa. $6 isso. Mas os ancidos nao acreditaram. Nessa mesma noite destruiram a imagem e purificaram 0 barracéo com ervas e rezas es- tranhas. Depois disso, o menino Cachorro Velho nao voltou a tocar em barro. Agora, descendo devagarinho pela trilha, 0 anciado pensava em como era curioso isso de &s vezes jogar com o tempo. Quanto maior era © peso de seus anos, mais rostos e nomes do passado voltavam & sua cabega. Somente a 7A leresa cdrdenas lembranga da mae permanecia velada, cober- ta por um pano escuro e grosso. Cachorro Ve- tho nao recordava seu nome, nem a forma de Seu Tosto, nem o som de sua voz. Era africana, isso ele sabia pela velha Aroni. Mas o que sig- nificava isso, além do fato de que tinha vindo de longe? Para muitos, os escravos vindos da Africa eram um mistério. No barracao havia alguns. Falavam pouco ou nada com 0s outros, afasta- vam-se de todos. Nesse grupo eram frequentes os suicidios ou as mortes na tentativa de fu- gir para o mato. Muitos anos antes, talvez mais de vinte, Cachorro Velho fora amigo de Ulun- di, um desses. Foi Ulundi quem iniciou o fogo que destruiu 0 armazém de sacos de aguicar e no qual morreram trés escravos. Bonito e alti- vo, nao parecia escravo. Tinha olhos de ledio e nao baixava a cabeca diante de ninguém. Ha- via sido seu companheiro. Salvou-o de mor- rer afogado no rio, ajudou-o, protegeu-o como ninguém. cachorro velho 75 Quando 0 feitor pendurou 0 corpo de Ulun- di numa algarobeira para que servisse “de li¢ao”, Cachorro Velho achou que ia enlouque- cer. Durante semanas, ficou planejando como vingar a morte dele. Chorava ao ver os corvos e urubus se ali- mentarem do corpo do amigo. As aves tinham vindo de toda parte e cobriam com suas asas 0 cadaver, os galhos da algarobeira e o caminho. Antes de atravessar a trilha que levava aos canaviais, era preciso atirar pedras nos ramos para dispersa-las. Foi por aquela época que os primeiros cor- vos chegaram 4 propriedade. Nunca mais fo- ram embora. Escureciam 0 matagal com suas penas negras, invadiam as plantagdes de mi- tho, incomodavam os caminhantes com suas bicadas. Foi preciso mudar o percurso, até 0 canavial. Muitas coisas estranhas sucederam entao. No engenho houve a pior colheita; os tachos de garapa se enchiam de vermes e cobras. 76 teresa cdrclenas Apareceu um homem branco morto, jogado de brugos perto da cancela, sem um brago. Cachorro Velho nao gostava de pensar em Ulundi. Por alguma razao estranha, ao recorda- -lo, também o esquecia um pouco. Certa oca- sido lembrou-se dos joelhos do amigo, mas se esqueceu completamente de seus pés. Outra vez, 86 conseguiu evocar seu torso musculo- 80, seus enormes bracos e a cabeca erguida, enfeitada com trangas e btizios. O resto do corpo simplesmente havia desaparecido de suas recordagées. No lugar dele permanecia uma neblina densa, compacta. Uma barreira de fumaga que nem o vento conseguia tres- passar. O anciao nao queria perder nem mais um pedaco de Ulundi. Nao queria ver, em vez do amigo, um buraco de vapor ou de plumas. Por isso evitava pensar nele. As vezes seus pensa- mentos eram mais vorazes do que os passa- ros do mato e mais ardentes do que o fogo que carbonizara o barracao de aguicar. cachorto velho. 