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Texto integrado dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH Amazonas

- Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César Augusto Bubolz


Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; et al (Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM;
Universidade Federal do Amazonas, 2020.

ANAIS 2020
V ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA

Organizadores
Dr. César Augusto Bubolz Queirós
Ma. Francisca Deusa Sena da Costa
Ma. Isabel Saraiva Silva
Ma. Johmara Assis dos Santos
Me. Leandro Coelho de Aguiar

Promoção
ANPUH Amazonas

Apoio
ANPUH Brasil
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas
Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas
Universidade Federal do Amazonas
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- Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César Augusto Bubolz
Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; et al (Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM;
Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Diretoria da ANPUH Amazonas - Gestão 2018-2020


Presidente: Dr. César Augusto Bubolz Queirós – UFAM
Vice-Presidente: Dr. Davi Avelino Leal – UFAM
Primeira Secretária: Dra.Eglê Betânia Portela Wanzeler – UEA
Segunda Secretária: Mestranda Kívia Mirrana de Souza Pereira – SEDUC-AM
Primeira Tesoureira: Ma. Wanderlene Freitas de Souza Barros
Segunda Tesoureira: Ma. Isabel Saraiva Silva – SEMED Manaus / SEDUC-AM

Conselho Fiscal
Ma. Francisca Deusa Sena da Costa – TRT11
Ma. Johmara Assis dos Santos – SEMED Manaus / SESI-AM
Me. Juarez da Silva Jr. – TJAM

Comitê Organizador do Evento


Dr. César Augusto Bubolz Queirós – UFAM
Dr. Davi Avelino Leal – UFAM
Ma. Francisca Deusa Sena da Costa – TRT11
Ma. Wanderlene Freitas de Souza Barros
Ma. Johmara Assis dos Santos – SEMED Manaus / SESI-AM
Ma. Isabel Saraiva Silva – SEMED Manaus / SEDUC-AM
Me. Juarez da Silva Jr. – TJAM
Mestranda Kívia Mirrana de Souza Pereira – SEDUC-AMA
Mestranda Vanessa Cristina da Silva Sampaio – SEDUC-AM
Graduanda Christine Oliveira Andrade – UFAM
Graduando Wenderson Macedo de Lima – UFAM

Comitê Técnico-Científico do Evento


Dr. César Augusto Bubolz Queirós – UFAM
Dr. Davi Avelino Leal – UFAM
Ma. Francisca Deusa Sena da Costa – TRT11
Dra. Keith Valéria de Oliveira Barbosa – UFAM
Dr. Hideraldo Lima da Costa – UFAM
Dra. Maíra Chinelatto Alves – UFAM
Dra. Edilza Joana Fontes – UFPA
Dra. Monalisa Pavonne Oliveira – UFRR
Dr. Luciano Everton Costa Teles – UEA
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- Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César Augusto Bubolz
Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; et al (Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM;
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Comissão Editorial dos Anais


Ma. Francisca Deusa Sena da Costa – TRT11 (presidente da comissão)
Ma. Isabel Saraiva Silva – SEMED Manaus / SEDUC-AM
Ma. Johmara Assis dos Santos – SEMED Manaus / SESI AM
Me. Leandro Coelho de Aguiar – UFAM

Subcomissão Editorial
Equipe das Revistas Manduarisawa e Canoa do Tempo
Davi Abreu – SEMED Manaus
Mestranda Evelyn Ramos – PPGH UFAM
Isabela Albuquerque – História UFAM
Mestranda Kívia Mirrana de Souza Pereira – SEDUC-AM
Mestranda Larissa Leite – PPGH UFAM
Graduanda Paola Rodrigues – UFAM
Graduando Wenderson Macedo de Lima – UFAM
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E56a Encontro Estadual de História (5. : 2020 : Manaus)


Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia [Anais 2020 – Livro
digital] / César Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; Isabel Saraiva Silva;
Johmara Assis dos Santos; e Leandro Coelho de Aguiar (Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM;
Universidade Federal do Amazonas, 2020.
588p. : il., color.

ISBN: 978-65-5839-004-6

Disponível em: www.am.anpuh.org

1. Anais 2020: Encontro Estadual de História – ANPUH –AM.


2. História – Ensino – Amazonas. 3. História e Trabalho. 4. História e
Direitos Sociais. 5. História e Democracia I. César Augusto Bubolz Queirós
(Org.). II. Francisca Deusa Sena da Costa (Org.). III. Isabel Saraiva Silva
(Org.). IV. Johmara Assis dos Santos (Org.). V. Leandro Coelho de
Aguiar (Org.). VI. Universidade Federal do Amazonas. Programa de Pós-
Graduação em História. VII. Anpuh Amazonas.

CDU 94(811.3)

Observações:
a) Todas as questões tratadas e abordadas nos textos que integram esta publicação são de
exclusiva responsabilidade dos respectivos autores.
b) Como critério de organização dos textos, foi utilizada a ordem alfabética dos autores.
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SUMÁRIO

PREFÁCIO ……………………………………………………………………………………….……………………….………….. P. 10

APRESENTAÇÃO ……………………………………………………………………………………….……………………....…... P. 13

TEXTOS COMPLETOS

ADRIANA BRITO BARATA CABRAL


EDUCANDÁRIO GUSTAVO CAPANEMA: O COMBATE À LEPRA EM MANAUS DE 1942 A 1979 …....……….…..………. P. 15

ADRIANA CHRISTINY CAVALCANTE DE MACÊDO


NOTAS SOBRE A PESQUISA E A PRESERVAÇÃO DO ACERVO DO FOTÓGRAFO E CINEASTA SILVINO SANTOS
GUARDADO NO MUSEU AMAZÔNICO ………………………….....................................................................................................P. 24

ADRIANA NONATO BRAGA; AMANDA THAMARA DA SILVA FERREIRA


UM NOVO PRISMA DA HISTORIOGRAFIA: POVOS INDÍGENAS COMO SUJEITOS DE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA …........P. 30

ADRIANO RODRIGUES DE OLIVEIRA


A REPRESENTAÇÃO DA AMÉRICA MERIDIONAL NO MAPA-MÚNDI DE SEBASTIÃO CABOTO …………………..……..P. 39

ALEXANDRE BRUNO BARZANI SANTOS; FERNANDO VIEIRA CROSARA ÁZARA


PADRE BENTO DE ANDRADE VYEIRA: UM BLASFEMO ECLESIÁSTICO NAS MALHAS DA INCONFIDÊNCIA …….......P. 50

AMANDA THAMARA DA SILVA FERREIRA; KARINA BALIEIRO DA SILVA


O USO DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA COMO UM VIÉS DA LUTA
CONTRA O RACISMO …………………………………………….......................................................................................................P. 60

ANA CAROLINA MONTEIRO PAIVA


DOS BARRACÕES AOS CASARÕES: ORGANIZAÇÃO ESPACIAL NA CONSTRUÇÃO DA FERROVIA
MADEIRA-MAMORÉ ………………………………………………………………………………………………………………...P. 70

ANA CLÁUDIA DO CARMO CEDRAZ


PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE, DA MEMÓRIA E DA CULTURA NEGRA NAS
ESCOLAS PÚBLICAS MUNICIPAIS DE VALENTE- BA ………….……………………………………………………………....P. 77

ANGELA REBELO DA SILVA ARRUDA


LUGAR DO ÍNDIO NA HISTÓRIA: O QUE A HISTÓRIA AMBIENTAL PODE OFERECER NA HISTORICIDADE
INDÍGENA (OU O INVERSO) ……………………………………………………………………………………….……………......P. 87

BRUNO MIRANDA BRAGA


A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO ÍNDIO E O PROJETO CIVILIZADOR: CATEQUESE, CIVILIZAÇÃO E
TRABALHO NO AMAZONAS PROVINCIAL ……………………………………………………………………………..…....…...P. 95

CAIO GIULLIANO DE SOUZA PAIÃO


JOÃO GONÇALVES MONICA E O FIM DOS CASTIGOS FÍSICOS. CLASSE E COR NA UNIÃO DOS MARINHEIROS
E MOÇOS DO AMAZONAS, EM 1914 ……………………………………………………………………………………………...P. 105

CÉSAR AQUINO BEZERRA


CONSTITUIÇÃO E TRAJETÓRIAS DE ACERVOS DOCUMENTAIS NO AMAZONAS: O CASO DE CLINTON THOMAS
E A IGREJA DE CRISTO EM URUCARÁ …………………………………………………………………………………….....….P. 117

DANIELLA MUDESTO ROSA SÃO THIAGO


O CAMINHO DA TERRA:OS PATAXÓ DO SUL DA BAHIA E O “FOGO DE 51” ….…….......…………………...……….…....P. 127
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DANIELLA MUDESTO ROSA SÃO THIAGO


A REPRESENTAÇÃO DA PROCISSÃO DO FOGARÉU NA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DA BAHIA …………..…...P. 137

DAVI MONTEIRO ABREU


AÇÕES DOS GOVERNOS DE GETÚLIO VARGAS E DE ÁLVARO MAIA CONTRA O COMUNISMO
NO AMAZONAS (1935-1937) ………………………………………………………………………………………………...…..….P. 147

DHYENE VIEIRA DOS SANTOS


PARAR O BONDE, PARAR A CIDADE: ORGANIZAÇÃO, NEGOCIAÇÃO E AÇÃO DOS TRABALHADORES
DO TRÁFEGO DE BONDES NAS GREVES EM MANAUS (1899-1930) ………………………………………………...……….P. 160

ELEMIR SOARE MARTINS; EDUARDO GOMES DA SILVA FILHO


A INTRODUÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA RESERVA DE CAARAPÓ-MS:
REFLEXÕES DE UM ASPIRANTE A XAMÃ ………………………………………………………………………………..….....P. 170

EMANUEL DE ARAÚJO RABELO


OS POVOS INDÍGENAS NOS MOVIMENTOS SOCIOPOLÍTICOS DO SÉCULO XX …………………………………..……...P. 181

EVELYN MARCELE CAMPOS RAMOS


A REPRESENTAÇÃO DOS INDÍGENAS NAS FOLHAS DO JORNAL DO COMMERCIO (1904-1934) ………………..……..P. 188

FABIANA RODRIGUES BATISTA; FRANCILENE SILVA DE OLIVEIRA


RELATO DE EXPERIÊNCIA DA ATIVIDADE DE PRESERVAÇÃO E CONSERVAÇÃO: ACERVO J.G ARAÚJO ……...…..P. 196

FILIPE DE SOUSA MIRANDA


A SALVAGUARDA DA MEMÓRIA DO JUDICIÁRIO PARAENSE A PARTIR DOS DOCUMENTOS DE ARQUIVO:
UMA ANÁLISE PRELIMINAR DA PRESERVAÇÃO DOCUMENTAL NA COMARCA DE BRAGANÇA-PA ……….……….P. 207

FLÁVIO WILLIAM BRITO MATOS


A CONSTRUÇÃO DA ARENA E DO MDB NO PARÁ: SUJEITOS E DISPUTAS POLÍTICAS (1964-1970) ……….……...…..P. 217

FRANCISCO ADRIANO LEAL MACÊDO


ESGRIMA PARA DIZER UMA COISA AUSENTE: SIGNOS DE INTELECTUAIS PROJETISTAS DE BRASIL
DEPOIS DE 1920 ………………………………………………………………………………………................................................P. 227

GABRIEL CHAVES AMORIM


PROJETOS-DE-VIDA PARA POPULAÇÕES INDÍGENAS, QUILOMBOLAS E RIBEIRINHAS: AUSÊNCIAS EM
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS PARA JUVENTUDES DE CONTEXTOS ÉTNICO-RACIAIS E DE GÊNEROS ………..…….….P. 237

GEILZA DA SILVA SANTOS


DIREITOS TERRITORIAIS: O QUILOMBO E SUAS RESSEMANTIZAÇÕES EM DEBATE …………………………..………P. 246

HENRIQUE CINTRA SANTOS; ALLANA LETTÍCIA DOS SANTOS


O NEGACIONISMO SOBRE A MEMÓRIA DA VIOLÊNCIA DA DITADURA MILITAR: A NECESSIDADE DE
RESGATAR OS CORPOS DISSIDENTES ……………………………………………………………………………….….….…...P. 256

HIDERALDO LIMA DA COSTA


O ENSINO DE HISTÓRIA E O REFERENCIAL CURRICULAR AMAZONENSE, ENSINO FUNDAMENTAL,
ANOS FINAIS. ANÁLISE PRELIMINAR ………………………………………………………………………………..…..……...P. 266

IVANELISON MELO DE SOUZA


ESTUDO DA ESCRAVIDÃO INDÍGENA NOS REGISTROS DE BATISMO DA CÚRIA METROPOLITANA
DE MANAUS DO SÉCULO XIX ………………………………………………………………………………………………..…...P. 276

JAIRO FERNANDES DA SILVA JÚNIOR


O DIÁRIO DE ANNE FRANK E O ENSINO DE HISTÓRIA DA SHOAH: PERSPECTIVAS DOS DIREITOS HUMANOS
PARA O TEMPO PRESENTE ….………………………………………………………………………….…………………..……..P. 286
Texto integrado dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH Amazonas
- Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César Augusto Bubolz
Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; et al (Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM;
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JANAÍNA ARTIAGO
TRABALHO DOMÉSTICO DE MENINAS: CIRCULAÇÃO DAS “CRIAS DE FAMÍLIA” EM MANAUS (1970) …………..…P. 295

JESSICA DAYSE MATOS GOMES; RENILDA APARECIDA COSTA


AFRO-PARINTINS: NOTAS SOBRE O BOI-BUMBÁ E A CULTURA NEGRA EM TUPINAMBARANA ……….……….…...P. 304

JOÃO DAVIDSON MACIEL BARROSO; PAULO DE OLIVEIRA NASCIMENTO


EM BUSCA DE MEMÓRIAS SANTAS: FONTES HISTÓRICAS PARA O ESTUDO DA RELIGIOSIDADE POPULAR
NO INTERIOR DO AMAZONAS ………………………………………....……………………………….………………..…....…..P. 314

JOSÉ LUIZ PEREIRA DE MORAIS; E BÁRBARA HARIANNA BRITO DE CABRAL


MOVIMENTOS DE AFIRMAÇÃO SOCIOCULTURAL E DECOLONIALIDADE: EXPRESSÕES DE RESISTÊNCIA AO
IMPERIALISMO EUROPEU NA JAMAICA …………………………………………………………………………………....…...P. 324

KÍVIA MIRRANA DE SOUZA PEREIRA


O IDEAL CLUBE: UM ESPAÇO DE DISTINÇÃO, SOCIABILIDADES E ASSOCIATIVISMO DAS ELITES EM
MANAUS (1903-1920) ……………………………………………………………………………………….……………..…….…..P. 335

LARISSA LEITE COLARES


CRISE E REPERCUSSÃO DO SUICÍDIO DE VARGAS NO JORNAL DO COMÉRCIO E A CRÍTICA ………………..….……P. 346

LEONARDO AUGUSTO RAMOS SILVA


“PAPÉIS APAIXONADOS E ODIOSOS”: “CLAMORES” E CONTENDAS ENTRE MORADORES E JESUÍTAS EM
TORNO DO TRABALHO INDÍGENA NA CAPITANIA DO CAETÉ (SÉCS. XVII E XVIII) ………………………..……….….P. 356

LEONARDO BENTES RODRIGUES


A UTOPIA DE LUTAR: O MOVIMENTO ESTUDANTIL E A REPRESSÃO MILITAR NO AMAZONAS (1964-1985) ..……..P. 368

LUIZ PAULO DA SILVA SOARES


A MÍDIA CINEMÁTICA NO ENSINO DE HISTÓRIA: PERSPECTIVAS DOCENTES SOBRE ESTE PRODUTO
CULTURAL ……………………………………………………………………………………….…………………………...……...P. 380

MAIARA ANDRADE PAES


“JURUTI VELHO ERA TERRA DA FARTURA, MUITO PEIXE, MUITA CAÇA, EU AINDA VI MUITA FARTURA
AQUI NESSE RIO”: IMPACTOS DA IMPLANTAÇÃO DA MINERADORA ALCOA EM JURUTI VELHO ……………..…....P. 388

MARCELO PASSOS DA COSTA JUNIOR


RESULTADOS PARCIAIS SOBRE “PATRIMÔNIO DOCUMENTAL” NAS “MENSAGENS DOS GOVERNADORES
À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO AMAZONAS” ENTRE 1889 E 1937 …………………………………………………..…..P. 396

MARIA IZETH BRAGA BELTRÃO


INTERAÇÕES SOCIAIS NA FRONTEIRA DAS TERRAS DO CABO NORTE COM A GUIANA FRANCESA NO
PERÍODO DA CABANAGEM …….………………………………………………………………………………….………..……..P. 405

MÔNICA XAVIER DE MEDEIROS


“O PRINCIPAL OBJETIVO ERA FAZER COM QUE O PEIXE NÃO FALTASSE NA MESA DAS FAMÍLIAS DAS
COMUNIDADES”: AS LUTAS EM DEFESA DOS LAGOS EM PARINTINS/AM ………………………………………….…....P. 417

RAFAEL NASCIMENTO GOMES


O ESTADO NOVO VISTO POR UM PAÍS VIZINHO: A PERSPECTIVA URUGUAIA DA DITADURA VARGUISTA
(1937-1945)..……………………………………………………………………………………….……………………………...…....P. 427

RODRIGO TAVARES DE SOUZA


A CIDADE COMO TEXTO: PATRIMÔNIO EDIFICADO, HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA CIDADE DE PARINTINS (AM) ...P. 439

SAMUEL ROCHA FERREIRA


TRABALHO COMPULSÓRIO E RESISTÊNCIA INDÍGENA NA PROVÍNCIA DO PARÁ (1821-1831)...………….…………...P. 453
Texto integrado dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH Amazonas
- Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César Augusto Bubolz
Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; et al (Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM;
Universidade Federal do Amazonas, 2020.

SARAH DOS SANTOS ARAUJO


MESTRE DE CAMPO PERANTE O INQUISIDOR – VÁRIAS DENÚNCIAS E UMA VOZ PERDIDA NOS
DOCUMENTOS DA INQUISIÇÃO ..…………………………………………………………………….…………………….……..P. 464

SHIRLEY PEREIRA CARDOSO


A EMERGÊNCIA DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE MANAUS E A FILANTROPIA NA PROVÍNCIA DO
AMAZONAS (1860-1880) ……………………………………………………………………………………….…………..………..P. 473

SIDNEY BARATA DE AGUIAR; AIDA VASCONCELOS DO NASCIMENTO


TRANSAMAZÔNICA E IRACEMA: UM CONTRASTE NA ESTRADA DA DITADURA MILITAR BRASILEIRA
(1964-1985) ……………………………………………………………………………………….…………………………..……....P. 483

STEPHANIE LOPES DO VALE


ASCENSÕES E CARREIRAS DE BACHARÉIS NA JUSTIÇA RÉGIA: OUVIDORES GERAIS DA COMARCA DO PARÁ
POMBALINO ……………………………………………………………………………………….………………..…………….....P. 492

TALYTA MARJORIE LIRA SOUSA NEPOMUCENO


AS CAUSAS MORTIS E AS DOENÇAS DOS ESCRAVIZADOS E LIBERTOS NA CIDADE DE TERESINA NA SEGUNDA METADE
DO SÉCULO XIX……………………………………………………………………………………….………...…....…....................P. 503

TATIANE BARTMANN
ENTRE ASSÉDIOS E PERSEGUIÇÕES: AS RESCISÕES DE CONTRATO DAS/OS TRABALHADORAS/ES NA
1ª JCJ DE PORTO ALEGRE (1941-1945) …….…………………………………………………….……………………………..….P. 514

THIAGO DA SILVA PINTO


DA VILA DE GUIMARÃES A SÃO PAULO: ACLAMAR É LEGITIMAR
……………………………………………………………………………………….…………………………,,,,,,,,,,………………..P. 524

TÚLIO HENRIQUE PINHEIRO; ÉRICA PINTO DE MORAES


AS TRABALHADORAS RURAIS DO VALE DO JEQUITINHONHA: HISTÓRIAS CONTADAS POR ELAS …………..…….P. 535

VANESSA CRISTINA DA SILVA SAMPAIO


MUNDOS DO TRABALHO E IMPRENSA: DENÚNCIAS E DEMANDAS DOS TRABALHADORES DO DISTRITO
INDUSTRIAL DE MANAUS NA DÉCADA DE 1980 ……………………………………………………………………...……….P. 546

VITOR MATEUS DANIEL DA COSTA; PATRÍCIA CARVALHO ROSA


ALDEIAS NA CIDADE? HISTÓRIAS E TERRITORIALIDADES INDÍGENAS EM TEFÉ ………………………………...……P. 558

VITÓRIA MASCARENHAS DE JESUS


EXPANSÃO COLONIAL PARA O BAIXO AMAZONAS: ATUAÇÃO DA FAMÍLIA MOTA (1684-1740) ………………..…..P. 568

WANDERLENE DE FREITAS SOUZA BARROS


MANAUS EM SUA METAMORFOSE DA MODERNIDADE E SEUS EFEITOS: DÉCADA DE 1930 ………………………….P. 578
Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

PREFÁCIO
Um Encontro Estadual em tempos de pandemia
A História é feita cotidianamente. Em meio a pequenos detalhes, a experiência cotidiana
vai se desenrolando, a vida vai sendo construída e as vivências vão se constituindo como
elementos formadores da cultura e servindo de base para o trabalho dos historiadores. Sempre
é bom lembrarmos da metáfora de Marc Bloch, quando afirmava que “o historiador é como o
ogro da lenda. Onde fareja carne humana sabe que ali está a sua caça”. Neste sentido, a história
é lentamente construída por homens e mulheres que bravamente vão construindo estratégias de
sobrevivência e perambulam pelas ruas das grandes cidades, pelas plantações, florestas e rios.
São operários, donas de casa, carvoeiros, seringueiros, comerciantes, professores, cozinheiros,
motoristas, enfim, mulheres e homens comuns que silenciosa e corajosamente teimam em
sobreviver.
No entanto, de tempos em tempos costumam acontecer momentos que, por sua
grandiosidade e repercussões, tomam de assalto a História e se impõem de forma incontornável.
Este é o caso da pandemia do COVID19, que afetou de forma trágica e brusca o mundo inteiro,
com um impacto muito mais significativo entre os mais pobres, os mais frágeis, os mais
vulneráveis. Inevitavelmente, o ano de 2020 vai ficar conhecido no futuro como o “ano da
pandemia” – da mesma forma que a ‘peste negra’ é um elemento fundamental para a
compreensão da crise do século XIV e a ‘gripe espanhola’ permanece bastante nítida em nossa
memória, o Coronavírus marcará indelevelmente a nossa História e pode trazer consequências
bastantes profundas em nossa organização social. No momento em que escrevo, já ocorreram
no Brasil mais de 136 mil mortes. Globalmente, até o momento, são 957.633 mortes pelo
COVID19. Sozinho, o Brasil já contabiliza 14,2% de todas as mortes por Coronavírus ocorridas
neste ano. No estado do Amazonas, já estamos em quase 4 mil mortos e com a chegada de uma
segunda onda do vírus. Se, por um lado, está sendo possível verificar uma rede de solidariedade
com o próximo através da organização de coletas de alimentos e de redes de apoio, por outro,
observamos uma acentuação do individualismo e do relativismo. Solidariedade ou
individualismo? Qual caminho tomaremos?
Neste cenário de pandemia e de descaso, a Associação Nacional de História – seção
Amazonas vinha trabalhando desde 2018 no planejamento do V Encontro Estadual de História.

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Diante das sucessivas ameaças às instituições e à democracia e dos constantes ataques aos
direitos sociais e trabalhistas que vêm sistematicamente ocorrendo desde o golpe de 2016 e se
intensificado a partir de 2018, a diretoria da ANPUH-AM propôs que o evento estadual de
2020 tivesse como tema “Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia”.
Em assembleia realizada no final de 2018 com os associados, a proposta foi aprovada por
unanimidade. De lá para cá, o que temos visto é a intensificação de pautas que precarizam a
situação da classe trabalhadora, fragilizam o Estado e as instituições e legitimam o avanço
predatório sobre o meio ambiente. Realmente, estão “passando a boiada”!
Com o tema definido e aprovado em assembleia, chegamos à conclusão de que
deveríamos realizar o V Encontro Estadual de História no período das férias dos estudantes e
definimos o período entre 28 e 31 de julho. O ano de 2019 foi de intensa preparação para a
realização do evento. A diretoria contou com a ajuda de diversos colaboradores que pensaram
os mínimos detalhes para a realização de um grande evento. No entanto, na fase final das
inscrições para proposição de Simpósios Temáticos e Minicursos, fomos surpreendidos – como
de resto, todos – pela pandemia do COVID 19 e tivemos que discutir internamente qual seria
a melhor solução. Assim, com este cenário triste e preocupante, no dia 21 de março, a diretoria
estadual suspendeu a realização do V Encontro Estadual de História da ANPUH-AM. Foi uma
difícil decisão pois, naquele momento, ninguém imaginava o tempo que levaria para que
pudéssemos superar aquela situação. Naquele momento, imaginávamos poder realizar o evento
de forma presencial em uma outra data, assim que fosse possível superar o vírus.
Com o prolongamento da pandemia, no dia 18 de maio de 2020, a diretoria da ANPUH-
AM se reuniu novamente e decidiu que, se por um lado, seria impossível a realização do evento
de forma presencial no ano de 2020, em virtude dos riscos de transmissão, por outro lado, a
realização do evento era fundamental para a consolidação da associação no estado e para a
dinamização do debate científico e acadêmico. Em um momento como este, de crise não apenas
epidemiológica mas humanitária, a reflexão crítica sistematizada e o debate científico se fazem
urgentes e essenciais. Ademais, os encontros realizados pelas seções estaduais da ANPUH já
fazem parte do calendário acadêmico da área de História e sua realização já é uma tradição.
Assim, a diretoria estadual buscou viabilizar a realização de nosso tradicional evento tendo
como premissa básica a necessidade de garantir a saúde e o bem estar de todo(a)s e impedir a

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

transmissão do vírus, deliberando pela realização do V Encontro Estadual de História de forma


remota, entre os dias 20 e 23 de outubro de 2020.
Para isso, tivemos que nos familiarizar com as novas ferramentas tecnológicas e realizar
diversos testes para ver quais delas eram mais adequadas às nossas necessidades. Como os
projetos enviados às agências de fomento foram aprovados no mérito, mas ficaram fora da
margem orçamentária, não pudemos contar com o apoio de empresas especializadas na
realização deste tipo de evento (como algumas outras associações estaduais puderam fazer).
Chegamos a fazer alguns orçamentos, mas todos estavam fora de nossas possibilidades.
Tivemos que realizar o evento com criatividade, esforço coletivo e com os parcos recursos de
que dispúnhamos. Em virtude da crise, optamos por isentar os associados da ANPUH da taxa
de inscrição nos simpósios temáticos. Todos os Simpósios Temáticos e Minicursos aprovados
na primeira etapa de inscrição tiveram sua realização garantida. Foram dezesseis simpósios
temáticos, com 140 trabalhos inscritos, quatro minicursos, três conferências e duas mesas-
redondas.
Para a organização dos anais do evento, a diretoria definiu uma comissão formada por
Francisca Deusa Sena da Costa, Leandro Aguiar, Johmara Assis, Isabel Saraiva e César
Augusto Queirós. Os anais do V Encontro Estadual de História da ANPUH-AM refletem este
momento de desafio e de angústia e trazem a rica discussão feita nos simpósios temáticos,
realizados virtualmente, mas disponibilizados em nossas redes sociais (FaceBook,
YouTube,...). Mesmo que os abraços não tenham sido possíveis, não faltou carinho,
colaboração e compreensão. Até a pandemia, nossas reuniões eram sempre marcadas por um
churrasco e por momentos de trocas. Isso não foi mais possível. Mas fazemos votos de que
logo será.
Foi um imenso desafio. Em alguns momentos foi sofrido. Perdemos muito(a)s amigos
e colegas. Muitas pessoas estão passando por muitas dificuldades e têm sua subsistência
ameaçada. Nunca tivemos tantos desempregados ou pessoas vivendo em condição de
subemprego. Ainda levaremos tempo para nos recuperar e mais ainda para entender as
consequências do ano da pandemia. Juntos somos mais fortes.

César Augusto Bubolz Queirós


Presidente da ANPUH-AM (2018-2020)

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

APRESENTAÇÃO

Teletrabalho, videoconferências (ocupando diariamente a rotina laboral dos


trabalhadores, inclusive em horários antes destinados a outros afazeres), Google Meet, Zoom,
live, webinar... são palavras que expressam “o novo normal”, as mudanças nas relações sociais
e com o território intensificadas pela pandemia do novo Coronavírus (COVID-19). O ano de
2020 já se impôs como marco referencial de análise para as diversas áreas do conhecimento,
sob vários aspectos. No Brasil, para além de toda a tensão trazida por e de quem se espera a
garantia de estabilidade e segurança institucional em situações de crises, expôs-se a
perversidade das desigualdades sociais e econômicas e a naturalidade com que as elites e
classes médias enxergam a classe trabalhadora de forma desumana.
A ANPUH Amazonas definiu o tema do V Encontro Regional de História – Trabalho,
direitos sociais e democracia no Brasil e na Amazônia – ainda em 2018 e em 2019 manteve,
mesmo durante a quarentena, todas as etapas do cronograma do evento até a decisão de
suspensão temporária. Com o prolongamento da pandemia, optou-se pelo formato remoto,
único meio viável para preservar os participantes e garantir o debate. A leitura dos artigos que
compõem os presentes Anais demonstram o acerto da decisão. A mobilidade de território
viabilizada por eventos online (malgrado as penúrias impostas por instabilidades de sinal da
internet e os altos índices de exclusão digital) extrapola as fronteiras regionais promovendo
uma interlocução expandida pela participação de pesquisadores de quase todas as regiões do
país, que viabiliza comparativos enriquecedores do debate.
A presente publicação configura meio de democratização do conhecimento e
interlocução dos pesquisadores com o público acadêmico, além de ampliar o acesso àqueles
que não puderam participar das videoconferências e debates. Aos leitores, será possível
acompanhar pesquisas que informam sobre a resistência do movimento indígena aos
retrocessos nos processos de demarcação de terras e demais pautas; a afirmação de identidades
– indígenas, negros, mulheres – que embasa a luta por direitos sociais garantidos pela
Constituição Federal de 1988 e referenda novas análises sobre contextos históricos de espaços
e sujeitos pouco estudados ou analisados sob nova perspectiva; a busca e exploração de novas
fontes para a História do trabalho, reveladoras de temas instigantes e novas perspectivas de

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

análise; o ensino de História, com experiências pedagógicas inovadoras e as mudanças de


normativos que renovam o permanente desafio de oferecer uma visão crítica por meio do
conhecimento histórico; o crescimento e releituras de temas afetos ao período da ditadura
militar no país e outras importantes reflexões trazidas pelos autores nos 57 artigos aqui
disponibilizados. Uma rápida consulta ao índice destes Anais dá a dimensão do quanto a
historiografia regional cresceu e diversificou suas reflexões e debates, além de expandir seus
espaços de análise para as realidades interioranas, numa clara decorrência dos investimentos
de interiorização das universidades públicas (federal e estadual).
Que a História, os historiadores e historiadoras continuem sendo meios de provocação,
em homenagem à exortação de Peter Burke quando afirma que “a função do historiador é
lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”.
Boa leitura!
Francisca Deusa Sena da Costa
Comissão Editorial

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EDUCANDÁRIO GUSTAVO CAPANEMA: O COMBATE À LEPRA EM


MANAUS DE 1942 A 1979

ADRIANA BRITO BARATA CABRAL


PUC- RS, doutoranda
adriabbarata@gmail.com
Resumo

No Brasil dos anos 1930, intensificaram-se as medidas de combate a lepra. Por isso o tripé
leprosários, dispensários e preventórios foi instituído nas regiões que apresentavam casos
confirmados de doentes, com o intuito de prevenir que a doença se disseminasse entre a
população. Os preventórios eram instituições onde as crianças sadias, retiradas dos pais doentes
de lepra, eram isoladas. Em Manaus o Educandário Gustavo Capanema foi construído em
parceria do governo estadual, união, município e iniciativa privada, composta pela Sociedade
Amazonense de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a lepra. Inaugurado oficialmente em
1942, funcionou na cidade até ser desativado, em 1979.

Palavras-chave: Manaus; Educandário; políticas

Introdução
A lepra é uma doença carregada de estigmas, principalmente pelo medo de contágio,
pois, em sua forma mais avançada, aparecem as deformidades físicas que uma pessoa
acometida pela doença pode ter. No Brasil no final dos anos 1920 e início da década de 30,
houve uma intensificação das políticas voltadas para a prevenção da doença. Essas medidas,
colocadas em prática pela Campanha contra a Lepra, estava carregada de ideais eugênicos que,
com a chegada de Getúlio Vargas ao poder como presidente da República, serão intensificados
pelo discurso de construção de uma nação forte voltada para o trabalho. Assim, essa nação não
poderia estar doente, precisava estar apta para o trabalho. É nesse contexto que Manaus está
inserida, o de colocar em prática as políticas para combater a doença.

Em Manaus, a lepra já era uma doença sobre a qual os médicos se debruçavam para
tentar dar um melhor tratamento e isolamento aos doentes já diagnosticados. Existiam na

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cidade, antes dos anos 1940, o Leprosário “Belisário Pena”, ou como ficou mais conhecido,
Leprosaria de Paricatuba, o Dispensário “Oswaldo Cruz” e pequenos locais que serviram como
preventórios, a Casa São José e o abrigo Menino Jesus, onde as crianças cujos pais eram
diagnosticados positivamente com lepra eram levadas para morar. Para melhor
aprofundamento sobre o modelo tripé dos anos 1900 a 1942, ver dissertação de mestrado em
História Adriana B. B. Cabral, “De lazareto a leprosário: políticas de combate a lepra em
Manaus (1921-1942). Chegados os anos 40, era preciso um local mais adequado para atender
as crianças sadias filhas, de pais leprosos da cidade. Impulsionados pela Campanha contra a
Lepra fora pensada a construção de um preventório para a cidade. Assim temos a gestação do
preventório para Manaus.

O que eram os preventórios? Consta no Regulamento dos Preventórios para filhos de


Lázaros instalados no Brasil uma definição para os preventórios. Estes eram instituições:

destinadas a acolher, manter, educar e instruir menores sadios, filhos e


conviventes de doentes de lepra, desde que não tenham parentes idôneos que
queiram assumir esse encargo e que disponham de recursos para educá-los e
mantê-los sob vigilância das autoridades sanitárias competentes [...].
(REGULAMENTO DOS PREVENTÓRIOS, 1943, p. 2).

Se as crianças ficassem como responsabilidade do governo eram os preventórios que


iria abrigá-las, dando as mínimas condições necessárias para seu desenvolvimento físico,
mental e educacional. Isolar nos preventórios era obrigatório desde o dia em que a criança
chegasse ao mundo. A retirada estava também incrustada nos ideais eugênicos muito evidentes
no início republicano. Segundo Maria Clementina Cunha (Apud GOMIDE, 1991: 101) “evitar
o abastardamento da raça, determinando a via pela qual se perpetua a geração de indivíduos
sãos, robustos e belos.” Esse ideal eugênico nada tinha a ver com doentes ou doença. Por isso,
ter os preventórios nos locais onde tinham doentes de lepra tornava-se importante para evitar
o contágio. Importante ressaltar que os preventórios também funcionaram como escolas, pois
deveriam levar em consideração todos os estágios da criança, incluindo a alfabetização e a
escolarização. Yara Monteiro (MONTEIRO, 1998, p. 9) também chama a atenção para o
desenvolvimento físico e religioso da criança interna.

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Educandário Gustavo Capanema 1942-1979

No Amazonas, tivemos para a construção do preventório o auxílio de mulheres que


compuseram a Sociedade Amazonense de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra.
Cito então duas presidentes da sociedade manauara: Esther Ribeiro e Isabel Soares Nogueira,
ambas presidentes da sociedade amazonense e diretoras do Educandário Gustavo Capanema.
Essas mulheres eram da elite de Manaus, seja por nascimento ou casamento, e atuavam muitas
vezes em “irmandades congregadas a Igreja Católica” (SOARES, 2014, p. 254-275) e por isso,
os valores da fé e da caridade estavam presentes em seus trabalhos.

Antes da inauguração do preventório Gustavo Capanema, havia a retirada de crianças


da tutela dos pais, ficando os mesmos na Casa São José e no Abrigo Menino Jesus, locais
mantidos pela Sociedade Amazonense de Assistência aos Lázaros e defesa contra a Lepra que
enviavam, além de mantimentos, “fazendas, roupinhas feitas, artigos escolares, sabonetes em
pastas, óleo para cabelo, guloseimas.” (Diário Oficial, 1941, p. 7). Porém, era irremediável que
tais locais não tivessem como abarcar a crescente quantidade de crianças que iam nascendo e
sendo retiradas dos pais doentes. Era preciso um local mais amplo e moderno, com uma
estrutura mais organizada para acolher as crianças. Por isso o empenho da Sociedade de
Assistência para realizar a construção do preventório.

As senhorinhas utilizavam jornais, quermesses e listas de arrecadação de donativos para


efetivar a construção do preventório. Eram favorecidas também pelo uso da divulgação de suas
práticas filantrópicas na Rádio Difusora, que anunciava os pedidos de contribuição e eventuais
prestações de conta da sociedade até os municípios mais longínquos de Manaus. Chegavam a
fazer divulgação de seus balancetes de entrada e saída de recursos pelo Diário Oficial do Estado
para demonstrar a utilização dos recursos nas manutenções de leprosários, creches, abrigos e
preventório. Dessa forma, o grupo mostrava-se coeso e não esmorecia em suas jornadas de
filantrópicas.

No relatório da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra


apresentado em 1939 por Esther Ribeiro, presidente da sociedade, percebe-se o sentimento,

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dever e cuidado para com os doentes de lepra e seus filhos, quando afirma que o trabalho deve
ser sem “distinção de nacionalidade, cor, ou crença religiosa.” (RELATÓRIO, 1940, p. 6).

O terreno para a instalação do preventório, localizado no bairro Colônia Oliveira


Machado, foi doado pelo Interventor Federal Dr. Álvaro Maia, que se mostrava prestativo com
as ações realizadas pela sociedade. Contou também com a contribuição monetária de diversos
senhores e senhoras da sociedade manauara e do Presidente Getúlio Vargas que, através do
trabalho de Eunice Weaver – presidente da Federação das Sociedades de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra desde 1935 e patrona da Sociedade Amazonense –
intermediava as doações para a construção do preventório amazonense. São palavras da própria
Eunice Weaver: “O Amazonas tem contado, já alguns anos com uma sociedade das mais fortes
e eficiente do país. [...] O preventório do Amazonas, magnificamente organizado, é uma obra
modelar por muitas razões, inclusive pela cuidadosa assistência médica e educacional dada às
crianças” (RELATÓRIO DE ATIVIDADES, 1942 A 1944, p. 12)

A partir dos relatórios, pode-se verificar o nome de vários homens e mulheres que
compõe a sociedade civil de Manaus como contribuintes regulares para a construção e
manutenção das obras da Sociedade Amazonense de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra
a Lepra. Alguns nomes de mulheres que arrecadavam dinheiro através de listas: Esther Ribeiro,
Rosa Cordeiro de Magalhães, Amazilis Cavalcante Maia, Ophelia Seixas Pereira, Isabel Soares
Nogueira, Zulmira Uchôa Bittencourt, Maria de Miranda Leão, Nathalia Uchôa, Milburges
Bezerra de Araújo. Contribuíram com mensalidades “cito apenas algumas empresas”: J.G.
Araújo, Armando Lima e Cia, Banco Nacional Ultramarino, Diário Oficial, Associações
Comerciais, Fábrica Minerva de Carvalho e Irmão, Casa 22 Paulista, J. Soares e Cia, Lojas
Maçônicas. A partir desse grupo de pessoas e empresas podemos observar que havia um
empenho em proteger os demais componentes da sociedade do perigo da doença e, ao mesmo
tempo, salvaguardar os doentes de lepra que viviam na cidade, assim como seus filhos. E a
cada ano novos doadores iam sendo adicionados à lista de contribuições da instituição.

O Educandário Gustavo Capanema foi construído com a ação conjunta entre Governo
do Estado do Amazonas, União, município e iniciativa privada da Sociedade Amazonense de
Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra. Foi inaugurado oficialmente em fevereiro de

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1942. Na dissertação de Vicente Saul Santos há uma indicação sobre o nome dado ao
educandário ser uma homenagem ao Ministro da Saúde e Educação do governo varguista,

Em fevereiro de 1940, a Sociedade Amazonense de Assistência aos Lázaros


e defesa contra a lepra comunicou a Capanema que batizaria o educandário
de Manaus com seu nome, em homenagem ao apoio que vinha dando às ações
contra a doença no estado do Amazonas. (SANTOS, 2006, s/p)

Situado na Colônia Oliveira Machado, a 5 quilômetros do centro da cidade, o


educandário, segundo a historiadora Leila Regina Scalia Gomide, chegou a abrigar 220
internos. Foi projetado para permitir seu funcionamento antes mesmo da conclusão final, pois
foi feito por partes. Segundo o “Relatório da Diretoria apresentado ao conselho deliberativo no
ano de 1940” (RELATÓRIO, 1941, p. 25), a primeira etapa física compreendia:

a administração, creche, diretoria, secretaria, lactário, gabinete médico,


gabinete dentário, sala de banhos, refeitório, copa, cozinha, e comunidades
das irmãs, passagem coberta, refeitório, copa, cozinha, dispensa e o pavilhão
da lavanderia foi concluída e entregue em 2 de agosto deste ano, em sessão
presidida pela vice-presidente em exercício, D. Isabel Soares Nogueira.

A segunda etapa composta por “refeitório, passagem coberta, duas salas de aulas,
corredor de circulação, rouparia, quarto e 2 dormitórios com os respectivos sanitários e
banheiros.”. Pelo relatório, observa-se que a cada término das etapas vai-se aos poucos
começando a utilização das dependências do preventório.

O preventório, após a inauguração oficial, contou com o serviço do médico leprologista,


Dr. Menandro Tapajós, e do pediatra Francisco Donizetti Gondim, que cuidavam e faziam
registros sobre a saúde dos internos no educandário, incluindo a indicação de consultas médicas
com outros especialistas caso o interno precisasse do auxílio médico.

No relatório de 1943, tem-se a informação que o Pavilhão de Recreio foi denominado


de “19 de abril” em homenagem ao presidente Getúlio Vargas, que faz aniversário nessa data.
Registrou também que, nas dependências do Educandário Gustavo Capanema, tem 63 crianças
internas, sendo “36 do sexo feminino e 27 do sexo masculino.” (RELATÓRIO DE
DIRETORIA, 1944, p. 12). Funciona toda a estrutura desde o berçário até a educação primária.

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Em abril de 1941, conforme o Diário Oficial, foi publicado o Regulamento dos


preventórios para filhos sadios de Lázaros instalados no Brasil, elaborado pelos médicos Dr.
Ernani Agrícola, Dr. H. C Sousa Araújo, Sr. Antônio Pereira Leal e Eunice Weaver, presidente
da Federação das Sociedades e Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra.

Constam neste regulamento as regras gerais para admissão nos Preventórios, a saber:
“os nascidos nos leprosários; os que se acharem em focos que ofereçam maior perigo de
contágio; os mais necessitados, por falta absoluta de recursos ou assistência; os de mais tenra
idade; os que não possam ser submetidos a vigilância adequada”.

Tendo esses requisitos de entrada, os menores eram inscritos no livro geral de matrícula
institucional. Havia também limites ou situações especiais para admissão no preventório como,
por exemplo, a idade máxima de homens até 15 anos e mulheres até 18 anos. Esses critérios de
entrada no preventório só poderiam ser mudados por entendimento da direção do preventório
ou motivos de ordem administrativa, desde que fossem aprovados pela autoridade sanitária
competente. Toda movimentação de entrada e saída de internos é referida nos relatórios
semestrais e anuais da Sociedade Amazonense de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a
Lepra.

Quanto aos quesitos exigidos para saída ou baixa no preventório, eram: falecimento, a
contaminação por lepra, o limite de idade, casamento, existência de parentes que pudessem
cuidar e educar a criança interna ou indisciplina grave. Essas formas da “saída” só poderiam
ser com o aval da autoridade sanitária. O limite de idade máxima para ficar no preventório era:
homens aos 18 anos e mulheres aos 21 anos.

Como afirmamos anteriormente, os preventórios, além de abrigar os filhos sadios,


também deveria dar-lhes uma educação escolar. Por isso, no próprio regulamento é tratado
quais serviços educacionais tinha dentro do preventório. Em seu artigo 20, define assim a
estrutura educativa: jardim de infância; primário (de acordo como programa oficial); escola
doméstica (em todas as suas múltiplas atividades); pequenas lavouras e trabalhos de campo;
artes e ofícios.

Caso alguma criança interna se destacasse nas letras artes ou ciência, a direção arcaria
com as despesas dos estudos para aprofundamento do conhecimento do interno. No preventório

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haveria o curso de cultura física e educação moral e cívica, para incentivar o culto à pátria e à
bandeira nacional (Art. 22). Todos os programas e horários das aulas foram previamente
apresentados à direção para o registro e devida aprovação. Após a aprovação, era colocado em
prática dentro do preventório.

Um ponto interessante que cabe aqui ser ressaltado é que no regulamento não consta a
preocupação com uma educação profissional para os internos do Educandário Gustavo
Capanema, porém aos poucos será pensada e implementada, pois era preciso dar essa formação
profissional já que o interno sairia somente com a maioridade, tanto homem quanto mulher.

No relatório da diretoria de 1954, da Sociedade Amazonense de Assistência aos Lázaros


e Defesa contra a Lepra, tem-se a informação que o educandário funcionou com “aulas de
música, datilografia, trabalhos manuais e sapataria” (RELATÓRIO, 1954, p. 8). Havia também
nas dependências do educandário um clube agrícola, onde os internos praticavam a plantação
de verduras e árvores frutíferas. As hortaliças retiradas das plantações faziam parte das
refeições servidas dentro do educandário. Ao todo, constam neste ano como internos 214
crianças e jovens.

Os trabalhos continuaram sendo desenvolvidos e o Educandário Gustavo Capanema foi


oficialmente desativado como tal em 1979, ano em que houve uma desativação em todos os
estados onde o modelo tripé foi implantado. Desde a fundação até essa data (37 anos), o
Educandário Gustavo Capanema funcionou ininterruptamente na cidade de Manaus atendendo
aos filhos sadios de pais diagnosticados com a lepra.

Conclusão

Em Manaus, houve pequenos locais de acolhimento aos filhos retirados dos pais
diagnosticados com a lepra. Assim tivemos o abrigo Menino Jesus e a Casa São José. Apesar
dessas instituições abrigarem essas crianças, não tinham sido criadas para esse fim. Por isso,
chegados os anos 1940, tem-se a gestação e a construção do Educandário Gustavo Capanema,
nome dado em homenagem ao então ministro da Educação e Saúde do Governo Vargas.
Inaugurado oficialmente em 1942, abrigou durante seu funcionamento cerca de 200 crianças.

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Sua desativação enquanto educandário fez parte da política de desativação colocada em prática
efetivamente em 1979. Posteriormente, tornou-se uma escola da rede municipal de ensino.

Essa pesquisa é apenas um breve histórico que faz parte das políticas de combate a
lepra, implementadas na cidade de Manaus dos anos 1940. E busca contribuir para as novas
pesquisas que surgem sobre a instituição preventorial no Brasil.

Referências
CABRAL, Adriana Brito Barata. De lazareto a leprosário: políticas de combate a lepra em
Manaus (1921-1942). Dissertação em História Social. Universidade Federal do Amazonas.
2010.
GOMIDE, Leila Regina Scalia. “Órfãos de pais vivos” A lepra e as instituições preventoriais
no Brasil: estigmas, preconceitos e segregação. Dissertação de mestrado. Universidade de São
Paulo, 1991.
MONTEIRO, Yara Nogueira. Violência e profilaxia: os preventórios paulistas para filhos de
portadores de hanseníase. Saúde e Sociedade, 7. 1998. P, 4. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v7n1/02.pdf
SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Entidades Filantrópicas e políticas públicas no combate
à lepra: Ministério Gustavo Capanema (1934-1945). Fiocruz, Rio de Janeiro. 2006.

Fontes
⚫ Histórico da Cooperação Privada no Combate à Lepra no Brasil. Relatório Apresentado
a S. Ex. o Sr. Dr. Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública, pela 1ª
vice-presidente e presidente em exercício, da federação das Sociedades de Assistência
aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra. Sra. América Xavier da Silveira. Julho de 1938.
Papelaria Passos. Rio de Janeiro.
⚫ Relatório apresentado ao presidente e mais membros do Conselho Deliberativo da
Sociedade Amazonense de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, pela sua
presidente D. Esther Ribeiro. Imprensa Pública. Manaus. 1940.
⚫ Sociedade Amazonense de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra. Relatório
da Diretoria apresentado ao Conselho Deliberativo. Ano de 1940. Imprensa Pública.
Manaus 1941.
⚫ Regulamento dos Preventórios para filhos de Lázaros instalados no Brasil. Ministério
da Educação e Saúde. Rio de Janeiro, 13 de março de 1943
⚫ Relatório das Atividades da Federação das Sociedades de Assistência aos lázaros
durante o período de 26.01. 1942 a 24.01.1944. Rio de Janeiro, 1944
⚫ Sociedade Amazonense de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra. Relatório
da Diretoria, apresentado ao Presidente e mais membros do Conselho Deliberativo da
Sociedade Amazonense de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, pela

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

presidente. D. Isabel Soares Nogueira. Ano de 1943. Oficina Gráfica do D. E. I. P –


Manaus – Amazonas. 1944.
⚫ Relatório da Diretoria. Sociedade Amazonense de Assistência aos Lázaros e defesa
contra a lepra. Apresentado ao Exmo. Sr. Ministro da Educação e Cultura, pela sua
presidente D. Isabel Soares Nogueira. Ano de 1954. Tipografia Reis. Manaus- Brasil
⚫ Diário Oficial. Abril de 1941.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

NOTAS SOBRE A PESQUISA E A PRESERVAÇÃO DO ACERVO DO


FOTÓGRAFO E CINEASTA SILVINO SANTOS GUARDADO NO
MUSEU AMAZÔNICO

ADRIANA CHRISTINY CAVALCANTE DE MACÊDO


Universidade Federal do Amazonas, graduanda
adrianachristiny.cavalcante@gmail.com.
Resumo

O texto traz os resultados preliminares de um projeto de pesquisa realizado no acervo


arquivístico e fotográfico do famigerado artista português Silvino Santos, reconhecido na
região da Amazônia pelos seus registros fotográficos retratando o ciclo da borracha, e
internacionalmente pela sua trajetória no meio cinematográfico e também fotográfico. É dele
alguns dos mais importantes registros visuais da Amazônia, como o filme “No Paiz das
Amazonas” (1921). O projeto leva como título “Diagnóstico do acervo histórico fotográfico do
artista Silvino Santos situado no Museu Amazônico” e foi coordenado pelo prof. Leandro
Coelho de Aguiar, realizado entre 2019 e 2020, onde atuei como bolsista voluntária na
modalidade PIBIC (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica) da UFAM
(Universidade Federal do Amazonas). O projeto realizado no acervo tem como objetivo
contribuir no acesso e na preservação física e intelectual deste patrimônio documental
amazonense cujo tem uma relevância significativa para a memória histórica local.

Palavras-chave: Acervo arquivístico; artista Silvino Santos; No Paiz das Amazonas.

Introdução

Silvino Santos foi um português radicado no Norte do Brasil, que desenvolveu seu
trabalho como fotógrafo e cineasta em Manaus, onde morreu em 1970, aos 84 anos. São dele
alguns dos mais importantes registros visuais da Amazônia, como o filme “No Paiz das
Amazonas” (1921). O acervo fotográfico em questão trata-se de um pioneiro da fotografia e do

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cinema no Brasil, que legou importantes registros da vida social e cultural da Amazônia da
primeira metade do século XX.

O projeto

O projeto teve início em 2018, constando a autora deste artigo fazendo parte de outro
programa (Programa Institucional de Bolsas de Extensão - Pibex) ofertado pela Universidade
Federal do Amazonas – UFAM. Neste momento as atividades ficaram especificamente na
realização do diagnóstico do acervo e do instrumento de pesquisa. Como resultado dessa etapa,
pôde ser observados: a desatualização do instrumento de pesquisa existente, com o não registro
de parte do acervo e falhas nas informações de sua localização física; a não organização da
documentação referente aos trâmites de doação do acervo ao Museu; além da própria falta de
segurança acerca do acervo, por exemplo, com a falta de notação por item documental, fazendo
com que não se tivesse controle acerca da quantidade real de fotos por pasta. Diante de tal
situação, achou-se por bem uma nova proposta de projeto, mas agora de pesquisa, tendo em
vista todo o trabalho de pesquisa que envolve a elaboração do instrumento. Em 2019 o projeto
continuava em andamento, agora fazendo parte de um projeto de pesquisa, ainda como bolsista
a autora deste artigo, mudando apenas o grau de bolsa, ambos passando a fazer parte do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - Pibic.

O acervo fotográfico de Silvino Santos

Parte deste acervo encontra-se hoje sob guarda do Museu Amazônico da Ufam,
adquirida pela instituição através de compra e alguns itens por doação. Com cerca de 1610
itens, formada por fotografias, negativos em vidro, filmes, equipamentos fotográficos,
documentos e objetos pessoais, recortes de jornais, revistas, livros e manuscritos.

O projeto tem objetivo de propor ações e projetos de preservação e acesso do patrimônio


documental amazonense guardado na instituição. Do ponto de vista prático, diante do tamanho
e complexidade, o projeto realizará inicialmente o levantamento e análise básica, possibilitando

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assim um diagnóstico visando identificar a situação do acervo e suas necessidades do ponto de


vista da preservação e do acesso. O produto final deste projeto possibilitará já a elaboração de
novos projetos dentro dessa perspectiva de preservação do patrimônio documental
amazonense.

O projeto tem como objetivo geral contribuir no acesso e na preservação física e


intelectual do patrimônio documental amazonense guardado no Museu Amazônico (órgão
suplementar da Ufam). Seus objetivos específicos são: analisar a situação física e intelectual
do fundo Silvino Santos, tendo em vista a criação de um diagnóstico realizado no acervo,
produzir novos projetos de ação, com base no diagnóstico, visando a preservação desse acervo
de acordo com as prioridades e disponibilidades dos envolvidos e a realização da descrição dos
fundos através da Norma Brasileira de Descrição Arquivística - Nobrade. Partindo para o ponto
de vista prático, o projeto realizou inicialmente o levantamento e análise básica do acervo,
possibilitando um diagnóstico visando identificar a situação do acervo fotográfico e suas
necessidades para posterior preservação e acesso. Com isso, o projeto foi dividido em etapas,
para que ficasse mais fácil analisar os resultados durante o andamento. Iniciando com pesquisas
in loco, no Museu Amazônico, ainda em 2018 através do Pibex.

As atividades no acervo

Já iniciando as atividades, notou-se que havia quatro pastas, onde não estavam
identificadas ou numeradas e não seguiam nenhuma ordem de guarda ou cronológica. Então,
foi estabelecido uma numeração simples para cada pasta, ficando em pasta 1, 2, 3 e 4, a fim de
facilitar nas análises e coleta de dados. Como o acervo era amplo e complexo, foi acordado
que, para melhor entendimento da documentação, seguir a ordem cronológica dos documentos.
No primeiro momento, foi identificado diversos tipos documentais, fazendo com que fosse
necessário escolhermos um tipo documental para dar início aos estudos. Sendo assim, ficou de
comum acordo que a análise iniciaria pelos documentos administrativos relacionados a
tramitação do acervo.

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Foram realizadas as primeiras anotações referentes a cada documento, sendo que as


informações coletadas foram: ano que constava no documento , tipo documental , título ou
assunto principal , remetente , destinatário e se eram documentos originais, caso contrário, se
havia mais de uma cópia de um mesmo documento.

Durante esses estudos feitos em cada pasta, percebia-se que existiam muitas cópias e
poucos documentos originais, o que logo após me foi apresentado os documentos originais que
estavam no local em um armário, conservados e armazenados em condições favoráveis.

Seguindo a proposta de montar uma ordem cronológica, fui esquematizando tal ordem
em minhas anotações, conforme os documentos que tinham em cada pasta. Com o decorrer das
análises notava-se que em apenas uma pasta, como exemplo a pasta 3, havia pelo menos 5 anos
distintos (1986, 1987, 1988, 1991 e 1992).

Em meio às atividades no acervo fotográfico de Silvino Santos entre remotas reuniões


e conversas a respeito do andamento do projeto, foi levantada a ideia da criação de uma espécie
de “ficha de descrição”, visto a necessidade de ter um conhecimento mais aprofundado da
documentação e ter isso por escrito. Juntamente com o coordenador e os demais envolvidos,
nos reunimos para a elaboração de uma ficha de descrição que pudesse atender as necessidades
do próprio acervo e também do Museu Amazônico. Elaboramos um modelo, cujo o título é
“Ficha de descrição de item”, tendo como base para criação a NOBRADE, para que fosse usada
em cada foto analisada. Na ficha, os elementos e os sub elementos que constam são:
responsável, data, página, código de referência (definimos como base o
BR.UFAM.MA.JG.SS.0000), título (original, atribuído e título), data de produção (S/D e a
descrição caso haja), dimensão e suporte (original e meio digital, havendo ainda algumas
variações dentro destes), âmbito e conteúdo (1-5), condições de acesso (original, meio digital
e restrição de acesso), estado de conservação (bom, regular e ruim), observação geral e
localização (original e meio digital).

O responsável pelo acervo no Museu nos apresentou os únicos instrumentos de pesquisa


que existiam no local, dois instrumentos criados e elaborados por um antigo funcionário do
Museu e que por coincidência era museólogo e responsável pela divisão de museologia que na
época existia, logo depois foi extinta e substituída. Estes instrumentos eram utilizados para

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

consulta quando necessário pela equipe do Museu juntamente com os pesquisadores quando
realizavam pesquisas no acervo.

O primeiro instrumento de pesquisa tinha como título “Setor de Conservação e


Restauro: Resumo indicativo do acervo”, da Universidade Federal do Amazonas - Museu
Amazônico - Divisão de Museologia, datado em 01/01/2014. Era uma espécie de catalogação
geral do que havia no acervo do Museu Amazônico, estando no meio o acervo de Silvino
Santos.

O segundo instrumento de pesquisa trazia como título “Coleção Fotográfica Silvino


Santos - Resumo Indicativo”, da Universidade Federal do Amazonas - Museu Amazônico -
Setor de Conservação e Restauro, datado em 2008. Esse instrumento era específico do acervo
de Silvino.

Conclusão

Diante do objetivo do projeto, de preservação e acesso do patrimônio documental


amazonense guardado na instituição, partindo da identificação da situação do acervo e suas
necessidades do ponto de vista da preservação e do acesso, obtivemos resultados expressivos.
A realização de um diagnóstico que possibilitou identificar problemas na organização do
acervo, dos instrumentos e da própria segurança física e intelectual do acervo, assim como na
documentação jurídica, principalmente dos termos que envolvem direitos de propriedade e
autorais do acervo. Outro resultado foi, se confirmando a sua autoria e seu ineditismo, o achado
do manuscrito inédito do romance “Minhas Histórias”, que poderá dar maior visibilidade ao
acervo e ao próprio trabalho do Museu Amazônico. Tais resultados já garantem impactos
expressivos, como a identificação dos problemas acerca do acondicionamento, preservação e
acesso. Além disso, foram propostas soluções para os problemas mais críticos, como a não
identificação de cada foto com um código serial. Assim como o início da produção dos
instrumentos de pesquisas e a possibilidade de melhorias imediatas no acesso do acervo pelo
usuário.

Devido ao tamanho do acervo, o projeto ainda não foi finalizado, mas como já citado é
possível avaliar a importância do mesmo, para a preservação física e intelectual do patrimônio

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

documental amazonense, principalmente ao garantir o acesso ao acervo tão importante para a


sociedade amazonense.

Referências

MUSEU AMAZÔNICO. O OLHAR VIAJANTE Silvino Santos. Manaus (AM): Editora da


UFAM, 1993.

MUSEU AMAZÔNICO. Catálogo da Exposição, oficina de memórias do museu amazônico.


Manaus (AM): Editora da UFAM, 1998.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

UM NOVO PRISMA DA HISTORIOGRAFIA: POVOS INDÍGENAS


COMO SUJEITOS DE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA

ADRIANA NONATO BRAGA (1), AMANDA THAMARA DA SILVA FERREIRA (2)


(1) Universidade do Estado do Amazonas, Graduanda
adriananonato2014@gmail.com
(2) Universidade do Estado do Amazonas, Graduanda
amandathamara@gmail.com

Resumo
Este trabalho tem como objetivo abordar um novo prisma de uma cosmovisão indígena como
agentes de sua própria história, sempre observando a diversidade dos povos indígenas e seu
protagonismo crescente elencado pelas pesquisas contemporâneas. O artigo aborda direitos
conquistados pelo movimento indígena e a implantação da temática indígena no currículo
educacional brasileiro, apesar de toda a luta e conquista, há ainda uma vasta carência de
conhecimento que, resultando na proliferação de estereótipos e preconceitos sobre a cultura
que assolam a sociedade, tendo como problemática a imagem do indígena como sujeito passivo
e invisível. A pesquisa é de caráter bibliográfico e observou a relevância da luta indígena pelo
seu reconhecimento como formador da história do Brasil. Para tanto se fez necessário uma
pesquisa exploratória e comparativa, com procedimentos de leituras dos seguintes referenciais
teóricos: Manoela Carneiro da Cunha, Maria Regina Celestino de Almeida, Gersem dos Santos
Luciano e José Ribamar Bessa Freire. Vindo de encontro com estas leituras, foi possível o
conhecimento para a elaboração de tal artigo.
Palavras-chave: sujeito; diversidade; (re)escrita.

Introdução
Apesar das vastas conquistas que os povos indígenas alçaram perante o seu direito na
constituição e o reconhecimento na participação na formação do Brasil, assim como a
agregação de sua cultura e história no currículo educacional o seu espaço ainda é limitado.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Assim, na atualidade a forma como estes indivíduos e sua cultura são tratados é
incoerente com a importância que os mesmos possuem na formação do Brasil. Segundo Freire
(2002, p. 2) os índios já estavam nas terras atualmente conhecidas como brasileiras desde a
colonização dos europeus, aliás, até antes disso, pouco se sabe realmente da história dos índios.
Existem traços da cultura indígena em tudo que nos cerca, desde a vestimenta até a nossa
culinária.
Há grande desconhecimento da cultura indígena por uma parcela significativa da
população e isso gera uma série de equívocos a respeito dos índios. Toda essa falta de
informação causa deturpação na figura dos indígenas perante a sociedade.
As abordagens teóricas metodológicas irão ocorrer em volta de Manuela Carneiro da
Cunha (1992) que desbrava um cenário até então desconhecido para sua época apresentando o
foco na temática indigenista, assim como Maria Regina Celestino de Almeida (2012) que irá
refletir em seu artigo o lugar do indígena na história assumindo o cerne a invisibilidade como
sujeitos de sua própria história, assim como, Gersem dos Santos Luciano (2006) que abrirá um
diálogo sobre a luta pelos direitos indígenas entrelaçados aos valores multiculturais da
autonomia trazendo consigo a sustentabilidade que rege o movimento social indígena. Por fim,
José Ribamar Bessa Freire (2000) aborda equívocos que cercam o Brasil a respeito dos povos
indígenas.
Tendo assim, como o objetivo para tal trabalho, o prisma de uma cosmovisão indigenista
como agentes de sua própria história no século XXI, abordando os povos indígenas em busca
de seu espaço.

Um novo prisma da historiografia: povos indígenas como sujeitos de sua própria História

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Os povos indígenas, assim como tudo que os cerca, foi deixado de lado durante anos por
muitos estudiosos e pesquisadores que alegavam que esse povo não tinha história, no entanto
é possível notar que um dos grandes motivos deste grupo citado acima não ter sua história
relatada com frequência é o descaso com que a cultura indígena é tratada, sendo deixada à
margem da história do Brasil quando deveria estar no centro, sendo que, “A cultura permite ao
homem não somente adaptar-se a seu meio, mas também adaptar este meio ao próprio homem,
a suas necessidades e seus projetos. Em suma, a cultura torna possível a transformação da
natureza.” (CUCHE, 1999, p. 10).
Com a aproximação da História com a Antropologia, a temática indígena vem ganhando
espaço entre os estudiosos, que criam conceitos para pensar nas relações sociais e intertribais,
pois fomenta uma produção para envolver numa sociedade complexa, dinâmica e produto de
sua própria história, a noção de cultura e etnia vem andando juntos durante esse percurso árduo,
a fim de, abrir uma nova cosmovisão e desvendar até então paradigmas e preceitos sobre os
povos indígenas que cerca a sociedade. Para Almeida o método usado perante os estudos gira
em torno de:

Abordagens interdisciplinares, as pesquisas atuais centram o foco da análise


nos próprios índios e identificam suas formas de compreensão e seus
objetivos nas várias situações de contato por eles vividas, levando em conta
os interesses e significados diversos das atuações políticas, socioeconômicas
e culturais dos vários atores em contato [...]. (ALMEIDA, 2012, p. 22-23).

Logo, as mudanças que ocorrem em uma etnia indígena ganham uma nova forma de se
ver e estabelece novas posturas perante os estudos, assim como sua identidade na qual, foi
transformada em meros coadjuvantes em sua própria história e na formação do Brasil,
invisibilizado perante os séculos, hoje elas eclodem mostrando e rompendo essa imagem
equivocada que está longe da verdade.

No Período Colonial, havia leis que reconheciam os direitos dos povos indígenas,
algumas delas eram vinculadas à terra, as Cartas Régia de 1609 e o Alvará de 1680 as
compõem, mas não eram aplicadas com êxito. Assim, durante o Período Imperial, os indígenas,
para terem direito primários pela terra, teriam que ter a comprovação étnica por causa da lei de

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Terras de 1850. Percebe-se que o interesse que se tinha pela mão-de-obra indígena tem um
novo foco: terras. No Período Republicano, na Constituição de 1934, foram respeitadas as
terras indígenas, somente o Estado tinha a autonomia para legislar sobre a integração dos
‘silvícolas’ e a sociedade nacional. Logo, as Constituições de 1937 e 1946 a mantêm, e em
1967 as terras indígenas são incorporadas, tornando-se pertencentes à União, com isso, a
preservação dos seus direitos ocorre.

A primeira mobilização nacional indígena ocorreu porque o Ministro do Interior,


Rangel Reis, alteraria o Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973) através do projeto de Lei de 1978.

Desta forma, foi no final do século XX que os índios começaram a conquistar espaços,
por meio da mobilização, dos movimentos sociais indigenistas criados por eles mesmos e pelo
apoio de organizações; uma das mais emblemáticas é a Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
criada em 1967, por conseguinte, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em 1972, e a
União das Nações Indígenas (UNI), em 1980. Desta maneira, conseguiram se emancipar como
sujeitos de sua própria história e garantir direitos na Constituição Brasileira de 1988 que
estabelece:

Art. 231. São reconhecimento aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o
Ministério Público em todos os atos do processo. (VADE MECUM, 2007, p.
69).
Apesar dos direitos conquistados arduamente, ainda tem muito a se alcançar, um dos
vieses se constitui a própria autonomia dos povos indígenas no Brasil, pois estereótipos e
preconceitos norteiam a história do país, para tal, a desconstrução da imagem eurocêntrica e
etnocêntrica colonial europeia é fundamental para se ter a inclusão social, respeitando sempre
a diversidade das etnias.

Segundo o autor Luciano Baniwa (2006, p. 87):

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

[...] os povos indígenas conquistaram a possibilidade de ter acesso às coisas,


aos conhecimentos e aos valores do mundo global, ao mesmo tempo em que
lhes é garantido o direito de continuarem vivendo segundo tradições, culturas,
valores e conhecimentos que lhes são próprios. No entanto, esses direitos
estão longe de serem respeitados e garantidos [...]

Assim, nessa desconstrução o autor reexamina a identidade indígena elaborando seus


valores e práticas que a norteiam, transpondo o limiar epistemológico do Ocidente
desvendando simulacros nos quais o ser indígena deve ter sua atenção em relação a seu
protagonismo, tendo sempre como propósito sua inclusão social, para tal o autor enfatiza:

[...] no discurso político e social contemporâneo, os avanços alcançados pelos


povos indígenas do Brasil podem ser definidos como o início de processos de
autonomia com grandes possibilidades futuras. Por suas características, a
autonomia indígena não tem semelhanças. Trata-se de uma autonomia que se
fundamenta na vontade de interagir, de participar e de não excluir
componentes culturais e políticos diversos, com potencial para resguardar e
defender direitos que atendam a todos, desde a ação de governos locais, ou a
de organizações autônomas. Com efeito, as experiências dos povos indígenas
brasileiros, visando defenderem seus direitos territoriais auto gestados, suas
culturas e conhecimentos tradicionais, mostram em seu conjunto o avanço de
uma luta própria que deve ser entendida como um esforço transformador da
sociedade. Não existe um modelo acabado de autonomia indígena pós-
colonial, porém há experiências de gestão territorial e de projetos sociais que
configuram entes de oposição ao Estado excludente que tem insistido em
ignorar os povos indígenas como herdeiros dos povos originários. Deste
modo, as características e as possibilidades de autonomia dos povos indígenas
do Brasil dependem de três conceitos e práticas políticas inseparáveis:
multiculturalidade, autonomia e sustentabilidade. (LUCIANO, 2006, p. 96).

A trajetória destes nativos, com suas lutas e conquistas, está interligada a trajetória do
povo brasileiro, segundo Cunha (1992, p. 18), a “percepção de uma política e de uma
consciência histórica em que os índios são sujeitos e não apenas vítimas, só é nova
eventualmente para nós. Para os índios, ela parece ser costumeira [...]”.

Os indígenas não são todos iguais, não falam a mesma língua, não têm as mesmas
crenças, não comem os mesmos alimentos, não têm a mesma aparência, existem tribos que
acreditam em determinados deuses, enquanto outros veneram deuses diferentes, existem
inúmeros deuses, como o deus Tupã, a deusa Jaci, o deus Guaraci, deusa Akuanduba, deus

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Sumé, deus Anhangá, deusa Ceuci, dentre vários outros. Cada povo indígena possuindo sua
própria etnia, sendo assim, segundo Santos e Palomares (2010, p. 124), “Etnia refere-se ao
âmbito cultural; um grupo étnico é uma comunidade humana definida por afinidades
linguísticas, culturais e semelhanças genéticas. Essas comunidades geralmente reclamam para
si uma estrutura social, política e um território”.

As línguas são distintas e cada língua traz consigo contos, poesias, músicas e
conhecimentos que são repassados ao longo dos anos pelos índios mais velhos aos mais jovens
através da oralidade, mantendo vivas as suas tradições que, inclusive, chegaram até nós.
Do mesmo modo que qualquer grupo, os povos indígenas também podem modificar
alguns aspectos de sua cultura e seu modo de vida como suas vestimentas, sua alimentação,
seu corte de cabelo, até mesmo aprender outra língua, isso não os descaracteriza. No entanto,
existe o preconceito de que o índio só é índio se vive na floresta, nu e distante de outras
civilizações, ou seja, longe dos atuais meios tecnológicos como, por exemplo, aparelho celular
e computador. O que deve ser compreendido é que a aproximação desses povos com as
tecnologias não significa necessariamente a negação de sua cultura de origem e tudo que a
envolve.

Então, não é correto afirmar que todos os povos indígenas são idênticos, apesar de
existirem muitos aspectos em comum entre as etnias que os faz se reconhecerem como
indígenas, cada uma possui suas peculiaridades, sua diversidade cultural, linguística, social,
religiosa, sua própria forma de ver o mundo e se posicionar nele, e essas diferenças estão muito
além dos estereótipos. Freire (2000) cita “Hoje vivem no Brasil mais de 200 etnias, falando
188 línguas diferentes. Cada povo tem sua língua, sua religião, sua arte, sua ciência, sua
dinâmica histórica própria, que são diferentes de um povo para outro”. (FREIRE. 2000, p. 4).
Segundo Pacheco de Oliveira:

É preciso substituir a noção simplificadora de erro pela de apreensão da


multiplicidade de usos sociais, pois é por meio dessas representações que os
agentes sociais e as épocas irão registrar (ou não) a presença de indígenas,
bem como se relacionar com eles. Por isso mesmo, sua identificação e análise
são imprescindíveis para a Antropologia e para uma abordagem
historiográfica dos múltiplos usos da história, com o estabelecimento de uma

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postura mais vigilante quanto aos saberes constituídos”. (OLIVEIRA, 2016,


p. 77-78).

A Lei 10.639/03 foi alterada Lei pela 11.645/2008, que estabelece as Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, determinando incorporar no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática História da África, Cultura Afro-brasileira e indígena em todos os
âmbitos educacionais, tanto nas escolas públicas quanto nas particulares. Essa foi uma grande
vitória para os povos indígenas, pois segundo Paladino e Russo (2016):
A incorporação ou não das culturas e história dos povos indígenas no
currículo deve ser compreendida no campo das disputas políticas e
ideológicas no qual as diferenças são produzidas e hierarquizadas em nossa
sociedade [...]. (PALADINO E RUSSO, 2016, p. 902).

Esse currículo possibilita os estudantes a terem contato com a vasta cultura dos povos
indígenas resultando em um prisma que desmistifica pensamentos errôneos e eurocêntricos
sobre a temática indigenista, ainda mais no cenário amazônico.
Mas, o espaço reservado à população indígena continua sendo abordado em pequena
escala, inclusive nos livros didáticos, onde o conteúdo trabalhado em alguns casos, retrata os
indígenas como agentes passivos ou vítimas. Essa concepção dos povos indígenas é errônea e
contribui com estereótipos preconceituosos, esta carência de informações causa um impacto
negativo, tendo essa a justificativa para tal trabalho. Diante disso, o historiador Everaldo Rocha
salienta sobre o etnocentrismo diante as culturas de povos, “Na nossa chamada ‘civilização
ocidental’, nas sociedades complexas e industriais contemporâneas, existem diversos
mecanismos de reforço para o seu estilo de vida através de representações negativas do
‘outro’”. (ROCHA, 2006, p. 15).

Então, para conhecermos profundamente nossa história enquanto nação temos que
buscar nossas raízes que estão entranhadas na cultura indígena e para isso, deve-se esquecer o
olhar eurocêntrico e etnocêntrico que norteiam a escrita histórica, só assim a cosmovisão
indigenista ganhará voz, pois apesar da influência deste povo em nossa formação cultural, o
mesmo foi e continua sendo negligenciado, apesar de ter desempenhado um papel de
protagonistas na construção do Brasil. Portanto, mostrar a grandeza e a importância desse

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pedaço do Brasil é fundamental para não termos uma história do Brasil fragmentada ou em
partes silenciada, para assim termos o acesso a um novo prisma, uma nova (re)escrita da
história.

Conclusão

A ideia de que índio é apenas aquele que mora em aldeia, no meio da floresta é algo
totalmente fora da realidade, pois os indígenas se encontram nas mais diversas áreas, nos mais
diversos lugares, eles estão onde desejam estar, é uma escolha individual. O local em que
habita, suas vestimentas, seus bens ou a profissão que segue não o descaracteriza como
indígena. Muitos indígenas vivem em área urbana e seguem uma rotina como a das demais
pessoas que residem em cidades.

Diante disso, a urbanização destes indígenas se deve a alguns fatores, dentre eles o
crescimento das áreas urbanas que acabam entrando em áreas indígenas, bem como a migração
destes indígenas para as cidades. Esses povos indígenas sofrem com preconceitos por parte da
falta de informação de pessoas que insistem que o lugar do índio não é na cidade, essas pessoas
se valem de estereótipos que passam uma imagem errada dos povos indígenas e seu modo de
vida.

Assim, os que vão para as cidades buscam o mesmo que todas as outras pessoas,
melhoria de vida tanto na educação quanto na saúde, seja através dos estudos ou do trabalho,
no entanto, quando chegam à cidade lidam com várias dificuldades como a discriminação por
não terem qualificação profissional.

Durante todo o tempo que passou desde a colonização até os dias atuais os indígenas
buscam reafirmar sua cultura e seu modo de vida, entretanto em meio a isso procuram melhoria
de vida fora de seu ambiente usual o que não exclui sua ancestralidade e suas crenças, pois seja
onde este estiver leva consigo seus costumes e sua fé.

Referências

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

ALMEIDA. Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil no século XIX: da
invisibilidade ao protagonismo. In Revista História Hoje, v. 1, no 2, p. 21-39 – 2012.
BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os
povos indígenas no Brasil de hoje. Edição: MEC/Unesco, Brasília, DF, NOV de 2006.
BRASIL. Ministério da Educação. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-brasileira e Africana. Novembro de 2009.
CUNHA, Manuela Carneiro da.“Introdução a uma história indígena”. In: CUNHA, Manuela
Carneiro da. (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
CUCHC, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais / Denys Cuchc; introdução de Viviane
Ribeiro. - Bauru: EDUSC, 1999.
FREIRE, J. R. Bessa. Cinco idéias equivocadas sobre o índio. In Revista do Centro de Estudos
do Comportamento Humano (CENESCH). N° 01- setembro 2000. Manaus- Amazonas.
LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: O que você precisa saber sobre os povos
indígenas no brasil hoje.In Coleção Educação Para Todos. Série Vias dos Saberes, volume 1.
Brasília: Ministério de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; Rio:
LACED/Museu Nacional, 2006. ISBN 85-98171-57-3.
ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo? São Paulo: editora Brasiliense, 2006.
SANTOS, Diego Júnior da Silva; PALOMARES, Nathália Barbosa; NORMANDO, David;
QUINTÃO, Cátia Cardoso Abdo. Raça versus etnia: diferenciar para melhor aplicar. Dental
Press J. Orthod. 2010.
VADE MECUM/ obra coletiva da autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio
Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. -- 4. ed. atual.
e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2007.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

A REPRESENTAÇÃO DA AMÉRICA MERIDIONAL NO MAPA-MÚNDI DE


SEBASTIÃO CABOTO

ADRIANO RODRIGUES DE OLIVEIRA


UNESP / Assis, Doutorando
adrianorodriguesoliveira@gmail.com

Resumo

No presente estudo, analisamos a representação da América Meridional no Mapa-Múndi do


cartógrafo veneziano Sebastião Caboto. O referido mapa contém duas tábulas com descrições
históricas e geográficas em latim sobre as principais regiões do mundo, os diferentes grupos
humanos – incluindo os detentores de anomalias e malformações congênitas, além da
localização de lugares fabulosos. Nessa carta, vemos o surgimento dos dois mitos clássicos
mais duradouros difundidos nas terras do Novo Mundo, situados na cartografia nos extremos
do subcontinente: ao norte, a terra das guerreiras amazonas e, ao sul, a “região” dos gigantes.
Conforme constatamos, esses lugares fabulosos não só contribuíram para a definição das
fronteiras da América, como também deixaram suas marcas na geografia dos lugares. Assim,
interessa-nos analisar tanto as fontes iconográficas que permearam a produção desse mapa,
quanto seu significado no imaginário colonial quinhentista. Teoricamente, nos orientamos a
partir dos estudos de Brian Harley (2005), um dos principais representantes da nova História
da Cartografia, para quem os mapas são imagens do mundo real, carregadas de signos,
intenções e consequências e, cuja análise, requer o entendimento do contexto do cartógrafo, do
contexto de outros mapas e do contexto da sociedade.

Palavras-chave: Imaginário; Imagem; Cartografia.

Introdução
Na presente comunicação analisaremos a representação da América Meridional no
Mapa-Múndi de 1544, atribuído ao cartógrafo, navegador e explorador veneziano Sebastião
Caboto. Interessa-nos, sobretudo, analisar o contexto histórico de produção desse mapa, bem
como os possíveis significados da rica iconografia que ornamenta as extremidades do território
que delimita a América do Sul.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Ao analisar as fontes cartográficas quinhentistas, chamou nossa atenção a existência de


uma certa “cartografia imaginária”, europeia e renascentista, e o seu papel na difusão do
imaginário fantástico e na definição do espaço geográfico e fronteiriço do Novo Mundo.
Salienta-se que, por “cartografia imaginária”, entendemos os mapas que, no contexto da
exploração e dominação europeia, contribuíram sobremaneira para o espraiamento dos mitos
europeus sobre as terras americanas.
Para a compreensão dessas fontes cartográficas, nos orientamos principalmente a partir
dos estudos de Brian Harley (2005), um dos principais representantes da nova História da
Cartografia. Segundo o entendimento de Harley, todo mapa é uma imagem que possui signos,
representações e imaginários. Neste sentido, os mapas são um importante documento social e
cultural, cujo método de análise deve considerar três pilares fundamentais e indissociáveis: o
contexto do cartógrafo, o contexto de outros mapas e o contexto da sociedade (HARLEY, 2005,
p. 59).
Na primeira etapa da análise, o contexto do cartógrafo, tal como propõe Harley, deve-
se averiguar não apenas a autoria principal, como também todos os agentes secundários que
participaram do seu processo de produção – pintores, gravadores, impressores, editores e afins.
Devem ser considerados, ainda, os fatores relacionados à vida do cartógrafo – relações sociais,
formação, local ou instituição de produção. Por exemplo: alguns mapas que representam a
América do século XVI foram produzidos por cartógrafos da Casa da Contratação de Sevilha,
uma instituição oficial da Coroa Espanhola, criada pelos Reis Católicos para controlar,
burocratizar e registrar a posse documental das terras conquistadas. Disso, podemos concluir,
que muitos desses mapas expressam a vontade política das grandes potências coloniais
europeias.
Na segunda categoria do diagnóstico cartográfico, deve-se ponderar sobre o contexto
de outros mapas, ou seja, perceber como certos conteúdos, estilos, formas e traçados estão em
sintonia com outros mapas do mesmo período. Isso pode ocorrer com artefatos provenientes
de uma mesma escola cartográfica, como os que foram produzidos na Escola de cartografia de
Dieppe, na França, cujos manuscritos, geralmente de grandes dimensões, foram
confeccionados para reis como Henrique II, de França, e Henrique VIII, da Inglaterra. Outro
exemplo é o mapa do Estreito de Magalhães, datado de 1606, feito pelo gravador e impressor

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belga, Levinus Hulsius e, cujas semelhanças com uma carta de 1602, impressa na Oficina de
Bry, são facilmente percebidas. Não se trata de mera cópia ou plágio, mas de influências mais
abrangentes, sobretudo políticas, sociais e religiosas. Havia ainda no contexto dos séculos XVI
e XVII, o caso de famílias inteiras de cartógrafos, que podiam reproduzir por gerações, mapas
muito semelhantes em estilo, forma e conteúdo.
Por fim, o contexto da sociedade do qual o produtor de mapas participa como indivíduo
e artista. Conforme observa Harley, o cartógrafo é o agente individual, inserido numa estrutura
mais ampla que é a sociedade (HARLEY, 2005, p. 72). Esse princípio sintetiza os anteriores,
uma vez que um determinado mapa passa a ser ponderado como produto de um meio histórico
e social. Isso significa conjecturar os reais motivos que levaram a produção de um determinado
gráfico, qual o seu fim e o que ele deseja expressar em seu quadro. Assim sendo: “Todos os
mapas estão relacionados com a ordem social de um período e local específicos [...] não são a
sociedade exterior, fazem parte dela, são elementos constitutivos dentro do mundo em geral”
(HARLEY, 2005, p. 72).

O Mapa-Múndi de 1544

O Mapa-Múndi de 1544, produto da denominada Era de Ouro da cartografia europeia,


é uma das mais belas representações cartográficas dos quatro continentes até então conhecidos:
Europa, Ásia, África e América. Atualmente existe uma única versão impressa desse
planisfério, que está localizado na Biblioteca Nacional da França e disponível para consulta
online no acervo digital dessa mesma instituição.
O referido exemplar compõe-se de 4 folhas e duas tiras que, reunidas, medem incríveis
220 por 125 cm (fig. 1). Está ainda ornamentado em suas bordas por duas tábulas (TABVLA
PRIMA e TABVLA SECVUNDA), onde se encontram assinaladas informações em latim e
castelhano sobre a história e a geografia das diferentes regiões do globo terrestre. Nessa
comunicação nos deteremos na análise da iconografia gravada sobre a região da América
Meridional, ou América do Sul.
O cartógrafo e explorador Sebastião Caboto, o autor do mapa, nascera provavelmente
em Veneza, entre os anos de 1479 a 1484. Era filho do explorador João Caboto, mas conhecido

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por John Cabot, de acordo com a versão inglesa do nome. Caboto filho fora educado na
Inglaterra, no período que seu pai prestava serviço para a coroa deste reino. Após a morte do
navegador João Dias de Solis, Caboto assumiu o cargo de piloto-mor da Casa de Contratação
(GUEDES, 2012, p. 50). Em 3 de abril de 1526, fez parte de uma expedição que pretendia
contornar a América do Sul pelo Estreito de Magalhães para, dessa forma, chegar até às ilhas
das especiarias (MEDINA, 1908, p. 320). O mapa original foi encontrado na Baviera, no ano
de 1843, e imputado ao referido navegador devido menção em seu nome em um dos painéis do
flanco dos textos em espanhol e latim nas colunas do gráfico.
Invertendo-se a ordem e começando pela leitura do segundo flanco, encontram-se as
descrições sobre seres monstruosos e/ou criaturas fantásticas que, segundo o imaginário
europeu quinhentista, deveriam habitar o oriente geográfico do orbe, região genericamente
denominada Índias Orientais: monstros semelhantes a homens, cujas orelhas enormes cobriam
todo o corpo, outros que não possuíam articulações nos joelhos e tampouco nos pés, e que
viviam sobre os domínios do Grande Cã. Segundo o texto, havia ainda homens selvagens que
habitavam as montanhas e florestas dos limites fronteiriços do território do poderoso soberano
mongol. (CABOT, 1544, TABVLA SECVNDA).
Na tábula primeira do mapa, encontra-se a descrição dos povos e monstros que
deveriam habitar às Índias Ocidentais, terra “descoberta” pelo almirante Cristóvão Colombo
em 1492, como reforça a inscrição no flanco. O texto destaca que na Ilha Espanhola havia
muito ouro e muito açúcar. São Domingos era uma cidade muito boa, onde a Santa Fé Católica
já havia penetrado e os reis governavam a todos com muita justiça e retidão. Na cidade do
México também existia muito ouro, prata, toda sorte de pedras preciosas, seda muito boa e
algodão. (CABOT, 1544, TABVLA PRIMA).
Nessas terras do Novo Mundo habitavam também homens selvagens, carentes de pão e
vinho, gente má e salteadora. Um pouco adiante deste povo de selvagens, viviam seres
monstruosos, cuja aparência de homem se mesclava com a de porco, e que grunhiam como tais.
Nas cercanias do Rio da Prata existiam serras de onde se retiravam infinitíssimas quantidades
de ouro e prata, além de homens com cabeça de cachorro e outros com as partes abaixo dos
joelhos semelhantes às de avestruz (CABOT, 1544, TABVLA PRIMA).