77 Sacudiu a cabeca e, com a mente pintada de cal, dobrou uma curva lamacenta. Entre as sombras da noite apareceu a choupana de Bei- ra, Havia chegado. Ja do lado de fora, ouviu o estalar da lenha no fogo. “Beira!”, chamou, encostado a porta. Um ruido surdo lhe chegou através da pare- de de madeira. O ancidio espiou discretamen- te por uma fresta. La dentro, mal havia luz. Do fundo vazio de uma cuia, um pedago de vela clareava debilmente o interior. De um lado, um enxergao coberto de trouxas e recipientes; de outro, uma mesa com magos de ervas, ta- los, algumas frutas e colheres rtisticas. De repente, uma sombra atravessou voan- do 0 cubiculo. Assustado, 0 velho se afastou da fresta, com 0 coracao lhe saltando no peito. Tré- mulo, com as pernas se negando a sustenté-lo, virou-se para 0 caminho. A noite, alheia ao medo dele, continuava a se derramar impassfvel e cheia de estrelas so- 78 teresa cardenas bre as 4rvores e a terra umedecida. A sombra ja nao estava la. Somente seu cheiro permanecia ao redor de Cachorro Velho: em tudo ele fare- java Beira, Aisa — Deve ter sido Bibijagua, essa galinha voa mais do que pombo-correio. Beira estava diante do velho, com as maos na cintura € 0 feixe de lenha perto de seus pés descalgos. —Esta tarde—respondeu ele, olhando para ocaminho. —Fique, e eu lhe faco um café. ; Sem esperar resposta, a mulher se apoiou na porta da choupana e deu-lhe um tranco. Jé 14 dentro, empurrou um tamborete para o porteiro: —Sente-se. 80 teresa cardenas O velho hesitou antes de entrar. Do umbral, examinou cada canto com olhar inquieto. Sen- tia uma presenga estranha no cubiculo. —Tem alguém aqui— disse. Beira comecou a rir, e depois foi avivar o fogo com seus dedos suaves. Cachorro Velho nunca a vira sortir, de modo que lhe pareceu estar diante de outra mulher. Bem diferente, cheia de segredos e sombras que voam e desaparecem. Ele achou que os homens do barracao talvez estivessem certos e Beira fosse uma criatura diabélica. Nesse momento, a mulher soprava as achas empilhadas. O fogo comegou a ar- der e 0 rosto de Beira se tingiu de um refle- xo dourado. O cabelo, preso em trangas finas © apertadas, tornava seu rosto mais delgado e mais jovem. Ela era bonita, muito bonita. Cachorro Velho olhou seus ombros cobertos de cicatrizes, — Beira, quantas vezes vocé foi agoitada? — perguntou. cachorro velho 81 Ela parou de soprar os carv6es e 0 encarou sombriamente. — Para que 0 senhor quer saber? — No é nada, eu so queria... Essas cicatri- zes... —murmurou 0 porteiro. De repente, ouviu-se um barulho num can- to do quartinho, atras de uns trastes empilha- dos. Beira se afastou rapidamente do fogiio e se aproximou da porta. Segurou o velho por um brago, puxou-o mais para dentro e depois foi espiar a noite. —Nao tem ninguém— disse. Fechou a por- tae travou-a com um galho robusto. — O que estdé acontecendo? — pergun- touele. Sem responder, a mulher colocou um ante- paro de couro endurecido diante da claridade do lume. Depois vistoriou as frestas da pare- de, cobrindo-as com trapos e grumos de terra. Deslocou 0 catre, os trastes e as cestas vazias que se amontoavam desordenadamente. 82 teresa cdrdlenas Cachorto Velho nao entendia nada. Via Bei- ra passar ao seu lado, agitada e com pressa, sumindo e reaparecendo na penumbra da choupana, e seu instinto lhe dizia que algo grave estava prestes a acontecer. Finalmente, a mulher se virou para ele. Ti- nha os olhos timidos e seu ldbio inferior tre- mia as vezes. —A menina fugiu e veio me procurar. Estou escondendo ela, Cachorro Velho quase perdeu o equilfbrio: —Quem? —Amenina—repetiu Beira, olhando parao canto onde estavam as cestas. Uma garotinha de rosto abatido e coberta de fuligem saiu de sob as trouxas de roupa. Devia ter entre dez e doze anos. Sua pele era clara e os cabelos, curtos e revoltos como ninhos de pas- saros, tinham farelos de milho e folhas de arvore. Assim