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Figura, 1. Mapa-Múndi de Sebastião Caboto. Ano de publicação: 1544. Fonte: Biblioteca Nacional da França.
A transposição do fantástico outrora localizado no Oriente para às terras “recém-
descobertas” da América foi um processo que se deu por etapas. Pouco a pouco, os diferentes
mitos clássicos, provenientes do imaginário medieval/renascentista europeu, seriam
transportados principalmente para a geografia da América do Sul. Sobre esse fenômeno, o
historiador chileno Roja Mix ainda observa que:

O descobrimento da América significou um enorme transvasamento do


imaginário europeu nas novas terras descobertas. Os mitos, as lendas, o
mundo teratológico, as quimeras, tudo adquirirá carta de cidadania na
América, e tudo vai ser buscado ali com afinco pelos rastreadores de fortuna
e pelos caçadores de sonhos. Dessa forma, se produz um enorme
deslocamento geográfico do fantástico medieval, um ressurgimento do
fantástico clássico e, inclusive, um fantástico original […]. (ROJA MIX,
1993, p. 125).1

1 Tradução nossa. Em espanhol: “El descubrimiento de América significó un enorme trasvasijamiento del
imaginario europeo en las nuevas tierras descubiertas. Los mitos, las leyendas, el mundo teratológico, las
quimeras, todo va a adquirir carta de ciudadanía en América, y todo a ser buscado allí con ahínco por los
rastreadores de fortuna y los cazadores de sueños. De esta forma, se produce un enorme desplazamiento
geográfico del fantástico medieval, un resurgimiento del fantástico clásico e incluso un fantástico originário...”
(ROJA MIX, 1993, p. 125).

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Dessa forma, no Mapa-Múndi de 1544, vemos a representação de um dos mitos


clássicos mais recorrentes e duradouros em sua adaptação à América: as amazonas (fig. 2).
Vale destacar que esse mapa foi produzido logo após a expedição do explorador espanhol
Francisco de Orellana (1511-1546), no ano de 1542. Durante essa empreitada, descrita em
pormenores pelo padre dominicano Gaspar de Carvajal (1504-1584), responsável pelos
serviços litúrgicos da missão, o capitão Orellana teria percorrido às margens do “Grande Rio”
escoltado por 60 soldados, e batalhado contra dezenas de guerreiras amazonas em plena floresta
(OLIVEIRA, 2020, p. 6).
Segundo o que descreveu o religioso espanhol: “Estas mulheres são muito alvas e altas,
com o cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça. São muito membrudas e
andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com os seus arcos e flechas nas mãos, fazendo
tanta guerra como dez índios” (CARVAJAL, 1941, p. 61-62). Como se vê, os cartógrafos
quinhentistas estavam cientes das narrativas dos cronistas e procuravam adaptar às novas
informações recebidas nos traçados de seus mapas e cartas náuticas.

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Figura, 2. “O Rio das Amazonas”. Fragmento extraído do Mapa-Múndi de Sebastião Caboto. Publicado em 1544.
Fonte: Biblioteca Nacional da França.

No extremo Sul da América, vemos surgir outro famoso mito produzido pela
imaginação europeia quinhentista: a“Regio Gigantum” (Região dos Gigantes). Quem
inaugurou essa lenda foi o marinheiro e cronista italiano Antônio de Pigafetta (1491-1531),
responsável por descrever os acontecimentos da primeira viagem de circum-navegação ao
redor do globo. Tal expedição, comandada por Fernão de Magalhães/ Juan Sebastián Elcano,
entre os anos de 1519 e 1521, tinha como objetivo contornar a imensa massa territorial do
continente americano e chegar até a ilhas dos Condimentos (Ilhas Molucas) (MAGASICH-
AIROLA; DE BEER, 2000, p. 261).
Ao chegar na Baía de San Julián (atual Patagônia Argentina), no dia 19 de maio de
1520, Pigafetta anotou em seu diário de bordo, o seguinte relato, após ter avistado os habitantes
do estreito:
Transcorreram dois meses sem que víssemos nenhum habitante do país. Um
dia, quando menos esperávamos, um homem de figura gigantesca se
apresentou ante nós. Estava sobre a areia, quase nu, e cantava e dançava ao
mesmo tempo, jogando poeira sobre a cabeça. O capitão enviou à terra um de
nossos marinheiros, com ordem de fazer os mesmos gestos em sinal de paz e

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amizade, o que foi muito bem compreendido pelo gigante, que se deixou
conduzir a uma pequena ilha, onde o capitão havia descido. Eu me encontrava
ali com muitos outros. Deu mostras de grande estranheza ao ver-nos e
levantando o dedo queria dizer que acreditava que nós havíamos descido do
céu. Este homem era tão grande que nossas cabeças chegavam apenas até à
sua cintura. De porte formoso, seu rosto era largo e pintado de vermelho,
exceto os olhos, que eram rodeados por um círculo amarelo e dois traços em
forma de coração nas bochechas. Seus cabelos, escassos, pareciam
branqueados por algum pó [...] (PIGAFETTA, 2019, p. 58-59).

No Mapa-Múndi de Sebastião Caboto, vemos a inclusão da figura de indivíduo que


aparenta uma grande estatura e está posicionado nas proximidades do Estreito de Magalhães.
O referido “gigante” está trazendo em sua mão esquerda uma espécie de escudo e, na direita,
um longo porrete de madeira. Nota-se que ele tem pele escura e o corpo coberto por vestimentas
longas e cheias de listras. Como podemos observar, esse mapa fixa a Regio Gigantum nos
limites territoriais da América do Sul (fig. 3). Um texto gravado em latim e espanhol no relevo
da carta adverte o espectador sobre a natureza dos homens encontrados no estreito:

Este estreito de todos os santos descobriu Fernão de Magalhães, capitão que


ordenou fazer a S. c. c. m. do Imperador Dom Carlos, o Rei e nosso senhor
para o descobrimento das ilhas Maluco. Há nesse estreito homens de tão
grande estatura que parecem gigantes, é terra muito deserta, e se vestem [os
gigantes] da pele de animais.2

2 Tradução nossa. Em espanhol: “Este estrecho detodos santos descubrio Hernando de Magalhanes, Capitan que
mando hazar la S. c. c. m. del Imperator Dom Carlos y Rey nuestro sennor para el descubrimiento delas islas
Maluco. Ay eneste estrecho hombres de tan grande estatura que parecen Gigantes, es tierra muy desierta, y visten
se de pielos de animales” CABOT, 1544, Tabvla Prima).

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Figura, 3. A “Região dos Gigantes”. Fragmento extraído do Mapa-Múndi de Sebastião Caboto. Publicado em
1544. Fonte: Biblioteca Nacional da França.

A difusão de uma “cartografia imaginária” só foi possível pelo surgimento e expansão


da imprensa nas mais diversas atividades. Jeremy Black (2005) observa que a imprensa
facilitou a troca de informações, além de agilizar o processo de revisão cartográfica. Em virtude
disso, os mapas se tornaram públicos, e um negócio lucrativo no mercado editorial (BLACK,
2005, 23-24).
Contudo, é preciso ter em mente que a existência de uma “cartografia imaginária”
ultrapassa a esfera das influências econômicas que vigoraram na Europa do século XVI. Como
ainda destaca Black, os notáveis avanços cartográficos, contrapunham-se a um profundo
desconhecimento das terras “recém-descobertas”. Nas diversas representações cartográficas,
era muito comum que os litorais dos continentes fossem “devidamente” representados,
enquanto seus interiores permaneciam praticamente desconhecidos e parcialmente mapeados
(BLACK, 2005, p. 23-24).

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Assim, era comum que os enormes espaços “vazios”, consequência do


desconhecimento cartográfico, fossem preenchidos com o desenho de lugares míticos e povos
monstruosos. Sobre essa questão, o historiador Frank Lestringrant (2009), em sua obra A
Oficina do Cosmógrafo, pondera que: “Um mapa, nessa época, não pode comportar buracos (é
verdade que tem bordas), salvo para mascará-lo com uma moldura ou pela imagem de criaturas
fabulosas” (LESTRINGANT, 2009, p. 198).

Conclusão

Conforme averiguamos em nosso estudo, o Mapa-Múndi de Sebastião Caboto foi o


primeiro a representar os grandes mitos difundidos pelo imaginário europeu quinhentista na
geografia da América do Sul. Podemos dizer que o referido mapa acabou por nortear a
produção de uma “cartografia imaginária” ao longo do século XVI, já que, a partir deste, os
extremos da América Meridional seriam mapeados com a inclusão dos dois temas europeus
mais duradouros em sua transposição ao Novo Mundo: as amazonas ao norte e os gigantes ao
sul. Não é necessário ressaltar como esses mitos deixaram suas marcas na geografia desses
territórios, nomeados, a partir de então, como Amazônia e Patagônia, respectivamente. Assim,
podemos concluir que esses grandes mitos clássicos, provenientes do imaginário
medieval/renascentista, foram determinantes na definição do espaço territorial e das fronteiras
da América do Sul.

Referências

BLACK, Jeremy. Mapas e História: Construindo imagens do passado. Bauru, SP: Edusc,
2005.
CABOT, Sébastien. [Mappemonde / par Sébastien Cabot en guise de titre, une inscription
bilingue dont le texte latin est le suivant]...1544. Biblioteca Nacional da França. Disponível
em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b55011003p/f1.item.zoom. Acesso em: 16 de junho
de 2020.
CARVAJAL, Gaspar de. Descobrimento do rio das Amazonas. Trad. C. de Mello Leitão. 5ª
Ed. – São Paulo: Ed. Brasiliana, 1941.
GUEDES, Max Justo. A cartografia impressa do Brasil: os 100 mapas mais influentes/1506-
1922. Rio de Janeiro: Editora Capivara, 2012.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

HARLEY, B. La Nueva Naturaleza de los mapas: ensayos sobre la historia de la cartografía.


México: Fondo de Cultura Económica, 2005.
LESTRINGANT, Frank. A oficina do cosmógrafo ou a imagem do mundo no Renascimento.
Tradução de Edmir Missio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
MAGASICH-AIROLA, Jorge; DE BEER, Jean-Marc. América mágica: quando a Europa da
Renascença pensou estar conquistando o Paraíso. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
MEDINA, José Toribio. El veneciano Sebastián Caboto, al servicio de España y
especialmente de su proyectado viaje á las Molucas por el estrecho de Magallanes y al
reconocimiento de la costa del continente hasta la gobernación de Pedrarias Dávila. Santiago
– Chile: Imprenta y Encuadernación Universitaria, 1908. Disponível em: https://archive.org/.
Acesso em: 17 de junho de 2020.
OLIVEIRA, A. R. As Amazonas do Novo Mundo: Análise das Fontes Literárias e
Iconográficas dos Séculos XVI E XVII. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais,
Uberlândia, v. 17, ano XVII, n. 1, Jan/Jun de 2020. Disponível em: www.revistafenix.pro.br.
Acesso em: 09 de setembro de 2020.
PIGAFETTA, Antonio. A primeira viagem ao redor do mundo: o diário da expedição de
Fernão de Magalhães. Tradução de Jurandir Soares dos Santos. 2ª ed. – Porto Alegre: L&PM,
2019.
ROJAS MIX, Miguel. “Los monstruos: ¿mitos de legitimación de la conquista? América
Latina: palavra, literatura e cultura, v. 1, p. 123-150, 1993.

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PADRE BENTO DE ANDRADE VYEIRA: UM BLASFEMO


ECLESIÁSTICO NAS MALHAS DA INCONFIDÊNCIA

ALEXANDRE BRUNO BARZANI SANTOS(1) , FERNANDO VIEIRA CROSARA ÁZARA(2)


(1) Universidade de Brasília, Graduando
alexandrebarzan@gmail.com
(2) Universidade de Brasília, Graduando
fernando.crosara.azara@gmail.com

Resumo

Este trabalho é um estudo sobre documentos que tratam de uma devassa no último quartel do
século XVIII, que ocorreu na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, na Capitania do Mato
Grosso. O padre de nome Bento de Andrade Vyeira sofreu um processo por ter expressado
opinião contra sua majestade, emitida durante uma discussão em que defendia os interesses de
seus sequazes na vila. No auto de denúncia o sacerdote foi acusado de inconfidente. Assim, ele
foi imediatamente preso e seu caso foi levado ao Conselho Ultramarino e à Coroa, em Portugal.
Nessa composição busca-se compreender qual é o contexto de acusação do padre e a razão pela
qual relacionaram seu caso com o movimento inconfidente. Busca-se compreender também o
significado do fato no contexto de relações colônia e metrópole e qual o conhecimento dos
locais sobre o movimento de inconfidências ocorridos na capitania de Minas Gerais e suas
eventuais consequências.

Palavras-chave: Cuiabá Colonial; Tribunal da Inconfidência; padre.

Introdução
A presente pesquisa procura analisar a massa documental de uma devassa litigiosa
realizada na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, na Capitania do Mato Grosso, entre os
anos de 1774 a 1777. A denúncia foi dirigida contra o clérigo de hábito de São Pedro e
coadjutor da comarca eclesiástica da Vila, Bento de Andrade Vieira, pelo denunciante
Francisco Xavier Correa dos Reis. O motivo da devassa alude a uma “disputa de palavras”
entre o padre e demais membros da elite cuiabana. A peleja, supostamente iniciada pelo
eclesiástico, ficou marcada pela ousadia de Bento de Andrade, que proferiu: “Sim também lá

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no Reino se dá em El Rey com hum pau”, o que acarretou em sua prisão, e consequentemente,
na produção material que será analisada.
A partir dessa fonte documental, tem-se como objetivo investigar os conflitos que se
desenrolaram em consequência deste evento, a fim de compreender o porquê da punição
atribuída ao padre. Para entender a devassa em questão, é proposta também uma análise,
considerando as interpretações contemporâneas de Norbert Elias, a respeito de como se
desenvolvia o contexto microssômico da época em consonância com os eventos que ocorriam
em escala nacional. Ou seja, se intenta identificar como os agentes da devassa defendiam seus
interesses em disputa com outros indivíduos e segmentos da sociedade cuiabana, sendo ao
mesmo tempo, interferentes e interferidos pelo contexto macropolítico do país no último quarto
do século XVIII.

Aspectos metodológicos

O método micro-histórico balizado em Carlo Ginzburg, empreendido na pesquisa,


consistiu como escala de observação o dossiê inquisitorial do padre Bento de Andrade Vyeira,
descrito pela letra do tabelião Francysco Xavier Botelho, no terceiro quadrante do século
XVIII. Pelo qual verificou-se o período histórico em que a denúncia estava inserida, envolto a
um período inconfidente, de conspirações e movimentos insurgentes de aspirações sociais no
interior da colônia brasileira - como ocorreu em Minas Gerais na mesma década. Nesses
espaços geográficos “muito remotos, quase impossíveis de castigar prontamente os erros e
desordens dos párocos”. O procedimento metodológico adotado foi o de “universo relacional”,
desenvolvido por Edoardo Grendi, do campo das relações interpessoais, válido para uma
microárea. Foi aplicada a técnica de análise documental, necessária para realizar uma pesquisa
intensiva, dando conta de uma diversidade de fontes: Arquivo da Cúria Metropolitana de São
Paulo (ACMSP), em que se identifica o nascimento do clérigo em 1723 e sua consequente
ordenação no bispado de São Paulo; Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro
(ACMRJ), no qual se constata sua ordenação de coadjutor na comarca eclesiástica Bom Jesus
do Cuyabá; Arquivo Histórico Ultramarino de Mato Grosso (AHU-MT), em que está descrito
seu processo de prisão e devassamento; Anais do Senado da Câmara de Cuyabá onde consta a

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sua volta à coadjutoria paroquial; e por fim, seu último registro se apresenta nos Anais de Vila
Bela 1734-1789, mencionando sua prisão e soltura por ordem Real de Dona Mariana Victória.

Descrição documental

As fontes documentais principais se organizam em cinco arquivos resultantes do


procedimento judicial colonial, em suas respectivas etapas. O primeiro arquivo, de 1774, diz
respeito a um ofício do governador e capitão-general da capitania, Luís de Albuquerque de
Melo Pereira e Cáceres, endereçado ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho
de Melo e Castro. Nele anuncia a prisão preventiva do padre Bento na cadeia da Vila Real do
Bom Jesus do Cuiabá por proferir as mais "sacrílegas palavras contra o bem do Serviço Real
de El’Rei", as quais teriam sido descontextualizadas, pois não se tratava de apenas uma simples
demonstração de insatisfação individual com o procedimento executado, mas também
transparecia certo sentimento de contestação às ações praticadas pelo monarca. O que poderia
ser entendido como ofensivo e conspiratório. O segundo, de 1775, do mesmo remetente e
destinatário, refere-se a uma nova denúncia apresentada ao reverendo por outro crime
cometido, em que solicita a análise do caso pelo Juízo da Inconfidência, por tratar-se de crime
do mais alto grau contra a soberania portuguesa. O terceiro data de 1776 e representa a segunda
inquirição de testemunhas a respeito da segunda acusação ao padre Bento. O quarto, de 1777,
alude à defesa do eclesiástico, em que repetidamente alega não estar envolvido em qualquer
tipo de conspiração contra o Reino, mas sim, ser vítima de uma perseguição, juntamente ao seu
requerimento solicitando sua condução à liberdade e indenização pelo seu denunciante, o
licenciado Francisco Xavier Correa dos Reis. E o último, do mesmo ano, corresponde ao aviso
oficial, no qual comunica, segundo as ordens da Rainha D. Maria I, a absolvição plena do
clérigo, seguido pelo ambicionado Perdão Real.

Discussão histórico-teórica

O clérigo Bento de Andrade Vieira, residente na Vila Real, era paulista, nascido em
1723, habilitado de genere, filho de Izabel Vieira e Luiz de Andrade, ordenado no bispado de

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

São Paulo, doutor em Teologia e Letras Canônicas e coadjutor na Matriz do Senhor Bom Jesus.
Foi preso na Villa Real do Senhor Bom Jesus do Cuyabá, por denúncia de ter proferido,
segundo o denunciante, o licenciado Francisco Xavier Corrêa dos Reys, as mais “sacrílegas
palavras contra a pessoa Del Rey”. O fato ocorreu em uma “noite de diversão” do ano de 1773,
e, casa do capitão Miguel José Rodrigues, por não concordar com um procedimento judicial
realizado naquela ocasião.
Entre os presentes, havia decidido que poderia ser tomado o cavalo de Pedro Gonçalves,
amigo do padre, para que o cirurgião da vila fosse examinar um cadáver. Esse procedimento
seria correto por ser um serviço de interesse de Sua Majestade, tal como se procedia em
Portugal. Segundo o denunciante, era plenamente justificada por uma “Lei do Corregedor de
Pinhel e do Cônigo da Guarda”, sancionada no Reino.
O padre Bento Vieira teria discordado da decisão, levantando-se da cadeira a qual
estava sentado, e na presença de todos, ele proferiu uma inesperada frase: “Sim também la no
Reino se dá em El Rey com hum pau”. A qual, segundo o relato das testemunhas arroladas na
Devassa procedida pelo escrivão da Câmara e provedor das fazendas dos defuntos e ausentes,
cappatas, e reziduos, João da Silva Nogueira, deixou todos atônitos.
A frase que o clérigo teria dito não significaria apenas uma simples demonstração de
insatisfação individual com o que se havia decidido naquela noite. Não se tratava apenas de
achar injusto tomar o animal para o “bem do serviço D’El Rey”, mas também transparecia certo
sentimento de contestação às ações praticadas pelo monarca o que poderia ser entendido como
ofensivo e conspiratório. Vale lembrar que, nesse período, já circulavam ideias de conjuração
em terras coloniais e, poucos anos depois, como ocorreu o simbólico caso de Vila Rica, nas
Minas Gerais, vários padres estiveram ativamente envolvidos no movimento de Inconfidência.
Muitos clérigos da América portuguesa do século XVIII passaram a participar
diretamente da política, principalmente os que eram formados na Universidade de Coimbra,
como o caso do religioso Bento de Andrade Vyeira. Estes seriam do maior interesse da
Metrópole investigar suspeitas atitudes dos eclesiásticos, pois eram os principais responsáveis
pela “difusão dos princípios iluministas e liberais entre seus membros, envolvidos cada vez
mais na vida política nacional”.

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Por quatro anos o religioso ficou preso em Cuiabá. O clérigo pediu a sua liberdade
alegando não ser um inconfidente, não ter cometido tal crime; declarou a ilegitimidade
jurisdicional, através de requerimentos, da “Lei do Corregedor de Pinhel e do Cônigo da
Guarda”; e alegou ser vítima de uma perseguição do denunciante, Francisco Xavier Correa dos
Reys, juntamente ao procurador do povo que deu entrada em sua acusação, Manoel Francisco
da Silva.
Na sua devassa, foi relatado pela testemunha Manoel Mendes Machado, que ao saber
da prisão do religioso, foram realizados dois banquetes na casa do licenciado, com direito a
convidados que estiveram presentes na noite da denúncia. E em outra intimação, um desses
relatou “por ouvir dizer” que Francisco Xavier havia se referido da seguinte maneira a Bento
de Andrade “hera revoltozo, e agora havia de hir ver Lisboa”, aparentando ter ciência de
aspectos tanto específicos da investigação, como do fato de que os julgamentos realizados à
égide do Tribunal da Inconfidência estendiam-se à alçada de Lisboa para Inquirição.
O padre Bento só conseguiu sua liberdade em 1777, com o indulto da rainha regente,
Dona Mariana Victória. Após isso, o padre secular voltou à coadjutoria paroquial, como consta
nos “Annaes do Senado da Câmara do Cuyaba 1719-1834”, e em 25 de março de 1778, foi
orador nas celebrações das exéquias reais feitas na Igreja Matriz da Vila Real, realizando, pelo
mesmo Rei a quem supostamente ameaçou no Reino, “a ação mais fúnebre por quem recitou a
oração com lágrimas”. O padre também foi o pregador, em 1º de agosto do mesmo ano, da
Missa Cantada na nova matriz da freguesia de Santa Ana da Chapada.
E o último relato de sua presença na Capitania de Mato Grosso é de uma carta do
Capelão José Correa Leitão ao governador Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres,
em 1779, na qual caracteriza Bento de Andrade da seguinte forma:

Esteve preso e foi solto por ordem de V. Exa. por execução de uma sua carta
que recebi em dezembro próximo passado me recomenda muito este
sacerdote e que o contempla com os maiores obséquios e atenções, e me
afirma que nisso lhe farei gosto e serviço. Além disso, está cheio de impingem
e outras moléstias, que o obrigam a viver no uso de remédios, e em grande
dieta, é para muito pouco, sendo o de maior instrução.

Para compreender os conflitos surgidos ao longo dessa massa documental, a aplicação

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de teorias históricas e sociopolíticas contemporâneas referentes ou relacionáveis ao período


setecentista é essencial. Uma vez que evidenciar as nuances das relações coloniais e a
interferência constante do contexto macrossômico da época nos eventos das devassas
supracitadas.
De maneira introdutória, pode-se estabelecer um paralelo entre o conteúdo da devassa
interpretada e a teoria do sociólogo alemão contemporâneo, Norbert Elias. Em sua obra “O
Processo Civilizador” (1994), Elias defende que os indivíduos se articulam em sociedade de
forma conjunta e sempre intrínseca às demandas psicológicas, sociais e políticas de si e do
outro, constituindo o que ele denomina de teias de interdependências, garantindo assim aos
conflitos e disputas desarmoniosas de poder um equilíbrio estável. Nessa teia, as relações
sociais são dinâmicas, de modo que as estruturas sociais “micro” (a vida e os interesses
cotidianos dos indivíduos) ou “macro” (a formação e manutenção da colônia) não sejam
percebidas como dicotômicas, mas sim como complementares na constituição de uma única
estrutura social.
Essa teia, guiada pelo princípio da dependência, é nítida no cenário colonial da devassa:
todos os personagens dependem uns dos outros para preservar suas autonomias. O denunciante
Francisco Xavier Correa dos Reys, sujeito de aparente autoridade na província, é dependente
de seu amigo íntimo, o procurador Manoel Francisco da Silva (e demais associados, ou
“parceais”), para iniciar a execução de seus interesses (psicológicos e políticos). Já o Pe. Bento
é dependente da devoção da população local, com quem articula suas redes clientelares. E todos
os envolvidos são dependentes da figura do Rei de Portugal e do aparato burocrático judiciário
- autoridades superiores sobre a colônia brasileira – para que seus interesses particulares sejam
legalmente assegurados, ao mesmo tempo, em que preservam a ordem hierárquica da província
de Cuyabá
Para o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho em “A Construção da
Ordem” (1980), a grande diferença do Brasil colonial para as demais colônias na América era
a centralização da administração portuguesa, que aqui é materializada pela autoridade
onipresente de Portugal nos trâmites jurídicos locais: o julgamento do Pe. Bento de Andrade
Vyeira é endereçado à Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos
pelo juiz português Luiz de Albuquerque Melo Pereira e Cáceres e com decisão final dada pela

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figura monárquica de Dona Mariana Victória, rainha regente e símbolo da soberania portuguesa
em 1778.
Esse vínculo estrito entre colônia e metrópole, que expõe uma atuação política ferrenha
dos órgãos portugueses nas províncias locais, se mantém por dois motivos principais. De
acordo com Carvalho, a sustentação desse aparato se encontra no enfraquecimento das
comunicações interprovinciais e, ao mesmo tempo, no fortalecimento dos conflitos locais
intraprovinciais (inofensivos ao cenário político nacional). Os conflitos locais se tornam, em
outras palavras, mecanismos de controle da metrópole sobre a colônia. No caso estudado, é
visível como esse conflito entre as autoridades civil (o capitão-general Luiz de Albuquerque e
seus “parceais” - o licenciado denunciante Francisco Xavier; o procurador Manoel Francisco)
e religiosa (o padre denunciado Bento de Andrade Vieyra, que representava o clientelismo
local) é dependente - como indica a teoria de Elias - da autoridade suprema do Rei para que
um desfecho lhe seja atribuído. Por mais que cada agente possuísse seus interesses particulares
vinculados à devassa, cabe à figura do Rei legitimar ou não esses interesses. Ou seja, mesmo
que esses interesses particulares jamais influenciassem diretamente o contexto macrossômico
do Brasil Colônia ou a vida do Rei, eles continuam sendo atribuídos aos tribunais do Reino de
Portugal, de forma a preservar a centralidade autocrática do governo colonial.
A postura inconfidente foge dessa dinâmica de poder. O envolvimento de um padre de
Cuyabá com um movimento separatista originário da província mineira significaria não
somente o resgate da comunicação não comercial entre as províncias como também a
destituição do Rei como árbitro final dos conflitos locais. Num contexto macro-político, o
movimento inconfidente, se bem sucedido, implicaria a desvalorização da figura do Rei como
autoridade absoluta. O julgamento do padre e sua prisão, decretada pelos órgãos de autoridade
jurídica portugueses, significam a manutenção da ordem portuguesa de dominação.
Por mais que o objetivo inconfidente jamais seja confirmado nas ações do Padre Bento,
é conveniente para a metrópole se utilizar desse discurso para garantir sua autoridade. Dessa
forma, uma ameaça diante da pauta separatista pode ser estabelecida na comunidade civil, os
jogos de poder entre as elites locais seguem com suas performances e a coroa portuguesa
mantém sua hegemonia sólida sobre a colônia. É importante ressaltar também que, no aspecto

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identitário colonial, um sentimento inconfidente em Cuyabá poderia representar um perigo à


Coroa portuguesa - mesmo que exposto por membros dissonantes de uma pequena elite local.
Os historiadores Instván Jancsó e João Paulo Pimenta, em “Peças de um Mosaico (ou
apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira)” (in MOTA,
2000), afirmam que, tendo a nação portuguesa como referência, a elite brasileira colonial se
percebia e se definia como essencialmente portuguesa (ainda que de maneira diferenciada do
português metropolitano), sendo este um recurso de legitimação de poder a partir da
ancestralidade (como testemunhado no caso ao se exigir habilitação de genere ao Padre Bento
de Andrade). Existe também aí uma distinção: assim como a identidade portuguesa do
habitante da província de Cuyabá não corresponde à identidade de um português metropolitano,
essa identidade tampouco corresponderia à de um habitante da província mineira, paulista ou
baiana.
Sendo assim, a principal filiação de um habitante da província de Cuyabá seria à
Portugal, e não às demais províncias brasileiras. Esse mecanismo impedia a consolidação de
uma identidade macro-colonial enquanto, ao mesmo tempo, fortalecia a autoridade portuguesa
sobre seus colonos.
Assumir uma pauta declaradamente mineira, nesse contexto (como a Inconfidência),
significaria uma possível união identitária entre as províncias coloniais, provocando, como
consequência, um enfraquecimento da identidade subordinada que prevalecia no Brasil. No
contexto macroscópico, impedir essa união identitária seria fulcral para a manutenção do
domínio português colonial.

Conclusão

A devassa do padre Bento de Andrade Vyeira, em Cuiabá, acaba por representar o


contexto histórico macro-político do último quartel do século XVIII. Um momento de
mudanças nos continentes Europeu e Americano, com a propagação dos pensamentos
iluministas.

Mesmo nesse primeiro momento as monarquias europeias começaram reformas para


sua manutenção como estrutura de poder e do controle colonial. O aumento da presença estatal

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nas províncias, herança da administração pombalina, por exemplo, explica os conflitos locais
serem atendidos pela burocracia da metrópole.

Um ponto que é preciso sublinhar é a caracterização feita por parte do acusador, onde
imputa ao padre a qualidade de inconfidente. `Visto que demonstra compreensão dos processos
“revolucionários” que ocorriam na província mineira. Uma vez que esse termo na acusação só
tem sentido se o seu autor tem um mínimo de percepção que um inconfidente é alguém
contrário à figura soberana da coroa portuguesa em território sul-americano. E igualmente tem
conhecimento da gravidade do crime e da jurisdição própria de apreciação desse modelo de
caso.

Não há, por parte do estudo, de se apresentar uma completa integração entre as
províncias, como foi fundamentado anteriormente sobre suas relações diretas com o reino
europeu, diminuindo a integração. Mas de demonstrar que as elites coloniais locais, sim,
possuíam uma visão mais global dos eventos. Assim como mantinham íntimas relações com
as elites metropolitanas a fim de se utilizarem das diferentes instâncias de poder em benefício
próprio e como meio de solucionar conflitos a seu favor.

Por fim, é necessário evidenciar a conexão entre o padre como representante da igreja
secular e poder eclesiástico disputando espaço sócio-político com o poder estatal. Já que o
período também é marcado por essa questão, tanto com a expulsão dos jesuítas, duas décadas
antes, como pequenas tensões que surgem no período exatamente pela expansão da máquina
burocrática.

Referências

BRANDÃO, Carlos F. A teoria dos processos de civilização de Norbert Elias: o controle das
emoções no contexto da psicogênese e da sociogênese. Tese (Doutorado) Marília, S.P. :
Universidade Estadual Paulista – UNESP, 2000.
CORBALAN, Kleber R. L. O clero católico na fronteira ocidental da América portuguesa
(Mato Grosso colonial, 1720 – 1808). Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Tese apresentada à Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título
de Doutor em História.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

DOURADO, Ivan P. As teias de interdependência social, as configurações sociais e seus


desdobramentos nos processos de socialização presentes na teoria de Norbert Elias. Tese
(Doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul 2013.
Artigo realizado como avaliação para a disciplina de Processos Sócio-Políticos-educativos em
Sociedades Complexas, realizado pelo programa de Doutorado em Educação.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Trad.: Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, vol. 2.
ELIAS, Nobert. A sociedade dos indivíduos. Organizado por Michel Schröter; Trad. Vera
Ribeiro; revisão técnica e notas, Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. In.: Memória e Sociedade. Organizado
por Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto; Trad. António Narino. Rio de Janeiro; Ed.
Bertrand Brasil S.A., 1989.
KANTOR, Iris. Ritualidade pública no processo de implantação do bispado de Mariana (Minas
Gerais – 1745-1748). In.: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do
Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo:
EDUC CNPq, nº 28, p.1-495, janeiro/junho/2004, p. 238-239.

Fontes documentais

AHU-MT, Caixa 17, Doc. 1086. OFICIO do [governador e capitão-general da
Capitania de Mato Grosso] Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e Castro sobre a prisão,
na Vila de Cuiabá, do padre Bento de Andrade Vieira, que proferiu as mais sacrílegas
palavras à pessoa do Rei. Vila Bela, setembro de 1774.
⚫ AHU-MT, Caixa 19. Doc. 1159. REQUERIMENTO do padre Bento de Andrade
Vieira, preso na Cadeia da Vila de Cuiabá, à rainha [D. Maria I] em que pede para ser
solto e indenizado pelo seu denunciante. Vila do Cuiabá, 1777.
⚫ ANAIS de Vila Bela 1734-1789. Janaina Amado, Leny Caselli Anzai, organizadoras.
Cuiabá: Carlini & Caniato: EdUFMT, 2006 (Coleção documentos preciosos).
⚫ ANNAES do Senado da Câmara do Cuyabá: 1719-1830 [transcrição e organização
Yumiko Takamoto Suzuki]. Cuiabá: Entrelinhas; Arquivo Público de Mato Grosso,
2007.

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O USO DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E CULTURA AFRO-


BRASILEIRA COMO UM VIÉS A LUTA CONTRA O RACISMO

AMANDA THAMARA DA SILVA FERREIRA (1), KARINA BALIEIRO DA SILVA (2).


(1) Universidade do Estado do Amazonas, Graduanda,
amandathamara1999@gmail.com
(2) Universidade do Estado do Amazonas, Graduanda,
kbalieiro74@gmail.com
Resumo
Este artigo tem como objetivo a refletir junto ao estudante acerca do estereótipo e o preconceito
que norteiam a temática africana e negra. Para tal, foi desenvolvido o projeto “Vista a minha
pele” aplicando à temática história da África e sua contribuição na sociedade brasileira,
resultando como desfecho o combate a luta contra o racismo. Vindo ao encontro com a Lei
10.639/03 e sua promulgação Lei 11.645/2008 que estabelece à inclusão no currículo de ensino
a obrigatoriedade da temática História da África, Cultura Afro-brasileira e Indígena. Assim, o
projeto se desenvolveu em sala de aula com alunos do 6º e 7º ano, do Ensino Fundamental no
turno matutino na Escola Estadual Corintho Borges Façanha, município de Tefé-Amazonas.
Contudo, as atividades propostas possibilitaram aos alunos reconhecerem a matriz africana
presente no cotidiano. Tendo como resultado uma consciência sobre a importância da matriz
africana na formação da identidade brasileira, sem negar sua identidade racial e nem sua cultura
para desconstruir estereótipos e preconceitos sobre a cultura africana, bem como combater o
racismo na escola.

Palavras-chave: Cultura; Racismo; Ensino de História.

Introdução

O presente artigo tem como objetivo mostrar-nos como o ensino da história da África
e da Cultura afro-brasileira pode ser uma ferramenta para luta contra o racismo que está
impregnado na sociedade brasileira. O ensino foi escolhido para tal, pois a classe estudantil é
o futuro da sociedade, e a educação é um forte agente da transformação social.

Dividido em três partes, este trabalho reúne teoria e prática, mostrando que é possível
ambas andarem juntas, e obter bons resultados. Tal artigo apresenta as mudanças ocorridas na

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escrita da África, através de autores que reescrevem a história da África e como estas mudanças
atingem a sociedade e o ensino brasileiro.

Contém também experiências vividas no PIBID de História, da Universidade do Estado


do Amazonas-UEA/no Centro de Estudos Superiores de Tefé-CEST. No Ensino Fundamental
II, da Escola Estadual Corintho Borges Façanha em 2019, com um projeto que visava à inclusão
de todos os alunos e a desconstrução do preconceito racial existente na sociedade. E como os
alunos da escola, se envolveram e até mesmo se identificaram com o projeto desenvolvido para
o combate do racismo, expondo os resultados obtidos e a culminância do projeto no dia
consciência negra, que envolveu toda a Escola.

O uso do ensino de História da África e cultura afro-brasileira como viés a luta contra o
racismo
(Re) escrita Africana: A África em um novo prisma.

A identidade é um elemento fundamental para o indivíduo, pois ela possibilita pensar


sobre si, seu passado e construir seu futuro; o pesquisador Stuart Hall (2006) elenca “A
identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como
indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é "preenchida" a partir de nosso exterior, pelas
formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros.” (HALL, 2006 p. 39).

Desta maneira, cada povo e nação possui sua identidade, e é a história que apresenta as
qualidades de determinado grupo. Porém essa identidade histórica é distorcida, quando agentes
exógenos vêm e constroem narrativas errôneas sobre uma civilização ou nação. À vista disso,
a escrita sobre o continente africano é assentada no eurocentrismo, onde proporcionou
preconceitos e visões improcedentes de povos africanos a partir destas reflexões.

No passado havia o pensamento de que os povos que não possuíam a escrita, não tinham
cultura e por isso eram esquecidos. Por conta do receio dos pesquisadores em utilizar a história
oral, a narrativa de vários povos foi escondida e negligenciada durante um longo tempo. Muitos
estudiosos tinham desconfianças a respeito da oralidade, os mesmos contestavam sua

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veracidade e se era aconselhável confiar em algo que simplesmente foi falado, pois existia a
ideia de que somente documentos escritos eram confiáveis e dignos de credibilidade, porém,
essa visão se mostrou errada e felizmente se tornou obsoleta.

A história da África por muito tempo ficou fora do alcance da historiografia, as


descrições raras e superficiais norteavam as análises dessa região exibindo um espaço
intransitável que se torna inviável a mistura entre etnias e povos. Ou seja, nada tinha sobre este
território ou o que se tinha era escasso, tornando a história sobre ele insatisfatória para o
conhecimento do mesmo. Existindo o pensamento eurocêntrico representando uma "ideologia
e paradigma cujo cerne é uma estrutura mental de caráter provinciano fundada na crença da
superioridade do modo de vida e do desenvolvimento europeu ocidental" (BARBOSA, 2008,
p. 47).

Com essa crença, não poderia existir uma história da África, mas, sim a história dos
europeus no continente africano recorrendo sempre às fontes externas, incapaz de considerar
as sociedades africanas como possuidora de uma cultura original que se perpetuou durante os
séculos.

Os europeus acreditavam que eram impossíveis as misturas entre etnias e povos, visto
que o Saara era impenetrável, logo não poderiam ocorrer trocas de bens materiais, apesar de
que foram presenciados impérios que possuíam uma sociedade politicamente organizada que
se assemelhava a situação mesopotâmica. Alberto da Costa e Silva na obra A manilha e o
Libambo elenca reinos que possuíam grande desenvoltura comercial, assim:

Nos grandes reinos da savana sudanesa, como Gana, Mali, Canem-Bornu, Songai
e, mais tarde, Oió, os reis eram os maiores proprietários agrícolas. Muitas
plantações, contudo, pertenciam a particulares, que colocavam nos mercados boa
parte da produção. Ou a exportavam. O milhete do Mali, por exemplo — isto nos
diz Ibn Batuta —, era consumido, na metade do século XIV, nas minas de sal de
Tagaza. (SILVA, 2011, p. 36).

Com o avanço da hermenêutica foi revelado que essa visão sobre a África sem história
não tinha fundamento, nos anos 1950 surge uma escola revisionista originada em meados do
século XX durante o processo de descolonização, já com público significativo mesmo sem ter

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muito enfoque, assim à história da África vinha sendo contada entre os leitores franceses e isso
fez com que surgir um novo prisma. Uma (re) escrita histórica onde os africanos são os sujeitos
e não objeto de sua própria história, o historiador Elikia M’Bokolo aponta em sua obra
intitulado África negra: História e Civilização o real valor dessa nova visão da África. Para a
elaboração de tal processo, foram usadas as tradições orais e a escrita, esse método era inédito
para a época em que se desdobrou, assim segundo o autor:

Abriram-se novos terrenos na escrita centrando a história da África na própria


África, e não já nas relações dos outros continentes com a África, e tomando em
consideração “o ponto de vista africano” em todos os fenômenos de contato entre
a África e o mundo exterior. Assim foi construída uma história que evidencia,
com argumentos mais bem fundados, uma África totalmente diferente da que
constava dos manuais colonialistas: as frequências dos movimentos migratórios,
atestando a abertura e a fluidez dos grupos humanos; a vitalidade dos Estados,
reinos e impérios; a intensidade da circulação das mercadorias, pelo ‘comércio a
longa distância’, mostrando procedimentos de integração em vasta escala; a
existência de uma longa ‘tradição de resistência’, cujo a última fase, a do
nacionalismo, havia derrubado os regimes coloniais[...]. (M’BOKOLO, 2011, p.
681).
Enfim, percebeu-se que a tradição oral e crônicas locais são essenciais para escrever a
história desse povo, o autor A. Hampaté Bâ (1982) no escrito A tradição viva, deixa clara a
importância da história oral, expondo que não há como contar sobre a história do continente
africano, suas crenças, costumes tradições, lutas e conquistas sem uso da oralidade em vista
que, os conhecimentos, saberes e a cultura africana sempre foram repassadas oralmente entre
seu povo, de geração a geração.

A herança não se perde, dado que a memória tem o papel de guardar a cultura e é nas
lembranças de cada indivíduo que reside a história. A escrita não deve menosprezar o
conhecimento adquirido, uma vez que ambas possuem seu valor e sua finalidade na valorização
e no resgate da história.

Logo, com os estudos a respeito do continente Africano se teve uma percepção e um


desdobramento em sua (re) escrita, mostrando um território vasto de diversidade e sociedade
que tinham hierarquias e reinos complexos. Onde o deserto não significa um grande desafio
perante as extensas rotas comerciais, o Saara só distanciou a África Negra do Mediterrâneo até

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2000 a. C., pois aconteceu o ressecamento, posteriormente houve a possibilitando trocas


comerciais perante toda a África e os territórios ao seu redor. Tornando possível a troca de
informações, inclusive no âmbito cultural de cada povo que pode propiciar em alguns grupos
a aculturação.

Por conseguinte, a vegetação se domesticou, do mesmo modo que alguns animais, mas,
segundo Costa e Silva (2006) em seu livro A enxada e a Lança, eles nunca foram amansados
de forma sistemática. Assim, a fauna é um dos grandes pontos de riqueza da África, superando
até mesmo a flora. As práticas de trabalho se diferenciam de grupos para grupos, assim como
a tronco linguístico e seus ritos e crenças.

Projeto Vista A Minha Pele

O Brasil nasceu do encontro das diversidades étnicas e culturais, povos indígenas,


europeus e africanos, são as raízes culturais brasileiras, elas são as identidades, que “[...] se
caracteriza pelo conjunto de suas vinculações em um sistema social: vinculação a uma classe
sexual, a uma classe de idade, a uma classe social, a uma nação etc.” (CUCHE 1999, p. 177).

As resistências dessas matrizes formadoras ainda se manifestam, influenciando o


brasileiro indistintamente, mas o preconceito racial, que é uma opinião errônea, na qual acredita
que um grupo de indivíduos, se sobressairá a outros pelas características tanto biológicas
quanto culturais, tudo isso por causa do pensamento etnocêntrico. Sendo ele, segundo Laraia
(2001), um fenômeno universal, apesar disso, a mestiçagem biológica não deixa de existir na
sociedade, Freyre (1992, p. 307) cita que, “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelos louros,
traz na alma, quando não na alma e no corpo a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou
do negro”.

Nas últimas décadas, a figura do ensino tradicional focada na imagem do professor


como o único transmissor do conhecimento histórico, que atribuía o papel do aluno como
coletor de informações sobre o conteúdo se torna alvo em debates. Com isso, há uma busca
para redefinir os conteúdos e para o apontamento de novas metodologias para sua explorá-lo,
tendo como prisma a interação entre o sujeito e aluno como protagonistas da história. A

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

expedição da Lei 10.639/03 e sua alteração pela Lei 11.645/2008 estabeleceu as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, e determinou a inclusão no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática História da África, Cultura Afro-brasileira e Indígena, em todas as
escolas tanto pública como particulares, estimulou assim o uso de novos métodos de ensino,
para enriquecer essa temática em sala de aula salientado o ensino prazeroso para o estudante.

Assim, a escola, muitas vezes, silenciou e ainda silencia diante de situações


que fazem de seus alunos alvo de discriminação, transformando-se em espaço
onde se consolidam estigmas. Além deste aspecto, os currículos brasileiros –
fala-se do ensino fundamental – foram tradicionalmente estruturados em
padrões eurocêntricos, e não abordavam e incorporavam experiências
políticas, culturais e religiosas dos diversos grupos étnicos que compunham a
nação brasileira. Uma escola organizada, nesta lógica, implementou a
homogeneidade de conteúdo, ritmos e estratégias. Dessa forma, a escola tem
organizado seus tempos, espaços e ritmos como também seu fracasso como
instrumento cultural. No entanto, novos horizontes despontaram. Agora,
como nunca antes ocorreu, as propostas curriculares tentam incorporar uma
política que visa ao reconhecimento da questão pluralidade cultural.
(COSTA, 2018, p. 8).

Todavia, a educação brasileira é precária, os temas envolvendo a história da África que


norteiam os livros didáticos são, em grandes casos, um aglomerado de estereótipos que assolam
um conhecimento brando sobre a temática. Assim, esse território traz desafios instigantes para
os professores, dado que esse estabelecimento de ensino não se tem um reconhecimento da
agregação dos traços culturais que compõem o corpo discente, dessa forma, atribuindo uma
imagem europeísta.

Foi desenvolvido o projeto “VISTA A MINHA PELE”, vinculado ao Programa


Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) através da Universidade do Estado do
Amazonas no Centro de Estudos Superior de Tefé (CEST). Tal projeto tem como objetivo a
reflexão dos alunos a respeito do preconceito racial, utilizando a temática história da África e
sua contribuição na sociedade brasileira, e a compreensão da importância da matriz africana
para a construção da identidade cultural afro-brasileira. Utilizando como ferramenta os
recursos audiovisuais, pois, eles fazem parte do cotidiano dos alunos: séries, imagens, vídeos,

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filmes, novelas e jogos interativos, carregam consigo uma grande massa de informação,
possibilitando um amplo acesso.

Logo, foi desenvolvido este trabalho em sala de aula com alunos do 6º “01”, com 32
alunos; 6º “02” com a participação de 35 estudantes; 6º “03”, com 31 alunos; e 7º ano “01”
participou 38 alunos, do Ensino Fundamental no turno matutino na Escola Estadual Corintho
Borges Façanha, município de Tefé – Amazonas, no ano de 2019.

O projeto começou a ser elaborado na segunda quinzena do mês de outubro. No


primeiro momento houve uma verificação de referências bibliográficas, que foi usado para
enriquecer a temática. Em seguida, a pesquisa de recursos na internet, sempre buscando
relacionar as atividades que seriam desenvolvidas com o objetivo do projeto, dispondo métodos
diferenciados para inovar durante as aulas, para ter a participação ativa dos alunos no decorrer
das atividades, observando que não houve a atribuição de nota (média) para os alunos.

O início das atividades se iniciou no mês de novembro, tendo enfoque a organização da


aplicação da metodologia de ensino para cada turma, dado que é inviável a aplicação do mesmo
método em todas as turmas.

O primeiro contato com as turmas aconteceu no mês de novembro, desenrolou-se para


a explicação dos objetivos do projeto, proposta das atividades e como elas seriam
desenvolvidas e por fim, a culminância do projeto, em formato de workshop apresentado no
dia 20 de novembro de 2019, para todas as turmas do turno matutino da escola com as
atividades que se desenvolveram em sala de aula.

A primeira atividade foi desenvolvida em forma de apresentação aos alunos da poesia


de Castro Alves, intitulada Navio Negreiro, através dela, houve trocas de experiências vividas
pelos alunos, que foram alvos de preconceito racial, mesmo sendo jovens. Com isso, a atividade
chegou ao fim com a produção de poemas individuais confeccionados durante a aula tendo
como tema principal a cultura afro-brasileira.

No segundo momento, foram apresentadas imagens ilustradas de rituais de povos


africanos, os alunos ficaram impressionados com a diversidade cultural que abrange o
continente. Isso possibilitou a quebra de estereótipos e no desfazer de um olhar eurocêntrico,

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formando uma nova perspectiva da riqueza que compõe arte, cultura e religiosidade dos povos
africanos. Segundo Monti, “Se a máscara teve, pois, um papel de grande importância em muitas
culturas, sobretudo nos primórdios [...] na África, ao contrário, provavelmente pelo grau de
primitivismo mantido pelas populações através dos séculos, ela manteve sua preeminência
intacta”. (MONTI, 1992, p.8). Para finalizar a atividade, foram confeccionadas máscaras com
algumas características dos povos africanos, a escolha do material foi a critério do aluno, já
que queríamos diversidade e, para isso, as máscaras tinham que ser diferentes em sua
construção e estética.

Um dos assuntos altamente abordado em sala de aula foi a escravidão no Brasil e o


tráfego negreiro. Em foco, o papel da mulher nessa sociedade, pois ela foi essencial para
formação dessa organização do trabalho que ocorreu através da escravidão, para isso foi aberto
um diálogo embasado em alguns conhecimentos que os alunos já possuíam, tendo adquirido
através de séries e novelas que retratam essa época. Houve a confecção de bonecas de retalhos,
chamadas de Abayomi, que na língua Yorubá significa “meu presente”, os alunos se sentiram
integrados, por meio dela, abriu-se um diálogo sobre o espaço para a visibilidade da criança
negra na história afro-brasileira. Sendo dessa forma, “Na expressão facial, propositalmente,
não há demarcação de boca, nariz e olhos, para favorecer o reconhecimento da identidade das
múltiplas etnias africanas e assim, estabelecer uma comunicação subjetiva”
(www.bonecasabayomi.com.br).

Sucedeu-se a amostra de lendas e mitos africanos durante as aulas, com a intenção


revelar e expandir a cultura, tendo o enfoque, sempre na diversidade e no auto reconhecimento.
Uma vez que há um sentimento de integração que norteia a história desse continente, os alunos
perceberam que a matriz africana foi primordial para a construção do país que chamamos
atualmente de Brasil. Levando todos esses aspectos em consideração, foram realizados
desenhos, painéis, maquete e mostra de dança para que se perceba a presença da matriz africana

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e afro-brasileira visando a quebra de estereótipos, a percepção e aceitação da identidade de si


mesmo.

A culminância do projeto “Vista a minha pele” ocorreu no dia 20 de novembro, no


formato de workshop, o local da apresentação foi na quadra poliesportiva da escola. Cada turma
teve alguns representantes para apresentar e expor as atividades que foram desenvolvidas na
sala de aula durante o mês de novembro. A amostra durou três horas, alguns estudantes do 8º
e 9º ano que participaram com expectador tiveram alguns questionamentos que geraram
explanação proporcionada pelos expositores, formando um novo prisma sobre a matriz africana
e afro-brasileira.

Conclusão

O ensino modificou-se e vem se transformando ao longo dos anos, os novos suportes


que auxiliam na aprendizagem e o emprego de novas metodologias, possibilitaram essa
inovação. A aceitação da oralidade como fonte histórica também foi um salto para o ensino,
pois ela permitiu a desconstrução e a nova (re) escrita da história da África, onde desfez de
estereótipos que não são mais aceitos no meio acadêmico.

A educação tem um grande papel na sociedade, se existe algum âmbito social que
mudará, ou que seja o pontapé inicial para a mudança social, este é a educação. No início do
projeto “Vista minha pele" não se imaginava que ele teria grande impacto na vida dos alunos e
dos envolvidos. A participação da escola, da classe de professores e, sobretudo dos alunos foi
de suma importância para a realização. Destaca-se a classe de discentes da escola que abraçou

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esse projeto, se envolveu na criação das atividades proposta e relataram suas experiências com
preconceito racial.

Portanto, este projeto expõe que é possível trabalhar como novas metodologias que
possibilitam o ensino prazeroso e dinâmico. Filmes, séries, imagens, charges e até mesmo a
poesia, são exemplos de suportes que podem auxiliar e facilitar o aprendizado, tornando-o mais
convidativo e envolvente. No mais, acredita-se na possibilidade de militar contra o racismo por
meio da Educação, fazendo uso do ensino da história da África e cultura afro-brasileira.

Referências
BARBOSA. Muryatan Santana. Eurocentrismo, História e História da África. Revista
Sankofa, n.1, jun. 2008. p.47.
COSTA, Renilda Aparecida. Reconhecimento das identidades étnico-raciais e a
implementação políticas educacionais no Brasil. Rio de Janeiro, 2018.
CUCHC, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais / Denys Cuchc; introdução de Viviane
Ribeiro. - - Bauru: EDUSC, 1999.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1992.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HAMPATE BÂ. A tradição viva. In KIZERBO, J. História Geral II da África Metodologia e
pré-história. São Paulo: Ática, Paris: UNESCO, 1982.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico / Roque 14.ed. de Barros
Laraia. — 14.ed. — Rio de Janeiro: Jorge"Zahar Ed., 2001.
M’BOKOLO, Elikis. África negra: História e civilização/ Elikia M’Bokolo; com a colaboração
de Sophie le Callennec e de Thiemo Bah; tradução de Manuel Resende; revisão acadêmica da
tradução para a edição brasileira, Daniela Moreau, Valdemir Zamporoni; assistente: Bruno
Perssoti. – Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa das Áfricas, 2011.
MONTI, Franco. As máscaras africanas. Trad. Luís Eduardo de Lima Brandão. 1. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 154 p, 1992.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: A África antes dos portugueses/ Alberto da
Costa e Silva. – 5.ed.,ver.e ampl.-Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700 /
Alberto da Costa e Silva. - 2.ed. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2011.
Site: WWW.BONECASABAYOMI.COM.BR acessado em 17/10/2020

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DOS BARRACÕES AOS CASARÕES: ORGANIZAÇÃO ESPACIAL NA


CONSTRUÇÃO DA FERROVIA MADEIRA-MAMORÉ

ANA CAROLINA MONTEIRO PAIVA


Universidade Federal da Paraíba, mestranda.
anacarolina.mont@hotmail.com

Resumo

No início do século XX, a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré mobilizou


trabalhadores de diversos países, organizados em um regime de trabalho hierárquico
determinado por suas nacionalidades e funções. Manuel Ferreira (2005) e Francisco Foot-
Hardman (2005) identificam o número de contratados pela Madeira-Mamoré: desde o início
das suas obras em 1907 até o fim de 1912 há no total 21.817, com o número de óbitos de 1.693.
A proposta deste artigo consiste em analisar apenas um desses aspectos que compõe o processo
de construção da ferrovia, ao discutir a organização dos espaços destinados aos trabalhadores
no complexo central ferroviário, uma vez que a Companhia construtora, liderada pelo
empresário Percival Farquhar, investiria, primeiramente, na construção de uma infraestrutura
para garantir a efetivação do trabalho a ser realizado, onde as funções desempenhadas pelos
trabalhadores condicionavam ou estavam diretamente ligadas ao tipo de moradia que
ocupavam. Para isso, será preciso compreender a escolha da perspectiva teórico-metodológica
dos estudos da história social do trabalho como um prisma analítico que proporciona a
retomada do tema da construção da ferrovia Madeira-Mamoré, inserindo-a nas discussões
sobre os mundos do trabalho.

Palavras-chave: Ferrovia; Porto Velho; História do trabalho;

Introdução
A construção da ferrovia Madeira-Mamoré foi um processo exploratório de trabalho
humano antes de um empreendimento pioneiro, heroico, civilizatório e moderno. No início do
século XX, as inovações tecnológicas visando uma conexão produtiva e comercial sob a égide
do capital industrial, produziram novos significados de modernidade e progresso que

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potencializaram os discursos políticos. Um desses símbolos eram os trilhos de ferro, que


caracterizavam nações em expansão, como os Estados Unidos, alterando a comercialização e
hábitos de trabalho, de acordo com Eric Hobsbawm (1986).
Segundo Heloisa Cruz (1990, p. 12), os projetos de serviços, como uma ferrovia, eram
atividades concebidas como áreas de responsabilidade pública, mas o domínio desse setor era
estabelecido através de concessões emitidas pelo governo federal, abrindo brecha para a
inserção de capital estrangeiro, em que as “atividades de serviços” eram criadoras de “um novo
espaço de subordinação do trabalho”.
Visando a inserção nesse momento histórico, o Brasil e a Bolívia retomam a construção
da ferrovia que ligava os rios Madeira e Mamoré. Com a produção da borracha silvestre, uma
das principais atividades econômicas para os países, o objetivo era que os produtos fossem
baldeados de Guajará-Mirim, ponto fronteiriço com a Bolívia, pela ferrovia que os
transportariam de uma extremidade à outra, paralelamente ao trecho encachoeirado do rio
Madeira, até Porto Velho, ponto em que já era possível as embarcações atracarem e seguirem
viagem aos portos de Manaus e Pará, encontrando acesso ao oceano Atlântico.
O tratado de construção é firmado em 1903, a concessão é passada para o empresário
norte-americano Percival Farquhar, iniciando em 1907 os trabalhos com a empreiteira
construtora May, Jekyll & Randolph, formada pelos norte-americanos Robert H. May, Arthur
B. Jekyll e John Randolph – que trabalhavam com Farquhar na construção do Canal do Panamá.
Francisco Foot Hardman (2005) e Manoel Ferreira (2005) estimam que cerca de 30.000
homens, de cerca de 40 nacionalidades, tenham chegado a Porto Velho com o objetivo de
trabalhar na construção até o ano de inauguração, entre 1907 a 1912. Dito isto, o objetivo deste
artigo consiste em discutir os espaços de moradia dos trabalhadores, organizados pela
Companhia construtora da ferrovia a partir das relações de trabalho.
Conforme Maria Auxiliadora Decca (1983), mesmo quando fora dos locais de trabalho,
o “quadro de vida” dos trabalhadores é circunscrito e atravessado pelos interesses do capital.
No caso da ferrovia Madeira-Mamoré, também as moradias são edificadas de acordo com os
homens e seus serviços de construção e manutenção da linha férrea. Em consonância com
Evandro Lopes (1995) e Dante Fonseca (2017), que ressaltam a hierarquia presente na divisão

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dos locais de moradia da ferrovia, analisarei algumas dessas habitações, como os barracões,
acampamentos e casarões.
Teoricamente, há uma separação entre os “espaços de trabalho” e “espaços de moradia”.
Seguindo as discussões de Danielli Colucci e Marcus Souto (2011), o “espaço” é formado pela
inter-relação entre “meio físico” e as esferas sociais, ou seja, espaço é a interação entre os
homens e o meio físico, no movimento de apropriação dos recursos e produção/reprodução da
existência. Nestes espaços, há os “locais”, aquilo que é “próprio do lugar” das especificidades,
das vivências, da interação maior entre os sujeitos. Tudo isso pertence ao território, uma vez
que “território” se refere ao estabelecimento de relações de poder institucional sobre o espaço
delimitado por extensão de terra e dinâmicas sociais dos locais. Barracões, acampamentos e
residências são locais que compõe os espaços de trabalho e moradia dentro do território da
Companhia.
Durante a construção, os barracões eram montados por turmas de exploração, projeto e
qualquer outro serviço envolvendo o assentamento dos trilhos, de modo que, por serem
trabalhos que exigiam constantemente maior locomoção, os barracões eram práticos por serem
armados com maior rapidez. De lona ou palha de coqueiro, eram dispostos de 10 em 10
quilômetros. Se diferenciavam pela qualidade do material utilizado para cobertura do teto;
pelos seus recursos, que em alguns trechos da ferrovia podiam ser escassos devido à distância
dos barracões do ponto central do complexo ferroviário; e, de acordo com os homens a serem
acomodados, como os operários responsáveis pelos serviços sob a supervisão de um técnico
para fiscalização e os engenheiros temporariamente a serviço pela linha férrea.
Evandro Lopes (1995, p. 24) também identificou no complexo central da construção,
em Porto Velho, habitações coletivas com a designação de “barracões”, organizadas de acordo
com as funções de trabalho, como “barracão para mecânicos”, “barracão para artífices” e
“barracão para trabalhadores”.
O empregado Henry Tomlinson faz uma descrição peculiar sobre essas barracas:
“desordenadas dos negros e dos trabalhadores nativos, que eram construídas suspensas do chão,
para permitir a ventilação, e tinha uma vala em volta, fétida com esgoto e desgraças com cheiro,
uma Coloenis, uma borboleta escarlate com asas estreitas, como as asas de uma andorinha,
costumava flamejar, e frequentemente pousaria ali” (p. 402). Helio Rocha (2011, p. 235)

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analisa, a partir da linguagem, os entremeios de uma denúncia velada às condições de habitação


e trabalho a que estes homens eram postos, discutindo como Tomlinson faz isto sob uma
perspectiva colonialista de animalizar o colonizado: o mau cheiro, o esgoto e a desordem
contrastam com a borboleta, mas coexistem no mesmo cenário.
A precariedade dessas habitações pode ser vista no relato de Bennit (1913): “Os
baracaoes possuíam as virtudes de serem à prova d'água, bem ventilados e frescos, mas não
eram à prova de vermes.” (p. 31-33). Com os barracões, há referências de “cabanas de
palmeira”, semelhantes na estrutura e ocupadas por operários, enquanto “carros com beliche”
eram fornecidos para o capataz e seus assistentes.
Após a inauguração, o que eram estadias temporárias para operários e empregados
tornou-se moradia de alguns trabalhadores, homens e mulheres, que encontraram nos barracões
“uma existência momentaneamente suportável – para um trabalho duro, um salário razoável,
uma habitação decente e uma alimentação passável” (ENGELS, 2010, p. 115-116).
As turmas de construção, por permanecerem meses no mesmo local, poderiam formar
acampamentos mais organizados. Estes acampamentos poderiam ser simples, semelhantes à
organização dos barracões de lona, ou com uma estrutura melhor, construídos com madeira –
com mosquiteiros, mas sem a proteção de arame nas portas como nas casas e residências de
Porto Velho. Médicos, engenheiros, comissários, cronometristas e os escriturários foram
alguns dos homens que temporariamente habitaram esses acampamentos.
Frank Kravigny (1940), ao descrever dois acampamentos por onde passou, relata que
eram acomodações mais desenvolvidas que os barracões. No acampamento nº 18, em “um
pequeno canto do prédio do comissário” havia sido montado um escritório para o pagamento
dos trabalhadores que se encontravam espalhados nos serviços da construção da linha. Esta
medida visava disseminar o poder da Companhia ao longo do trajeto da ferrovia e servir como
entreposto de controle dos trabalhadores, principalmente operários, evitando que estes
retornassem ao complexo central de Porto Velho e fossem tentados a abortarem os trabalhos
para regressarem à “civilização” dos seus países de origem. A autora Liliana Segnini (1982)
também observa esse fenômeno de controle a partir da construção de casas para os
trabalhadores de ferrovias na Companhia Paulista, onde a motivação consiste em ser “[...]

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necessário manter grandes turmas de trabalhadores, geralmente compostas de gente que não
prima pela constância no serviço” (SEGNINI, 1982, p. 53).
Alguns acampamentos cresceram em aglomeração, atraindo o comércio, servindo como
entrepostos para a Companhia e constituindo vilas, posteriormente à conclusão da ferrovia,
enquanto outros acampamentos transformaram-se em estruturas abandonadas, à medida que os
homens outrora ali mobilizados concluíam seus trabalhos e eram transferidos para outros
serviços ou, simplesmente, morriam durante os trabalhos prestados.
As casas ou chamadas residências, eram erguidas para os empregados de hierarquias
mais altas, como os representantes oficiais, empreiteiros e gerente geral da ferrovia, no
complexo central, em Porto Velho, mas em terras relativamente distantes dos escritórios e
oficinas (locais de trabalho). Geralmente eram compostas apenas por um pavimento e
esteticamente recriavam um ambiente que não se distanciasse do modo de vida dos países de
origem “civilizada” dos moradores.
Eric Hobsbawm elabora considerações sobre o “lar burguês” e os interiores que os
cercavam, que ajuda a compreender a configuração de um ambiente e modo de vida transferido
para o espaço da ferrovia. Os registros do interior de uma das residências, pelo fotógrafo
contratado da ferrovia, Dana Merrill, são compostos por objetos (mobília, espreguiçadeiras,
plantas, decoração) e um casal.
Os objetos bem elaborados, como uma mobília trabalhada, expressavam seu custo e
simbolizavam o status, revelavam tanto o “valor em si mesmo como expressões de
personalidade, como sendo o programa e a realidade da vida burguesa” (HOBSBAWM, 2000,
p. 238). Alain Corbin coloca o cuidado com o jardim e plantas como um marcador de
diferenciação entre as classes, que podemos identificar no contexto das residências dos
empreiteiros: “Para o rico, o ar, a luz, o horizonte desimpedido, o retiro do jardim; para o pobre,
o espaço fechado, sombrio, os tetos baixos, a atmosfera pesada, a estagnação dos fedores.”
(CORBIN, 1987, p. 191).
Em síntese, a ocupação dos espaços de moradia é construída pelas relações sociais a
partir da convivência entre sujeitos e grupos, porque o local é a esfera de interação.
Os trabalhadores são formados por dois abrangentes grupos, os operários (realizam o
serviço braçal) e os empregados (não realizam serviços que envolvem força física). Os de

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categoria mais alta, como empreiteiros, moram em residências de melhor qualidade e mais
afastadas do local de trabalho, suas interações ocorrem em grande parte do tempo em um
círculo limitado de homens que compõem os cargos mais altos.
Os que moram em barracões geralmente são operários, trabalham ao ar livre no leito da
estrada ferro, onde moram e trabalham no mesmo espaço; por serem moradias que vão se
distanciando do complexo central, há um esmaecimento do controle da Companhia sob esse
território, fazendo com que outros trabalhadores livres somem-se aos barracões, aumentando o
horizonte de suas interações.
Os moradores dos acampamentos podem ser operários ou empregados; alguns
acampamentos possuem estrutura melhor, outros não. No acampamento, escritórios e trabalho
na linha férrea são os locais de trabalho, em que alguns possuem um conforto maior do que
outros, mas conjuntamente, em algum momento podem compartilhar uma precariedade
independente das funções. São acampamentos próximos do local de trabalho.
Dessa forma, a ocupação é determinada pelas relações de trabalho, que produzem
diferentes experiências de trabalho. O elo que congrega esses modos distintos de viver é a
relação de exploração criadora das condições históricas em que esses homens, subjugados pela
venda da sua força de trabalho, não podem escolher o modo como vivem, pois é determinado
pela Companhia.
Esse sistema de habitação não era novidade trazida pela ferrovia Madeira-Mamoré. Para
Percival Farquhar, foi mais uma oportunidade não somente da expansão dos seus investimentos
na região amazônica, mas também de experimentação do seu sistema de exploração através de
construções, já que tinha experiência dentro do ramo de exploração dos serviços na América
Latina.
Com as experiências pela Guatemala e Cuba, pode-se afirmar que a ferrovia Madeira-
Mamoré consistiu em campo de experimentação dos seus métodos na implantação de um
sistema hierárquico de trabalho e estrutura habitacional e sanitária, aplicados em cerca de
30.000 homens e mulheres, que se adaptaram, desertaram ou morreram.
Em consonância com a afirmação de Eric Hobsbawm (2000) de que “Os fenômenos
mais superficiais são às vezes os mais profundos” (p. 237), a proposta deste artigo foi discutir

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

brevemente a potencialidade de se estudar elementos da ferrovia Madeira-Mamoré,


evidenciando as relações de trabalho em uma perspectiva da história social.

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE,


DA MEMÓRIA E DA CULTURA NEGRA NAS ESCOLAS PÚBLICAS
MUNICIPAIS DE VALENTE- BA

ANA CLÁUDIA DO CARMO CEDRAZ


UNEB, mestranda
claudiacedraz2009@hotmail.com

Resumo

Este estudo ainda em construção busca analisar as práticas pedagógicas de valorização da


identidade, da memória e da cultura negras desenvolvidas institucionalmente nas escolas
públicas de ensino fundamental do município de Valente-BA, a partir do recorte de duas
escolas, a Escola Municipal Santa Rita de Cássia e a Escola Municipal Reinaldo Ramos Rios,
localizadas no distrito de Santa Rita de Cássia do município supracitado. Para atingir os
objetivos propostos, foi realizada uma discussão teórica a respeito dos processos de construção
da identidade, da memória e da cultura da população negra no Brasil, objetivando ressaltar as
especificidades das relações étnico-raciais que se desenvolveram na sociedade brasileira e suas
repercussões no campo da educação e nas práticas educativas. Além da revisão bibliográfica,
o estudo usou a etnografia para apreender como ocorrem as práticas educativas para as relações
étnico-raciais nas referidas escolas. A importância deste estudo reside no fato de que ainda são
poucos os trabalhos que se debruçam sobre as práticas educativas para as relações étnico raciais
nas escolas do Sertão da Bahia.

Palavras-chave: Práticas educativas; Identidade; Culturas negras.

Introdução
Este estudo busca trazer à tona a discussão sobre os limites e os desafios vivenciados
no processo de construção das práticas pedagógicas de valorização da identidade, da memória
e da cultura negras nas escolas localizadas no interior da Bahia. Para além do citado, a despeito
dos limites e desafios enfrentados, busco compreender se existem experiências educativas
ocorrendo nas escolas que apresentam práticas no trato da História e Cultura Afro-Brasileira e

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Africana e que possam ser tomadas como referências inspiradoras no processo de consolidação
da política educacional de educação das relações étnico-raciais.

Tomei como recorte duas escolas municipais de Valente, município localizado no


Sertão da Bahia, a aproximadamente a 240 km da capital baiana. A maior parte dos habitantes
do município se declara pretos ou pardos. Esses dados mostram a importância da educação para
as relações étnico-raciais nas escolas deste município, uma vez que esta política se constitui
uma ferramenta de transformação social e valorização das identidades negras no nosso país.

A importância deste estudo reside no fato de que ainda são poucos os trabalhos que se
debruçam sobre as práticas educativas para as relações étnico raciais nas escolas do Sertão da
Bahia. Esta lacuna sinaliza o que foi apontado por Candau (2008): “A nossa formação histórica
está marcada pela eliminação física do outro ou por sua escravização, que também é uma forma
violenta de negação de sua alteridade”, (CANDAU, 2008, p. 17).

Como evidenciado por Candau (2008), o tráfico atlântico deixou consequências


marcantes na sociedade brasileira e que continuam refletindo veementemente nos sistemas de
ensino do nosso país. Estas consequências nos permitem entender que a política multicultural
atual sugere muito mais do que o reconhecimento da diversidade. As mudanças vividas nas
últimas décadas na América Latina e a insurgência dos movimentos sociais afro e indígenas
culminaram em decretos e leis que asseguram a história e a cultura africana e afro-brasileira
nas escolas do nosso país. Em um artigo intitulado “Interculturalidade Crítica e Pedagogia
Decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver” a autora Catherine Walsh nos faz pensar sobre a
importância da pedagogia decolonial para mudar o cenário atual. Segundo Catherine Walsh
(2009):

Como projeto político, social, epistêmico e ético, a interculturalidade crítica


expressa e exige uma pedagogia e uma aposta e prática pedagógicas que
retomam a diferença em termos relacionais, com seu vínculo histórico-
político-social e de poder, para construir e afirmar processos, práticas e
condições diferentes, (WALSH, 2009).

A pedagogia decolonial é entendida como um sistema educativo, de ensino e


transmissão dos saberes, e como prática e processo sociopolíticos pautados nas realidades,

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subjetividades, histórias e lutas das pessoas, vividas num mundo regido pela estrutura colonial.
O enfoque e a prática que se desprende da pedagogia decolonial é o diálogo com os
antecedentes crítico-políticos, ao mesmo tempo, em que partem das lutas e práxis de orientação
decolonial para dar vez e voz aos povos que foram subalternizados pela colonização, a exemplo
dos africanos, afrobrasileiros e indígenas.
A identidade nacional de um povo é construída por meio da atuação de vários espaços
sociais. A educação constitui-se um desses espaços porque possui o intento de formar cidadãos
e cidadãs nos modelos existentes na sociedade, mas também com o intuito de edificar o futuro.
Paulo Freire (2011) afirma que, sendo uma prática social, a educação ou o agir educativo de
cada povo ou, nação pauta-se pelas condições e necessidades postas em seus contextos e em
seu tempo. A discussão a respeito da educação para as relações étnico-raciais no Brasil, bem
como das demais subjetividades humanas, tem colocado em evidência a inserção do conceito
de diversidade em um contexto escolar que nasceu e se estruturou a partir da noção de
igualdade. Miguel Arroyo (1995) alertava sobre o fato de que nós, educadores, fazemos parte
de uma tradição pedagógica que aprendeu a lidar com a igualdade, e não com as diferenças.
Por isso, quando precisamos tratar pedagogicamente as diferenças “pensamos que o
pedagógico é superá-las, exigindo de todos a mesma trajetória educativa” (ARROYO, 1995, p.
19).

Tomamos como premissa que a educação das relações étnico-raciais, inserida no


contexto das políticas de ação afirmativa, pressupõe que tais relações sejam horizontalizadas e
que as matrizes étnicas e raciais sejam valorizadas, assim, avalizando que o direito às histórias
e às culturas que compõem o estado brasileiro seja garantido de maneira democrática e
equitativa. O objetivo é que, dessa forma, se possa promover o enfrentamento ao racismo tanto
na sua dimensão estrutural como na dimensão das práticas cotidianas, na perspectiva da
construção de uma sociedade “pós-racista” (MALDONADO-TORRES, 2007).

No caso da política de educação para as relações étnico-raciais, a obrigatoriedade do


ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena institucionalizada pela Lei
10.639/03 e alterada pela Lei 11.645/08 tem mediado esse processo em construção. A
institucionalização desta política educacional de afirmação da população negra, compõe o

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conjunto das políticas de promoção da igualdade racial no campo da educação. Como afirma
Gonçalves e Silva (2013, p. 2), “trata-se de uma política curricular de reconhecimento e de
reparação de desigualdades”. Ela integra o grupo de políticas de reconhecimento das
desigualdades e discriminações raciais contra os negros no Brasil e objetiva enfrentar as
injustiças nos sistemas educacionais do país. Segundo Candau:

Do ponto de vista pedagógico, a superação dos preconceitos sobre a África e


o negro brasileiro poderá causar impactos positivos, proporcionando uma
visão afirmativa acerca da diversidade étnico-racial e entendendo-a como
uma riqueza da nossa diversidade cultural e humana. Do ponto de vista
político, esta mesma visão deverá sempre ser problematizada a luz das
relações de poder, de dominação e dos contextos de desigualdade e de
colonização (CANDAU, 2008, p. 72).

Como evidenciado por Candau (2008), a obrigatoriedade do ensino de História e


Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena possibilita uma releitura sobre a África e a cultura
afro-brasileira e se mostra como uma ferramenta indispensável na desconstrução do imaginário
extremamente negativo sobre o negro, que “danifica sua auto-estima, culpa-o pela
discriminação que sofre e ainda justifica as desigualdades sociais”, (CANDAU, 2008, p. 73).

Portanto, busca contextualizar a gênese de nossa curiosidade epistemológica, por meio


da construção da política nacional de educação para as relações étnico-raciais, como uma
política curricular de afirmação da população negra no Brasil, os embates e desafios gerados
nesse processo de construção. Inseridas nesse contexto, penso nestas políticas de ação
afirmativa na acepção de Petronilha Beatriz Gonçalves Silva. Para Silva (2009, p. 264), estas
políticas podem ser, por sua vez, “compreendidas como aquelas que visam corrigir
desigualdades no acesso à participação política, educação, saúde, moradia, emprego, justiça,
bens culturais; reconhecer e reparar crimes de desumanização e extermínio contra grupos e
populações”.

Este estudo ainda em construção busca analisar as práticas pedagógicas de valorização


da identidade, da memória e da cultura negras desenvolvidas institucionalmente nas escolas
públicas de ensino fundamental do município de Valente-BA, a partir do recorte de duas

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escolas, a Escola Municipal Santa Rita de Cássia e a Escola Municipal Reinaldo Ramos Rios
localizadas no distrito de Santa Rita de Cássia do município supracitado.

As práticas pedagógicas e o trabalho com as especificidades locais

A educação é um fenômeno complexo que não pode ser estudado sem levar em
consideração os aspectos políticos, econômicos, culturais e sociais que estão imbricados no
processo pedagógico. Portanto, as práticas pedagógicas não devem atender apenas os
conteúdos formalmente estabelecidos. Elas precisam integrar o questionamento e a análise
crítica, a ação social transformadora, mas também a insurgência e a intervenção nos campos
do poder, saber e ser. Para Freire o ato de educar e educar-se é acima de tudo um ato político,
“sou substantivamente político”, disse, “e só adjetivamente pedagógico” (FREIRE, 2003).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e
para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, através da aprovação do parecer
CNE 003/2004 (BRASIL, 2004) e sua Resolução 01/2004 (BRASIL, 2004) são um modelo de
política pública implementada para a modificação do processo de exclusão promovido pelo
nosso sistema educacional e consequentemente as práticas docentes desenvolvidas nos
interiores das instituições escolares.

Para compreender as práticas pedagógicas de valorização da identidade, da memória e


da cultura negras desenvolvidas institucionalmente nas escolas públicas de ensino fundamental
do município de Valente-BA, foi realizada uma discussão teórica a respeito dos processos de
construção da identidade, da memória e da cultura da população negra no Brasil, objetivando
ressaltar as especificidades das relações étnico-raciais que se desenvolveram na sociedade
brasileira e suas repercussões no campo da educação e nas práticas educativas. A partir dessa
compreensão e dos pilares orientadores do olhar pedagógico, entendemos que as práticas
pedagógicas não acontecem num movimento de linearidade, com comportamentos
monolíticos, apresentando os mesmos sentidos e significados.

Vale destacar que a instituição da educação para as relações étnico-raciais como escopo
das práticas pedagógicas sugere questões que devem ser consideradas ao se avaliar as

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condições de oferta da educação, evidenciando que não basta ter acesso a uma educação que,
muitas vezes, reforça apenas uma visão de mundo ou que deveria ser seguida. É necessário
compreender que há resistências, discordâncias, conflitos e tensões que não podem ser
ignoradas no processo de decolonização da formação e do currículo.

É evidente que as escolas localizadas nas regiões Norte e Nordeste, regiões que
aparecem num lugar de subalternidade e exclusão econômica, precisam pensar seus currículos
e adotar pedagogias que possam questionar a matriz da colonialidade, o lugar central da raça,
do racismo e da racialização como elementos constitutivos e fundantes das relações de
dominação e é em meio a estas relações que as práticas pedagógicas de valorização da história,
da memória e da cultura negras e indígenas se desenvolvem em cada região, de acordo com as
possibilidades e realidades de cada contexto específico.

O trabalho de campo me possibilitou acompanhar as práticas pedagógicas e as


Atividades Complementares (ACs) com professores e coordenadores das referidas instituições.
Analisei o Projeto Político Pedagógico (PPP) das escolas e como os conteúdos para a educação
das relações étnico-raciais estão inseridos no currículo escolar e como são abordados e
assimilados pelos professores e alunos destas escolas. As Acs são realizadas semanalmente
com o objetivo de planejar as aulas semanais, organizar os eventos da escola, avaliar o trabalho
pedagógico e discutirem o que acontece na escola e em seu entorno. É um momento profícuo
e de muita aprendizagem, uma vez que os professores socializam experiências exitosas,
partilham suas angústias e dirimem dúvidas.

As atividades complementares, assim como a formação continuada dos profissionais da


educação apresentam-se como subsídios necessários para fundamentar o ciclo de construção e
vivência das práticas pedagógicas e é oferecida aos docentes, sem limitar-se a estes, embora
sejam considerados prioridades no processo. Portanto, os conhecimentos sobre a história e
cultura afro-brasileira e africana são construídos pelos diversos segmentos da comunidade
escolar e devem compor o currículo destas unidades de ensino.

Interessa aproximarmo-nos do currículo entendendo-o como uma unidade plural-


complexa-articulada seja na sua relação global/local, seja na sua relação prescrito/praticado,
uma vez que entendemos que tais relações se manifestam “em estratégias de reformas genéricas

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que por sua vez repousam na instalação de um conjunto de tecnologias, de políticas que
‘produzem’ ou promovem novos valores, novas relações e novas subjetividades nas arenas da
prática” (BALL, 2001, p. 103). De tal modo, percebemos que as políticas afirmativas, que vão
ter rebatimento nos currículos da formação de professoras/es, visam induzir novos valores e
novas subjetividades que abordem o racismo nas dimensões das disputas do cotidiano.

A escola Reinaldo Ramos Rios é uma escola municipal de Ensino Fundamental e


funciona no período matutino e vespertino atendendo crianças da pré-escola até o quinto ano.
Os clientes desta instituição são alunos da zona rural do município e também alunos do próprio
povoado. A escola atende alunos de baixa renda e por meio da observação empírica pude
constatar que a maioria dos seus educandos são pretos ou pardos. O Centro Educacional Santa
Rita de Cássia é uma escola municipal de Ensino Fundamental que atende os alunos do sexto
ao nono ano. A maioria destes alunos são os egressos da escola Reinaldo Ramos Rios, portanto,
o perfil social e econômico dos estudantes são os mesmos descritos anteriormente.

Segundo as professoras da escola Reinaldo Ramos Rios, a educação para as relações


étnico-raciais é pauta constante nos planejamentos pedagógicos, no entanto, segundo a
coordenadora ainda existe uma certa resistência por parte de alguns professores de se lançarem
nesta educação descolonizadora. “Não é fácil mudar tudo de vez, estamos aos poucos
desconstruindo esta educação eurocêntrica” relata a coordenadora. A lei 10.639/03 trouxe
alguns avanços no que tange à educação para as relações étnico-raciais, todavia, ainda temos
um longo caminho pela frente. “Em muitas realidades brasileiras a efetivação desta legislação
nas práticas pedagógicas ainda depende da ação de atores específicos, não sendo incorporada
na proposta pedagógica e curricular da escola” (GOMES, 2012, p. 340).

A equipe pedagógica registra que preza pelo ensino pautado na realidade local,
valorizando as práticas do cotidiano e as manifestações culturais da localidade. Durante o
ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira os professores buscam desconstruir os
estereótipos que permeiam este tema trazendo filmes, documentários, livros e outros
instrumentos que possam colocar estes sujeitos como protagonistas da sua história. Os
professores priorizam os contos africanos e os livros que tragam representatividade para as
crianças e os jovens negros.

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Para além do citado, a escola preza pelo estudo das atividades econômicas do entorno,
dos problemas sociais e ambientais da localidade e pela participação de pais e moradores nas
aulas. Como exemplo, a coordenadora cita o baú itinerante, no qual os alunos (um por vez)
levam o baú com um livro paradidático para sua casa e o responsável por ele tem a missão de
vir à escola para contar a história para toda a turma. É uma forma de estimular a leitura e
envolver os pais no processo de ensino/aprendizagem. Vale destacar que os pais podem
escolher contar histórias ou ensinar brincadeiras de quando eram crianças. A escola também
desenvolve projetos para as datas comemorativas como o treze de maio e o mês da consciência
negra como garantia da continuidade do ciclo de construção e vivência das práticas
pedagógicas de valorização da identidade, da memória e da cultura negras, com reflexão e
consistência.

O Centro Educacional Santa Rita de Cássia registra em seu PPP o compromisso com
uma educação pautada na formação de sujeitos críticos e atuantes. Durante as ACs, os
professores se empenham em traçar estratégias que assegurem uma aprendizagem significativa
e libertadora, pensada na pedagogia da autonomia do ilustre Paulo Freire. Em diálogo com
estes professores percebemos que a maioria tem buscado cursos de aperfeiçoamento tentando
atender às novas demandas que a educação pede. No trato da educação para as relações étnico-
raciais, os profissionais pontuam que buscam desenvolver atividade que levem o aluno a
questionar os padrões sociais e culturais vigentes. Vale ressaltar que os professores entendem
que este tema não deve ser trabalhado apenas em datas específicas e que isto deve fazer parte
do currículo da escola.

Os professores conhecem a lei 10. 639, mas confessam que as práticas pedagógicas para
a educação das relações étnico-raciais na escola ainda estão engatinhando. Percebo que muitos
professores se sentem inseguros, principalmente no que se refere às religiões afro-brasileiras,
evidenciando que os estereótipos ainda estão presentes no seio da nossa sociedade. Apesar das
dificuldades encontradas, as instituições de ensino participantes da pesquisa propõem-se a
construir uma prática na qual a comunidade escolar possua participação ativa na construção e
vivência de sua ação formativa. Entretanto, as formas de participação dos diferentes membros

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da comunidade escolar no ciclo de construção e vivência das práticas acontecem em momentos


e de modos diferenciados.

Algumas considerações

O desejo de contribuir para a construção de uma sociedade que questiona o discurso


homogeneizador vigente e considerando a existência de diferentes identidades no cotidiano da
escola, tem conduzido à ação de professores, coordenadores e gestores escolares do município
de Valente a se lançarem nesta seara da educação decolonial. Em seu livro Pele negra,
máscaras brancas, o pensamento de Fanon (2008) converge ao pensamento de Freire (2003),
quando argumenta sobre a necessidade de educar as pessoas para serem acionais, ou seja, para
agir.

Destacamos que as escolas analisadas enfrentam inúmeras dificuldades, das mais


diversas ordens que se pode constatar – política, ideológica, culturais, regionais, financeiras e
técnicas - evidenciando a ideia de que “a gestão da (e para) a diversidade é um grande desafio
para os sistemas de ensino e sofre resistências de diversas ordens” (GOMES, 2012, p. 341),
situação presente na realidade de muitas escolas públicas do município de Valente.