como Beira, estava descalca. Vestia uma bata que lhe ficava grande demais e fitava 0 porteiro com olhos assustados. cachorro velho 83 — Chegue mais perto. Deixe o taita ver vocé — disse Beira, estendendo-lhe a mao. De um salto, a menina se escondeu atras da mulher, apertando-se contra ela como um animalzi- nho indefeso. Cachorro Velho baixou a cabega, suspirando. —0 que ela esté fazendo aqui? —perguntou. Beira 0 encarou por um instante. —Fugiu do engenho La Merced ¢ eu... Ficou maluca? — interrompeu-a 0 an- ciéo. —Vocé sabe muito bem que a gente nao pode esconder escravos fugitivos. Ela tem que sair daqui agora mesmo! O porteiro coxeou até o fundo do cubfculo, onde ficava 0 esconderijo da menina. Havia um buraco no solo. Espalhadas ao re- dor, estavarh as cestas utilizadas na cozinha da casa-grande para armazenar frutas e hortali- ¢as, pedacos de cordas desfiadas, ramos gran- des de algarobeira, trapos e caldeirdes sujos. —Ela tem que ir embora! — repetiu Cachor- to Velho, balangando a cabega. — Aqui vai ser descoberta logo. 84 teresa cardenas — Ela fica! —exclamou a mulher. O anciao sacudiu os bragos no ar. — Beira, ela nao pode ficar, vocé vai pagar isso com a vida! O engenho La Merced fica perto demais. Amanha os cachorros jé estarao aqui. A garota comecou a chorar. Beira abracou- -ae depois lhe acariciou 0 cabelo desajeitada- mente. —£s6 uma menina — disse. —Eumaescrava! Tem dono! —quase gritou o velho. Entao, de um sé golpe, a mulher rasgou 0 vestido da garotinha e mostrou a ele as cos- tas dela. Incontaveis feridas meio cicatrizadas atravessavam os ombros frdgeis e as costelas. A carne estava manchada de vergées escuros e de um lado, quase sobre a omoplata direita, havia uma marca feita a ferro em brasa. —Veja! — exclamou Beira, exaltada. Cachorro Velho baixou a vista. Devagari- nho, aproximou-se da menininha que chorava cachorro velho 85 e tremia. Cobriu-a com os farrapos da bata e, com ternura, tocou-lhe a face timida. —Como 6 0 seu nome? — perguntou. —Afsa—respondeu ela, tfmida. —Vocé tem mae? — Ela nao tem ninguém — interveio Beira, tirando outro vestido de uma trouxa de roupa. —Tenho, sim! —afirmou Aisa, e seus olhos cintilaram. — Meu pai fugiu pro mato e o pa- trao nao conseguiu agarrar ele. Meu pai ¢ livre! Ante a stibita mudanga de Afsa, Cachor- ro Velho achou que ela nao era tao fragil como lhe parecera a principio, quando Bei- ra a ajudara a sair de sob as cestas e dos ou- tros trastes. O corpo, fraco e sem graga, era 0 mesmo. Mas algo havia mudado dentro dela. — Eu fugi pra procurar ele — continuou a menina.— Nao tenho mais ninguém. —Esua mae? —Morreu. O neném veio ao contrario e nao conseguiram tirar ele da barriga dela. 86 teresa cdrdlenas Fez-se um longo siléncio. Cachorro Velho se deixou cair num tamborete, com a cabega en- tre as mos. Beira foi até o lume e mexeu os carvées, desalentada. —F uma pena— disse 0 anciéo. — De uma 80 vez, vocé perdeu sua mae € seu irmao. —Nao era meu irmao! — protestou Afsa. Era filho do patrao. Beira langou uma olhadela para o velho. De- pois soltou: —Vou ajudé-la a chegar a El Colibri. — O qué?! — Cachorro Velho tinha os olhos fora das érbitas. — Enlouqueceu? —Cumbé me disse... — Eu sabia! Aquele negro tem a cabeca cheia de teias de aranha! —resmungou o an- ciao. — Por isso esta sempre no bocabajo,” coma carne aberta pelas chicotadas. Além do mais, esse quilombo nao existe. Vocé vai se perder na floresta. ** Em Cuba e em Porto Rico, nome dado ao castigo no qual o es- ‘rave era mantido deitado, de brugos, para ser