A despeito dos limites e desafios enfrentados, vale dizer que existem experiências
exitosas ocorrendo nas instituições supracitadas e que apresentam práticas no trato da História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana e podem ser tomadas como referências inspiradoras no
processo de consolidação da política nacional de educação para as relações étnico-raciais.
Portanto, as práticas pedagógicas de valorização da identidade, da memória e da cultura negras
são práticas de combate ao racismo, fundamentadas no pensamento negro em diálogo com o
pensamento de Paulo Freire e constituem uma pedagogia crítica e decolonial que estimulam a
autoconsciência e provocam a ação para a existência, a humanização individual e coletiva, e a
libertação.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

O LUGAR DO ÍNDIO NA HISTÓRIA: O QUE A HISTÓRIA


AMBIENTAL PODE OFERECER NA HISTORICIDADE INDÍGENA
(OU O INVERSO)

ANGELA REBELO DA SILVA ARRUDA


Universidade Federal do Amazonas. Doutoranda, Bolsista CAPES
angelarebeloarruda@gmail.com.

Resumo
Assim como a reflexão historiográfica sobre povos indígenas no Brasil, a história ambiental
também é relativamente nova e vêm demandando cada vez mais pesquisas para a grande área
da história. Tanto a história indígena quanto a história ambiental foram relegadas para outras
ciências, a primeira mais inclinada à etnografia e à antropologia e a segunda sem espaço para
o campo das ciências humanas, tradicionalmente voltado a uma análise exclusiva de
sociedade/cultura, portanto, contrário a uma análise homem/natureza. Essa postura de
marginalização de temas não convencionais na história acabou por gerar uma enormidade de
lacunas destacando a necessidade de pesquisas. O presente artigo propõe um entrelaçamento
dos dois temas, indígena e ambiental, visando contribuir com maior aprofundamento de suas
questões para o avanço da grande área da história.

Palavras-chave: História; História Indígena; História Ambiental.

“Não deveria o manual de história aprovado pelo Ministério da Educação começar


assim: ‘Crianças, vocês vivem em um deserto; vamos lhes contar como foi que vocês foram
deserdadas’?” A provocação crítica e crucial do historiador ambiental, brasilianista, Warren
Dean (1996, p. 379), com relação à destruição da natureza caracterizada como um verdadeiro
holocausto do homem contra as outras espécies, a qual deveria ser relatada de geração em
geração, evidencia diferenças fundamentais entre a maneira com que indígenas e não indígenas
se relacionam com meio natural.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Algumas das ações dos humanos em relação às outras espécies não fazem
ainda parte das reflexões éticas de todos os seres humanos. Talvez fosse
necessário pensar algumas dessas ações como genocídios ou mesmo como
sendo uma guerra travada pelos humanos contra outras espécies. (ARRUDA;
COLACIOS, 2019, p. 68).

Embora a história ambiental tenha como característica a multidisciplinaridade e a


interdisciplinaridade, somos contrários à ideia de que somente fazendo uso da antropologia, é
que se pode lidar com o tema indígena, pois suas especificidades costumam demandar
ferramentas antropológicas. Consideramos que a História ainda tem por fazer o preenchimento
da lacuna de historicizar o homem indígena. Do contrário não estaríamos concordando com
Varnhagen que em 1854 declarou: “de tais povos na infância não há história, só há etnografia”
(VARNHAGEN, 1981 apud MONTEIRO, 2001, p. 28)?

Propomos abandonar o exotismo, tão corriqueiro, para então examinar o índio como
homem histórico brasileiro. É crucial superar a ideia dos indígenas nos bastidores da história,
porque também são constitutivos de Brasil, enquanto grande comunidade de povos distintos.
Não necessariamente, precisamos conhecer línguas específicas e tentar se inserir no espaço
organizado de uma aldeia ou procurar um convívio que nos aproxime do cotidiano entre
comunidades indígenas.

Diferentemente de muitos países nas Américas, onde a presença indígena se


mantém forte na articulação das identidades nacionais, o lugar dos índios no
Brasil continua sendo conjugado, no mais das vezes, no tempo passado. Hoje,
uma minoria absoluta, a população indígena atual mal chega ao 0,20% da
população do país como um todo de acordo com a estatística oficial, que ainda
a trata como ‘remanescente’. Ainda assim, por trás dessa cifra ínfima floresce
um rico painel de diversidade – mais de 200 grupos étnicos que conservam
mais de 170 línguas distintas – e um legado histórico do qual o país ainda não
se deu conta. Apesar de fundamentada em algumas verdades, a crônica da
destruição e do despovoamento já não é mais aceitável para explicar a
trajetória dos povos indígenas nestas terras. O que se omite com tal
abordagem, são as múltiplas experiências de elaboração e reformulação de
identidades, que se apresentaram como respostas criativas às pesadas
situações de contato, contágio e subordinação. O caminho ainda é longo e
bastante incerto; mas vários antropólogos e historiadores já vêm dando passos
na direção certa. (MONTEIRO, 2001, p. 78).

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

O movimento indígena demandou, sobretudo de suas lideranças, a inserção estratégica


no espaço não indígena. Não há como ignorá-los, eles estão por toda parte, como nas
universidades, são alunos, professores, doutores; utilizam de tecnologias não indígenas;
conquistando outro tipo de capital intelectual e cultural, além da preservação de seus
característicos, uma vez que compreendem que a manutenção de seus modos de vida e a
preservação de sua língua materna fortalece o movimento na permanente luta pela manutenção
dos seus direitos conquistados, além da luta por outros direitos.

Exatamente pelo não abandono de seu próprio capital cultural, possuem maneiras
próprias de conceber a interação homem/natureza. Por outro lado, quanto aos não indígenas,
secularmente perdem a oportunidade de apreender os saberes desses povos. Talvez seja a razão
pela qual “a contemplação da natureza tem tido poucos adeptos no Brasil. O prestígio da
urbanidade, transmitido pelos portugueses como meio de confirmar seu status superior em um
ambiente estranho, sobrevive quase que inato” (DEAN, 1996, p. 379).

Por outro lado, essa supervalorização da urbanidade destina secularmente às várias


culturas indígenas brasileiras, a incompreensão de seu habitus cultural que fica diretamente
associado ao atraso, principalmente quando a pauta é desenvolvimento. Assim, o habitus do
não índio brasileiro que, de modo geral, faz essa associação negativa, além de representar um
habitus essencialmente predatório, reflete o grau de importância normalmente dado às questões
ambientais que é crítico no sentido de não se atentar para a gravidade da coisa.

A interminável guerra travada contra os povos indígenas, de violência física e simbólica


sempre presente, é uma luta de respeito à diferença e manutenção de seus modos de vida com
episódios de direitos duramente conquistados, embora permanentemente ameaçados, mas que
foram alcançados graças à união de várias de suas lideranças no cenário nacional e na
habilidade de constituir alianças estratégicas com setores do campo científico e político.

Condenamos eloquentemente o comportamento piegas e ridículo que se


pretende no relacionamento com o índio. Tem sido até hoje a cultura indígena
tratada com piedade, como se seus integrantes necessitassem da caridade da
Sociedade Antropofágica. O índio não precisa da caridade e nem da piedade
de uma civilização que se entredevora, de uma sociedade que se precipita no
abismo do egocentrismo. O que o índio precisa é ser preservado no seu
habitat, no seu caldo de cultura, onde se realize em plenitude e possa oferecer

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a sua contribuição válida à sociedade de consumo. (CARREIRA, 1978, p.


15).

Não se trata, portanto, de compreender a gravidade de questões ambientais – somente


– em solidariedade aos povos indígenas diretamente dependentes dos recursos naturais para a
sobrevivência (física, cultural e espiritual), afinal, são o alimento e a terra cruciais para todas
as sociedades, não o fabrico e a indústria, como podem pensar alguns. Todos os setores
econômicos da sociedade dependem do alimento, portanto, da terra, do ar e da água,
independentemente do grau hierárquico, posição, status, capacitação técnico-científica e outros
aspectos. Assim, regiões onde imperam o fabrico e a indústria dependem fundamentalmente
de regiões produtora de alimentos e a elas estão subordinadas.

Outro aspecto a ser considerado é a disputa simbólica de preservação da biodiversidade


tomada pelo campo da ciência que evidencia a maneira como a comunidade científica vem se
relacionando com os povos indígenas.

Hoje, os ocidentais pregam que tudo deve ser preservado em nome da


‘ciência’, e com este argumento retiram das comunidades indígenas todo e
qualquer controle que tenham sobre o material genético essencial para a sua
sobrevivência. Exemplos dessa exploração está no fato de que 68% das
sementes usadas na agricultura, que um dia foi manipulada pelos índios,
coletados e desenvolvidos pelos países em desenvolvimento, estão
depositados em bancos genéticos dos países industrializados ou em Centros
de Pesquisas Internacionais de Agricultura (IARC), bem como 86% da
coleção de cultura microbiológica do mundo estão depositados nesses países,
numa forma clara e acintosa de controle de poder. (TERENA, 2003, p. 4-5).

Quando a comunidade científica opta pela mera exploração de recursos, reproduz a


originária prática do colonizador, perde-se, assim, o potencial de saberes indígenas,
dificilmente conquistados num relacionamento desleal e utilitarista.

Para as nossas comunidades o conhecimento sobre plantas medicinais,


biodiversidade agrícola e o manejo do ecossistema não se separam dos demais
aspectos da vida cotidiana, como práticas espirituais, culturais e
cosmológicas. Isto significa muito mais que um direito de ‘propriedade
intelectual’ como é usado na economia ocidental, pois a vida não é
considerada pelo nosso povo como um objeto comercializável, nem como
uma simples mercadoria. Infelizmente, dentro da discussão internacional
sobre a ‘exploração da biodiversidade’ o que tem sido considerado é o

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controle conhecido como direito de propriedade intelectual e, nessa


discussão, não conseguem compreender estas características do sagrado e do
espiritual contida nos conhecimentos dos povos indígenas. Estão dominados
por considerações materiais e alienados ao pensamento econômico ocidental
– como se a natureza tivesse dono. (TERENA, 2003, p. 5).

As diferentes cosmovisões indígenas certamente são lições nos caminhos que a história
ambiental brasileira haverá de adotar em seu manejo. Trata-se de enfrentamentos inadiáveis,
como é o caso da questão indígena. E que se possa finalmente refletir muito mais sobre nós
mesmos do que algo que nos é alheio, exótico, distante, fora de nós. Quem sabe encontraremos
algumas boas chaves de humanidade que não separam índio de não índio, da mesma forma que
não se deve separar homem e natureza? E assim galgarmos o propósito fundamental de
militância pela manutenção da vida.

“A respeito dessa ideia de recurso que se atribui a uma montanha, a um rio, a uma
floresta, em que lugar podemos descobrir um contato entre as nossas visões que nos tire desse
estado de não reconhecimento uns dos outros?” (KRENAK, 2019, p. 51). Quando
consideramos a visão sobre a relação homem/natureza, como aquilo que é próprio do índio e
aquilo que é próprio do não índio, ignoramos que somos uma só humanidade, a diferença são
os caminhos insistentes dos que se separam da terra absurdamente.

Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa
terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas
margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África ou na América Latina.
São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes – a sub-humanidade.
(KRENAK, 2019, p. 21).

Não avaliar o índio enquanto homem histórico é não perceber que muitos dos nossos
impasses em história ambiental poderiam ser totalmente eliminados se nos inteirarmos mais
dos saberes indígenas, ao invés de persistir numa separação de humanidades que destina a esses
povos a “sub-humanidade”, quando, por exemplo, acontece de, comodamente, colocarmos a
temática indígena exclusivamente na conta da antropologia, como se também não fosse
constitutiva da história.

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Quando historiadores assim procedem, compactuam com a “abstração civilizatória” que


“suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos.
Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo”
(KRENAK, 2019, p. 23).

A história não deve permanecer na separação ilusória homem/natureza que apenas nos
faz consumidores, perdendo assim valores fundamentais, afinal “para que ter cidadania,
alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um
consumidor? Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa
plataforma para diferentes cosmovisões” (KRENAK, 2019, p. 24-25).

A história ambiental, inicialmente surgida com vínculos morais e políticos


derivados dos movimentos ambientalistas, conseguiu afirmar seus
compromissos metodológicos. Mais recentemente, alguns pensadores têm
definido esse campo como uma ‘história das relações dos seres vivos
humanos e não humanos’, o que significa um descentramento da agência
histórica exclusivamente centrada no humano. Ora, isso coloca a seguinte
questão: se esses outros seres vivos participam da construção humana, quais
seriam os seus direitos e, no caso de um evidente “genocídio”, a devastação,
como os historiadores, os homens do tempo presente, deveriam agir?
(ARRUDA; COLACIOS, 2019, p. 90).

A questão de Arruda & Colacios parece representar um impasse epistemológico para


que os historiadores ambientais reflitam. Porém, talvez em outro contexto – onde a humanidade
não é restrita aos seres humanos – portanto, a história caminharia de uma maneira diferente,
esse impasse simplesmente não existisse. Quando pensamos que o homem indígena poderia
simplesmente ter maior facilidade no enfrentamento da questão de atribuir valores, diante da
concepção diferente de humanidade que possuem, incluindo espécies não humanas, portanto,
podemos perceber o quanto vale considerar que os não indígenas não são os detentores únicos
e exclusivos do poder de história.

No entanto, refletir sobre isso não significa que apenas emprestando os olhos dos povos
indígenas teríamos legitimidade para avançar no sentido de uma história ambiental que alarga
seus horizontes. Pois, não se trata de um problema de interpretação das coisas, mas das coisas

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como elas são. Enxergar o homem índio histórico tanto quanto qualquer um dos não índios
poderia iluminar a resolução desses e outros impasses.

Certamente a história ambiental tem muito a contribuir no sentido de descortinar ainda


mais o trabalho já iniciado por historiadores que se dedicaram ao estudo das diversas culturas
indígenas. Há tanto a aprender sobre a relação homem/natureza com esses povos mais
umbilicalmente ligados à terra e possuidores de uma lógica totalmente distinta de uma
civilização de mercado e de consumo, e onde justamente encorajou as tentativas de se pensar
questões como sustentabilidade e uso racional de recursos. Todavia, é preciso ir além dos
aspectos meramente utilitários.

O desafio da história ambiental, ao refletir sobre os saberes de povos tradicionais, como


os povos indígenas, poderá ampliar o horizonte desse campo de maneira inovadora e
certamente, sua contribuição será bastante auspiciosa, na medida em que sairá do lugar comum,
de divisões artificiais e arbitrárias, já colocadas na história, mas que o aspecto multidisciplinar
da abordagem ambiental haverá de reconstituir a historicidade de uma sociedade brasileira que
vai além de meros consumidores, com reflexões que ultrapassam a superfície de uma obviedade
já posta, um tanto desinteressante, para valores não reconhecidos e perdidos no interior dos
sujeitos, como na separação homem/natureza que os aliena de experiências mais interessantes
e constitutivas do bem viver, mais sensíveis a outras formas de vida, e que podem ser capaz de
lutar pela preservação dos biomas antes do lucro, com valores inestimáveis – vida – diante de
valores do mercado.

Referências

ARRUDA, Gilmar; COLACIOS, Roger. Considerações sobre a ética-política na História


(Ambiental): escalas e o presentismo da devastação. HALAC – Historia Ambiental,
Latinoamericana y Caribeña. http//halacsolcha.org/index.php/halac v.9, n. 2 (2019). p. 64-94.
ISSN 2237.271764.
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo
científico. Texto revisto pelo autor com a colaboração de Patrick Champagne e Etienne
Londais. Traduzido por: Denice Barbara Catani. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

CARREIRA, Evandro. A consciência cósmica do índio. Brasília: Senado Federal Centro


Gráfico, 1978.
DEAN. Warren. O valor da terra nua. In: A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata
Atlântica brasileira. Traduzido por: Cid Knipel Moreira. Revisão técnica de José Augusto
Drummond. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Pp. 365-380.
DRUMMOND. José Augusto. A História Ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, p. 177-197.
______. Natureza rica, povos pobres? - Questões conceituais e analíticas sobre o papel dos
recursos naturais na prosperidade contemporânea. Ambiente & Sociedade - Ano V - Nº 10 - 1º
Semestre de 2002.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.
MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do
indigenismo. 2001. 233f. Tese (livre-docência) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em:
http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281350. Acesso em: 4 ago. 2018.
TERENA, Jorge Miles da Silva. A biodiversidade do ponto de vista de um índio. GTAA,
2003. Disponível em: https://documentacao.socioambiental.org/documentos/L6D00027.pdf.
Acesso em 08 ago 2019.

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A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO ÍNDIO E O PROJETO


CIVILIZADOR: CATEQUESE, CIVILIZAÇÃO E TRABALHO NO
AMAZONAS PROVINCIAL

BRUNO MIRANDA BRAGA


PUC SP, Doutorando, Bolsista do CNPq.
brunomirandahistpr@hotmail.com
Resumo
A comunicação apresenta as peculiaridades da Província do Amazonas com relação às políticas
indigenistas e os direitos destes povos presentes em instrumentos legais editados pelo Império.
Mostrar como se deu o trato com os índios no Amazonas Provincial. “A História dos índios é
o opróbio de nossa civilização”, disse Francisco José Furtado, então presidente da província
do Amazonas, em 1858, destacando uma visão do período no tocante a civilização e o trato
com os indígenas. Os índios no século XIX foram invisibilizados na história escrita. Porém,
estavam presentes no cotidiano, nas vilas, nas aldeias, no trabalho! Logo, a relevância dessa
pesquisa também reside no fato de se construir uma escrita que apresenta os índios atuantes
numa história que os silenciou, os invisibilizou. Acreditamos também que possa ter havido uma
organização, uma tática na qual os indígenas preferiram não se classificar como tal no
preconceituoso século XIX e boa parte do XX, por sobrevivência.

Palavras-chave: Índios; Segundo Império; Amazonas.

A historiografia e os índios

Ao longo da produção da escrita da História, diversas formas de narrar foram obtidas,


criadas e postas em uso/desuso. Inicialmente voltada para uma análise dos feitos dos homens,
a história passou uma longa fase de sua produção enfatizando as atitudes grandiosas, que
destacavam certos homens, enaltecendo a eles e seus feitos, realçando aquilo que se via ou se
ouvia, era uma descrição de fatos e nomes. Eram poucos os que figuravam nos anais de então.
O rol de nomes era limitado, levando alguns a afirmarem apenas uma sincronia de fatos no
tempo, ou a entrada e saída de diversas dinastias que atuaram em determinados momentos.

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Em Annales, vislumbramos o novo ofício do historiador, que não é o de erigir como


juiz do passado, porém o de “saber falar, no mesmo tom aos doutos e aos escolares”.
Porém, voltemos um pouco mais para analisar a inserção do índio na historiografia
brasileira. A Historiografia brasileira surge vinculada ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro – IHGB, que pretendia criar uma oficialidade histórica para o Império nascente.
Surgiu então o “Heródoto do Brasil” (REIS, 2007), Francisco Adolfo de Varnhagen, na
segunda parte do oitocentos, pois,

Foi somente nos anos 1850, com Varnhagen, que surgiu a obra de história do
Brasil independente mais completa, confiável, documentada, crítica, com
posições explícitas: a História geral do Brasil, [...] refletia uma preocupação
nova no Brasil com a história, com a documentação sobre o passado
brasileiro, que o recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
representava. A História geral do Brasil foi possível porque as condições
históricas do Brasil, o processo de independência política e a constituição do
Estado nacional amadureceram nos anos 1850. E foi no interior desse
processo histórico que ocorreu a outra condição favorável ao surgimento da
obra de Varnhagen: a institucionalização da reflexão e da pesquisa históricas
no IHGB. A independência política consolidada, e reprimidas as lutas internas
geradas por ela, o Brasil possuía um perfil do qual ainda não tomara
conhecimento. Nos anos 1850, Varnhagen desenhará o Perfil do Brasil
independente, oferecerá à nova nação um passado, a partir do qual elaborará
um futuro. (REIS, 2007, p. 23,24)

Mais um dos feitos do século XIX, o IHGB procurou dar uma história para o Brasil,
uma história grandiosa. Varnhagen assumirá a incumbência de escrevê-la, mostrando sua visão
para os habitantes da Terra Brasilis. Quem o patrocinou foi o próprio imperador, pois ele
precisava de historiadores para “legitimar-se no poder”. E nada melhor do que um historiador
para perpetuar seus grandes feitos no tempo, enaltecendo sua gestão e depreciando a fase
anterior a seu mandato.

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A história descrita por Varnhagen destacou e elogiou a colonização portuguesa. Para


ele, a nação só cresceria e se firmaria graças ao povoamento luso que, com enorme precisão,
ergueu um império nos trópicos que era habitado por pessoas em formação. Uma das crenças
do século XIX era que os índios estavam num estágio anterior da civilização, estavam em
formação, pois ainda não haviam chegado na civilidade. Eram vistos como primitivos. Crença
típica do XIX. Assim, os índios do Brasil eram vistos como pessoas que ainda não haviam
passado pelo processo progressivo que advinha com a civilização portuguesa branca naquele
momento. Os indígenas, em sua descrição, eram mostrados como selvagens, bárbaros,
insolentes, hostis. Eram seres estapafúrdios, que compunham a paisagem exótica do país
tropical. O interessante é que, segundo seus números, eram uma população grande, na verdade,
mesmo descrevendo a natureza selvagem e indígena do país.
Assim, podemos vislumbrar que, com Varnhagen, o Brasil passou a assumir com gosto
a colonização lusa! Ser brasileiro então não seria ser selvagem. O brasileiro era o descendente
de portugueses, possuía um passado histórico feito por lutas e vitórias dos lusos, quanto aos
índios esses eram parte da paisagem. Varnhagen não demonstra emoção nem aspiração aos
“primeiros habitantes do Brasil”, seria algo que passaria logo, à medida que se estabeleciam as
práticas europeias como práticas corretas. Logo foi Varnhagen que:

Trouxe a civilização europeia superior – a lei, o rei, a fé, a razão. Os brancos


são portadores de tudo aquilo de que uma nação precisa para se constituir
soberanamente. Aos vencidos, resta a exclusão, a escravidão, a repressão e
a assimilação pela miscigenação, isto é, pelo branqueamento racial e
cultural. A conquista portuguesa foi feita com guerra e sangue. Então
vitoriosos os portugueses, as terras indígenas serão legitimamente
portuguesas (REIS, 2007 p. 34. Os grifos são meus).

Mas esse foi o discurso da história proferido e descrito por Varnhagen que, em sua
narrativa, enalteceu o olhar e a atuação do além-mar. Mantinha sua visão apenas voltada do
mar para a praia, ou seja, do português colonizador sobre os índios, apresentados como
vencidos e sem atitude. Essa visão perdurou por muitos anos e, em diversas narrativas se
mantêm presente até a atualidade. Por exemplo, nos anos 1930, Gilberto Freyre fez algo
parecido, classificado como “reelogio à colonização portuguesa” ao apresentar as visões e
sociabilidades da Casa Grande & Senzala, a partir dos brancos. Embora em seu trabalho já se

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façam presentes os negros, sua visão ainda parte da casa grande para a senzala, ou seja, é uma
visão do colonizador para o colonizado, do mar para a praia.
Nos anos 1900, aparecerá na historiografia um emblema para a visão hegemônica da
colonização portuguesa. Com a escrita da história feita por Capistrano de Abreu, o discurso das
três raças, que foi introduzido no Brasil pela escrita de Von Martius,3 apresentará o grande
dilema da ciranda étnica brasileira. Por essa ótica, às três raças atuaram na formação do país.
Capistrano de Abreu, será o “Heródoto do povo brasileiro”, este nasceu em uma Casa Grande,
conviveu proximamente dos escravos. Ao contrário de Varnhagen, que foi patrocinado pela
Monarquia, Capistrano é livre. Escreveu sem receber ônus de ninguém. É claro que entre a
escrita de Varnhagen e a de Capistrano, passaram-se anos de produção e inovação/renovação
historiográfica. José Carlos Reis (2007) afirma que Capistrano era teoricamente confuso! De
fato, em sua narrativa percebemos teorias dissonantes presentes. Há um pouco do historicismo
de Rank, um pouco de positivismo, um pouco de novidade, etc., o que tornou Capistrano um
“mito da historiografia brasileira”.
De fato, cresce no Brasil uma Nova História Indígena, onde os índios são agentes de
sua história, são sujeitos e não apenas vítimas, como propunham anteriormente. São trabalhos
de historiadores, antropólogos e outros cientistas sociais que apresentam o índio num cenário
no qual antes eles eram invisíveis. Tudo isso não surgiu do descobrimento de novas fontes de
novos documentos, porém,

Principalmente de novas interpretações fundamentadas em teorias e conceitos


reformulados. Em outras palavras, um mesmo documento pode revelar
realidades bem diversas, conforme as referências teóricas e conceituais que
embalassem as interpretações dos investigadores. Essas novas interpretações
tornam-se possíveis quando historiadores e antropólogos começaram a
dialogar e a trocar experiências a respeito de seus temas e ferramentas de

3 A monografia de Von Martius “Como se deve escrever a história do Brasil”, produzida no ano de 1845, aparece
inserida numa preocupação com uma história que tomasse a ideia de um passado nacional, comum a todos os
"brasileiros", que teve início com o surgimento político do Brasil independente. Sua contribuição foi muito
importante para o conhecimento da flora brasileira. No ensaio de 1844, Martius postula a necessidade de o
historiador explicar a participação de cada uma das três ‘raças’ – “a de còr de cobre ou americana, a branca ou
Caucasiana, e enfim a preta ou ethiopica” – que contribuíram para formação do país, recém independente, em
outras palavras, pode-se dizer que a cada uma das raças humanas compete, segundo a sua “índole innata”,
segundo as circunstâncias debaixo das quais ela vive e se desenvolve, um movimento histórico característico e
particular.

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trabalho – as teorias, os conceitos e os métodos – com os quais analisam seus


objetos de estudo. (ALMEIDA, 2010. p. 10)

A catequese que civilizava e preparava para o trabalho

Falta de missionários, violência por parte dos diretores, desídia desses diretores, brigas
de diretores, diretores assumindo outros cargos públicos, são alguns dos problemas elencados
pelos presidentes em virtude da Catequese e Civilização. Logo, na segunda metade do século
XIX, as missões se constituíam não como uma simples ferramenta de propagação da fé cristã
e combate a heresia, mas uma forma do governo que, através da Igreja, visava impor aos índios
seus mecanismos de civilização e transformá-los em mão de obra. Mas, através de relatos do
período, vemos que muitas vezes os índios abandonavam esses trabalhos sem sequer
recorrerem a seus salários, o que, na visão ocidental era classificado como preguiça. Preferimos
encarar esses fatos de abandono como práticas de lutas às vezes silenciosas e estratégicas, como
teoriza Michel de Certeau (2012).
A Igreja, assim, operava como intermediária4 e os responsáveis agiam conforme a sua
visão de mundo, sendo que estes não eram os típicos missionários, desbravadores, que
lançavam-se nas regiões mais longínquas em nome da fé. Antes, eram funcionários da
província e possuíam direitos e deveres.
Mesmo atribuindo salários aos sacerdotes para o exercício de Catequese, em 1855, o
presidente da província, Conselheiro Herculano Ferreira Penna, informa que havia apenas três
Missionários atuando em toda a Província: Frei Gregório José Maria de Bene, Frei Pedro de
Ceriana e Frei Joaquim do Espírito Santo Dias e Silva. O mesmo afirma que já encaminhou
uma solicitação ao Imperador e aguardava respostas. (EXPOSIÇÃO, 1855).
Em 1858, o presidente provincial Francisco José Furtado faz um juízo de valor sobre o
estado da catequese e civilização dos índios que se encontrava “em deplorável estado”.

4 Alida Metcalf, define o que são intermediários e identifica três níveis que o intermediário pode assumir: físico,
transacional e representacional. No caso dos missionários, de regimento da Catequese e Civilização dos Índios,
constituem-se de intermediários transacionais, é um nível mais complexo e constitui-se dos “tradutores e
mediadores culturais, que possibilitaram a comunicação, a troca, o comércio, a conquista e a colonização.” Assim,
esses intermediários transacionais inicialmente iam conhecer o conquistado para a seguir aplicar seu objetivo
inicial. Ver: METCALT, Alida C. A Mulher como intermediária. In: MORGA, Antônio Emílio. BARRETO,
Cristiane Manique. (Orgs). Gênero, Sociabilidade e Afetividade. Itajaí. Casa Aberta Editora, 2009, p. 105.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Também mostra que os índios “sofrem toda a sorte de injustiças, violências e fraudes, não só
de algumas autoridades subalternas, como dos seus próprios Diretores e particulares”.
Percebemos que os Diretores pouco estavam fazendo pelo serviço e, além do mais, estavam
colaborando para a escravização do indígena. Para o presidente, a metodologia mais eficiente
para o avanço da catequese e civilização seria a presença de muitos e bons missionários, e
estabelecer casas de educação. Mas, segundo o mesmo, era difícil encontrar pessoas para atuar
na catequese, uma vez que poucos eram os que se dispunham a deixarem as suas cidades,
essencialmente os que moravam em Manaus para se lançarem nos mais longínquos sertões do
Amazonas de então. Para Francisco Furtado, “a história dos índios é o opróbrio da nossa
civilização. Apesar de tantas leis proclamando sua liberdade, e prescrevendo a escravidão
deles, esta subsiste quase de fato”. Ou seja, para o presidente, os índios lutam para defender-
se. Os índios eram e continuam sendo ávidos em conta de brutos e estranhos ao grêmio da
humanidade. “Os índios foram sempre vítimas da avidez e maldade de seculares e eclesiásticos
sem exceção da famosa ordem dos jesuítas.” Aqui o presidente aponta que todos estavam
subordinando o indígena a seus interesses particulares. Soa como uma proposta romântica, na
qual o índio era sempre o violado, o sofrido; esse discurso embasará a “necessidade” de o
estado tutelar os índios.
A catequese e sua construção ao longo do século XIX visou estabelecer e formar
trabalhadores para atuarem nos mais diferentes ofícios e, principalmente, nas obras públicas de
construção civil, antes de ser uma atividade de cunho religioso e moral, era uma atividade de
adestramento, de polimento para o que era considerado civilização àquela época.
Dentro do espaço temporal 1845-1910, a imagem do indígena no Brasil vai se
moldando a diferentes gostos: em 1845, ano da publicação do Regimento das Missões de
Catequese e Civilização dos índios, os mesmos são tutelados pelo estado como sendo brutos,
selvagens e errantes: precisando de civilidade e cultura. Já em 1910, com a República, ainda
na condição de tutelados, os índios passam a ser vistos como indefesos, como povos ignorantes
que precisam ser inseridos no meio da sociedade. Tudo isso, enaltecido nas duas
temporalidades por um forte discurso de apologia ao trabalho:

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Essa tríade catequese + trabalho + civilização era uma das maiores bases do Oitocentos na qual
a ideia de trabalho traria a civilização. Porém o índio foge ao padrão de trabalho estabelecido
pelo branco, pois seu tempo e suas idiossincrasias diferem do padrão trazido pela modernidade
de trabalho e produção acelerada visando lucro e capital. Nisso havia uma noção de trabalho
na qual a educação era voltada para o preparo para o labor e a catequese era um mecanismo de
civilização que levaria, no caso dos indígenas, ao mundo civilizado.

Tanto o IHGB quanto a catequese dos índios visavam formar e apresentar ao mundo
um cidadão polido, altivo e trabalhador: o brasileiro, que não era negro, nem indígena, era
branco, fora colonizado e educado por lusos. O IHGB relegou o indígena ao passado histórico
do Brasil, povo sem história. Adolfo de Varnhagen disse “para os índios, povos na infância não
há história, só etnografia”. Nessa lógica, como já mensuramos, os indígenas foram
invisibilizados da história escrita, mas estavam presentes e atuantes na província como
apresentaremos ao longo da tese em construção.
Civilização no século XIX assumiu diferentes funções, e aqui no Amazonas Provincial
foi alocada ao trabalho que deveria assim preparar os índios para o mundo civilizado. Mas tudo
isso era um discurso. Traçamos o seguinte esquema com as diferentes significâncias que o
termo civilização compunha aqui na Província.

Figura 01. Civilização no oitocentos. Fonte: elaboração do autor

Maria Regina Celestino (2003), em sua tese de doutoramento sobre a identidade cultural
nas aldeias do Rio de Janeiro, disserta sobre a presença indígena na colonização daquela
capitania. Ao retratar a questão do trabalho indígena, a autora afirma que, do século XVI ao

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XIX, as populações indígenas formavam a força de trabalho na capitania do Rio de Janeiro.


Essa integração variou ao longo do tempo, mas, fato é que a mão de obra indígena em toda a
América foi fundamental para o plano colonizador. É importante destacar que:

Os povos indígenas, no entanto [...], não estavam à disposição dos europeus


e sua incorporação ao mercado de trabalho na capitania como aldeados ou
como escravos – fez-se através da legislação e de muitas disputas cotidianas.
O trabalho compulsório era obrigação dos índios aldeados, mas tinha limites
estabelecidos pela lei e pela resistência dos índios, com forte apoio dos
jesuítas até sua expulsão. [...] A inserção dos índios nas atividades produtivas
da capitania passava também por seus próprios interesses e motivações.
(CELESTINO, 2003. p. 188)

Com esta citação, verificamos que a resistência indígena passa por disputas e práticas
que muitas vezes circularam despercebidas na escrita da história. No Amazonas Provincial,
período analisado, diversas resistências políticas ao que era imposto foram incorporadas,
vivenciadas e postas em experiência no cotidiano citadino. No mundo do trabalho, é possível
ver também que aconteciam as lutas, mesmo que silenciosas, por parte dos índios. A inserção
de indígenas nas obras públicas da capital, Manaus, que passava por seu “aformoseamento”,
ou em obras de particulares brotavam de múltiplas motivações e interesses tais como: a
necessidade de mão de obra, o ideal civilizatório, moral e cristão do mundo branco, a
transformação social que a modernidade impunha à população da província, dentre outras.

Considerações finais

Assim, o trabalho indígena era uma alternativa eficiente e racional, uma medida
inteligente para auxiliar uma economia precária que de repente alcançara um boom, tendo
pouco preparo por parte de seus administradores e uma grande falta de trabalhadores. Vale
destacar que os escravos negros estavam cada vez mais presentes nesse corpo de trabalho, mas

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o número maior ainda permanecia com os índios, afinal, a maior parte da população regional
era de índios e caboclos.
Pela leitura das fontes do império, vemos que havia aquilo que o historiador John
Manuel Monteiro (1999) chamou de “ideia de que o índio é naturalmente resistente”, o índio
é rebelde. Para este autor, esta ideia enfatiza uma visão da historiografia mais oficial do Brasil
na qual o indígena tinha/tem uma tendência de “oposição obstinada”. O que queremos destacar
é que se o indígena resiste, se de fato ele luta, não é por valentia ou por se mostrar superior às
vontades dos outros, porém acreditamos que a luta indígena, a resistência, parte de uma ação na
qual:

Para se repensar a resistência dos índios faz-se necessária uma reinterpretação


abrangente dos processos históricos que envolviam essas populações. Mais
do que isso, é preciso também reavaliar como os diferentes atores nativos
criaram e construíram um espaço político pautado na rearticulação de
identidades, contemplando evidentemente não apenas as formas pré-coloniais
de viver e de proceder, como também e especialmente sua inserção – ou não
– nas estruturas envolventes que passaram a cercear cada vez mais as suas
margens de manobra. [...]. (MONTEIRO, 1999. p. p. 241, 242)

Ao trabalharmos nesse item com a questão da utilização do braço indígena,


pretendíamos discutir a presença deles na cidade de Manaus, mesmo que integrando uma classe
que a sociedade e a historiografia oficial tendem a silenciar. Percebemos que, de fato, a partir
dos anos 1879, há um “sumiço” com relação aos trabalhadores indígenas da documentação
oficial, uma vez que a partir desse ano as levas de trabalhadores vindos do Nordeste Brasileiro
tornou-se ampla em função do crescimento dos trabalhos de extração da goma elástica. Porém,
os índios ainda estavam por aqui.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas: Identidade e Cultura nas
aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios na história do Brasil. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2010.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1 – Artes de Fazer. 19ª ed. Trad. de
Ephraim Ferreira Alves. Rio de Janeiro. Vozes, 2012.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma História Indígena. In: _____. (Org.)
História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal da
Cultura: FAPESP, 1992.
EXPOSIÇÃO feita pelo ao Exmº. 1º Vice-Presidente da Província do Amazonas, o Dr.
Manoel Gomes Correa de Miranda pelo Presidente o Conselheiro Herculano Ferreira Penna,
por ocasião de passar-lhe a administração da mesma Província. Em 11 de Maio de 1855.
Cidade da Barra, Tipografia de Manoel da Silva Ramos, 1855.
GUIMARÃES, M. L. S. Nação e civilização nos trópicos. O IHGB e o projeto de uma
história nacional. In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Vértice (1), 1988.
REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil 1: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2007.
METCALT, Alida C. A Mulher como intermediária. In: MORGA, Antônio Emílio.
BARRETO, Cristiane Manique. (Orgs). Gênero, Sociabilidade e Afetividade. Itajaí. Casa
Aberta Editora, 2009.
MONTEIRO, John Manuel. Armas e Armadilhas: História e Resistência dos Índios. In:
NOVAES, Adauto. (Org.) A Outra Margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.

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JOÃO GONÇALVES MONICA E O FIM DOS CASTIGOS FÍSICOS.


CLASSE E COR NA UNIÃO DOS MARINHEIROS E MOÇOS DO
AMAZONAS, EM 1914
CAIO GIULLIANO DE SOUZA PAIÃO
Universidade Estadual de Campinas, doutorando, bolsista FAPESP.
caio_giulliano@hotmail.com

Resumo
Esta apresentação deriva de uma pesquisa mais ampla sobre a categoria dos marítimos do rio
Amazonas na primeira metade do século XX. Vemos aqui como os vestígios do passado de
escravidão negra e indígena impactaram as relações de mando e obediência a bordo dos navios,
abaladas ainda mais pela crise de navegação na Primeira Guerra Mundial. O uso dos castigos
físicos era um recurso usado pela Marinha no mundo todo para demarcar subalternidades de
corpos não-brancos, no caso brasileiro, com maior incidência sob negros e mestiços. A hipótese
é que em Manaus, a luta conjugada pelo fim dos castigos físicos contou com a circulação de
um aprendizado político, agitado por marujos e lideranças operárias itinerantes, como o
anarquista João Gonçalves Monica e sua participação na União dos Marinheiros e Moços do
Amazonas, criada em 1914. Tal entidade também articula a possibilidade do elemento racial
ter sido, dentro de suas particularidades, um fator de aglomeração entre seus sócios, como
ocorrido em outras cidades portuárias deste período.
Palavras-chave: Movimento operário; História Social do Trabalho; Cor.

Introdução

Há muitos anos a historiografia do trabalho marítimo discute os castigos físicos nos navios
militares e mercantes. Muitos/as pesquisadores/as atentam para a particularidade do mundo
flutuante como espaço de labor, onde não havia qualquer regulação de trabalho e o comandante
resumia em si a autoridade jurídica, policial e empresarial. Tal apontamento é consenso em
diferentes recortes de tempo e espaço. No caso aqui estudado, vemos que as leis aplicadas à
marinhagem resultavam, em especial, de regulamentos do Ministério da Marinha que deviam
ser observados pelos capitães do porto. Em tese, ele guardava pela segurança de navios,
mercadorias e pessoas, abrindo sindicâncias e punindo infratores que podiam ser repassados a

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autoridades civis. Mas, apesar de submetida diretamente ao Ministério da Marinha, a Capitania


constituía um “poder terrestre”, geralmente dirigido por um oficial mais identificado com
comandantes do que com marujos. Aliás, suas atuações só podem ser verificadas com navio e
tripulação aportados. Nos episódios vistos adiante, vamos observar que o percurso das ideias
elaboradas em terra era reinterpretado no mundo flutuante, onde reinava a esfera do domínio
pessoal e não do Estado e demais “poderes terrestres” (LAND, 2001, 171). É neste contexto
que os castigos corporais emergem como costumes do trabalho naval, no qual se abrigavam
como normas socialmente estabelecidas.
Os flagelos compunham padrões de violência que eram o cerne das relações
embarcadas. Porém, mais do que afirmar que determinado fenômeno é “violento”, sublinho as
estratégias de controle social e de dominação colocadas em prática nos navios, isto é, o
conjunto de ideias dominantes no trabalho marítimo, posto como auto explicativo no campo do
pensamento e da ação (LARA, 1988, 44). A chave interpretativa é dada por Álvaro Nascimento
(2008), na diversidade de fronteiras existentes entre a simples divisão entre oficiais e
subordinados na Armada. Certas características individuais ou circunstanciais definiam os
graus de castigo físico em contextos específicos. Por exemplo, a cor da pele, o comportamento
e a orientação sexual podiam (ou não) incidir em flagelo corporal. O caso da Armada se
replicava na marinha mercante pelo padrão disciplinar almejado por oficiais, em sua maioria,
homens brancos de formação militar. No Brasil e mundo afora, o instrumento símbolo do
castigo de bordo era o chicote (ou chibata), em que pesava toda uma memória histórica de sua
aplicação no passado escravista.
Segundo McClintock, “na precária ascensão à masculinidade, o chicote marca o limite
entre mulheres e homens e entre homens e animais, limites tanto mais imprecisos por terem de
ser frequentemente reinscritos”. O chicote era um “instrumento eloquente” da violência social
da formação do homem branco no contexto imperial (2010, 129). Alguns estudos defendem
que o açoitamento naval tem suas origens no tráfico de escravizados, quando sua prática
constante visava naturalizar a violência contra o corpo negro a todos os embarcados. De forma
que ia sendo estabelecido como norma de disciplina, inerente ao próprio sistema de
funcionamento do navio – algo que permaneceu nas práticas subsequentes da marinha mercante
e militar, em países beneficiados pelo tráfico atlântico (PAINE, 2013; MUSTAKEEN, 2016).

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No Brasil e nos EUA, por exemplo, a aplicação da correção visava quebrar a resistência e a
altivez de homens negros que se declaravam livres. Uma das formas de desqualificar o
sentimento de liberdade era diminuir a autoestima e os valores de virilidade do castigado
perante os colegas. A sevícia desafiava diretamente a masculinidade dos marujos, nivelando-
os a outros membros da sociedade, “passíveis” de punição física: escravizados/as, mulheres e
crianças. Ao redor do globo e em diferentes temporalidades, foi crescente o movimento pelo
fim dos castigos físicos a bordo, com importante participação de abolicionistas (GRIDER,
2010, p. 473).
Apesar da lei de 15 de Outubro de 1886 abolir os açoites no Brasil, nas águas o
disciplinamento por castigo físico permaneceu décadas adentro, culminando enfim na revolta
dos marinheiros no litoral do Rio de Janeiro, em 1910. Antes disso, o chicote permaneceu em
riste tanto em navios militares quanto mercantes. No Amazonas, a escravidão havia sido
extinta, em tese, por decreto provincial, em 10 de julho de 1884. Foi a segunda província a
antecipar a libertação de seus escravizados, atrás somente da do Ceará. O número de cativos
não era significativo caso comparado a outras províncias, entretanto, homens, mulheres e
crianças havia muitos anos equipavam o trânsito interprovincial amazônico. Este contingente
não era arrolado de maneira precisa por conta de sua alta mobilidade, mas não é de se desprezar
a propaganda em torno das possibilidades de refúgio ou de uma nova vida na crescente
expansão da navegação do rio Amazonas – desde 1853, pelos vapores –, potencializada nos
1870 e 1880 com o mercado da borracha. Afinal, foi marcante a presença de africanos livres,
afro-descendentes e ex-cativos matriculados nas Capitanias de Manaus e Belém no período
republicano (SALLES, 1971). Como o marujo descrito por Lourenço Fonseca no Pará, em fins
do Oitocentos: “Um negro, belo tipo da Guiné, calça arregaçada, pé descalço, camisa de linho
americano, riscada de azul, de lápis em punho, vai tomando nota do número de bois já
embarcados” (1895, 44). Sob corpos de homens como este pesou as práticas oriundas do mundo
senhorial, advindas com multidões de diferentes lugares. O uso do açoitamento parecia
legítimo na ação e no pensamento de comandantes e demais marinheiros que assimilavam
condutas de disciplinamento, baseadas em questões raciais e interiorizadas ao longo de anos.
A seguir discuto notícias de castigos físicos que ganharam as páginas do Jornal do
Comércio (JC) de Manaus, principal folha noticiosa da época. Estes episódios aconteceram em

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curto espaço de tempo, numa repetição quase que diária. De fato, o momento não era dos
melhores para empresas e patrões. A conflagração da guerra (1914-1918) catapultou não só
marinheiros, como diversas categorias a “greves, tumultos e explosões reivindicatórias”
(ARAÚJO, 2018). A beneficente União dos Marinheiros e Moços do Amazonas foi organizada
neste contexto, tendo vida longeva até 1968 (já auto-identificada como sindicato desde 1938).
O combate aos castigos físicos parece ter sido o primeiro desafio da entidade e de sua diretoria.

O chicote ressoa nos jornais

Em Manaus, o ano de 1914 foi bem agitado para o pessoal de convés. Em março estava
estabelecida a União dos Marinheiros e Moços do Amazonas (UMMA) e já começavam as
acusações de maus tratos. Ao que tudo indica, a entidade passou a aglomerar os criados navais,
oferecendo uma proteção antes inexistente a eles. No dia 19, o menor Antonio Ramirez, criado
na lancha Yurimaguas, foi à polícia queixar-se de Manoel L. Mendonça de tê-lo espancado
(JC, 20/3/1914). Outros pareciam esgotados em ter a honra e a liberdade solapadas e passaram
a reagir por conta própria. Acredito que a criação da UMMA tenha encorajado esses movimentos,
na medida em que circulavam notícias de que ela suportaria um grupo, até então, sem qualquer
tipo de assistência social ou representação junto às autoridades civis e portuárias.
Quatro dias depois, na hora do almoço da lancha Cezar, os criados preparavam a mesa
de refeições. Um deles era o potiguar “de cor preta”, Zacarias Custódio do Nascimento, de 17
anos. Sentaram-se à mesa três oficiais, incluindo o maquinista Manoel Antonio Ribeiro, um
amazonense “de cor morena”, de 26 anos de idade. “Por um aborrecimento de ocasião, devido
a uma questão de talheres”, Ribeiro “ameaçou de severo castigo corporal o serventuário
Zacarias”, que tentou se justificar. Também disse que não era filho dele “para apanhar assim
tão facilmente”. Então o maquinista usou de um cipó de boi para açoitá-lo diante da tripulação.
Zacarias não aceitou a reprimenda e assassinou seu algoz com uma facada (JC, 25/3/1914).
Nos anos 1910, os vestígios da escravidão continuavam a impor aos meninos negros,
papéis subservientes e serviçais. A repulsa a tais condições foi permanente, por isso os adultos
os incorporavam à força ao mundo do trabalho, submetendo-os à rigorosa disciplina, castigo
corporal e tarefas estafantes. Zacarias deu os nomes de seus pais na delegacia, evidenciando
uma condição diversa dos órfãos remetidos pelo Estado a mestres de ofício e à Marinha, através

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dos juizados e da polícia. Mães e pais também os enviavam ao trabalho para “corrigir”
comportamentos ou garantir teto e comida aos filhos. O espaço de trabalho deveria “corrigi-
los” pela disciplina das tarefas e, principalmente, pelo castigo corporal (PESSOA, 2015).
Zacarias podia se enquadrar em situação similar. Também em lugares onde apenas de navio se
conseguia chegar, não era incomum o roubo e o recrutamento forçado de crianças para serviços
de bordo, onde eram vulneráveis a todo tipo de exploração.
Parte da grande imprensa foi favorável ao fim dos castigos físicos, retomando antigas
tradições abolicionistas, e o Jornal do Comércio parecia empenhado em denunciar maus tratos.
Para espanto dos redatores, poucos dias depois de Zacarias, reapareceu o “condenável vezo uso
do vergalho em algumas das nossas embarcações fluviais” (9/4/1914). O “caso de açoite,
bárbaro e inclemente” ocorreu no Jonathas Pedrosa, em viagem do rio Javari a Manaus. As
insistentes denúncias se limitavam aos excessos de violência, não contra o trabalho infantil
nem as condições em que ele se efetuava. Vemos isso na forma jornalística dada ao depoimento
do criado Mário da Cunha Souto, “o mísero rapaz sobre quem recaiu, desta vez, a obra do
chicote”. Em primeiro lugar, uma abordagem diferente da de Zacarias: “é de fisionomia
simpática, compleição débil, bastante jovem. Conta, no máximo, quinze anos de idade. Branco
de cor”. O adolescente adentrou sozinho à redação do jornal para contar sua história “em voz
fraca e acanhada”.
Mário estava empregado há oito meses como criado daquele navio, onde auxiliava no
preparo dos pães. “Levava nisto grande parte da noite, mas sempre se esforçando em não
incorrer em falta perante seus superiores”. O articulista não viu nisso “nada demais”. Para a
história virar manchete era preciso que Mário relatasse excesso de castigo e não de trabalho.
Acontece que o despenseiro foi suspenso e o comandante achou por bem encarregá-lo do
serviço, “duplicando-lhe, por tal forma, os afazeres, sendo forçado a trabalhar de dia e de
noite”. Seu corpo franzino não suportou a jornada que realizava caindo de sono e fadiga. Às
17h de 23 de março, Mário desceu para o convés inferior, sentou-se um pouco e adormeceu. O
comandante e proprietário do navio, Henrique Lima, o encontrou ali e perguntou dele se estava
dormindo. Assustado, respondeu que não. O oficial se dirigiu ao camarote e sem sucesso
acionava a campainha para que fosse servido o seu jantar. O reencontro dos dois teria sido já
com o comandante empunhando “uma possante chibata de açoitar cavalo”. Mário foi castigado

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de tal forma que depois de 17 dias ainda eram visíveis as marcas do suplício em seu corpo. Os
jornalistas fotografaram as costas do menino.
Fato é que a imagem do adolescente branco seviciado rodou a cidade e deixou mal
falado o seu algoz. No dia seguinte, o comandante endereçou uma carta ao redator chefe do
Jornal do Comércio (10/4/1914). Ele alegou que os açoites foram para que Mário levasse o
trabalho “a sério”, porque há tempos desobedecia a seus superiores. Disse ainda que “este
castigo, porém, fiz com moderação, como faria a um meu filho”. Em seguida, evidencia que as
relações de trabalho com o criado eram mediadas pelo domínio pessoal e pelo sentimento de
propriedade do corpo alheio. “E o fiz, devo dizê-lo, por se tratar de uma criança a quem
considerava mais como pessoa particular minha, do que como empregado do meu navio”. O
ponto mais intrigante da carta é quando Lima aventa suspeita do porquê de Mário ter ido à
redação: “inimigos” seus teriam feito a cabeça do garoto para denunciá-lo no jornal. Tais
adversários seriam da “própria classe a que pertencemos, e talvez qualquer dos empregados
por último despedidos de bordo do meu navio”. Esta situação visava prejudicá-lo e, segundo
ele, ao próprio Mário, que perdera assim sua “proteção”. A carta reforça a hipótese de alguma
organização de marinheiros empenhada em denunciar e pôr fim aos maus tratos a bordo. A
tática de exposição dos comandantes tiranos parece ter causado o efeito esperado. O caso a
seguir é ainda mais elucidativo de onde estariam se articulando os “inimigos” de gente como
Lima.

Age a União dos Marinheiros e Moços do Amazonas

Quatro dias depois de publicada a carta do comandante, às 7 horas da manhã, os


empregados da Manáos Harbour realizavam seus afazeres quando foram “tomados de
admiração por uma cena estranha e digna de imediato protesto”: dois meninos amarrados em
cada mastro do Marcílio Dias, um na proa e outro na popa. Em pouco tempo se aglomerou
uma pequena multidão que fazia coro em reprovação. O repórter do Jornal do Comércio apurou
ser o nacional João Gomes Tavares, 16 anos, menino “entregue por alguém ao comandante
João Pires Monteiro” e Francisco Gusmão, 15 anos, “de naturalidade espanhola, servindo de

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criado particular ao mesmo oficial” (15/4/1914). Boatos diziam que na última viagem do
Marcílio Dias os dois viviam “descompondo-se mutuamente” e se “intrigando perante os
superiores, chegando mesmo, por vezes, às vias de fato”. Ao que tudo indica, a dupla media
forças entre si. A derradeira peraltice teria acontecido por “uma simples questão de pão ao
café”, quando saiu o pequeno espanhol com a “cabeça quebrada a cacete”. Este teria sido o
pivô do castigo.
Naquela manhã alguém se dirigiu à sede da UMMA para solicitar ajuda. A entidade
enviou um representante para verificar o caso a bordo do navio. Também solicitaram da
imprensa que viessem fotografar os adolescentes. Antes disso, o comandante liberou os dois.
Ao repórter do JC, o oficial afirmou que o castigo era expor os meninos à vergonha, amarrados
perante a tripulação e o público em terra por apenas uma hora. Isso foi desmentido pelo
representante da UMMA, que interrogou a tripulação e concluiu que eles estavam assim desde a
noite anterior, das 19h30m às 8h da manhã do dia seguinte.
À noite, o JC recebeu um ofício da UMMA se pronunciando sobre os castigos que há
meses vinham se repetindo no porto de Manaus. A entidade trouxe novas informações
recolhidas a bordo. Por exemplo, a declaração do comandante que, ao ser interpelado,
“respondeu que não tinha que dar satisfação, pois que ele a bordo era ‘rei’”. O interlocutor
reclamou que expor os meninos daquele jeito “ofendia a dignidade” deles. Monteiro retrucou
“que pouco se importava com os outros!” E o expulsou do navio junto com os adolescentes.
Em terra, o menino brasileiro disse chamar-se José Cypriano Filho, filho de Pedro Cypriano –
talvez sua verdadeira identidade. Disse ainda que “neste vapor se aplicava a chibata e a
palmatória” e que o comandante tinha o “hábito de despedir a tripulação, para ir metendo
crianças pelo Baixo Amazonas e outros portos, a fim de fazer o que bem entende”. O ofício da
UMMA endereçado à imprensa reitera que atos iguais a estes “nos humilha e rebaixa” (JC,
15/4/1914). Assina o documento o procurador da entidade, João Gonçalves Demoniz. Meses
depois, os marítimos amazonenses descobririam que seu verdadeiro nome era João Gonçalves
Monica.

Um agitador anarquista em Manaus

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“Demoniz” era recém-chegado de Belém e, ao que tudo indica, veio para ajudar a
organizar a UMMA, apesar de nunca ter sido marítimo. O personagem é conhecido na
historiografia como um aproveitador que enganava para surrupiar os cofres das associações
operárias (PINHEIRO, PINHEIRO, 2017); que entrou em conflitos com lideranças de
trabalhadores, deu calotes e angariou antipatias em Manaus e Belém (TELES, 2018, 170-2).
Entretanto, ao reconstruir parte de sua trajetória, é possível perceber outros meandros que
escapam de tipos ideais a serem “seguidos” ou “evitados” (SCHMIDT, 2017, 48). Tal esforço
soma-se às outras pesquisas que vem resgatando figuras um tanto marginalizadas no
movimento operário do Norte do Brasil. Muitas delas oriundas de outras regiões e países, e
portadoras de ideias assimiladas no percurso entre diferentes localidades (PINHEIRO, 2020).
João Gonçalves Monica possui data e local de nascimento desconhecidos, sendo
provável uma origem ou ascendência portuguesa como os sobrenomes indicam. Seu primeiro
rastro documental é de 1903, quando presidiu a Sociedade Protetora dos Empregados
Domésticos do Rio de Janeiro (Jornal do Brasil, 7/5/1903) e começou a participar de greves
de diferentes categorias. No ano seguinte, surge como funcionário dos Correios, onde era
responsável pelas malas marítimas (Almanack Laemmert, 1910, 620). Na greve portuária de
1905, foi preso portando armas e se apresentou como estivador, o primeiro registro de sua tática
de identidades falsas para despistar a polícia (Jornal do Brasil, 30/5/1905). Ele fazia isso para
não ser identificado como funcionário público, até ser descoberto em 1910 e exonerado pelo
presidente Nilo Peçanha. O caso teve ampla cobertura jornalística na capital federal, com
acusações de perseguição política da presidência da República, sendo notória a posição
anarquista de Monica. Depois disso, sua vida foi totalmente desorganizada e ele passou a
sobreviver de ajudas e ganhos possíveis no movimento operário. Foi redator de jornais
anarquistas e remunerado minimamente pelo suporte dado a diferentes associações de ofício,
como chegou a fazer de maneira desajeitada em Belém e Manaus.
Em 1912, parece ter começado a se aproximar dos portuários na capital federal. Num
evento da Associação Resistência dos Trabalhadores em Trapiches e Café, foi secretário da
sessão solene em homenagem ao martírio de Francisco Ferrer. Estavam presentes
representantes dos maquinistas, estivadores, vendedores ambulantes etc. (A Época,
15/10/1912). Naquele mesmo ano, foi acusado, de maneira contestável, de ter incendiado

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criminalmente a Associação Mútua Modelar, fundada e presidida por ele, para receber o
dinheiro do seguro. Procurado pela polícia por esse “crime” e pela fama de agitador político,
Monica fugiu para Belém em 1913, onde lá tentou fundar a Mútua Paraense, sem sucesso
(TELES, 2018, 171). Mas foi no bojo das mobilizações cariocas da Primeira República que
passou a simpatizar com marinheiros. Num protesto pelo assassinato de Ferrer na sede da
Federação Operária, exigiu maior energia na represália a empresas espanholas. “É preciso fazer
boicotagem aos gêneros espanhóis. Os marítimos é que devem tomar a frente. [...]. Viva a
revolução social! Morram todas as formas de governo!” (Gazeta de Notícias, 18/10/1909). Foi
também signatário do pedido de anistia aos marinheiros revoltosos de 1910, feito pelo Comitê
de Propaganda Socialista, que tinha por fim a agitação de associações operárias (Correio da
Manhã, 11/6/1912). Por sinal, missão levada por ele ao Norte do país, onde se auto-exilou no
ano seguinte.
A atuação de Monica na diretoria da UMMA revela a circulação de um aprendizado de
enfrentamento político, além de identificações de lutas a nível nacional, como o fim da chibata.
O principal elo identitário dos portuários brasileiros era “uma forte continuidade entre os
escravos e libertos dos velhos tempos imperiais e os proletários da Primeira República”
(VELASCO E CRUZ, 2000, 270-4). Em especial, a proximidade de Monica com a
“Resistência” inferiu a lida com as desigualdades raciais observadas em Manaus. No Rio de
Janeiro, essa entidade era um “verdadeiro reduto negro”, indicador de que escravizados e
homens livres de cor seguraram ferrenhamente seus postos de trabalho desde o tempo da
escravidão. O associativismo de convés no Amazonas não esteve divorciado de outros
movimentos pelo país, e tinha na presença negra, aparentemente, um elemento aglutinador
tradicional. E, pelo visto, dali se valia para impor demandas próprias.
A UMMA se manteve na retaguarda contra as tentativas de federalização da categoria sob
a batuta dos oficiais da Federação Marítima do Amazonas (organizada no mesmo ano de 1914,
ativa até 1916, reorganizada em 1917 e extinta no ano seguinte). Os avanços de federalização
dos marinheiros nunca lograram êxito por causa do altivo associativismo de convés e de fogo
(foguistas e carvoeiros) no Amazonas. A imprensa chegou a afirmar, em 1914, que a UMMA

media forças com a Federação pelo poder de representação da categoria (JC, 29/5/1914). O

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que é notável, pois a Federação Marítima procurava aglutinar todos os ofícios de bordo, e a
UMMA somente marinheiros, moços e talvez criados.
Em Salvador, Aldrin Castellucci verificou que trabalhadores “desqualificados” ou
“semi-qualificados” eram resistentes à submissão associativa liderada por artesãos qualificados
e de vínculos políticos com governos – como era o caso da Federação Marítima, cuja lista de
presidentes consta um capitão do porto. A hipótese do autor é que nesses setores “subalternos”
abrigava-se a maioria dos pretos e os que maior sentiam o peso do racismo e da exclusão. Isto
impelia esses trabalhadores a encontrar formas próprias de organização, como faziam os
ganhadores em seus “cantos” no século XIX, e o pessoal da “Resistência” no Rio de Janeiro
(2010, 13; REIS, 2019). Tais experiências devem ter circulado pelo porto de Manaus, conforme
homens pretos e mestiços de diferentes lugares iam ocupando postos de convés. Além disso,
Monica atuou como um “mediador” nesse processo, pois vinha da capital federal e tinha
amizade com portuários pretos organizados por lá.
João Gonçalves Monica foi procurador da UMMA por apenas um ano, e por causa de
disputas entre lideranças operárias locais, partiu para Porto Velho, onde perdi o seu rastro. Vale
dizer que, após 1914, não encontrei recorrência de maus tratos do tipo vistos aqui. É possível
que a UMMA tenha influenciado na aparente extinção do açoitamento disciplinar, com base na
vigilância e na pressão política e social, feita com largo uso da exposição pública pela imprensa.
Monica afirmou ali que o castigo físico humilhava e rebaixava toda a categoria. Tal perspectiva
foi reproduzida em outras associações mundo afora, as quais entendiam o açoite de maneira
mais ampla, como todo o sentido da exploração a que estavam submetidas.
A requisição da UMMA incluía uma ideia de dignidade do trabalho que ia muito além do
castigo físico em si. E isso é evidente quando o marcador racial gerava um elemento de
identificação da marinhagem. Por conta da presença majoritariamente negra e mestiça entre
portuários e marítimos, muitos não os distinguiam entre trabalhadores e vagabundos, “canalha”
e “negrada”. Se “preto” ou “negro” eram sinônimos de “escravo” ou “ex-escravo”, por
extensão, mulheres, homens e crianças de pele escura eram tidos por “perigosos, criminosos e
despreparados para a liberdade”. Havia entre os superiores uma confusão de imagens que
teimavam em abandonar. Dessa forma, conjugada a questão às dimensões de classe, organizar-
se enquanto categoria era uma forma de os trabalhadores livrarem-se da marca da escravidão,

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para, através de associações como a UMMA, pleitearem “igualdade de tratamento e o respeito


devido aos homens livres” (VELASCO E CRUZ, 2000, 287-8).

Referências

Bibliografia

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Manaus da Grande Guerra (1914-1918). Dissertação (mestrado em História). Manaus: UFAM,
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______; PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Mundos do trabalho na cidade da borracha:
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imprensa operária no Amazonas (1890-1928). Tese (doutorado em História). Porto Alegre:
UFRGS, 2018.

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

VELASCO E CRUZ, M. Cecília. “Tradições negras na formação de um sindicato: a Sociedade


de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, Rio de Janeiro, 1905-1930”. Afro-Ásia,
n. 24, 2000.

Fontes
⚫ Periódicos (Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)
⚫ A Época. Rio de Janeiro (1912); Almanack Laemmert. Rio de Janeiro (1910); Correio
da Manhã. Rio de Janeiro (1912); Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro (1909); Jornal do Brasil.
Rio de Janeiro (1903, 1905); Jornal do Comércio. Manaus (1914).

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

CONSTITUIÇÃO E TRAJETÓRIAS DE ACERVOS DOCUMENTAIS NO


AMAZONAS: O CASO DE CLINTON THOMAS E A IGREJA DE CRISTO EM
URUCARÁ

CÉSAR AQUINO BEZERRA


Universidade Federal do Amazonas, Mestrando, Bolsista FAPEAM
cesaraquinobezerra@gmail.com
.
Resumo

Como construir uma pesquisa histórica no interior do estado do Amazonas? As tradicionais


instituições de guarda de acervos documentais em Manaus, além de difícil acesso a
pesquisadores no interior, podem não dar conta da complexidade histórica do Amazonas; assim
pesquisas no interior do estado talvez não encontrem fontes nessas instituições. Uma das
possibilidades aqui apresentada é o itinerário de pesquisa da trajetória do missionário norte-
americano Clinton Benjamin Thomas (1930-2007) e a Igreja de Cristo, em Urucará. Para isso,
nos lançamos ao desafio de construir um acervo, a partir de várias tipologias de documentos,
considerando o alargamento das fontes históricas (BLOCH, 2001). As tipologias de fontes
documentais arroladas em nossa pesquisa são: os documentos familiares reunidos pela família
Thomas, nos Estados Unidos e Brasil, em um processo de arquivamento de si e da própria vida
(ARTIÈRES, 1998); o diálogo com contemporâneos da trajetória de Clinton Thomas,
constituindo fontes orais (FERREIRA, 2012; ALBERTI, 2014; GATTAZ; MEIHY;
SEAWRIGHT, 2019); e os documentos produzidos pela Igreja de Cristo. Analisamos os
desafios da construção de um corpus documental sobre/no interior do Amazonas e buscamos
contribuir na compreensão de processos históricos do estado e proporcionar a outros
pesquisadores o incentivo para tal.

Palavras-chave: acervos documentais; história do Amazonas; Clinton Thomas.

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Introdução

Como construir uma pesquisa histórica no interior do Amazonas? No estado, as


tradicionais instituições de guarda de documentos, como arquivos públicos e museus, estão
restritas em sua maioria à capital Manaus. Mas em uma região de grandes distâncias, acessá-
las nem sempre é possível. E se refletirmos sobre a complexidade sociocultural desse território,
as várias possibilidades de pesquisa não estão restritas às fontes oficiais arquivadas em Manaus.
Nesse sentido, este artigo nasce a partir das possibilidades de construção de acervos
documentais e da pesquisa histórica no interior do Amazonas.

Somos devedores da revolução historiográfica do século XX, a qual promoveu o


alargamento das fontes historiográficas, como definido por Bloch (2001): os documentos
históricos podem ser tudo que o homem deixou para trás. Esta hipótese permitiu o alargamento
dos territórios do historiador e da noção de documentos históricos.

Bloch e os Annales rompem com a ideia de fonte isenta e pronta para revelar o passado
e apresentam-nos a história-problema: o documento, seja qual for, precisa ser questionado,
interrogado, e assim um problema surge, para ser investigado. Esse problema beneficia-se da
possibilidade de o documento gerar diversas leituras, no olhar de múltiplos pesquisadores, pois
lhe dão sentido a partir da visão do presente, já que o documento também é uma construção
(KARNAL; TATSCH, 2013).

Tais discussões historiográficas permitem que tomemos a definição de Karnal e Tatsch


(2013, p. 24) de documento histórico: “qualquer fonte sobre o passado, conservado por acidente
ou deliberadamente, analisado a partir do presente e estabelecendo diálogos entre a
subjetividade atual e a subjetividade pretérita”.

Partindo dessa noção ampliada de fonte, procuramos construir uma pesquisa histórica,
discutindo sobre a constituição de um acervo sobre a trajetória de Clinton Thomas, um
missionário norte-americano no Amazonas (BEZERRA; SILVA, 2018, 2020), através do
arquivamento da própria vida, da história oral e do cruzamento de outras fontes.

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O arquivar da vida pela família

No segundo semestre de 2017, em uma reunião de orientação no Centro de Estudos


Superiores de Parintins (CESP/UEA), tivemos o primeiro contato com Clinton Benjamin
Thomas (1930-2007).[1] Uma colega, natural de Urucará, município do Baixo Amazonas, nos
apresentou a história de um missionário norte-americano que instalara a primeira igreja
protestante de sua cidade, a Igreja de Cristo, e por três décadas, entre 1965-1996, também
ofereceu serviços médicos para a população. Clinton também teria sido mecânico, e sua esposa,
Phyllis Thomas (1934), professora de língua inglesa.

A mesma colega nos informou que dois filhos do missionário Clinton ainda residiam
em Urucará, e que era conhecido da população o arquivo de imagens que um deles dispunha.
O mesmo publicava fotos antigas da cidade, da família e da igreja, em uma rede social,
alcançando muitos moradores, desejosos de conhecer mais da história de seu município.

A possibilidade de investigar a trajetória de Clinton Thomas, sua relação com a inserção


do protestantismo no Amazonas, suas ações sociais e legitimação, nos levaram à primeira
viagem a campo. Assim, a mesma colega intermediou o encontro com Thomas Joel Thomas,
conhecido como “Tomé”, que se mostrava disposto a colaborar com uma pesquisa acadêmica
e fazer conhecida a história de vida de seu pai. Tomé, um ex-mecânico, compartilhou conosco
o material de seu acervo, recolhido a partir das inúmeras fotografias tiradas por sua família,
tanto em Urucará como nos Estados Unidos. Esse material visual remonta a antes da chegada
dos missionários ao Brasil, na segunda metade da década de 1950, revelando a prática do
arquivamento da própria vida, realizada por Clinton Thomas e seus familiares.

Segundo Artières (1998, p. 11), “arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor
à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma
prática de construção de si mesmo e de resistência”. E nesse arquivamento de si e para si “o
álbum de retratos constitui a memória oficial da família” (ARTIÈRES, 1998, p. 14). As
centenas de fotografias produzidas por Clinton Thomas e familiares ao longo de suas vidas
atende ao que Artières considera um dever da família – produzir lembranças.

Isso nos remete à construção do grande arquivo de Tomé Thomas, pois essas fotos, para
ele, são “patrimônio de família”. Seu trabalho de cotejar esse material lhe custou “muitos anos

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de acumulação, e muitas horas também vendo fotografia, slide. E negativo.” Quando


questionado sobre o destino para esse material, Tomé revelou que não quer mantê-lo guardado:
“porque eu acho que o patrimônio de Urucará tem que ser disponível para as pessoas, né”. Por
isso, ele posta as fotos em sua rede social, atraindo atenção da população: “Posto pro povo
aproveitar [...] muitas pessoas querendo mais”. Seu objetivo é contribuir com a história da
cidade: “eu quero que as pessoas conheçam o passado de Urucará”.[2] As ações de nosso
colaborador nos remetem novamente à Artières (1998, p. 32), “o arquivamento do eu muitas
vezes tem uma função pública”.

Na segunda viagem a campo, tivemos o contato intermediado com Timothy Benjamin


Thomas. Conhecido como “Timóteo”, ele também é um missionário, e nos recebeu na antiga
casa de seus pais em Urucará. O cotejo de materiais familiares realizado por Timóteo Thomas
compartilhado conosco abrange documentos variados, como manuscritos de sua autoria sobre
a Igreja de Cristo, tanto em língua inglesa como em português, remontando ao final da década
de 1970. Estes documentos revelam as percepções do missionário Timóteo sobre o
estabelecimento e crescimento da sua igreja, não só em Urucará, mas abrangendo o Norte do
Brasil, configurando-se também como relatórios para a igreja norte-americana.

Tais encontros e diálogos em Urucará, Amazonas, contribuíram para o avanço da nossa


investigação, fortalecendo não apenas nossa rede de contatos, mas as fontes da pesquisa.
Reconhecemos, e esse texto parte dessa premissa, a dificuldade de encontrá-las no interior do
Amazonas, sabendo que “a existência de um documento é, em geral, uma combinação delicada
da fortuna e da consciência” (KARNAL; TATSCH, 2013, p. 24).

Ter em mãos aquilo que Bacellar (2014) chama de arquivos privados, constituídos por
acervos de pessoas, famílias, grupos de interesse ou empresas, permitem o acesso à ricas
contribuições no ofício historiográfico. O autor defende que “cabe ao historiador investigar e
localizar onde estão preservados, sob a guarda de quem, e buscar contatos para tentar ter acesso
a esses acervos tão preciosos” (BACELLAR, 2014, p. 43). Tal foi nossa atitude ao buscarmos
Urucará e a família Thomas, mas ficam em aberto as muitas possibilidades que o arquivamento
da vida de Clinton Thomas fornece, atravessando até os Estados Unidos.

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Ouvindo as vozes dos amazonenses

Nossa pesquisa, tendo como recorte os quarenta anos de Clinton Thomas no Norte do
Brasil (1956-1996), enquadra-se no que Motta (2012, p. 34) denomina história do tempo
presente, construindo “uma narrativa científica acerca do que vivemos, do que estamos
consagrando como memória e, por contraste, do que estamos esquecendo”. A memória, em
uma investigação do tempo presente, não está em segundo plano, mas é essencial às discussões.

Segundo Pollak (1992), a memória apresenta flutuações, as quais são dependentes das
motivações pessoais ou políticas em que é expressa. Construção, social e individual, a memória
é concebida como elemento que constitui o sentimento de identidade, individual e coletivo,
contribuindo para o sentido de continuidade e coerência tanto da pessoa quanto do grupo.
Entretanto, memória e identidade estão em constantes negociações e disputas, em confrontos
sociais e intergrupais (POLLAK, 1992). Esse caráter conflitivo se faz presente em memórias
familiares e de outros grupos, onde se embatem objetivos e conflitos, como aliás, pode ser a
trajetória de Clinton Thomas.

As discussões sobre a memória e sua relação com a história permitiram sua inserção no
território historiográfico, e nisso a metodologia da história oral ocupa um espaço privilegiado
(FERREIRA, 2012), pois permite, conforme a definição de Alberti (2014, p. 155), “o registro
de testemunhos e o acesso a ‘histórias dentro da história’ e, assim sendo, amplia as
possibilidades de interpretação do passado”. Desde os primeiros momentos, ao tomarmos
conhecimento de Clinton Thomas e sua trajetória em Urucará, percebemos a importância da
história oral para essa investigação, por permitir “a democracia de vozes” (GATTAZ; MEIHY;
SEAWRIGHT, 2019).

Imprescindível para esta metodologia, como constituidora de suas próprias fontes é a


realização de entrevistas “com indivíduos que participaram de, ou testemunharam,
acontecimentos e conjunturas do passado e do presente” (ALBERTI, 2014, p. 155). Dessa
forma, segundo a autora, a entrevista nasce da interação entre o entrevistado e o entrevistador,
e pela narração daquele que transmite o acontecimento que viveu.

Para não cairmos na escrita de um texto laudatório sobre um missionário protestante


estrangeiro, que ocupa o papel do Estado na atenção médica à população, Motta (2012) alerta

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

do equívoco de considerar memória e história como sinônimas; desse modo, persiste a


necessidade de uma reconstrução crítica e não somente restaurar memórias, compreendendo
que estas tanto são fontes históricas quanto fenômenos históricos, tal como qualquer outro
documento.

Ferreira (2012, p. 183) aponta que as memórias “mais do que possibilitar uma
compreensão do passado, atuam no tempo presente”. O relato não é a própria “História”
(ALBERTI, 2014), mas como fonte, a entrevista precisa ser interpretada e analisada. Ferreira
(2012, p. 184) adverte que o historiador “detém instrumentos para lidar com a pluralidade e a
fragmentação” da memória; logo, sua análise é fruto “de um esforço de escrita da história”.

Considerando a teoria historiográfica sobre a história do tempo presente, memória e a


história oral, e tendo nos lançado ao trabalho em campo, até o presente momento, foram
realizadas oito entrevistas com contemporâneos das ações e trajetória de Clinton Thomas, as
quais permitirão identificar as memórias sobre as atividades da família Thomas no Norte
brasileiro e as relações sociais do missionário e sua igreja (BEZERRA; SILVA, 2018, 2020).
A pesquisa abre oportunidade para outras entrevistas que poderão ser feitas, não só em Urucará,
pois a rede de relações de Clinton Thomas transcende os limites do estado do Amazonas.

Os estudos sobre o protestantismo na Amazônia, um dos eixos da nossa pesquisa, não


parecem ter ainda se apropriado da história oral como método para compreender a inserção
religiosa e social das igrejas, quer de origem estrangeira quer nacionais. Apontamos também
como a religiosidade católica e a pentecostal parecem atrair maior investigação, como no
trabalho de Oliveira (2012), mas o protestantismo missionário estrangeiro, cuja ação social é
também legitimadora do proselitismo, como em Torres Neto (2019), apresenta-se como um
campo amplo.

Também revelador, através das memórias individuais ou compartilhadas (POLLAK,


1992), podem ser as relações entre o catolicismo e os missionários estrangeiros, para apreender
as tensões envolvidas, bem como entre o movimento protestante e a sociedade em que se
inseriu, ou ainda com os poderes estabelecidos. Invariavelmente o marco mais importante nas
memórias construídas a respeito de Clinton Thomas é sua atuação como médico autodidata,
atendendo a população urucaraense; uma das hipóteses que temos levantado sobre a trajetória

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do missionário relaciona-se com as possíveis tensões geradas por sua presença nessa lacuna da
ação do Estado. A pesquisa pode ainda levantar outras questões, a partir do diálogo com
moradores de Urucará e em outras regiões, e para isso a história oral nos permite acessar essas
memórias, as histórias dentro da história (ALBERTI, 2014).

Como Pizarro (2012), reconhecemos a Amazônia como espaço de complexidades,


comportando muitas vozes que revelam sua multiplicidade humana e social. Portanto, nossa
proposta é não reproduzir discursos que nascem em uma perspectiva colonial, que veem a
Amazônia como carente da intervenção, ajuda e visão externas; antes, o acervo por nós já
construído, primeiramente no âmbito do Grupo de Estudos Históricos do Amazonas
(GEHA/UEA/CNPq), para apreender os processos históricos, sociais e culturais envolvidos na
trajetória de Clinton Thomas é um dos exemplos dessas possibilidades, que procuram ouvir as
vozes das comunidades amazônicas e estudar suas próprias narrativas.

Constituindo o acervo com outras fontes

Na constituição de acervos documentais para o estudo da história do Amazonas, e


tomando nosso itinerário de pesquisa na investigação da trajetória de Clinton Thomas como
caso, outras fontes revelam-se, ampliando nossa visão do campo e permitindo comparações.

Uma parte do nosso corpus documental foi fornecido pelos escritos do movimento Igreja de
Cristo, nos sites Movimento de Restauração [3], mantido por membros da Igreja de Cristo no
Brasil, e World Convention [4], da Convenção Mundial das Igrejas de Cristo. Interessada em
falar de si e para si, a Igreja de Cristo reuniu diversos artigos em seus sites, os quais nos
permitem traçar a história e dados do movimento desde sua fundação no início do século XIX
a eventos do século XXI na igreja brasileira.

As fontes da Igreja de Cristo foram nossos primeiros objetos de análise, ainda antes dos
contatos em Urucará, pois nos forneceram não só um pequeno perfil de Clinton Thomas, mas
também compreensão do seu movimento bicentenário, da chegada ao Brasil e estabelecimento
da primeira igreja em 1948, a entrada na Amazônia nos anos seguintes, bem como pontuar a
trajetória desse missionário dentre as dezenas de famílias que vieram ao Brasil nesse projeto
missionário e conversionista (BEZERRA; SILVA, 2018, 2020).

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Outras fontes são possíveis, tanto para nossa investigação quanto para outras pesquisas,
como arquivos cartoriais e eclesiásticos, apontados por Bacellar (2014); entretanto, até o
momento estes não nos foram disponibilizados. Cabe destacar que uma visita ao Poder
Legislativo de Urucará resultou no encontro da entrega do título de cidadania para Clinton e
Phyllis Thomas.

Os corpos documentais aqui apresentados, portanto, são constituidores de um acervo


voltado à trajetória religiosa e atuação social do missionário Clinton Benjamin Thomas e sua
família, entre os Estados Unidos e a Amazônia brasileira, especialmente na cidade de Urucará,
e buscamos analisá-los em conexão para dar conta do processo de introdução da igreja
protestante no Baixo Amazonas, a ameaça à hegemonia católica e as tensões nas relações
sociopolíticas.

Considerações finais

A crescente digitalização dos acervos das tradicionais instituições de guarda de


documentos pode permitir aos pesquisadores vencer a dificuldade de acesso a essas fontes.
Contudo, apesar da rica contribuição, esses documentos não podem dar conta de toda a
complexidade da história amazônica, pois muitos conhecimentos estão restritos à oralidade e a
arquivos pessoais em geral, longe do domínio do Estado e da academia.

Para acessar essas histórias, pesquisadores lançam-se ao desafio de procurar os mais


variados documentos, sistematizá-los e disponibilizá-los ao público e à pesquisa. A escrita do
presente artigo, que busca responder à pergunta “Como construir uma pesquisa histórica no
interior do Amazonas?”, nasce dentro da experiência de historiadores do Baixo Amazonas,
principalmente ligados ao Grupo de Estudos Históricos do Amazonas, cujas pesquisas
favorecem os processos históricos da região, utilizando tanto fontes oficiais quanto não-
oficiais, e, dentro destas, privilegiando a memória dos mais diversos sujeitos e trajetórias.

Ao conhecermos a história de vida de um missionário norte-americano no interior do


Amazonas e nos lançarmos ao desafio desta investigação, podemos considerar também a
trajetória e constituição dos acervos ao redor desse sujeito. Sua família foi a primeira a montar
um acervo, arquivando de si/para si (ARTIÈRES, 1998), atendendo a uma função
particular/familiar, mas também a uma função pública, na qual percebem seu patriarca como

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um sujeito histórico.

Outros documentos apresentados e as possibilidades que podem ser levantadas,


demonstram que as dificuldades para uma pesquisa histórica podem ser contornadas com uma
comparação entre fontes tão diversas. E dentro dos processos da história do tempo presente e
da relação com a memória, a metodologia da história oral (FERREIRA, 2012; ALBERTI,
2014; GATTAZ; MEIHY; SEAWRIGHT, 2019) apresenta-se como eficaz para conhecer e
analisar a história do Amazonas e dos seus grupos sociais. Quando reconhecemos as lacunas
que persistem na historiografia estadual, sobre a história das pequenas cidades como Urucará,
a história oral se revela para suprir esses vazios, ao ouvir as vozes plurais amazonenses.

Trajetórias como a do missionário Clinton Benjamin Thomas e da Igreja de Cristo em


Urucará são objetos de estudo que permitem desvelar uma ampla gama de processos históricos
no Amazonas. Nossa investigação busca iluminar novas questões e proporcionar a outros
pesquisadores o incentivo para buscar compreender nosso estado.

Notas
[1] Clinton Benjamin Thomas, natural de Williamsport, Pensilvânia, nasceu em 28 de
setembro de 1930. Faleceu em 21 de abril de 2007, em Knoxville, Tennessee. Cf. Bezerra e
Silva (2018, 2020).
[2] Entrevista realizada com Thomas “Tomé” Joel Thomas, em Urucará, 19/08/2017.
[3] Movimento de Restauração. Disponível em http://movimentoderestauracao.com/.
[4] World Convention. Disponível em https://www.worldconvention.org/.

Referências
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1998, p. 9-34.
BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.).
Fontes históricas. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2014. p. 23-79.
BEZERRA, César Aquino; SILVA, Júlio Claudio da. Entre Williamsport e Urucará: a
trajetória do missionário Clinton Thomas dos EUA ao Amazonas através de fontes orais.
Gnarus Revista de História, v.1, ed. especial, p. 37-45, fev. 2020.
BEZERRA, César Aquino; SILVA, Júlio Claudio da. História Oral e Memória: Clinton
Thomas e a Igreja de Cristo em Urucará. In: Anais IV Encontro Estadual de História:

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Zahar Ed., 2001.
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TORRES NETO, Diogo Gonzaga. A Ética Protestante e o Espírito da Amazônia: Os
escritos, pensamento e a obra missionária adventista de Leo B. Halliwell. Tese (Doutorado
em Sociedade e Cultura na Amazônia) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2019.

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O CAMINHO DA TERRA:
OS PATAXÓ DO SUL DA BAHIA E O “FOGO DE 51”

DANIELLA MUDESTO ROSA SÃO THIAGO


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Graduanda
danimudesto@gmail.com
Resumo
Uma reflexão sobre a presença indígena na história do Brasil, a partir dos Pataxó do litoral sul
baiano e a questão da terra. Fruto de uma pesquisa de campo ao longo de dois anos, com idas
e vindas ao vilarejo de Caraíva e da construção de uma relação com a comunidade local,
próximo a aldeias Pataxó. O ponto principal é a compreensão do episódio conhecido como
“fogo de 1951”, importante evento na memória da luta contemporânea desta coletividade. Em
1951, houve um grande ataque contra os indígenas, quando muitos tiveram que deixar suas
terras, fugindo para cidades vizinhas, espalhando-se até Minas Gerais, onde até hoje resiste um
grupo que luta para manter vivas as suas tradições. Para a compreensão deste fato, tanto a
documentação oficial, quanto os relatos, histórias e narrativas são justapostos. Assim como a
relação com os dados estatísticos do último censo do IBGE (2010) que nos trazem um dado
importante, quando relacionado com a pesquisa.

Palavras-chave: Terra indígena; Pataxó; Fogo de 51

A terra como ponto de partida

A terra é o elemento principal da narrativa que se inicia com a chegada das naus
portuguesas, em 22 de abril de 1500. A busca de um caminho alternativo para o comércio
colonial com as chamadas “Índias”, via oceano Atlântico, foi usada como justificativa à
chegada em um território que Portugal já tinha o domínio legitimado através do tratado de
Tordesilhas, assinado em 7 de Julho de 1494, dividindo entre o Reino de Portugal e a coroa de
Castela as terras já descobertas e as que estariam a se descobrir no então chamado, para os
europeus, “novo mundo”. Sob outro ponto de vista, para aqueles que já a habitavam, evoca-se
o sagrado, o ciclo da vida. A terra é aquela que gera a natureza da qual se é parte indissociável,

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quem alimenta, quem protege, quem guarda. A terra faz parte da identidade indígena, fazia à
época da chegada portuguesa, faz ainda hoje.

A carta enviada por Pero Vaz de Caminha a El-Rey D. Manuel, consagrada pela
historiografia brasileira nascente no século XIX, é o primeiro documento oficial que dava
notícias da chegada, das coisas da terra e das gentes locais. As imagens de “bondade” e
“inocência”, ou mesmo de “beleza” e “exuberância”, que foram construídas ao longo dos
processos coloniais se contrapunham a outras denominações já que as práticas atribuídas aos
indígenas que não se alinhavam com a cultura europeia também foram chamadas de “barbárie”,
bem como de “bravos” os “homens” e “gentes” que não se submetiam ao trabalho com a
extração do pau-brasil e construção das primeiras vilas, bem como os que resistiam à ação
missionária (POMPA, 2003; GARCIA, 2007).

A resistência à assimilação da fé cristã era usada como justificativa da plena


necessidade das chamadas “guerras justas”, em que, considerados hostis, os indígenas eram
aprisionados e aldeados. Observa-se a construção de uma narrativa aparentemente ambígua
sobre os indígenas. Em 1755 foi criado o “Diretório que se deve observar nas Povoações dos
Índios do Pará e Maranhão, enquanto Sua Majestade não mandar o contrário”, tornada pública
em 1757, com a abrangência sendo desde então ampliada também à colônia do Brasil. O
Diretório de Índios, voltado ao estabelecimento e execução da política indigenista, perdurou
até 1798, quando foi extinto. O foco foi a reorganização das aldeias, sob influência de ideias
iluministas, e a expulsão dos Jesuítas, em 1759, pelo Marquês de Pombal, marcos importantes
deste período. Com o fim da política do diretório, o saldo foi de grande número de indivíduos
dizimados por varíola e sarampo, bem como a destruição e desorganização das populações.

Em 1798, os juízes absorveram então a administração dos bens dos índios, ainda
categorizados como incapazes de responderem por si. Após 1808, com a transferência da
família Real para o Brasil, as cartas régias determinam que toda a terra conquistada a partir de
uma “guerra justa”, ou seja, um embate com índios que se negavam a determinação portuguesa,
seria considerada “terra devoluta”. O Regulamento das Missões, de 1845, atualizava a
permissão do arrendamento dessas terras e também a remoção e reunião de aldeias. Desta
maneira, o controle da terra poderia ser utilizado para manejar as comunidades, mais uma vez

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enfraquecendo os laços entre os indivíduos, bem como negando as referências com o lugar
ancestral de assentamento. Em 1850, três legislações estiveram intrinsecamente ligadas às
questões da terra, da mão de obra e da colonização do território. A Lei de Terras teve o objetivo
de regulamentar a propriedade das terras doadas desde o período colonial e legalizar as áreas
ocupadas sem autorização, reconhecendo, posteriormente, as terras devolutas pertencentes ao
Estado. Engenheiros eram enviados a estes espaços, e, sob a acusação de estarem “misturados
à massa da população”, de terem “perdido” através da “mistura” as características dos que
seriam os “verdadeiros” índios, muitas vezes representados nas imagens científicas, literárias
e pictóricas do romantismo, muitas aldeias foram consideradas extintas pelo discurso oficial.

Na segunda metade do século XIX, a chamada “Guerra do Paraguai”, ou, para os outros
países envolvidos, a “guerra da tríplice fronteira” (1865-1870) destaca-se a figura de Cândido
Mariano da Silva Rondon (1865-1958). Rondon defendia a “colonização” do Brasil, alinhando
os ideais positivistas num contexto de discussões acerca do futuro indígena. No plano de
estabelecimento de políticas de governo em relação aos povos indígenas baseadas na tutela
destas populações, foi criado em 20 de Junho de 1910, através do Decreto no 8072, o Serviço
de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais, com base em uma política
indigenista que afastasse a catequese e que enxergasse no índio o potencial para um trabalhador
nacional.

O SPI trabalhava através da criação de postos de atendimento às populações indígenas,


de maneira que as populações eram “atraídas” de seu território original para, então, serem
alocadas em um novo território (os postos). Do início ao fim do SPI, predominou uma escola
indígena formadora de produtores rurais voltados para o mercado regional, havendo baixo
aproveitamento educacional das crianças indígenas em tais condições (OLIVEIRA e FREIRE,
2006).

Os Pataxó do sul da Bahia e o “fogo de 51”

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A política de ocupação teve um momento importante com a expedição de Martim


Afonso de Souza (1530), com a finalidade de aprisionar as embarcações francesas que se
encontravam em disputa pela ocupação territorial, bem como de fundar núcleos e padrões de
povoações litorâneas. As vilas de Ilhéus, Porto Seguro e Santa Cruz (atualmente Cabrália),
estavam entre as primeiras criadas no litoral, junto às de Igarassu, Olinda, Vitória, São Vicente
e Santos (Pacheco, 2014, p. 179). Segundo Oliveira (2014), a maior parte destas vilas estava
“sitiada por indígenas hostis e sem condições de expandir (ou até mesmo manter) o núcleo
inicial” (op. cit, p. 179). Na Bahia de Todos os Santos, a criação da vila em 1536 foi procedida
de conflitos com os tupinambás.

O extermínio e a escravidão indígena foram tão significativos no final do século XVI,


segundo Sampaio, praticamente não havia “tupiniquins livres”. No início do século XIX, as
matas do sul baiano sofreram um processo de conquista por iniciativa do governo e as
populações indígenas ainda autônomas, entre os quais os Maxacali e os Pataxó, além de outros
grupos litorâneos, foram, em 1861, forçadamente reunidos em uma única aldeia junto a foz do
rio Corumbau, considerada a origem da atual aldeia de Barra Velha. Na segunda metade do
século XIX, não era incomum, declarações oficiais de extinção de grupos indígenas, até que
em 1890 a Diretoria de Índios na Bahia foi extinta. O século XX se inicia praticamente sem
nenhuma comunidade indígena reconhecida pela oficialidade, à exceção de alguns chamados
“bandos indígenas”. Em 1926, foi criada uma reserva para os índios no sul da Bahia, o Posto
Caramuru, para abrigar os Pataxó Hã-Hã-Hãe e os Baenã, e também o Posto Paraguaçu. A
reserva ficou conhecida como Caramuru-Paraguaçu, demarcada entre 1936 e 1937, tendo sido
palco de diversas invasões por parte dos fazendeiros de cacau e gado que contavam com a
cumplicidade e corrupção de funcionários do SPI. Este processo de invasão e expulsão
perdurou com episódios de conflitos e extrema violência, como o que ficou conhecido como
“fogo de 51”.

“Fogo de 51” é como ficou conhecido e noticiado nos jornais de Salvador uma série de
perseguições aos Pataxós, marcando o início da dispersão pela região. Por vezes é chamado de
“Revolta dos caboclos”, como foi noticiado no jornal A Tarde, edição de 11 de junho de 1951.
A questão da terra para este evento se evidencia com a medida que cria o Parque Nacional do

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Monte Pascoal (PNMP) através do Decreto-Lei no 12.729, publicado no Diário Oficial do


Estado da Bahia de 19 de abril de 1943, por iniciativa do General José Aleixo.

A área prevista para o parque adentra a área ocupada pelos indígenas e não há qualquer
referência a estes no corpo do texto publicado, colocando estes povos em uma condição de
instabilidade no que diz respeito à posse e ao uso das terras em que neste momento habitavam.
Diante de uma iminente desapropriação ou mudança de território, a documentação analisada
indica a presença do "capitão" Honório Teixeira, liderança indígena Pataxó. Em 1949, Honório
Teixeira teve a responsabilidade de ir até o Rio de Janeiro, então capital e sede do governo
central do Brasil, na esperança de que houvesse uma intervenção a favor de sua aldeia, a aldeia
Bom Jardim, a fim de lhes assegurar a posse de suas terras, bem como intervir na situação de
precariedade que enfrentam. Segundo Sampaio (2000, p. 35), foi provavelmente a criação do
Parque que incentivou a ida de lideranças indígenas ao Rio de Janeiro, em busca de conseguir
apoio das autoridades, em especial do Marechal Cândido Rondon, à sua causa. No relato sobre
a difícil situação do seu povo e sobre o temor da tomada iminente do território fica indicado na
carta datada de 1o de setembro de 1949.
Do capitão Onoro para (sic) os pobres Chefe da ardea de indio de Belo Jardim
Monte pasqual. Manda pedir roupa para minhas crianças e pesso feramenta
para o meu trabalho faso um pedido que não dei- xe de atender. Peso o favor
de não deixar o pessoal da India tomar minhas terra eles tatando para panhar,
Ardea dos Indios de Belo Jardim Monte Pascual que fica acima de porto
Seguro na Bahia (SPI, 1949).

A situação de instabilidade na terra descrita pelo capitão pode ser evidenciada nos
registros do catálogo da documentação textual do SPI do posto indígena Caramuru-Paraguaçu,
que abrangia as terras ocupadas pela aldeia Bom Jardim. O catálogo registra diversas situações
de arrendamento e posse de terras, bem como procedimentos administrativos e situações de
conflito e/ou de violência. Considerando-se também que outras ocorrências podem não ter sido
registradas, encontram-se para o ano de 1949 o registro de 3 (três) atos de violência e conflitos
de invasão de terras dos indígenas, um deles com referência a campanhas difamatórias contra
os índios. Em 1950 houve 1 (um) registro de invasão e outros 4 (quatro) registros que
antecederam chamado “fogo de 51”. Entre estas ocorrências, chamo a atenção para um ofício
no qual eram solicitadas providências acerca do arrendatário Raimundo Gonçalves de Freitas,

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que teria ateado fogo em terras ocupadas por índios. Há ainda a ocorrência de um movimento
reivindicatório dos arrendatários que alegavam a existência de um número reduzido de índios
para justificar a existência de um posto, pedindo, assim, a sua extinção, ocorrido em 1936
liderado por deputados estaduais. E, depois disto, um segundo episódio chamado de
"Revolução do Posto" em que as tropas policiais do Estado da Bahia teriam invadido a área,
insuflados por fazendeiros e políticos sob a alegação de haver grande quantidade de armas entre
os índios e os arrendatários da reserva.

Mesmo antes do decreto que estabelecia a criação do PNMP, já havia insegurança por
parte dos indígenas para garantir a manutenção de suas terras, bem como havia conflitos com
políticos e força policial. Sem encontrar solução para a situação da sua aldeia, Honório busca
ajuda numa instância superior, na esperança de lograr êxito a sua causa. A carta que relata o
pedido desesperado de ajuda, no entanto, não surte o efeito desejado, apesar de ser protocolada
e encaminhada pelo diretor do SPI, em setembro do mesmo ano, a duas inspetorias com
orientação de que se verifique o relatado. Em maio de 1951, portanto aproximadamente um
ano e oito meses depois, ocorreu o massacre e a dispersão dos índios Pataxó da aldeia de Bom
Jardim, também chamada Barra Velha.

Sobre este acontecimento, surgiram muitas versões, inclusive uma que alegou a
movimentação de caráter subversivo dentro da aldeia. O que é descrito no Jornal A Tarde,
edição de 30/05/1951, sugere uma comunidade “em lastimável estado de miséria, todos
passando fome e alguns doentes.” Esta comunidade foi brutalmente invadida e seus integrantes,
quando não foram mortos, foram forçados a fugir, deixando tudo que possuíam para trás, sua
habitação, os lugares considerados sagrados, seus objetos culturais, seu território de
pertencimento. Muitos dispersaram levando consigo profunda dor e desespero. Pelo relatório
“Conflitos Socioambientais e Unidades de Conservação”, de 2000, o fogo de 51 foi uma revolta
da comunidade da região contra os índios. Sobre o que desencadeou o massacre, há narrativas
sobre a participação de dois indivíduos que Honório teria conhecido por ocasião da sua visita
ao Rio de Janeiro. São citados em diversos momentos, como por exemplo, no relato oral do
Pacurumã ao vender seus artesanatos na praia. Também aparecem no discurso de início da
visita à Reserva da Jaqueira em Coroa Vermelha, atração turística local. Ou ainda na edição de

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

27/05/1951 do Jornal O Momento, também de Salvador, ou mesmo na publicação de


01/06/1951 do Jornal A Tarde, onde se lê que “[...] Honório e seu grupo, ao retornarem da
viagem, encontraram dois homens que diziam ser engenheiros que iriam demarcar a área.”
(FUNAI, 2011, p.19). A estes homens é atribuída a iniciativa de se dirigirem à aldeia com a
finalidade de demarcar os limites da terra. Segundo o Jornal A Tarde, de Salvador, edição do
dia 11/06/1951, estes dois personagens teriam ligação com o Partido Comunista, o que teria
justificado o tamanho da força policial empregada no conflito. A publicação fala da ligação do
capitão Honório com Ary Bering, que seria fichado como comunista em Belo Horizonte e
Vitória. Sobre o segundo personagem, a mesma reportagem revela o nome de Nelson Schaum,
que seria ligado ao Partido Comunista na Bahia, cuidando dos informes das atividades de
campo. Devemos lembrar que trata-se de um período de reação extrema a qualquer atividade
de cunho comunista ou que visasse disseminar suas ideias. Consideramos também se tratar de
um partido político que, tendo sido cassado pelo Estado Novo, permaneceu na ilegalidade
conservando núcleos no Rio de Janeiro e Bahia.

O que acontece após a chegada desses dois indivíduos é o estopim do massacre, o


evento é relatado por Laurindo de Oliveira Régis, então Secretário de Segurança Pública do
Estado da Bahia, através do Ofício 252 de 6 de Agosto de 1951 acerca de um saque praticado
na fazenda de Teodomiro Rodrigues pelo "capitão caboclo" Honório Borges dos Santos em
Corumbaú. Este documento é citado no catálogo sobre a documentação textual do SPI do posto
indígena Caramuru-Paraguaçu. Para o jornal A Tarde, edição de 01/06/1951, Honório recebe
o título de "capitão dos bandaleiros" e é acusado de, juntamente com estes supostos dois
engenheiros de incitarem os índios da aldeia a saquearem estabelecimentos comerciais.

Narrativas indígenas dão outros sentidos e estes eventos. Para a comunidade Pataxó que
organiza o Manual das Atividades de Etnoturismo na Reserva da Jaqueira, o relato ganha outro
corpo. Após o território ter sido ocupado em protesto contra a degradação ambiental provocada
pela empresa que se dizia dona da terra, a área obteve a homologação da demarcação publicada
no Diário Oficial em 18 de outubro de 1997 como terra indígena.

Diz-se no Manual:
Sabendo que nós índios tínhamos direito a este território, o Capitão da Aldeia
Honório Ferreira, Pifânio e mais outro Pataxó, seguiram viagem até o Rio de

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Janeiro. […] ao retornarem da viagem, encontraram dois homens que diziam


ser engenheiros que iriam demarcar a área.
[...] esses dois homens chegaram e começaram a perguntar onde estava a
cidade mas próxima da aldeia. Foram até Corumbaú e viram que a venda que
tinha mais coisas era a venda do Teodomiro, um não índio. Os índios,
inocentes, não sabiam o que iam acontecer. Primeiro, eles pegaram
Teodomiro, amarraram e carregaram as mercadorias e correram. Foi quando
passou um cavaleiro e viu o que tinha acontecido. Desamarrou o homem e
perguntou o que estava acontecendo. Ele, então, contou que foram os índios
que tinham feito aquilo. (FUNAI, 2011, p.19)

Dentre o que se pode acessar da memória coletiva e acerca dos relatos sobre o que
aconteceu nesses dias de horror, destacam-se as vozes de Ideildes e Nayara Pataxó, dos
registros do Manual de atividades de etnoturismo da Reserva Pataxó da Jaqueira:
Ideildes: Eles entravam nas casas com os cavalos, aqueles velhos que não
podiam correr, iam morrendo por ali mesmo. E as crianças que corriam na
frente dos cavalos, eles iam pisando por cima.

Nitinawã: Mãe (Taquara) conta que um fazendeiro escondeu a sua família em


sua fazenda dentro da mata. Eles pensavam que nós estávamos protegidos,
mas o fazendeiro levou a polícia para nós pegar. Quando viram ele chegando,
mãe (Taquara) com sua tia e seu irmão Domingo correram pra mata e seus
pais foram levados por policiais. Ela, sua tia Mariaolaia e seu irmão Domingo
passaram alguns dias sozinhos no mato. Quando chegaram mais à frente,
encontraram um homem e fizeram um grupo de quatro, mas o homem quis
abusar da tia Mariolalia e então, ficara novamente sozinhos na mata. Só
depois de três semanas é que conseguiram sua mãe em uma fazenda, pois a
polícia tinha pego meu avô. (FUNAI, 2011, p. 21)

O fogo de 51 é um marco de dor, mas que significa a resistência dos Pataxó, significa
o ponto de partida para a construção de um caminho Depois do grande massacre, o resultado
foi a dispersão. A negação da identidade chegou a ser um caminho de sobrevivência. As marcas
são no corpo, de toda sorte de violência e atrocidade; as marcas são na alma, de apagamento e
invisibilidade. A negação do ser índio, de sua herança cultural, daquilo que faz parte do seu
quotidiano. Os Pataxó que sobrevivem se espalham, se misturam. A mistura gera uma mudança
fenotípica. A mudança também abre um caminho de fortalecimento, de retomada, de
reconstrução. É disso que se orgulha hoje, o autoproclamado povo guerreiro, apesar das
tentativas de apagamento. O índio Pataxó considera todas as outras etnias como seus parentes,
organizando-se, interagindo, adentrando na universidade, formando professores indígenas,

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publicando livros, ensinando sobre as diversas formas de ser índio. Muito longe de estar
resolvida, a questão da terra ainda encontra seus percalços, o assunto encontra lugar nas pautas
atuais do Estado. A questão de quem é índio e quem não é segue lado a lado com a
(re)construção de um novo imaginário, um índio que é acima de tudo, brasileiro, em cujo “ser
índio” é revelado em constante mobilidade, em transformação, não mais preso a uma ideia
daquele encontrado a chegada de Cabral. Um índio que não se resume a ele próprio, mas que
habita espaços diversos, em cada qual cumprindo seu papel, seja artesão de biojoias, seja
médico, seja lavrador de sua roça, seja caseiro de uma pousada, seja sociólogo. O lugar do
índio, tão designado a ele por outros, tão justaposto a cada nova política indigenista, encontra
um novo desafio, o de ser ele mesmo, sendo todos, sendo cidadão, sendo, neste caso, Pataxó,
baiano e brasileiro.

Referências

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formação do Estado nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-1848);
2015; Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense.
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A REPRESENTAÇÃO DA PROCISSÃO DO FOGARÉU NA SANTA


CASA DA MISERICÓRDIA DA BAHIA

DANIELLA MUDESTO ROSA SÃO THIAGO


Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro, Graduanda
danimudesto@gmail.com

Resumo

Uma reflexão sobre presença da Arte Sacra na história do Brasil, a partir da representação da
Procissão do Fogaréu na Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Uma investigação através do
painel de azulejos instalado na nave da Igreja da Misericórdia e das telas de José Joaquim da
Rocha, expostas no museu de mesmo nome. Para tal pesquisa, além das imagens em exposição,
utilizaram-se também os documentos originais de encomenda e despesas constantes no Centro
de Memória Jorge Calmon, valioso acervo documental da instituição. O eixo narrativo percorre
a história da Santa Casa de Misericórdia da Bahia desde a sua fundação e passa pela construção
do templo da Igreja e suas variadas intervenções. Continua através dos esforços dos provedores
em construir um legado artístico e se estende até a aquisição e uso dos azulejos e das telas que
remetem a Procissão do Fogaréu. Procura ainda, compreender em cada tempo, de que maneira
estes processos se relacionavam com a sociedade local.

Palavras-chave: José Joaquim da Rocha; Procissão do Fogaréu; Santa Casa de Misericórdia.

Introdução

Não há dúvidas que a Santa Casa da Misericórdia é um dos monumentos mais antigos
e graciosos - em termos arquitetônicos - da Bahia. A assistência social prestada pelas
irmandades no passado tem uma importância tal que muitas vezes não lhe é atribuída, já que
em muitos casos era o único recurso do seu tempo. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia
iniciou sua história praticamente com a história da cidade de Salvador e, assim, se entrelaça a
ela até os dias de hoje. Sua atuação como entidade pia nos conta muito sobre a sociedade
soteropolitana e até mesmo sobre a sociedade baiana como um todo. Envolvida em diversos
contextos, observamos que no rol de provedores e irmãos encontramos nomes importantes,

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tais como: Mém de Sá, o primeiro provedor (1560-1571) que acumulava ainda o cargo de
Governador Geral (1557- 1572), depois dele, 15 outros governadores gerais ocuparam o cargo
entre os anos de 1572 e 1876. De fato, ocupar o cargo de provedor simbolizava um grande
prestígio numa sociedade cujas bases se consolidavam no status dos seus indivíduos. Eram
estas pessoas que de certa maneira movimentavam também a vida artística, responsáveis pelas
encomendas de objetos de arte e decorações que viriam figurar, então, a produção artística
baiana.

O início da Santa Casa da Misericórdia e uma Santa Casa na Bahia

A palavra misericórdia tem raízes latinas, misere e cordis, que significa doar seu
coração a alguém. Em latu sensu, doar a quem necessita, dar amor aos carentes ou ainda termos
compaixão ou, piedade (KHOURY, 2004, p. 9). O contexto histórico que envolve o nascimento
das Santas Casas apresenta o povo português em sérias dificuldades, atormentados desde o
século XI pela tríade fome, peste e guerra. A expansão marítima e a atividade portuária e
comercial faziam de Lisboa um centro de grande fluxo de pessoas. Além do mais, devido aos
constantes naufrágios e batalhas oriundas das grandes navegações, multiplicava-se o número
de viúvas e órfãos, sem contar a situação preocupante dos encarcerados nas prisões do Reino.

Foi diante desta realidade turbulenta que D. Leonor, rainha viúva de D. João II, instituiu
a Irmandade de Invocação a Nossa Senhora da Misericórdia no verão de 1498, no dia 15 de
agosto, dia de assunção da Virgem. A nova irmandade foi sediada na Capela de Nossa Senhora
da Piedade ou da Terra Solta, Sé de Lisboa. A partir de então, as misericórdias se proliferaram
por todos os domínios portugueses e carregavam sempre uma forte dicotomia: os que podem
dar e os que pedem.

Pouco tempo depois, ainda no mesmo ano, surgia o Compromisso da Misericórdia, um


documento fundacional de normatização da confraria por todo Reino e Império. O texto
veiculava a importância das obras de misericórdia e a prática religiosa dos leigos. As obras de
Misericórdia são citadas no Evangelho de São Mateus, capítulo 25, dos versículos 35 a 40 e
dividem-se em dois quesitos, a saber:

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a) Espirituais: ensinar os simples; dar bom conselho a quem pede; castigar com caridade
os que erram; consolar os tristes e desconsolados; perdoar as injúrias recebidas; suportar com
paciência as deficiências dos próximos; rogar a Deus pelos vivos e mortos,

b) Corporais: remir cativos e presos; visitar e curar os enfermos; cobrir os nus; dar de
comer aos famintos e pobres, dar de beber aos que tem sede; dar pousada aos peregrinos e
pobres, sepultar os finados.

A fundação da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, apesar de causar sempre


controvérsia entre os historiadores, se deu no mesmo ano de fundação da cidade de Salvador,
1549. Isto porque, segundo Varón, o testamento do marinheiro Estevão Fernandes de Távora,
falecido em julho de 1549, deixa um pequeno legado a ser entregue ao tesoureiro da Santa Casa
em duas parcelas, a partir de dezembro do mesmo ano. Quando Tomé de Souza vem instalar a
capital do Brasil em Salvador, a situação era favorável a se pensar na fundação de um hospital
(VARÓN, 2019, p. 17). Segundo Ott, mais de mil homens dormiam em casebres cobertos com
folhas de palmeiras e ainda não estavam completamente adaptados ao clima tropical. Havia
também cerca de 400 degredados, vestidos em farrapos, mal alimentados e mal tratados (OTT,
1960, p. 18).

Além de legados pios, desde a sua fundação, a Santa Casa pode contar ainda com apoio
oficial do governo. É provável que estes recursos tenham contribuído para que, por volta de
1500, tenha sido construída a primeira Igreja da Santa Casa de Misericórdia que, na descrição
de Gabriel de Souza, em 1584, consta que: “Não era grande, mas muito bem acabada e
ornamentada” (Ibid., p. 18). A obra da fachada terminou em 1728, quando se concluiu a fase
superior da torre quando a Bahia passava por um período de intensa atividade arquitetônica e,
com as transformações empreendidas, a igreja da Santa Casa certamente ocupou um lugar de
grande destaque aos olhos dos fiéis. Logo após levantar o teto da nave, já com os dois coros e
a fachada prontos, foram encomendados azulejos para o revestimento das paredes da nave. O
assunto aparece em carta escrita ao procurador da Santa Casa em Lisboa. Foram encomendados
na rua da Almada, próximo a Santa Catarina do Monte Sinai, ao azulejador Antonio de Abreu.
Não foi ele o pintor dos azulejos, mas um empreiteiro que aceitava as encomendas. Não se tem
certeza acerca da chegada e da colocação das peças, ainda que tenhamos realizado pesquisa na

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documentação do Centro de Memória de Jorge Calmon, verificando no livro de despesas e as


Atas do período, não se identificou exatamente a data, no entanto, tal fato merece ainda uma
pesquisa mais aprofundada em outra ocasião e pesquisa, talvez, em outros livros de registros
disponíveis no arquivo. O tema escolhido para os azulejos em lugar tão nobre foi a procissão
da Semana Santa, ou procissão do Fogaréu, promovida pela Santa Casa de Lisboa.

Por volta de 1756, se disseminaram ideias revolucionárias e os tempos austeros foram


ficando para trás. Com mais recursos tornaram-se viáveis novos investimentos, tais como em
decoração e prataria, não sendo incomum alguns excessos. Em 1763, a prataria da igreja foi
enriquecida com uma cruz para a bandeira da Santa Casa, cuja presença era importantíssima
nas procissões promovidas pela Irmandade.

Em 1786, José Joaquim de Souza, após prestar serviços em outras oportunidades,


retorna mais uma vez a Santa Casa e, nesta ocasião, encomendam-se a ele oito painéis para que
saíssem como estandartes na procissão da Semana Santa ou procissão dos Fogaréus. Segundo
Ott (1960), as telas foram executadas por seus discípulos e não pelo mestre. Os painéis podem
ser vistos atualmente no museu da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, numa belíssima
exposição.

A Procissão do Fogaréu

A procissão do Fogaréu ou procissão do Ecce Homo ou ainda procissão da quinta-feira


de Endoenças surge como um grande momento de celebração cristã e de intensa devoção, mas
também de tornar visível aos olhos da sociedade a posição honorável dos irmãos como
sedimentação dos espaços sociais.

A procissão aparece no Compromisso da Misericórdia de 1627, com aprovação régia


de 1630 e previa sua preparação de maneira criteriosa. Neste compromisso, a Irmandade recebe
autorização para realizar a procissão na quinta-feira que antecede a Semana Santa, após as 18
horas. Antecedia a procissão, cinco semanas de pregações da Quaresma, assunto de grande
relevância no contexto da Irmandade. A participação dos irmãos na procissão era obrigatória e
o não cumprimento poderia resultar em sanção disciplinar (CASTRO, 2000, p. 163).

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Sobre como deveria ser a procissão, podemos observar no capítulo XXIV do


Compromisso a seguinte orientação:
Diante da procissão irão os fogaréus e logo as lanternas no fim das quais
irá uma bandeira das da Casa que levará um irmão nobre e atrás dela seguirá
a mais gente que levar cera e depois disto a bandeira da Irmandade levada
por um irmão nobre a qual seguirão todos os irmãos por uma parte e outra
com tochas nas mãos muito por ordem. Entre eles irá a bandeira com a
imagem do Ecce Homo que levará um irmão oficial a qual acompanharão
os padres; cada uma destas bandeiras levará duas tochas, uma de cada lado,
e as levarão dois irmãos, um nobre e um oficial. No fim delas, a imagem do
Ecce Homo de vulto que vai no andor levada por devotos. (CASTRO, 2000,
p. 170)

A Procissão do Fogaréu já acontecia desde pelo menos 1618 e continuou a ser realizada
por mais dois séculos e meio (CAMPOS, p. 298). Era um verdadeiro espetáculo que atraía
grande participação popular. A concentração de pessoas começava às 16 horas da quinta-feira
Santa, na frente da Igreja da Misericórdia, aguardando o pôr do sol para se dar o início. Ao
anoitecer, por volta das 19 horas, saía a procissão com a chegada de um personagem muito
peculiar: o Gato da Misericórdia.
[...] entre os entabulados painéis a escaldada procissão dos fogaréus, onde
a turbulenta chusma de satânicos moleques amotinam de assovios e
apedrejam de apupadas o formidável Gato da Misericórdia, ouvindo-se o
afogado eco das trombetas da Paixão, unidos as compassadas batidelas da
matraca velha! Eis-me na sexta-feira maior vendo o funeral sepulcro onde
os mantos e cortinas sombreadas escurecem o brilho das telas que ornam o
trono do omnipotente. O cântico saudoso acompanha o ato do enterro do
Deus homem, cujo corpo sagrado vai envolto no dourado esquife onde
reacendem o incenso, a mirra e os bálsamos preciosos (Do jornal A
Verdadeira Marmota, de 16/04/1851)

O Gato da Misericórdia é descrito como um personagem sinistro, cujo rosto ninguém


via. Vestia uma espécie de camisolão roxo e um capuz. Segundo se conta, se tratava de um
negro escravo bem forte e corpulento, já que seu papel na representação era apanhar. Saindo a
procissão, o povo que acompanhava batia e beliscava o personagem durante todo o trajeto do
cortejo. Muitas vezes protegido pela força policial, o Gato cumpria seu papel instigando a
multidão com assobios e um rouco miau-miau. A procissão seguia atrás do Gato da
Misericórdia, iam dois irmãos da Santa Casa portando varas pretas e vestindo um balandrau

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(espécie de capa preta de mangas largas com capuz repuxado para a cabeça). Aqueles que
faziam parte da mesa administrativa usavam uma cruz de tecido azul costurada no lado
esquerdo do peito. Atrás, seguia um irmão carregando a bandeira da Misericórdia. Dois outros
irmãos seguiam ao lado deste com tocheiros acesos e, na sequência do cortejo, outros irmãos
da Santa Casa levavam às sete insígnias da Paixão, e os painéis pintados a óleo por José
Joaquim de Souza. À frente de cada painel, andavam uns encapuzados portando fogaréus e
outros, varas pretas. Os condutores dos fogaréus eram escravos da Santa Casa que na rotina de
trabalho diário cuidavam de acender os candeeiros da iluminação pública e, que neste dia, eram
dispensados do serviço de rotina. O provedor da casa e o escrivão seguiam o grupo dos painéis
e fogaréus. Atrás deles, vinham outro grupo de irmãos e a orquestra com os músicos
acompanhando os cânticos, como Cadena (2019) nos relata. Ainda faziam parte do cortejo
homens vestidos de soldados romanos portando lança e sabre figurando a busca por Jesus para
capturá-lo. Quando passava, o povo gritava e vaiava: judeus, judeus!

Com o passar dos anos, mesmo com a proteção policial, as agressões ao Gato da
Misericórdia aumentaram consideravelmente até que o povo resolveu não só bater e beliscar,
começando então a apedrejá-lo. Numa ocasião, as pedras atingiram não só o personagem, mas
outras pessoas que acompanhavam o cortejo, inclusive autoridades. Após este acontecimento,
em acordo com o arcebispado, a Santa Casa decidiu deixar de realizar a Procissão do Fogaréu,
substituindo-a pelo ato do lava pés, em 1873.

As telas de Joaquim José da Rocha

José Joaquim da Rocha era pintor e dourador, nasceu em 1737, vindo a falecer em 1807
na cidade de Salvador, Bahia. Estudou em Lisboa, Portugal, onde aprendeu o ofício de pintor
e se aprofundou na técnica de pintura em perspectiva. Retornou a Salvador em 1764, residindo
em um sobrado pertencente a Santa Casa. Nesta época, estudou pintura ilusionista com o pintor
português Antônio Simões Ribeiro. José Joaquim foi fundador da Escola Baiana de Pintura,
deixando diversos discípulos como José Teófilo de Jesus e Antônio Franco Velasco.

Em 1786, José Joaquim da Rocha pintou diversos painéis em óleo sobre tela, retratando
os passos da Paixão de Cristo. Cada painel possui um correspondente simbólico, representado
por um anjo e suas insígnias e foram inspirados nos desenhos do gravador francês Edu de Bois.

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O conjunto de painéis custou 64$000 (sessenta e quatro mil réis) conforme consta no orçamento
feito pelo pintor, juntamente com o douramento de castiçais que, juntas, somavam 73$720
(setenta e três mil e setecentos e vinte réis, sem data. Consta ainda na Portaria de 23 de Abril
de 1786 uma ordem ao tesoureiro da Santa Casa para que se fizesse o pagamento, cujo recibo
feito ao pintor data de 26 de abril de 1786 e o registro no Livro de Despesa da Santa Casa em
26 de abril de 1786.

Dezesseis telas foram encomendadas a José Joaquim da Rocha. Destas, apenas quatorze
estão em exibição no Museu da Misericórdia. O museu nos informou que até o presente
momento, as pesquisas não apontaram qualquer referência documental sobre as telas que
representariam a crucificação de Cristo e que seriam, o sétimo passo. Na verdade, não se sabe
se estas telas chegaram a ser sequer pintadas por José Joaquim ou ainda se poderiam ter se
perdido ao longo do tempo.

Os painéis que retratam as cenas da paixão, morte e ressurreição de Cristo são bifases,
isto é, foram concebidos para serem exibidos na procissão em frente e verso e é possível
perceber características comuns quanto ao estilo da pintura barroca, onde as cenas apresentam
a dualidade do claro e escuro, utilizando-se ainda deste recurso para colocar em evidência a luz
como correspondente da ação ou intervenção divina . Em várias telas, Jesus apresenta rosto ou
corpo em coloração diferente dos demais, aparecendo também com mandorla na maioria das
representações. Há também forte indicação de movimento nos personagens, assim como
dramaticidade em cada expressão, inclusive dos anjos.

O vulto da paixão é um dos objetos mais importantes da procissão, cada painel carrega
o simbolismo cristão que deve ser capaz de contar os passos de Cristo em seus últimos
momentos. O poder de comunicação das telas tem o objetivo de captar a atenção do fiel de
modo a transladá-lo para aquele tempo e espaço, levando-o a experimentar através das imagens,
o contexto de constrição e sofrimento em que os fatos ocorreram. Sem dúvida, a composição
das telas de Joaquim José da Rocha atenderam a este quesito, fato pelo qual se justifica sua
conservação até os dias atuais, tendo para a memória da Santa Casa de Misericórdia um lugar
de merecido destaque.

O painel de Azulejos

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A palavra azulejo tem origem árabe, al-zuleij, que significa pedra pintada. A tradição
portuguesa de azulejos começou no ano de 1498 quando D. Manuel I, rei de Portugal, viajou à
Espanha e se encantou com os interiores mouriscos e a multiplicação das cores nos
revestimentos das paredes. Os azulejos, mais tarde, se tornaram uma base de referência de arte
portuguesa, representando não só um elemento decorativo, mas uma marca de sua cultura e
expressão artística reconhecida e identificada em todo o mundo.

O painel que representa a Procissão do Fogaréu é o primeiro situado ao lado esquerdo


da nave, o que representa a grande importância que lhe é atribuída, visto a proximidade com o
altar e o púlpito. É importante ressaltar que as cerimônias de acontecimentos extraordinários,
em especial as celebrações barrocas dos séculos XVII e XVIII assumiram um caráter dramático
e de excesso ornamental. Tanto em Lisboa quanto nas colônias, as encenações se faziam com
toda pompa e rigor (RIBEIRO, 2015).

Os azulejos que representam a procissão do fogaréu foram pintados em Lisboa, tem


formato retangular, emoldurado com o mesmo material - azulejos- com motivos geométricos,
folha de acanto e figuras mitológicas. Abaixo dele, azulejos com motivos florais cobrem a
parede até o piso.

A imagem retratada e a recomendação do Compromisso apresentam divergências em


como seria a execução da procissão. Tanto o painel de azulejos, quanto o Compromisso tem
referência lisboeta e não brasileira ou baiana, mesmo que a sociedade soteropolitana buscasse
sua representação em uma legitimidade europeia. Estas diferenças podem sugerir que, ainda
que apresentadas grandes semelhanças, a procissão, tal qual era realizada a época da
encomenda e colocação do painel de azulejos, não seria totalmente compatível nem com a
procissão que de fato se realizava e nem com a que era recomendada pelo Compromisso,
compondo uma expressão portuguesa, mas com traços baianos.

Conclusão

A Santa Casa da Misericórdia da Bahia nos apresenta um lugar histórico, tendo como
enredo a própria história baiana. Esta sociedade em formação é o lugar em que vemos como se
vão construindo as tradições e costumes. Através das manifestações desta sociedade, podemos
observar como suas convicções são externadas e sedimentadas através das décadas. A

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

importância do ritual e sua sacralidade é uma construção social de cunho histórico, de geração
em geração.

Neste caminho, à luz da grande importância da Procissão do Fogaréu no contexto da


Santa Casa da Misericórdia da Bahia, pudemos entender como a dimensão religiosa perpassa
a história de uma sociedade, repetindo ou sedimentando costumes e valores, influenciando,
modificando e interagindo com suas dinâmicas mais internas. Um movimento tão sólido e tão
profundo, capaz de persistir até os dias atuais, ininterruptamente. Embora não haja mais a
procissão, as marcas dos anos de tradição permanecem vivos e vibrantes, comunicando sua
história, de posse da sua mensagem, disponível aos olhos de todo visitante que cruze a entrada
da igreja. Estão lá, no Museu da Misericórdia, em óleo sobre tela, em azulejo, um registro
inegável de beleza e legado, de fé e história.

Referências

CASTRO, Maria de Fátima. Devoções ligadas à Igreja da Misericórdia e Sé primaz de Braga:


Documentação exemplicativa. Via Spiritus 7, 2000.
CENTRO DE MEMÓRIA JORGE CALMON. Arquivo Histórico: Orçamento feito por
Joaquim José da Rocha pela pintura dos oito painéis da Paixão de Cristo e douramento dos
castiçais.
______. Arquivo Histórico: Portaria de 23 de Abril de 1786 ordenando que o tesoureiro da
Santa Casa de Misericórdia da Bahia pague a José Joaquim da Rocha a quantia de setenta e três
mil setecentos e vinte réis pela pintura dos oito painéis da Paixão de Cristo e douramento de
alguns castiçais.
______. Arquivo Histórico: Recibo do pagamento feito a Joaquim José da Rocha em 26 de
abril de 1786 pela pintura dos oito painéis e douramento de castiçais.
______. Arquivo Histórico: Registro feito em Livro de Despesas da Santa Casa da Misericórdia
da Bahia de 26 de abril de 1786 pelo pagamento feito a Joaquim José da Rocha pela pintura
dos painéis e douramento de castiçais.
CAMPOS, João da Silva. Procissões Tradicionais da Bahia. Salvador: Secretaria Municipal de
Educação e Saúde, 1941.
DICIONÁRIO.ETIMOLÓGICO. Disponível.em: <https://www.google.com/search?q=m
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DICIONÁRIO PRIBERAM. Endoenças..Disponível.em: <https://dicionario.priberam.org
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FERREIRA, Monsenhor. A Bandeira da Misericórdia e o retrato do seu instituidor, Frei Miguel


de Conteiras. In: SERRÃO, Vítor. Iconografia da Mater Omnium na arte portuguesa: do culto
do Espírito Santo ao de “Nossa Senhora da Misericórdia” (séculos XVI-XVIII).
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RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/his/v3
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Acesso em: mar. 2019.
WIKIPEDIA. Ecce Homo. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ecce_homo. Acesso
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AÇÕES DOS GOVERNOS DE GETÚLIO VARGAS E DE ÁLVARO


MAIA CONTRA O COMUNISMO NO AMAZONAS (1935-1937)

DAVI MONTEIRO ABREU


Universidade Federal do Amazonas, Mestre.
davimontabreu@outlook.com

Resumo
A historiografia nos mostra que, desde o Império, o termo “comunismo” gera medo na
sociedade brasileira. Esse medo vem acompanhado de representações sobre o comunismo e
essas representações são acompanhadas de práticas e vice-versa. Neste sentido, Roger Chartier
afirma que “as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à
universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses
de grupos que as forjam”. Dessa forma, “as percepções do social não são de forma alguma
discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a
impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados”. É nesse sentido que
analisamos as representações/ações anticomunistas propagadas no estado do Amazonas,
percebendo-as não apenas como representações isoladas, que nada de concreto produzem, mas,
ao contrário, como atividades mentais que geram práticas tanto dos governos, como
mobilizações sociais realizadas por grupos de diferentes camadas sociais. Nesta exposição,
teremos por objetivo apresentar as ações realizadas pelos governos Álvaro Maia e Getúlio
Vargas contra o “bolchevismo”.
Palavras-chave: Anticomunismo; Getúlio Vargas; Álvaro Maia.

Introdução
Em 1917, o mundo conheceu uma nova alternativa política, econômica e social. Nesse
ano adentrou o rol da história o comunismo – ou marxismo-leninismo – que naquele momento
deixava de ser apenas um espectro. Segundo Rodrigo Patto Sá Motta (2002, p. 20), “o
comunismo para uns era a concretização de um sonho, mas para outros era um pesadelo
tomando forma real”.

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Dessa forma, os governos e os grupos sociais que viam no comunismo um pesadelo


começaram a se organizar para combatê-lo, de modo que podemos dizer que “o anticomunismo
nasceu espontaneamente, gerado pelo medo e pela insegurança” (MOTTA, 2002, p. 20). Esse
medo e insegurança possibilitaram a organização de grandes grupos que, em certos momentos,
quando o comunismo estava ganhando pujança, tornavam-se verdadeiras frentes amplas contra
ele.
O medo ao comunismo foi potencializado a partir dos levantes de novembro de 1935.5
Esse evento deu base concreta para todos aqueles que viam no comunismo um inimigo a ser
combatido e dissipado, argumento e exemplo do que os “comunistas” poderiam fazer se
alcançassem o poder. Segundo Motta (2002, p. 21), a partir da “Intentona Comunista” se criou
no Brasil um verdadeiro “imaginário anticomunista”. Dessa forma, já que existia um grupo
organizado que visava realizar a “revolução mundial e, consequentemente, dominar o Brasil”,
se levantaram também indivíduos, grupos e governos que tinham como objetivo combater os
comunistas e frustrar seus sonhos.

Ações dos governos federal e estadual contra o comunismo

A luta contra o “perigo vermelho”, como já dissemos, iniciou antes do período


estudado, a historiografia nos mostra que desde o Império o nome “comunismo” gera medo na
sociedade brasileira. Esse medo vem acompanhado de representações sobre o comunismo e
essas representações são acompanhadas de práticas. O historiador Roger Chartier (1988, p. 17)
afirma em A História Cultural: entre prática e representações que:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à


universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses de grupos que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário
relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros:
produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a
impor uma autoridade a custas de outros, por elas menosprezados, a legitimar

5 Ver: ABREU, Davi Monteiro. Uma "pretensa intentona": ANL, AIB e a cultura política anticomunista no Estado
do Amazonas (1935-1937). 2019. 187 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Amazonas,
Manaus, 2019.

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um projeto reformador ou a justificativa, para os próprios indivíduos, as suas


escolhas e condutas.

É nesse sentido que analisamos as representações/ações anticomunistas propagadas no


estado Amazonas, percebendo-as não apenas representações isoladas, que nada de concreto
produzem, mas ao contrário, como atividades mentais que geram práticas tanto dos governos,
como mobilizações sociais realizadas por grupos de diferentes camadas sociais.
Em novembro de 1935, em resposta aos levantes ocorridos naquele mês, o governo
federal decretou em todo território nacional o Estado de Sítio6. Este foi apenas a primeira
medida do governo federal visando a interrupção das atividades subversivas. O Estado de Sítio
foi posto em vigor pelo decreto n. 657, de 26 de novembro de 1935. Autorizado pelo decreto
legislativo nº 5 do mesmo dia, Getúlio Vargas resolveu:

Art. 1º - E’ decretação em estado de sitio todo o território brasileiro por trinta


dias.
Art. 2º - Durante o estado de sitio, as medidas de excepção, constantes dos
artigos 175 n. 2 da Constituição, serão praticadas: nos Estados pelos
respectivos governadores, e no território do Acre pelo seu Interventor e no
Districto Federal pelo Chefe de Polica.
Os mesmo actos serão praticados pelas autoridades militares, onde quer que
se encontrem na repressão do movimento extremista, que irrompeu nos
Estados de Pernambuco e do Rio Grande do Norte[...]
Art. 3º Poderão ser detidas ou conservadas em custodia todas as pessoas que
hajam coparticipado na insurreição extremista ou a respeito das quaes tenham
as autoridades fundados motivos para crer que venham a participar nella, em
qualquer ponto do Territorio Nacional.
[...] GETULIO VARGAS/ Vicente Rao (Tribuna Popular, 2-12-1935).

O Estado de Sítio tinha prazo de 30 dias, ou seja, duraria até 26 de dezembro de 1935.
No entanto, este prazo foi prorrogado por mais 90 dias, através do decreto nº 532, de 24 de

6 Com a expressão “Estado de sítio” se quer geralmente indicar um regime jurídico excepcional a que uma
comunidade territorial é temporariamente sujeita, em razão de uma situação de perigo para a ordem pública, criado
por determinação da autoridade estatal ao atribuir poderes extraordinários às autoridades públicas e ao estabelecer
as adequadas restrições à liberdade dos cidadãos. As circunstâncias perturbadoras que costumam dar lugar a tal
situação são, em geral, de ordem política, mas podem também ser acontecimentos naturais como terremotos,
epidemias, etc. Neste caso, o perigo para a ordem pública não está nas circunstâncias perturbadoras que
ocasionaram o Estado de sítio, mas em seus efeitos [...] De acordo com a época e as exigências às vezes presumidas
do caso concreto, o Estado de sítio apresenta formas mais ou menos amplas, podendo ir de simples medidas de
polícia (proibição de reuniões, conquanto normalmente lícitas) à total suspensão das garantias constitucionais.

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dezembro que, somado à emenda à Constituição nº 1, possibilitava ao Presidente da República


declarar o Estado de Guerra. Assim, acabando o prazo do Estado de Sítio, no dia 21 de março
de 1936, por meio do Decreto nº 702, Getúlio Vargas decreta o Estado de Guerra, este se
arrastou até o dia 18 de julho de 1937.
Segundo o brasilianista John W. F. Dulles (1985, p. 42), “o novo decreto [...] suspendia
diversas garantias individuais que o estado havia respeitado, tais como as imunidades
parlamentares”. Neste sentido, políticos simpatizantes e membros da Aliança Nacional
Libertadora (ANL) que tinham mandato político foram presos. Entre eles podemos citar Pedro
Ernesto, prefeito do distrito federal, Abel Chermont, senador da República, Abguar Bastos,
Otávio da Silveira, João Mangabeira e Domingos Velasco, deputados federais (DULLES,
1985, p. 42). Observa-se, nesse bojo, que o Estado de Sítio e, posteriormente, o Estado de
Guerra, serviram para que Vargas enfraquecesse a oposição na Câmara Federal e no Senado.
Também no início de 1936 – 24 de janeiro de 1936 –, o ministro Vicente Rao
comunicou a criação da Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo. Essa comissão tinha
por objetivo a coordenação do movimento anticomunista e era presidida pelo deputado gaúcho
Adalberto Correia. A CNRC também tinha como função investigar os envolvidos no
movimento de subversão e, auxiliada pelas emendas à constituição nº 2 e 3 que foram
aprovadas em dezembro de 1935, permitiam a exoneração de militares das Forças Armadas,
tidos como comunistas, e a exoneração de funcionários públicos civis (MOTTA, 2002, p. 203-
204).
Após os levantes e a decretação do Estado de Sítio, a primeira medida para combater o
comunismo foi aprovada no Amazonas. Aproveitando-se da Constituição Federal de 1934, a
deputada católica Maria Miranda Leão7, propôs a Assembleia Legislativa do Amazonas a
implementação da disciplina Ensino Religioso, em caráter facultativo, nas escolas do estado.
Argumentando para a aprovação de sua proposta, a deputada afirmou que apenas o Ensino
Religioso poderia fazer frente ao avanço do comunismo no Estado, como também, protegeria
a juventude da infecção comunista.

7 Era uma importante liderança política católica. Na eleição para deputados estaduais de 1934, foi a única mulher
eleita.

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O ensino de religião é a muralha fortificada, a única força verdadeiramente


poderosa e capaz de enfrentar a dissolução dos costumes. Só a religião
estudada, esclarecida, poderá opor barreira a essa hidra infernal, essa onda
avassaladora de doutrinas deletérias e subversivas, que tenta invadir a nossa
Pátria. Só a Fé, a verdadeira Fé, pode formar o verdadeiro patriotismo, o
caráter, a consciência cívica de nosso povo. O ensino da verdadeira e sã moral
saberá formar um povo capaz de vencer todas as ambições subalternas, todos
os cálculos inconfessáveis e cheios do verdadeiro amor pela Pátria (Annaes
da Assembléia Legislativa do Amazonas, 9-12-1935).

Carla Luciana Silva (2001, p. 103) nos lembra que “a Igreja conseguiu inserir-se na
Assembleia Nacional Constituinte, especialmente pela defesa do ensino religioso como forma
de manter a ordem social”. Dessa forma, percebemos a importância que os católicos davam à
questão da educação, que para eles era sinônimo de manutenção da ordem. Neste sentido, no
dia 31 de dezembro de 1935, o periódico O Jornal noticiou em sua coluna Actos do Governo
que o governador autorizou a isenção de todas as taxas escolares aos pais reconhecidamente
pobres que tenham mais de seis filhos, além de regulamentar o Ensino Religioso nas escolas
públicas do Estado (O Jornal, 31-12-1935).
A segunda medida para combater o “credo vermelho” no Amazonas foi fortalecer o
policiamento, equipando-o ainda mais contra a criminalidade, em geral, como também, contra
o comunismo. Além disso, observamos, por meio das fontes, a criação de um órgão
especializado na garantia a ordem social. Segundo Pedro Ernesto Fagundes (2011, p. 296),

A segurança da ordem social e o receio em relação ao perigo representado


pelos considerados “subversivos” foram fundamentais para a estruturação e
burocratização da polícia política brasileira. A necessidade de construir um
discurso unificado e articulado em variados locais do país foi um dos motivos
que impulsionou a criação de órgãos de repressão em todas as regiões. Essa
expansão de órgãos encarregados de investigar crimes contra o Estado
motivou a criação ou reorganização de departamentos estaduais de polícia
política em inúmeros Estados.

Neste bojo, foi criado no Amazonas a Delegacia de Segurança Política e Social:

Delegacia de Segurança Política e Social. – A questão social é um dos mais


importantes problemas contemporâneos a resolver, dada a anarquia porque
passa o mundo. [...] Após a deflagração na capital da República e nos Estados
de Pernambuco e do Rio Grande do Norte do movimento comunista de
Novembro de 1935 que, desgraçadamente, abalou o Paiz de pavores e receios,

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houve, para defesa da Nação Brasileira, uma atitude geral e uniforme dos
governos e autoridades constituídas. Crearam-se, onde não existiam, serviços
especialisados, prevenção e repressão aos ideólogos extremistas (Mensagem
de Governo à Assembleia Legislativa do Amazonas, 03-05-1937, p. 178-
179).

Observamos que, em meados de 1936, um pouco antes da instalação da Delegacia de


Segurança Política e Social, a polícia do estado tomou sua primeira providência no combate ao
comunismo. O chefe de polícia, Manuel Xavier Sobrinho, criou um departamento para
investigar pessoas, grupos, sindicatos e associações suspeitas de adesão ao “credo vermelho”.
No entanto, a passagem de Manuel Xavier Sobrinho pela chefatura de polícia foi breve.
Dessa forma, ainda em 1936, Manuel Xavier Sobrinho foi substituído por Ruy Araújo,
que, ocupando o cargo, solicitou a criação da Delegacia de Segurança Política e Social, a qual
já vinha sendo instalada em outras cidades brasileiras, com a finalidade de reprimir e combater
o comunismo.
Em fevereiro de 1937, observamos que uma das preocupações do chefe de polícia, Ruy
Araújo, era justamente a infiltração comunista na sociedade amazonense.8 O comunismo, uma
das principais preocupações da polícia, era relacionado à turba política, à delinquência e ao
vício nos jogos de azar; destarte, fazia-se necessária a ação ativa da repressão nas ruas de
Manaus e, para que a atividade fosse exitosa, necessitava-se que esta estivesse bem equipada.
Por isso, ainda no ano de 1936, o chefe de polícia equipou seu policiamento.9

8 A administração Ruy Araújo na Policia Civil [...] HYGIENE SOCIAL – A polícia moderna não pode fugir ao
papel de hygienizadora dos núcleos sociaes onde exista. Prevenir, pela prophilaxia e pela desinfecção moral, tal
é, sobretudo, o principal objetivo do organismo de repressão. Dentro desse prisma criou o actual titular da policia
um novo Departamento, a Delegacia de Segurança política e Social. Tal departamento, cuja actuação já se faz
sentida entre nós, visa, sobre a preservação colectiva contra os movimentos subversivos, as infiltrações
communistas, as convulsões políticas, na incansável vigilância em torno dos menores delinquentes (ilegível)
menores abandonados e vadios, a carga de uma secção privativa de menores, agregada ao organismo policial, sob
directo controle de S. Sa. [...] (A Tarde, 19-02-1937).
9 Segurança Publica – O dr. Ruy Araujo está exercendo, no Amazonas, pela segunda vez, o cargo de Chefe de
Policia [...] Nesse propósito, instituiu a Guarda Noctura nesta capital, dando-lhe organismo, idêntica forma de
mantel-a, processos affins de agir, vindo prehencher uma necessidade que se impunha para um repouso sem
intercalações do sobresalto e de incerteza. A população, que esperava por medida dessa natureza, está prestigiando
o commettimento com enthusiasmo. Ao serviço de assistência publica deu um carro para soccorros urgentes, de
cujo interior asseiado, como o requer a sciencia, estampamos um clichê; fundou e regulamentou a Inspectoria do
Trafego, de innegavel actuação no movimento da cidade; adquiriu um carro-cellular de grande velocidade para
serviços correccionaes e diligentes moto-cycletas para rápidas acções; reformou as lanchas “Jarina” e “Veloz” da
Policia do Porto; reorganisou a Guarda-Civil. Atravez dessas obras de caracter material e administrativo, fez

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A Revista Cabocla destacou que esta não teria sido a primeira experiência de Ruy
Araújo à frente da chefatura de polícia e ainda o apresentou como modesto e enérgico, além de
uma pessoa competente no que tange à função ocupada. Assim, a revista dá ênfase à
modernização dos equipamentos policiais, louvando a criação de uma Guarda Noturna e uma
Inspetoria do Tráfego, um carro de socorros urgentes (ambulância), carro-celular (viatura),
motocicletas (com side-car), a reforma das lanchas, além de reorganizar a Guarda-Civil.
Assim, a polícia estaria preparada para qualquer diligência, sendo ela de crimes tidos como
corriqueiros, ou mesmo crimes políticos, que perturbassem de qualquer forma a ordem.
A primeira notícia referente a esta polícia em sua ação contra o comunismo foi
informada pelo Jornal do Commercio, no dia 17 de outubro de 1937.

Informaram-nos com segurança que, nestas últimas quarenta e oito horas, a


polícia civil do estado vem andando numa atividade invulgar.
Inúmeras buscas foram dadas, várias detenções têm sido feitas, muitas
diligências têm saído da repartição da rua Marechal Deodoro para lugares
diversos.
O nosso informante adiantou-nos que alguns documentos comprometedores
foram apreendidos e até mesmo livros de leitura e canções exóticas estão
retidos no gabinete da chefia de polícia, onde tem permanecido o delegado de
ordem política e social, e vários agentes de sua repartição.
Consta-nos a prisão de alguns membros de classe e mais pessoas suspeitas
(Jornal do Commercio, 17-10-1937).

Essa notícia estava no contexto da aprovação de um novo Estado de Guerra, em 1937,


num momento que se iniciou uma nova campanha anticomunista. Segundo Motta (2002, p.
223), “a nova ofensiva repressiva redundou, como não poderia deixar de ser, numa
intensificação do trabalho policial. Os agentes da ordem aumentaram a vigilância sobre os
subversivos e incrementaram a estatística das detenções”. A omissão dos nomes dos detidos e
os materiais apreendidos podem ser explicados pela implementação da censura que
possivelmente já estivesse funcionando.10

passar, dando-lhes unidade, o fio severo da disciplina, que se manifesta, não só no sector militarisado de seus
subordinados de farda, como no trabalho de seus auxiliares internos (A Cabocla, 1936).
10 No Amazonas, a comissão de censura, designada por Álvaro Maia – executor do estado de guerra – foi
composta por: Capitão de Mar e Guerra Alexandre Paranhos da Silva Velloso, Capitão dos portos do Amazonas,
major Raymundo Vilaronga Fontenele, commandante dos vinte sete batalhões de caçadores, major Gonzaga
Tavares Pinheiro, sub-commandante da força policial e Americo Nogueira Ruivo, chefe do gabinete do palácio

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Nesse período, “em fins de setembro (de 1937), alguns altos oficiais do Exército
‘descobriram’ muito convenientemente uma ‘trama do Comintern’, o chamado ‘Plano Cohen’
para o ‘assassinato de membros do governo’, ‘incêndio de edifícios’ e captura de reféns’”
(DULLES, 1979, p. 134). Na verdade, era um plano fajuto para justificar a decretação de um
novo Estado de Guerra e, posteriormente, a implantação de um novo golpe dado por Getúlio
Vargas para impedir a realização da eleição para presidente, marcada para janeiro de 1938, e,
assim, permanecer no poder. Com isso, o sentimento que o país voltava a se pacificar, voltava
à sua “democracia”, foi breve.
Antes disso, mais especificamente no dia 18 de julho de 1937, após longo período de
Estado de Guerra, o país voltava à “normalidade” democrática. Em 3 de junho de 1937, assumiu
o posto de Ministro da Justiça, José Carlos de Macedo Soares. Este, preocupado com o decorrer
da disputa eleitoral, adotou medidas que acreditava pacificarem o ambiente político e ajudaria
no clima harmônico da campanha. Por isso, passou a visitar os prisioneiros, presos devido aos
levantes de novembro de 1935, e, logo após, ordenou a soltura de 308 presos políticos sem
culpa formada que estavam detidos na Capital Federal, assim como transmitiu a mesma ordem
aos estados (DULLES, 1979, p. 110). Esta medida ficou conhecida como “macedada”.
Nesse mesmo período, começou-se a noticiar, em especial, por meios integralistas, que
a Terceira Internacional voltava a articular um golpe contra o governo brasileiro. Foi noticiado
na íntegra, inclusive, no jornal A Tarde, na Coluna Verde (A Tarde, 17-08-1937/ 18-08-1937)
que a Terceira Internacional enviou um telegrama com orientações aos comunistas brasileiros,
entre essas orientações havia uma curiosa: infiltrar-se nas campanhas dos dois candidatos
favoritos ao pleito (Armando de Salles e José Américo). Daí em diante, tornaram-se comuns
as notícias que afirmavam uma nova incursão do comunismo soviético em terras brasileiras, e
entre essas notícias fazia-se uma leitura da própria implantação do comunismo na Rússia.
A polícia se preparou para o momento que parecia ser de enfrentamento direto contra
os comunistas. A sociedade encontrava-se receosa e a sensação era que, de fato, a qualquer
momento uma nova “intentona comunista” poderia acontecer. O Jornal do Commercio
noticiou, neste sentido, uma portaria que demonstra essa convicção:

Rio Negro e secretário da Associação Amazonense de Imprensa, podendo a referida commissão ser auxiliada,
quando julgar conveniente, pela policia civil (Jornal do Commercio, 19-10-1937).

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

ESTADO DE GUERRA
O dr. Ruy Araujo, chefe de polícia, em portaria de hontem á situação
decorrente do estado de guerra, resolveu chamar a attenção dos conductores
de vehiculos, profissionaes ou amadores, para a velocidade dos seus carros,
que deverá ser reduzida nos trechos, onde houver quartéis, estabelecimentos
públicos guardados por força armada, postos policiaes, ou de policiamento,
etc. ficando notificados, tambem, de que devem attender promptamente aos
signaes das autoridades policiaes ou militares, tranqueando o vehiculo a
qualquer busca determinada pelas mesmas (Jornal do Commercio, 11-11-
1937).

A portaria leva a crer que a polícia estava tensionada e qualquer movimento mais
brusco, como o de um veículo em alta velocidade, poderia levá-la a efetuar disparos e/ou entrar
em confronto com possíveis suspeitos que se negassem a revista no veículo.
O combate ao comunismo se deu também por meios educacionais. Segundo Sá Motta
(2002, p. 225), a atuação das autoridades educacionais se concentrou em duas linhas básicas:
por um lado, procederam à revisão dos livros didáticos do curso primário e secundário e, por
outro, a realização de palestras anticomunismo nas escolas.
Observamos, por meio das fontes, que o governo Álvaro Maia – presidente da Junta
Executiva do Estado de Guerra – orientou a criação de uma comissão de censura aos livros
didáticos, jornais, revistas de publicidade que circulassem no Amazonas entre outros materiais.
Os designados para esta função foram Themistocles Pinheiro Gadelha, Moacyr Dantas de
Gouvêa Cavalcanti, Antovilla Mourão Vieira, Leopoldo Carpinteiro Peres, Arthur Cezar
Ferreira Reis, Clovis Barbosa, Eunice Serrano Telles de Souza e Alcina Limaverde de Barros
(Jornal do Commercio, 7-11-1937).11
Em algumas escolas, o combate ao comunismo se deu em forma de preleções e palestras
ministradas por professores e alunos membros dos centros acadêmicos. Na Escola Agronômica
de Manaus, por exemplo:

11 Essa comissão reunida decidiu dividir a censura em subcomissões, que assim ficaram definidas: livros
didáticos: Themistocles Gadelha, Eunice Serrano Telles de Souza e Alcina Limaverde Barros; sociologia,
economia e historia: Arthur Cezar Ferreira Reis e Leopoldo Peres; literatura (teatro, romance, contos, critica, etc.):
Clovis Barbosa e Moacyr Dantas; ciências e revistas: Antovilla Vieira e Themistocles Gadelha. Além disso, foi
aclamado presidente da comissão Themistocles Gadelha.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

O dr. Lucano Antony, director da Escola Agronomica de Manaós, baixou


hontem a seguinte portaria: “A directoria da Escola Agronomica de Manáos,
considerando que é dever precípuo do educador preparar a mentalidade da
mocidade, fazendo despertar os sentimentos de patriotismo, especialmente
nesta hora em que, sob o céo da pátria, paira a ameaça terrivel dos inimigos
da civilisação e em que a consciência dos emprevidentes se deixa arrastar
pelas ideologias vermelhas, resolve que todos os professores da Escola, ao
iniciar as suas aulas, façam prelecçoes curtas e incisivas de combate ao
communismo, assim como determina ao presidente do Centro Academico que
faça convocar, pelo menos quinzenalmente, o referido Centro, para palestras
sobre o mesmo assumpto” (Jornal do Commercio, 30-10-1937).

O objetivo do diretor da escola era aflorar nos estudantes o sentimento de nacionalismo


e patriotismo, pois, no momento, segundo ele, a juventude estava precisando desses
sentimentos para não ser influenciada pelo comunismo. Dessa forma, as palestras e alertas
incisivos dos professores poderiam ser essa barreira contra a contaminação dos acadêmicos
pelo “credo vermelho”.
Vimos por meio do Jornal do Commercio que o centro acadêmico da Escola
Agronômica seguiu a orientação do diretor, realizando dia 7 de novembro, uma assembleia-
geral, em sua sede, contra o que chamaram de “ideologismo vermelho”. O evento contou com
vários oradores e entre eles estava Oseas Martins, membro da organização.
Podemos observar, por meio desse episódio, que a sociedade amazonense estava
inquieta em relação ao momento em que vivia, atitudes como a de Lucano Antony demonstram
que o comunismo, para ele e para a sociedade amazonense, era um inimigo iminente e que
precisava ser combatido em todas em frentes.
Neste bojo, a luta contra o comunismo não deveria prescindir dos meios jornalísticos.
No entanto, segundo Sá Motta (2002, p. 219) “no que se refere ao comportamento da imprensa,
é interessante observar, não houve a mesma unanimidade observada após o levante comunista.
Alguns órgãos importantes demonstraram ceticismo e mesmo desconfianças [...]”.
No Amazonas, a decretação de um novo Estado de Guerra foi vista com receio,
inclusive, por um dos mais ardorosos anticomunistas do estado: Aristophano Antony.

[...] Foi chegado o momento. A grita da imprensa bem intencionada, da


imprensa honesta, encontrou echo na consciencia dos homens a quem cabe
assegurar a tranquilidade do pensamento e a segurança da nação, esta deve
estar em plano superior. Embora constrangidos e sem garantias, saibamos,

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

entretanto, collaborar com as autoridades, para manter inquebrantaveis os


principios da ordem. Este é o dever que todos assiste, nesta hora de
inquietações que o paiz atravessa (A Tarde, 04-10-1937).

No entanto, a vontade de combater o comunismo era maior. Logo em seguida, Antony


retomou sua luta em sua coluna, elogiando – e se contradizendo – o Estado de Guerra, decretado
dia 2 de outubro de 1937.
Foi nesse sentido que reuniu, na sede da Associação Comercial do Amazonas, a
Associação Amazonense de Imprensa, composta por Vicente Reis, Arthur Cézar Ferreira Reis,
Huascar de Figueiredo, Leopoldo Peres, Américo Nogueira Ruivo, Antonio de Vasconcellos,
Oscar Rayol, Genesino Braga, Aristophano Antony e Herculano de Castro e Costa. A
deliberação da reunião foi enviada ao Presidente da República, ao ministro da justiça, à
Comissão Suprema do Estado de Guerra e à Comissão Executora do Estado de Guerra no
Amazonas (Jornal do Commercio, 2-11-1937).12
Dessa forma, a Associação Amazonense de Imprensa prometeu encampar uma luta
vibrante contra o comunismo e em defesa das instituições constitucionais. Para isso,
começaram a publicar diariamente manchetes, notas, colunas etc. Nesse sentido, é interessante
mencionar que, entre os jornais pesquisados, aquele que cumpriu com afinco essa deliberação
foi o jornal A Tarde, o qual possuía três colunas que versavam contra o comunismo – a coluna
de Leopoldo Peres, colunas integralistas (Coluna Verde e Coluna do Sigma), na Coluna
Quadrilátero da 5º hora, escrita por Ramayana de Chevalier; e, ocasionalmente, o proprietário
do jornal, Aristhopano Antony, também abordava o comunismo. O periódico O Jornal também
publicava uma coluna que abordava o comunismo, a Coluna Integralista. No Jornal do
Commercio13, por sua vez, quase não percebemos este combate.
Em novembro de 1937, o governo federal orientou o governador a realizar uma ação
contra o comunismo. A instrução chegou ao Amazonas via telégrafo. Nela o Ministro da Justiça

12 Dizia o documento: “Associação Amazonense de Imprensa ponderando condições momento solidaria a


orientação conservadora necessária defeza instituições constitucionaes amparo ordem segurança hoje effectuada
declarar sua irrestricta solidariedade poderes constituidos promovendo sem desfallecimentos inteiramente unida
cohesa campanha diária contra communismo. Trazendo facto conhecimento vossencia entidade reúne
collectividade imprensa amazonense declara seu absoluto apoio presidente republica, comissão suprema estado
de guerra Associação Brasileira de Imprensa”. Attenciosas saudações (a) Vicente Reis, presidente (Jornal do
Commercio, 2-11-1937).
13 Vale mencionar que não encontramos em nossa pesquisa nenhuma edição do referido jornal do ano de 1936.

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solicitava que o governador do Amazonas utilizasse o dia 19 de novembro, Dia da Bandeira,


para fazer frente ao comunismo. A solicitação é interessante, pois demonstra a enérgica
mobilização do governo federal, e se torna evidente que essa comemoração demonstraria a
verdadeira força do governo, assim, como poderia medir o nível de apoio popular a este. O
pedido para a realização do evento veio acompanhado de recomendações, que foram, inclusive,
publicadas no Diário Oficial do Estado.14
As recomendações deixam claro que o governo desejava realizar um enorme ato
nacional contra o comunismo, e, além disso, mobilizar para o enfrentamento direto, assim
apresentado como um inimigo que todos, do militar ao civil, deveriam combater. O evento
realizado no Dia da Bandeira – 19 de novembro – buscava reavivar e/ou fortalecer o espírito
nacionalista do brasileiro e por tabela o sentimento anticomunista. O evento foi realizado
conforme o ofício e, além da capital, outros municípios também realizaram a cerimônia, como
por exemplo, Itacoatiara (Jornal do Commercio, 19-11-1937).

Referências
ABREU, Davi Monteiro. Uma “pretensa intentona”: ANL, AIB e a cultura política
anticomunista no Estado do Amazonas (1935-1937). 2019. 187 f. Dissertação (Mestrado em
História) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2019.
BALDI, Carlo. Estado de Sítio. In: BOBBIO, Norberto (Org.) Dicionário de política. Brasília:
UnB, 1986.
CHARTIER. Roger Chartier. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa:
Difel, 1988.
DULLES, John. O Comunismo no Brasil (1935-1945): Repressão em meio ao cataclismo
mundial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
DULLES, John W. Foster. Anarquistas e comunistas no Brasil (1900-1935). Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1979.
FAGUNDES, Pedro Ernesto. A estrutura organizacional da Delegacia de Ordem Política e
Social do Estado do Espírito Santo. Diálogos, v. 15, n. 2, p. 293-309, maio-ago/2011.

14 “Expedir ordens para todo o Brasil afim de que em todas as escolas reúnam as creanças pela manhã, as nove
horas por exemplo, para a ceremonia do culto á bandeira da Patria. - Compor um modelo de oração á bandeira, de
sentido expressamente anti-communista, para ser lido em todo o Brasil, á mesma hora, pelos professores.-
Organizar um programma de procissão civica para todas as capitais de estados, conduzindo-se nella a bandeira do
altar da pátria que será armado numa praça publica, identico ao que se fez aqui anno passado” (Jornal do
Commercio, 6-11-1937).

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

LEVINE, Robert M. O regime de Vargas 1934-1938: os anos críticos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1980.
MOTTA, Rodrigo Patto de Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: O Anticomunismo no
Brasil (1917-1964). São Paulo: Perpectiva, FAPESP, 2002.
SILVA, Carla Luciana. Onda Vermelha: imaginários anticomunistas brasileiros (1931- 1934),
2001.

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PARAR O BONDE, PARAR A CIDADE: ORGANIZAÇÃO,


NEGOCIAÇÃO E AÇÃO DOS TRABALHADORES DO TRÁFEGO DE
BONDES NAS GREVES EM MANAUS (1899-1930)

DHYENE VIEIRA DOS SANTOS


Universidade Federal do Amazonas, Doutoranda, FAPEAM.
dhyene.vieira@hotmail.com

Resumo

Este trabalho tem o intento de apresentar uma breve discussão acerca da organização, ação e
negociação coletiva dos motoristas e condutores de bondes nas greves empreendidas por eles
em Manaus nos anos de 1899 a 1930, buscando os significados que elas poderiam ter para os
múltiplos atores envolvidos. No que se refere a organização dos trabalhadores nas atividades
paredistas na cidade, parte significativa das mobilizações contou com a participação da
Sociedade Beneficente e Protetora dos Motoristas e Condutores do Amazonas, da União
Operária Amazonense e da própria formação do Comitê de Operários. Além das greves que
tiveram em seu comando as organizações representativas, analisamos também as paredes que
surgiram de forma espontânea. A negociação coletiva fez parte das mobilizações dos motoristas
e condutores de bondes, ela desempenhou um papel fundamental no sentido de estabelecer as
normas que deveriam reger as relações de trabalho entre os funcionários e o patronato e passou
a existir no momento que houve ação organizada dos trabalhadores por meio do fortalecimento
das sociedades e do exercício do direito de greve.
Palavras-Chave: Trabalhadores; Organização; Greves.

Introdução

No ano de 1899, ao tempo que se apresentam os bondes elétricos para a cidade de


Manaus, nasceram duas novas categorias de trabalhadores urbanos – os motoristas e
condutores. Esses trabalhadores foram por muito tempo ignorados, apesar de desempenharem
um importante papel no universo citadino manauara, já que as atividades que desenvolviam
possuíam uma centralidade inconteste. Do momento da inserção do novo transporte urbano e

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da formação dessas categorias, os motoristas e condutores de bondes realizaram oito (08)


greves na cidade de Manaus até os anos de 1930.
Branno Hocherman Costa e Francisco Josué Medeiros de Farias pontuam que para
melhor dimensionarmos as análises sobre as greves é necessário observar os três tipos de perfis
gerais nos quais as greves podem se enquadrar. Primeiro, as estritamente econômicas, com
pautas voltadas para questões salariais; segundo, as estritamente políticas, com pautas mais
amplas, englobando as paralisações em solidariedade a outras categorias ou em apoio a um
trabalhador, isto é, contra demissão ou perseguição, como também pela redução da jornada de
trabalho e outros direitos; e por último, as estritamente econômicas e políticas, combinando os
dois tipos de reivindicação nas suas pautas. (MATTOS, 2004, p. 141)
Das greves de 1900 a 1927, realizadas pelos trabalhadores dos bondes em Manaus,
cinco delas foram de caráter estritamente político, duas delas foram de caráter
econômico/político e uma greve de caráter estritamente econômico. Das pautas reclamadas
pelos trabalhadores, o descontentamento da categoria com o chefe do tráfego, em períodos
históricos completamente distintos foi o que mais motivou os motoristas e condutores de
bondes a paralisarem o serviço. Em seguida, a luta pelo aumento salarial, solidariedade entre
eles, readmissão de trabalhadores demitidos injustamente e a redução da jornada de trabalho,
foram as outras pautas dos motoristas e condutores na cidade de Manaus.

Organização das greves

No tocante à organização das greves realizadas pelos trabalhadores do tráfego de


bondes, as greves de 1911, 1925 e 1927 foram comandadas pela Sociedade Beneficente dos
Motoristas e Condutores do Amazonas, a greve geral de 1919 foi organizada e comandada pelo
Comitê de Operários Amazonenses e as greves de 1900, 1902, 1910 e a parede de setembro de
1925 surgiram espontaneamente, quando a decisão de parar o trabalho ocorreu imediatamente
após um determinado acontecimento. É interessante analisar como nasceram as greves que não
tiveram em seu comando a presença das associações dos trabalhadores diretamente envolvida
nas mobilizações.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Por mais que as primeiras greves do início do século XX não tenham sido organizados
pela Sociedade dos trabalhadores, “o fato de escolherem um representante para noticiar a
mobilização, indicava uma organização prévia”. (TERRA, 2012, P. 223) Tendemos a acreditar
que os trabalhadores se reuniam e decidiam se iriam aderir à greve ou não previamente e assim
que declaravam parede, já com suas pautas definidas, acreditamos ser esse o momento em que
eles decidiam quem os representaria. As greves por melhores condições de trabalho, contra a
perseguição do chefe do tráfego e pela readmissão dos trabalhadores, foram as principais pautas
que se apresentavam mais fortemente dessas iniciativas.
Grande parte das mobilizações dos trabalhadores do tráfego de bondes contou com a
participação da Sociedade dos trabalhadores, da União Operária Amazonense e da própria
formação do Comitê de Operários. Além das lideranças, havia participação massiva da base de
trabalhadores, essa era a melhor forma de conquistar atenção da companhia e ter um rápido
retorno de suas demandas. Antes de se anunciar a greve, era necessário criar condições para as
negociações das pautas. Portanto, uma greve ou até mesmo a própria ameaça de greve é, por
excelência, a melhor ferramenta de luta usada pelas associações para forçar o atendimento dos
interesses dos trabalhadores. (LINDEN, 2013, p. 250)
Depois de pontuarmos como os trabalhadores organizavam as paralisações,
apontaremos agora como as ações de mobilização eram empreendidas por eles. Sendo assim, é
importante entendermos que significados tinham as ações dos grevistas para eles, como
também para a sociedade em geral. Dessa maneira, do conjunto de estratégias usadas pelos
trabalhadores do tráfego de bondes, destacamos as voltadas para o impedimento dos bondes de
circularem, o impacto que tal paralisação causava, influenciava toda a cidade.
Exemplarmente, podemos destacar a atitude dos motoristas e condutores na greve de
1910 em Manaus. Reunindo-se na Praça Quinze de Novembro, em frente à estação central da
Viação e Luz, intervieram contra a decisão da companhia, gritando estrondosas vaias. Além da
paralisação do serviço na cidade, a formação de piquetes foi uma prática bastante presente nas
paredes dos motoristas e condutores de bondes.
Igualmente no Rio de Janeiro, Paulo Cruz Terra evidencia ação específica dos
trabalhadores de colocar pedras sobre os trilhos dos bondes e tentarem, ao mesmo tempo,
levantar algumas delas como forma de chamar atenção da população, do patronato e do Estado

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para suas reivindicações. Essa prática esteve presente em quase todas as mobilizações de
janeiro de 1900.

No mesmo dia, grevistas dispersos em vários pontos da cidade colocaram


pedras sobre os trilhos dos bondes e tentaram levantar-se alguns destes. A
estratégia de impedir a passagem dos veículos foi encontrada em praticamente
todas as greves, como na de janeiro de 1900. (TERRA, 2012, p. 224-225)

Marcelo Badaró Mattos também observou que se tratando de algumas greves no Rio de
Janeiro, acompanhando os padrões de resistência operária, um dos maiores polos de
mobilizações, nas décadas de 1880 a 1900, foi o dos transportes urbanos, em especial, os
bondes. O autor afirma que “não seria estranho que nesse setor (de transportes) irrompessem
várias greves, que se transformaram em conflitos de razoáveis dimensões”. (MATTOS, 2004,
p. 34)
Assim como havia reação por parte dos trabalhadores para chamar atenção, houve
também reações bem elaboradas, por parte da direção das companhias, como forma de fazerem
com que os bondes voltassem a circular na cidade. A estratégia mais comum empregada pela
direção da companhia Manáos Tramways foi utilizar outros funcionários para conduzir os
veículos, com presença massiva da força policial como forma de garantir a circulação.
No dia 23 de março de 1925, momentos depois dos motoristas e condutores deflagrarem
greve pacífica na cidade, os trabalhadores não compareceram ao serviço. No entanto, isso não
significou que os bondes deixaram totalmente de circular, pois, assim que chegou ao
conhecimento da direção da Manáos Tramways a anunciação da paralisação dos trabalhadores,
foi solicitada a intervenção da polícia para tomarem as devidas providências para garantir a
circulação dos bondes.
O Jornal do Comércio noticiava que a ação da polícia era eficaz nas medidas
empregadas para manutenção da ordem. E quem assumiu a condução dos bondes naquele
momento foram os empregados da oficina da companhia que não aderiram a parede, fiscais e
empregados do escritório sob a guarda de praças da força policial, devidamente embaladas.
(Jornal do Comércio, Manaus, 23/03/1925)
Outro importante exemplo que podemos considerar ocorreu na greve geral de 1919.
Assim que os trabalhadores deflagraram greve, foi crescendo o número de paredistas na cidade.

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De forma estratégica, eles marcavam os encontros em frente às oficinas da Manáos Tramways,


na Cachoeirinha, com o objetivo de obstruir a saída dos veículos. No dia 16 de maio, foram
surpreendidos com declarações das autoridades locais, que na falta de motoristas, eles mesmos
estariam dispostos a guiar os veículos, tornando-se, porém, indispensável à ação das
autoridades, segundo eles, para evitar “qualquer atentado”. (Jornal do Comércio, Manaus,
16/05/1919).
Podemos considerar outras reações diretas dos trabalhadores do tráfego de bondes,
dentre as quais romper calorosos protestos em frente as estações com gritos de “Fora! Não pode
sair!”, bem como atravessar os trilhos dos bondes, interrompendo o tráfego nas principais
curvas da cidade. Quando a condução dos bondes, em períodos de greves, vinha de fura-greves,
os paredistas não deixavam partir, forçando-os a recolherem-se nas estações. Tal medida era
importante para garantir a paralisação total do serviço de transporte.
Outra considerável reação à circulação dos bondes vinha por parte dos próprios
populares que em solidariedade aos grevistas, muitas vezes familiares e amigos, não permitiam
que os veículos circulassem livremente. Como se registrou no Jornal do Comércio, de maio de
1919.

Alguns populares tentaram virar os carros sendo nisso obstados pelo coronel
Luiz Marinho de Araújo, que conseguiu acalmar os ânimos e dar passagem
aos bondes, os quais trafegaram dali por diante, livremente em diversas ruas
da cidade, recolhendo as dez horas as oficinas da companhia. (Jornal do
Comércio, Manaus, 16/05/1919)

Às vezes, a estratégia das companhias de fazerem o bonde circular dava certo, outras
vezes não. O que garantia a variação de resultado era a quantidade de trabalhadores
mobilizados da empresa que aderiam à greve e às estratégias empreendidas por eles.

Pela ação dos grevistas foi possível verificar que eles construíram o
entendimento de que, para conseguirem que suas demandas fossem ouvidas e
atendidas, era necessário parar a circulação, fosse de pessoas ou de
mercadorias, dependendo da abrangência da paralisação. (TERRA, 2012, p.
226)

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Quando os grevistas sentiam dificuldade de paralisar totalmente o tráfego de bondes,


solicitavam adesão do comércio em geral como um protesto de solidariedade a causa. Segundo
Boletim publicado nos periódicos locais, os motoristas e condutores conclamavam a adesão do
comércio.

Tendo em vista a resolução tomada pela companhia Manáos Tramways,


fazendo, pelas primeiras horas da manhã, girar pela cidade alguns carros
guiados pelos seus diretores e alguns subornados pela ação dos mesmos, o
comitê solicita a adesão do comércio em geral, encerrando as portas dos seus
estabelecimentos como um protesto de solidariedade a causa justa do
operariado do Amazonas, causa que, como se tem notado, é simpática a
população inteira. Pela ordem e pela justiça! Viva as oito horas de trabalho!
Viva o Brasil! Viva o Amazonas! (Jornal do Comércio, Manaus, 16/05/1919)

O peso das paralisações era inquestionável, pois parar o bonde e parar a cidade de
Manaus afetava toda a população, desde aqueles que viviam nos arrabaldes de Flores até os
que precisavam circular no perímetro central da cidade. Como afirmou Paulo Cruz Terra,

Se nas paralisações localizadas em uma única companhia de bonde os


afetados eram os passageiros, e principalmente os donos das mesmas, nas
paralisações que envolviam grande parcela dos trabalhadores do setor de
transporte era a cidade como um todo que sofria as consequências. (TERRA,
2012, p. 226)

Nessas paralisações, com adesão dos motoristas e condutores de bondes, ficava


evidente o impacto no cotidiano da cidade porque impediam diretamente a circulação de
pessoas e esse amplo “impacto de algumas paredes indicavam que nelas as relações de poder
da cidade se inverteram e os trabalhadores passaram a controlar, mesmo que por algumas horas
ou dias, os espaços das ruas e o movimento dos veículos.” (TERRA, 2012, p. 227)

Negociação coletiva

Em termos muito gerais, todas as ações coletivas envolvendo negociações


com o empregador são uma forma de negociação coletiva. No uso comum,
entretanto, o significado de negociação coletiva restringe-se às negociações
empreendidas por um grupo de empregados com um ou mais empregadores,
que culminam num acordo coletivo. (LINDEN, 2013, p. 275-276)

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A negociação coletiva faz parte da maioria das mobilizações dos trabalhadores, pelo
menos, as empreendidas por categorias específicas, com pautas amplas, como ocorreu com os
motoristas e condutores de bondes em Manaus. Ela desempenha um papel fundamental no
sentido de estabelecer as normas que deverão reger as relações de trabalho entre os funcionários
e o patronato e passou a existir no momento que houve ação organizada dos trabalhadores por
meio do fortalecimento dos sindicatos e do exercício do direito de greve. (LEITE, 1992, p. 68-
69).
Para tanto, quando há situações em que não existe a negociação coletiva, o patronato
segue o princípio da negociação individual, resolvendo pontualmente e com cada trabalhador
os problemas levantados. São raras as vezes que isso acontece, no entanto, nessas
circunstâncias:
O empresariado estabelece de forma arbitrária os salários e condições de
trabalho de cada trabalhador em função de sua fidelidade a empresa ou seu
rendimento, introduzindo a competição e fomentando o individualismo entre
eles. (LEITE, 1992, p. 69).