acoitado, (N. dal) cachorro velho 87 —Cumbé é um bom homem, “senhor por- teiro” —retrucou Beira, mordendo as palavras. —Por que isso de “senhor porteiro”? —As vezes, o senhor fala dos negros do mes- mo jeito que os patroes —alfinetou a mulher. Magoado, o anciao se levantou grunhindo. —Vou embora pro meu cafofo — rezingou. —Ja estou muito velho pra ouvir desaforos. Coxeou rapidamente até a porta e deu-lhe uns trancos, tentando abri-la. Beira se aproximou e colocou a mao no do- lorido ombro dele. — Espere um pouco, taita. Deixe comigo. A mulher manobrou habilmente. Com um golpe rapido, destravou o galho robusto que protegia a porta e abriu-a de par em par. Cachorro Velho passou junto dela com brus- quidao e saiu para o caminho escuro sem olhar para tras. —Taita! O porteiro nao se deteve. Resmungava fu- rioso, cuspindo catarro e xingamentos con- 90 teresa cardenas O céu comegava a clarear. Um galo madru- gador lancou seu canto ao mato timido e com cheiro de alvorada. Cachorro Velho apertou 0 passo. Tinha esta- do fora tempo demais. O presente do patrao Cachorro Velho subiu com esforgo a escada de pedra, sem se atrever a tocar 0 corrimao de caoba. Os degraus eram altos e dificeis para suas pernas, de modo que ele subia pouco a pouco, respirando fundo a cada um. 1A de cima, uma escrava gorda, de pele es- cura e luzidia, olhava com desdém seus chine- los cheios de lama. —Taita, tire esses sapatos! — ordenou. Cachorro Velho continuou subindo, sem lhe fazer caso, e deixando pegadas pelos degraus. 92 teresa cardenas A escada ia até a varanda invadida por ra- magens de amor-agarradinho. Eram umas trés da tarde, mas nao havia sol forte, Durante todo o dia a luz do céu tinha sido ténue, ave- ludada. O vento se deslocava sem animo nem alegria, empurrando com lentidao as nuvens € os passaros. Mesmo assim, fazia um calor intenso. O porteiro tinha a camisa grudada ao espi- nhago. A falta de ar lhe subia pelo pescoco, nublando-lhe a vista e as ideias. O senhor da casa-grande havia mandado chaméa-lo. Queria vé-lo, Ninguém lhe explicou para qué, e agora o velho se sentia nervoso, com 0s musculos tensos. Talvez jé soubes- sem na casa-grande que Beira escondia uma escrava fugitiva, pensava ele, cheio de angtis- tia. Talvez o patrao Ihe pedisse contas sobre o acontecido, Afinal, para alguma coisa servia 0 porteiro, o vigia da cancela. Nem uma alma podia entrar pelo caminho do engenho sem que seus velhos e cansados olhos a vissem. cachorro velho 93 Contudo, nesta ocasiaio, seus sentidos lhe ha- viam falhado. Uma escravazinha chorosa tinha se esgueirado propriedade adentro por algum ponto da paligada, e ele nem sequer notara. O velho apertou fortemente as mand{fbulas. JA nao era o mesmo que alguns anos antes. Durante as tardes, quando o sol explodia em vapor sobre 0 campo, nao podia evitar ador- mecer em seu tamborete, encostado ao tronco de uma embatba solitaria e frondosa. Apesar disso, & noite, ao se deitar, ele nado podia con- ciliar o sono. Fazia uns chas com a flor ver- melhissima de maracuja e com ramos de tilia, mas nao adiantava: nao conseguia descansar como queria. Para Cachorro Velho, o pior do passar dos anos nao era a velhice que secava 0 corpo e fragilizava as lembrangas. O que mais 0 incomodava era a incapaci- dade de repetir seus habitos de sempre. A dor nos ossos que o impedia de caminhar como sempre fizera, a lentidéo cambaleante de seus 94 teresa cardenas passos, a surdez que 0 atacava havia mais de cinco anos, embora ele a dissimulasse diante de todos. Chegou ao patamar da escada e ali ficou, ofegando @ sombra da trepadeira. Ainda lhe faltava percorrer a varanda inteira e ele ja sen- tia as pernas doloridas. Fazia anos que nao entrava na casa-grande. De sua choga, via as paredes brancas a distan- cia e se sentia a salvo do senhor. Implorava a qualquer coisa que existisse no céu para nado cruzar 0 caminho dele. Cachorro Velho tocou 0 peito, a perda de Ulundi continuava Ihe doendo. Talvez, se esti- vesse vivo, seu amigo saberia o que fazer para ajudar Beira e a garotinha. Ulundi era inteli- gente, sabia escrever, pensava em coisas que nao ocorriam a ninguém. Ele, nao. Era um ne- gro bronco a mais, um negro velho cujos pen- samentos estavam se tingindo de branco. Olhou para trés e viu a escrava de pele bri- lhante ajoelhada nos degraus, limpando com cachorro velho 95 um pano timido as pegadas de lama. O portei- ro sorriu. Felizmente, Beira nao se pareciacom aquela mulher, pensou. Beira jamais limparia a escada do senhor com tanta dedicacao. N&o queria delata-la, nao podia. Ele era um homem, apesar da velhice e dos achaques, apesar dos sentidos embotados, quase perdi- dos. Enquanto nao fechasse os olhos e se fosse definitivamente do mundo, caminhando pela trilha poeirenta, longe da cancela, continuaria sendo um homem. Sua mae era africana. Aroni contava que 14, na Africa, os homens defendiam suas mulhe- res com a vida. Beira nao era sua mulher, nem Aisa, sua filha, e no entanto ele sentia que as defenderia como pudesse. Mas e se o senhor da casa-grande, para obrigé-lo a falar, man- dasse lhe dar um bocabajo? F se ordenasse ao feitor que lhe tirasse a comida e a dgua, como haviam feito com Tumba Cerrada? O velho nao temia a morte. Ja estava bem acostumado com ela. Tinha visto muitos escra- 96 teresa cardenas vos morrerem. Mas nao sabia se poderia resistir aum castigo como os que 0 feitor aplicava. Quando era jovem, tinha sido castigado muitas vezes, mas, com seu dorso forte e seus mtisculos poderosos de tanto trabalhar, ha- via aguentado. Mas agora... era tudo diferen- te. Depois da primeira chicotada, seus ossos se pulverizariam sob a pele. Agora, se pudesse escolher, preferiria que seu momento de fechar os olhos fosse tranquilo, sossegado, calmo. Preferiria que nem o feitor nem os senhores da Terra ou do Céu estivessem por perto. S6 assim poderia morrer em paz. Avancou pela ampla varanda pensando em sua morte. No final, num canto onde sopravaa brisa, es- tava o senhor da casa-grande. Deitado numa rede de franjas vermelhas e brancas, parecia dormir. Cachorro Velho se deteve a uma distan- cia prudente. Cravou a vista no chao e esperou. Umas formigas entraram pelos seus chine- los. Ao longe, ronronavam as moendas do en- cachorro velho 97 genho e, de vez em quando, podia-se escutar um relincho ou 0 grito de alguém. Passaram-se alguns minutos. O porteiro mudava 0 peso do corpo de uma perna para outra. Sentia os tornozelos dormentes. Intran- quilo, fitou o rosto do senhor. Ele tinha as pdlpebras inchadas e por toda a sua cara assomavam delgadas veias azuis. A pele era quase transparente. “Este nao durava nem dois dias no barra- c4o”, murmurou 0 velho para si mesmo. O ventre do senhor subia e descia compassa- damente. As mos magras e enrugadas cafam dos dois lados da rede. O anciado esperou mais um pouquinho. De- pois se afastou devagar, rumo a escada. —Cachorro Velho...! O chamado 0 deteve de chofre. A voz do se- nhor sempre o sobressaltara. Soava a gelo, a ferro em brasa. — Sim, patrao — disse, voltando-se, de ca- bega baixa.

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