Assim, a negociação coletiva surge como uma conquista dos trabalhadores organizados,
sobretudo, os vinculados às associações operárias. Nesse processo, eles passaram a exigir que
o patronato negociasse com o conjunto dos trabalhadores, garantindo assim à unidade de classe
e grandes conquistas as demandas coletivas.
Para nosso melhor entendimento do que estamos discutindo, discorreremos sobre a
greve de março de 1925, onde os trabalhadores organizados em Sociedade queriam a
readmissão de dois motoristas, aumento de salário e abolição do quadro de reservas da
companhia.
Para a articulação da resolução de tais reivindicações dos motoristas e condutores de
bondes, envolveram-se o chefe da polícia, o gerente interino da Companhia, o advogado da
Manáos Tramways, o senador Aristides Rocha e o presidente da União Operária Amazonense,
acompanhado de uma comissão de grevistas. À vista disso, todos os presentes na reunião
tinham seus interesses. Os trabalhadores queriam suas reivindicações atendidas, o Estado
representado pela polícia queria mediar e solucionar o problema do tráfego de bondes e garantir
a ordem na cidade, o patronato queria que os trabalhadores cumprissem seus ofícios sem

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reclamar, bem como a normalização do serviço de transporte. (Jornal do Comércio, Manaus,


23/03/1925).
Essa reunião do dia 23 de março de 1925 se prolongou, ficando momentaneamente nada
solucionado entre as partes interessadas, visto que a companhia não quis ceder no atendimento
das reivindicações dos trabalhadores. Essas articulações costumavam ser exaustivas e
demoradas, principalmente para os trabalhadores.
No entanto, por mais que as articulações fossem demoradas por conta do impacto da
paralisação do serviço de transporte diretamente na população, era necessário se chegar o mais
rápido possível no desfecho das greves. Para o episódio da parede de 1925, seu desfecho apenas
deu-se no dia seguinte, em reunião novamente, com as partes interessadas. Dessa forma,
obtendo-se como resolução final a readmissão de um dos motoristas demitidos, não mais no
ofício de motorista e sim como funcionário da oficina, que segundo argumento da companhia
foi “em virtude de seu estado de saúde, ficando os grevistas responsáveis pelo seu
comparecimento e assiduidade ao serviço, sob pena de ser novamente demitido”. (Jornal do
Comércio, Manaus, 24/03/1925)
Outra ponderação de resolução dessa reunião foi o envolvimento direto do senador
Aristides Rocha. Ao se deparar com a negativa da companhia de readmitir o segundo motorista,
o senador prontificou-se a lhe dar uma passagem para Belém e assumiu o compromisso de
enviar uma carta ao governador do Pará, dr. Dionysio Bentes, pedindo um emprego para o
motorista Arnaldo Cruz.
De 1921 a 1930, Aristides Rocha ocupou a função de senador, mas antes de tornar-se
senador, ele foi funcionário da companhia Manáos Tramways, como pudemos notar nas
menções da greve de 1919. Ele era portador da carteira profissional n° 18.076 da série 15, foi
admitido no dia 1° de janeiro de 1913 na qualidade de advogado da companhia, com
vencimentos de 1:200$000 réis. Era um grande estrategista, sendo o responsável por responder
legalmente pelos problemas que viessem a surgir em Manaus na Companhia Tramways.
A companhia Manáos Tramways, nessa ocasião, resolveu também abolir o quadro de
reservas e extranumerários, sendo mais uma grande conquista para os trabalhadores, sobretudo,
aqueles vinculados à Sociedade Beneficente dos Motoristas e Condutores do Amazonas. As
demais pautas, como a solicitação de aumento de salário, foram negadas pela companhia,

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alegando que não estavam numa situação econômica satisfatória. Terminada a discussão de
todas estas resoluções, os trabalhadores reuniram-se em assembleia para avaliar as propostas
da companhia e assim decidirem se voltariam ao trabalho ou se continuariam em greve. (Jornal
do Comércio, Manaus, 24/03/1925)
Nesse sentido, cabe fazermos mais algumas ponderações na resolução da greve de 1925.
Primeiro a intervenção do Estado – que de forma cautelosa e pouco eficiente do ponto de vista
das conquistas efetivas para os trabalhadores – demonstrou que o único interesse deles era a
volta do serviço, independentemente das reivindicações dos trabalhadores.
Segundo,o patronato só cedeu a algumas demandas por conta da presença do senador
Aristides Rocha, que moderadamente estava propondo diversas alternativas para encaminhar
as resoluções dos trabalhadores. Por fim, os trabalhadores se colocaram estrategicamente na
linha de frente das negociações, com a participação do advogado que judiciosamente
assessorava as lideranças no sentido da viabilidade das reivindicações.
Cabe também destacar que a negociação coletiva assume grande importância. Por meio
dela as associações conseguem realizar grandes acordos que - muitas vezes - acaba por chegar
até as Câmaras Municipais ou Congresso Nacional, como ocorreu com a greve geral de 1919
que tinha como principal reivindicação dos trabalhadores, a diminuição da jornada diária de
trabalho para 8 horas, sem interferência nos salários.
No dia 14 de maio de 1919, reuniram-se diversos trabalhadores vinculados ao Comitê
de Operários Amazonenses. Durante a reunião foi inscrito para se pronunciar o trabalhador
Eslebão Luz, que depois de uma série de considerações, propôs a expedição de um telegrama
ao presidente da República e à bancada amazonense no Congresso Nacional, informando a
deliberação dos trabalhadores manauaras de paralisarem seus serviços e pedindo solução dos
congressistas da lei sobre as oito horas de trabalho. (Jornal do Comércio, Manaus, 14/05/1919)
Verificou-se assim, que a negociação coletiva nos múltiplos sentidos esteve presente
ferrenhamente nas articulações dos trabalhadores manauaras, sobretudo a partir do momento
que eles começaram a se organizarem em Sociedade Beneficente.
Por fim, é interessante apontar que em outras localidades do Brasil ocorreram
mobilizações de motoristas e condutores de bondes, igualmente como em Manaus. Algumas
dessas paralisações coincidem com um grande aumento da organização dos movimentos

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sociais no Brasil e no mundo, conferindo uma dimensão conturbada à conjuntura de 1900 a


1930, tendo em vista que nesse período houve uma crescente significativa do movimento
associativo no meio dos trabalhadores, período em que ocorreu o surgimento de uma imprensa
operária e também formação de partidos. (PARENTE, 2008, p. 25).

Referências
LEITE, Marcia de Paula. O que é greve. São Paulo: Brasiliense, 1992.
LINDEN, Marcel Van Der. Trabalhadores do mundo: Ensaios para uma história global. Tradução:
Patrícia de Q. C. Zimbres. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2013.
MATTOS, Marcelo Badaró (Coord.). Trabalhadores em greve, polícia em guarda: Greves e pressão
policial na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2004.
MATTOS, Marcelo Badaró. “As greves na trajetória da classe trabalhadora brasileira”. Anais do GT
Mundos do Trabalho / ANPUH – RS, 2007.
MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
MIGLIOLI, Jorge. Como são feitas as greves no Brasil. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira,
1963.
PARENTE, Eduardo Oliveira. Operários em movimento: A trajetória de luta dos trabalhadores da Ceará
Light (Fortaleza, 1917-1932). Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal do
Ceará: Fortaleza, 2008.
PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto; PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Mundos do trabalho na cidade
da borracha: Trabalhadores, lideranças, associações e greves operárias em Manaus (1880-1930).
Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2017.
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: Trabalho e conflito no porto de Manaus,
1899-1925. 2ª ed. Manaus: EDUA, 2003.
SANTOS, Dhyene Vieira dos. Motoristas e condutores de bondes em Manaus: Sociabilidade, cultura
associativa e greves (1899-1930). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Amazonas, 2020.
TERRA, Paulo Cruz. Cidadania e trabalhadores: cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-
1906). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação
em História: Rio de Janeiro, 2012.

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A INTRODUÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA


RESERVA INDÍGENA DE CAARAPÓ-MS: REFLEXÕES DE UM
ASPIRANTE A XAMÃ

ELEMIR SOARE MARTINS (1); EDUARDO GOMES DA SILVA FILHO (2)


(1) Universidade Federal da Grande Dourados, Mestre.
elemirs.martinsufgd@gmail.com
(2) Universidade Federal de Roraima, Mestre.
eduardo.filho@ufrr.br

Resumo
Neste artigo, propõe-se discutir o processo de introdução da Educação Escolar Indígena na
Aldeia Caarapó-MS, a partir das vivências e experiências dos próprios índios, em particular,
destaca-se a trajetória do indígena Elemir Soare Martins, que retrata em sua Dissertação de
Mestrado, a ser defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
da Grande Dourados-MS, as nuances da introdução do processo educacional do povo Guarani
e Kaiowá, perpassando, além desta trajetória, outras variantes deste processo, como nos casos
das ações das Igrejas Evangélicas e alianças institucionais que foram realizadas com ONGs e
Universidades.
Palavras-chave: Educação; Reserva Indígena; Xamã.

Introdução

Sou ava (indígena) da etnia Guarani Nhandeva/Kaiowá, pertenço a parentela Escobar,


Martins, Vera, Soares. Nasci numa reserva indígena onde, desde 1924, os meus parentes
indígenas construíram várias formas de resistências e de sobrevivências. É um tekoha que
espera por elementos tradicionais essenciais para poder continuar descortinando características
negativas impostas pela colonização, chama-se Reserva Indígena de Caarapó. Pertenço a uma
família que, ao longo desses anos, os membros preferiram aderir ao evangelho e, ao mesmo
tempo, continuar adquirindo saberes ancestrais e com eles superarem vários problemas
históricos e, acima de tudo, sentindo a luz do protagonismo caminhando junto deles. Como
muitas parentelas, a família à qual pertenço passou várias adversidades, advindas do processo

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de colonização e de várias tentativas de dizimação dos povos nativos. Vivenciaram várias


transformações que ocorreram nessa reserva, onde os chefes atuavam em diferentes momentos,
nos quais se incluíam várias temporalidades.
A sociedade caarapoense, que não tem muito conhecimento sobre a Reserva Indígena
de Caarapó, entende que ela foi criada para resolver os problemas dos índios e, por conseguinte,
torná-los “obedientes” e “civilizados e trabalhadores”. Coloco entre aspas esses dois conceitos
pois, na prática, ou seja, dentro da aldeia, a comunidade se organizou, buscou a sobrevivência
em constante negociação com algumas instituições, entre as quais estavam: Missão Caiuá,
CIMI, FUNAI, Escola e Igrejas Evangélicas Pentecostais.

O lugar de onde falo: memórias, conflitos e resistência

O atual Estado de Mato Grosso do Sul tem a segunda maior concentração do povo
indígena do Brasil, cuja maioria é da etnia Guarani e Kaiowá. Dos mais de 65 mil indivíduos
dessa etnia que vivem hoje no Brasil, cerca de 30 mil residem no Sul desse Estado. Esse grupo
é subdividido em três subgrupos, sendo o Guarani (Ñandeva), Kaiowá (Paï-Tavyterã) e Mbya,
todos pertencentes à família linguística Tupi-guarani (PIMENTEL, 2012).
Os Guarani e Kaiowá da Reserva Indígena de Caarapó não querem mais se isolar da
sociedade caarapoense, para que isso seja possível, segundo esses rezadores desse local,
acionam os conhecimentos ancestrais e, para os líderes pentecostais indígenas também
informação do arcabouço religioso ocidental, para entender, planejar, consertar o seu mundo e
a sua realidade.
As pesquisas do historiador Antonio Brand (1993, 1997 e 2004) facilitam a
compreensão a respeito do tema. Retomo a discussão para mostrar como os indígenas
resistiram e continuam criando alternativas para sua sobrevivência. Quero mostrar também, a
partir das pesquisas já feitas, que os coletivos se adaptaram à reserva e continuaram renovando
suas estratégias de resistências.
As populações indígenas, que permaneceram até os dias atuais resistindo, se
reorganizando em constante negociação, mesmo tendo sido negados pela historiografia mais
tradicional elitista, lembram-se muito bem dos seus tekoha guasu (território ou território

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amplo) ocupados por eles há séculos, situados entre o rio Apa, serra de Maracaju, rio Brilhante,
rio Ivinhema, rio Paraná, rio Iguatemi e fronteira com o Paraguai, no atual Estado de Mato
Grosso Sul (VIETTA, 2007).
Nesse tekoha guasu, agrupavam-se, especialmente em áreas de ka’aguy guasu (mata
fechada) e ao longo dos ysyry (córregos) e ysyry guasu (rios), em pequenos grupos de parentela,
integrados por uma, duas ou mais te’yi tuicha (famílias extensas), que cultivavam entre si
inúmeras relações de casamento. As lideranças de família eram tekoharuvicha (chefes do
tekoha) ou ñanderu (nosso pai-mestre). As lideranças daquela época apoiavam-se em suas
experiências, seus prestígios e nas atribuições das esferas política e religiosa.
Na época em que foram instituídas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), as
reservas indígenas no atual Estado de Mato Grosso do Sul, os Guarani e Kaiowá passaram a
sofrer um processo de redução de seus territórios tradicionais. O órgão oficial, segundo Benites
(2014), desconhecendo o modo de viver dos Guarani e Kaiowá, e o modo de ocupar os seus
tekoha guasu (seus territórios), instituiu, entre 1915 e 1928, oito minúsculas Reservas: Jagua
Piru e Bororo em Dourados (Francisco Horta Barbosa), Reserva indígena de Caarapó em
Caarapó (José Bonifácio), Guapo’y em Amambaí (Benjamim Constat) e Limão Verde em
Amambaí, Pirajui em Paranhos, Ramada ou Sassoro em Tacuru, Taqueperi em Coronel
Sapucaia, Jakare’y ou Porto Lindo. A área máxima prevista era de 3.600 hectares, na maioria
dos casos, a área demarcada foi ainda menor (BRAND, 1993; 1997).
Os colonos da sociedade ocidental não conseguiram entender ainda a vida do povo
indígena, porque, desde que expulsaram este do seu território, ensaiavam roubar-lhes a
memória, a história, a língua, a religião, por fim, o ava reko (jeito de ser indígena). Os karai
“chegaram por aqui e não demonstravam nenhum tipo de respeito e muito menos nos
enxergavam como gente”, me disse uma rezadora da Te’ýikue. Para eles, escravizando,
aniquilando a religião indígena, destruindo a natureza, impondo a língua, destruindo a vida e,
por fim, dando trabalho desprezível, uma minúscula área que não ofereceria sobrevivência já
era uma atitude “humana”.
Contudo, várias formas de organização e resistência podem ser observadas ao longo do
tempo na tekoha Guarani e Kaiowá. Uma das principais, trata-se da educação, inicialmente a

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parentela mais jovem foi alfabetizada em língua materna, posteriormente, com o avanço das
religiões pentecostais nas aldeias, a coisa mudou de figura, como veremos isso a seguir.

Memórias do início da Educação Escolar Indígena na Aldeia Caarapó-MS: um breve


resumo autobiográfico de um aspirante ao xamanismo

Iniciei a minha vida de estudante após seis anos, até porque nessa época os pais não
mandavam seus filhos à escola tão cedo, pois fazia parte do ñeñangareko (de cuidar da infância
das crianças). Não tão diferente das demais crianças guaranis, vivi transitando nos dois mundos
religiosos, ao mesmo tempo, em que eu frequentava culto, por outro lado ouvia sempre os
cantos ao longo da noite. Vi algumas crianças da mesma idade que eu enfrentando a mesma
epidemia que eu havia enfrentado, os pais dessas crianças chegavam à igreja desesperados, mas
com esperança de buscar cura para tais doenças. Os crentes sempre demonstraram dedicação
com os recém-chegados na igreja.
Eu não entendia muito bem o que estava acontecendo com a minha cultura. Sem que
soubéssemos, o homem branco já havia destruído o nosso território. Quiseram me dar uma
cultura que me deixaria mais pobre espiritualmente. O momento em que me reconheci, de novo,
foi na época em que comecei a frequentar a escola indígena e me aproximar de novo dos mais
idosos, sobretudo dos rezadores.
A escola foi construída de sapê denominado por nós indígenas de óga kapi’i (casa de
sapê). Essa escola, além de oferecer espaço não tão diferente da realidade do aluno, também
ofertava uma educação escolar diferenciada. Conforme o professor Alécio:

A gente buscava trabalhar diferenciado com os alunos, aliás, a própria escola


refletia isso nos alunos, onde eles chegavam sem medo, com pezinhos
empoeirados, roupas humildes e nós professores indígenas os recebendo bem
para que se sintam acolhidos”. (Professor na Aldeia indígena Caarapó-MS,
s/d.).

Nessa sala cabiam 15 ou no máximo 20 alunos. Atrás da sala foi instalada


provisoriamente cozinha onde os alunos lanchavam.

As aulas começaram embaixo da casa de sapê. Foi construída entre 1997-


1998, onde muitas pessoas da região Mbokaja fizeram mutirão (pucherõ –

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trabalho coletivo) para levantar escola. Foi meio difícil no início, segundo a
minha observação, até porque esperamos alguns anos para termos escola de
tijolo, outro problema que enfrentamos em relação a construção da escola foi
parte de alguns parentes que não aceitavam muito, pois falavam que a escola
ficaria apenas para família da região. Mas aos poucos eles mais ou menos
aceitaram. Então, a escola Mbokaja é visto ainda até hoje como se fosse só da
família, porém não bem assim, porque aqui tem alunos das duas etnias tanto
Guarani e Kaiowá e, assim fomos fortalecendo a nossa identidade e
mostrando o quanto nossa etnia é importante para o coletivo maior, sobretudo
para quebrar o paradigma em relação aos Guarani Nhandéva do Mbokaja.
Vejo que precisamos trabalhar mais a nossa cultura, investir mais nisso.
Começando pela presença contínua dos rezadores na escola e no espaço, para
que os alunos se sintam à vontade em interagir com eles e aprender. (Professor
Guarani Crispim Soares Martins, 2020).

O primeiro professor que tive foi Alécio Soares Martins, o qual me alfabetizou na minha
língua guarani, embaixo de uma escola de sapé, onde aprendi a ler e a escrever como ava
(indígena). Como meu pai era da igreja pentecostal, não almejou que eu frequentasse a escola
da Missão, também por causa da distância e para não sofrer por ser de uma família pentecostal.
Fui alfabetizado na língua materna guarani. As primeiras palavras que consegui
pronunciar foram: yvy, ysyry, ygua, yvyra, ysy, ama, ava, avati, etc., o professor trabalhava
com os nomes dos animais, das plantas, dos rios, do nosso cotidiano. Não trabalhavam as
vogais em sequências, pois, como indígena, gosto muito da vogal “y”, nesse caso, eu tentava
sempre me lembrar das palavras que são pronunciadas no dia a dia das pessoas, até porque são
palavras que os espíritos deram.
Antes de ir à escola, os meus pais já conversavam comigo, proibiam-me de jogar
futebol, me orientavam para ser um exemplo de criança no molde pentecostal. Entretanto,
sempre que surgia oportunidade para jogar com os colegas, eu aproveitava. Como a escola
ficava perto de nossa casa, optaram em me colocar nela, pois para eles eu não teria muitos
problemas relacionados às coisas descritas.
Além do ensino religioso que meus pais me passavam, através do kokue (roça) me
ensinavam também sobre o teko porã (o bem viver indígena), onde eu pudesse priorizar a
reciprocidade e o respeito pela natureza. Certo dia, eu estava meio emburrado com meu pai, e
ele queria me levar para carpir com ele, mas como eu estava com esse comportamento, não
podia, pois, a plantação de arroz é bem delicada, por isso possibilitaria ao mau agouro ter

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sentido. Assim, eu fui aprendendo e fortalecendo o conhecimento sobre os cuidados na


perspectiva indígena.
Portanto, a minha vida adulta iniciou cedo, na roça, onde me passaram e me ensinaram
as práticas coletivas de importância dos princípios guarani, sendo um lugar de educação
indígena e de vivendi indígena, onde os laços das famílias são fortalecidos também.
Na carpida e hora do tereré, conversávamos sobre a história dos mais velhos, dos
parentes que faziam parte da formação do lugar, sobre os preceitos culturais. Enquanto isso, a
minha mãe fazia colheita de milho e dos demais alimentos que havíamos plantado e me
explicava sobre as sementes etc. Nossa família tinha duas roças, sendo que uma ficava perto
da nossa casa e outra ficava não tão longe.
Aos poucos, essa atividade tradicional foi enfraquecendo no meio da minha família,
porque o meu pai saía muito para evangelizar nas demais aldeias e para trabalhar na usina, e a
minha mãe tinha uma irmã para cuidar, porque a mesma tinha necessidade especial, situação
que transformou muita coisa.
Enquanto o meu pai saía para trabalhar, a minha mãe ficava sobrecarregada de
responsabilidade, ao mesmo tempo, em que se preocupava com a nossa educação, também se
preocupava em cuidar da igreja. Isso exigiu dela resistência. Por outro lado, ela conseguiu
equilibrar sua responsabilidade, porque alguns fiéis a ajudavam.
Mesmo com dificuldade, minha mãe sempre me mandava para a escola. Na terceira
série estudei com Lídio Cavanha Ramires, um professor que sempre focava a questão da cultura
indígena, falava para nós sobre nossas artes, rezas, aldeias, rios, pesca, conto, poesia, entre
outros assuntos. Isso despertava interesse em conhecer mais, aprender de novo, reavivar dentro
de mim a minha espiritualidade indígena e a minha cultura.
Na medida em que a escola indígena estava se firmando na Reserva Indígena de
Caarapó, por outro lado houve resistência por parte dos crentes indígenas para não reavivar a
cultura indígena, por exemplo, na minha família não se falava muito das histórias indígenas
Guarani e Kaiowá, raramente se conversava sobre isso. Meu pai falava que só assim
poderíamos ser abençoados por Deus, igualmente receber dom de curar, dom de revelação,
dom de avivamento, dom de cantar, dom para tocar instrumento, dom para liderar. Uns dos
dons mais almejados nessa época foi o de curar, expulsar demônio e de revelar, principalmente

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pelos líderes da igreja (dirigente da igreja); ficavam horas e horas fazendo oração, jejum e
frequentando “monte”.
Por isso, muitas vezes, pediam-se para apagar alguns saberes e habilidades tradicionais
adquiridas do xamã da parentela. Uma das pessoas que me ensinou e aperfeiçoou o meu
conhecimento foi a Lauriana Escobar, que sempre falava dos seus antepassados, das rezas, dos
principais rezadores que se destacavam pela região. Ao mesmo tempo em que sofríamos com
a doutrina da igreja, sempre conseguíamos aprender sobre a nossa cultura. Havia dias que ela
levava punição pelo dirigente indígena, mas sabia da importância de passar o conhecimento
para nós. A punição tinha várias formas, algumas delas que destaco são: pegar banco por um
mês ou mais sem ter direito de cantar, contar testemunho e frequentar culto todos os dias; não
tomar santa ceia e por fim, depende também das regras de cada dirigente da igreja, até porque
ele que determina as regras.
Apesar de não ter muita habilidade em estudo, fui aluno esforçado, porque eu conseguia
fazer as minhas tarefas. No primeiro momento, sofri muito para ler, ao mesmo tempo para
escrever. Na minha casa, eu tinha muitos afazeres, então, não fui incentivado para olhar o meu
caderno, sempre nos preocupava em trabalhar para não passarmos dificuldades. Entretanto,
mesmo assim, eu conseguia ler e me esforçar para passar de ano.
Lembro-me da primeira vez que consegui escrever duas linhas de frases sobre árvores,
nas quais enfatizei a importância para mim, como naquela não tinha muitos cartazes sobre
alfabeto e vogais na minha língua, foi difícil decifrá-los, parecia-me que era impossível chegar
ao nível que o professor esperava.
Por outro lado, tinha outro tipo de ensinamento que eu precisava seguir, os meus
pensamentos eram limitados sobre o meu mundo. O meu movimento foi de escola para casa e
igreja. Todos os dias participava do culto.
Destacando sobre o pensamento limitado e o espaço limitado que me colocava, foi para
eu regar o meu medo com a ignorância, absolutismo sendo mais para destruir meu caminho
indígena; posto isto, busco perceber essas regras familiares e das igrejas pentecostais como
movimentos de tornar-se um indivíduo ao ore evangelho (sendo o único e não podendo receber
os que não pertencem a eles), ou seja, não pertencentes ao grupo dos crentes pentecostais.

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Além da minha avó, só o professor passava alguma coisa relacionada à cultura indígena.
Como o processo da educação escolar indígena estava em construção nessa aldeia, a
comunidade ficava dividida entre os saberes tradicionais e saberes dos brancos (karai), até
porque a igreja influenciava nessa questão. Sobre isso, Virginio Soares comenta da seguinte
maneira:
A gente não queria ser diminuído por sermos crentes, tentávamos ser
respeitados aqui na aldeia e lá fora, para isso precisávamos que os nossos
filhos aprendessem também a língua dos brancos. Eu sabia que a igreja
conseguiria despertar muita coisa boa nas pessoas (Virginio Soares s/d).

Conforme a fala desse meu interlocutor, fica claro também o empenho dos fiéis
indígenas em romper a exclusão dos indígenas da sociedade não-indígena e da Reserva, para
isso, cobravam dos professores o ensino da Língua Portuguesa desde a alfabetização. Conforme
a análise de Soares, por meio da Igreja as pessoas conheceram mais a realidade e para cobrar
os seus direitos. Essa problemática perdurou até 2005, pois se aceitava mais o ensino da Língua
Guarani, com exceção de outras práticas culturais.
Quando os pais pentecostais descobriam que os filhos estavam sendo influenciados
pelos professores a aprenderem as rezas, danças, logo tiravam da escola ou proibiam os filhos
de participar dessas atividades escolares, nas quais se incluía também a Educação Física.
Faziam questão que os seus filhos e alunos se vestissem com camisa social, calça social
para os professores não os obrigar a participarem das atividades ditas culturais, que passaram
a fazer parte do currículo da escola indígena. Nessa situação, os professores buscavam resolver
na base do diálogo com os pais, explicando-os da importância dos filhos de interagirem com o
mundo escolar, principalmente no que tange às práticas culturais.
Assim cheguei na quarta série com o professor Alécio, momento em que ele viu em
mim empenho, sendo assim me aplicou uma prova para passar para a quinta série. Com esforço,
consegui ser aprovado e cheguei à escola Ñandejara, hoje localizada no centro da aldeia.
Portanto, os meus professores das séries iniciais foram Alécio, Ladio e Lídio.
Na quinta série foi mais difícil, já que a maioria dos professores era da cidade.
Nessa época, o meu português estava abaixo dos demais da turma. Ficava no canto da
sala para não ser questionado, esse tipo de comportamento adquiri na igreja, porque na igreja

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as crianças sentavam no canto, e não podiam falar, brincar, só podiam ir ao banheiro e beber
água, na maioria das vezes o obreiro ficava responsável por elas.
Na hora da pregação, ficávamos assistindo o pregador falar. Por isso, talvez, o meu
comportamento foi diferente na turma. Sendo assim, me esforcei bastante para ler na outra
língua, ficava horas e horas lendo a Bíblia dos meus pais, porque nessa época, não fui
autorizado para pegar livro da escola. Lembro-me da primeira vez que li sobre o nascimento
do mundo, no livro de gênesis. Copiava as palavras no meu caderno para pronunciá-las.

Entre Rezadores e Professores: A Educação Escolar Indígena a partir das alianças


institucionais

Uma das alternativas usadas pelos rezadores foi se aliar com os professores, certos de
que serão valorizados por eles e fortalecê-los, nesse caso, contribuíram bastante no registro dos
nomes de plantas medicinais, das rezas, até na formação de novos detentores de saberes
indígenas, ou seja, novos conhecedores de remédios e de rezas. Esse foi o caso do professor
Nilton Ferreira Lima, hoje professor da área de Ciências da Natureza e atua como tal na
Unidade Experimental, onde se ensina aos alunos várias práticas agroecológicas na perspectiva
sustentável.
A comunidade dessa localidade foi exposta às mais diversas formas de exploração, à
negação do seu direito e ao preconceito, portanto, ficava quase impossível reivindicar o
reconhecimento e aperfeiçoamento de sua medicina tradicional ao estado e ao município.
Podemos definir essa fase da reivindicação dos indígenas de garantir direito à saúde de
qualidade e de construção da escola indígena como “tesãi reka”. O movimento foi articulado
para garantir primeiramente o território, a saúde diferenciada e a escola, em contraposição às
situações vividas no passado, quando “o índio não tinha direito”, até porque nós indígenas
temos múltiplas culturas, línguas, crenças, valores e estruturas próprias de educação.
O “tesãi reka” iniciou-se com a grande retomada, na década de 80, até porque a
violência física imposta aos Kaiowá e aos Guarani foi extensa, sendo o processo de expulsão
das terras que tradicionalmente ocupavam, acompanhado por formas de violência simbólica.
A partir da força de resistência e de habilidade de articulação, retornaram às suas áreas
tradicionais, constituindo, assim, vários tekoha, por exemplo, Guyra Roka, Taquara, Jarara

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(Juti-MS). A sociedade karai (sociedade branca) instituiu por várias décadas um completo
encobrimento da sociedade indígena em sua alteridade para assim justificar a violência,
violação de direitos em relação à terra, saúde, educação, e à desqualificação de protagonismo
e da estrutura organizacional tradicional de comunidade organizada com vínculos históricos a
determinados territórios, nos quais se desenvolviam o teko mbo’e, teko porã e teko resãi (bem
viver e a vida saudável).
Vale destacar a trajetória de construção da escola indígena na Reserva indígena de
Caarapó que, segundo Benites (2014), se originou de uma proposta feita pela Secretaria de
Educação de Caarapó, em 1997, juntamente com os parceiros e as parceiras das universidades
e da secretaria do estado que priorizaram as questões indígenas. Nesse sentido, o movimento
indígena foi ampliando e fortalecendo sua aliança com as entidades.
Por meio dessa aliança se viu o resultado positivo em vários aspectos da vida social,
tais como saúde, educação, direito, desenvolvimento econômico (sustentável ou não),
qualificação técnica profissionalizante e muitas outras. Tem sido marcante a atuação de
algumas ONGs, das Universidades, das Secretarias do Município e do Estado na Reserva
Indígena de Caarapó, criando curso de formação de professores, Programa Kaiowá e Guarani
(Universidade Católica Dom Bosco, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e Diocese
de Dourados) e a participação e articulação das lideranças da aldeia.

Conclusão

Procuramos no texto evidenciar inicialmente a partir de uma trajetória autobiográfica e,


posteriormente, abordando as ações da Igreja e das alianças com outras instituições, o processo
de introdução da Educação Escolar Indígena na Aldeia Caarapó-MS. A análise foi feita a partir
de experiências, vivências e depoimentos de professores, rezadeiras e demais moradores da
tekoha.
Buscamos caracterizar a aldeia como lugar de memória e principalmente atrelar a
Educação Escolar Indígena como uma importante prática de resistência. Assim, passamos pelos
processos de ressignificação de memória do indígena Elemir Soare Martins, assim como a
implementação da primeira escola indígena da aldeia.

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A análise foi finalizada com as alianças que foram realizadas entre índios e não-índios,
a partir do estreitamento de diversas instituições, como nos casos das ONGs, Igrejas e
Universidades.
O texto procurou demonstrar, além da introdução da Educação Escolar Indígena,
também a sua importância, tanto para o processo educacional em si, quanto para a preservação
e valorização dos seus costumes e tradições.

Referências
BENITES, Tonico. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (rezando e lutando): o movimento
histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowá e dos Ava Guarani pela recuperação de seus tekoha.
2014. 270f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ,2014.
BENITES, Eliel. Oguata Pyahu (Uma nova caminhada) no processo de desconstrução e
construção da educação escolar indígena da Aldeia Te’ýikue. 2014. 130f. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS, 2014.
BRAND, Antonio Jacó. O confinamento e o seu impacto sobre os Guarani/Kaiowá. 1993.
276f. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS,1993.
BRAND, Antonio Jacó. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: os
difíceis caminhos da palavra. 1997. 382f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 1997.
BRAND, Antonio Jacó. Os complexos caminhos da luta pela terra entre os Kaiowá e Guarani
no MS. Tellus, ano 4, n. 6, abr. 2004, p. 137-50, Campo Grande, MS: UCDB, 2004.
PIMENTEL, Spensy Kmitta. Elementos para uma teoria política Kaiowá e Guarani. 2012.
364f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2012.
VIETTA, Katya. Histórias sobre terras e xamãs Kaiowá: territorialidade e organização social
na perspectiva dos Kaiowá de Panambizinho (Dourados-MS) após 170 anos de exploração e
povoamento não indígena na faixa entre Brasil e Paraguai. 2007, f. 512. Tese (Doutorado em
Antropologia Social), Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, 2007.

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OS POVOS INDÍGENAS NOS MOVIMENTOS SOCIOPOLÍTICOS DO


SÉCULO XX

EMANUEL DE ARAÚJO RABELO


Universidade Federal de Roraima, Graduado
nellaraujo1995@gmail.com

Resumo

Os anos finais do século XX foram marcados por diversas transformações estruturais em todo
o globo, e ainda sentidas até hoje, seja no âmbito político, social, cultural ou econômico e que
trouxeram vários questionamentos a organização social até então em evidência, ou seja, a
sociedade em seu modelo mais tradicional, e o aparecimento ou ressurgimento de grupos que
até então não apareciam como protagonistas da sua própria história. As práticas políticas da
fase final do século XX têm como características específicas se expressarem pelas diferenças
culturais, fugindo assim, do sentido político tradicional pela alteridade e autonomia na sua
organização, e claro, na atuação simbólica na construção de identidade e da diferença. Nesta
condição, cada grupo traça o conjunto de significados identitários que os julga representar, para
a partir daí, definir quem é incluído ou excluído de seus quadros, quem apoia ou passa a ser
visto como adversário. Por isso, este trabalho tem como objetivo discutir e analisar os
movimentos sociopolíticos acontecidos durante o final do século XX, salientando assim, a
ascensão de grupos sociopolíticos no período, e dando ênfase a Historiografia indígena do
Brasil, observa-se suas mobilizações, organizações, reafirmações identitárias, e as relações
interétnicas e de poder.

Palavras-chave: Protagonismo Indígena. Mobilizações políticas. Etnologia indígena.

Introdução

Os anos finais do século XX foram marcados por diversas transformações estruturais


em todo o globo, e ainda sentidas até hoje, seja no âmbito político, social, cultural ou
econômico e que trouxeram vários questionamentos a organização social até então em
evidência, ou seja, a sociedade em seu modelo mais tradicional, e o aparecimento ou

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ressurgimento de grupos que até então não apareciam como protagonistas da sua própria
história, entre eles: Indígenas, Mulheres e Negros.
Segundo Hobsbawm, ao falar sobre as transformações ocasionadas neste período ele
argumenta que:
A revolução cultural de fins do século XX pode assim ser mais bem entendida
como o triunfo do indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos
fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sociais. Pois essas
texturas consistiam não apenas nas relações de fato entre seres humanos e
suas formas de organização, mas também nos modelos gerais dessas relações
e os padrões esperados de comportamento das pessoas umas com as outras;
seus papéis eram prescritos, embora nem sempre escritos (1995, p. 261).

Portanto, essa revolução cultural dos fins do século XX, é a quebra de toda uma tradição
construída pela sociedade sob a ordem do Estado Nacional composta de padrões, costumes,
religião que caracterizam esse tipo de identidade, que por sua vez, era imposto a todos os
indivíduos sujeitos às suas leis sem qualquer tipo de questionamento, mesmo se sabendo hoje
que sempre houve contestações, mas que mesmo assim, em períodos anteriores, esses grupos
sociais já faziam oposição a esses padrões feitos pelo Estado Moderno.

Na segunda metade do século XX, no que diz respeito às contestações dos grupos de
mobilizações sociopolíticos diante da identidade nacional, Hall (2005), tomando como
referência a Grã-Bretanha, observa que:

O primeiro efeito tem sido o de contestar os contornos estabelecidos pela


identidade nacional e o de expor seu fechamento às pressões da diferença, e
da “alteridade” e da diversidade cultural. Isto está acontecendo, em diferentes
graus, em todas as culturas nacionais ocidentais e, como consequência, fez
com que toda a questão da identidade nacional e da “centralidade” cultural
Ocidente fosse abertamente discutida. (HALL, 2005, p. 83).

O final do século XX deixou em aberto para qual sentido a sociedade devia correr, a
diversidade cultural e os processos de alteridade imposta por esses grupos fizeram com que o
mundo entrasse em uma crise, a chamada “crise de identidade”. Esta assim chamada “‘crise de
identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando
as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência
que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (HALL, 2005, p. 7).

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Portanto, não está mais colocada como uma verdade pronta e acabada, mas sim que o
Estado Nacional pode ser questionado por suas ações pelos vastos grupos sociais até então
silenciados. Dessa forma, o Estado perde uma estabilidade intacta, em especial, diante do
desenvolvimento tecnológico, de informação e de uma nova consciência sociocultural e
política.

Ao deter-se sobre essas transformações globais, Kathy Woodward, observa que:

As mudanças e transformações globais nas estruturas políticas e econômicas


no mundo contemporâneo colocam em relevo questões de identidade e as
lutas pela afirmação e manutenção das identidades nacionais e étnicas.
Mesmo que o passado que as identidades atuais reconstroem seja, sempre,
apenas imaginado, ele proporciona alguma certeza em um clima que é de
mudança, fluidez e crescente incerteza. As identidades em conflito estão
localizadas no interior de mudanças sociais, políticas e econômicas,
mudanças para as quais elas contribuem (WOODWARD, 2014, p. 24-25).

Esse contexto permitiu aos novos movimentos sociais promoverem suas representações
e práticas pela valorização da sua cultura, abrindo espaço, assim, para novas pautas e
reivindicações que buscam novos direitos intrinsecamente ligados às mudanças sociais,
políticas e econômicas que acontecem no mundo contemporâneo. É nesta condição que
pensamos o caso dos povos indígenas na proposta de reconstrução étnica, do final do século
XX, na qual, se deu essa abertura.

Tomando como quadro de reivindicações, as suas práticas culturais, esses movimentos


trabalham na construção de identidades próprias, ou seja, a partir de “políticas de identidade”,
dessa forma:

As práticas culturais são, mais que ações, atuações. Representam, simulam as


ações sociais, mas só às vezes operam como uma ação. Isso acontece não
apenas nas atividades culturais expressamente organizadas e reconhecidas
como tais; também os comportamentos ordinários, agrupados ou não em
instituições, empregam a ação simulada, a atuação simbólica. Os discursos
presidenciais ante um conflito insolúvel com os recursos que se têm, a crítica
à atuação governamental de organizações políticas sem poder para revertê-la
e, é claro, as rebeliões verbais do cidadão comum são atuações mais
compreensíveis para o olhar teatral que para o do político "puro"
(CANCLINI, 2008, p. 350).

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As práticas políticas da fase final do século XX têm como características específicas se


expressarem pelas diferenças culturais, fugindo assim, do sentido político tradicional pela
alteridade e autonomia na sua organização, e claro, na atuação simbólica na construção de
identidade e da diferença. Isto permite significado ao ser indígena, ser quilombola, ser mulher,
no mundo contemporâneo de amplas transformações sociais e culturais.

Na perspectiva de Kathy Woodward (2014) a diferença que separa uma identidade da


outra, estabelecendo distinções entre elas, frequentemente em formas de oposição, na qual, as
identidades se elevam e são construídas a partir da oposição entre “nós” e “eles”. Dessa forma,
os conflitos nacionais e étnicos desses “novos movimentos sociais” estão baseados na
construção da diferença entre os grupos e na oposição à tradição moderna oficial.

Portanto, a ascensão, a liberdade e a autonomia reivindicada por esses grupos ao final


do século XX deixou mais evidente que os processos de políticas de identidade faziam uma
oposição às medidas culturais e sociais tradicionais do Estado Nacional, e que, a partir daí os
meios sociopolíticos em âmbito mundial e não apenas nacional começariam a mudar. Esses
meios são produtos de uma intersecção de diferentes componentes, de discursos políticos e
culturais, com reivindicações diferenciadas e histórias particulares no seu engajamento.
(WOODWARD, 2014, p. 38).

Ao falar dos meios sociais, Elias (1994) argumenta que “As unidades sociais que
chamamos nações diferem muito na estrutura da personalidade de seus membros, nos esquemas
através dos quais a vida emocional do indivíduo é moldada sob pressão da tradição
institucionalizada e da situação vigente”. (ELIAS, 1994, p. 49).

Era o que, aparentemente se passava antes do aparecimento desses novos movimentos


sociais, as pessoas comuns e os diferenciados tinham que entrar na tradição institucionalizada
do Estado Nacional, mas que, com o surgimento daqueles e a crise deste, proporcionou a
abertura de caminho para o fortalecimento desses movimentos.

As unidades sociais não estão mais estáveis. Pensando na perspectiva da teoria da


leitura e nas práticas, que plural e contraditoriamente, dão sentido ao mundo, Chartier (1990)
observa que:

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Daí a caracterização das práticas discursivas como produtoras de


ordenamento, de afirmação de distâncias, de divisões; daí o reconhecimento
das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de
interpretação. Umas e outras têm as suas determinações sociais, mas as
últimas não se reduzem a sociografia demasiado simples que, durante muito
tempo, a história das sociedades ditou a das culturas. Compreender estes
enraizamentos exige, na verdade, que se tenha em conta as especificidades do
espaço próprio das práticas culturais, que não e de forma nenhuma passível
de ser sobreposto ao espaço das hierarquias e divisões sociais. (CHARTIER,
1990, p. 28).

Nesta perspectiva, os grupos sociais aqui em estudo ganham dinâmica histórica que, se
diferem do método enraizado pela cultura ocidental tradicional, mostrando que são diferentes
em suas formações identitárias, que por sua vez, exigem pautas especiais nas relações políticas
que requerem que contemplem na divulgação no mundo moderno, na qual, que tem direitos
diferenciados, práticas e costumes específicos que precisam ser valorizados por todos, no
respeito a aqueles que as constroem e que se sentem pertencentes a ele, é o caso dos povos
indígenas.

A construção da identidade e da alteridade

O processo de construção da identidade desses movimentos no século XX, está


diretamente relacionada ao sentido de cultura. Trata-se de identidades culturais, uma vez que
os movimentos assumem também o caráter político identitário, transformando-se em “políticas
de identidade”, que se concentram em afirmar a identidade cultural das pessoas que compõem
um determinado grupo sufocado ou marginalizado até então¹, essa perspectiva política, tem a
ver com o recrutamento de sujeitos por meio de processos identitários, saindo da relação natural
para a construção social do sujeito e da ação coletiva expressa em práticas de grupos
específicas, constituindo, as chamadas identidades políticas².

Pensando em termos de abordagens históricas, Chartier (1990) considera que “as


representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um
diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as
forjam”.

Quanto aos novos grupos em evidência, Santos (2015) considera que:

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Vive-se uma política de valorização de grupos que até pouco tempo eram
vistos de forma preconceituosa, compreendidos como inferiores. Nessa
condição se incluíam índios, negros, mulheres, velhos, crianças, portadores
de necessidades especiais. Hoje, procura-se adequar os espaços a esses
segmentos da sociedade, reservando vagas na política, no trabalho, nas
escolas, nos estacionamentos, nas ruas, adaptando-se caixas eletrônicos,
aprovando estatutos, punindo a discriminação. Tudo isso implicando o
processo de valorização de “pessoas comuns” (SANTOS, 2015, p.316).

As fases finais do século XX, pegando da década de 1970, com mais força nos anos de
1980 até a conjuntura atual, trouxeram uma certa valorização e a ampliação de direitos até
então ignorados pelo Estado Nacional, assim diversos grupos que não se enquadravam com o
modelo tradicional, encontraram espaço para suas reivindicações políticas.

Ainda preso às características deste processo de construção de identidades, para Stuart


Hall (2014):

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do


discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais
históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas
discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. Além disso,
elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder, e são,
assim mais o produto de marcação da diferença e da exclusão do que no signo
de uma unidade idêntica, naturalmente, constituída, de uma “identidade” em
seu significado tradicional - isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma
identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação interna (HALL, 2014,
p. 109-110).

Portanto, essas forças sociopolíticas são construídas dentro de um discurso, formam


unidades a partir da diferença, em oposição ao outro, condição para a construção do processo
de alteridade e de emancipação, espaço estratégias e meios de resistências política.

Enfatizando ainda mais os processos de relações de poder no século XX, Kathryn


Woodward (2014) diz que:

Todas as práticas de significação que produzem significados envolvem


relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é
excluído. A cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar
possível optar, entre as várias identidades possíveis, por um modo específico
de subjetividade. (KATHRYN WOODWARD, 2014, p. 19).

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Na prática, os diversos grupos que ascenderam no decorrer do último século, sejam eles
étnicos, de gênero, entre outros, trabalham de alguma forma no campo das subjetividades.
Nesta condição, cada grupo traça o conjunto de significados identitários que os julga
representar, para a partir daí, definir quem é incluído ou excluído de seus quadros, quem apoia
ou passa a ser visto como adversário. É nesta condição que compreendemos a força que ganhou
o movimento político dos povos indígenas em Roraima a partir das últimas décadas do século
XX.

Notas
[1] SILVA, Tomaz Tadeu, 2014, p.34
[2] Idem, 2014, p.36

Referências
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Difel, 1990.
CANCLINI, Néstor Gárcia. Culturas Hibridas: Estratégias para Entrar e Sair da
Modernidade. 4. ed. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo. 2008.
ELIAS, Nobert. Processo civilizador vol.I. 2ª ed, Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1994.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
SANTOS, Raimundo Nonato G. dos. Entre Cultura Política, memórias e política de
identidade: sujeitos históricos em ação – Boa Vista – Roraima (1970-1980). (Tese de
Doutorado em História Social). São Paulo: PUC, 2015.
SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis: Vozes, 2014.

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A REPRESENTAÇÃO DOS INDÍGENAS NAS FOLHAS DO JORNAL


DO COMMERCIO (1904-1934)

EVELYN MARCELE CAMPOS RAMOS


Universidade Federal do Amazonas, Mestranda
evelynmcr97@gmail.com

Resumo
O presente artigo tem como objeto o estudo da relação entre as práticas e as representações
sobre os povos indígenas na Amazônia presentes na grande imprensa, em especial no Jornal
do Commercio. O recorte escolhido foi o período de 1904 até 1934, coincidente tanto com a
criação do Jornal do Commercio em Manaus, em 1904, quanto com a implementação de uma
nova proposta de política indigenista a nível nacional, conhecida como Serviço de Proteção aos
Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1910.

Palavras-chave: Indígenas; Jornais; Representações.

Introdução

Esse artigo tem como objeto o estudo da relação entre as práticas e as representações
sobre os povos indígenas na Amazônia presentes na grande imprensa, em especial no Jornal
do Commercio. O recorte escolhido foi o período de 1904 até 1934, coincidente tanto com a
criação do Jornal do Commercio em Manaus, em 1904, quanto com a implementação de uma
nova proposta de política indigenista a nível nacional, conhecida como Serviço de Proteção aos
Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1910.
A instituição foi criada pelo decreto nº 8.072, de 20 de junho de 1910 e tinha por tarefa
a pacificação e proteção dos grupos indígenas, bem como o estabelecimento de núcleos de
colonização com base na mão de obra sertaneja. As duas instituições foram separadas em 6 de
janeiro de 1918, pelo decreto Lei nº 3.454, e a instituição passou a ser denominada Serviço de
Proteção ao Índio (SPI).
Sendo assim, podemos observar que no âmbito nacional, a virada de século XIX foi
marcada por grandes mudanças, além de o Brasil se tornar uma República, percebemos que a
política pró-extermínio dá lugar um Brasil “disposto” a ter trabalhadores nacionais indígenas.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Portanto, algumas ideias e discursos propagados na imprensa e entre os legisladores precisam


ser melhor compreendidos e questionados, especialmente no que diz respeito às suas
intencionalidades frente a compreender e formar o Brasil em uma república e nação.
No que diz respeito às fontes, o periódico Jornal do Commercio nos apresenta a
existência de uma imprensa que dá voz ao governo e às elites amazonenses. Assim, através dos
periódicos visualizamos as relações, conflitos e interesses dados entre os “tuteladores”, muitas
vezes protegidos pelo Estado graças às alianças econômicas e políticas, e entre os indígenas
que, diante do mundo do trabalho imposto, estabelecem suas próprias dinâmicas, contatos e
distanciamentos.
Ao estudarmos os periódicos conseguimos apresentar as representações em dois níveis.
Uma análise perpassa as notícias do Jornal do Commercio que repercutiam as mudanças do
início de século XX na cidade de Manaus e o impacto do cotidiano indígena. De outro modo,
diante das práticas e representações desses indígenas se faz necessário ler as entrelinhas de
suas vivências para assim resgatar as suas trajetórias, modos de vida, anseios, lutas e
adaptações. As análises se intercruzam ao nos permitir explanar como os planos de
“modernização” e “urbanização” foram lidos, encarados e interpretados por esses sujeitos e
quais os interesses e mobilizações das elites com essas propostas civilizatórias, nacionais e
legalistas.
Dessa maneira, além de demonstrar a importância da imprensa como fonte histórica
para a reconstrução do passado, podemos expor como os discursos, projetos e articulações
influenciaram nas criações de representações de um cotidiano indígena.

A Manaus ao findar dos oitocentos

Antes de findar o oitocentos e vivenciar a belle époque, a cidade de Manaus, pertencente


a então Província do Amazonas, era um local de múltiplas culturas, de múltiplos fazeres,
especialmente marcada pela presença indígena. No contexto amazônico, mais especificamente

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na cidade de Manaus, vemos um forte desenvolvimento econômico e este período está


diretamente ligado à produção gomífera, produto este que tinha uma demanda internacional e
foi matéria-prima durante espaço de tempo das indústrias de automóveis norte-americana. O
período econômico da borracha foi o início de um processo célere de crescimento demográfico
e urbanização no Amazonas, bem como de um conjunto de modificações na esfera
sociocultural.
Nesse período, a situação econômica era favorável e a pauta principal daqueles que
estavam no poder público no final do século XIX e início do XX era que houvesse uma
remodelação do espaço urbano desenvolvido pelo período econômico da borracha. Até então,
a imagem que se tinha de Manaus estava consolidada através dos relatos dos viajantes e
intelectuais que haviam passado pela região amazônica nas décadas anteriores: um lugar
pequeno, sem maiores ambições de avanço.
Com o objetivo de reorganizar Manaus e deixá-la aparentemente mais receptiva à
entrada do capital internacional, empreendeu-se uma série de reformas estruturais no espaço
urbano e de embelezamento de ruas e edifícios que marcaram a belle époque amazonense,
especialmente durante o governo de Eduardo Ribeiro.
Como resultado, Manaus passou a ser chamada de Paris dos Trópicos e construções
como o Teatro Amazonas e o Palácio da Justiça tornaram-se símbolos desse período da história
amazonense. Nesse momento, o Estado começou a interferir na rotina de Manaus e isso era
uma tentativa de adequar os hábitos dos moradores locais aos padrões da elite estrangeira.
Sendo assim, foram sendo criadas e editadas várias normas de conduta como o Código
de Posturas Municipal e o Regulamento para Veículos na Capital (SAMPAIO, 2016). Para
mais, existia uma preocupação por parte dos governantes com a questão sanitária, o que
promoveu a organização da coleta de lixo na cidade e o início da construção de uma rede de
esgotos.
As transformações econômicas proporcionadas pela Belle Époque no Amazonas
concentraram-se em Manaus e, enquanto isso no interior do estado, se proliferaram os
seringais, sustentando uma rede de produção viciada que expunha os seringueiros, em sua
maioria migrantes nordestinos e indígenas, a situações de trabalho análogo ao de escravo.

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No Jornal do Commercio, edição do dia 15 de setembro de 1908, mostra que naquele


ano ocorreu o XVI Congresso de Americanistas, em Viena, Áustria e neste houveram
denúncias de que o Brasil estava massacrando os índios. Essa denúncia levou o governo federal
a buscar uma ação de proteção leiga e privativa do Estado às populações indígenas.
Neste contexto, de forma nacional surge o Serviço de Proteção aos Índios e Localização
dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN) e o então tenente-coronel Cândido Rondon foi
convidado a dirigir o novo órgão criado. Ele imprimiu ideias positivistas a orientação e às
atividades da instituição. Estabeleceu a chamada política de integração, em que o índio era
reconhecido como sujeito transitório, ou seja, enquanto estivesse sendo preparado para
ingressar na “civilização”. Tal política indicava o fim da diversidade étnica e cultural, pois
reconhecia essa diversidade apenas como um estágio de desenvolvimento que se concluiria
com a incorporação do índio à sociedade brasileira. (ROCHA, 2011)
Voltando à capital, percebemos que as autoridades tinham como objetivo manter
afastada das rotas comerciais e centros residenciais de alto nível a população pobre e como
consequência houve uma ocupação desorganizada das regiões mais distantes da cidade. Isso
revela exclusão social que ocorria por detrás do “fausto” do período econômico da borracha,
onde uma máquina pública funcionava a favor das demandas da elite detentora do capital, no
entanto, os indígenas que estavam em Manaus e proximidades se adaptavam constantemente
aos impulsos e transformações que a modernidade exigia. (BRAGA, 2016)
O Estado, ao tentar obrigar a civilização aos índios, com o discurso da modernidade,
inseriu em sua cultura costumes estrangeiros como: andar calçados e vestidos, bem como
modificar o formato de suas moradias. Falando especificamente dos indígenas, a entrada
estrangeira em Manaus os afastou do centro da capital, mas os índios através de práticas, não
abriram mão completamente de seus modos de vida e de sua cultura, houve muita luta e
aglutinamento de práticas culturais.

O Jornal do Comércio e os Indígenas

Pensar o jornal como fonte é algo que nos possibilita enxergar um rico instrumento de
pesquisa. Trabalhar com comunicação é saber respeitar e investigar seus marcos sociais e deste
modo, saber ler suas relações. O Jornal do Commercio é nada mais nada menos do que um

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agente histórico de seu tempo, pois o mesmo se articula no meio em que está inserido, conforme
o que define Barbosa e Morel:

Na tradicional historiografia identificada como historicista, a imprensa


aparecia em geral como fonte privilegiada na medida em que era vista como
portadora dos "fatos" e da "verdade". Em seguida, com a renovação dos
estudos históricos e a ênfase numa abordagem que privilegiava o
socioeconômico, a imprensa passou a ser relegada à condição subalterna, pois
seria apenas "reflexo" superficial de ideias que, por sua vez, eram
subordinadas estritamente por uma infraestrutura socioeconômica. E a
subsequente renovação historiográfica, com destaque às abordagens políticas
e culturais, redimensionou a importância da imprensa, que passa a ser
considerada como fonte documental (na medida em que expressa discursos e
expressões de protagonistas) e também como agente histórico que intervém
nos processos e episódios, não meros “reflexos”.(BARBOSA; MOREL,
2008).

Heloísa Cruz e Maria do Rosário Peixoto no artigo “Na oficina do historiador:


conversas sobre história e imprensa” nos dizem que os jornais e as revistas são espaços sociais
construídos de intenções, interesses e que sua fala é articulada conforme as pessoas que estão
por detrás daquele mecanismo. A imprensa e a mídia disseminam temas e estimulam opiniões.
O conceito de representação pensado através do jornal vai se mostrar como uma
construção social em que os sujeitos visam construir o mundo através do que se foi dado a
interpretar por via das notícias publicadas. Roger Chartier reflete que as sociedades são
construídas por diferentes grupos, que manifestam diferentes visões de mundo, o que podemos
agregar com o jornal, devido à fonte não ser imparcial. (CHARTIER, 2002)
A importância da Imprensa nas sociedades modernas é incontestável. Mais que um
veículo de comunicação, sua dimensão enquanto força de transformação social impregnou a
história de povos e países. O Jornal tem o poder de dar voz ou silenciar, contestar e defender
os sujeitos de uma sociedade.
Sabe-se que a história da imprensa no Amazonas surge atrasada, comparada a outros
centros urbanos modernos (Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Belém). Quando finalmente a
imprensa chegou ao Estado do Amazonas, nota-se que o principal fator para sua chegada foi o
período econômico da borracha como o interesse nesse momento era inserir novos padrões na

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sociedade manauara através de notícias sobre moda, crimes, com temas relacionados ao
comércio da borracha e escândalos políticos.
O Jornal do Commercio ganhou espaço na capital no ano de 1904 e em sua primeira
fase, seu fundador, Joaquim Rocha dos Santos, instalou sua redação na Avenida Eduardo
Ribeiro n° 11, com o slogan de Contans, fidelis, fortis cedo nulli (Constante, fiel, forte eu me
rendo a ninguém). Após o seu ano de estreia, Joaquim Rocha morre e nos quatro meses que se
passaram após a sua morte o jornal fica inativo, voltando apenas no ano de 1906. No seu novo
momento, o Jornal do Commercio estabelece ares de jornal-empresa e passa a publicar notícias
de fundo nacional e internacional (DUARTE, 2015) e este apresentava tendências políticas e
conforme a historiadora Maria Luiza Ugarte Pinheiro, o Jornal do Commercio era um periódico
tradicionalmente ligado aos grupos dominantes. (PINHEIRO, 2001)
Ao nos debruçarmos nas folhas do periódico Jornal do Commercio notamos o impacto
e repercussões de como as mudanças do início de século XX na cidade de Manaus
influenciaram o cotidiano indígena. Além de demonstrar a importância da imprensa como fonte
para a reconstrução do passado, bem como influenciar as criações de representações de um
cotidiano.
No dia 10 de janeiro de 1906, o Jornal do Commercio, um dos principais periódicos
lidos em Manaus, publicou uma matéria sobre os índios Parintintim, os classificando como
“indomesticáveis selvagens”.
Os jornais, de forma mais recorrente, divulgavam notícias hostis e negativas, ajudando
a perpetuar o discurso de que os índios eram perigosos, e deviam ser proibidos do convívio
social. Ao pesquisarmos os periódicos, notamos também notícias que apresentam as tutelas
indígenas como algo naturalizado, tanto que o jornal publica que religiosos e diretores de vilas
brigaram quando divergiram sobre o destino de uma criança indígena em nossa região (Ver:
Jornal do Commercio, 14 de agosto de 1904). Esse periódico também apresenta a relação de
servidão que alguns indígenas passavam, isso é notório quando vemos anúncios de indígenas
fugidos de casas de patrões (Ver: Jornal do Commercio, 04 de setembro de 1904).
De forma geral, o Jornal do Commercio apresenta de forma indireta impacto e
repercussões de como as mudanças do início de século XX na cidade de Manaus afetaram o
cotidiano indígena e, ao percebermos isso, entendemos a importância da imprensa como fonte

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para a reconstrução do passado, bem como influenciar as criações de representações de um


cotidiano. No que diz respeito aos Indígenas, vemos que os grupos lutaram e resistiram às
mudanças impostas pela elite amazonense.

Referências

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inventário 1808–2008. Jornal da Rede Alcar, Florianópolis, Ano, v. 3.
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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

RELATO DE EXPERIÊNCIA DA ATIVIDADE DE PRESERVAÇÃO E


CONSERVAÇÃO: ACERVO J.G ARAÚJO

FABIANA RODRIGUES BATISTA (1), FRANCILENE SILVA DE OLIVEIRA (2)


(1) Universidade Federal do Amazonas, Graduanda
fabianarodriguesrb@gmail.com
(2) Universidade Federal do Amazonas, Graduanda
francileneo97@gmail.com

Resumo
O presente artigo relata a experiência da atividade de Preservação e Conservação no Acervo
J.G Araújo, o objetivo deu-se durante as atividades de estágio em arquivologia apresentar parte
deste acervo da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e os métodos de conservação e
preservação realizados no local. Para tanto, foram utilizados materiais e equipamentos
adequados em condições específicas para a realização das atividades. Após este processo
percebeu-se visualmente uma melhoria em relação ao estado documental em que o acervo se
encontrava, dessa forma, refletindo positivamente na estética do arquivo bem como à vida útil
da documentação. Constatou-se durante o estágio em Arquivologia, que o acervo local, requer
investimentos estruturais, visando a preservação documental dos mesmos. Portanto, este
trabalho oportunizara um melhor planejamento local para que esse acervo seja preservado e
conservado da melhor forma possível, considerando as condições encontradas, facilitando
dessa forma, o acesso e manuseio por pesquisadores e outros profissionais que busquem o
acesso a tais informações.

Palavras-chaves: preservação; conservação; arquivos.

Introdução
A preservação pode ser definida como o conjunto de medidas e estratégias de ordem
administrativa, política e operacional que contribui direta ou indiretamente para a integridade
dos materiais/objetos. “Seria toda a ação que se destina a salvaguardar ou a recuperar as
condições físicas e proporcionar permanência e durabilidade aos materiais dos suportes que
contém informação” (SILVA, 2004 p. 9), ou seja, a preservação nos permite utilizar medidas

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de proteção do patrimônio, como um conjunto de métodos, que vão desde intervenções físicas
até políticas públicas. De modo que estas iniciativas são destinadas à preservação do
patrimônio para as gerações futuras.

A preservação se fará indispensável quando se busca a continuidade, e a não degradação


de algo que é considerado importante, tanto para si como indivíduo, quanto para a população
como um todo. O Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (MARQUES, 2005 p.
135) define preservação como “Prevenção da deterioração e danos em documentos, por meio
adequado do controle ambiental e/ou tratamento físico e/ou químico”, tendo como objetivo,
prolongar ao máximo a vida útil dos documentos.

Franciele Merlo e Glaucia Konrad (2015 p. 32), afirmam que:

A preservação documental é de extrema importância, pois visa a


proteger os documentos de possíveis degradações que o acervo possa
sofrer. Para que ocorra a preservação, é necessária a observação da
ação dos vários agentes de degradação, que podem ser internos ou
externos ao suporte em que se encontra a informação [...]. Cabe
salientar que, independente da finalidade da guarda dos documentos, a
preservação é imprescindível para manter o bom estado físico dos
suportes, evitando assim a deterioração do patrimônio documental.
Para que a preservação aconteça de maneira ampla e eficaz, deve-se haver um estudo
acerca de seus respectivos suportes, tendo em vista que há uma avaliação e um tratamento
específico para cada tipo de material. Por sua vez, a conservação abrange um conjunto de
procedimentos estabilizadores que visam desacelerar o processo de degradação de documentos
ou objetos. “A conservação consiste em métodos técnico-científicos capazes de desacelerar o
processo de deterioração instalado em suportes de informação”. (CORADI, 2008 p. 355). Seu
maior objetivo é desenvolver ações de prevenção contra possíveis danos, além de conscientizar
quanto ao correto manuseio e utilização dos vários suportes que a informação possa ter.
Preservar e conservar um documento envolve não apenas cuidar de sua estrutura física, mas
principalmente de seu conteúdo, de seu valor como obra.

Segundo Paes (1997, p. 141) a conservação “compreende os cuidados prestados aos


documentos e, consequentemente, ao local de sua guarda”. Através da conservação pode-se
assegurar as condições físicas dos documentos no arquivo, preservando-o contra agentes de

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degradação. Na Conservação Preventiva, procura-se eliminar os principais fatores de


degradação, ou seja, intervém no meio em que o objeto se encontra, tendo por objetivo
aumentar a expectativa de vida dos documentos e suas ações têm ênfase em planejar, prevenir
e evitar a deterioração dos mesmos.

O objetivo da conservação preventiva é desenvolver ações de


prevenção contra possíveis danos aos livros, além de conscientizar
quanto ao correto manuseio e utilização destes. O programa de
preservação e conservação destaca a importância de “conservar para
não restaurar”, poupando o acervo de intervenções custosas e
exaustivas. (CORADI; STEINDEL, 2008 p. 356).
Portanto, a conservação preventiva, como o próprio nome já sugere, visa promover
métodos que prolonguem a vida útil documental, como por exemplo, a higienização de
documentos. Sendo esta uma das ferramentas de conservação preventiva de grande eficiência,
objetivando mantê-los o mais próximo possível do estado físico em que foram criados
originalmente.

Biografia J.G Araújo

Nascido em 14 de fevereiro de 1860, em Portugal, no Concelho de Póvoa do Varzim, o


Comendador Joaquim Gonçalves de Araújo, foi um comerciante que ainda muito jovem veio
para o Amazonas onde se estabeleceu atuando no comércio varejista e indústrias de
processamento e borracha e castanha. Em sua vida trabalhou principalmente com comércio,
indústria e transporte fluvial, atuando tanto na capital como nos interiores do Amazonas,
possuía armazéns no centro da cidade de Manaus e trabalhou também com importação e
exportação. Assim, enquanto grandes empresas faliam, o império de JG Araújo se fortalecia.
Embora o cenário econômico que envolvia o ciclo da borracha estivesse em crise, o volume de
recebimento de borracha pela empresa de J.G. Araújo & Cia não diminuiu. Esse fator pode ter
contribuído para a estabilidade financeira da organização, que registrava um volume maior de
exportação, compensando a baixa dos preços da borracha. (SOUZA, 2011 p. 62).

No dia 21 de março de 1940, em Lisboa, o Comendador veio a falecer, deixando um


legado de profunda admiração e reconhecimento de todo o seu trabalho na história do Estado
do Amazonas, onde consolidou sua vida profissional e patrimônio.

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O acervo da firma J. G. Araújo

A empresa J.G Araújo adquiriu grande atuação em Manaus no período da borracha,


bem como nos municípios do Amazonas e nos estados do Brasil, chegando a atuar também em
outros Países do exterior. Sendo no final dos anos 80 que a atuação da empresa começa a
diminuir, com o fechamento de filiais que desencadeou definitivamente o fechamento da
empresa. A partir deste momento e após um incêndio ocorrido em um dos armazéns, que
destruiu grande parte da documentação empresarial da firma, ocorre a doação de todo o seu
acervo documental existente para a Universidade Federal do Amazonas, sendo recebido pelo
Centro de Documentação do Amazonas (CEDAM) que além de receber a documentação
também ajudou na criação do Museu Amazônico, sendo este o local em que o acervo
permanece, portanto, sob a guarda e responsabilidade.

Os documentos são datados a partir do ano de 1877 até 1992. São documentos
numerosos, de volume documental considerável que registram a história da empresa em todos
os seus ramos de atuação, como o comércio, indústria, extrativismo e transporte. O acervo é
composto de uma grande diversidade documental como: coleção de letras de câmbio, cartas
manuscritas de aviados da empresa, recibos de pagamentos, guias de embarque, diário de
navegação, entre outros. Sendo a maior parte acervo composta por documentos contábeis.

Tabela 1. Divisão da empresa (por fases)

Nome da Período de Atividades realizadas


empresa atividade

Araújo Rosas e 1877 a 1896 Exportação de borracha, castanha, e piaçava para outros estados do
Irmão Brasil além de Portugal.
Importação de produtos de aviamento, carvão, botas, capas,
material de construção, produtos para pesca, armas, munições e
pólvora. Além de sal, batata e manteiga. Sendo os municípios de
Codajás, Tabatinga e São Gabriel da Cachoeira os principais locais

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de maior fornecimento.
Além disto a empresa realizava atividades com secos, molhados e
fazendas de retalho.

Araújo Rosas e 1892 a 1904 A atividade de exportação manteve-se presente na empresa, eram
CIA. exportados produtos como: Pirarucu, tartaruga, salsa, copaíba,
madeira entre outros, ampliando o leque comercial com outros
países estrangeiros.
A Importação de produtos como: vinhos, bacalhau, ameixa, azeite,
cerveja, material de construção, instrumentos musicais, calçados
entre outros eram realizadas durante esta fase da empresa. Durante
este período a Firma torna-se agente da Companhia Brasileira de
Navegação a Vapor.

J.G. Araújo 1904 a 1925 Ocorreu a expansão das atividades da empresa para Porto Velho,
região do Rio Madeira, Iquitos, Rio Branco, e Sta. Isabel do Rio
Negro, levando para esses lugares os produtos importados para
serem comercializados e exportando os produtos regionais.
É criada também uma usina de beneficiamento de castanha. Em
Porto Velho a empresa passa a atuar no ramo da pecuária
desenvolvendo gados de criação em Roraima.

J.G. Araújo e 1925 a 1989 Com os efeitos da crise da atividade extrativa a qual afetou
Cia Ltda diretamente a exportação de borracha do Norte, a empresa procurou
diversificar e ampliar suas atividades com o objetivo de evitar sua
decadência.
Cria a Sociedade de Comércio e Transporte, empresa voltada para
as atividades de navegação e agropecuária. Neste período a
empresa torna-se representante nacional da Texas Company
(TEXACO) empresa distribuidora de petróleo e derivados.
Fonte: Museu Amazônico.

Descrição e análise da situação do acervo


O acervo que se encontra no Museu Amazônico possui medidas de dimensão e suporte
textual de 476,1m; e bibliográfico 0,75m. Para ter-se conhecimento do volume da quantidade
de massa documental da documentação trabalhada no Prédio anexo no bairro Aparecida,
durante o período de estágio supervisionado com a duração de quatro semestres (2017 a 2018),
foram realizadas medições por parte dos estagiários do local, no dia 18 de julho de 2017, sob
a supervisão do Arquivista da UFAM, Bruno Trece.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Cabe ressaltar que o acondicionamento do acervo no Prédio da antiga Faculdade de


Farmácia não condiz a forma de acondicionamento de todo o acervo. Não havendo outros
documentos de diferentes suportes que não sejam em papel e não existindo documentos de
acesso restrito.

Os documentos encontravam-se aglomerados em uma sala no segundo andar do Antigo


prédio da faculdade de Farmácia da UFAM, localizado na Rua Comendador Alexandre
Amorim, 330 - Aparecida, Manaus – AM, enquanto a parte já higienizada e arquivada em caixa
box encontravam-se no Museu Amazônico. Os documentos do Arquivo encontravam-se no
piso, acondicionados em sacos plásticos, formando uma grande massa documental. Existem
estantes que gradativamente, os documentos estão sendo acondicionados.

Figura 1. Documentos aglomerados, comprimento: 2,15M, largura: 1,90M, altura: 1,25M. Fonte:
Imagens coletadas pelas próprias autoras (2017).

Figura 2. Documentos aglomerados, comprimento: 1,80M, largura: 0,80M, altura: 0,90M


Fonte: Imagens coletadas pelas próprias autoras (2017).

Levantamento das condições do acervo

Trabalhou-se somente com parte do acervo, especificamente a 4ª fase. A área


inicialmente destinada ao Arquivo, no 2° andar, possui cerca de 70m2. O Arquivo que se

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

encontrava no térreo foi transferido para o segundo andar, o local foi projetado para o
funcionamento de laboratórios e salas de aula. O prédio, de uma maneira geral, necessita de
reformas estruturais, por tratar-se de um local antigo e com sinais de deterioração, devido ao
decorrer dos anos. O arquivamento em caixas box é recomendado para o armazenamento de
notas e documentos em papel, no que diz respeito à proteção física do documento com relação
ao pó, à luz e ao atrito do manuseio. Outro fator relaciona-se à mensuração do espaço ocupado.

Relato de experiência
De acordo com o que se pôde observar na documentação do local, as atividades
desenvolvidas são principalmente de higienização, conservação e arquivamento dos
documentos. Onde encontram-se previamente organizados em malotes identificados por suas
fases e datas. Para o arquivamento, foram utilizadas caixas box de plástico, onde são
armazenados em prateleiras de ferro, não tendo nenhum processo de eliminação ou
transferência destes documentos. Primeiramente houve-se noções básicas sobre os
equipamentos de proteção individual (EPI´s), com o professor Bruno Trece, sobre a maneira
certa de usá-los e para que servem cada um deles. Foram utilizados jalecos, luvas, máscaras,
óculos e toucas para manusear os documentos, sem causar danos ao mesmo.

Para realizar as atividades de higienização nos documentos, obteve-se um treinamento


específico, quanto aos cuidados ao manusear os documentos, principalmente os mais frágeis
que precisam de mais cuidado e atenção. Para que não ocorressem riscos de novos danos, como
também conhecimentos razoáveis para identificação dos agentes nocivos para agilizar e
facilitar a limpeza. A princípio, a higienização era realizada na sala onde os documentos
encontravam-se aglomerados, no entanto, posteriormente foram realocados para uma sala mais
adequada para a realização desta atividade, cujo nome denomina-se Lacord – Laboratório de
Conservação e Restauro de Documentos. Coordenado pelo Prof. Me. Leandro Coelho de
Aguiar (FIC UFAM), e pelo arquivista da UFAM, Bruno Trece. A sala por possuir bancadas
altas e espaço maior, se tornou ideal para o melhor desempenho das atividades com a
documentação no local, dessa forma proporcionando aos estagiários condições mais favoráveis
às ações executadas. O processo de higienização dos documentos se inicia basicamente na
escolha do malote com o qual se quer trabalhar, a maioria deles já possui identificação de

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fase/ano, posteriormente, o malote deve ser levado à bancada de higienização, desembrulha-se


do pacote, retirando as fitas ou barbantes que o mantém fechado.

Figura 4. Massa documental acumulada à espera do processo de higienização.


Fonte: Imagens coletadas pelas próprias autoras (2017).

Deve-se ressaltar que a higienização documental é necessária e deve acontecer de


maneira contínua, no que diz respeito à vida útil documental. Em diversos acervos este
processo é bastante comum, principalmente nos arquivos permanentes, visto que o objetivo é
trazer ao documento condições de longevidade.

Figura 5. Documentos a serem higienizados.


Fonte: Imagens coletadas pelas próprias autoras (2017).

Em seguida, é necessário a retirada de todos os grampos, clipes e sujidades que


estiverem presos ao documento, depois disto é utilizada a trincha suavemente e com cuidado
pelo documento de baixo para cima, processo este feito individualmente, na frente e no verso
do documento, com movimento mecânico de varredura, retirando toda a sujidade que for
encontrada.

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Figura 6. Documento devidamente higienizado com a retirada de grampos e sujidades.


Fonte: Imagens coletadas pelas próprias autoras (2017).

Para a retirada dos grampos e clipes utilizou-se um extrator, e em alguns casos mais
delicados um bisturi, quando o objeto é pequeno e está comprimido, faz-se necessário o uso
deste instrumento, visando não desgastar o suporte do documento.

Figura 7. Mesa de higienização


Fonte: Imagens coletadas pelas próprias autoras (2017).

E para a correta guarda da documentação, ocorreu a identificação com o título, assunto,


ano e a fase, informações estas já contidas em cada malote do acervo e que futuramente poderá
auxiliar com rapidez e agilidade na localização dos documentos ao serem solicitados por
usuários.

Além disso, houve atividades de planificação, pelo fato de alguns documentos estarem
amassados ou com marcas de dobraduras, almejando-se que o documento volte à sua forma
plana, utilizou-se placas de vidro, tela, papel mata borrão, água e pincel. Com o objetivo de
deixar o documento o mais plano possível. Primeiro é molhada a ponta do pincel com água,
posteriormente com a ponta do pincel acompanha-se o desenho da dobradura umedecendo esta
parte, buscando ao máximo eliminar as marcas de dobraduras do documento.

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Considerações finais

Constatou-se durante o estágio em Arquivologia, que o acervo requer investimentos


estruturais, visando a sua preservação a longo prazo. Os arquivos encontrados e sua forma de
arquivamento estão em processo de adaptação e adequação às boas práticas arquivísticas,
buscando manter-se um padrão de qualidade documental. Portanto, este trabalho oportunizara
um melhor planejamento local para que este acervo seja preservado, facilitando dessa forma o
manuseio por pesquisadores e outros profissionais que busquem o acesso. Logo, é necessária a
implementação de novos gerenciamentos, como a adoção de sistemas de informatização e
digitalização, com o intuito de garantir a preservação e o acesso aos documentos.

Referências
CENTRAL DE FAVORITOS (2020). Preservação, conservação e restauração de
documentos de arquivo. Disponível em:
<https://centraldefavoritos.com.br/2016/09/05/preservacao-conservacao-e-restauracao-de-
documentos-de-arquivo/>. Acesso em 23 fevereiro de 2020.

CORADI, Joana Paula. STEINDEL Gisela Eggert. Técnicas básicas de conservação e


preservação de acervos bibliográficos. Florianópolis: Revista ACB, 2008.

MARQUES DA FONSECA, Vitor Manoel et al. Dicionário brasileiro de terminologia


arquivística. 2005.

MERLO, Franciele; KONRAD Glaucia. Documento história e memória: a importância da


preservação do patrimônio documental para o acesso à informação, 2015.

PAES, Marilena Leite. Arquivo: teoria e prática. 3. Ed. Rio de Janeiro: FGV, 1997.

SILVA, Sérgio Conde de Albite. Algumas Reflexões sobre Preservação de Acervos em


Arquivos e Bibliotecas. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1998.

SILVA, Sérgio Conde de Albite. Ciência e Tecnologia na Preservação da Informação: Um


desafio político. Acervo, v. 17, n. 2, p. 41-70, 2004.

SOUZA, Antonio Klinger da Silva. Comércio, acumulação e poder: a empresa de J.G.


Araújo & Cia. Ltda. Em boa vista do Rio Branco. 2011. 115 f. Dissertação [Mestrado em
Sociedade e Cultura na Amazônia]. Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na
Amazônia. Universidade Federal do Amazonas, 2011.

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TEIXEIRA, Lia Canola; GHIZONI, Vanilde Rohling. Conservação preventiva de


acervos. Florianópolis: FCC Edições, 2012.
UFAM (2020). ACERVO DOCUMENTAL. Museu Amazônico, 2019. Disponível em:
<https://www.museuamazonico.ufam.edu.br/acervo-documental>. Acesso em: 23 fevereiro
de 2020.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

A SALVAGUARDA DA MEMÓRIA DO JUDICIÁRIO PARAENSE A


PARTIR DOS DOCUMENTOS DE ARQUIVO: UMA ANÁLISE
PRELIMINAR DA PRESERVAÇÃO DOCUMENTAL NA COMARCA
DE BRAGANÇA-PA

FILIPE DE SOUSA MIRANDA


Universidade Fedeal do Pará, Mestrando
filipesousamyranda@gmail.com
Resumo

Nos últimos anos, o Judiciário brasileiro vem reconhecendo paulatinamente a necessidade de


gerir e preservar seus acervos documentais. A constituição de programas de gestão documental
e preservação da memória denota um olhar que compreende estes registros como vestígios
materiais, a partir dos quais é possível erigir uma memória institucional. Partindo deste
pressuposto, o presente trabalho como desdobramento do anteprojeto de pesquisa aprovado
pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências do Patrimônio Cultural da Universidade Federal
do Pará, se propõe a analisar, de maneira ainda preliminar, as ações implementadas pelo
Tribunal de Justiça do Estado do Pará visando a preservação, salvaguarda e difusão do acervo
arquivístico permanente da Comarca de Bragança-PA. A primeira destas ações diz respeito a
assinatura do convênio de cooperação técnica Nº 021/2017 e a mais recente refere-se à
transferência de parte do referido acervo a unidade do Arquivo Regional de Belém. O texto
problematiza até que ponto as diretrizes estabelecidas pelos programas de gestão documental
do Judiciário são implementadas, dadas as singularidades da realidade de cada comarca. Ao
passo em que aponta a necessidade de considerar os usos e apropriações que os cidadãos fazem
do arquivo no processo de tomada de decisões a respeito de sua preservação.

Palavras-chave: Documento; Arquivo; Judiciário

Introdução

A instituição de bases legais para a constituição de uma política pública de gestão e


preservação dos documentos de arquivo no âmbito do Estado brasileiro data do final do século
XX e está intimamente relacionada ao movimento de redemocratização. A Constituição
Federal de 1988, símbolo desse processo, em seu artigo 216 inciso IV, declara que os

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

documentos integram o Patrimônio Cultural nacional. Logo, sua proteção e promoção são
atribuições do Poder Público com a colaboração da comunidade (BRASIL, 1988).

Em 8 de janeiro de 1991, publicou-se a Lei 8.159, que ficou conhecida como “Lei de
Arquivos” e que dispõe sobre a Política Nacional de Arquivos públicos e privados (BRASIL,
1991). A mesma configura-se um marco no reconhecimento legal da proteção aos documentos
de arquivo e da necessidade da implementação de políticas de gestão documental junto às
instituições públicas e privadas, para sua preservação e disponibilização à sociedade. Os
arquivos passam a ser visualizados como importantes instrumentos para a garantia do acesso à
informação e do direito à memória, em oposição a ferrenha censura levada a cabo pelo regime
ditatorial nos anos precedentes.

De acordo com Márcia Eckert Miranda (2014, p.191-192) esta perspectiva de que os
arquivos são ferramentas imprescindíveis para o usufruto de direitos, como o acesso à
informação, além, de fornecerem subsídios para a construção de um olhar reflexivo sobre um
passado por vezes doloroso, data do pós- segunda guerra. Neste contexto, o acesso à
informação é declarado direito universal e os documentos de arquivo passam a ser comumente
tomados como provas materiais dos crimes contra a humanidade cometidos durante o conflito.

No que concerne os acervos documentais do Judiciário brasileiro, Moraes e Fleming


ressaltam que:

Somente nos últimos 20 anos as instituições do Judiciário voltaram-se para a


consolidação de uma política de preservação, organização e divulgação dos
seus acervos, e mais que isso, para a produção de conhecimento sobre essa
massa documental acumulada, que tem se desdobrado em trabalhos voltados
ao resgate e reconstituição da memória (2019, p. 1709).

Neste ínterim, em dezembro de 2008, a partir de Termo de Cooperação celebrado entre


o Conselho Nacional de Justiça - CNJ e o Conselho Nacional de Arquivos - Conarq, foram
lançadas as bases para a criação do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do
Poder Judiciário – Proname. Este tem por função desenvolver mecanismos de gestão de
documentos que atendam às peculiaridades do Judiciário brasileiro. Posteriormente em 2011,
por meio da Recomendação nº 37 de 15 de agosto, o CNJ vai recomendar aos Tribunais de
Justiça a observância das normas de funcionamento do Proname. Sem, contudo, retirar destes

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a autonomia que lhes permitia implementar seus planos de gestão documental levando em conta
as especificidades de cada região e realidade.

Em 2020 o CNJ, por meio da Resolução nº 316 de 22 de abril, instituiu o 10 de maio


como o dia da Memória do Poder Judiciário. A data escolhida faz referência a criação da Casa
de Suplicação do Brasil, pelo Alvará Régio de 10 de maio de 1808. No texto da resolução
aprovada, ressalta-se a importância da memória “como parte do Patrimônio Cultural brasileiro
(art. 216 da Constituição Federal) e como componente indispensável ao aperfeiçoamento das
Instituições em geral e do Poder Judiciário em particular;” (CNJ, 2020a, p. 01). A preservação
da memória no âmbito do Judiciário é tida como ação capital para o “conhecimento da história
da Justiça no País e sua evolução” (ibid., p.02). A partir dessa premissa, os documentos de
arquivo, assim como os registros museológicos e biblioteconômicos, são apresentados como
testemunhos das transformações vivenciadas pela sociedade brasileira ao longo dos anos, sendo
essenciais à compreensão da história do país, a partir do Judiciário.

Recentemente, em unanimidade, o CNJ aprovou a Resolução nº 324 de 30 de junho de


2020, demarcando mudanças significativas na sua política de gestão documental e preservação
da memória. O Proname, antes recomendação, converteu-se em determinação aos Tribunais, e
pela primeira vez se conceituou, para além da gestão documental, o que conforma a “gestão da
memória” no Judiciário brasileiro:

II – Gestão da Memória como o conjunto de ações e práticas de preservação,


valorização e divulgação da história contida nos documentos, processos,
arquivos, bibliotecas, museus, memoriais, personalidades, objetos e imóveis
do Poder Judiciário, abarcando iniciativas direcionadas à pesquisa, à
conservação, à restauração, à reserva técnica, à comunicação, à ação cultural
e educativa (CNJ, 2020b, p.03).

Tanto no texto da Resolução nº 316/2020, quanto no trecho citado acima, é possível


abstrair uma estreita relação entre a memória da instituição, os documentos produzidos no
cotidiano de suas atribuições e seus arquivos. Entende-se que a preservação e o acesso às
informações registradas nos documentos configuram um dos mecanismos essenciais para a
preservação da memória do Judiciário brasileiro.

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No que diz respeito especificamente ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará - TJPA,


desde o ano de 2010 este disciplinou seu Programa de Gestão de Documentos, por meio da
Resolução nº 011/2010 – GP. Esta reconhece o valor dos documentos produzidos no cotidiano
de suas atividades, enquanto instrumentos que fornecem importantes subsídios para a tomada
de decisões, o exercício de direitos constitucionais, além de atuarem como indispensáveis
aportes no que tange a preservação da memória do próprio órgão.

No entanto, se as orientações ali definidas começaram a ser postas em prática na


Comarca de Belém, o mesmo não se pode dizer de grande parte das comarcas localizadas no
interior do estado do Pará. Estas realidades, díspares no que diz respeito a preservação, acesso
e difusão dos acervos documentais judiciários, leva-nos a questionar até que ponto as diretivas
estabelecidas pelos programas e recomendações anteriormente citadas são efetivamente
aplicadas pelas diversas unidades judiciárias espalhadas pelo país, sobretudo, aquelas
localizadas em regiões interioranas.

Partindo desse pressuposto, o presente trabalho, como desdobramento do anteprojeto


de pesquisa aprovado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências do Patrimônio Cultural
da Universidade Federal do Pará - UFPA, se propõe a analisar, de maneira ainda preliminar,
as ações implementadas pelo TJPA visando a preservação, salvaguarda e difusão do acervo
arquivístico permanente da Comarca de Bragança-PA. A primeira delas diz respeito a
assinatura do convênio de cooperação técnica Nº 021/2017, entre o TJPA e a UFPA – Campus
de Bragança, via Faculdade de História, que originou o Projeto Preservação Documental e
Organização do Arquivo Histórico do Fórum da Comarca de Bragança-PA – PRODOC. A
segunda e mais recente, refere-se à transferência de parte do acervo a unidade do Arquivo
Regional de Belém - ARB.

A preservação dos documentos de arquivo na Comarca de Bragança-PA

Até o ano de 2017, mesmo após a instituição do Proname e do Programa de Gestão de


Documentos do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, o arquivo da Comarca de Bragança-PA
era composto por um universo de registros acumulados desordenadamente em uma pequena
sala, localizada no térreo do prédio onde funciona o Fórum da Comarca de Bragança-PA. Os

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acervos correntes, intermediário e permanente aglomeravam-se no mesmo espaço, sem


qualquer instrumento de classificação, junto a objetos como computadores e materiais
apreendidos, usados como elementos comprobatórios em processos judiciais de ordem
criminal. Logo, não havia também qualquer tipo de controle ambiental de temperatura e
umidade, facilitando assim a proliferação da ação de insetos ou roedores, levando muitos
registros a um alarmante e avançado estado de deterioração, que poderia culminar em sua perda
definitiva. Além disso, o Fórum da Comarca de Bragança-PA não dispõe de nenhum
Arquivista no seu quadro de servidores.

Obviamente este cenário acarretou uma série de contratempos a instituição, que já não
dispunha de mecanismos eficientes para fornecer informações que estivessem contidas no
referido arquivo. Neste sentido é válido fazer menção às ideias de Janice Gonçalves (2013). A
referida autora aponta que para a efetividade do acesso aos documentos públicos, é
imprescindível, para além dos dispositivos legais existentes, condições adequadas de
organização e conservação física dos documentos. Em sua concepção o acesso está imbricado
a implementação da gestão documental (GONÇALVES, 2013).

Neste cenário, em 2017 o PRODOC iniciou suas atividades. Estas foram oficializadas
pelo Convênio de Cooperação Técnica TJPA Nº 021/2017, celebrado entre este Tribunal e a
UFPA, Campus de Bragança, via Faculdade de História. O documento estabelece em sua
cláusula primeira, como finalidade da coligação entre as instituições:

[...] a disponibilização da documentação que compõe o Acervo Histórico de


documentos judiciais do TJ/PA, localizado na Comarca de Bragança, anterior
ao ano de 1970, para que seja tratado, catalogado, controlado e preservado,
garantindo o acesso e a manutenção da memória social às gerações futuras,
além da realização de pesquisas científicas na construção do conhecimento
da história das relações sociais e culturais da Amazônia (TJPA, 2017, p. 01).

Algo a ser analisado neste texto é a relação estabelecida entre a preservação deste
acervo documental e a garantia do acesso e da manutenção da memória social às gerações
futuras. Aldabalde e Grigoleto (2016) comentam que arquivo e memória não são sinônimos,
como frequentemente se associa, porém, estão inter-relacionados. Em sua concepção “os
documentos de arquivo e os arquivos podem vir a ser ativadores da memória” (ibid., p. 12).

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Partindo desta compreensão é possível visualizar os documentos de arquivo, aos quais o texto
do convênio se refere, como potenciais suportes de memória. Esta perspectiva também está em
conformidade com o disposto na Resolução nº 324/2020.

A Memória, para Jacques Le Goff (1990), conforma uma instância dinâmica que
permeia a vida em sociedade. A mesma é sujeita a retraimentos e transbordamentos e
configura-se componente indelével daquilo que se entende por identidade, seja ela individual
ou coletiva.

Michael Pollak (1989), ao falar da memória, “essa operação coletiva dos


acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar” (p. 09), discute sua
capacidade de despertar naqueles que dela compartilham um sentimento de pertencimento para
com determinada coletividade.

Destarte, a memória coletiva também se apresenta enquanto cenário de conflitos e


disputas, podendo ser utilizada como mecanismo de manipulação e dominação. Pois, à medida
que seleciona o que deve ser rememorado pelos grupos, também promove silenciamentos e
esquecimentos (LE GOFF, 1990, p. 476; POLLAK, 1989). Diante disso, faz-se necessário
problematizar qual concepção é cultivada pelo TJPA ao promover a preservação destes
registros documentais, sob a égide do acesso e da manutenção da memória social, visto que
estes documentos, podem ser potencialmente utilizados tanto para ratificar uma “memória
oficial”, centrada na figura de grandes personalidades e acontecimentos que marcaram a
instituição, quanto para dar vazão as “memórias subterrâneas” (POLLAK, 1989) dos diversos
grupos humanos que coexistem na vasta espacialidade que compôs a Comarca de Bragança-
PA ao longo de sua atuação.

Nesta perspectiva, o conhecimento científico produzido a partir das informações


contidas neste acervo (segundo ponto frisado pela primeira cláusula do convênio), pode atuar
diretamente neste processo de questionamento ou reafirmação de determinadas práticas
memorialísticas enraizadas. No tocante a História, concebida por Le Goff como a “forma
científica da memória coletiva” (1990, p. 535), Chalhoub (2005) aponta como os arquivos
judiciários podem converter-se em fontes (por vezes as únicas disponíveis) para se ter acesso
ao cotidiano e as relações sociais construídas por mulheres, órfãos, escravos, LGBTQI+s,

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operários, agricultores, e demais estratos que tradicionalmente foram postos à margem pelas
histórias e memórias “oficiais”.

Em dezembro de 2018, o TJPA inaugurou no município de Ananindeua o segundo


Arquivo Regional de Belém (ARB), sendo o primeiro localizado na Comarca de Santarém.
Conforme proposto, este deve concentrar o acervo documental de 50 comarcas, dentre estas da
Comarca de Bragança-PA, abrigando um quantitativo de 2.705.873 processos
(MONTENEGRO, 2018).

De acordo com a administração do TJ-PA, o ARB representa uma relativa economia


aos cofres públicos. Estando sediado em prédio do próprio Tribunal, possibilita uma otimização
do espaço nos Fóruns, que manterão em seus prédios somente o Arquivo Corrente, e uma
alternativa efetiva para o controle e preservação dos documentos produzidos no âmbito do
poder Judiciário (ibid.).

No que tange a Comarca de Bragança-PA, por conta do 1º termo aditivo ao Convênio


de Cooperação TJPA Nº021/2017, promulgado em outubro de 2018, ficará sob a custódia da
UFPA os documentos datados até o ano de 1988, sendo os demais encaminhados ao ARB
seguindo as recomendações dadas pela equipe técnica.

Este processo de transferência de parte significativa do acervo documental da Comarca


a um Arquivo localizado em uma cidade que fica a 195 Km de distância, implica em algumas
dificuldades aos habitantes de Bragança e região, sejam pesquisadores ou não, que buscarem
acessar esses registros documentais. Podem ser citadas, a relativa distância geográfica, que
importa em custos de transporte, e quando for preciso estadia, e a complexa burocracia
necessária a administração de um Arquivo de tão vasta dimensão. Tais elementos podem
acarretar um distanciamento, quase que incontornável, entre os cidadãos e considerável parcela
dos documentos que compõe o arquivo permanente da Comarca de Bragança-PA.

Conclusão

Conforme ressalta Heloísa Liberalli Belotto (2014, p.134), o arquivo possui um sentido
para a sociedade no qual está inserido, uma “função social”. Esta função diz respeito ao seu

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reconhecimento enquanto instrumento de promoção da cidadania, a partir do direito à


informação, a produção do conhecimento científico e a memória e a identidade. Aldabalde e
Grigoleto (2016) salientam que os arquivos estão diretamente ligados ao exercício do poder
nas sociedades ocidentais. As informações registradas nos documentos de arquivo outorgam
autoridade, oficializam atos e práticas e podem ser utilizadas no processo de reivindicação de
direitos por parte dos cidadãos. No mais:

Na medida em que os arquivos são materialidades do passado, eles podem


atualizar a memória de uma pessoa, ou conjunto de pessoas, frente às
demandas do presente. Consideramos, portanto, que os arquivos compõem
uma parte significativa das bases que serão parte da memória praticada de
uma instituição, família, cidadão ou sociedade (ALDABALDE;
GRIGOLETO, 2016, p. 23)

Nesta perspectiva, qualquer ação de preservação que preze somente pela conservação
do suporte físico onde a informação está registrada, neste caso o papel, e sua eventual
organização, negligenciando essa “função social”, que diz respeito aos usos e apropriações que
os usuários fazem, ou podem vir a fazer, do arquivo no exercício de sua cidadania, possui
graves lacunas.

Sabendo da importância dos registros documentais que compõe o acervo permanente


da Comarca de Bragança-PA, enquanto receptáculos de diversas memórias coletivas,
essenciais à constituição identitária de grupos historicamente marginalizados e a construção de
uma história local plural e multifacetada, que rompa os paradigmas de uma história e memória
“oficial” é imprescindível problematizar daqui para a frente as consequências que estas duas
ações, a assinatura do convênio de cooperação Nº 021/2017 e a transferência ao ARB, geram
para os cidadãos bragantinos, e os significados que revelam sobre as políticas de gestão
documental e preservação da memória implementadas pelo TJPA.

Referências

ALDABALDE, Taiguara Villela; GRIGOLETO, Maira Cristina. O traço da distinção:


discutindo entendimentos sobre arquivos e memória. In: Resgate: Revista Interdisciplinar de
Cultura, v. 24, n. 2, p. 7-26, 2016.
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2020. Institui o Dia da Memória do Poder Judiciário e dá outras providências. Brasília:
Conselho Nacional de Justiça, 2020. Disponível em:
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Institui diretrizes e normas de Gestão de Memória e de Gestão Documental e dispõe sobre o
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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

2020.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ. Convênio de Cooperação Nº 021/2017,
de 07 de junho de 2017. Tem por finalidade a disponibilização da documentação que compõe
o Acervo Histórico de documentos judiciais do TJ/PA, localizado na Comarca de Bragança,
anterior ao ano de 1970. Belém: Tribunal de Justiça do Estado do Pará, 2017. Disponível em:
http://www.tjpa.jus.br/CMSPortal/VisualizarArquivo?idArquivo=828899. Acesso em: 09
mar. 2020.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ. 1º Termo Aditivo ao Convênio de
Cooperação Nº 021/2017, de 26 de outubro de 2018. Tem por objetivo incluir no Convênio de
Cooperação Nº 021/2017 a ampliação do período cronológico dos documentos requeridos até
o ano de 1988 e os documentos históricos localizados na Comarca de Ourém. Belém: Tribunal
de Justiça do Estado do Pará, 2018. Disponível em:
http://www.tjpa.jus.br/CMSPortal/VisualizarArquivo?idArquivo=828900. Acesso em: 09
mar. 2020.

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A CONSTRUÇÃO DA ARENA E DO MDB NO PARÁ: SUJEITOS E


DISPUTAS POLÍTICAS (1964 – 1970)

FLÁVIO WILLIAM BRITO MATOS


Universidade Federal do Pará, Mestrando
matos.flavio_@hotmail.com

Resumo
O objetivo deste artigo é discutir alguns pontos da narrativa sobre os partidos políticos da
Ditadura no Pará, particularmente no período de sua formação, a partir das novas discussões
historiográficas voltadas para a problematização da atuação dos civis durante a Ditadura
Militar. A proposta ora apresentada compõe as pesquisas que venho desenvolvendo para a
dissertação de mestrado em História, cujo objeto são os partidos dentro do Legislativo Estadual.
Advogo a ideia de que os partidos possuíam uma lógica local enraizada em tradições políticas
e os seus membros tiveram posições cambiantes na relação com os militares, para além da
dicotomia adesão-resistência.
Palavras-chave: Ditadura Militar; Partido Político; Cultura Política.

Introdução

Durante aproximadamente 14 dos 21 anos da Ditadura Militar (1964-1985), vigorou no


Brasil um sistema bipartidário constituído arbitrariamente a partir do Ato Institucional nº 2 (AI-
2), em 1965. Inicialmente, como legendas provisórias para a eleição parlamentar de 1966 e
posteriormente como partidos, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento
Democrático Brasileiro (MDB) foram o meio pelo qual as disputas políticas entre lideranças
locais e nacionais ocorreram, ainda que de forma controlada pelos militares, dado que,
especialmente após o AI-5, em 1968, os militares possuíam meios “legais” para cassar os
mandatos de possíveis ameaças aos seus interesses e organizaram formas para impedir a
ascensão de adversários a cargos políticos chave como nas prefeituras das capitais e das ditas
Zonas de Segurança Nacional e pela instituição de eleições indiretas para governador.

Devido a sua criação artificial, os partidos políticos deste período foram inicialmente
considerados objetos de menor interesse por parte da historiografia pós-ditadura, especialmente

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no Pará, onde as pesquisas são bem recentes. Priorizaram-se os debates sobre a resistência,
movimentos sociais – como o estudantil e sindical – e sobre a guerrilha do Araguaia. Aos
partidos restara a pecha jocosa de “partido do sim” e “partido do sim, senhor”, respectivamente
MDB e ARENA (MOTTA, 2008). Contudo, não se pode fazer tábula rasa destes partidos,
ainda que formados a partir de um AI, haja vista que os seus quadros foram compostos por
personagens políticos com origens anteriores ao golpe civil-militar de 1964. Faz-se necessário,
portanto, compreender esses sujeitos a partir das suas dinâmicas locais, de modo a adensar as
análises sobre este campo de atuação dos civis durante a ditadura.

O objetivo deste artigo é discutir alguns pontos da narrativa sobre os partidos políticos
no Pará, particularmente no período de sua formação, a partir das novas discussões
historiográficas voltadas para a problematização da atuação dos civis durante a Ditadura
Militar. A proposta ora apresentada compõe as pesquisas que venho desenvolvendo para a
dissertação de mestrado em história, cujo objeto são os partidos e o Legislativo Estadual.
Advogo a ideia de que os partidos possuíam, também, uma lógica local enraizada em tradições
políticas e os seus membros, como os deputados estaduais, tiveram posições cambiantes na
relação com os militares, para além da dicotomia adesão-resistência, o que merece atenção por
parte de nós, pesquisadores e pesquisadoras.

Discutindo Partidos Políticos

A partir da renovação proposta pela Nova História Política (NHP) de René Remond, na
França, nas últimas décadas do século XX, reacendeu-se o interesse historiográfico pelo
político e, por sua vez, os partidos políticos, fato muito influenciado pela proposta de diálogo
com outras áreas do conhecimento como a Ciência política, Antropologia e a Linguística, por
exemplo. Segundo Serge Berstein (2003), um dos intelectuais da NHP, pensar os partidos
políticos enquanto lugar de mediação política implicaria refletir sobre “o peso da tradição e o
jogo das mentalidades, a cultura e o discurso, os grupos sociais e a ideologia, a psicologia
social, o jogo dos mecanismos organizacionais e a importância das representações coletivas”
(BERSTEIN, 2003, p. 58). Ou seja, as pesquisas deveriam ir além do anedótico, entendendo
que tudo compõe o político (REMOND, 2003). Não obstante, paulatinamente, a produção

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historiográfica retomou os debates sobre a formação e a atuação dos partidos, levando em


consideração, por exemplo, a cultura política que contextualizava as disputas. Adiante
retomaremos este ponto, antes, porém, vejamos como foram pensados os partidos da ditadura
no Brasil pela produção acadêmica.
O interesse inicial pelos partidos da ditadura no Brasil veio não do campo da História,
mas da Ciência política. Uma das maiores referências no campo é a politóloga Maria D’Alva
Kinzo. Ainda no período da redemocratização, Kinzo escreveu sua tese de doutorado sobre a
gênese e trajetória do MDB alicerçada no conflito, presente no título, entre oposição e
autoritarismo. Nas palavras da autora, o objetivo era “explicar porque alguns mecanismos
democráticos foram preservados, e os efeitos deste arranjo contraditório sobre o processo
político-partidário” (KINZO, 1988, p. 16). Para Kinzo, esta contradição se devia ao desejo dos
militares em construir um sistema híbrido no qual pudessem conciliar a ditadura com a imagem
de “revolução democrática”, ao nível nacional e internacional. Além disso, os militares
precisavam conciliar os interesses dos civis partícipes do golpe que derrubou João Goulart
como os membros da União Democrática Nacional (UDN). Esse sistema, ou pelo menos o
desejo de constituí-lo, explicaria o porquê da prevalência de partidos durante a Ditadura.
De fato, diferentemente das outras ditaduras do Cone Sul, o Brasil permaneceu com
suas instituições em funcionamento como, por exemplo, o Congresso Nacional, bem verdade
que completamente “depurado” pelos próprios militares que cassaram mandatos, decretaram
recessos, prenderam e proibiram candidaturas. Para o cientista político Antônio Rego (2008),
esta peculiaridade se deveria a uma cultura política conciliatória no Brasil, algo positivo para
o autor, o que evitaria conflitos, optando-se por soluções mediadas. Rego aponta como
exemplos a Independência, a Proclamação da República e a permanência do Congresso
Nacional em funcionamento durante o Regime Militar.
Essas análises da ciência política foram, de certa forma, incorporadas à historiografia.
Segundo Claudio Vasconcelos (2013), historiador, a explicação da preservação do Poder
Legislativo (o que podemos estender aos partidos) era a necessidade de legitimação do governo
dos militares, não apenas como modo de manter uma “fachada democrática”. Recordemos que
o golpe havia sido dado em nome da democracia, por isso, a auto intitulação de “Revolução de
64”. Neste sentido, partidos e instituições democráticas funcionariam como um compromisso

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com a democracia. Ainda que, como se sabe, tenha sido algo bem distante da realidade.
Recuperando as ideias de Kinzo, Vasconcelos (2013) atribui aos membros da área castelista
dos militares, tida como moderada, a salvaguarda de alguns instrumentos da democracia,
enquanto se realizava a “limpeza” do “perigo vermelho” dentro das Forças Armadas e das
instituições até o retorno de uma “democracia em plenitude”. Ainda segundo o autor, essa
legitimação foi validada pela grande imprensa durante o período inicial da ditadura,
compreendido entre 1964 e 1969 (VASCONCELOS, 2004).
Haja vista o exposto, parecem claros alguns motivos da conservação dos partidos por
parte dos militares, ou pelo menos da existência de partidos, posto que o AI-2 dá fim aos
formados em 1945. Contudo, resta entender melhor o seu funcionamento interno, suas próprias
razões e os interesses de seus membros, afinal, o golpe foi uma articulação entre civis e
militares. Neste sentido, os recentes debates sobre a memória da ditadura põe em xeque alguns
lugares-comuns das narrativas como o da sociedade resistente ou então do puro adesismo por
parte de alguns grupos. Marcos Napolitano, por exemplo, defende “a tese de que há um amplo
leque de colaboracionismos e oposicionismos no contexto autoritário de 1964-1985 que nem
sempre foi ocupado pelos mesmos atores, da mesma maneira, o tempo todo que durou o
regime” (NAPOLITANO, 2015, p. 102). Agora, guardemos de Napolitano a ideia de um leque
de colaboracionismos e retomemos a NHP.
Utilizando o acervo do diretório nacional disponível no CPDOC/FGV, Lucia Grinberg
foi uma das primeiras pesquisadoras a se debruçar sobre a trajetória da ARENA. Enquanto o
MDB, considerado o partido da redemocratização, foi logo estudado na década de 1980, a
ARENA – partido de apoio dos militares – chegou ao seu fim, com uma imagem muito
negativa, em 1979. Grinberg (2009) data a desqualificação da ARENA enquanto partido na
década de 1970, após a lei de fidelidade partidária. Porém, com a documentação interna do
partido, a autora demonstra que houve um anseio em, de fato, construir-se um partido, afinal
se “a sigla Arena era recente e podia não ter identificação popular, as lideranças que
formavam o partido eram representantes da nata dos políticos da época” (GRINBERG, 2009,
p. 32). Considero de suma importância esta perspectiva interna de funcionamento dos partidos,
pois – como se apresentará adiante – a ARENA, no Pará, teve conflitos internos na sua relação
com os militares e nem sempre foi a favor das diretrizes vindas do alto.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Assim como no período anterior a ditadura, a formação dos partidos foi fortemente
influenciada pelos interesses locais. Para a ARENA paraibana, Dmitri Sobreira (2016)
identificou que os interesses pela conservação da propriedade da terra motivaram latifundiários
a apoiar o golpe de 1964 e a ingressar no partido de apoio ao governo. As Reformas de Base
encampadas pelo presidente deposto João Goulart eram fonte de medo. Não muito diferente do
Pará. Curiosamente, foi necessária a intervenção do presidente-ditador Humberto Castelo
Branco para que se formasse o diretório regional do partido da oposição consentida na Paraíba.
Ao contrário de leituras que apresentavam a ARENA como mero partido adesista imposto de
cima para baixo, Sobreira nos convida a ir “além do sim, senhor” e apresenta um partido
permeado por questões muito particulares da Paraíba. Essa renovação da perspectiva sobre o
partido, o autor faz a partir da utilização do conceito de cultura política que fora proposto pela
NHP de Serge Berstein e tantos outros autores. No Brasil, um dos autores que fazem uso desse
aporte teórico, além do já citado Bichara, é Rodrigo Patto Sá Motta, a partir de sua própria
definição de cultura política entendida enquanto:

[um] conjunto de valores, tradições práticas e representações políticas


partilhado por determinado grupo humano, expressando identidade coletiva e
fornecendo leituras comuns do passado, assim como inspiração para projetos
políticos direcionados ao futuro (MOTTA, 2013, p. 11-12).

Destarte, esse breve resumo serve para demonstrar como a perspectiva sobre os partidos
políticos do período da ditadura saíram de uma visão, digamos, mais institucional, para
compreendê-los dentro de suas próprias dinâmicas locais, em conexão com o nacional. Houve,
argumenta-se, um leque disponíveis aos sujeitos partícipes das tramas da ditadura, de modo
que a dicotomia oposição-resistência não satisfaz as novas análises. Conforme Motta propõe,
deveríamos acrescentar um terceiro ponto, o eixo das acomodações, alicerçando, então, as
discussões na tríade oposição-acomodação-resistência. No Pará, políticos experientes foram os
primeiros membros dos partidos ARENA e MDB e, naturalmente, fizeram dos interesses do
partido os seus interesses e, quando divergiam das diretrizes dos militares, entraram em conflito
como quando do fechamento da Assembleia Legislativa do Pará, em 1969, por meio do AI-5
(MATOS, 2020).

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ARENA e MDB no Pará

Após o golpe, todos os partidos políticos do Pará declaram o seu apoio aos militares,
mesmo o Partido Social Democrático (PSD), cujos membros foram alvo de investigações e até
mesmo de cassações, como o mandato do governador Aurélio do Carmo (PSD). Apenas
estudantes e sindicalistas resistiram ao golpe. Assim como no caso da presidência da república
no Congresso Nacional, o governador-interventor foi eleito de maneira indireta pela
Assembleia Legislativa paraense, sendo o resultado por unanimidade. Durante as primeiras
sessões ordinárias, os deputados declararam seu apoio e se regozijaram na maré golpista.
Aproveitaram para cassar o mandato do desafeto dos latifundiários, o deputado Benedicto
Monteiro (PCB/PTB), e a antiga oposição local, composta principalmente pelos deputados da
Coligação Democrática Paraense (CDP) e União Democrática Nacional (UDN), aproveitou
para ascender aos cargos da máquina pública. Na Assembleia Legislativa, a liderança do
governo caberia ao deputado Gerson Peres (UDN), que conseguiu a cassação do prefeito do
seu município de origem, Cametá, em favor de um partidário, e seria um importante aliado
durante a ditadura (MATOS, 2020).
Grosso modo, esse novo momento político foi entendido apenas como uma mudança
nas posições de pessedistas e antipessedistas tendo em vista que o PSD ocupou a oposição a
partir de junho de 1964. Entre 1945 e 1960, o PSD perdeu apenas uma eleição para o governo
do estado. Conforme demonstra Veiga (2018), no Pará, o PSD era um partido consolidado
eleitoralmente, a despeito do crescimento do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), fenômeno
ocorrido a nível nacional. Por diversas vezes, a oposição precisou estar coligada para fazer
frente ao partido. Apenas na eleição de 1960 para o governo do estado, o PTB, seguindo a
orientação nacional, coligou-se com o PSD em troca de cargos. Essa “invencibilidade” se
deveria às relações clientelistas formadas desde a interventoria de Magalhães Barata na
ditadura do Estado Novo (PETIT, 2003). Fora do governo do estado, e com seus quadros
políticos prejudicados pelas cassações, o PSD perdeu espaço para os golpistas da oposição.
Durante as eleições de 1965, ocorridas antes do AI-2, o candidato dos militares, Major
Alacid Nunes, venceu com folga o candidato pessedista ao governo. Alacid utilizou a legenda
da UDN e seu vice, Renato Franco, veio do PTB após negociações. Com o estabelecimento do

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bipartidarismo, a oposição se congregou na ARENA e o núcleo do PSD passou a compor o


MDB. Por um lado, esses acontecimentos nos reforçam a ideia de que o histórico anterior a
ditadura foi fundamental para a forma como os partidos se constituíram no bipartidarismo. No
Pará, oposição e situação se inverteram e deram vida às legendas. Por outro lado, um
julgamento precipitado pode nos fazer ter essa divisão como algo rígido, enquanto a história é
dinâmica e complexa, um leque de colaboracionismos.
No período do bipartidarismo, surgiu uma visão dicotômica da arena paraense dividida
entre jarbistas e alacidistas, aliados de Jarbas Passarinho e Alacid Nunes, respectivamente,
primeiro e segundo governador-interventor do Pará, o que aparenta uma adesão simples dos
arenistas aos projetos de duas lideranças, escondendo as disputas e os interesses dos próprios
políticos. Adensemos este ponto a título de exemplo.

Entre jarbistas e alacidistas: a ARENA paraense

A formação do diretório regional da ARENA no Pará foi uma tentativa de conciliar os


interesses locais, regionais e privados dos seus membros, segundo relatório do consulado
americano (MATOS, 2020). Tendo à frente Jarbas Passarinho, o diretório foi composto por um
representante das elites agrárias marajoaras, por políticos paraenses de carreira e por nosso
exemplo aqui, o deputado Gerson dos Santos Peres (1931-2020), deputado estadual desde
1958, eleito primeiramente pelo PTB e, na eleição seguinte, pela UDN. Foi escolhido como
representante do governo de Jarbas Passarinho, em julho de 1964, na Assembleia Legislativa e
sob seu patrocínio cresceu politicamente, por esta razão foi considerado um jarbista. Segundo
Passarinho (1991, p. 115), Gerson havia “tido atuação corajosa nos debates, antes de 31 de
março, opondo-se ao PSD e aos comunistas, no plenário da Assembleia Legislativa”. Esta
memória de Passarinho, assim como a composta sobre a ARENA paraense (dicotomia) e
ARENA nacional (partido do sim, senhor), pode nos levar a crer que o deputado Gerson Peres
foi um dos meros adesistas do partido do governo. Porém, documentos produzidos pelo
consulado americano em Belém nos sugerem, no mínimo, relativizar esta adesão.
Em dezembro de 1966, o vice cônsul americano no Pará, Melvyn Levitshy, realizou
uma conversa com o então reeleito deputado estadual Gerson Peres (ARENA). Os principais

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tópicos da conversa foram a tentativa do ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, em


formar um novo partido, o sistema partidário brasileiro e sua perspectiva do presidente-ditador
Castelo Branco. As eleições de 1966 foram as primeiras sob o regime do bipartidarismo, como
os Estados Unidos haviam apoiado o golpe e reconheceram a nova presidência, o interesse do
consulado era provavelmente avaliar a suposta democracia brasileira.
Sobre a formação de um novo partido, Gerson teria dito ao cônsul não ver chance
alguma de se formar um terceiro partido, apesar de se considerar disposto a um sistema
multipartidário. Porém, em suas palavras, “não havia outra opção a não ser se filiar ao partido
do governo” (Tradução livre. Conservation with State Deputy Gerson Peres, 1967). Nas
impressões de Melvyn Levitsky, o deputado se sentia desconfortável no partido e apenas se
acomodara, dada a necessidade presente que impunha um bipartidarismo. Ainda segundo o
cônsul, Gerson pretendia pedir ao presidente o retorno da democracia no Brasil quando de sua
visita à Assembleia Legislativa, o que não chegou a ocorrer.
Levitsky considera Gerson Peres um político vinculado à figura de Jarbas Passarinho e
aqui não se está negando isso, porém, diferentemente das leituras simplificadoras que se
limitam às dicotomias adesão-resistência, jarbista-alacidistas ou, ainda, a ARENA como
partido do “sim, senhor”, é possível pressupor que dentro do leque de colaborações Gerson
ingressou no partido e não por estrita identificação com os militares. Notícias da época atestam
os conflitos internos da ARENA paraense como na publicação do Jornal do Brasil (RJ):

CRISE NO PARÁ
Belém (Do Correspondente) – A exclusão do Senador Zacarias Assunção e
do Deputado Lopo Castro, ligados ao Governo federal, provocou uma crise
na ARENA paraense.
Ao mesmo tempo, alguns deputados arenistas reclamam contra a invasão dos
seus redutos políticos pelo Sr. Abel Figueiredo, sogro do Governador [Alacid
Nunes], denúncia que motivou a realização de várias reuniões. (CRISE NO
PARÁ, Jornal do Brasil (RJ), 1º Cad., p. 3, 09/03/1966)

Estranhamente, Zacarias Assunção havia concorrido ao cargo de governador pelo PSD,


em 1965, e ingressou na ARENA durante o bipartidarismo. Se é certo afirmar que a
constituição do bipartidarismo foi arbitrária, o ingresso de políticos no partido não se deu sem
críticas, tão pouco os políticos atuaram de maneira passiva. Há uma continuidade dos conflitos

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pré-existentes ao golpe de 1964, o MDB se confirmará como um reduto dos antigos pessedistas
enquanto a ARENA será disputada pela antiga oposição a contragosto. É menos uma divisão
entre jarbistas e alacidistas e mais uma adaptação das disputas entre as oligarquias locais. De
modo semelhante, Sobreira (2016) também identificou a presença de uma continuidade nas
disputas das oligarquias paraibanas na formação do diretório regional da ARENA na Paraíba e
no modo como as disputas personalistas e clientelistas não desapareceram junto aos partidos
de 1965 com o AI-2.

Considerações finais
Destarte, as pesquisas ainda se encontram no seu estágio inicial e foram prejudicadas
pela atual pandemia, porém, os documentos já nos indicam novas possibilidades de se pensar
os partidos políticos do período bipartidário no Brasil, especialmente em relação à ARENA,
compreendendo-a para além do “sim, senhor”. Os sujeitos que atuaram durante a Ditadura
Militar tiveram posições cambiantes, como no caso citado de Zacarias de Assunção, e não
foram meros adesistas como o citado Gerson Peres. Esses e outros sujeitos nos apresentam
uma dinâmica particular no Pará, que dialoga com a realidade de outros, a exemplo da Paraíba.
Neste novo momento historiográfico de debate sobre memória e apropriações da NHP, uma
nova seara de análises se apresenta propícia aos historiadores e historiadoras.

Referências
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ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, pp. 57-98.
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cultura política. In: ABREU, L. A; ______. Autoritarismo e cultura política. Porto Alegre:
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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

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Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade
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Fontes
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ESGRIMA PARA DIZER UMA COISA AUSENTE: SIGNOS DE


INTELECTUAIS PROJETISTAS DE BRASIL DEPOIS DE 1920

FRANCISCO ADRIANO LEAL MACÊDO


Universidade Federal do Piauí, Mestrando
adrianolealmacedo@outlook.com

Resumo
O texto busca estabelecer uma conexão entre as ordens discursivas e não discursivas que se
instauraram no mundo intelectual brasileiro a partir da década de 1920, com foco concentrado em
sujeitos que atuaram em São Paulo, que foi tido como um importante centro cultural nessa época. O
sujeito-signo Júlio de Mesquita Filho é tomado paralelamente a outros personagens que conversam
com ele no tempo, a exemplo de Oliveira Vianna, não sendo necessariamente um diálogo direto. Os
principais diálogos empíricos presentes fazem parte da imprensa de época: a revista Klaxon, dos
modernistas; a Revista do Brasil, de Júlio Mesquita e Monteiro Lobato; e, também, englobamos
aspectos da trajetória de Júlio de Mesquita Filho. Partindo dessas premissas, o vislumbre das “políticas
da escrita” das produções que almejavam subjetivar e dar materialidade a uma ausência ontológica –
são guias para uma compreensão das interpretações e reinterpretações do que seria essa inquietação
comum a tantos sujeitos da época em suas respectivas esgrimas e disputas. As trilhas teórico-
metodológicas e historiográficas centram-se em Michel Foucault, Hans U. Gumbrecht, Jacques
Rancière, Tânia Regina de Lucca e Maria Stella Martins Bresciani.

Palavras-chave: Vida intelectual; História e Crítica Cultura brasileira.

Introdução
A existência do que nomeamos de projetistas de Brasil não é exatamente uma novidade. Eles
foram e são estudados de maneira sistemática. Carlos Guilherme Mota, na já distante década de 1970,
estabeleceu uma periodização da Cultura Brasileira na qual os projetistas são inseridos como aqueles
que foram signos de um tempo, expressões e sonhos de uma ausência (MOTA, 2014). Nas brechas
que o próprio Mota adverte haver em seu texto, inserimos a nossa própria busca, como é o caso de um
olho nas “obras e intervenções” de sujeitos como Monteiro Lobato, Darcy Ribeiro, Mário de Andrade

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e outros “intérpretes de Brasil”. A extensão desses projetos e os sujeitos que buscaram encarná-los, no
entanto, não poderiam ser esgotados por um único estudioso do tema.
Abrangendo um contexto amplo de análises, a perspectiva que propomos se aproxima daquilo
que Jacques Rancière chamou de “corpos utópicos” que se engajaram em ações e escritas políticas que
se entrelaçavam retroativamente. Para Rancière, a escrita representa instâncias corpóreas e políticas,
unindo elementos que já foram tidos como separados – desejo e corpo como sendo antagônicos de
política e negócios da polis em geral. As escritas são estruturas subjetivas que não podem ser realizadas
sem fazer uso de signos, e torna-se uma “relação da mão que traça linhas ou signos ou signos com o
corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com os outros corpos com os quais ele
forma uma comunidade; dessa comunidade com a sua própria alma [...]”. Apresentamos, nessa lógica,
que os intérpretes e projetistas de Nação, ao enunciarem as suas impressões tropicais por escrito,
ensaiaram uma “maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação”, elaborando uma
“constituição estética da comunidade”. Tudo isso, através de fortes alegorias (RANCIÈRE, 1995, p.
07).
Nessa lógica, sujeitos signos como Júlio de Mesquita Filho, a frente do jornal O Estado de São
Paulo, e aqueles que editaram a revista Klaxon nos anos 1920 são imanentes. A imprensa no geral se
tornaria veículo de singular potência para definir “coisas ausentes”, enunciar e criar, utilizada
largamente por estes eruditos.

Klaxon, Revista do Brasil e espírito das ideias nos “anos loucos”

Como pude não sentir que a eternidade, almejada com amor por tantos poetas, é um
artifício esplêndido que nos livra, mesmo que de maneira fugaz, da intolerável
opressão da sucessividade?
(Jorge Luís Borges)

Esse trecho de Borges inquieta a pensar sobre questões que são muito reais e caras para aqueles
que se aprofundam no mundo das palavras, filhas das letras. Os que escrevem, o fazem – talvez –
sonhando com alguma eternidade, obtida através da consolidação de uma verdade ontológica que não
poderia ser alcançada por aqueles que passam pela vida sem ao menos registrar os episódios da
“opressão da sucessividade” em um simples diário. Me ocorre que o espírito das ideias, veiculadas
através de signos, tem característica pretensa de um visgo que dota de coerência aquilo que não existe

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enquanto mônada. Para que se crie esses efeitos de verdade transcendentes, uma notável verborragia
toma de conta de um certo teatro em que as maquinações de poder seguem fluxos contraditórios.
Partindo desse comentário que pode soar banal, passo a examinar empiricamente tal hipótese em torno
da busca do fugaz livramento de certo niilismo existencial dos intelectuais dos “anos loucos”, que
discuti em outro trabalho (MACÊDO, 2020).
Como uma metonímia tão precisa quanto podem ser as generalizações, a revista dos
modernistas – a Klaxon – foi editada em São Paulo de maio de 1922 a janeiro de 1923, e passou a ser
a plataforma de divulgação e defesa do que chamaram de arte moderna brasileira. A circulação era
mensal, sendo os seus editores: Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Oswald de
Andrade, Manuel Bandeira e Graça Aranha. Na qualidade de colaboradores tínhamos: Sérgio Milliet,
Anita Malfatti, Sérgio Buarque de Holanda, Raul Bopp, entre outros (JUNQUEIRA, 2020).
A primeira edição da revista é potente de sentimentos de grandes intensidades que apontam as
convicções dos seus escritores. A quinze de maio de 1922, o editorial de debute da revista se quer
iconoclasta. Os canhões de grossa calibragem daqueles que escreveram os textos estão direcionados a
valores que estavam então sendo postos em xeque. Definiam a sua insurgência contra alguns elementos
que marcavam a cultura do século anterior:

Século 19 — Romantismo, Torre de Marfim, Symbolismo. Em seguida o fogo de


artificio internacional de 1914. Ha perto de 130 annos que a humanidade está fazendo
manha. A revolta é justíssima. Queremos construir a alegria. A própria farça, o
burlesco não nos repugna, como não repugnou a Dânte, a Shakespeare, a Cervantes.
Molhados, resfriados, rheumatisados por uma tradição de lagrimas artísticas,
decidimo-nos. Operação cirúrgica. Extirpação das glândulas lacrimaes. Era dos 8
Batutas, do Jazz-Band, de Chicharrão, de Carlito, de Mutt & Jeff. Era do riso e da
sinceridade. Era de construcção. Era de KLAXON (KLAXON, 1922).

Nesse texto que aparece em posição de destaque do primeiro número da revista, existem
esforços de significação que apontam para a fundação de uma cultura. Dizibilidade e visibilidade
diferentes. Essa face das impressões tropicais que buscavam se instalar na ordem discursiva que
compunha a cultura brasileira segue afirmando que sabe “que o laboratório existe”, e por isso mesmo
quer “dar leis scientificas á arte”. A arte possuía um elemento estético, mas também apegos científicos;
a alma incandescente de uma “época de 1920 em diante” é latente nesse período. Os manifestos
representam a vontade de reorganização do universo mental, com preocupações que demarcam
posições que se querem antagônicas, ainda que façam um caminho muito semelhante.

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A semana de arte moderna aparece embebida num cenário complexo de busca pelo ideal
moderno de Brasil. A busca de se estabelecer rupturas com o século anterior, rompendo enfim com a
força das tradições. A arte se tornava preocupada em destruir com os parâmetros anteriores. O mundo
se afogava em incertezas, enquanto os intelectuais paulistas se detinham em gestar o modernismo.
“Havia o desejo de produzir uma imagem moderna da nacionalidade brasileira, a busca pela essência
da nação, que fosse outra, diferente daquela propalada nos séculos XVIII e XIX”. O IGHB surgira no
período imperial como panteão da cultura e da História da Nação. No período republicano, a ABL
ocupa um lugar de destaque no debate cultural e social, definindo as arestas do país “como tentativas
sistemáticas de ordenar os lastros de um Brasil pretensamente moderno” (BRITO, 2018, p. 62-65).
Falava-se bastante nos “fogos de artifícios” internacionais de 1914, em alusão aos terrores
vividos por uma grande parcela da humanidade durante os tempos da primeira grande guerra. A
“brecha” que foi aberta no tempo nesse período de instabilidade política, econômica e cultural criava
espaço para as criações e recriações de elementos que costumam se manifestar em períodos
interessantes, já que esses foram um dos fiapos da dispersão constitutiva de começos que gerou a “era
dos extremos”. Essa “abertura em acordes heroicos dos anos loucos” demarcava características
intensas de mobilização permanente, rupturas paradigmáticas e das maneiras de comportamento; essas
coisas estavam sendo reveladas a partir de estranhamento e, simultaneamente, a busca pelo novo que
ainda não existia (SEVENCEKO, 1992).
Na marca dessa temporalidade e em simultâneo aos postulados agressivos da Klaxon, existia e
operava também a Revista do Brasil,15 que era então regida por figuras de destaque na cena cultural e
intelectual paulistana. As publicações dessa revista “é reveladora de uma intelectualidade cuja
produção ocorre num período de crescente urbanização” (CORRÊA, 1999), e teve uma duração de
publicação sob o mesmo nome até a década de 1990. Se tratando do seu início, e emergindo em

15 No verbete disponível no CPDOC, recortamos a seguinte definição desse periódico: “A Revista do Brasil, lançada em
São Paulo no ano de 1916, era um periódico mensal estritamente literário que refletia esse debate, propondo-se realizar um
reexame da identidade nacional e constituir-se enquanto núcleo da propaganda nacionalista. O conteúdo publicado pela
revista adequava-se à ideia corrente de que o intelectual deveria direcionar suas reflexões para os destinos do país, pois o
momento era de luta e engajamento em defesa da nação e não admitia mais o escapismo e o intimismo. O intelectual
deveria deixar de falar de si mesmo para falar da nação brasileira, cabendo-lhe, portanto, o dever cívico de assumir
integralmente a defesa e a construção do patriotismo”. Esse trecho é revelador e coaduna com os argumentos que
levantamos nesse texto. Ver: SETEMY, Adrianna. Revista do Brasil. Verbete. Disponível em:
<https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/REVISTA%20DO%20BRASIL.pdf> acessado em 26
de abr. de 2020.

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conjuntura “fértil para o desespero”, a intelectualidade passava a expressar em profusão diversas


possibilidades históricas em suas narrativas.
Dentre os projetistas que tiveram desfechos amargos, se destaca Euclides da Cunha, que foi
correspondente d’O Estado de São Paulo no início do século e teve a sua trajetória minunciosamente
estudada por Nicolau Sevcenko em Literatura como missão (1999). No referido texto, fica explicitado
como a criação cultural e as tensões sociais andaram lado a lado no período da Primeira República e,
como sugere o título da obra, a literatura – ou a escrita engajada – se tornou uma missão séria. O
objetivo original da Revista do Brasil expressava com exatidão essa tarefa urgente de organizar o
pensamento em meio à Primeira Guerra Mundial, que inquietava Júlio Mesquita.
Nessa dimensão de criações estéticas que desejavam produzir uma presença modificadora nos
tecidos sociais, muitas proposições e manifestos foram suprimidos ou ocultados, entrando numa linha
de bruxa marginalizada. E isso acontecia não apenas em São Paulo, mas também noutro centro cultural
bastante significativo, que foi o Rio de Janeiro; Sevcenko, no texto supracitado, fala dessa tendência
através de Lima Barreto. O ponto central disso é que o contexto de criação não era exclusivo de apenas
uma frente ou representava apenas uma ideologia, mas seguia ritmos e acordes distintos. A impressão
que se tem a posteriori, depois da consolidação do regime de signos do Modernismo – que cá
observamos nas páginas da Klaxon – é de uma inovação que teria sepultado as tradições anteriores e
substituído pelo “Modernismo” estético, vanguardista. Esse sepulcro, todavia, é mais raso do que
deseja a univocidade artificial criada pela “semana de arte moderna de 1922” e as suas tangentes.
Nessa esgrima para dizer algo que ainda era ausente – que oscilava entre a ênfase em
características culturais, sociais e políticas – chegou-se a conclusões diversificadas. A busca por se
tornar cânone absoluto por parte do Modernismo e a sua estética explosiva valia-se de estratégias
discursivas que buscava negar a voz que os precederam e mesmo daqueles que ousavam rivalizar. No
sentido contrário, porém, a recíproca era verdadeira. Anita Malfatti, que se vinculou ao nomeado
Movimento Modernista, foi duramente criticada por José Bento Monteiro Lobato durante uma
exposição de suas pinturas no ano de 1917. Lobato já era então um intelectual respeitado e essa crítica
custou muito a Anita. Esse evento ilustra como a repercussão de artigos pode afetar dimensões diversas
do cotidiano cultural através das políticas da escrita, denotando um acirrado palco no qual dançavam
prestígio e poder.

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Em herança muito própria do século XIX e o romantismo, a prática de escrita literária e de


crítica se tornaram sinônimo de cultura, e os sujeitos diversos que passaram a emular essa prática como
expressões quase metafísicas dos seus desejos e projetos, dando-lhes ar de legitimação. Em 1922, os
projetos que pareciam ser representados na Revista do Brasil eram mais pragmáticos e buscavam um
tom de continuidade histórica, de maneira contrária ao que propunha a revista dos modernistas. Um
trecho esclarecedor consta na edição de setembro do ano de 1922:

A geração do Centenário, a primeira "que nasceu pobre e que vive por si", começa a
desmontar a mentalidade collectiva e, com ella, o ronceiro apparelho moral que ha
cem annos nos rege. O que ahi vem não é a revolução nos velhos moldes. E' mais e
melhor: é a revolução das idéias e dos costumes com sua feição civica.
Quem não percebe a orientação nova dos moços?
Em suas grandes porções, a que aspira á direcção e a que pretende simplesmente o
trabalho, a mocidade se orienta por novas trilhas de bravia independencia. Para uns
como para outros, já não é o Estado a Providencia de ha pouco. Desacreditaram-se os
governos paternaes que dotam filhos. Já se dotam estes a si. S. Paulo é o grande
exemplo: — aqui se cria o livro nacional e o seu publico; aqui se criam os filhos de si
mesmos (FERRAZ, 1922, p. 02).

O discurso não nega o passado. Ao contrário, faz-se tributário dele. Diferente do trecho
anteriormente transcrito da Revista Klaxon, Brenno Ferraz, em sua atuação como um dos três editores
da Revista do Brasil, apresenta essa edição com notória pompa sobre uma suposta geração que emergia
pobre e que cabia fazer a própria trajetória sem ajuda das muletas da escravidão. Para isso, propõe uma
“revolução das ideias”, que não é de maneira alguma a revolução aos “moldes antigos”. As rasuras nas
ordens discursivas carregam uma latência que diferencia as duas revistas que imaginamos como dois
esgrimistas que investem projetos de brasis em seus respectivos floretes. Vai-se construindo uma
geografia do pensamento que aponta acordes tradicionais, como veremos em tópico seguinte possíveis
ressonâncias dessa dinâmica na forma de “um futuro que o passado prometia”.
De certa forma, os objetivos de ruptura são comuns às duas revistas, carregando consigo
propostas que são muito próprias daquele período de profundo sentimento de necessidade de
reinvenções. As dessemelhanças se manifestam nas proposições de how make, de como levar a cabo a
construção das coisas então ausentes, a saber, uma Nação estruturada e dotada de solidez. As
revoluções propostas são de apologia ao “modernismo” – não só esteticamente falando, mas com
outras tendências que retiram o sufixo “ismo” – e outra cuja ruptura não tem apego iconoclasta e não
ataca de maneira vivaz a tradição, pois ela é “centenária”.

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Nisso, creio ter dado uma imagem, ainda que breve, das “sintonias e antinomias” de duas das
diversas possibilidades de visões de mundo que espocavam nos “anos loucos”. Elas compõem um arco
complexo da “atitude política” dos “escritores cidadãos” que se manifestava no “círculo dos sábios”
então aglomerados em São Paulo. Não era um combate simulado entre esgrimistas, era uma batalha
real e sangrenta – ainda que, por enquanto, metaforicamente (SEVCENKO, 1999, p. 78).
Essas contendas, que tiveram a máquina de escrever como arma de ataque e de defesa, tiveram
resultados imprevisíveis para aqueles que ora estavam mergulhados no atual de 1922. As muralhas,
por exemplo, não eram tão impenetráveis quanto deram a entender. Na verdade, os presentes de grego
e as conexões instáveis com as ramificações do poder por vezes submetia aos desejosos de coerência
à incoerência. Para citar uma ironia desse tipo, Sérgio Buarque de Holanda – um daqueles que editaram
a Klaxon – posteriormente se tornaria editor da Revista do Brasil, que tomara rumos diversos daqueles
que Monteiro Lobato e Júlio Mesquita haviam pensado em 1916, em meio à guerra.

“A comunhão paulista”: ordens discursivas na vida intelectual

Poucas coisas são tão características dos nomeados projetistas de Brasil quanto os cientistas
sociais. Estes emprestavam as suas virtudes de intelectuais ao seu país, numa postura de cidadania
engajada. Lembrando Michel Foucault, “o autor é aquele que dá à inquietante linguagem da ficção as
suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real” (FOUCAULT, 2009, p. 28), e por isso
mesmo dentro da Revista do Brasil aqueles sujeitos que escreviam sobre as características do Brasil,
como o caso de Oliveira Vianna, tinham um espaço garantido. O objetivo de dar a essa ficção ainda
ausente arestas de “coerência” e “inserção no real”, estava em consonância com as linhas editoriais
compartilhadas.
Nesse ponto, falo de um trecho de uma edição da revista que foi publicada em 1923. Figurava
aí um artigo de Vianna que, em formato epistolar, dirigia-se em primeira pessoa a Júlio de Mesquita
Filho, que ora tinha por volta dos trinta anos. O enunciado geral desse texto-resenha é revelador de
dois movimentos simultâneos: uma cultura de legitimação mútua na vida intelectual do período; o
objeto que interessava ao autor resenhado e ao resenhista era a formação do povo brasileiro, mas o
enfoque era a “comunhão paulista”. Isso se aproxima das conclusões de Kátia Maria Abud sobre as
décadas iniciais do século XX terem sido um período áureo da produção relativa ao bandeirantismo

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(ABUD, 1985), que nesse texto de Vianna comentando Mesquita Filho, é um elemento forte. Os
debates em torno da intelectualidade desses dois sujeitos demostram em primeiro plano a consolidação
de uma determinada realidade em que a doxa e a episteme deveriam coincidir, em outras palavras, os
pensamentos compartilhados e a verdade ontológica da época deveriam ser legitimados por um
discurso científico e vice-versa.
Segundo estudo minucioso feito por Maria Stella Martins Bresciani sobre Oliveira Vianna, este
intelectual defendia que “[...] o “movimento de ‘entradas’, o capítulo heroico da história dos
latifúndios”, e também deliberado ato de cumprimento de dever, conferiu às populações “paulistas”
uma “importância persistente em sua leitura da formação da sociedade brasileira” (BRESCIANI, 2007,
p. 227). A Revista do Brasil e seus editores tinham interesses notáveis em fazer do nativismo
emergente, um combustível para capital político. Para os envolvidos, tanto melhor que tais ideias –
que já faziam parte da textura de um pensamento em circulação – ganhasse ares e tons científicos.
Coloco em análise alguns trechos dos escritos de Vianna supracitados. Chamando-o de “ilustre
confrade”, Vianna se dirige a Júlio em tom elogioso e levemente complacente.

[...] O que ha de propriamente novo nos meus estudos, meu brilhante confrade, o que
ha nelles de propriamente original, é o Brasil — (a grande novidade, grande
originalidade, desconhecida, não só dos estranhos, como também de nós mesmos. O
preconceito, que ha cem annos nos domina (conforme demonstrei no volumezinho do
Idealismo na evolução politica), de que entre nós e os grandes povos modernos não
ha di ff crenças essenciaes, nos tem dispensado de voltar os olhos para essa "grande
originalidade", que é o nosso povo e que, por isso mesmo, continua inteiramente
ignorado. O meu esforço tem sido apenas de revelar alguns aspectos mais impressivos
desta "grande originalidade" e mostrar o erro fundamental que se contem naquelle
preconceito secular. Só o facto de sermos, como observa o nosso insigne Alberto
Torres, o único grande povo situado em regiões intertropicaes, bastaria para fazer com
que fossemos um "caso" á parte na economia internacional, constituindo um
"problema novo" para todo o mundo, mas principalmente para nós mesmos
(VIANNA, 1923, p. 43).16

Em 1923, no início da terceira década de vida, Júlio fazia por merecer os comentários elogiosos
de Oliveira Vianna, então já com uma vasta obra consolidada que o insere dentro dos pretensos
intérpretes de Brasil. No interior da tradição intelectual que ora se arvorava, Mesquita Filho e Vianna
buscavam uma origem para a brasilidade mais densa e como menos pretensões de demolição do que

16 Mantemos a ortografia tal qual se encontra no documento.

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as proposições modernistas. Isso os colocavam em terrenos senão antagônicos, mas ao menos de


disparidade entre os seus objetivos. Isso dá para a linguagem um papel ambíguo entre o palpável e o
impalpável, oscilando entre essas barreiras de intangibilidade. "A potencialidades do homem só fluem
sobre a realidade através das fissuras abertas pelas palavras". Uma vez organizadas, as palavras
reproduzem e produzem "toda sorte de hierarquias e valor intrínsecos às estruturas sociais de que
emana", e através da atividade escrita se expressam aqueles que são socialmente desajustados, os
inconformados em geral. Isso torna estratégico como um olho mágico para aferir as tensões sociais de
um determinado período. Nicolau Sevcenko indaga: “como imaginar uma árvore sem raízes, ou como
pode a qualidade dos seus frutos não dependerem da característica do solo, da natureza do clima e das
condições ambientais?” e na pertinência disso, estabelecemos que esses registros escritos dos anos
1920 trazem consigo as tensões e conflitos, fragmentos das mágoas dos aflitos que lá habitaram.

Considerações finais

Fazer esse balanço das ideias é complexo porque significa mergulhar num “labirinto de textos
históricos, literários, políticos, sociológicos” (MOTA, 2014, p. 35). As ideologias que figuram não são
tão definidas quanto aparentam ser, contrastando acordes entre o arcaico e o contemporâneo, presentes
nas obras e ações dos personagens supramencionados entre inúmeros outros, que cada um por seu
turno usam estilos e prosas específicas, desejando ser “eminentes explicadores do Brasil”.
Júlio de Mesquita Filho, um explicador e diagnosticador do Brasil se munindo do discurso
jornalístico, pensa longamente os seus supostos ancestrais como inspirações de civilidade e
civilização. Todavia, lembrando o trecho de Grande sertão: veredas, “no real, as coisas acabam com
menos formato, nem acabam”. Tal metáfora nos serve para pôr em suspeição esse construto nacional
gelatinoso e fugidio, cujas múltiplas faces já são esculpidas há quase dois séculos por muitos artistas
diferentes. Essa é uma “sedução dos trópicos”, inteligível o bastante para produzir certa
verossimilhança, mas que não abrange tudo nem capta uma realidade sagrada per se. Nem a Klaxon
nem a Revista do Brasil foram capazes de imantar um discurso com solidez absoluta e inquestionável.
Nessas tentativas de recortar o palco cultural segundo vontades individuais – o nativismo, no exemplo
de Mesquita Filho – fica em evidência os formigamentos dos começos de uma inteligência repleta dos
signos de intelectuais projetistas de Brasil depois de 1920.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

PROJETOS-DE-VIDA PARA POPULAÇÕES INDÍGENAS,


QUILOMBOLAS E RIBEIRINHAS: AUSÊNCIAS EM PRÁTICAS
PEDAGÓGICAS PARA JUVENTUDES DE CONTEXTOS ÉTNICO-
RACIAIS E DE GÊNEROS

GABRIEL CHAVES AMORIM


Unisinos, Mestrando, Bolsista CAPES/PROSUC
gcamorim@edu.unisinos.br

Resumo

Esse trabalho formula bases para aplicação da atividade escolar, projetos de vida, entendida a
partir da perspectiva de sua possibilidade emancipadora. A emancipação é entendida, aqui,
como fortalecimento comunitário contrariamente à inserção social. Através de discussão
teórica e bibliográfica, discute as peculiaridades étnicos raciais da categoria juventude. Como
principais resultados, ressalta-se que a prática de projeto de vida junto a pessoas indígenas,
quilombolas, ribeirinhas ou de gênero diverso, deve conscientizar os estudantes quanto aos
problemas persistentes em suas vidas, neste caso, apontamos a colonialidade. Deve-se difundir
conhecimentos transdisciplinares, sobretudo das Ciências Humanas e suas tecnologias,
justificando outros modos de ser, para, assim, auxiliar na ressignificação e estabelecimento de
caminhos para subsistir de forma emancipada ao sistema capitalista através daquilo que a
pessoa traz consigo, suas referências-de-vida.

Palavras-chave: Projeto de vida, Populações Tradicionais, Base Nacional Comum Curricular


(BNCC).

Introdução

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), estabelece como competência


obrigatória a atividade projeto de vida, para construir planos e objetivos de vida, pertencentes
ao campo de atuação social “vida cotidiana” e “vida pessoal”. Segundo o texto da base “o
campo da vida pessoal pretende funcionar como espaço de articulações e sínteses das
aprendizagens de outros campos postas a serviço dos projetos de vida dos estudantes”

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

(BRASIL, 2019, p. 502). Sintonizar a formação com os percursos e histórias de vida e


proporcionar a própria definição de vida, nos estudos, trabalho e de estilos de vida saudáveis,
sustentáveis e éticos. A partir da (BNCC) quais ausências podemos perceber nos significados
de “projetos de vida para juventudes? Segundo o parecer CNE/CEB nº 5/2011 a juventude é
uma condição sócio-histórico-cultural que necessita ser concebida em suas múltiplas
manifestações, com especificidades próprias que não estão restritas às dimensões biológicas e
etárias. Isso significa admitir que a juventude indígena, quilombola e do campo já apresentem
projetos de vida em movimento, trabalha e constitui família. Assim vemos as juventudes “em
suas multiplicidades de atravessamentos sociais e culturais, produzindo múltiplas culturas
juvenis ou muitas juventudes” (BRASIL, 2011).
A Sociologia das Ausências, procedimento proposto pelo sociólogo português
Boaventura Sousa Santos, propõe -se que aquilo chamamos de tempo presente foi engendrado
pelo pensamento hegemônico europeu de modo a priorizar a experiência do homem branco,
hetero centrado de origens europeias. Dentro deste paradigma as experiências pretas, indígenas,
ribeirinhas e hetero descentradas têm sido consideradas incredíveis, invisíveis, inferiores
relegadas ao passado como “peça de museu” conforme Giorgio Agamben (2014).
O uso do hífen, em projeto-de-vida, como recurso linguístico, se refere à junção ou
separação dos objetivos, meios e referências que compõe o projeto e a vida da pessoa. O projeto
de vida, separado da vida, é uma forma de terceirização da subjetividade da pessoa, ou
instrumento de recalque do próprio ser perdido naquilo que ela não pode ser (FANON, 2008,
p. 81).
A visão no presente é garantia de viver a intensidade da experiência de
construção/vivência e é uma projeção no agora. A fonte da ansiedade contemporânea é a
incerteza sobre o futuro, aqui compartilhada, contudo, o presente é o tempo que nos resta.
Segundo Paulo Freire em “Pedagogia do Indignado”: “futuro não nos faz. Nós é que nos
refazemos na luta para fazê-lo” (FREIRE, 2000, p. 27). Neste sentido, o presente é o tempo
dos projetos-de-vida das juventudes.
O projeto-de-vida não separa o projeto da vida da pessoa, isso significa uma orientação
específica e personalizada em relação ao projeto e a vida da pessoa. A determinação racial é
definida como essa força histórica que atua sobre o presente, coloniza corpos e mentes,

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

conforme diz Aníbal Quijano (2005). Paulo Freire discute a questão do tempo presente como
definidor de uma tentativa de continuidade do projeto civilizador europeu no tempo presente.
“Seu gosto de sobrepor-se ao espaço histórico e cultural dos invadidos, nada disto pode ser
esquecido quando, distanciados no tempo, corremos o risco de “amaciar” a invasão e vê-la
como uma espécie de presente “civilizatório”. (FREIRE, 2000, p. 34). Os determinismos raciais
e geográficos, podem ser avaliados como manifestações da colonialidade histórica e de
instrumentos de captura da vida pelos instrumentos de biopoder. (FOUCAULT, 2008).
As comunidades e pessoas ribeirinhas, negras, indígenas e de outras manifestações de
gêneros, vivenciam de forma contundente os determinismos na formação de suas justificações,
dos objetivos, meios e referências que compõem seu projeto-de-vida. Contudo, há uma opção
que é o recalque, sugestão da cartilha de aprofundamento da (BNCC) aos professores. O
recalque da diferença, separa da vida da pessoa os objetivos de vida comunitários
emancipadores, separa a vida de sua forma. Ao incutir a profissão como objetivo de vida, a
escola, junto a governamentalidade (FOUCAULT, 2008), introduz na pessoa o arcabouço do
empresário de si mesmo, que deve arrumar um emprego ou se submeter a alguma forma de
exploração na divisão do mercado de trabalho.
Se discute aqui o uso do conceito de “identidade terceirizada” nos projetos de vida, uma
vez que a pessoa assume um projeto existente aí no mundo, mas, que não possui nenhuma
relação com seu conceito de dignidade e compreensão (TONNIES, 1973). Outra de
objetificação é o direito, que captura as vidas através do instrumento do crime. Para superar o
instrumento do crime, é preciso também de momentos para conscientização social que sejam
realizados a partir das referências pessoais e de outras que o orientador considere aproximar à
realidade da pessoa. Superar os determinismos históricos exige a discussão crítica sobre a
realidade histórica e sociológica da vida para elaborar estratégias que tornem “inoperante”
(AGAMBEN, 2014) os instrumentos de captura. Também, uma capacidade crítica de leitura
das realidades, uma conexão de empatia e solidariedade com as vidas que estão discentes. Para
que o docente perceba e instigue a formulação de objetivos de vida que não se separam da
própria vida da pessoa.
A sociedade ocidental (SAID, 2007) formula suas próprias justificativas para incutir
nas vidas objetivos, meios e referências que engendrem a pessoa nos instrumentos de captura.

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O instrumento de captura da especificação, transforma as vidas em objetos de mercado,


mercadorias. Tal concepção é uma assinatura histórica deixada pelo colonialismo que usou das
vidas como mercadoria, como é caso dos escravizados. Ao se tornar simples unidade produtiva,
ou mais contemporaneamente, com o paradigma da uberização, empresário de si mesmo ou
homo oeconomicus, há a promoção de uma falsa inclusão, pois, seu único objetivo é sustentar
o instrumento da dívida, que incute sob a sociedade contemporânea uma forma de vida que
propicia o consumo e o endividamento em massa. (LAZZARATO, 2017).
A Lei de Diretrizes e Bases da educação (LDB), no artigo 35 pontua a educação como
preparação básica para o trabalho, para a adaptação, para o desenvolvimento da autonomia e
do pensamento crítico voltados aos processos produtivos. (BRASIL, 1996). Ou, como sexta
competência geral da Educação Básica: “apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe
possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao
exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica
e responsabilidade”. (BRASIL, 2019, p. 9).
O projeto de escola, que se pretende crítico, deve fornecer à pessoa, meios para ela
possuir uma forma de produção de sua vida. Por exemplo, orientar os estudantes perante os
dilemas desenvolvimentistas, incutidos através da sociedade às comunidades tradicionais,
como a necessidade de sair da tradição, para ascender profissional e socialmente. É neste
sentido que o projeto-de-vida está conectado com a emancipação, pois, fornece instrumentos
para abstração sobre a própria vida de modo a ser crítico quanto ao próprio presente. O projeto-
de-vida se dá na ação para uma forma-de-vida (AGAMBEN, 2015), coloca em jogo a própria
forma de viver.
Formas comunitárias de gestão, extrativismo, artesanato, música, desenho, dança e
economia solidária cooperativada, são alternativas viáveis para fomentar fluxos de capital que
consolidem os projetos-de-vida. A identidade comunitária deve ser influenciadora nos
objetivos de vida para que essa forme sua própria vida diante de seus próprios indicadores de
bem-estar humano. (LACERDA, 2016). A sociedade é a coexistência conflituosa entre tais
projetos. “Em um sentido geral poder-se-á falar de uma comunidade que engloba toda
humanidade [...], mas a sociedade humana é compreendida como uma pura justaposição de
indivíduos independentes uns dos outros”. (TONNIES, 1973, p.97).

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Definição de projeto-de-vida e sugestão de prática

Para atingir a forma-de-vida, é preciso de um projeto-de-vida. Forma-de-vida, é aquilo


que a pessoa mantém como seus objetivos, os meios e modos, suas influências e referências,
enfim, a forma que lhe mantém ileso aos instrumentos de controle, como a dívida, o direito e
as leis éticas da sociedade-ocidental-patriarcal-racista. Os comportamentos, as regras, os
meios, os objetivos são constituintes da forma de viver. A busca da felicidade aparece como
motor do viver. O projeto é a possibilidade da vida e sua forma seguirem juntos, adequados
para fornecer para a pessoa, meios de viver a felicidade. “Tudo que é confiante, íntimo, que
vive exclusivamente junto, é compreendido como a vida em comunidade [...] A sociedade é o
que é público, é o mundo”. (TONNIES, 1973, p.97). Neste sentido a ideia é valorizar a vida
privada em comunidade, em detrimento da vida societária passível de captura racista.

1) Identificar o problema persistente nas vidas, neste caso apontamos a colonialidade,


como atestado por (QUIJANO, 2012), (MIÑOSO, 2019), (WALSH, 2019). As comunidades
tradicionais, ribeirinhas, indígenas e quilombolas possuem suas próprias convicções éticas
quanto à sociedade ocidental, o projeto-de-vida é perpassado por essa noção de problema a ser
resolvido. A diferenciação garante uma margem de autonomia em relação à “civilização do
branco”.
O paradigma do professor de comunidades tradicionais é (des)orientar para o
capitalismo e orientar para formas autônomas de economias, solidárias e autônomas. O
orientador da atividade tem a possibilidade de, junto da pessoa docente, identificar problemas
que se manifestem nessa ordem, como dúvidas quanto a personalidade, identidade cultural e
comunitária, atividades econômicas. Problemas relacionados à gênero devem ser
cuidadosamente abordados, visto a delicadeza do tema quanto às complexidades comunitárias,
dada a situação do patriarcado ser uma face do racismo. (GONZALES, 2019). A questão das
tarefas comunitárias engendradas no gênero é uma questão que pode ser levantada e debatida
junto às lideranças, professores e comunidade. Tarefas domésticas reconsideradas como
coletivas, familiares e de responsabilidade compartida carrega consigo a complementaridade e

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não a dualidade hierárquica, como pontua Julieta Carvajal Paredes, antropóloga, indígena e
feminista comunitária. (PAREDES, 2010).
2) Difusão de conhecimentos transdisciplinares, sobretudo das Ciências Humanas e
suas tecnologias, para fundamentar a consciência crítica das justificações que permitam viver
outros modos de ser. A justificação atualmente tangível é a restituição da dívida, do histórico
de violências coloniais contra populações tradicionais, na forma de políticas públicas de
Seguridade Social, Moradia e autonomia de ser. Ativar essas políticas públicas por meio da
organização é fazer emergir no tempo presente, as histórias, as experiências e os saberes que a
modernidade sacralizou ao passado, como a organização econômica, social e política
comunitária.
3) Ao identificar os problemas e as formas-de-vida da comunidade em que a pessoa
discente está inserida, se estabelece os objetivos, para ressignificar na aplicação individualizada
ou coletiva. Identificar atividades econômicas que as referências comunitárias praticam e que
possuam o caráter emancipador do sistema capitalista. (EF09ER07). Identificar a fonte
individual/coletiva da felicidade. Identificar as formas atuais de captura e separação da vida de
sua forma. O objetivo feito na subjetividade não renuncia à coletividade, deve ter vistas na vida
comunitária e compartilhada. A comunidade tem a possibilidade de objetivar coletivamente a
resolução de um problema, através de meios e referências também coletivas. A formulação dos
objetivos deve levar em conta o violento contexto de avanço do desenvolvimentismo, para
formar estratégias de ação pragmáticas, rápidas, sem perder tempo em elucubrações sobre o
futuro, é prático, positivo e no presente. Essas experiências de formulações de objetivos estão
no campo da experiência sensível, independentemente do pensamento individual, deve ser
perceptível por todos os observadores.
4) Estabelecer caminhos, um meio ou forma de subsistir de forma emancipada ao
sistema capitalista, seja pelo artesanato, extrativismo, pesca, cooperativas e o artesanato
acadêmico que é a apropriação consciente da universidade pela forma-de-vida. Com os projetos
já definidos quanto aos objetivos, o orientador de projeto-de-vida auxilia a pessoa a concretizá-
los através de meios, métodos e modos de fazer. O artesanato pode ser potencializador de uma
cooperativa ou marca, bem como os gêneros cultivados em comunidade. A universidade a
possibilidade de ser canal de transformação, contudo, através de sua ressignificação, para

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proporcionar o movimento de troca, que, ao mesmo tempo que leva para dentro do
estabelecimento de ensino referências subjetivas tradicionais, traz para comunidade
conhecimentos acadêmicos. A entrada dos saberes históricos tradicionais contribui para a
valorização da pessoa, da comunidade de origem e da Universidade que sediará um ambiente
diverso e plural. A capacitação das pessoas de comunidades tradicionais nas Universidades tem
também sido um potencializador na aplicação de políticas públicas dentro das comunidades. A
captação e aplicação de políticas como postos de saúde, escolas, cooperativas e centros
comunitários são uma grande chance de inserção de pessoas formadas e conscientes de seu
papel dentro da comunidade. Professores de comunidades tradicionais não precisam concluir
o ensino superior para dar aulas nas escolas, por exemplo. Os projetos de produção comunitária
fornecem independência financeira e social ao instrumento da dívida e do controle social.
5) Fornecer e recepcionar Referências, aquilo que a pessoa traz consigo e que é matéria
para compor o projeto. Essas referências podem ser tanto do docente, quanto do discente ou de
pessoas orientadoras convidadas. Recepcionar as referências é tão importante quanto incutir
saberes nas pessoas que vivenciam a atividade de projeto-de-vida. Uma contribuição ativa do
orientador é ensinar a ouvir, refletir, pensar, fazer conexões mais complexas, facilitar as
abstrações sobre o eu, si mesmo, sobre a comunidade, o nós. A capacidade de abstração e de
imersão nas realidades das pessoas que vivenciam a atividade proporciona ao orientador uma
visão mais crítica dos projetos-de-vida, o que renderá intervenções mais conscientes. Toda
escola, professores de todas disciplinas e comunidade devem fornecer referências para os
projetos, para tanto. Para tanto é necessário realizar a exposição coletiva dos projetos-de-vida
elaborados, não só na conclusão, mas, em diferentes fases de elaboração, para a comunidade
poder adicionar referências, dicas sobre meios, readequação de objetivos e discussão de
problemas individuais e comunitários.

Conclusão

Esse conteúdo não se aplica apenas aos concluintes do ensino fundamental ou médio,
podem acontecer em todo percurso educacional de forma integral, para tanto, é necessário a
reformulação do Projeto Político Pedagógico (PPP) através dos problemas, justificativas,

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objetivos e meios tradicionais como referências. Como já prevê a (BNCC), quando sugere na
habilidade EF09ER08: “identificar princípios éticos (familiares, religiosos e culturais) que
possam alicerçar a construção de projetos de vida”. (BRASIL, 2018, P.459). A participação
efetiva da comunidade tradicional na construção do programa de ensino escolar pode propiciar
a forma-de-vida comunitária. A participação comunitária possibilita construir a habilidade
EF09ER08 “projetos-de-vida assentados em princípios e valores éticos”. (BRASIL, 2018, p.
459).
A escola ressignificada atua como meio de produção das formas-de-vida. Uma
comunidade ribeirinha que tenha como principal atividade econômica a pesca, pode
reconsiderar a atividade como emancipadora e potenciá-la com esses instrumentos. Podem,
desde mais nova idade, formar seus projetos juntos da vida comunitária, aprender os
conhecimentos necessários para replicar a forma como seus ancestrais vivem, no presente,
potencializado pelo pensamento crítico e políticas públicas. Neste sentido, as pessoas podem
ser avaliadas desde suas vidas. A atividade de projeto-de-vida de sair da escola e objetivar a
experiência na vivência de mundo. O processo de avaliação mede a relação do projeto com a
vida da pessoa e o quanto ela já conseguiu atingir suas felicidades em objeto. A avaliação é
também uma constante reorientação para o projeto-de-vida, assim a escola deve permanecer
aberta para o acompanhamento integral das pessoas, se possível convidar parceiros que
complementem as referências, tirem dúvidas e forneçam informações estratégicas aos projetos.

A escola pode ser totalmente ressignificada através do (PPP), mudar dinâmica de


lanches e merenda, ter horários alterados, disciplinas novas adicionadas e atividades de
extensão para atender à necessidade de preservação dos conhecimentos históricos tradicionais
de comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

DIREITOS TERRITORIAIS: O QUILOMBO E SUAS


RESSEMANTIZAÇÕES EM DEBATE

GEILZA DA SILVA SANTOS


Universidade Federal Rural de Pernambuco, Doutoranda
ilza.sts@hotmail.com

Resumo

O presente texto tem por finalidade, através de uma breve revisão, abordar o processo de
ressemantizações do conceito de quilombo. Tendo por base o artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988, o qual estabelece que
“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. No
entanto, tal artigo trouxe vários impasses conceituares e, principalmente, dificuldades em sua
aplicabilidade, não resolvendo de imediato a situação. Uma das problemáticas que emergiu a
partir das discussões acerca do artigo, seria resolver quais os portadores da identidade de
comunidade quilombola e os procedimentos que seriam utilizados para o reconhecimento das
terras. Para o desenvolvimento do texto, partiremos de uma discussão bibliográfica, a partir
dos antropólogos José Maurício Paiva Andion Arruti (2006, 2008), Ilka Boaventura Leite
(2002) e Alfredo W. B. Almeida (2002, 1996), que em suas respectivas obras abordam os vários
impasses conceituares e dificuldades advindos do artigo 68; bem como as formas atualizadas
de percepção dessas comunidades.

Palavras-Chave: Artigo 68; Quilombos; Ressemantizações

Introdução
Sobre o termo quilombo, o antropólogo José Mauricio Arruti (2008) alerta que não se
pode falar desses sem adjetivá-los e, posteriormente, é necessário perceber o conteúdo de cada
adjetivo. É preciso perceber como através das décadas, o quilombo passou de algo pejorativo,

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que deveria ser repreendido, passando posteriormente a ser fruto de resistência e, mais
recentemente, ser definido através de grupos étnicos, com valores e culturas comuns. O
quilombo foi visto sob as mais diversas óticas e com isso houve variações acerca do seu
significado. Portanto, na primeira parte do texto buscaremos trazer algumas ressematizações
em torno do termo quilombo até chegarmos ao artigo 68 na legislação de 1988.

Ao longo do texto, buscaremos analisar, através das discussões desenvolvidas pelos


antropólogos José Maurício Paiva Andion Arruti (2006, 2008), Ilka Boaventura Leite (2002) e
Alfredo W. B. Almeida (2002, 1996), como a expressão “remanescentes quilombolas” gerou
uma série de discussões sobre quem seria portador dessa identidade, com base no artigo 68.
Portanto, a partir de tais discussões, várias definições foram produzidas, abordando instâncias
étnicas, territoriais e históricas, buscando abranger a variedade de comunidades quilombolas
no Brasil. Desse modo, o conceito de quilombo atual se desenvolve dentro de novas dimensões
de significados, principalmente, articulando a garantia de terras e a afirmação de uma
identidade.

O quilombo e suas interfaces

Segundo Kabengele Munanga (1995), a palavra quilombo seria originária dos povos de
língua bantu (Kilombo). Significando habitação, acampamento, floresta, guerreiro. Na Angola,
por exemplo, é entendido como divisão administrativa. A etimologia da palavra é derivada do
quimbundo (Kilombo).

Sua presença no Brasil teria a ver com alguns ramos desses povos bantu, já que alguns
membros foram trazidos para o Brasil. Para o antropólogo, o quilombo brasileiro estaria
relacionado com o quilombo da África: “é sem dúvida, uma cópia do quilombo africano
reconstituído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implementação
de uma outra estrutura política na qual se encontravam todos os oprimidos”. (MUNANGA,
1995, p. 63). Nesse sentido, o quilombo seria uma das formas encontradas para que os escravos
fugissem da violência advinda da escravização, uma forma de buscar proteção e segurança
nessas terras.

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No Brasil, a palavra quilombo teve muitas variações em seu significado, “ora associado
a um lugar (“quilombo era um estabelecimento singular”), ora a um povo que vive neste lugar
(“as várias etnias que o compõem”), ou as manifestações populares, (“festas de rua”)” (LOPES,
SIQUEIRA & NASCIMENTO, 198, p. 15 apud LEITE, 2000, p. 336). Assim, já podemos
notar a variedade de significados na tradição popular no Brasil referente a esse vocábulo.

Tal termo vem sendo utilizado sistematicamente desde o período colonial, no entanto,
ao longo dos anos foi se modificando a maneira de perceber e caracterizar os quilombos. Foi
percebido pelas autoridades no Brasil Colônia enquanto crime, pois representava uma ameaça
ao sistema escravista e tentava-se de todas as formas encontrá-los e destruí-los. Na legislação
colonial, para caracterizar a existência de um quilombo, seria necessário existirem apenas cinco
escravos fugidos ocupando ranchos permanentes. O conselho ultramarino português de 1740
definiu quilombo como: “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte
desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (LEITE,
2000, p. 336). Na legislação imperial bastava três, mesmo que não formassem ranchos
permanentes. Na legislação republicana, nem aparece mais a definição de quilombo, pois se
subentendia que, com a abolição da escravatura, o quilombo desapareceria de forma automática
ou simplesmente não haveria mais motivos para existir. Havendo um silêncio no que diz
respeito à relação entre os ex-escravos e a terra.

Nos estudos negros do início do século XX, era tratado por alguns, como o caso de Nina
Rodrigues, como um “estado africano entre nós”, visto de maneira inferior e que não
demonstraria as verdadeiras experiências encontradas no Brasil. Em seu livro Os Africanos no
Brasil, aponta que: “De fato, não é a realidade da inferioridade social dos negros que está em
discussão. Ninguém se lembrou ainda de contestá-la. E tanto importaria contestar a própria
evidência” (RODRIGUES, [1932] (2010), p. 289). Pensando o negro dentro racismo científico
irá influenciar toda uma geração.

As perguntas norteadoras das pesquisas nesse período serão em que medida os


quilombos no Brasil eram ou buscavam ser reproduções no modo de vida dos africanos. De
acordo com Cruz et al. (2008) as teses defendidas por esse autor e os estudos voltados para

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uma visão culturalista estavam permeados de preconceitos. Sobre essa questão o historiador
Flávio Gomes pontua:

O próprio Nina Rodrigues, já no início do século XX - tendo como referência


os mocambos de Palmares -, ressaltava que os quilombolas, reproduzindo "as
tradições da organização política e guerreira dos povos bantos" africanos,
procuravam voltar "à barbárie africana" (GOMES, 2006, p. 10).

Na perspectiva dos estudos culturalistas, portanto, os quilombos representariam um


“fenômeno contra-aculturativo”, consistindo na persistência da cultura africana, ou seja, uma
reação a “aculturação” da sociedade escravista.

Na década de 1960, se instaurou uma visão materialista, dando aos estudos do sistema
escravocrata o status de luta de classes, tendo o sociólogo Clóvis Moura (1972) como um dos
seus expoentes, entendendo o quilombo como uma forma organizacional, utilizando o conceito
de resistência. De acordo com Leite (2000, p. 338), Moura utiliza o conceito de resistência,
enfatizando-o como uma forma de organização política.

A visão materialista irá enfocar o quilombo sendo inerente à escravidão, pois estes só
existiriam pelo fato de os indivíduos terem sido escravizados, envoltos de violência e
exploração. Em relação aos quilombos, Moura salienta que “essas comunidades de ex- escravos
organizavam-se de diversas formas e tinham proporções e durações muito diferentes”
(MOURA, 1987, p. 12 apud LEITE, 2000, p. 338). Os quilombos do período colonial seriam
verdadeiros focos de defesa contra o “inimigo”, no entanto, novas dinâmicas surgem com a
abolição, decorrentes das mudanças das “táticas de expropriação”, e “a partir de então a
situação dos grupos corresponde a outra dinâmica, a da territorialização étnica como modelo
de convivência com os outros grupos na sociedade nacional” (LEITE, 2000, p. 338). Nesse
contexto, começa nesses grupos a construção de uma identidade, seja pelas diferenças no
âmbito técnico e cultural, seja pela segregação social e residencial dos negros.

Outra categoria teórica de “ressemantização” foi trazida pelo movimento negro, que
abarcaria a perspectiva cultural com a perspectiva política, elegendo o quilombo enquanto
“resistência negra”, ou seja, seria símbolo da luta do povo negro no Brasil. No entanto, essa
perspectiva só será sistemática ao longo dos anos 1970. No livro de Abdias do Nascimento, O

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quilombismo, esse autor aborda o quilombo enquanto movimento social de resistência física e
cultural das populações negras. Deste modo, nessa ressemantização, o “Quilombo não significa
escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência,
comunhão existencial” (NASCIMENTO, 1980, p. 263).

Nesse mesmo período, entre 1976-1994, a ativista e historiadora Beatriz Nascimento


foi uma das pesquisadoras negras que mais se dedicou ao tema, trazendo assuntos como
memória, relação África-Brasil, territorialidade e espaço. Passando a criticar a historiografia
acerca do quilombo em que se generalizava o termo quilombo a partir de situações como de
Palmares. Aponta semelhanças e diferenças entre os quilombos brasileiros e da África, mas,
acima de tudo, salienta que a palavra quilombo tem uma história, bem como uma tipologia de
acordo com determinada região, com a época, o tempo e sua relação com o território. Na década
de 1970, para essa historiadora, o “quilombo volta-se como código que reage ao colonialismo
cultural, reafirma a herança africana e busca um modelo brasileiro capaz de reforçar a
identidade étnica" (NASCIMENTO, [1985] (2007), p. 124). Nesse momento, a historiografia
e a oralidade sobre os quilombos impulsionaram este movimento em busca de uma revisão dos
conceitos históricos estereotipados.

Artigo 68 e os “remanescentes das comunidades dos quilombos”

Durante a década de oitenta surgem os primeiros estudos antropológicos a respeito


dessas comunidades negras contemporâneas. Para alguns pesquisadores, seria mais viável
chamá-las de “comunidades negras incrustadas” para que assim, termos como quilombo ou
isolados negros fossem evitados, mesmo que correspondessem aos resíduos de antigos
quilombos.

O movimento negro passou a atuar junto às comunidades negras e o contexto brasileiro


estava envolto da luta pela valorização da história do negro e assim foi possível a instituição
do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição
Federal de 1988. Com a Constituição, o quilombo passa a ser reinterpretado. A partir do artigo
68, foi possível: “[...] aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam

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ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes os


títulos respectivos” (Constituição Federal, 1998). A partir de então, tornam-se visíveis diversas
comunidades rurais, sendo identificadas como comunidades quilombolas. Ao reconhecer o
direito da terra aos descendentes de negros, “o fez observando a relação constitutiva da
identidade entre esses povos e o território que tradicionalmente ocupam” (RIBEIRO, 2011, p.
9), trazendo modificações na ressignificação em relação à identidade dessas comunidades
negras rurais.

No entanto, segundo Ilka Boaventura Leite, apesar do quilombo ser “trazido novamente
ao debate para fazer frente a um tipo de reivindicação que, à época, alude a uma “dívida” que
a nação brasileira teria para com os afro-brasileiros em consequência da escravidão, não
exclusivamente para falar em propriedade fundiária” (LEITE, 2000, p. 339), ao final do artigo
68, ao se falar em “remanescentes quilombolas”, se criam vários impasses conceituares e
dificuldades do processo.

José Mauricio Arruti (2008, p. 8), por sua vez, aponta que a redação desse artigo
consiste em “uma formulação amputada”, de forma improvisada, “sem uma proposta original
clara”. Esse artigo consistiria na reparação de uma dívida em relação aos negros e aos
desdobramentos da escravização e por uma abolição que não deu a estes direitos às terras. Para
Alfredo W. B. de Almeida (2002), o artigo 68 seria um dispositivo mais voltado para o passado,
ou seja, para o que havia “sobrevivido”, com a designação de “remanescentes das comunidades
quilombolas”. No entanto, isso geraria dubiedades, sendo preciso romper com o caráter de
“monumentalidade” e “sitio arqueológico” que povoou o imaginário dos legisladores, pois
nada se tinha de autoevidente e assim, emergiram debates acerca do conceito de quilombo.
Umas das questões levantadas pelo antropólogo é: qual conceito de quilombo estaria em jogo
nesse artigo?

Esse artigo não resolveu de imediato a situação e agora a problemática seria resolver
quem seria portador da identidade de comunidade quilombola e também quais procedimentos
seriam utilizados para o reconhecimento das terras. Para Almeida (1996), o conceito de
quilombo deveria ser trabalhado pelo que ele é no presente, como as autonomias dessas
comunidades foram construídas historicamente. Nesse caso, os “remanescentes” não se

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restringiriam a situação de “fugitivos” ou “distantes”. O conceito de quilombo englobaria as


mais variadas situações e essa ressemantização do termo traria o conceito de “terras de uso
comum”, ou seja, grupos sociais que historicamente estabeleceram relações de uso comum com
os recursos naturais (solos, hídricos e florestais), controladas por vários grupos familiares que
compõem uma unidade social.

A territorialidade, tendo por marca o uso comum, submetida às mais variadas


localidades, e tendo origens diferentes, ganham denominações específicas de acordo com a
auto representação dos grupos sociais em situação de conflitos, como, por exemplo: terras de
Índios, Terras de Herança e Terras de Preto. Portanto, ao aproximar as questões de “uso
comum”, problematizando com o artigo 68, foi possível pensar o quilombo dentro das
territorialidades. E assim “remanescentes de quilombos” e “terras de preto” estão
inevitavelmente associadas. Rompeu-se com a ideia de quilombo enquanto resíduo, ao que foi
no passado, percebendo como esses grupos se percebem e reivindicam sua cidadania
atualmente.

Maurício Arruti (2006, p. 81-121) discute acerca do termo “remanescentes”, escolhido


no artigo 68, apontando que a categoria “remanescentes de quilombos” também é um exemplo
de como tais criações podem não corresponder a projetos bem definidos, resultando de
improvisos e reapropriações. Nesse sentido, o autor aponta que o termo surge nesse contexto
para resolver “a difícil relação de continuidade e descontinuidade com o passado histórico, em
que a descendência não parece ser um laço suficiente”. Esse termo, portanto, será utilizado para
referir a essas “formas atualizadas de antigos quilombos”. O que está em evidência não são
mais as “reminiscências” de antigos quilombos, mas sim “comunidades, isto é, organizações
sociais, grupos de pessoas que “estejam ocupando suas terras” como diz o artigo 68”. O que
está em xeque para ser reconhecida enquanto comunidade quilombola são os conflitos
fundiários em que estão envolvidas essas comunidades e não o desejo memorialístico de se
afirmar como continuidade daquelas metáforas do “mundo africanos entre nós”, que foram os
quilombos históricos.

Arruti segue apontando que o termo “remanescente” serve como a expressão formal da
ideia de contemporaneidade do quilombo. Neste caso “[...], a assunção do rótulo de quilombo,

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hoje, estaria relacionado não ao que o grupo de fato foi no passado, mas a sua capacidade de
mobilização para negar um estigma e reivindicar cidadania” (ARRUTI, 2006, p. 89). Agora se
falará na propriedade da terra e não mais se evidenciará a historicidade dos remanescentes. O
quilombo será visto como “grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e
reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”, cuja identidade se
define por “uma referência histórica comum, construída a partir de vivências e valores
partilhados” (Idem, p. 93).

De acordo com a Associação Brasileira de Antropologia-ABA, apesar de ainda


permanecer seu conteúdo histórico, o termo quilombo vem sendo ressemantizado para designar
a situação dos segmentos negros em diversas regiões e contextos no Brasil. E apontam como
tais definições são elaboradas por organizações não governamentais, organizações autônomas
dos trabalhadores, movimento negro e etc. Para a ABA:

Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou


resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação
biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população
estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a
partir de movimentos insurreicionais ou rebelados, mas sobretudo, consistem
em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e
reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar
(ABA, 1994, p.2).

Para esse grupo, os quilombos constituem “grupos étnicos”, utilizando o conceito do


antropólogo Fredrich Barth (1998), sendo um tipo de organização que indica pertencimento
por meios que indicam afiliação ou exclusão. Nesse caso, é preciso perceber como o conceito
de quilombo se articula dentro dessas novas dimensões de significados, ou seja, dentro de um
conceito de quilombo atual, tendo por finalidade a “garantia de terras e a afirmação de uma
identidade própria” (ALMEIDA, 1996, p. 11).

Conclusão
As diversas comunidades rurais (algumas urbanas) espalhadas por todo o Brasil são os
reflexos de um longo processo de escravização e no pós-abolição de negros que se juntaram e

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formaram comunidades, seja por laços de parentescos ou amizade. Como bem salienta Flávio
Gomes “[...] O desenvolvimento das comunidades negras contemporâneas é bastante
complexo, com seus processos de identidade e luta por cidadania” (Gomes, 2015, p. 7). As
comunidades quilombolas não são reconhecidas apenas através de sua origem no período
escravista, mas a partir de uma referência histórica comum, construída a partir de vivências e
valores partilhados. A legalização destas comunidades na atualidade perpassa, portanto, as
questões de identidade e territorialidade.

Em linhas gerais, as discussões em torno das questões elencadas por pesquisadores


sobre os quilombos e a legislação pertinente á questão quilombola; bem como de grupos e
organizações que passam a colocar em pauta tais questionamentos sobre quem seria portador
de tal identidade, contribuem para (re)discutir e (re)caracterizar o conceito de quilombo,
buscando ampliar e abarcar uma variedade de experiências das comunidades negras rurais e
urbanas. As discussões desenvolvidas a partir do artigo 68 corroboraram a busca de
aprimoração nos mecanismos de identificação e reconhecimento das comunidades quilombolas
espalhadas pelo Brasil e que possuem suas especificidades.

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O NEGACIONISMO SOBRE A MEMÓRIA DA VIOLÊNCIA DA


DITADURA MILITAR: A NECESSIDADE DE RESGATAR OS CORPOS
DISSIDENTES

HENRIQUE CINTRA SANTOS (1), ALLANA LETTÍCIA DOS SANTOS (2)


(1) Universidade Federal de Santa Catarina, Doutorando
henriquecintra@outlook.com
(2) Universidade Federal de Santa Catarina, Mestranda
allanaletticia@hotmail.com

Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir as delimitações das disputas pela hegemonia da
memória, perpassando pelas abordagens tanto negacionistas como as que promovem o resgate
da mesma, principalmente a partir das produções historiográficas. Pretende-se observar como
os corpos dissentes foram censurados e violentados pelo regime ditatorial militar e as
estratégias de sobrevivência que utilizaram, evidenciando as lutas do Movimento LGBT+
desde os anos 60 até sua intensificação em 1978. Destaca-se, nesse sentido, as repressões sobre
a imprensa, sofridas pelo jornal Lampião da Esquina, e as truculentas abordagens policiais,
nominadas como Rondões, nos centos urbanos da cidade de São Paulo no período em estudo.
Além disso, tornou-se oportuno enfatizar como as novas mídias digitais endossam os discursos
revisionistas, promovendo outros resgates memorialísticos sobre ditadura, ofuscando os danos
causados e elevando apenas os prestígios militares. Assim, ao apontar para os cenários de
hostilidades em se viram os corpos dissidentes de gênero e sexualidade durante a ditadura, visa-
se contrapor os discursos que negam as ações do Estado, dificultando, assim, a disseminação
pública desses ideais negacionistas.
Palavras-chave: Ditadura; Memória; Negacionismo

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Introdução

Em 2018, o então candidato a presidência Jair Bolsonaro participou do programa Roda


Viva da TV Cultura. As indagações acerca à opinião do político sobre a ditadura militar foram
bastante exploradas pelos jornalistas responsáveis pelo desenrolar da entrevista e a promoção
do debate durante o programa1. Na ocasião, Bolsonaro, evidentemente incomodado pelas
constantes perguntas dos jornalistas dentro do tema da ditadura militar no Brasil, em certo
momento defende que tal debate deveria ser superado e que era necessário se voltar à discussão
do futuro do país. A colocação do candidato soou incoerente naquele momento, vide o histórico
de Bolsonaro em tomar a ditadura militar como ponto fulcral em seu posicionamento político,
principalmente ao se direcionar contrário à esquerda brasileira. Atualmente, as discussões sobre
o tema, ao contrário do que supostamente defendido pelo político no programa Roda Viva, se
intensificaram.

O presente artigo almeja, dessa forma, notar a intensificação das disputas pelo
enquadramento da memória sobre a ditadura militar brasileira, destacando não apenas os
negacionismos em relação à violência do período, mas também a necessidade de se estimular
a produção de uma historiografia que atue no resgate dessa memória e que consiga dispô-la ao
acesso popular. Destaca-se aqui a memória das múltiplas violências e restrições, nas quais se
viram os corpos dissidentes em gênero e sexualidade durante o período.

Disputas sobre o enquadramento da memória, revisionismos ou negacionismos

A partir das discussões sobre memória coletiva (HALBWACHS, 1990), Pollak (1992)
refletiu sobre os enquadramentos da memória, os quais são tomados por disputas. Pensar sobre
os jogos e embates que entremeiam os enquadramentos da memória implica considerar não só
as formas pelas quais a memória nacional (e coletiva) se estabelece, mas também o seu
constante estado de iminente contestação. Deve-se destacar, que tal instabilidade não
necessariamente aponta para um aspecto negativo que atravessa as disputas por tais
enquadramentos. Pelo contrário, se hoje há uma procura por desconstruir as histórias
hegemônicas e eurocêntricas, tal possibilidade ocorre exatamente a partir de contestações.

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Memórias a favor da ditadura não encontravam espaço público significativo de


propagação, principalmente no período pós redemocratização em que uma conjuntura
favorável para a esquerda era observada (NETO, 2019). No momento presente, no entanto, um
discurso pró ditadura e intervencionismo militar é disseminado cada vez mais. Tal observação
ocorre de forma bastante contraditória ao se notar o apoio à democracia por 75% da população,
como mostrou o Datafolha em junho de 20202. Esse evidente descompasso entre os dados de
apoio à democracia e a proliferação de demonstrações públicas a favor da ditadura e ação
militar no país escancaram um popular “desconhecimento sobre os eventos e processos em
torno do golpe de 1964, deixando patente a ausência de ressonância, na esfera pública, das
violências ocorridas durante a ditadura militar brasileira” (NETO, 2019, p. 85). Enquanto
Neto (2019) aponta junho de 2013, momento de inúmeros protestos populares, como um marco
importante para o início de uma intensificação dessas manifestações de exaltação à ditadura,
as atividades promovidas pela Comissão da Verdade nesse contexto devem também ser
observadas. Pereira (2015) articula a Comissão da Verdade como um período o qual o autor
coloca como “guerra de memórias”, particularmente a partir de ações provenientes de parcelas
da direita, as quais se opunham às discussões em curso na Comissão.

Desde então, identifica-se uma exacerbada disputa pela memória da ditadura militar,
especialmente a fim de ressignificar positivamente o período histórico do país. Por um lado,
observa-se em certos setores uma tentativa de atualização dessa memória da ditadura. Seriam
os chamados revisionistas, aqui entendidos como utilitários de uma “interpretação livre que
não nega necessariamente os fatos, mas que os instrumentaliza para justificar os combates
políticos do presente a fim de construir uma narrativa “alternativa” que, de algum modo,
legitima certas dominações e violências” (PEREIRA, 2015, p. 865). A narrativa, por exemplo,
focada na questão do comunismo é algo que permeia largamente a compreensão popular do
período (MOTTA, 2014) e é, assim, instrumentalizada por tais revisionistas, particularmente
utilizando a estratégia que Rüsen (2009) denomina de anonimização. Assim, ao se colocar as
ações dos militares, procura-se não mencionar as barbáries, como as torturas e as violências,
mas sim se fincar na necessidade da ação militar. Dessa forma, “ao invés de falar de
assassinatos e crimes, de sofrimento por uma falha ou culpa, menciona-se ‘período de trevas’,
‘destino’, uma ‘invasão de forças demoníacas’” (RÜSEN, 2009, p. 196).

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Já negacionismo é aqui compreendido como uma radicalização da negação, em que há


“uma contestação da realidade, fato ou acontecimento que pode levar à dissimulação, à
falsificação, à fantasia, à distorção e ao embaralhamento” (PEREIRA, 2015, p. 866). Tais
negacionismos são observados regularmente entre as disputas pela memória e podem ser
apontados, por exemplo, entre aqueles que negam a tortura empregada pelas forças militares
no período ditatorial brasileiro, alegando intenção política e/ou financeira pelas vítimas que
dão seus testemunhos.

Novas mídias e a intensificação das disputas sobre a memória da ditadura militar

Neto (2019) demonstra que não apenas a memória e a história se tornaram consumos
de massa, mas esse crescimento “desse interesse possibilitou diversas formas de recepção do
passado pelos agentes sociais, assim como pôde gerar uma banalização do passado” (NETO,
2019, p. 85), movimento que ganha proporções de adesão e abrangência ainda maior com as
plataformas de divulgação e interação possibilitadas pela internet. Se antes as disputas sobre a
memória coletiva e/ou nacional se davam também no espaço público, mas sob as rédeas
institucionais, a História hoje perde a soberania sobre tais disputas. A plataforma de vídeos do
Google, o YouTube, tem sido nesse sentido um dos principais meios por onde essas discussões
ocorrem. Assim, observa-se um quadro extenso de usuários que se engajam na discussão sobre
o período da ditadura militar, em especial canais identificados com um discurso de extrema-
direita, majoritariamente compartilhando de um negacionismo da violência e tortura
empreendidas pelos militares e o enaltecimento da vida na época. Neto (2019) afirma que

as contradições da ditadura militar brasileira levam os leigos a entendê-la a


partir de um lado dos opostos, tornando-se imprescindível aos historiadores e
estudiosos do período introduzir um conhecimento multifacetado referente ao
tema (NETO, 2019, p. 88).

É na necessidade de uma inspeção multifacetada do período ditatorial militar brasileiro


que aqui se propõe o olhar para os corpos dissidentes de gênero e sexualidade no período.
Quando Neto (2019) observa o canal eGuinorante no YouTube, ele se depara com a justificação

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

das possíveis violências empreendidas pelos militares na época a partir da ideia de que
“geralmente se você estava levando borrachada, cacetada e tudo mais é porque você não estava
fazendo alguma coisa que presta, alguma coisa de errado você estava fazendo”3.

Tendo em vista tal colocação, pode-se imaginar, por exemplo, como que tais sujeitos
analisariam as investidas violentas contra LGBT+4 no Centro de São Paulo a partir dos famosos
Rondões encabeçados pelo delegado Richetti no começo dos anos 1980. Presume-se aqui que
tal violência seria justificada encontrando sua razão na suposta inadequação dos atos que os
indivíduos alvos poderiam estar “cometendo” nas ruas. É por isso que, retomar a memória
LGBT+ sobre o período ditatorial se faz profícuo não apenas a fim de combater os
negacionismos, mas também para ir ao encontro do que Neto (2019) sugeriu ao frisar a
necessária análise multifacetada sobre o período ditatorial militar no país. Deve-se ter em
mente também que, considerando a insistência dessa nova extrema direita brasileira em criticar
o movimento LGBT+ e os feminismos (MICHELS, 2017), tal empreendimento historiográfico
se faz ainda mais necessário.

Uma repressão multifacetada

Almeja-se, então, recuperar três momentos do período analisado que promovam um


olhar mais plural sobre as formas com que corpos dissidentes de gênero e/ou sexualidade foram
violentados (fisicamente e/ou simbolicamente) durante a ditadura militar brasileira: o “atraso”
do desenvolvimento de um movimento LGBT+ brasileiro; as dificuldades impostas às
organizações LGBT+ ainda no período de abertura; e o uso da violência física e policial nos
chamados rondões da polícia paulistana. Ao observar os três momentos, dentre uma variedade
imensa de outras narrativas que poderiam ser aqui colocadas, espera-se traçar exatamente o
caráter múltiplo pelo qual as repressões foram colocadas pela ditadura militar.

O adiamento do movimento LGBT+ no Brasil

Há certo consenso hoje em visualizar uma primeira onda do movimento LGBT+


brasileiro iniciando em 1978, com a criação do jornal Lampião da Esquina no Rio de Janeiro.
No entanto, isso não significar que uma forte sociabilidade homossexual (ou LGBT+) já não

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

estava em curso há anos no país. Dentre os autores que se debruçaram sobre tais redes
anteriores a ditadura, destaca-se Green (2019), o qual apontou para uma efervescente
manifestação social e cultural em torno de práticas homoeróticas na passagem do século XIX
para o XX e gradual intensificação no decorrer das décadas.

Nos anos 1960 a formação de redes de sociabilidade em torno das práticas homoeróticas
estava em plena expansão. Costa (2010), ao observar o período, delineia uma rede extensa de
sociabilidade homossexual no Rio de Janeiro, principalmente a partir dos relatos do jornal O
Snob (1963-164), o qual era um registro rico dos contatos e atividades traçadas entre os diversos
grupos homossexuais que se expandiam pela capital carioca. Costa (2010) chegou a
contabilizar nove grupos apenas com os relatos encontrados nos registros do jornal O Snob:
“Turma do Catete, Turma de Copacabana, Turma da Zona Norte, Turma do Leme, Turma OK,
Turma da Glória, Turma da Mafalda, Turma de Botafogo e o Grupo Snob” (COSTA, 2010, p.
31).

Guimarães (2004) também observou desenvolvidas redes de contato homossexual


também no Rio de Janeiro durante os anos 1960. Porém, se havia tal intensificação observada
nas redes e grupos homossexuais nos grandes centros urbanos, por que a primeira onda do
movimento LGBT+ brasileiro conseguiria se estabelecer apenas em 1978? Defende-se aqui,
então, que a ditadura, com todo seu aparato repressivo e de censura, deve ser responsabilizada
pela inviabilização da continuidade do fortalecimento desses grupos e possíveis ações públicas
(como a publicação de periódicos como O Snob). Isso não quer dizer que qualquer
possibilidade de sociabilidade em torno de práticas homoeróticas tivesse sido inviabilizada,
mas sim que não havia mais espaço possível para que ações extensas de cunho organizado,
público e político pudessem ser estabelecidas nesse cenário. Tal inviabilização é especialmente
firmada com o AI-5, o qual acabou dispersando as intenções desses grupos em se organizarem
de forma pública, muito menos política. Assim, pode-se relatar certo adiamento do movimento
LGBT+ no país, o qual apenas viria a se consolidar e expandir no momento em que sinais de
abertura política estavam mais nítidos.

A repressão no período de abertura: o jornal Lampião da Esquina

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Em abril de 1978 é publicado o número zero do jornal Lampião da Esquina,


considerado um dos pontos principais de intensificação de uma primeira onda do movimento
homossexual, hoje LGBT+, no Brasil. O jornal foi pioneiro, principalmente por ser uma
publicação explicitamente voltada ao público homossexual durante o período militar ditatorial.
Tal explicitação é evidente, por exemplo, pelo fato de seus editores não utilizarem
pseudônimos, mas sim suas identidades reais, algo novo no que concerne publicações
abertamente voltadas a leitores homossexuais.

Na edição cinco do jornal, ficou explícito que o Estado militar ditatorial não permitiria
facilmente a continuação do jornal. Os editores informaram aos leitores nessa edição sobre a
pressão que vinham recebendo desde agosto de 1978, a qual viria a se estender por 12 meses.
O jornal foi alvo de um inquérito policial e acusado de atentado à moral e aos bons costumes.
Entre as diversas investidas contra a publicação e os seus editores, destaca-se a submissão de
tais sujeitos à depoimentos e interrogatórios policiais. Para Rodriges (2014) a indagação direta
dos investigadores aos editores sobre se eles realmente eram homossexuais é indicativo da
dificuldade na época dessas instituições e também da sociedade em aceitar a defesa proposta
pelo Lampião sobre o “prazer como direito fundamental do ser humano” (RODRIGUES, 2014,
p. 107).

Foi somente em outubro de 1979 que o episódio de perseguição legal ao jornal teve o
seu fim com o Procurar da República da época, Sérgio Ribeiro da Costa, dando o parecer de
que o jornal até poderia ter ofendido “a moral de alguém, mas não de todos” (McRAE, 2018,
p. 234). Apesar do encerramento do caso, o episódio marca a explícita intervenção do governo
militar ao tentar repreender as organizações que se propunham a estabelecer algum tipo de ação
organizada em torno da homossexualidade no Brasil.

Os rondões no centro de São Paulo

O Centro da cidade de São Paulo foi marcado, no começo dos anos 1980, por operações
policiais violentas, os chamados rondões ostensivamente empreendidos no período. Essas
investidas, as quais inicialmente parte da chamada Operação Limpeza e depois denominadas
como parte da Operação Rondão, coordenadas em especial pelo infame delegado Richetti,

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

aconteciam sob o pretexto de lidar com a criminalidade que, presumivelmente, permeava o


centro paulistano.

Os rondões, apesar de inicialmente serem justificados sob a pretensão de tornar o centro


da cidade mais seguro no que concerne à criminalidade, “havia se transformado na detenção
de LGBTs e prostitutas que frequentavam o centro da cidade” (OCANHA, 2014, p. 162). Deve-
se destacar, nesse sentido, que tais prisões eram feitas sem critérios definidos e geralmente
baseadas no local em que eram encontrados os indivíduos, aparência dos sujeitos, entre outras
arbitrariedades. Dessa forma, diversos segmentos LGBTs sofreram a violência propagada por
tais operações

não se limitando aos que se encontravam em situação de prostituição. A


prostituição de fato passou a ser mais vista e comentada na época, mas as
rondas não se limitavam a ela, somente se utilizavam do argumento de sua
expansão para justificar suas prisões arbitrárias. (OCANHA, 2014, p. 154)

Ocanha (2014) ainda chama a atenção para o contexto daquele momento em que a
homossexualidade havia rompido com os limites do silêncio que a subjugava há tanto tempo e
as rondas sob comando de Richetti “foram a principal forma de combater à homossexualidade
utilizada na cidade de São Paulo na fase de abertura da ditadura militar” (OCANHA, 2014, p.
154). Assim, não se pode observar as investidas policiais apenas como um fato isolado, mas
uma resposta institucional direta à maior presença pública dos corpos dissidentes em gênero
e/ou sexualidade. Além disso, o apoio de diversos setores da sociedade é impossível de ser
observado como iniciativa particular da sociedade paulistana, mas sim uma extensão da
invisibilização, repressão e marginalização da homossexualidade não iniciado na, mas
continuamente perpetuados pela ditadura.

Considerações finais

Almejou-se aqui apresentar três cenários de violência e repressão diversos direcionados


à corpos LGBT+ durante a ditadura militar brasileira. Enquanto a violência empreendida pela
polícia paulistana e o inquérito policial em que o Lampião foi submetido explicitam mais
facilmente o caráter repressivo do período, o adiamento do desenvolvimento das organizações

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

LGBTs apontam para implicações menos evidentes das medidas de repressão e censura, mas
que ainda impactaram ostensivamente a vida desses atores.

Provavelmente se tal análise fosse apresentada aos produtores de vídeos negacionistas


sobre a ditadura no YouTube, possivelmente não se incomodariam com os dois primeiros
exemplos e tentariam justificar a violência dos rondões atestando possível inadequação ou
ilegalidade nos atos de quem acabava sendo preso durante as operações policiais. Lidar com
tais perspectivas negacionistas é extremamente desafiador. Mas aqui, ao sair da lógica da
“ameaça comunista” e apresentar exemplos que promovem uma conjuntura mais
multifacetada, ainda que limitada, talvez seja possível complicar a validação dos discursos que
visam negar as violências cometidas pelo Estado ditatorial.

Como apontado anteriormente, uma das grandes aversões da extrema-direita brasileira


hoje é o movimento LGBT+. Talvez se voltar para os corpos LGBT+ e as violências que foram
submetidos na ditadura seja, então, uma estratégia profícua para dificultar a validação pública
dos negacionismos e, mais do que isso, (re)inserir a História na disputa sobre uma memória
coletiva do período militar ditatorial brasileiro.

Notas
[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lDL59dkeTi0
[2]Disponível em: https://bityli.com/8fvhm
[3]Trecho da transcrição do vídeo analisado por Neto (2019, p. 94)
[4] É necessário sublinhar que na época de ditadura tais grupos não utilizavam o termo
LGBT+, mas sim homossexual.

Referências
COSTA, Rogério da Silva Martins. Sociabilidade Homoerótica Masculina no Rio de Janeiro
na Década de 1960: Relatos do Jornal O Snob. Monografia (Mestrado Profissional em Bens
Culturais e Projetos Sociais) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea
do Brasil, Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2010.

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

GREEN, J. N. Além do Carnaval. A Homossexualidade Masculina do Brasil do Século XX.


São Paulo: Editora Unesp, 2019.
GUIMARÃES, C. D. O Homossexual Visto por Entendidos. Garamond, 2004.
HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
MCRAE, E. A Construção da Igualdade: Política e Identidade Homossexual no Brasil da
“abertura”. Salvador: EDUFBA, 2018.
MICHELS, Róger de Souza. O discurso conservador brasileiro nas novas mídias digitais e a
honra da família: uma leitura à luz de Wilhelm Reich. VI Jornada de Pesquisa em Psicologia
– PSI UNISC: Pesquisa e Tecnologia na Psicologia Atual. 2017.
MOTTA, R.P. O golpe de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião. Revista Tempo, v. 20,
p.1-21, 2014.
NETO, G.H. A “nova direita” no Youtube: conservadorismo e negacionismo histórico sobre a
ditadura militar brasileira. Revista Ágora, n. 29, p. 83-103, 2019.
OCANHA, R. As rondas policiais no combate à homossexualidade na cidade de São Paulo.
(1972-1982) In: GREEN, J.; QUINALHA, R. (Orgs.) Ditadura e Homossexualidades –
Repressão, Resistência e a Busca da Verdade. São Carlos: Edufscar, 2014.
PEREIRA, M.H. Nova Direita? Guerra de memórias em tempos de Comissão da Verdade.
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Estudos Históricos, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.
QUINALHA, Renan Honório. Contra a moral e os bons costumes: a política sexual da
ditadura brasileira (1964-1988). Tese (Doutorado em Relações Internacionais) – Instituto de
Relações Internacionais, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.
RODRIGUES, J. Um lampião iluminando esquinas escuras da ditadura. In: GREEN, J.;
QUINALHA, R. (Orgs.) Ditadura e Homossexualidades – Repressão, Resistência e a Busca
da Verdade. São Carlos: Edufscar, 2014.
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n. 2, p. 163-209, 2009.

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

O ENSINO DE HISTÓRIA E O REFERENCIAL CURRICULAR


AMAZONENSE, ENSINO FUNDAMENTAL, ANOS FINAIS. ANÁLISE
PRELIMINAR

HIDERALDO LIMA DA COSTA


Universidade Federal do Amazonas, Doutor
hideraldocosta@uol.com.br
.
Resumo

Com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os entes federativos ficaram
com a responsabilidade de coordenar e construir seus respectivos referenciais curriculares. No
Amazonas, o Referencial Curricular Amazonense foi aprovado pelo Conselho de Estadual de
Educação por meio da Resolução N. 098/2019 CEE/AM, em 16/10/2019. Analisaremos aqui o
processo de sua elaboração, que envolveu um número considerável de atores sociais como
CONSED, UNDIME, Comissão de Implementação da Base Nacional Comum Curricular no
Amazonas e um número significativo de profissionais da SEDUC/SEMED, com a presença da
iniciativa privada, de todas as áreas do conhecimento, assim como colaboradores externos às
secretarias de educação. Do documento, destacamos algumas preocupações dos redatores ao
apresentarem a proposta de história: 1 - RCA: Marco legal e o Componente Curricular História
no Ensino Fundamental; 2 - Currículo e o Componente Curricular História no Ensino
Fundamental; 3 - O Componente Curricular História e seus procedimentos básicos no
Referencial Curricular Amazonense; 4 - O lugar do regional/local no Componente Curricular
História. Por fim, analisaremos a proposta curricular para o ensino Fundamental, anos finais e
as condições de sua implementação no Amazonas.

Palavras-chave: Ensino de história; Currículo, Procedimentos metodológicos

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Introdução
O processo que resultou na aprovação da terceira versão da BNCC no CNE, em
dezembro de 2017, não pode ser dissociado dos interesses autoritários cuja articulação
sistêmica resultou na destituição, via impeachment, do cargo de presidente da senhora Dilma
Rousseff, em 2016. Estamos falando de um golpe parlamentar já bastante debatido.

Dentre as inúmeras críticas a essa versão da BNCC, feitas por profissionais da educação
das mais diversas áreas do conhecimento, assim como por diferentes organizações científicas
do campo educacional, destaca-se a ausência do debate coletivo com a sociedade, assim como
o processo autoritário que desrespeitou ritos necessários à sua aprovação. (AGUIAR, 2018, p.
11).

Entre junho e agosto de 2016, em mais uma etapa de atividades para viabilizar mais
uma fase de trabalho da BNCC, com as contribuições oriundas de seminários, a União Nacional
dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e o Conselho Nacional de Secretários de
Educação (CONSED) elaboraram um relatório à segunda versão da BNCC e o encaminharam
ao Comitê Gestor do MEC. O "Comitê Gestor foi o responsável pelas definições e diretrizes
que orientaram a revisão da 'segunda versãoˈ e que deu origem à ˈterceira versãoˈ, encaminhada
ao CNE, em abril de 2017" (AGUIAR, 2018, p. 12) com a exclusão do Ensino Médio.

O processo que resultou na aprovação da chamada terceira versão da BNCC foi a


proposta apresentada pelo MEC através do "Comitê Gestor e suas equipes, segmentadas por
componente curricular, de forma individualizada e oralmente. Não foram apresentadas
justificativas por escrito para a não inclusão de contribuições ocorridas nas audiências públicas
e mesmo as apresentadas pelo CNE". (AGUIAR, 2018, p. 12). Fica patente a exclusão das
contribuições ao documento oriundas das diversas formas de participação democrática de
diversos segmentos sociais nas etapas anteriores.

A terceira versão da BNCC, que resultou no documento final aprovado em dezembro


de 2017 pelo CNE, é signatária de inúmeras críticas. Vejamos a proposta aprovada no
Amazonas no âmbito do documento Referencial Curricular Amazonense, Ensino Fundamental,
anos finais.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

No Amazonas, um dos Estados escolhido para sediar a primeira das cinco audiências
públicas, para minimizar as críticas sobre o caráter excludente da BNCC, contou com a
participação de especialistas e, do lado de fora da plenária, uma quantidade significativa de
professores denunciava o caráter restritivo da audiência.

Referencial Curricular Amazonense

A BNCC para a Educação Infantil e Ensino Fundamental, aprovada pelo CNE e


homologada pelo MEC, adotam uma visão pedagógica centrada na aprendizagem, subjugando
o currículo a uma lógica da avaliação por desempenho.

O Referencial Curricular Amazonense, Ensino Fundamental, anos finais, foi tornado


público em fins de 2019 para vigorar nas escolas das redes públicas, estadual e municipal,
assim como na rede privada, no decorrer de 2020. O processo de sua elaboração envolveu um
número considerável de instituições como CONSED, UNDIME, Comissão de Implementação
da Base Nacional Comum Curricular no Amazonas e um número amplo de profissionais da
SEDUC/SEMED, de todas as áreas do conhecimento, assim como colaboradores externos às
secretarias de educação.

O processo de construção pelos pares, realizado por meio das consultas públicas, foi
criticado por um número expressivo de professores, de todas as áreas do conhecimento, que
denunciaram uma vez mais o caráter autoritário do processo de aprovação da BNCC/RCA e
sua consequente implantação, alertando para os prejuízos inerentes ao processo educacional.

Para os objetivos deste artigo, interessa-nos analisar o componente curricular História,


integrante da área de Ciências Humanas. O documento foi escrito por professores de História
que no documento Referencial Curricular Amazonense eram chamados de redatores. A
professora da SEDUC, Raimunda Nonata Freitas de Souza, como representante do CONSED,
foi a responsável pela parte referente ao Ensino Fundamental, anos finais, e Rosivaldo da
Fonseca Moreira, professor do município de Manaus, como representante da UNDIME,
responsável pela escrita do Ensino Fundamental, anos iniciais.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

O documento que apresenta o componente curricular História contém ao todo cinquenta


e quatro páginas sendo sete delas (523-529) para apresentação do componente curricular, não
havendo subdivisões. As demais páginas compõem o currículo do sexto ao nono ano.
Procurarei discutir algumas preocupações expressas no documento da redatora e que a
motivaram, mesmo que de forma implícita, chamar atenção para os problemas com os quais se
defrontou. Para tanto, procurarei dar voz à sua escrita.

Na leitura do documento, como informei, sem subdivisões, dei títulos às ordens de


preocupações e tensões enfrentadas pela redatora ao tentar explicitar o universo de
complexidades que os professores/leitores que, porventura, se debrucem no documento
encontrarão. Dos temas tratados, dei os seguintes títulos: 1 - RCA: Marco legal e o Componente
Curricular História no Ensino Fundamental; 2 - Currículo e o Componente Curricular História
no Ensino Fundamental ; 3 - O Componente Curricular História e seus procedimentos básicos
no Referencial Curricular Amazonense; 4 - O lugar do regional/local no Componente
Curricular História; 5 - Estrutura curricular do 6◦ ao 9◦ ano.

É importante destacar que o documento aprovado em dezembro de 2017 - BNCC foi e


continua sendo fomentador de inúmeras críticas advindas de associações que congregam
profissionais das mais diversas áreas: pedagogos, historiadores, geógrafos, filósofos,
sociólogos, entre outras. As críticas feitas são pertinentes e aqui destaco a retirada do Ensino
Médio da proposta BNCC que desarticula uma visão de educação integradora.

É importante resgatar que os professores redatores da proposta trabalharam com


determinações legais e, diante dos limites, fizeram o possível para romper com as restrições e
distorções impostas, ou melhor, procuraram assegurar a viabilidade das determinações legais
aprovadas, muitas delas ainda alvo de críticas por setores conservadores.

O conhecimento produzido nas universidades deve levar em consideração que o saber


escolar tem seus meandros e não pode ser mensurado da mesma forma. Diversas variáveis de
saberes entram em cena na feitura de uma proposta curricular. Aqui não há críticas pessoais,
pelo contrário, é uma tentativa de reflexão para ampliar o debate. Enfatizo mais uma vez que a
proposta da BNCC é restritiva, insiste no projeto de uma base unificadora e homogeneizadora,

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

sob o argumento de que a qualidade da educação depende desse projeto. (LOPES, 2018, p. 26).
Essa ideia poderá ser vista uma vez que se encontra presente de modo claro no RCA.

Feitas essas ressalvas, que considero importantes, inicio minhas observações ao


documento público que nos chegou às mãos, o Referencial Curricular Amazonense, Ensino
Fundamental, anos finais. Ainda são observações iniciais, preliminares, sobre a área de
HISTÓRIA apresentada como componente curricular.

O Componente Curricular História no RCA

As análises iniciais aqui feitas referem-se à apresentação da estrutura curricular


HISTÓRIA constante das páginas 523-576. O documento destaca as colaborações recebidas
que possibilitaram a construção do documento RCA-EF-2. Registra ainda a participação das
instituições privadas, e isso não é pouca coisa.

A participação das instituições privadas de ensino, muitas internacionais, faz eco a uma
das fortes críticas atribuídas a BNCC, por alargar ainda mais a influência do ensino privado
como fonte de lucro no processo educacional. A presença das universidades públicas, também
destacada, faz-se presente como parte do processo de construção do RCA. As demais
instituições são a SEMED, professores da SEDUC-AM, Nilton Lins e professores da UFAM.
A redatora destaca leis e resoluções como a LDB/9394/96, as Leis 10639/2003 e 11645/ e a
Resolução CNE/CP n. 2 de 22/12/2017 BNCC. Os documentos legais citados servem para
respaldar o trabalho feito. Segundo a redatora,

[...] de acordo com as leis citadas acima, o Referencial Curricular do


componente de História encontra-se de acordo com esse marco legal, sendo,
a História, uma ciência humana que tem como objeto de estudo o homem e
as relações sociais, políticas, econômicas, culturais e religiosas construídas
por este em sociedade através do tempo. O homem é, portanto, ao mesmo
tempo, sujeito e objeto do estudo da História. (RCA, 2019, p. 523).

A redatora resgata a "História uma Ciência Humana que tem como objeto de estudo o
homem e as relações sociais [...] construídas por este em sociedade através dos tempos" (RCA,

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

p.523, 2019) procurando recuperar a dimensão de que o processo histórico é forjado de forma
coletiva. Enfatiza ainda que o historiador, por meio de registros documentais variados, busca
conhecer aspectos da realidade de sociedades passadas resgatando uma discussão sobre os fatos
históricos como uma construção do historiador. Esses aspectos teórico-metodológicos
possibilitam ao professor trabalhar o ofício do historiador de forma crítica, contrapondo-se a
uma concepção de conhecimento cristalizado. (RCA, 2019, p. 523).

Ao procurar trabalhar as contradições existentes nas sociedades, o documento chama


atenção que "a pobreza e as desigualdades sociais, enquanto fenômenos humanos, são
resultantes das relações sociais estabelecidas." Para dar conta de como essa complexa realidade
histórica será trabalhada, alerta que "a organização curricular precisa contemplá-las, além de
questões relacionadas à diversidade étnico-racial, religiosa, sexual e gênero, característica da
humanidade, em especial da sociedade brasileira." (RCA, 2019, p. 524) Procura deixar claro
que "pensar o ensino de história e o ofício do historiador em sala de aula requer não apenas
uma seleção de conteúdos adequados, mas ênfase em uma formação continuada que possibilite
ao/a educador/a uma abordagem inovadora que tenha como foco a análise e a construção de
uma prática social libertadora." (RCA, 2019, p. 524) Neste ponto, o documento chama atenção
para a necessidade de uma formação continuada. Sem deixar claro como esta poderá ser
viabilizada.

Esquadrinham os limites possíveis para se posicionarem e afirmam que "a construção


deste referencial curricular considera a desconstrução do status de uma cultura hegemônica,
primando por um instrumento de legitimação de conhecimentos diversos, expressando as
contradições e não apenas os padrões dominantes". (RCA, 2019, p. 524).

Como essas preocupações estão postas no currículo? Os redatores explicitam que no


"Referencial Curricular do componente de História do Ensino Fundamental Anos Finais,
trabalha-se com: Unidades Temáticas, Objetos de Conhecimento, Competências, Habilidades
e o Detalhamento do Objeto de Conhecimento." (RCA, 2019, p. 524) Ou seja, o conteúdo está
proposto. Ao trabalharem dessa forma, os redatores procuram sinalizar, de modo muito forte,
o que e como os professores podem/devem trabalhar em sala de aula.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Aqui podemos considerar que o documento RCA sinaliza para mais uma das inúmeras
críticas feitas a BNCC, que é o caráter de minimizar a inventividade, a criatividade do professor
junto aos alunos no complexo universo escolar limitando, e até mesmo minimizando, sua
autonomia para operar a seleção sobre o que ensinar. Se a intenção era facilitar a vida do
professor, por outro lado, a proposta sinaliza que a homogeneidade de conteúdos tão criticada
na BNCC acaba se tornando uma realidade. Se não foi essa a intenção dos redatores mesmo
assim acabam por confirmar as críticas feitas a BNCC.

Outro ponto importante de destaque no documento Referencial Curricular


Amazonense, Ensino Fundamental, anos finais são os procedimentos básicos, em número de
três.

1. "Pela identificação dos eventos considerados importantes na história do Ocidente


(África, Europa e América, especialmente o Brasil), ordenando-os de forma cronológica e
localizando-os no espaço geográfico. Esse procedimento usa uma forma de registrar a memória
e a cronologia, constituída por meio de uma seleção de eventos históricos consolidados na
cultura historiográfica contemporânea." (RCA, 2019, p. 525). Vejam que neste ponto a cultura
historiográfica se impõe e sabe-se como é difícil se contrapor a ela.
Continuando, procuram deixar claro como trabalham a cronologia entendendo que esta
deve ser pensada "como um instrumento compartilhado por professores de História com vistas
à problematização da proposta, justificação do sentido (contido no sequenciamento) e
discussão dos significados dos eventos selecionados por diferentes culturas e sociedades."
(RCA, 2019, p. 525).
Para operar esta cronologia indicam que

O ensino de história se justifica na relação do presente com o passado,


valorizando o tempo vivido pelo estudante e seu protagonismo, para que ele
possa participar ativamente da construção de uma sociedade justa,
democrática e inclusiva. A sistematização dos eventos é consoante com as
noções de tempo (medida e datação) e de espaço (concebido como lugar
produzido pelo ser humano em sua relação com a natureza). Os eventos
selecionados permitem a constituição de uma visão global da história, palco
das relações entre o Brasil, a Europa, o restante da América, a África e a Ásia
ao longo dos séculos." (RCA, 2019, p. 525).

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

No tocante à relação das dimensões espaço-tempo indicam que:

Nos Anos Finais do Ensino Fundamental a dimensão espacial e temporal


vincula-se à mobilidade das populações e suas diferentes formas de inserção
ou marginalização nas sociedades estudadas." Como essas relações podem
ser aprendidas? Os redatores propõem que "o desenvolvimento de
habilidades com um maior número de variáveis, tais como contextualização,
comparação, interpretação e proposição de soluções. A presença de diferentes
sujeitos ganha maior amplitude ao se analisarem processos históricos
complexos ocorridos em espaços, tempos e culturas variadas. As mesclas
entre as histórias da América, da África, da Europa e de outros continentes
apresentam diferentes níveis de elaboração ao serem trazidos à tona rupturas,
permanências e movimentos de população e mercadorias, mediados por
distintas estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais. (RCA, 2019, p.
525).

2. O segundo procedimento é destinado às fontes históricas e como essas podem ser


trabalhadas.
O segundo procedimento é pelo desenvolvimento das condições necessárias
para que os alunos selecionem, compreendam e reflitam sobre os significados
da produção, circulação e utilização de documentos (materiais ou imateriais),
elaborando críticas sobre formas já consolidadas de registro e de memória,
por meio de uma ou várias linguagens. Diz respeito à escolha de fontes e
documentos. O exercício de transformar um objeto em documento e
prerrogativa do sujeito que o observa e o interroga para desvendar a sociedade
que o produziu. O documento, para o historiador, é o campo da produção do
conhecimento histórico; portanto, é esta à atividade mais importante a ser
desenvolvida com os alunos. Os documentos são portadores de sentido,
capazes de sugerir mediações entre o que é visível (pedra, por exemplo) e o
que é invisível (amuleto, por exemplo), permitindo ao sujeito formular
problemas e colocar em questão a sociedade que os produziu. (RCA, 2019, p.
525).

3. “O terceiro procedimento refere-se ao reconhecimento e à interpretação de diferentes


versões de um mesmo fenômeno, reconhecendo as hipóteses e avaliando os argumentos
apresentados com vistas ao desenvolvimento de habilidades necessárias para a elaboração de
proposições próprias. Envolve a escolha de duas ou mais proposições que analisam um mesmo
tema ou problema por ângulos diferentes.” É o que poderíamos chamar de a Operação histórica.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Os redatores exortam professores e alunos a "eles próprios devem assumir uma atitude
historiadora diante dos conteúdos propostos no âmbito do Ensino Fundamental." (RCA, 2019,
p. 526).

Outro ponto importante a destacar é que os redatores, ao fazerem as simulações de


conteúdos e habilidades, sentiram a necessidade de criar novas competências visto as da BNCC
não contemplarem as habilidades de alguns conteúdos. No caso, as competências da história
regional, como História do Amazonas.

Um desafio para os professores é pensar o lugar do regional como componente


curricular. Os redatores indicam que:

No 6º ano, contempla-se uma reflexão sobre a História e suas formas de


registro. São recuperando aspectos da aprendizagem do Ensino Fundamental
Anos Iniciais e discutidos procedimentos próprios da História, como exemplo
o registro das primeiras sociedades com a necessária contraposição com
outras sociedades e concepções de mundo, e relacionando com a história
regional. No mesmo ano, avança-se ao período medieval na Europa e às
formas de organização social e cultural e umas partes da África. No 7º ano,
as conexões entre Europa, América e África são ampliadas. São debatidos
aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais ocorridos a partir do final
do século XV até o final do século XVIII. Sendo inserido também os
conteúdos referentes a história regional. NO 8º ano, o tema é o século XIX e
a conformação histórica do mundo contemporâneo. Destacam-se os múltiplos
processos que desencadearam as independências nas Américas, África, Ásia
com ênfase no processo brasileiro e seus desdobramentos na Amazônia. No
9º ano, aborda-se a história republicana do Brasil até os tempos atuais, com
abordagem se vincula aos processos europeus, africanos, asiáticos e latino-
americanos dos séculos XX e XXI, reconhecendo-se especificidades
regionais e aproximações entre diversos eventos, incluindo a história recente.

Chamei atenção que os redatores sentiram a necessidade de justificar/pensar o lugar do


regional como componente curricular no RCA. No tocante a questão regional, minimizada na
BNCC, os redatores trabalharam na estrutura temática que possibilitava a inclusão da história
regional.

No entanto, realçam a necessidade da produção de material didático articulando

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

uma reflexão acerca da importância do estudo de História Regional e Local,


bem como proporcionar uma nova abordagem historiográfica em sala de aula,
pois a mesma aproxima o historiador do seu objeto de estudo, incorporando
as suas práticas pedagógicas à análise de fatos históricos relacionados ao local
e a região, diferentemente de uma visão historiográfica tradicional que apenas
valoriza o estudo generalizado da chamada História Geral ou Nacional.
(RCA, 2019, p. 527).

Conclusão

O RCA, ao atender as diretrizes da BNCC, pouco se distancia desta, mas fica marcante
as críticas até então feitas a ela. A BNCC acaba por efetivar propostas e dinâmicas curriculares
que facilitam a homogeneização/padronização, levando a um reducionismo curricular,
dialogando pouco com a complexidade da realidade nacional e regional.

A proposta esboçada no RCA não apresenta inovações e expressa uma concepção de


História quadripartite (Antiga, Medieval, Moderna, Contemporânea) abrigando a história
regional nos limites possíveis. Não há no documento referência às metodologias do ensino de
História, temática reclamada por professores. Chama atenção, de modo rápido, para o uso das
tecnologias, sem tecer comentários de como essas podem ser instrumento inovador e aliado
importante no processo educacional.

Referências:

AGUIAR, Márcia Angela da S. Relato da resistência à instituição da BNCC pelo Conselho


Nacional de Educação mediante pedido de vista e declarações de votos. In A BNCC na
contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas. Orgs. Márcia Angela da S. Aguiar e
Luiz Fernandes Dourado. Recife: ANPAE, 2018.
LOPES, Alice Casimiro. Apostando na produção contestual do currículo. In A BNCC na
contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas. Orgs. Márcia Angela da S. Aguiar e
Luiz Fernandes Dourado. Recife: ANPAE, 2018.
Referencial Curricular Amazonense. Ensino Fundamental, anos finais. 2019

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

ESTUDO DA ESCRAVIDÃO INDÍGENA NOS REGISTROS DE


BATISMO DA CÚRIA METROPOLITANA DE MANAUS DO SÉCULO
XIX

IVANELISON MELO DE SOUZA


Universidade Federal do Amazonas, Graduando
ivanelisonmelodesouza@gmail.com
Resumo

Este trabalho tem como intuito abordar a escravidão indígena em Manaus na primeira metade
do século XIX, especificamente os anos de 1814 a 1834. Utilizamos para tal estudo 1845
registros de batismo do Livro 1, que fazem parte do acervo da Cúria Metropolitana de Manaus.
O estudo visa entender como os indígenas, presentes na sociedade manauara do XIX, estavam
inseridos na região, se estavam ou não em situação de precarização da liberdade, se buscavam
formas de conseguir se inserir neste mundo cristão ocidental sem sofrer as consequências de
serem vendidos ou trocados. Para tal, utilizamos os conceitos de rede de poder, para traçar onde
esses indivíduos que constam nos registros estavam inseridos dentro da sociedade manauara,
se tinham cargos importantes ou não; e o sistema de compadrio, serviu para vermos as alianças
na qual os indígenas tentavam fazer de forma consciente ou não, com o objetivo de
proporcionar boas oportunidades aos seus filhos através das relações verticais, onde os
indivíduos de menor condição social, buscavam indivíduos de condições sociais superiores
para serem padrinhos de seus filhos, podendo até ajudar a criança a crescer em uma sociedade
que a princípio a excluiria.

Palavras-chave: Indígenas; Manaus; Século XIX

Introdução

O estudo da exploração do trabalho indígena ocupa uma área vasta em nossa


historiografia. Desde a Carta Régia de 1798, os indígenas foram libertados da escravidão, mas,
na prática a situação foi diferente. Segundo Manuela Carneiro da Cunha “Declarada ou
embuçada, porém, a escravidão indígena perdurou surpreendentemente até pelo menos os
meados do século XIX. (...), Mas até na corte se encontravam escravos índios até pelo menos

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

1850!” (CUNHA, 1998, p. 146). Este estudo tenta colocar em questão esse tipo de escravidão
indígena presente na Manaus imperial.

Levando em consideração a ampla bibliografia sobre a escravidão indígena, este


trabalho visa contribuir com o tema a partir dos registros de batismo da Cúria Metropolitana
de Manaus. O estudo abrangeu os anos de 1814 a 1834, usando conceitos de compadrio e redes
de poder para melhor compreender como os indígenas em situação de trabalho compulsório,
digo aqui escravidão, estavam situados na sociedade manauara do século XIX.

Breve discussão bibliográfica

A escravidão indígena, muito estudada em nossa historiografia, possui várias obras


abordando os indígenas de diferentes maneiras e perspectivas. Podemos citar autores como
Manuela Carneiro da Cunha (1998) e sua obra “História dos índios no Brasil”, abordando de
forma brilhante como esses indígenas estavam inseridos na sociedade “brasileira” em sua
forma macro. Os indígenas, mesmo segundo a lei imperial que dizia estarem livres,
continuavam em situações de escravização, dizendo que na própria Corte, se encontravam
índios escravos. Se na Corte, onde o próprio Imperador estava presente, a situação dos índios
não era favorável, imagina nos confins do Império onde a principal mão-de-obra era a
indígena?

Para mostrar essa visão da região norte, especificamente Manaus, utilizei da


historiadora Patrícia Sampaio, a qual também apresenta-se como referência fundamental a este
tema, principalmente em suas obras “Rastros da Memória” (2006), na qual reúne artigos sobre
a trajetória indígena na Amazônia, aborda batismo e legitimidade, utilizando por fontes os
documentos eclesiásticos; “Espelhos partidos” (2012) aborda temas tal qual descimentos,
agarrações, conceitos acerca de selvagens e mansos; e “Fios de Ariadne” (2014) que retrata
parcialmente a Manaus da primeira metade do século XIX, bem como a população da época.
Os relatos do viajante Henrique Maw, “Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico, através
dos Andes nas províncias do Norte do Peru, e descendo pelo rio Amazonas, até ao Pará” (1989)
publicado inicialmente em 1831, descrevem alguns fatos sobre a escravização indígena, e o
panorama da Manaus do século XIX. O relato de Maw se torna essencial para vermos como a

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

precarização da liberdade estava presente na vida desses indígenas ditos livres. Além das obras
escritas por historiadores, também utilizei um antropólogo para analisar essa cultura
amazonense, Charles Wagley (1998), ele relata em sua obra, “Uma comunidade amazônica:
estudo do homem nos trópicos”, alguns costumes que predominaram até o século XX, o sistema
de compadrio, o cultivo do que Wagley chama de “produto da terra”, e a coleta das drogas do
sertão.

Os Indígenas nos registros de batismo

Este estudo sobre a escravidão indígena no Amazonas, especificamente na Manaus do


século XIX, utilizamos a base quantitativa do livro 1 dos registros de batismo da Cúria
Metropolitana de Manaus dos anos de 1814-1834, contendo 1845 registros de batismo. Dentre
esses registros, 780 (42,27%) são de indígenas e gentios batizados, que neste estudo optamos
por colocar no mesmo quesito indígena. Para analisar a situação dos indígenas, foram feitas
algumas tabelas, possibilitando analisar de forma clara como esses indígenas apareciam nos
registros de bastimos, e as formas deles interagirem com a sociedade manauara nos anos de
1814 a 1834.

Entre os indígenas, há aqueles batizados sem constar etnia (tabela 1), ou por não
saberem, ou por optarem em não dizer no momento do batismo, ou o próprio vigário ocultou
essa informação. Entre os indígenas que têm suas etnias reveladas (ver tabela 2), nos mostra a
diversidade dos povos escravizados no Amazonas.

Tabela 1. Indígenas batizados com suas etnias ou não nos registros de batismo nos anos 1814-1834

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Quantidade %
Consta a etnia 235 30,12
Não consta a etnia 545 69,88
Total 780 100
Fonte: Livro 1 de registros de batismo da Cúria Metropolitana de Manaus. Acervo pessoal.

Tabela 2. Etnias indígenas encontrada nos registros de batismo nos anos 1814-1834
Etnias indígenas (1814-1819)

Nação Mura 54 Nação Catuquina 2


Nação Passé 32 Nação Kulina 2
Nação Jurí 25 Nação Marauã 2
Nação Miranha 23 Nação Uracuá 2
Nação Anumã 22 Nação Ainanbú 1
Nação Macú 19 Nação Ariamá 1
Nação Pafoé 7 Nação Caripuna 1
Nação Catauxi 6 Nação Guepe 1
Nação Macarari 4 Nação Inihenbé 1
Nação Pixuna 4 Nação Inpuá 1
Nação Buca Preta 3 Nação Jauarite Tapécia 1
Nação Macunã 3 Nação Maraú 1
Nação Maraháo 3 Nação Muinanbú 1
Nação Palpe 3 Nação Uainanbei 1
Nação Puruparu 3 Nação Uapê 1
Nação Aicanã 2 Nação Urainunrã 1
Nação Arara 2
Fonte: Livro 1 de registros de batismo da Cúria Metropolitana de Manaus. Acervo pessoal.

Os Mura possuem o maior número de indivíduos comparados às outras etnias, logo em


seguida temos os Passé, os Jurí, entre outros. Esses povos foram trazidos para a cidade de
Manaus (conhecida na época pelo nome de Barra de São José do Rio Negro), com vários
intuitos, entre eles a catequização desses povos ditos gentios, trazidos assim para o mundo
ocidental cristão. Como esses indígenas estavam amparados pela Carta Régia de 1798, os
indígenas descidos ou resgatados por particulares deveriam ser levados primeiro para a
Câmara. Segundo Sampaio:

[...], o reconhecimento dos Termos de Educação e Instrução era a legalização


dos descimentos realizados pelos particulares quando os índios “novamente
descidos” eram apresentados e registrados nas respectivas Câmaras dos
respectivos distritos que estabeleciam o número de anos a que teriam direito

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os particulares de utilizar o trabalho dos índios assim recrutados (SAMPAIO,


2012, p. 265-266).

Em nome desses Termos de Educação e Instrução, os particulares usufruíram da mão-


de-obra indígena, como aponta Sampaio:

[...]. Seu compromisso inicial era batizá-los e educá-los, usufruindo de seu


trabalho por um período de tempo determinado e, ao final, pagar-lhes os
salários devidos. A esses, é que ficou concedido o privilégio de ‘órfãos’,
figura tutelar analisada por Farage e Cunha. (SAMPAIO, 2012, p. 289).

Os indígenas nesse cenário criado pela Carta Régia de 1798, eram descidos de suas
aldeias por particulares que pretendiam usufruir de sua mão-de-obra. Depois do descimento
eram levados à Câmara para legalizar esses descimentos através dos Termos de Educação e
Instrução. Os indígenas então passavam por esse processo e eram obrigados a servir os
particulares por um tempo pré-estabelecido pelos Termos e não ganhavam nenhum salário
durante esse tempo, os particulares eram obrigados somente a batiza-los e educa-los. Quando
chegava o tempo máximo de trabalho, onde o indígena poderia ganhar salário pelo seu trabalho
e assim usufruir da liberdade, a situação poderia voltar-se contra ele; em alguns casos os
próprios particulares aumentavam esse tempo pré-estabelecido, e muitos indígenas não tinham
conhecimentos sobre seus direitos, pouco podiam fazer para impedir esse aumento. Então
mesmo os indígenas sendo livres pela Carta Régia de 1798, eles ainda estavam desamparados
perante uma sociedade escravagista, que usava da própria legislação para criar uma escravidão
dentro da liberdade. Usando o termo de Manuela Carneiro (1998, p.146), essa escravidão estava
“embuçada” na sociedade manauara.

Ora, a Manaus nas décadas de 20 e 30 do século XIX, segundo Sampaio, era uma
pequena vila pouco povoada, sendo a maioria de seus habitantes de origem indígena, e uma
minoria formada por pessoas brancas vivendo do cultivo de tabaco, café e cacau (SAMPAIO,
2014). E para trabalhar nesses cultivos, era necessário mão-de-obra, como os brancos
“consideravam o trabalho manual indigno” (WAGLEY, 1998, p. 59), então se voltaram para a
mão-de-obra barata para exercer tais atividades ditas vis, e eles encontraram no indígena essa
figura. Como coloca Wagley, esse “sistema de controle logo degenerou em uma espécie de

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trabalho de peões e de dever de servidão. E persistiu na Amazônia a escravidão franca até fins
do século XIX, apesar das leis que dispunham em contrário”. (WAGLEY, 1998, p. 59).

Mesmo com a Carta Régia de 1798 dando poderes legais aos particulares para descerem
os indígenas, alguns particulares faziam isso de forma ilegal (SAMPAIO, 2012, p. 289),
deixando assim de lado os Termos de Educação e Instrução, utilizando essa mão-de-obra para
trabalhos forçados, não dando educação e jamais pagando a esses indígenas pelos seus
trabalhos.

Zany tinha sobre si várias denúncias de envolvimento no apresamento e


comércio ilegal de índios na Capitania; porém, sua posição privilegiada
enquanto comandante das armas, importante comerciante e ainda genro do
governador do Negro lhe permitia resguardar-se de medidas mais restritivas.
(SAMPAIO, 2012, p. 289).

Henrique Maw, viajante do século XIX, ao se aproximar da Fortaleza de São José do


Rio Negro, relatou:

Durante a nossa demora ali tomámos bastante conhecimento do paiz, e fomos


informados do systema que os brancos nesta parte do Brasil practicão para
com os Índios, ainda que, segundo o que elles mesmos dizem, he contrario às
ordens do Imperador, o qual declarou que todos os seus súbditos Índios são
livres (MAW, 1989, p. 185).

Alguns indígenas além de serem convertidos para o cristianismo através do batismo,


ainda casavam entre si, se inserindo ainda mais nesse mundo cristão ocidental, e diminuindo
seu desamparo social. Seus filhos seriam batizados como legítimos (ver tabela 3), podendo
aumentar as oportunidades de fazer parte daquela sociedade que excluía o diferente e
diminuindo assim as agruras do trabalho forçado.

Para a criança ser considerada legítima, os pais teriam de ser casados em uma
união reconhecida pela Igreja e que, portanto, preenchia os requisitos exigidos
pela legislação em vigor, no caso as Ordenações Filipinas. Em contrapartida,
as crianças naturais ou ilegítimas seriam frutos de vários tipos de uniões não
reconhecidas pela Igreja, esta porcentagem pode ser considerada uma taxa de
“legitimidade” no sentido estrito da expressão. Em alguns casos os pais
legítimos reconheceram e legitimaram esta filiação, concedendo a estes, todos
os direitos legais. (ANDRADE, 2006, p. 3).

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Tabela 3. Legitimidade dos batizados negros e indígenas em Manaus nos anos de 1814-1834.

Índios %
Legítimos 35 4,49
Naturais 107 13,72
Não Consta 638 81,79
Total 780 100
Fonte: Livro 1 de registros de batismo da Cúria Metropolitana de Manaus. Acervo pessoal.

Outra forma de escapar da escravidão foi o sistema de compadrio, onde os índios


buscavam pessoas inseridas em redes de poder para serem padrinhos de seus filhos, tecendo
uma relação de privilégios que poderia ajudar a criança a se inserir melhor na sociedade
manauara. Segundo Wagley:

A gente pobre acha que uma das maneiras de conseguir alguma vantagem
para os filhos é convidar um comerciante, uma autoridade do governo ou
alguém de prestígio e de boa situação econômica para padrinho de batismo
de seus filhos. Talvez, também, o compadre de melhor posição social e de
maior fortuna ajude e proteja o mais pobre. Nesses casos a iniciativa parte
sempre da família de classe mais baixa, que convida o indivíduo ou o casal
da classe mais alta para padrinhos. (WAGLEY, 1998, p. 167).

Ou mesmo proteger seus filhos de serem vendidos para outros, assim separando eles da
família, segundo Maw:

Quando hum branco julga precisar de Indios, seja para uso, ou para trocar por
fazendas (segunda a antiga ley, não se permittia a venda dos Indios, mas o
Cabo que tinha a superintendencia das pequenas embarcaçoens no Rio Negro,
disse-nos que podiamos ter comprado por dez mil reis hum rapaz [índio] para
nos servir (MAW, 1989, p. 187).

Encontramos nos registros de batismo essas relações de compadrio entre os indígenas.


Dentre os padrinhos aparecendo nos registros somente 136 (Devemos esclarecer não se tratar
de 136 indivíduos diferentes, uma vez que alguns deles batizam mais de uma vez) tiveram suas
profissões anotadas nos registros, evidenciando que 82 padrinhos (60,3%) possuíam patentes
militares, passando entre os de primeira linha (exército), os de milícias (segunda linha) e os
soldados de diferentes regimentos. Os outros 54 (39,7%) possuíam cargos políticos
(governador), religiosos (padres e reverendos) ou leigos (comerciantes) (ver tabela 4). Alida

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Metcalf chama esse tipo de compadrio de “relação vertical”, onde o indivíduo buscava sempre
pessoas acima de sua condição social para serem padrinhos de seus filhos. (METCALF, 1990,
p. 205 apud FREITAS, 2019, p. 5).

Tabela 4. Profissão dos padrinhos dos batizados indígenas (1814-1834)


N
Profissão º
3
Comerciante 2
1
Governador 8
1
Tenente 6
1
Alferes 2
1
Capitão 0
Soldado do Segundo Regimento da Primeira Linha 7
Tenente Miliciano 6
Alferes Miliciano 5
Capitão Miliciano 4
Soldado Artilheiro 3
Tenente de Milícias 2
Soldado 2
Soldado do Corpo d’Artilharia 2
Cabo d’Esquadra do Segundo Regimento da Primeira Linha 2
Escrivão da Ouvidoria 2
Soldado Pago 1
Soldado d’Infantaria de Primeira Linha 1
Xerife 1
Cabo d’Esquadra d’Infantaria paga 1
Tenente do Segundo Regimento da Primeira Linha 1
Cirurgião Mor do Hospital Militar 1
Sargento Mor 1
Sargento de Milícias Ligeiras 1
Furriel de Artilharia 1
Furriel de Milícias 1
Sargento Mor de Milícias 1
Padre 1
Reverendo 1
Fonte: Livro 1 de registros de batismo da Cúria Metropolitana de Manaus. Acervo pessoal.

Podemos inferir que as crianças batizadas com padrinhos inseridos nessas redes de
poder, estariam em uma melhor situação comparada as crianças batizadas com padrinhos da
mesma posição social ou não inseridos nestas redes de poder. Pois, “[...] Os padrinhos assumem

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

a responsabilidade pelo bem estar material e espiritual da criança. E estas devem respeito aos
padrinhos – ‘ainda mais do que a seus pais’”. (WAGLEY, 1998, p. 162).

Conclusão

O estudo possibilitou analisar a escravidão indígena, dito trabalho compulsório forçado,


tonando os indígenas desamparados na sociedade manauara, mesmo com a Carta Régia de
1798, que obrigava os particulares a apresentar os índios descidos na Câmara e instruir eles no
mundo civilizado em troca de sua mão-de-obra. Também possibilitou analisar como os
indígenas utilizaram do sistema de compadrio, conscientes ou não, para melhor possibilitar a
inserção da criança indígena na Manaus Imperial, diminuindo assim as chances de serem
vendidos e separados de suas famílias. Esses indivíduos estavam inseridos na sociedade
manauara de forma precária, onde poderiam lutar de forma ativa ou não, por suas liberdades.
O estudo não conseguiu abranger quem eram esses padrinhos de forma profunda com uma
análise prosopográfica, ficando para futuros estudos relacionados a esse tema.

Referências
ANDRADE, Vitória Fernanda Schettini de. Ilegitimidade e compadrio: o estudo dos
nascimentos de filhos de mães escravas, São Paulo do Muriaé, 1852-1888. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. a 167, p. 09-37, 2006.
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Companhia das Letras, 1998.
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indígenas da Amazônia. – Manaus: EDUA, 2006.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

______. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na colônia. Manaus: Editora da


Universidade Federal do Amazonas, 2012.
______. Os fios de Ariadne: fortunas e hierarquias sociais na Amazônia, século XIX. 2ª. ed.
São Paulo: Editora Livraria da Física, 2014.
WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos. Trad.
Clotilde da Silva. – 3 ed. – Belo Horizonte; Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1998.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

O DIÁRIO DE ANNE FRANK E O ENSINO DE HISTÓRIA DA SHOAH:


PERSPECTIVAS DOS DIREITOS HUMANOS PARA O TEMPO
PRESENTE

JAIRO FERNANDES DA SILVA JÚNIOR


Universidade Federal Rural de Pernambuco, Mestre
jairo.fernandes1994@gmail.com

Resumo
Este trabalho tem por objetivo de compreender o Diário de Anne Frank como ferramenta para
o Ensino de História dos traumas coletivos e instrumento para fomentar políticas públicas
voltados para educação em Direitos Humanos. Dentro do grande campo de estudos sobre
ensino de História dos eventos traumáticos, discutiremos o papel dos institutos de salvaguarda
da memória, na Holanda e na Argentina, os quais estão estruturados para reflexões entre o
lembrar e esquecer, além do fomento de projetos educacionais, em aproximadamente 50 países
pelo mundo, direcionados às problemáticas contemporâneas locais, pautados na pedagogia da
memória, a qual dá suporte à relação entre passado e presente, sobretudo, no retorno de
acontecimentos considerados traumáticos e que permite o diálogo entre eventos limites, a
exemplo da Shoah. A ampla discussão sobre políticas de memória, fomentada por Andreas
Huyssen, foi o fio que conduziu o estudo, com finalidade de observar como estão dispostas as
representações do diário em diversos aspectos, desde a visão das casas com relação ao escrito
e a história da Segunda Guerra Mundial, até as devidas funções para o ensino do processo.

Palavras-chave: Anne Frank; Ensino de História; Direitos Humanos

Introdução

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Segundo Karl Schurster, é um desafio ensinar sobre temas traumáticos que expuseram
seres humanos a condições sub-humanas, expondo-os a limites do corpo e da condição
psíquica. (SCHUSTER; TEIXEIRA DA SILVA, 2017, p. 24). Nosso objeto de estudo será o
Diário de Anne Frank como ferramenta que fomenta políticas de memória ao impulsionar
políticas voltadas para educação por intermédio dos institutos que levam seu nome, na Holanda
e na Argentina.

O nosso objetivo foi analisar e problematizar a forma como está disposta a memória de
Anne Frank nos institutos homônimos, além de perceber como esses espaços se transformaram
em lugares políticos, de alcance internacional para a comunidade judaica, transcendendo o
papel de salvaguardar a memória da jovem alemã. Sob a luz teórica da história do tempo
presente, a qual abre um campo já consolidado sobre os debates acerca dos estudos sobre
genocídios, e políticas de memória, observamos desde a perspectiva da destruição massiva de
um grupo, como um crime irreparável para memórias coletivas que necessitam ser revisitados.

Analisar o Diário de Anne Frank diante da problemática do ressurgimento das práticas


ditas fascistas no tempo presente foi resultado de amplos estudos. Sendo de complexa
compressão, os neofascismos surgem no nosso tempo em formas organizadas, porém
polarizadas. São nos estádios de futebol, nas escolas e em pequenos grupos políticos
específicos.

A banalização da violência é um fenômeno que não é novo, mas que vem ganhando
notoriedade e naturalidade. Umberto Eco nos alertou em 1995 durante conferência na
Universidade de Columbia, dizendo naquele momento, que a humanidade passaria por políticas
conservadoras e de características fascistas, atribuindo o nome de “Fascismo Eterno” ao
acontecimento. (ECCO, 1995, p. 18) Para o intelectual, são as características do antigo
fascismo italiano disseminadas em partes muito menores na sociedade contemporânea.

Racismos, xenofobias, e perseguições tornaram-se comuns no século XXI, sobretudo


no cenário escolar. Genocídios voltaram a existir mesmo depois do Holocausto. O Diário de
Anne Frank seria a forma que poderíamos encontrar algo sobre a dor de alguém que passou
pelo Holocausto e pelo fato de ser judeu foi perseguido, concentrado e morto.

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Anne Frank Haus: Uma história da memória e de resistência


Anne Frank Haus, na rua Prinsegracht, nº 263, têm recebido aproximadamente um
milhão de visitantes por ano. O questionamento central é o motivo que leva este diário ter força
suficiente para ser o responsável por remontar a história da Shoah e por que a casa de Anne
Frank é o modelo de museu para recontar a História do massacre efetuado pelos alemães na
Segunda Guerra Mundial perante os judeus. A resposta é a complexidade e condições de
paratraduções do Diário, bem como a forma de trato da memória nos museus.

O “Anexo”, como é chamada a Casa de Anne Frank serviu de esconderijo para a família
Frank e amigos por 2 anos durante a Segunda Guerra Mundial, diante do contexto de
perseguição aos judeus na Alemanha, prática política do partido Nazista. Só em 1957, iniciaram
movimentações para transformar o local em um espaço de preservação da memória. No pós-
guerra, desde 1950, o imóvel passou por um complexo processo de compra e venda por desuso.
A fábrica têxtil Berghaus tinha interesse de compra no quarteirão inteiro da rua Prinsengracht
para um novo empreendimento do ramo, contra a vontade de Otto Frank. Vemos na imagem o
quarteirão que cerca a casa. Na época, era um complexo de empresas, mais precisamente
fábricas do ramo têxtil ou de galpões para armazenamento de materiais. Com a ajuda de um
Comitê de moradores da região, o senhor Frank conseguiu evitar a demolição do espaço.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Figura 1. The Anne Frank Haus. Amsterdam, Holanda. Disponível em:


https://www.annefrank.org/en/about-us/who-we-are/. Acesso em: 7 jan. 2019.

Existe uma base organizacional da casa de Anne Frank. A base é composta por Projetos
Educacionais, Publicações e exposições fixas e itinerantes. A coordenação executiva do local
está sob responsabilidade de Ronald Lopold17 desde 2011 e administrativa sob
responsabilidade de Grance Reus-Deeider18. Os trabalhos são divididos em quatro frentes
importantes: Projetos educacionais, Publicações, Coleções (materiais didáticos) e o museu.
Cada frente tem sua importância e responsabilidade diante da execução. São forças executivas
do projeto maior sobre memória.

Segundo Leopold, a missão do instituto é refletir sobre a história do processo,


trabalhando com: A lembrança, a reflexão e busca de respostas, de forma humana e atualizada.
Nesse sentido, fazendo um complexo trabalho de combate a ações discriminatórias no presente
e prevenção de tais ações no futuro.

No caso do instituto Anne Frank na Holanda, há interesses da comunidade judaica de


perpetuação da memória, contudo, é inegável a existência de uma demanda internacional, que
debate a questão do genocídio e da violência, voltando assim, as questões discutidas nos
Direitos Humanos, para formação de uma cultura de paz, principalmente com os jovens. Esse
pensamento justifica a internacionalização dos projetos que a casa fomenta. As mais de 80
cidades que recebem, de forma itinerante, a amostra contendo a história de Anne Frank, são
alvo para tentativa de mudanças substanciais nas políticas educacionais dos lugares, sobretudo
para implementação do Ensino de História do Holocausto, com enfoque em problemáticas do
tempo presente.

A capacidade de remontar o passado fez com que a memória se entrelaçasse com a


história. Em essência, recordar, se tornou representação. Entre a alegoria benjaminiana e

17 Diretor executivo da casa desde 2011. Nasceu na Hungria, mas estudou a carreira acadêmica na Alemanha.
Mora na Holanda desde os anos 1990. ANNE FRANK HAUS. The Executive Board. Disponível em:
https://www.annefrank.org/en/about-us/who-we-are/executive-board/ Acesso em: 09 de Jan. de 2019.
18 Diretora financeira da Casa desde 2012. Estudou na Universidade do Alabama, trabalhou na equipe de
marketing da Unilever. ANNE FRANK HAUS. The Executive Board. Disponível em:
https://www.annefrank.org/en/about-us/who-we-are/executive-board/ Acesso em: 09 de Jan. de 2019.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

estruturação do fenômeno recordativo de Pollack (POLLACK, 1989). Por sua vez, o historiador
pertencente à Escola dos Annales, Jaques Le Goff, possibilita e insere no campo da história e
constructo de identidades a relação história e memória, afirmando que nós, cientistas sociais,
“devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para libertação e não para servidão
dos homens”. (LE GOFF, 1990, p. 477). O exemplo de tal afirmativa são as formas como o
Diário aparece representado na sociedade. Série de TV, animação, História em quadrinho, etc.
São visões diferentes do mundo construído por Anne Frank, que buscam aproximação com o
público, a tentar legitimar aquela história.

La Casa de Ana Frank: Entre a memória o trauma de um passado que não passa
Aberta 12 de junho de 2009, no dia em que Anne Frank completaria 80 anos, La Casa
de Ana Frank, na Argentina, tornou-se um dos espaços autorizados pela instituição central da
Holanda. Situada na Rua Superí, nº 2647, na grande Buenos Aires, foi aberta ao público com
o objetivo não só de salvaguarda da memória da jovem judia, mas também oferecer voz às
testemunhas das barbaridades cometidas no terrorismo de Estado durante o processo ditatorial
no país dos anos 1970 e 1980. Com o objetivo educativo voltado para os direitos humanos, o
funcionamento do museu seria para demonstrar o contexto no qual está inserido o diário, as
reflexões sobre o testemunho e o passado traumático do país.

Não atuando apenas com o espaço físico, a casa argentina também oferece um sítio
eletrônico para os interessados no assunto. O endereço disponibiliza entrevistas de integrantes
do instituto, além do espaço virtual, onde existem cursos e informações do funcionamento
diário do museu. A filosofia de funcionamento do lugar é de ensinar aos jovens que existem
micro fascismos que influenciam na macro política ou no comportamento social massivo na
sociedade, mesmo que ressignificados e direcionados a outros atores sociais, ainda hoje na
sociedade humilham-se, isolam-se e violentam-se pessoas.

Os Direitos humanos são fulcrais como via para a cultura de paz, o qual é visto para os
membros da casa como estilo de vida. A utilização da pedagogia da memória (KOVACIC,

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

2017), vista pelo instituto como método capaz de instigar e levar à reflexão é um dos modelos
de trabalhar o campo dos Direitos Humanos com objetivo e sustentabilidade teórica.

A Casa de Ana Frank19 Argentina disponibiliza, via correio eletrônico, materiais


didáticos para os professores que participaram do curso de formação sobre o Ensino de História
do Holocausto e para os docentes da rede pública. Os materiais Lengua y literatura: El diário
de Ana Frank (COSTOYA, 2009) e Ana Frank, um legado para abordar la convivência em
las aulas têm objetivo de usar as narrativas sobre Anne Frank e centralizar a história da jovem
como elemento-chave para o ensino de história do holocausto, inclusive colocando-a
importância de temas essenciais para retornar ao passado.

A criação de materiais didáticos sobre o Holocausto tem por objetivo não só a


perpetuação da memória do fato, mas também de refletir sobre o passado traumático europeu
e da sociedade ocidental do século XX, para que possa servir de alerta para os acontecimentos
do século XXI. Compreendemos tais trabalhos como um constante exercício de compreensão
da sociedade. O instituto argentino, através da pedagogia da memória, acredita que o ensino da
história do Holocausto não é apenas revisitar o passado, mas compreendê-lo através da
experiência. Estar diante de quem passou pelos processos extraídos do Holocausto cria um
campo de possibilidades. O ambiente de experiência pode transcender a compreensão humana
que tem acesso ao material, a depender da condução que se tenha no processo de ensino-
aprendizagem.

Os materiais são manuais utilizados por professores para disseminação da ideia de que
é necessário falar do Holocausto, especialmente, de temas traumáticos para os jovens. São
professores e estudantes que têm a possibilidade, de continuar com os debates sobre as
memórias do trauma. É neste sentido que trabalhamos para identificar as intencionalidades do
material disposto.

Os livros seguem uma lógica conceitual, como materiais de museu e didático, a partir
de duas categorias que conseguem funcionar dentro dos discursos. Integrante de um espaço de

19 Utilizamos Ana Frank neste capítulo, porque na assim se diz e se pronuncia na Argentina.

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lembranças, o material é um fruto de um objetivo maior, conduzido pelo que pensam os


elaboradores da Casa de Ana Frank. Para os membros do Instituto, sobretudo, os que
coordenam o setor pedagógico, são matérias que servem de suporte para o Dário.

Os dois materiais contêm setores informativos que descrevem e o localiza no processo


didático. São elementos complementares da utilização do diário, por isso, há uma necessidade
fundamental de conhecimento do diário para que os materiais façam sentido. Para André Salles
(SALLES, 2011), essas características aliadas são chamadas de funções, que podem ser
curriculares, instrumentais e ideológicas ou culturais.

A função curricular, por exemplo, é específica da Argentina. Tal questão caracteriza


uma das nossas preocupações, expressar que debatemos sobre um material que é exclusivo para
a realidade do país, pois faz alusão ao passado traumático do lugar. Em outros momentos, por
serem pensados e elaborados de forma primária na Holanda, têm uma relação genérica,
entretanto, por vezes, enfocam em uma realidade específica.

A função instrumental dos documentos atende as provocações de reflexão. Os diálogos


levam estudantes e educadores à possibilidade de trocar informações e pontos que conectam as
gerações. Ligam o passado traumático (no caso o Holocausto) a processos recentes (como a
ditadura da Argentina). Seus usos promovem discussões, pois contém exercícios para que o
trabalho seja complementar e participativo. Tais elementos culminam na função ideológica
cultural das intencionalidades. (MENDONZA, 2014)

É de suma importância enxergar não só o diário como ferramenta fundamental para o


nosso tema, mas também os materiais que são pensados e elaborados a partir de sua existência.
Por este motivo, centralizando os recursos didáticos como nosso objeto principal de estudo
para este artigo.

Conclusão
O resultado gerado foi uma análise sistemática dos Institutos Casa de Ana Frank, na
Holanda e na Argentina, que têm por finalidade ensinar a história do holocausto através do
diário, mas conectando a categoria de evento traumático e demandas internacionais
relacionadas aos Direitos Humanos.

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Nesse sentido, esses debates promovem um esforço coletivo para criar condições e
propostas de uma cultura de paz, constituindo-se em uma demanda internacional que se tornou
necessária a ampla discussão para implementação de políticas de Estado. Prevenir a violência
ou a banalização dela em sala de aula é um desafio para o tempo presente. Tornar os estudantes
responsáveis e conscientes dos atos que cometem, de microfascismos e não aceitação do outro
é uma urgência. Os materiais são elaborados para disseminar essa discussão sobre a
convivência nas escolas e salas de aula.

Referências

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

TRABALHO DOMÉSTICO DE MENINAS: CIRCULAÇÃO DAS


“CRIAS DE FAMÍLIA” EM MANAUS (1970)

JANAÍNA ARTIAGO
Universidade Federal do Amazonas, Mestranda
janaina.kamila.roberto@gmail.com

Resumo
A partir da década de 1970, poucos estudos no Brasil abordaram os trabalhos domésticos e suas
implicações. O trabalho doméstico e as problemáticas que ele envolve no Brasil não são
recentes. Saffioti assinala que com o fim da escravidão surgiu o assalariamento por serviços
domésticos, embora muitas moças exercessem este trabalho em troca de comida e casa, as
chamadas “crias da casa”. A autora salienta que o trabalho doméstico sofreu fragmentação no
que diz respeito a sua regularização e que o primeiro regulamento sobre os serviços domésticos
se deu no estado do Rio de Janeiro, em 30 de julho de 1923. Esta regulamentação identificou
os prestadores de serviços domésticos, copeiros, cozinheiros, passadeira, engomadeira, amas
de leite e secas, damas de companhia, costureiras. No que diz respeito a esta regulamentação,
na prática, trouxe pouco ou nenhum benefício ao trabalhador doméstico.

Palavras-chave: Trabalho infantil, Manaus, sociabilidades.

Introdução

A cidade de Manaus, a partir da segunda metade da década de 1960, passou a receber


uma migração em massa com o advento Zona Franca de Manaus. A partir dessa perspectiva o
trabalho proposto aborda especificamente a migração de jovens com a idade variando entre 9
e 15 anos; meninas vindas do interior do Amazonas para a capital, Manaus, a fim de trabalhar
como domésticas e que tinham como objetivo alcançar melhores condições de vida, seja através
do estudo e ou do trabalho que lhe era oferecido por uma família da capital. Essas meninas
ficaram popularmente conhecidas como “crias de família”. Nosso objetivo é problematizar a
constituição das relações sociais e os mundos do trabalho informal dessas meninas na cidade
de Manaus a partir do final da década de 1960; através das vivências e experiências das

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chamadas “crias de família”. Questionamos-nos acerca dos modos como as relações foram se
constituindo entre as famílias e essas jovens suas condições de vida e trabalho nesse processo
de migração do interior e ajuste na capital.

Manaus de 1970

Com a economia da borracha, desde o final do século XIX, a Amazônia recebe


incentivos governamentais para que o território seja ocupado. Entretanto, o processo de
ocupação da Amazônia só começou a passar por aceleração a partir da década de 1930, através
da implantação, por Getúlio Vargas, do Estado Novo. Os principais objetos do povoamento da
Amazônia são os que dizem respeito ao desenvolvimento regional, a proteção das fronteiras do
Brasil e a integração nacional, sendo conforme com as políticas, estabelecidas pelo governo da
época, voltadas para o desenvolvimento regional (ARAUJO, 2016).

Especialmente no fluxo nordeste-norte, um forte estímulo para a migração, além da


economia da borracha, teve sua origem na Política de Integração Nacional (PIN), durante o
regime militar, na década de 1960, resultando em um conjunto de mudanças na estrutura da
Amazônia. PIN foi responsável pela criação de três Planos Nacionais de Desenvolvimento
(PNDs) como estratégia de segurança nacional, onde tinha fundamental importância a
integração da Amazônia (ARAUJO, 2016).

Entretanto, o PIN teve como uma de suas principais consequências o impacto ambiental
resultado dos projetos agropecuários. Um desmatamento histórico foi ocasionado graças ao
incentivo do desmatamento para a criação de campos de culturas e pastagens. Acerca do
impacto social, especialmente pelo incentivo da ocupação da Amazônia, os resultados são
catastróficos: mais de 60% da população abaixo da linha de pobreza, taxa de analfabetismo
sendo menor apenas que a da região Nordeste, com 24%. (VIANA, 2001).

Este resultado se deve, especialmente a desordenada ocupação urbana, que teceu


periferias nas margens das cidades, apresentando condições péssimas de moradia, ao mesmo
tempo que o mercado de trabalho não tinha capacidade de absorver toda a demanda.

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Mais especificamente em Manaus, o projeto Zona Franca teve origem no começo dos
governos militares em 1964 e desabrocha em 1967 por meio do decreto-lei 288/67. Sendo essa
lei revogada, ao final do governo Castello Branco, pelo decreto-lei 288/67, como consequência
de um pacto tripartite existente entre a prefeitura de Manaus, o governo do Amazonas e o
governo federal.

O governo federal, sob domínio militar, fez um lançamento de um plano que tinha por
objetivo integrar a região amazônica as outras regiões do país, também seu desenvolvimento
regional. Esse plano foi denominado como “Operação Amazônica” (SILVA, 2012).

Ainda de acordo com Silva (2012), acerca da “Operação Amazônica”:

A emergência da “Operação Amazônia”, que se apoiava no tripé:


transformação do Banco de Crédito da Amazônia no atual Banco da
Amazônia (BASA), extinção da Superintendência do Plano de Valorização
Econômica da Amazônia (SPVEA) e criação da Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), e criação de incentivos fiscais
para a região amazônica (instalação da Zona Franca de Manaus), trouxe novos
ares à região, e, ao que nos parece, as elites ressentidas com o “abandono” do
poder central abraçaram com entusiasmo as novas perspectivas (SILVA,
2012. p. 116).

A ZFM tem o desapontamento se apresentando com uma área de comércio de


importação livre, incentivos fiscais especiais e exportação, com o intuito de criar no interior da
Amazônia um centro comercial, agropecuário e industrial. Os incentivos fiscais novos foram
usados para compensar as desvantagens da sua localização no que diz respeito aos mercados,
desta forma, permitindo uma competitiva produção industrial. De acordo com Loureiro, a ZFM
estabeleceu um

Modelo de crescimento regional responsável pela mudança de paradigma da


economia tradicional (mercantil-extrativista), baseada na coleta de recursos
da flora e da fauna e da cultura da juta para a produção de fibras têxteis. [...]
o único [modelo] bem-sucedido em toda a experiência de planejamento
governamental na Região [...] (LOUREIRO, 2003. p. 37).

Reproduzindo as tendências nacionais, a cidade de Manaus a cada década desacelera


seu crescimento populacional. Entre as décadas de 1970 e 1980 houve um aumento de 102%

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da população; diminuindo quase pela metade no período entre 1980 e 1991, crescendo 60%;
tendo um maior declínio entre 1991 e 2000, crescendo 39%.

Com a consolidação da Zona Franca, Manaus nos anos de 1970 passou por
modificações significativas. Com o advento de grandes multinacionais pessoas de várias
regiões, tanto do estado quanto de outras regiões do país foram atraídas. Como resultado disso,
o crescimento que a cidade apresentou nesse período foi um número significativo, quando se
compara décadas anteriores. Na década, anualmente o crescimento estava em 2,3%, um número
menor do que a média de Amazonas e do Brasil. Na década de 1960, anualmente o crescimento
foi de 5,9%, alargando para 7,4%; e, na década de 1970, houve superação superior do ritmo de
crescimento do país, e até do valor total apresentado pelo estado do Amazonas. (NAZARETH;
BRASIL; TEIXEIRA, 2011).

Acerca da composição populacional, Manaus é uma cidade que tem uma grande
proporção de pessoas em idades jovens. Especialmente em 1970 e 1980, uma parte significativa
da população (44% e 43%, respectivamente) se concentravam em uma faixa de 0 a 14 anos,
sendo assim, a maior porção da população tinha sua composição dada por crianças e
adolescentes.

Inicialmente, comparando a número total da população da cidade de Manaus com o


número de migrantes é possível observar uma maior presença do grupo feminino na população
total e um grupo masculino maior entre os migrantes. No ano de 1970 existia 92 homens para
cada 100 mulheres no número total, um contingente de 12.355 de mulheres a mais que homens.

Percebe-se, entre os migrantes, nas décadas de 1980 e 1991 uma presença maior
masculina: 108 homens para cada 100 mulheres em 1980, resultando em um número de homens
de 2.353 a mais do que as mulheres. Nas décadas de 1970 e 2000, entretanto, existe a presença
superior feminina quando comparada a masculina: respectivamente, 98 anos homens para cada
100 mulheres e 99 homens para 100 mulheres. De acordo com Moura, “Uma das características
do processo migratório, qual seja a saída proporcionalmente maior de mulheres do meio rural
para o meio urbano, explicaria os diferenciais encontrados quanto às respectivas razões de
sexo”. (MOURA, 2000. p. 4).

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O processo migratório que se deu no estado da Amazônia evidenciou práticas de


trabalho escravo. O trabalho análogo a escravidão existente entre as décadas de 1970 e 1990,
como fenômeno histórico, na Amazônia, segue uma lógica correlata à trajetória histórica que
atinge os indivíduos que moram, e que migram, sendo a migração forçada pelas necessidades
materiais do migrante, cooptadas pelas promessas de uma qualidade de vida, ou pela coerção
(ARAUJO, 2012).

O trabalho degradante na Amazônia não é restrito ao trabalho doméstico de meninas.


Nas grandes cidades, como exemplo Manaus, objeto do presente estudo, e Belém, existe uma
diversidade de situações em que se adquire mão de obra subtraindo às pessoas a dignidade que
não deve ser negada para qualquer ser humano. Mas, pelas implicações teórico-metodológicas,
optou-se pela pesquisa do trabalho doméstico e especificamente o trabalho doméstico infantil
de meninas.

Na perspectiva das entrevistadas, o deslocamento para a cidade de Manaus, desde os


anos de 1970, se configura como a procura de uma boa qualidade de vida de algumas pessoas
que saíram do campo. Nas palavras de Maria Altacyr Artiago dos Santos Maciel:

a começar da minha adolescência, onde já procurava melhoria pra minha


vida, aí eu não conhecia Manaus tinha muita vontade conhecer e um meio que
eu encontrei de vir pra cá foi pra trabalhar na casa de pessoas em busca de
melhoria pra minha vida né, e eu vim ,eu vim pra Manaus se não me falhe a
memória aos 14 anos de idade em diante eu fui morar na casa da minha tia
por parte de pai.

Ao falar acerca da vida que tinha na casa da tia em Manaus, Maria relatou que:

trabalhava com ela, morava com ela, ela não me pagava um salário, mas ela
me dava roupa, me tratava bem minha tia, nessa época ela trabalhava no
distrito e eu ficava em casa com a filha dela que ela tinha, cuidava dela fazia
comida pra ela e pra mim e ajudava minha tia em casa e com isso ela também
me ajudava com calçado com roupas e assim nós vivia, só que chegou um
tempo que ela saiu do distrito aí ela não tinha mais condições de me ajudar,
aí ela procurou uma outra casa pra mim morar que eu pudesse trabalhar e ter
meu sustento.

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Quando Alaíde Alcantarino Teófilo relata a trajetória que a levou até a cidade de
Manaus, mostra os aspectos que foram determinantes para a busca de uma melhor qualidade
de vida:

eu tive uma infância né, não tive nem infância, nem adolescência nem
juventude nem nada já me colocaram, a gente morava no interior perdi minha
mãe cedo, aí minha faleceu tanto que nem foto eu fiquei da minha mãe meu
pai abandonou a gente e nós éramos 4 e fomos ficar com os meus avós
maternos que eram muito pobres também analfabetos todos dois e a gente
morava no interior e a muito difícil alagava era várzea e nós passamos lá
assim, desde criança já comecei muito cedo a trabalhar desde criança acho
que quando eu aprendi a engatinhar me deram uma bacia de louça pra lavar,
eu lavava louça, lavava roupa tratava peixe, carregava melancia fazia todo
trabalho né, carregava água e a gente não tinha fogão a gás, não tinha nada
era pobre acho que nem pobre era miserável mesmo a gente morava na Linda
Nova né, quando minha mãe faleceu a gente morava na Ilha do Araiá só que
é vizinho depois quando meu pai abandonou a gente, a gente foi morar com
a minha vó com os meus avós por parte de mãe que eram muito pobre também
e lutava com muito sacrifício a gente não tinha uma sandália pra calça, não
tinha um lençol, a gente dormia no chão porque não tinha rede né, eu lembro
que a gente dormia em cima de um saco de estopa forrava o chão com aquele
saco de estopa e a gente dormia em cima daquele saco de estopa porque a
gente não tinha lençol e não tinha rede, a minha primeira rede eu comprei
quando passava aqueles regatão que chamavam né os pessoal que vendiam
passavam uma vez por mês lá pra vender aquelas coisas aí eu cortei juta ajudei
meu avô cortava juta, pra comprar uma rede pequena pra mim porque eu
dormia no chão e tinha muita, muita, muita carapanã ,antes assim das cinco
horas cinco e meia se a gente abrisse a boca engolia um monte de carapanã
,cozinhava na lenha e era muito sofrida nossa vida e meu avô veio pra Manaus
vendeu lá o terreno e veio pra Manaus em busca de uma vida melhor, porque
eles também já tava de idade e aí a gente sempre que o melhor pra gente nós
fomos morar ali no Parque 10 na época não tinha Alvorada.
.

Assim como todas as nossas entrevistadas, Alaíde vivia da subsistência do trabalho


doméstico. As dificuldades financeiras não estavam apenas no cotidiano da família de Alaíde,
mas também de muitas famílias do Amazonas. Com a circulação baixa de dinheiro no interior,
essas meninas eram praticamente obrigadas a trocar trabalho doméstico por recursos básicos
de sobrevivência.

É possível identificar vários aspectos que foram responsáveis pela iniciação no trabalho
dessas meninas, entretanto, todos partem do mesmo princípio, a fuga de uma vida que não

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oferecia condições dignas de sobrevivência, como é observado no relato de Augusta Pereira da


Silva:

Bom o que me levou a trabalhar em casa de família foi porque nós éramos
muitos irmãos, e assim como eu me criei com padrasto, houve uma época que
não tinha emprego, naquela época era mais difícil ,só trabalhava em roça, em
safra, terminava de um lugar ia pra outro de um interior pro outro até que a
gente veio pra Coari, ai em Coari era mais desenvolvido, e tinha aquelas
famílias que precisavam de uma pessoa assim pra reparar uma criança de
babá, como eu já era acostumada a cuidar dos meus irmão mermo né, aí eu
comecei a ir pra casa de família assim que tem seu grande berço no distrito
industrial, que se instala nos arredores da cidade. E enquanto isso o D.I, é
loteado para receber suas primeiras unidades fabris, cuida-se também do
centro agropecuário previsto no diploma legal que hoje completa três anos.
Primeiro resultando da instituição da zona franca, o desenvolvimento do
comércio, abriu milhares de novos empregos, com as centenas de
estabelecimentos que passaram a operar, vendendo gêneros alimentícios,
fazenda e artigos eletrodomésticos a preços baixíssimos. (apud RIBEIRO,
2015).

Seus relatos foram silenciados por não terem espaço no discurso público; as vozes
femininas foram confinadas à esfera privada”.

Algumas questões são responsáveis por fomentar o cenário da pesquisa, é preciso


analisar quais são as vozes que estão dispostas nas memórias coletivas, quais são as vozes que
adquirem espaço no cenário público, além de pensar acerca da questão do agente de gênero
desenvolvido na divisão.

Quando se analisa esses aspectos em comparação com a vivência dessas meninas em


seus testemunhos, é possível perceber a desigualdade social. Tanto nos seus lugares de origem,
quanto no seu cotidiano na cidade de Manaus.

No relato de Raimunda se vê a esperança que se tinha em conseguir uma realidade


melhor da que se tinha. Estando presente o “aproveitamento” das fragilidades que as famílias
dessas meninas tinham:

(Choro)... primeiramente eu fui morá com a minha madrinha, com a minha


madrinha eu vim pá essa casa aqui em Manaus (choro), vir morar com ela, ela
ia me dar roupa calçado tudo, chamava kaiada o nome dela, não como era o
nome dela mas só chamava Maria Kaiada, apelido sei lá, ai passou um tempo,
ai foi lá com a minha mãe me pediu que ela tinha uma amiga aqui em Manaus
e ela tava precisando duma pessoa assim, uma criança para brincar com as

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filhas dela, se a mamãe deixava ai mamãe pegou deixou ai eu vir morar não
conhecia nada né.

Acerca dessa prática do trabalho doméstico como uma derivação do trabalho escravo,
Freire estabeleceu que o brasileiro quando não no corpo, traz na alma, a marca do indígena e
do negro, o que se apresenta também nos trejeitos do cotidiano, na música, na religiosidade, na
fala e no andar, mostrando que esses traços, especialmente da cultura negra, foram
concretizados desde as amas-de-leite até os seus filhos, que foram os primeiros companheiros
de brincadeiras dos filhos dos senhores, dados que tem raízes desde as origens do Brasil:

Da escrava ou sinhá que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu
de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra velha
que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da
mulata que nos tirou o primeiro bicho-do-pé de uma coceira tão boa. [...] Do
moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo. (FREIRE,
2002. p. 396)
Conclusão

Ouvir as vozes dessas mulheres que foram historicamente negligenciadas e silenciadas


é essencial para que se tenha a possibilidade de uma construção história mais justa. Onde é
possível enxergar, igualmente, os sujeitos que fizeram parte da composição de um marco.

Referências

ARAÚJO, Emanuelle Silva. Política de Integração Nacional e Desenvolvimento Urbano Local:


O caso da Zona Franca de Manaus.
FREIRE, Gilberto. Casa grande e senzala. In Intérpretes do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2002.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Migração Interestadual
década de 1970. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/ .
LOUREIRO, Antonio José Solto. Dados históricos da evolução e crescimento de Manaus. In:
IGHA, 1917. 332 anos de Manaus: História e Verdade. Manaus: Valer, Governo do Estado do
Amazonas, 2001. 79 – 101 p.
MEDEIROS, Márcia Maria de. Romance de cavalaria: tessituras entre arte e mito na literatura
medieval. Interdisciplinar, v.7, n.7, p. 137‐146, jul/dez 2008. Edição especial.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Ministério do Planejamento e Coordenação Geral. Fundação IBGE – Instituto Brasileiro de


Estatística – Departamento de Censos. Censo Demográfico Amazonas. VIII Recenseamento
Geral – 1970.
NAZARETH, Tayana; BRASIL, Marília; TEIXEIRA, Pery. Manaus: crescimento
populacional e migração nos anos 90. Revista Paranaense de Desenvolvimento, Curitiba, n.
121, p. 201-217.
PACHECO, Carlos Américo. Fragmentação da Nação. UNICAMP. IE: Campinas, 1998.
RIBEIRO, Marineide da Silva et al. “A gente veio do interior sem saber muita coisa da capital”:
vivências de paraenses interioranos em Manaus (1970-2014). 2015.
SALVATICI, Silvia. Memórias de gęnero: reflexões sobre a história oral de mulheres. 2005.
SEWARTZMAN, Simon. Trabalho infantil no Brasil. Brasília:OIT, 2001
SILVA, Patrícia Rodrigues da et al. Disputando espaço, construindo sentidos: vivências,
trabalho e embates na área da Manaus moderna (Manaus/AM 1967-2010). 2011.
VIANA, Gilney. Impactos ambientais da política de globalização da Amazônia. In: Viana,
Gilney; Lima, Marina e Diniz, Nilo (Orgs). O desafio da sustentabilidade - um debate
socioambiental no Brasil. Editora Fundação Perseu Abramo: São Paulo, 2001.

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AFRO-PARINTINS: NOTAS SOBRE O BOI-BUMBÁ E A CULTURA


NEGRA EM TUPINAMBARANA

JESSICA DAYSE MATOS GOMES (1), RENILDA APARECIDA COSTA (2)


(1) Universidade Federal do Amazonas, Mestra
dayse_hinata@hotmail.com
(2) Universidade Federal do Amazonas, Doutora
renildaaparecidacosta@gmail.com

Resumo

A cultura amazônica possui particularidades no que tange às questões de identidades étnico-


raciais. Em Parintins, município distante 369 km de Manaus-AM é realizado um Festival
Folclórico onde distintas manifestações amazônicas são apresentadas, entre elas, a de matriz
africana. Ainda mantendo destaque a identidade ligada à cultura indígena, a festa dos bois-
bumbás Garantido e Caprichoso tem nos últimos anos, apresentado com crescente evidência as
influências africanas na cultura regional. A presença de africanos e seus descendentes em
Parintins ainda é tratada em segundo plano, sendo que as manifestações que possuem influência
da cultura negra na localidade não se identificavam explicitamente como de matriz afro até
pouco tempo. Com base no exposto, este estudo apresenta registros da presença negra e discute
os seus ressignificados no boi-bumbá de Parintins. Utilizamos notas de delegacia, descrições,
anúncios de jornais e literaturas sobre a presença negra na localidade. As fontes possibilitam a
abordagem sobre o folclore de Parintins e negros/negras no boi-bumbá. A discussão sobre
africanos e afrodescendentes no território amazonense é de suma importância para o
conhecimento de um Amazonas plural, contribuindo para outras interpretações e análises dos
equívocos sobre a formação histórico-social e a identidade étnico-racial na região.

Palavras-chave: africanos; bumbás; identidade

Historiografia dos negros em Tupinambarana

Os quantitativos do trabalho compulsório em Parintins

Estudos realizados nos últimos anos em documentos oficiais (relatórios, livros de


ofícios, livros de batismo, obituários, jornais, entre outras fontes de séculos passados) tem sido
ressignificados enfatizando as vivências de negros/negras na Amazônia. Com relação a

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Parintins, a conhecida Ilha Tupinambarana, estudiosos tem se preocupado em buscar mais


informações sobre a história e cultura afroamazônida, ressaltando dados que não se limitam ao
quantitativo de negros cativos na região.

No Baixo Amazonas, mais precisamente na região de Parintins, as vivências de


negros/negras ficaram silenciadas durante muito tempo, uma vez que nestes domínios, poucos
registros e relatos sobre africanos e descendentes eram evidenciados, mesmo existindo
comunidades cujo nome refletem termos e referências à cultura afro (tal como Mocambo do
Arari, Mocambo do Mamurú, Terra Preta, Comunidade dos Cativos entre outros).

Ao se realizarem estudos sobre tais localidades do município, não se encontravam


diversidade de documentos ou mesmo grandes afirmações sobre a presença negra no território
parintinense e/ou em seu entorno. Nas comunidades rurais, a história que os moradores
conheciam muitas vezes demonstravam lacunas com relação aos indícios de presença negra em
seu território, com negações e dúvidas sobre suas identidades étnico-raciais. As comunidades
com denominações que expressam ligação com a cultura negra ressentem de pesquisas mais
aprofundadas sobre a história e constituição étnico-racial de seus comunitários. Ao realizarmos
pesquisas para reconhecimento do território encontramos a reprodução de uma história oficial
semelhante, em muitos aspectos, entre as comunidades. (GOMES, 2017).

Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt (2001, p. 77) enfatiza que Parintins fez parte dos
territórios onde a escravização de africanos e indígenas ocorreu, sendo que o autor afirma que
a escravatura é o legado que a metrópole portuguesa estabelecera no território brasileiro.
Tonzinho Saunier (2003), com base na pesquisa de Bittencourt e outros autores, destaca em
seu livro informações sobre quantitativos de negros escravizados no território de
Tupinambarana (como é conhecida Parintins desde o século XIX). Para Bittencourt (2001) e
Saunier (2003), os primeiros negros introduzidos no território parintinense chegaram com o
capitão de milícias José Pedro Cordovil, em 1796. Posteriormente, o quantitativo de negros se
resumia a 77 em situação de escravidão no ano de 1848; em 1856, somavam 180, e subiram
para 192 em 1859, e 263 escravizados em 1861. (SAUNIER, 2003).

O pesquisador destaca que o quantitativo de negros escravos em Parintins sofreu uma


queda em 1869, somando 149 cativos. Em 1873, 80 foram contabilizados e ouve um aumento

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no quantitativo em 1877, com 117 negros registrados. Já em 1881, o número era de 134 negros,
sendo que “em 1884, a Província do Amazonas aboliu a escravatura. Nesse ano, Parintins
possuía 132 escravos. Desse total, o Cel. José Furtado Belém libertou 30, e o Cel. Antônio
Guerreiro Antony, viajou de Manaus a Parintins, libertando o restante, 102 escravos”
(SAUNIER, 2003, p. 55).

Sobre o início do trabalho compulsório em Parintins, Andreas Valentin (2005, p. 84)


considera que José Pedro Cordovil introduziu os primeiros africanos e servidores portugueses
na colonização oficial da Ilha Tupinambarana, sendo o capitão de milícias considerado o
primeiro colonizador da localidade segundo o autor. Sérgio Ivan Gil Braga (2007) afirma que
o povoado Tupinambarana foi fundado em 1796, por José Pedro Cordovil, capitão de milícias
que desenvolveu a agricultura com negros, agregados e índios; logo, o uso do termo “escravos”
pode denotar tanto negros como índios, favorecendo a inexatidão do quantitativo de negros
introduzidos no território que seria posteriormente Parintins.

Os mocambos de Vila Nova - Parintins - Tupinambarana

Outros documentos, notícias de jornais e narrativas de antigos moradores de


comunidades e zona urbana trazem evidências sobre as vivências de negras/negros na região
de Parintins. Arthur Cézar Ferreira Reis (1967) apresenta o registro do ano de 1805, quando
existiam mocambos compostos por negros e índios que resistiam ao trabalho escravo na região
parintinense. Os mocambos referenciados eram intitulados de bandos da Missão de Vila Nova
(REIS, 1967; BRAGA, 2011) que Saunier (2003) também cita registrando que, no mesmo ano
de 1805, “bandos da missão de Vila Nova abandonaram-na, formando mocambos” (SAUNIER,
2003, p. 24).

Vila Nova da Rainha (Parintins) é elevada à categoria de vila e município em 15 de


outubro de 1852, com o nome de Vila Bela da Imperatriz, cumprindo a lei paraense de 14 de
março de 1848 que precisou de ajustes durante 4 (quatro) anos. O município então acaba sendo
dividido em dois distritos: Parintins e Ilha das Cotias. Dentro do distrito Parintins existiam os
subdistritos: Parintins, Macurani, Paraná do Ramos, Uaicurapá, Serra de Parintins, Paraná do
Limão, Paraná do Xibuí e Parananema. E, ao distrito de Ilha das Cotias pertenciam: Ilha das

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Cotias, Aduacá, Xixiá, Sapucaia, Cranari, Costa do Jacaré, Caldeirão, Bom Jardim, Nhamundá,
Paquiri, Paratucá, Barão, Jatuarana, Mutungu, Espírito Santo e Cabori (SAUNIER, 2003).

Em um dos distritos de Parintins, não identificado, Francisco Bernardino de Souza


(1988, p.123) relata o acontecimento de execução por enforcamento de 6 (seis) negros que
haviam fugido do trabalho compulsório na região do rio Mamurú. Segundo o autor, os negros
em fuga consideraram a região própria para a formação de um mocambo, no entanto, os
moradores do Mamurú reuniram-se com indígenas, capturaram os negros e os enforcaram
numa travessa entre duas árvores. Até a atualidade o local do ocorrido é conhecido como Forca.

Souza (1988) também considera que os mocambos eram grandes atrativos para escravos
e que existiam mais de 2.000 escravos fugidos vivendo nos mocambos do Trombetas, em
Óbidos, e de Curuá, em Alenquer. Nesses redutos, eles cultivavam a mandioca e o tabaco de
alta qualidade; colhiam castanha, salsaparrilha, entre outros produtos que esporadicamente
comercializavam com os regatões às escondidas no porto de Óbidos, aonde chegavam de
canoas à noite. Muitos consideravam os mocambos como algo maléfico para o bem comum,
conforme pondera Souza “E, pois, além da grande falta de braços com que lutam os agricultores
do Amazonas, em consequência da avulta da emigração que afluem para os seringais, tem ainda
de lutar com a praga dos mocambos, que são com uma viva e permanente ameaça!” (SOUZA,
1988, p. 96).

Os mocambos eram um incômodo para as autoridades da região, em virtude da


organização que os negros desenvolveram e a permanência desses territórios, que foram muito
além da abolição da escravatura. Os mocambos eram vistos pelas autoridades provinciais como
exemplo da rebeldia e criminalidade dos negros e isso os configurava como “praga” na
concepção de muitos habitantes do território amazônico.

Ygor Olinto Cavalcante (2013, p. 25) apresenta registros de fugitivos que transitaram
pelo Amazonas como, por exemplo, um anúncio de fuga publicado no jornal O Grão-Pará,
n.30, p. 04, de 03/01/1852. A nota trata sobre o negro Felipe, de 22 anos, dá detalhes como os
dentes partidos e marcas de surra do então fugitivo. Explica também que o mesmo possuía
conhecimento sobre os rios, igarapés e furos por onde passava, pois, “em 1847, já havia fugido
em direção a Comarca do Amazonas. Guardava na memória os tempos de resistência e

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

liberdade vividos “ainda rapaz, sem barba, em Vila Nova da Rainha”, tocando sua guitarra”
(CAVALCANTE, 2013).

A descrição do negro Felipe demonstra a presença negra em Parintins, anteriormente


denominada Vila Nova da Rainha. Este nome é devido a ilha de Tupinambarana ter sido aceita
e elevada em 1803 à categoria de Missão Religiosa, pelo Capitão Mor do Pará, Conde dos
Arcos, que encarregou frei José das Chagas como administrador do lugar, o qual recebeu o
nome de Vila Nova da Rainha; em 1848 tornou-se Vila Bela da Imperatriz e posteriormente se
tornaria o município de Parintins.

Com relação à área distrital citada pelo jornal, há indícios de que em sua região houve
espaços de fuga, e as pesquisas evidenciam ainda mais isto. Cavalcante (2013) considera que
cidades do interior do Amazonas, como Parintins tiveram seus campos de resistência negra. O
autor afirma a existência no território parintinense do “quarteirão do mocambo”, pois, sua
própria urbanidade estava atravessada pela resistência dos escravos, pela cultura dos fugitivos.
(CAVALCANTE, 2013, 140).

Os mocambos se formaram como lugares símbolos da emancipação e da resistência,


mas foram um incômodo aos administradores provinciais. Pinheiro (1999) considera que, na
metade do século XIX, apesar de toda a repressão ao movimento cabano que envolveu negros,
ainda assim os mocambos disseminados pelo Baixo Amazonas “tornaram-se alvos prioritários
nas preocupações das autoridades provinciais” (PINHEIRO, 1999, p. 158).

Em Parintins, estudos apontam um dos “mocambos” como território de conflitos.


Segundo o Ofício da Delegacia de Polícia de Vila Bela da Imperatriz, de 3 de novembro de
1862, para o Chefe de Polícia da Província, Dr. Caetano Estelita Cavalcante Pessoa, um escravo
chamado Maximiano José, de aparência mulata, apresentava ter trinta anos, sem barba, boa
altura, sendo oficial de alfaiate, fugia há vários meses e encontrava-se no “Quarteirão do
Mocambo”, distrito de Vila Bela da Imperatriz (Parintins), para onde várias diligências foram
enviadas com o objetivo de capturá-lo. Segundo Cavalcante (2013) e Gomes (2006), o
“Quarteirão do Mocambo” constituía o típico “campo negro”, onde havia conflitos,
solidariedades e proteção.

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Os indícios de presença negra na região de Parintins no que diz respeito a territórios de


amocambados ainda ressentem de mais pesquisas, mas há a presença negra nas manifestações
culturais parintinenses e alguns registros nas literaturas memorialistas locais.

Notas sobre a cultura negra e o Boi-Bumbá de Parintins

As manifestações folclóricas do território tupinambarana, especialmente o boi-bumbá,


tem sua origem e desenvolvimento ligados à cultura africana, sua difusão e miscigenação no
Brasil. Umas das primeiras afirmações que pode-se notar é a ênfase que cada apresentador –
primeiro item avaliado nas apresentações do Festival Folclórico de Parintins – faz sobre a
descendência negra dos fundadores dos bois.

Tanto os representantes do Boi Caprichoso como do Garantido exaltam a herança negra


e nordestina na sua manifestação, além de elementos que fazem ligação com a cultura afro tal
como a marujada, a batucada, as homenagens a São Benedito, entre outros indícios e
afirmações. Sobre a herança afro no boi-bumbá, Valentin (2005) considera que “a presença de
negros no médio Amazonas, mesmo pequena, influencia o surgimento e a própria evolução do
boi-bumbá na região”. (VALENTIN, 2005, p. 86).

O autor também destaca a influência do bumba- meu-boi maranhense e seu encontro


com o já existente boi-bumbá no período da chegada dos migrantes nordestinos na região de
Parintins. A manifestação nordestina teria então encontrando um folguedo semelhante “como
também através do convívio com os negros, a identificação com o seu ritmo e sua música”
(2005, p. 86).

Os históricos apresentados por cada bumbá no Festival Folclórico de Parintins trazem


sua herança negra que há muito tempo foi ignorada ou colocada em segundo plano. O Boi
Caprichoso tem como uma das versões históricas de sua origem a relação com o bairro Praça
14 de Janeiro em Manaus, onde se localiza o Quilombo urbano do Barranco. Sobre tal origem,
Saunier (2003) afirma que o Coronel José Furtado Belém teria trazido o Boi Caprichoso da
Praça 14 para brincar em Parintins, em 1913, sendo que esse bumbá teria “nascido em Manaus”
em 1912. (SAUNIER, 2003, p. 206).

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O Caprichoso é o boi-bumbá do Festival de Parintins que possui couro negro e uma


estrela na testa, sendo que seu curral está localizado no bairro da Francesa, próximo ao bairro
do Palmares. A área que compreende ao território do boi negro tem como uma de suas ruas
tradicionais a Rua Sá Peixoto, conhecida popularmente como “Esconde” que traz
questionamentos sobre o que ou quem se escondia. Para Jorcemara Matos Cardoso (2016), a
Rua Sá Peixoto é considerada o berço e principal curral do Boi-bumbá Caprichoso.

Sobre o Boi Garantido, de couro branco e coração na testa, Dé Monteverde e João


Batista Monteverde afirmam suas origens afro relatando que a trajetória de Lindolfo
Monteverde, fundador do bumbá, começou no século XIX, com chegada em Parintins de
Germana da Silva, descendente de negros da costa da África. Esta chega à Ilha Tupinambarana
por volta do ano de 1820, com as marcas da escravidão que lhe afligira e, após alguns anos,
casa-se com Alexandre Monte Verde da Silva, com quem tem uma filha: “Alexandrina Monte
Verde da Silva, nascida em 20 de dezembro de 1864”. (MONTEVERDE, 2003, p. 11).

Fruto de seu relacionamento com um homem chamado Marcelo, Alexandrina foi mãe
de Lindolfo Marinho da Silva, conhecido posteriormente como “Lindolfo Monteverde, o
criador do Boi Garantido”, nascido em 02 de janeiro de 1902.

O boi Garantido também tem como uma de suas tradições a homenagem a São
Benedito, assim como a São José Operário, o santo dos trabalhadores. A devoção ao santo
negro é considerada uma das mais antigas na Ilha Tupinambarana e há autores que afirmam
que a primeira igreja edificada em Parintins foi em homenagem a São Benedito.

Nos últimos anos, os bois-bumbás parintinenses têm evidenciado manifestações afro e


suas heranças a nível local e regional. A religião de matriz africana tem sido mostrada nas
apresentações de figura típica regional (15º item avaliado pelos jurados) e de
celebração/exaltação folclórica. Mas ainda há negação e desconhecimento dentro e fora das
associações folclóricas de boi-bumbá em Parintins, perceptível pela reação das pessoas nos
diferentes lugares da ilha e nas redes sociais. Personagens relevantes como Mãe Catirina, Pai
Francisco, Gazumbá voltaram a ser apresentados com maior destaque no Auto do Boi-bumbá.

Mas, deve-se considerar que os personagens negros Pai Francisco, Mãe Catirina e
Gazumbá ainda são apresentados como personagens caricatos na celebração folclórica dos

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bois-bumbás, tendo a função de recolher adereços dentro da arena, divertindo o público e


também causando discussão entre alguns espectadores, mas sem muitas luzes sobre eles, sem
o protagonismo que lhes é devido. Para Cardoso (2016, p. 80), “[...] o negro, na brincadeira de
boi-bumbá em Parintins, continua relegado à marginalização, continua representando o lado da
carnavalização, o lado grotesco da festa”.

Ainda há injúria, racismo e preconceitos em relação a cultura africana e afro-brasileira


apresentadas pelos bois-bumbás, pois, segundo Cardoso (2016, p. 177), “a posição do negro
ainda é sub-hierarquizada, posta mais como figuração do que como uma voz autorizada no
boi”.

Com crescente evidência a partir do ano de 2016, a apresentação da cultura negra no


Festival Folclórico de Parintins, em particular, na evolução dos bois-bumbás Caprichoso e
Garantido, tem tido seus pontos positivos como o destaque aos negros no Auto do Boi,
demonstração das danças, batuques, lutas de quilombolas e religiosidade afro. Houve também
a identificação com os personagens negros, uma vez que, até então muitas crianças
parintinenses desejavam se tornar itens como a cunhã-poranga ou pajé, mas com as novas
abordagens pode-se ver crianças vestidas de Mãe Catirina e Pai Francisco nos eventos de rua
dos bumbás.

Em 2019, os personagens negros Mãe Catirina, Pai Francisco, Gazumbá e a Mãe da


Catirina foram oficialmente apresentados aos jurados do Festival Folclórico de Parintins. Os
avaliadores criticaram, através de uma carta oficial, o uso de Black Face por parte dos
personagens das duas associações folclóricas Boi Caprichoso e Boi Garantido. As
considerações dos jurados aqueceram as discussões na sociedade parintinense sobre o uso de
Black Face e o respeito a identidade negra. Há uma divisão entre os que defendem o uso de
pintura negra em pessoas brancas como algo tradicional e outros que repudiam tal atitude
estereotipada e racista. Tais discussões e atitudes vem surgindo, mas ainda com muito a se
desenvolver com relação ao respeito e reconhecimento da cultura afro.

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Conclusão

O reconhecimento da cultura negra na Amazônia, no Estado do Amazonas e, em


particular em Parintins ainda causa estranhamento. Ela aparenta ainda estar sendo revelada aos
que a desconhecem ou a ignoraram. Os estudos realizados nos últimos anos vêm ampliando as
análises que ainda estavam limitadas a enfoques de algumas áreas do conhecimento. As lutas
de remanescentes quilombolas, as histórias dos silenciados, a discussão sobre diferenças
culturais, a religiosidade afro, a miscigenação e fronteiras étnicas tem contribuído para
diferentes novas contribuições científicas sobre a presença de negros/negras no Estado do
Amazonas.

O pertencimento à cultura negra em Parintins, sobretudo no boi-bumbá ainda está em


processo, necessitando de mais estudos sobre a matriz afro e suas influências. Deve-se
considerar, a relevância de tal cultura na Amazônia e destituir quaisquer equívocos
provenientes da falta de conhecimento sobre as vivências afro no território amazônico.

Referências

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históricos sobre sua origem e desenvolvimento moral e material. Manaus: Edições do Governo
do Estado do Amazonas / Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 2001.
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de Catirina? In: O fim do silencio: presença negra na Amazônia/ Patrícia Melo Sampaio
(Organizadora). – Belém: Editora Açaí; CNPq, 2011.
______. Festas religiosas e populares na Amazônia: cultura popular, patrimônio imaterial e
cidades. In: Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra. (Org.). Oficinas do CES.
2007, v. 288, p.
CARDOSO, Jorcemara Matos O discurso de resistência em meio à espetacularização do
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Carlos – UFSCar, São Carlos, 2016. 208 p.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
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CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Uma viva e permanente ameaça: resistência, rebeldia
e fugas de escravos no Amazonas Provincial. Dissertação (Mestrado em História) -
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GOMES, Flávio dos Santos. “No labirinto dos rios, furos e igarapés”: camponeses negros,
memória e pós-emancipação na Amazônia, c. XIX-XX. História Unisinos, set./dez. 2006.
Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/6182. Acesso em 27
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GOMES, Jéssica Dayse Matos. Mocambos na Amazônia: História e identidade étnico-racial
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MONTEVERDE, Dé; MONTEVERDE, João Batista. Boi Garantido de Lindolfo. Manaus:
Edições Governo do Estado do Amazonas; Secretaria de Estado da Cultura; Editora da
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PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. De mocambeiro a cabano: Notas sobre a presença negra
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REIS, Arthur Cezar Ferreira. A Formação Espiritual da Amazônia. In: Revista Cultura, ano
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SAUNIER, Tonzinho, Parintins: Memórias dos acontecimentos Históricos. Manaus: Editora
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SOUZA, Francisco Bernardino de. Lembranças e curiosidades do Vale do Amazonas.
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VALENTIN, Andréas. Contrários: a celebração da rivalidade dos Bois-Bumbás de Parintins.
Manaus: Valer, 2005.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

EM BUSCA DE MEMÓRIAS SANTAS: FONTES HISTÓRICAS PARA O


ESTUDO DA RELIGIOSIDADE POPULAR NO INTERIOR DO
AMAZONAS

JOÃO DAVIDSON MACIEL BARROSO (1); PAULO DE OLIVEIRA NASCIMENTO (2)


(1) IFAM/Campus Eirunepé, Bolsista PIBIC Jr.
joaodavidson480@gmail.com
(2) IFAM/Campus Eirunepé, Doutorando
paulo.nascimento@ifam.edu.br

Resumo

Os estudos da História Cultural têm dado atenção especial às manifestações religiosas,


especialmente aquelas da religiosidade popular. Na Amazônia, são significativas as
manifestações religiosas existentes atualmente, fruto do longo processo histórico de
intercâmbio cultural entre os nativos e os não indígenas, ao longo dos séculos de colonização
e ocupação da região. O objetivo desta comunicação é apresentar notas de pesquisa do PIBIC
Jr 2019/2020 intitulado “Um Santo na Floresta: histórias do Irmão José da Cruz em Eirunepé
– AM”, desenvolvido no IFAM/Campus Eirunepé. Verificamos que as memórias constituem a
principal fonte histórica, na medida em que revelam ser um dos mais significativos vestígios
da passagem do Irmão José da Cruz pela cidade, quando ouvimos detalhes importantes da
personalidade do beato, suas pregações e o seu comportamento. Realizamos entrevistas com
pessoas que conheceram e conviveram com o “beato” e guardam memórias daquele tempo.
Além das Memórias, também fotografias e periódicos compõem o acervo de Fontes
inventariadas, bem como os vestígios arquitetônicos do “Santo Cruzeiro”, monumento erguido
por José da Cruz e mantido até os dias atuais pelos seus fiéis. Desse conjunto de fontes,
poderemos realizar análises posteriores acerca da religiosidade popular nesta parte da
Amazônia.
Palavras-chave: Memória; História Oral; religiosidade popular

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Introdução
No dia-a-dia da sala de aula, os Professores/Pesquisadores/Historiadores se deparam
com uma miríade de situações que o instigam a problematizar e refletir acerca das
possibilidades para se construir o conhecimento histórico, a partir das múltiplas realidades
locais que lhes são apresentadas à luz das experiências dos seus alunos e alunas. Os fatos
narrados, as memórias, os monumentos públicos, as festas, o modo de falar, as formas de ver
e viver no mundo estão impregnados de vestígios do passado que, transformados em fontes,
podem servir para a construção do Saber Histórico (NASCIMENTO, 2017).
Se, por um lado, o cotidiano escolar nos coloca em contato direto com a realidade local,
por outro as iniciativas da chamada educação científica acabam por oportunizar a
operacionalização de ações e projetos capazes de levar professores e alunos a produzirem
conhecimentos significativos a partir de tais realidades. Entendida como parte fundamental da
formação discente, a educação científica tem a capacidade de introduzir no cotidiano das
escolas de educação básica o pensamento lógico, o treinamento para a resolução de problemas
práticos e o acúmulo da cultura científica vigente (ZANCAN, 2000). Além disso, essa
educação, se tomada como norteadora dos processos de ensino e aprendizagem, é capaz de
despertar a capacidade de questionamentos, auto-organização e abordagens críticas do
conhecimento. Trata-se, portanto, de um movimento que tem buscado introduzir nas escolas
de educação básica o métier científico, abordando as mais variadas áreas do conhecimento,
incluindo aí a História e as demais Ciências Humanas.
Temos assistido, nos últimos anos, a uma crescente onda de iniciativas que tem como
objetivo principal incentivar a pesquisa do Saber Histórico no ensino básico, num movimento
crescente de ampliação das perspectivas da produção de conhecimentos por todos os sujeitos
envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem. Nas escolas de ensino fundamental,
médio, técnico e tecnológico, cada vez mais alunos e professores têm integrado programas que
integram ações de pesquisa e extensão, atreladas ao Ensino de História e de outras áreas do
conhecimento. É disto, pois, que trata o presente trabalho, quando se propõe a apresentar os
resultados parciais obtidos em função da execução de projeto de pesquisa realizado através do
PIBIC Jr, no IFAM/Campus Eirunepé.

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O PIBIC Jr no IFAM

O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica aos estudantes de Ensino


Médio - PIBIC Jr, assim como os demais programas de iniciação científica, consiste
basicamente no apoio financeiro aos estudantes para a realização de pesquisas científicas e
tecnológicas, sob a orientação de um Professor/Pesquisador. Segundo o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, são objetivos do programa “Fortalecer o
processo de disseminação das informações e conhecimentos científicos e tecnológicos básicos,
e Desenvolver atitudes, habilidades e valores necessários à educação científica e tecnológica
dos estudantes” (CNPq, 2006, s/p).
A Resolução Normativa n. 17, de 6 de julho de 2006 determina que é finalidade
principal do programa a promoção da formação de recursos humanos, através do incentivo à
pesquisa para alunos e professores das instituições de ensino superior e institutos de pesquisa.
Esse incentivo manifesta-se no pagamento de bolsas para aqueles discentes que, orientados por
professores pesquisadores, possam desenvolver os seus talentos potenciais, numa espécie de
“despertar” para a ciência. Dividido em três grandes áreas – ciências da vida, ciências exatas e
da terra e ciências humanas e sociais – o programa utiliza como principais critérios de seleção
o currículo do orientador e a qualidade do plano de atividade (ou projeto de pesquisa), o que
denota a necessidade de qualificação por parte dos professores/pesquisadores/orientadores. Por
meio dos chamados Acordos de Cooperação Técnica, o CNPq concede as quotas de bolsas,
para serem administradas e aplicadas pelas referidas instituições, dentre as quais os Institutos
Federais de Educação, Ciência e Tecnologia – IF’s. Como requisitos e condições, essas
instituições devem “a) ser beneficiária dos programas PIBIC e/ou PIBITI; b) dispor de
infraestrutura adequada à realização das atividades de pesquisa do bolsista; c) disponibilizar,
quando necessário, transporte e alimentação aos bolsistas para participação nas atividades
previstas” (CNPq, 2006, s/p). Assim como inúmeras instituições, o Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – IFAM/Campus Eirunepé recebe, anualmente,
cotas de bolsas de PIBIC Jr, distribuídas entre os vários eixos que compõem a grade de cursos
da instituição.

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O projeto PIBIC Jr
Com o objetivo principal de realizar estudo historiográfico acerca da passagem do
Beato Irmão José da Cruz por Eirunepé – AM, em 1970, com vistas em compreender: a) a
atuação do beato junto aos fiéis; (b) os elementos componentes de sua santidade; e c) as
principais características da religiosidade popular eirunepeense manifestada em relação ao
beato, submetemos ao edital 02/2019/DPI/PPGI/IFAM/IC o projeto intitulado “Um Santo na
Floresta: histórias do Irmão José da Cruz em Eirunepé – AM”.
A historiografia brasileira tem se renovado continuamente, ampliando tanto os seus
objetos quanto as suas abordagens. Dos inúmeros objetos abordados, há de se considerar a
atenção que esta historiografia tem dado aos movimentos messiânicos de Canudos e de
Contestado, percebidos tanto em termos culturais quanto sociais e econômicos. Ocorridos
respectivamente no final do século XIX e nos primeiros anos do século XX, Canudos e
Contestados são os mais conhecidos, mas não são os únicos movimentos messiânicos que
tiveram à sua frente personagens carismáticas, diga-se Antônio Conselheiro e os monges José
e João Maria (NEGRÃO, 2001).
A devoção aos santos é uma das marcas do Catolicismo, desde os seus primórdios.
Santo é aquele que possui características divinas, sendo que o termo se relaciona com aquilo
que é “separado”, “segregado” do profano, ou seja, daquilo que não é santo (JURKEVICS,
2004, p. 107). Os santos são, portanto, aqueles que possuem qualidades superiores, que os
afastam do homem comum. Os eremitas são um tipo específico de santo, correspondendo à
característica do asceta – aquele que renuncia aos confortos da vida mundana, dedicando-se à
sua missão (Idem, p. 109). Ao analisarmos a história do ideal católico de santidade, assistimos
– a partir das ações de Alexandre III, no século XII – à monopolização da autoridade de
declaração da santidade de alguém pela Santa Sé. Até então, qualquer bispo poderia declarar
alguém santo. A capacidade do povo de “criar santos” foi, portanto, retirada dele, na medida
em que a Igreja Católica – no contexto da Contrarreforma – pretendia combater aquilo que
considerava idolatria, justamente em razão dos protestantes acusarem os católicos dessa
prática. Neste contexto, surgiram os “institutos de purificação”, com vistas a promover uma
religião espiritual e livre de idolatria. (Idem, p. 117).

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Se a Igreja Católica buscou coibir práticas desviantes, a religiosidade popular esteve


presente em praticamente toda a história daquela religião. Tendo sido considerada por muitos
como “fanatismo”, a religiosidade popular não se descolou em tudo das leis e dogmas
instituídos pela religião oficial. Mesmo em condições em que a presença de um padre era coisa
rara, os grupos religiosos guardaram consigo importantes relações com as leis da Igreja
Católica. (MONTEIRO, 2010, p. 177). O ermitão é, pois, um pregador itinerante, um asceta
alçado à condição de “homem santo” que sai pelo mundo a causar frenesi nos devotos, de
cidade em cidade, pregando os seus “sermões”, fazendo milagres e curando as pessoas (Idem,
p. 190).
Na Amazônia, já na segunda metade do século XX, surge um movimento messiânico
semelhante àqueles, movimento este que ainda possui muitos adeptos, especialmente entre os
Ticuna do Alto Solimões (ILHA, 2016). Trata-se do movimento encabeçado por José
Fernandes Nogueira, popularmente conhecido como “Irmão José da Cruz”. Natural da cidade
mineira de Cristina, o Irmão José da Cruz teria nascido em 1913, se casado e tido sete filhos.
Em 1944, teria recebido uma revelação divina para sair pelo mundo, pregando a cruz e o
evangelho (ILHA, 2016, p. 2). Tendo percorrido inúmeras cidades, a exemplo de Eirunepé,
além de vilas, aldeias, povoados e comunidades na Amazônia brasileira e peruana, entre as
décadas de 1960 e 1970, o Irmão José da Cruz teria se tornado um especialista em “curar
enfermos com o dom de Deus”, além de ter difundido o culto e a devoção da Santa Cruz Bendita
entre ribeirinhos e indígenas amazônidas (BOMFIM, 2019, p. 1). Em Eirunepé-AM, o Irmão
José da Cruz teria chegado no ano de 1970 e ficado na cidade por um período não superior a
30 dias. Além dos sermões, das rezas e curas, José da Cruz teria erguido, com o auxílio da
população, o “Santo Cruzeiro”, local que ainda hoje é visitado pelos eirunepeenses mais
devotos.
Tendo passado quase meio século desde a passagem do Irmão José da Cruz por
Eirunepé, as memórias daquele evento persistem e chegam até os nossos dias. São homens e
mulheres que conviveram diretamente com “aquele homem santo” quem evoca as lembranças
dos dias em que estiveram na sua presença, ajudaram a erguer o “santo cruzeiro”, ouviram os
seus conselhos e “sermões”, presenciaram “coisa extraordinária”, foram benzidos e curados.
São, pois, memórias que nos levaram às questões: o que motiva a devoção ao Irmão José da

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Cruz? Por que muitas pessoas – mesmo os mais jovens – são tão fascinados com as memórias
daquele beato? Quais seriam os elementos constituintes desta crença?

Em busca de memórias santas


Para o projeto sobre o qual nos debruçamos, lançamos mão de três tipos específicos de
documentação histórica, diga-se (1) as memórias, (2) fotografias e (3) os periódicos. Trata-se,
pois, de um esforço comparativo para se obter um retrato verossímil do passado eirunepeense.
Nestes termos, seguimos uma das muitas lições de Marc Bloch, quando afirma que “[...] não
existe conhecimento [historiográfico] verdadeiro sem uma certa escala de comparação” e que
“na base de quase toda a crítica [necessária ao conhecimento científico] inscreve-se um
trabalho de comparação” (BLOCH, 2001, p. 109).
Conforme já enfatizamos, é objetivo desse texto atentar para as especificidades da
Memória, tomada enquanto fonte histórica. Segundo o historiador francês Jacques Le Goff, “a
memória é a propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um
conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações
passadas, ou reinterpretadas como passadas” (LE GOFF apud SILVA; SILVA, 2012: 275).
Neste sentido, existe uma memória social que serve como documento para as ciências
sociais (sobretudo a História, a Antropologia, a Sociologia), especialmente por seu caráter
seletivo, que dá conta dos fatos vividos a partir da seleção feita pelos sujeitos. Esta memória
social é acessada através da oralidade, na qual os sujeitos recorrem às lembranças de si ou de
outrem e as exteriorizam para o pesquisador através da fala ou da escrita (SILVA; SILVA,
2012, p. 275). Discorrendo acerca dos elementos constitutivos da memória elencados por
Michel Pollack, Motta diz que, em primeiro lugar, estariam aqueles “acontecimentos vividos
pessoalmente ou, em outras palavras, aqueles que fazem parte de nós mesmos, portadores de
lembranças de um passado que se quer único” (MOTTA, 2012, p. 26). Por outro lado, existem
“as possibilidades abertas pelo fenômeno de projeção ou de identificação tão forte com um
passado, que pessoas que não o viveram se sentem coparticipantes e sujeitos desse mesmo
passado” (Idem). Estes últimos são, pois, aqueles acontecimentos vividos “por tabela”, que nos
remetem a algo que não foi vivenciado diretamente pelo sujeito, mas que está imbricado em
suas memórias. A memória é, portanto, construída através de lembranças próprias ou de

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outrem, o que nos leva à validação do depoimento de terceiros sobre acontecimentos da vida
de outrem. No caso específico deste projeto, somos postos diante de várias memórias, sejam
aquelas das pessoas que conviveram com José da Cruz e que se constituem em momentos
vividos pessoalmente, sejam aquelas memórias de pessoas que “ouviram falar” – através de
seus pais e/ou avós – do Irmão José da Cruz.
As memórias estão intimamente ligadas à metodologia da História Oral. A História
Oral, por sua vez, consiste numa “metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o
estudo da história contemporânea surgida em meados do século XX, após a invenção do
gravador a fita. Ela consiste na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que
participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do presente”
(ALBERTI, 2011, p. 155). Tendo percorrido um longo caminho ao longo do século XX, a
História Oral figura, atualmente, como uma importante metodologia para o conhecimento
historiográfico. De acordo com a autora supracitada, uma pesquisa que emprega a metodologia
da História Oral consiste basicamente em (1) preparar a entrevista, (2) contatar o/a
entrevistado/a, (3) gravar o depoimento, (4) transcrevê-lo, (5) revisá-lo e (6) analisá-lo (Idem,
p. 165) enquanto vestígio do passado. A História Oral, assim como outros documentos, oferece
ao pesquisador a possibilidade de acesso ao passado através da memória dos entrevistados,
podendo constituir-se como uma fonte primeira – e em alguns casos, fonte única – para o
conhecimento do passado.
No caso específico deste projeto, as memórias constituem a principal fonte histórica, na
medida em que revelam ser um dos mais significativos vestígios da passagem do Irmão José
da Cruz por Eirunepé – AM, quando ouvimos detalhes importantes da personalidade do beato,
suas pregações e o seu comportamento. Para tanto, fizemos um levantamento prévio de seis
pessoas que conheceram e conviveram com José da Cruz e, ainda hoje, guardam as lembranças
daquele tempo. São, pois, estas pessoas os principais portadores das Memórias do Irmão José
da Cruz.
O conjunto de entrevistas deu-se com seis pessoas – três homens e três mulheres – com
idades entre 61 e 90 anos. Desse grupo, apenas uma das entrevistadas não conheceu
pessoalmente o Irmão José da Cruz, enquanto os demais tiveram um contato pessoal com ele.
O primeiro entrevistado nos deu poucas informações, numa curta entrevista de cerca de 2

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minutos. Esse entrevistado afirmou ter entre 9 e 12 anos quando da chegada de José da Cruz e,
ao contar 66 anos à época da entrevista, nos levou a concluir que a passagem do beato por
Eirunepé ocorrera havia mais de 50 anos.
A segunda entrevistada foi uma senhora de 61 anos. Na época, tinha entre 10 e 13 anos,
tendo assistido às pregações e milagres. Essa entrevistada foi a que nos deu o maior número de
informações, numa entrevista que durou cerca de 25 minutos. Interessante notar que muitas das
memórias dessa entrevistada são oriundas do contato com a já falecida mãe, que teria tido uma
experiência mais significativa com José da Cruz, do ponto de vista da espiritualidade, tanto em
razão de sua visita quanto nos anos que se seguiram, através das preces e milagres atribuídos.
O terceiro entrevistado foi um senhor de 69 anos. Numa entrevista que durou cerca de
15 minutos, obtivemos desse entrevistado informações não apenas relativas às práticas
religiosas ou aos dogmas e crenças do beato, mas também informações pessoais e de natureza
mais prática, como aquelas relacionadas à confecção da cruz para o “Santo Cruzeiro”. Também
um quarto entrevistado, numa curta entrevista de 5 minutos, confirmou as informações do
entrevistado anterior. Há de se considerar que esses dois entrevistados terem nos informado
que estiveram com o Irmão José da Cruz em momentos mais íntimos do cotidiano, durante os
mais de 20 dias em que esteve na cidade. Isso teria permitido uma aproximação mais pessoal,
o que lhes renderia informações pessoais do beato.
A quinta entrevistada – uma senhora de 90 anos – nos revelou importantes detalhes da
prática de fé e da mística que envolve José da Cruz e os seus seguidores. Durante a mais longa
de todas as entrevistas (cerca de 36 minutos), fomos informados dos milagres realizados, das
maldições lançadas e do paradeiro do beato. Também a sexta e última entrevistada nos deu um
depoimento semelhante, o que pode nos ajudar a compreender algumas das motivações das
crenças e valores do Beato, bem como a recepção das mesmas pelos fiéis eirunepeenses.
Com esses resultados – obtidos a partir da metodologia da História Oral e com base nos
estudos da Memória – é possível “cotejar informações, justapor documentos, relacionar texto
e contexto, estabelecer constantes, identificar mudanças e permanências e produzir um trabalho
de História” (BACELLAR, 2011, p. 71) sobre a passagem do Irmão José da Cruz por Eirunepé
– AM, na década de 1970, bem como as memórias das pessoas que estiveram – direta ou
indiretamente – com aquele “Santo” da Floresta.

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Conclusão
A religiosidade popular é um fenômeno dos mais interessantes para se analisar, quando
se busca compreender a construção histórica de algumas das cidades do interior da Amazônia.
Chama a nossa atenção a persistência de determinadas memórias acerca de práticas e
fenômenos religiosos que desafiam o real e animam a espiritualidade e a vida de determinados
grupos. Nesse contexto, as memórias são a principal, quando não a única, fonte disponível. Daí
a importância de se buscar e analisar tais memórias para se compreender aquele fenômeno
religioso e histórico.
Nesse trabalho, apresentamos algumas notas de pesquisa acerca das memórias sobre a
passagem do Irmão José da Cruz por Eirunepé, na década de 1970. Sabe-se que esse sujeito
atuou em várias cidades do interior do Amazonas, Acre, na Fronteira com o Peru, tendo
fundado uma comunidade religiosa denominada “Ordem da Santa Cruz” entre os ticunas do
Alto Solimões.
Na memória dos entrevistados e entrevistadas, são relatados os seus ensinamentos, os
milagres, a forma de se vestir, a forma de se portar e como lidava com os seus seguidores. São
memórias que representam, portanto, um “Homem Santo”, que inspira devoção e respeito.
Ouvindo os depoimentos, não conseguimos deixar de nos perguntar o seguinte: por que
um homem, vestido como um beato, foi capaz de adentrar a floresta amazônica e, entre as
décadas de 1970 e 1980, arregimentar seguidores e fundar comunidades religiosas, a exemplo
de Antônio Conselheiro e José Maria? O que motivou essas crenças em parte da população
eirunepeense? Por que essas experiências persistem vivamente na memória daqueles sujeitos?
As respostas a estas questões provavelmente nos levaram a perceber as mudanças e
permanências e, portanto, o movimento da História da Amazônia. Mas isso é assunto para outro
momento.

Referências
ALBERTI, Verena. Fontes Orais: histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(org.). Fontes históricas. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2011, p. 155 - 202.
BACELLAR, Carlos. Fontes documentais: uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes históricas. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2011, p. 23 – 79.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001.
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CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO -
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Disponível em:<https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2016/02/12/fundador-
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JURKEVICS, Vera Irene. Os santos da igreja e os santos do povo: devoções e manifestações
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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

MOVIMENTOS DE AFIRMAÇÃO SOCIOCULTURAL E


DECOLONIALIDADE: EXPRESSÕES DE RESISTÊNCIA AO
IMPERIALISMO EUROPEU NA JAMAICA

JOSÉ LUIZ PEREIRA DE MORAIS (1), BÁRBARA HARIANNA BRITO DE CABRAL (2)
(1) Universidade Federal de Goiânia, Mestrando
zecamoraes25@gmail.com
(2) Universidade Federal de Roraima, Graduada
barbara.harianna@hotmail.com

Resumo

O presente trabalho propõe uma reflexão sobre o processo de afirmação identitária jamaicana
que configurou-se como uma resistência perante o imperialismo europeu, que nas Américas se
iniciou no século XVI. O objetivo deste trabalho é analisar o potencial das afirmações culturais
centralizadas na religião Rastafári como uma das principais expressões dessas lutas
afirmativas. Como marcos específicos desse trabalho estão os debates decoloniais e a influência
de elementos do Pan-africanismo e seus precursores nos movimentos de libertação negra, mais
especificamente entre os Rastafári. Essa abordagem é relevante para refletir sobre os processos
de resistência nos países que foram submetidos a uma ideologia imperialista de dominação
europeia. Para tanto realiza-se reflexões a partir de literaturas sobre o tema e canções criadas
por Rastafáris e adotam-se como centrais as categorias resistências, decolonialidade e
contracultura.

Palavras-chave: Resistência – Decolonialidade – Rastafári

Introdução
A construção histórica oficial do continente Americano é embebedada pelo que
podemos chamar de filosofia do progresso, que busca justificar a invasão europeia a estes
territórios no século XVI com o argumento de que estariam levando a razão, a ciência e a
religião aos povos sem conhecimento. Essas populações foram sujeitadas ao processo histórico
denominado de colonialismo, um dos marcos fundadores da modernidade, cujo entendimento
é a chave para a compreensão dos pilares que sustentam as políticas, os saberes, os pensamentos

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e anseios da atual sociedade eurocêntrica, capitalista, heteronormativa, masculina e branca.


Essas afirmações baseiam-se na linha de pesquisa dos estudos sobre colonialidade/
modernidade/ decolonialidade.
O presente trabalho, em coerência com essa linha de pesquisa, busca levantar reflexões
sobre o processo de colonização da Jamaica, especificamente sobre a resistência que emergiu
ali e iniciou um movimento decolonial na sociedade Jamaicana, o que entre outras práticas
culturais pode ser observado no estilo de vida Rastafari.
Para realizar tais reflexões propõe-se uma pesquisa bibliográfica de abordagem
dialética, problematizando como movimentos de contracultura surgidos dentro da sociedade
jamaicana se mostraram como uma resistência ao colonialismo europeu. O trabalho será
dividido em três momentos, sendo o primeiro voltado a entender os caminhos do colonialismo
na Jamaica e suas principais transformações na lógica política, social e econômica desta
sociedade. Dando ênfase no que o sociólogo peruano Aníbal Quijano conceitua como
“colonialidade do poder” e seus reflexos nas estruturas racializadas que regem o mundo
ocidental e como estas se institucionalizam nas categorias de saber, de ser e de agir na
contemporaneidade.
O segundo momento exercerá um esforço para compreender como a religião Rastafari
nasce e se manifesta, buscando pensar seu modo outro de viver, com o objetivo de enxergar
suas práticas e seus conceitos de uso da erva e da música como conexão ao divino. Paralelo a
esse exercício, é fundamental a correlação entre as práticas contraculturais presentes na prática
Rastafári aos conceitos de decolonialidade e saberes descentralizados.
O terceiro momento debate o caráter global que a música reggae e seu principal
intérprete, Bob Marley, alcançaram nas décadas de 70 e 80 do século XX levando a mensagem
Rastafari para todo o globo, propagando os ideais e popularizando as práticas contraculturais
Rastafári. Nesse momento do trabalho serão analisadas letras de canções de músicos Rastafári
que contém mensagens de resistência às imposições culturais europeias.

Os caminhos da colonização jamaicana

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A História Jamaicana não se inicia com a invasão espanhola em 4 de maio de 1494, na


Baia de Saint Ann (RABELO, 2006), assim como a história do Brasil não se inicia com a
invasão portuguesa em 1500. Evidentemente o processo de dominação europeia modificou toda
forma de vida já existente nestes territórios e colonizou a região não apenas economicamente,
mas também culturalmente. Neste trabalho pretende-se refletir sobre parte da história
jamaicana a partir dos que resistiram, contribuindo para a historiografia recente, que com a
perspectiva decolonial busca desconstruir a história eurocêntrica que por muitos anos foi tida
como oficial.
Os habitantes mais antigos registrados na região da Jamaica, país da América Central,
são os do tronco Arawak. Este povo é muito presente em toda a América caribenha, e aqueles
que viveram na região da Jamaica se autodenominavam Taino. Ali tiveram a agricultura, a
pesca e a caça como as principais práticas de subsistência do seu povo. A própria origem da
palavra “Jamaica” deriva do idioma Arawak, mas é pouco o que se conhece sobre as populações
originárias dessa região, o que se deve à prática genocida do colonialismo europeu que
implantou novas lógicas e transformou toda a estrutura social e econômica dos povos que
viviam ali. (RABELO, 2006)
A principal dessas transformações foi a introdução do sistema plantation e do trabalho
escravo nas plantações de Cana-de-açúcar. Esses escravos foram trazidos da África para várias
partes da América onde processos semelhantes de exploração territorial e genocídio de povos
originários aconteciam. Ao longo dos séculos de dominação colonial esses escravos africanos
tornariam a população jamaicana hegemonicamente negra. (RABELO, 2006)
Se o colonialismo britânico tornou essa sociedade hegemonicamente negra, também
produziu uma estratificação baseada no sistema que implantou. Conforme Rabelo, valendo-se
dos estudos de Brown:

O passado colonial da Jamaica, baseado na plantation e no escravismo,


resultou na formação de uma sociedade estratificada em três principais
camadas, uma elite branca, uma classe média composta por “mulatos” (...) e
uma imensa maioria composta de afro-descendentes. Assim, na Jamaica,
poder-se-ia dizer que “classe” e “raça” estão intimamente inter-relacionadas.
(RABELO, 2006, p. 46 Apud BROWN, 1988, p. 1-4).

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Esse processo de estratificação social racializada mostra como o colonialismo modifica


estruturas sociais com consequências para além do período histórico em questão, pois a lógica
colonial e as transformações advindas dessa invasão reverberam nas sociedades colonizadas.
Essa inter-relação entre “classe” e “raça” não é uma particularidade da Jamaica, se trata de uma
estrutura fundamental do colonialismo nas Américas.
Essa é uma discussão trazida pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano que na sua obra
“colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina” escancara as consequências da
dominação europeia na vivência dos povos colonizados e nos apresenta o conceito de
“colonialidade do poder”. Esse conceito relaciona trabalho, gênero e raça na
contemporaneidade e suas ligações com o colonialismo. Uma reflexão essencial trazida pelo
autor é como essa lógica colonial não deixa de imperar a partir dos processos de independência,
mas reconfigura-se nisto que ele chama de “colonialidade do poder” ou “colonialidade do
controle do trabalho”. (QUIJANO, 2005)
Essa “colonialidade do controle do trabalho” determinou a geografia social do
capitalismo: o capital, na relação social de controle do trabalho assalariado, era o eixo em torno
do qual se articulavam todas as demais formas de controle do trabalho, de seus recursos e de
seus produtos. Isso o tornava dominante sobre todas elas e dava caráter capitalista ao conjunto
de tal estrutura de controle do trabalho. Essa estrutura centralizou geograficamente e
socialmente os europeus como dominantes durante o estabelecimento do capitalismo
internacionalmente. (QUIJANO, 2005).
Assim a Europa se constituiu no centro do mundo capitalista. O europeu, branco,
heteronormativo, masculino e cristão concentrou-se como a base normativa do poder, do ser,
do pensar e do sentir na estruturação da sociedade ocidental. As populações historicamente
racializadas por esses dominantes foram subalternizadas nas categorias e silenciadas nesses
contornos históricos. (QUIJANO, 2005).

Expressões de resistência jamaicana ao colonialismo europeu

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A Jamaica tem em sua história processos nos quais esses povos subalternizados
conseguiram subverter as lógicas impostas, protagonizando resistências ao colonialismo
através de práticas culturais insurgentes e descentralizadas. A cultura Rastafári tem raízes
africanas, particularmente na história etíope. Mas se formaliza na Jamaica em 1933 a partir da
fusão de práticas culturais de ex-escravos de origem africana e interpretações próprias do
Antigo Testamento, aliados a ideias pan-africanistas, seguindo o poeta e ativista jamaicano
Marcus Garvey. Tratava-se de um movimento de contestação econômica, política, social e
cultural contra o imperialismo britânico e a marginalização da população afro-jamaicana.
(RABELO, 2006)
O Pan-africanismo propõe a unificação de todos os povos africanos com intuito de
potencializar as vozes da África no contexto internacional. O movimento se expandiu a partir
de 1920, sendo debatido fora da África entre descendentes de escravos e imigrantes africanos.
Esebede (1980) define o pan-africanismo como um:

Movimento político e cultural que considera a África, os africanos e os


descendentes de africanos de além‐fronteiras como um único conjunto, e cujo
objetivo consiste em regenerar e unificar a África, assim como incentivar um
sentimento de solidariedade entre as populações do mundo africano.
(ESEDEBE apud PRESTA, 2014, p. 4)

O ativista jamaicano Marcus Garvey (1887-1940) foi um líder de importância para o


movimento pan-africanista e um grande profeta para os rastafáris. O papel de Garvey é
primordial para o desenvolvimento do movimento Rastafári. Muitos rastafáris compreendem a
repatriação que Garvey propõe como um resgate histórico e cultural africano e de
ancestralidade etíope.
Rabelo (2006) entende o Rastafári como um movimento híbrido, revolucionário e
contestatório. Até a atualidade a cultura Rasta reforça suas propostas de resistência, de forma
que o Rastafári se apresenta como um agente transgressor dos padrões culturais hegemônicos.
Araújo (2014) ainda frisa que apesar de que muitos queiram definir o Rastafári como
movimento político, sistema de crenças ou filosofia se trata de um movimento que resiste a tais

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definições que pretendem aprisioná-lo em categorias alienígenas, que tentam de fora dizer o
que ele é.
Sobre as pronúncias do nome Rastafári, Araújo (2014) comenta sobre o fato de na
língua Rasta se pronunciar Rastafarai e sobre a maneira que esse termo I “ai” conecta noções
nativas ao remeter à noção de pessoa rastafári e à pessoa do Criador. Para os Rastas o criador
é Jah, nome que aparece na tradução da Bíblia autorizada pelo monarca etíope Jaime I (King
James) de 1611 e em outras traduções é substituído por Deus, Lord ou God. O autor afirma que
para os Rastafári as palavras são sons e poder, como sugere a expressão nativa word sound
power (Palavra som poder). Para os irmãos Rasta ler em voz alta é um processo no qual as
palavras se transformam em sons vivos. Narrar histórias é algo que os Rastafári fazem
recorrentemente em suas canções e meditações, falando sobre a vida de Jah, suas criações e
sobre o Homem.
Araújo (2014) em sua pesquisa percebe que uma vez a Jamaica tendo sido uma colônia
britânica até o ano de 1962 é perceptível como as suas narrativas oficiais foram vinculadas aos
feitos dos europeus. A noção histórica da colonização jamaicana é construída de forma a
evidenciar os reis e rainhas que por ali passaram. Isso se percebe na nomeação de lugares
públicos na Jamaica, na produção cinematográfica, nos feriados e nos hinos nacionais.
Essa história narrada pelos conquistadores também vangloria as batalhas travadas em
pró da conversão dos chamados pagãos ao cristianismo, acreditando serem os detentores da
civilização, pautados no argumento de teorias raciais como o darwinismo social disseminado
no século XIX pelas nações europeias para justificar a exploração da Ásia e África. Pautados
em tais conceitos de eugenia, de superioridade de uma raça pela outra, os europeus se
afirmavam enquanto escolhidos pelo Criador. Conforme Araújo (2014) algumas narrativas do
Antigo Testamento também foram utilizadas pelos europeus para justificar explorações.
Produções iconográficas do período renascentista passaram a ser utilizadas estrategicamente
para relacionar os europeus à noção bíblica de “povo escolhido”: personagens bíblicos foram
retratados com pele branca e fenótipos europeus em diversas obras.
Todas essas narrativas visuais, orais e escritas eurocentradas são rejeitadas pelos
Rastafári. Segundo Araújo (2014) os Rasta acusam o homem branco europeu de alterar a
história do Criador, Jah, e do Homem a fim de subjugar o Homem negro, a criatura original.

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Isso seria feito principalmente através da edição e tradução de textos bíblicos. A Babilônia –
como os irmãos Rasta reconhecem os europeus e seus modos de viver - falsificaria as
prescrições do Criador. A versão contada pelos Rasta do processo de colonização das Américas
é muito distinta da história europeia que envolve grandes feitos por grandes heróis. Na narrativa
dos Rasta estes mesmos que são heroicizados pelos europeus são vistos como piratas que
promovem injustiças e violências.
Os Rasta buscam se distanciar fisicamente da Babilônia, cultivando seus corpos da maneira
que as prescrições sagradas que traduzem da Bíblia recomendam: a positivação da negritude e
da africanidade. “O corpo Rasta conecta a negritude à africanidade e ao criador.” (ARAUJO,
2014). Já sua alimentação o conecta as relações sociais e históricas, os dreadlocks no cabelo os
conecta às prescrições bíblicas; a cannabis os conecta à saúde. O idioma corporal e verbal dos
Rastafári são instrumentos acionados pelos irmãos e irmãs no processo de deslocamento da
Babilônia, esse deslocamento não é só físico como também intelectual.
Uma das principais estratégias dos irmãos Rasta para reivindicar sua africanidade e
valorizar sua negritude foram as canções rastafári e suas narrativas poéticas e políticas. Nas
letras dessas canções eram cantadas as histórias de seu povo e divulgados os ensinamentos de
Jah.

Bob Marley, reggae e contracultura

A juventude das décadas de 60 e 70 vivenciou um fenômeno que transformou a


sociedade significativamente. O historiador Eric Hobsbawn (1995) denominou esse fenômeno
de “Revolução Cultural”, e caracterizou como um momento no qual a juventude opõe-se aos
valores da época, quebrando o imaginário imposto pela sociedade burguesa ocidental.
Segundo Theodore Roszak (1972) esses jovens despertam para novos interesses nesse
período, que envolvem drogas psicodélicas, moradias comunitárias e estima por culturas

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orientais, africanas e latino-americanas. Esse olhar descentralizado para diferentes culturas


criou um imaginário na juventude da década de 60 que se opunha completamente aos costumes
tradicionais, o autor define isso como contracultura.
Bob Marley foi um dos artistas que se popularizaram em meio a esse movimento
contracultural. Suas músicas no ritmo originário da Jamaica, o reggae, misturam melodias
calmas com letras repletas de mensagens de forte cunho social. Além de incentivar a resistência
ao imperialismo europeu e exaltar o protagonismo negro na sociedade, suas músicas retratam
o cotidiano do subúrbio jamaicano de onde veio, mostrando ao mundo como vivia essa
população marginalizada.
Para G. Simmel (2003), a canção popular tem a característica de ser cantada
primeiramente por um, para em seguida ser reconhecida por um refrão. Mas ela deve encantar
e se tornar popular, principalmente ao adequar-se ao público e ao que ele vive. A partir dessa
reflexão podemos entender como as canções de Marley se difundiram e como o ritmo reggae
se popularizou enquanto canção popular na Jamaica, posteriormente se tornando um fenômeno
musical mundial.
De acordo com Benedito (1992) o reggae foi considerado música dos becos desde sua
gênese, pois refletia em suas narrativas os anseios da população socialmente segregada e de
baixa renda. Segundo Maria do Carmo Morias e Patrícia Araújo (2008) o reggae é uma mistura
de ritmos africanos, indígenas e europeus que se misturam no processo de colonização da
Jamaica. Originalmente as letras eram compostas numa língua mista, o crioulo jamaicano, outra
marca do hibridismo cultural que permeia a Jamaica.
A era roots é considerada de grande importância para o reggae pois seria o momento
que o estilo passaria a retratar nas canções todas as lástimas trazidas pelos colonizadores
europeus. Atrelado ao Rastafári, o reggae manifestaria a rebeldia e o descontentamento do
povo jamaicano que padecia com a colonização. Para os irmãos Rasta que creem no poder que
existe nas palavras faladas é perceptível como o reggae não representa apenas um gênero
musical, mas sim uma mensagem divina de esperança, um incentivo à resistência e à luta. Isso
se manifestou claramente na forma que estas canções rastafári incendiaram a resistência na
Jamaica colonial.

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A música Get Up, Stand Up (1973) de Bob Marley é um exemplo disso, nela ele canta
“Get up, stand up, stand up for your rights. Get up, stand up, don't give up the fight”
(MARLEY, 1973: faixa 1), que se traduz “Levante-se, levante-se, lute pelos seus direitos.
Levante-se, levante-se, não desista da luta”, uma mensagem literal de incentivo à resistência e
luta por direitos. Outra música onde podemos observar esse incentivo à resistência ao
colonialismo é em Redemption Song (1980) que diz “Emancipate yourselves from mental
slavery. None but ourselves can free our minds. Have no fear for atomic energy. 'Cause none
of them can stop the time” (MARLEY, 1980: faixa 10), a tradução “Emancipem-se da
escravidão mental. Ninguém senão nós próprios podemos libertar as nossas mentes. Não tenha
medo da energia atômica. Porque nenhum deles pode parar o tempo”. Essa libertação da mente
pode ser interpretada como um movimento decolonial da mente, que pode acontecer no
processo de exaltar culturas que não a dos colonizadores.
Bob Marley também teceu fortes críticas ao escravismo americano, como na música
Buffalo Soldier (1984) na qual canta “Buffalo Soldier, dreadlock Rasta. Stolen from Africa,
brought to America. Fighting on arrival, fighting for survival” (MARLEY, 1984: faixa 5) que
se traduz como “Soldado búfalo, Rasta de dreadlocks. Roubado da África, trazido para a
América. Lutando na chegada, lutando pela sobrevivência”. Nesse trecho o cantor e compositor
remete principalmente à violência sofrida pela população desde sua chegada à América nos
navios negreiros, tráfico que o cantor caracteriza como um “roubo”. Essa letra possivelmente
remete também à participação dos negros na guerra civil americana.

Conclusão
Os Rastafári, seus corpos, suas canções, suas crenças são expressões de resistência ao
imperialismo europeu. Essas expressões se deram também através de movimentos como o pan-
africanismo e através do reggae, quando cantores como Bob Marley difundiram mundialmente
as mensagens de enfrentamento dos irmãos Rasta, contagiando as populações negras que
sofriam nos continentes afora. A partir dos estudos aqui apresentados pudemos perceber que
os processos de resistência jamaicana e o hibridismo que formou sua identidade fomentaram

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uma expressão cultural única que se sobrepôs ao que estava imposto pelo imperialismo
europeu. Para Rosa, o movimento Rastafári foi uma resposta

[...] dos valores africanos contra a higienização cultural imposta aos negros
da África e aos seus descendentes nas Américas. As políticas de eugenia
contra negros e pobres e as proclamadas limpezas culturais produziram outros
resultados. (ROSA, 2009, p.488)

O estilo de vida Rastafari carrega a diversidade, a ancestralidade africana e a resistência


às práticas de exclusão, perseguição e silenciamento que a colonialidade exerceu ao tentar
estabelecer os saberes europeus como hegemônicos. Refletindo sobre o modo de viver
insurgente e descentralizado dos Rastafári podemos identificar práticas decoloniais, pois como
afirma o antropólogo Patricio Guerrero Arias “La decolonialidad se plantea la lucha por um
horizonte otro de civilización y de existência.” (ARIAS, 2010, p. 84). Esse horizonte outro de
civilização e de existência é o que observamos surgir quando atentamos para práticas culturais
que desconstroem imposições coloniais.
Arias também nos ajuda a entender a importância de “corazonar” o agir desses outros
saberes. Esse conceito baseia-se na afirmação de que o fazer epistemológico centrou seu
construir científico na exclusividade da razão cartesiana. Hoje sabemos que existimos não
somente porque pensamos, mas também porque sentimos. Corazonar é recuperar essas
sensibilidades, do sentir, do doer e do amar, permitindo colocar o coração como princípio do
humano (ARIAS, 2010). A música, dentre várias qualidades e propósitos, carrega a capacidade
de fazer sentir e o reggae, através de seu principal intérprete Bob Marley, difundiu a mensagem
Rastafari no mundo fazendo milhões de pessoas sentirem esses saberes. Isso mostra como
corazonar essas práticas culturais decoloniais pode ser um caminho para superar as dores e
violências da colonialidade que permeiam sociedades pós-coloniais da América.

Referências
ARAUJO, Felipe Neis. “Trodding Out Of Babylon”: Linguagem, Pessoa E Formas De Tradução
Rastafari. Dissertação (Mestrado em Antropologia). UFSC, 2014.
BENJAMIM, L. Marcus Mosiah Garvey – a Estrela Preta. Livro digital. 2013. p.5 Disponível em:
<http://omeganyahbinghi.blogspot.com.br/2008_07_01_archive.html> Acesso em 10/12/2017.

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publicado em 1871)
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MORIAS, Maria do Carmo Lima. ARAUJO, Patrícia Carla Viana de. O reggae da Jamaica ao
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Disponível em: <http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14539.pdf>
PRESTA, Gustavo Antoniuk. Transgressão e Resistência nas estéticas do Rastafári. 9◦ Ciclo de
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RABELO, Danilo. Rastafári: Identidade e Hibridismo Cultural na Jamaica 1930-1981 (Volume I),
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Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SIMMEL, Georg. (2003). Estudios Psicologicos y Etnológicos sobre música. 1ª ed. Buenos Aires:
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Arquivos de áudio
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Kingston: Island Records/ Tuff Gong Records.
⚫ _____________. 1980. Faixa 10. In: BOB MARLEY AND THE WAILERS. Uprising
Kingston: Island Records/ Tuff Gong Records.
⚫ _____________. 1984. Faixa 5. In: BOB MARLEY AND THE WAILERS. Legend.
Kingston: Island Records/ Tuff Gong Records.

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O IDEAL CLUBE: UM ESPAÇO DE DISTINÇÃO, SOCIABILIDADES E


ASSOCIATIVISMO DAS ELITES EM MANAUS (1903-1920)

KÍVIA MIRRANA DE SOUZA PEREIRA


Universidade Federal do Amazonas, Mestranda
prof.kiviamirrana@gmail.com

Resumo

O presente trabalho é fruto da análise sobre a vida social, urbana e recreativa das elites em
Manaus no final do século XIX e início do século XX. Diante das constantes e rápidas
transformações econômicas, administrativas e políticas da cidade com o advento dos recursos
financeiros da borracha, novos hábitos e costumes foram implementados, dentre eles o
incentivo aos esportes, a “cultura” e ao lazer, na busca pela concretização da ambígua
modernização e civilidade. Como espaços propícios à diversão, os clubes apresentaram-se
como importantes locais de interação social e fortalecimento dos vínculos pessoais.
Em 1903, como símbolo desse momento, criou-se o Ideal Club, local frequentado por políticos,
médicos, comerciantes e advogados. O clube, por meio da trajetória de seus sócios e diretores,
revela um associativismo gerido pelos grupos de poder e que inseriam à sociedade um modelo
de comportamento, trabalho e civilidade. Além disso, é de nossa proposta compreender como
nesse espaço forjaram-se e fortaleceram as relações, identidades e interesses em comum que
entrelaçam a busca por diversões, capitais e distinções do clube à sociedade.

Palavras-chave: Sociabilidades; Associativismo recreativo; Elites

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Introdução

O Ideal Club foi criado em 1903 e o seu espaço está em funcionamento até os dias
atuais sob a tutela da Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas (SEC). A associação, desde
suas primeiras reuniões para a sua fundação, foi presidida e frequentada por sócios pertencentes
às elites locais dos segmentos do comércio, do governo, do magistrado e da intelectualidade.
Com essa caracterização, poderemos compreender como as elites locais se articulavam e se
fortaleciam para a concretização de projetos políticos e sociais inspirados em ideais modernos,
de cunho civilizatório, postos para a sociedade. Esses propósitos apesar de falarem muito por
si, pelos seus traços distintivos e excludentes, podem atribuir outros aspectos e demonstrar as
peculiaridades de quem os seguiam.

Para essa comunicação, temos como base o trabalho e a investigação que está sendo
realizada com a temática: “As elites se divertem: Sociabilidades e Identidades nos clubes de
elites em Manaus (1890-1920)”20. Com a apuração de notícias nos periódicos locais e
documentos associativos do Ideal Club e sobre as memórias do clube, contidas nas obras de
Genesino Braga, “Assim nasceu o Ideal” e Gaitanno Laertes Antonaccio, “Ideal Clube de 06-
06-1903 a 06-06-2003: um século de aristocratismo” descreveram sobre a considerada
grandeza do clube e de suas práticas sociais, no qual podemos absorver sobre a vida “idealina”
para a cidade de Manaus no período em que a busca pelo “belo”, “moderno” e “civilizador”
eram marcos decisivos na vida real da população.

“Nasci num dia em que o bom-gosto casou-se com a distinção”21: O início da vida
“idealina” em Manaus (1903-1920).
Para apresentar o novo clube à sociedade foi realizado um grande evento. Na sua
organização, as reuniões para a inauguração e associação ocorreram um mês antes, nos dias 03,
04 e 07 de maio de 1903, com a Comissão de Sindicância, na casa do Coronel José Gonçalves
Dias22.

20 Dissertação desenvolvida pela autora no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do


Amazonas (UFAM) com a orientação do Prof. Dr. César Augusto Queirós.
21 Jornal do Commercio, 23 de Janeiro de 1904.
22 Segundo Genesino Braga, o Coronel José Gonçalves Dias “era tenente-coronel da Guarda-Nacional.
Maranhense (não tinha nenhum parentesco, embora o sobrenome e a origem, com o consagrado poeta de “Os

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Doravante, o grande baile de inauguração, organizado por esses senhores, marcava o


início da “vida idealina”, em Manaus, no qual a “soirée ou sarau, resultara num acontecimento
social extraordinário esse primeiro vagido do grêmio a nascer logo dizendo a que
vinha”(BRAGA, 1979, p. 11). Como era de se esperar, o baile de inauguração, foi noticiado
pelos grandes jornais da época com grande estima e consideração ao novo clube. Em meio as
exposições, destacam-se as palavras do periódico Commércio do Amazonas:

Com um baile esplendoroso, inaugura-se hoje o “Ideal Club”, grêmio seleto


fundado por moços de nossa sociedade, com o fim de proporcionar aos seus
associados “soirées” mensais. Para o de hoje preparam-se com entusiasmo
os simpáticos rapazes, de maneira que será uma noite encantadora esta que se
anuncia por entre a alegria estonteante de uma mocidade educada e gentil
(Commércio do Amazonas, 06 de junho de 1903).

Seria o espírito esportivo, alegre e dançante o grande incentivador da criação dos clubes
locais, assim como também aquele que promoveria o desenvolvimento físico e educador tão
necessários ao homem. A mocidade, conhecida como “jeunesse dorré” ou juventude de ouro
(BRAGA, 1979, p. 21), alegre e gentil destacava as programações e vida do Ideal. Ao longo
deste artigo verificaremos o pertencimento, engrandecimento e importância dessa juventude na
vida da associação.
Foi nesse espírito que a casa do Coronel José Gonçalves Dias foi utilizada como sede
para as reuniões seletas para um número de pessoas específicas e que demarcam a
exclusividade dos participantes, assim como definem os perfis de quem poderia estar presente
no encontro. Todavia, não foi na casa do Coronel José Dias que o ocorreu o baile de
inauguração. A celebração, contudo, aconteceu no dia 06, no palacete e casa do Coronel

Timbiras”), alfaiate de profissão, era, ao tempo, estabelecido com bem montada alfaiataria (“uma das mais antigas
do gênero, dispondo de pessoal habilitado e material de primeira ordem” – mencionava o anuncio da Casa) na
Rua Henrique Martins, nº24, denominada “Alfaiataria Militar”. Homem de bem, honrado chefe de família,
conduta ilibada, galgara posição social e política. Em 1910, era ele, Deputado Estadual, e só se afastou com a
revolução de 1930.” (BRAGA, Genesino. Assim nasceu o Ideal. Manaus, Imprensa Oficial, 1979, p.12). Ainda
corroborando sobre a postura do tenente, era “membro da Moçonaria Amazonense desde 30 de novembro de 1890,
homem criativo e idôneo, exemplo pai de família e um educado cavalheiro da sociedade amazonense daquele
tempo, o tenente-coronel José Gonçalves Dias era muito bem relacionado, possuindo razoável cultura e muito
querido nos meios políticos. Em razão de sua conduta e tendo-se tornado mais destacado com a fundação do Ideal
Clube, candidatou-se ao cargo de deputado estadual pelo Amazonas, e saindo vitorioso, manteve o mandato por
sucessivas reeleições, de 1910, até o ano de 1930, quando Getúlio Vargas assumiu a ditadura militar do Brasil e
dissolveu todas as Assembleias do país. Morreu em Manaus, a 3 de junho de 1940” (ANTONACCIO, 2003, p.34)

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Francisco Públio Ribeiro Bittencourt. Coincidentemente, dia de aniversário de casamento do


Coronel com a Dona Maria da Sena23. A interpretação da celebração desse matrimônio mais
uma vez une-se a distinção, tendo em vista que os aniversários de casamento mereciam mais
atenção, pois nos rituais da vida privada e pública é como se estivessem comemorando a própria
fundação da família, assim como as festas de aniversário são pretextos para recriar a unidade
familiar e “expor os laços tecidos entre todos os seus membros” (MARTIN-FUGIER, 2009, p.
238). Nessa exposição do entrelaçamento público e privado, carrega-se o caráter da
sociabilidade entre as burguesias e elites que criam oportunidades de encontro entre si dos
setores burocráticos e sociais, e entre os jovens que buscavam conhecer-se e estreitar os
vínculos políticos externos com a vida privada, e vice-versa.
O sucesso da noite de inauguração do clube não se deu apenas pela importante
celebração matrimonial dos anfitriões. Mas também, diante do caráter festivo, em que uma
festa com atrativos pessoais e ritualísticos destacou-se. Nas palavras do Jornal do Comércio,
foi
Uma festa cheia de atrativos a da inauguração, no sábado último, do “Ideal
Club”. A aprazível residência do coronel Bittencourt, escolhida para a
esplêndida diversão, foi pequena para conter o grande seleto número de
convidados, que devem guardar gratíssimas recordações daquela soirée, onde
reinavam a maior alegria e a maior franca cordialidade. O programa foi
observado à risca. Felicitamos a digna diretoria do “Ideal Club” pela
excelente festa que proporcionou aos seus convidados. (Comércio do
Amazonas, 09 de junho de 1903)

No bojo da fama e dos atrativos do baile de inauguração estavam a importância e valor


da festa e dos fundadores. A primeira reunião foi festejada com uma vasta programação que
agradava ao público seleto, no qual se incluem valsas, polcas, quadrilhas e schottish ao título
francês e ao som do maestro Raimundo Donizetti Gondim, alto compositor e músico cearense.
Como era de se esperar pelo público, “com grande concorrência, a bela festa esteve bastante

23 Os filhos do casal também participaram da reunião: “a senhorinha Adélia, que viria a casar-se com o Sr.
Juliano José Pereira Guimarães, funcionário federal; a senhorita Joana, que se tornaria esposa do construtor Sr.
Joaquim Rodrigues Teixeira; a senhorita Rosa, que contrairia matrimônio com o comerciante Sr. Raul Chã; a
senhorita Hildebrandina, que uniria o seu destino, pelo esponsal, ao do despachante aduaneiro Sr. José de Jesus
Cantanhede (pais das distintas professoras Magnólia, Camélia e Miosótis) e a senhorita Laura e os nobres moços
Francisco Boaventura e Ageu.” (BRAGA, 1979, p.14.)

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animada, até a madrugada, reinando sempre a mais íntima cordialidade entre os sócios e
convidados” (Amasonas, 10 de junho de 1903).
O segundo baile foi realizado na casa do presidente Cel. Francisco Públio R. Bittencourt
e organizado por Antero Coelho de Rezende (Secretário), José Nunes de Lima (Tesoureiro) e
as mulheres associadas. O palco do teatro público e privado estava posto e uniu as diferentes
esferas, agentes e a classe. A casa e representação novo clube à sociedade, cumpriram dos
requisitos de recrutamento de sócios, políticos e fundamentação de estratégias pelo luxo e fama
do Coronel Bittencourt, pois em comunhão com o seu grupo privado de convidados e pares
políticos e administrativos, a família Bittencourt, com a realização das festas e eventos
esportivos, colocava-se como uma das mais sofisticadas e cordiais anfitriãs, sendo assim
homenageada pelos jornais locais pelas características que carregava e possuía:

Brilhante e animador esteve o sarau dançante do novel e conceituado clube


“Ideal”, em uma noite da 15 do corrente. Todas as salas do confortável prédio
de residência do Sr. Coronel Públio Bittencourt, à rua do Dr. Moreira, onde
se realizavam danças, estiveram repletas do que Manaus tem de mais saliente
na sua melhor sociedade. A diretoria do Ideal, assim como as gentilíssimas
senhoritas filhas do Sr. Coronel Bittencourt, foram de inexcedível gentileza,
penhorando a todos os convivas pela afabilidade do trato e cumulando de
atenções aos que à bela festa compareceram. A orquestra executou o
escolhido e primoroso programa com aplauso geral e a contento de todos os
dançantes. (Amasonas”, 18 de agosto de 1903)

A referência que o Jornal “Amasonas” faz ao baile do dia 15 de agosto de 1903 e aos
presentes destaca as eloquências com as festividades, enredando as relações públicas e privadas
dos sócios e convidados. No plano externo, apresentar à cidade o que ela “tem de mais saliente
na sua melhor sociedade” significa divulgar as nuances, as esferas burocráticas e públicas
partilhadas pelas elites, assim como, as normas e leis que regularizam as gestões e
administrações da cidade com o ideal e o “moderno”. Já no plano íntimo, é nas casas e nos
clubes com convidados seletos que as comparações elitistas se forjam através das imagens, dos
status, das representações e das trocas de capitais simbólicos, financeiros ou sociais com a
funcionalidade do matrimônio, recrutamento e amizades. Dessa forma, às duas instâncias não
caminham separadas, muito pelo contrário, se afirmam e reafirmam com o objetivo em comum:
a busca pelo prestígio individual e público.

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“Não era mais um grupo de moços que representava a vida desta agremiação”24: as trocas
de capitais e valores dos diretores do Ideal Club.

Entretanto, mais importante que o clube ser criado como um recinto de bom gosto e
humor, casado com a distinção e marcado pela magia e alegria, faz-se necessário reconhecer a
aproximação dos agentes, associações e espaços com a perspectiva de superioridade, elevação
do espírito e iluminação racional – seja por meio das práticas esportivas, desenvolvimento das
letras ideologia e política desenvolvida por seus sócios e diretores.
No dia 28 de fevereiro de 1904, na Associação Comercial, realizou-se a primeira eleição
dos corpos dirigentes do Ideal Club. Ao contrário da primeira diretoria dada por indicação, a
escolha do novo corpo diretório apresentou-se mais numerosa, fazendo crer que

Não era mais um grupo de moços que representava a vida desta agremiação,
porque a ela ligaram-se muitos e muitos outros, e dentre eles pessoas cujos
nomes nos merecem o mais devoto acatamento, mais justo respeito; Era já o
Club constituído, representando por assim dizer uma parcela do progresso, no
seio das sociedades modernas. (Ideal Club, 24 de setembro de 1904.)

A troca de diretoria significou transformações relevantes, como no caso do Coronel


Francisco Bittencourt, que a altura de 10 de março de 1904 comunicava uma reunião em sua
residência, dessa vez com o Club dos Janotas (Quo Vadis, 21 de fevereiro de 1903; Commercio
do Amazonas, 10 de março de 1904). Ao que parece, para o Ideal Club, não retornou nem como
diretor ou como sócio, entregando-se às programações carnavalescas da nova associação.
Entretanto, se um dos mais notáveis fundadores mudou o endereço de seus compromissos, o
Ideal Club também se transforma ao longo dos anos. A começar pela sede, que foi transferida
para Avenida Silvério Nery – nº 4625, em março de 1904, com o novo diretor Raimundo Alves
Tribuzi. Nesse endereço ficou durante dois anos, fundaram seu jornal e revista “Ideal”,
mantiveram suas partidas dançantes e literárias, e realizaram os primeiros carnavais e
réveillons.

24 (Ideal Club, 24 de Setembro de 1904).


25 O prédio localizava-se na atual Avenida Joaquim Nabuco com esquina da Avenida Sete de Setembro.
(BRAGA, 1979, p.44.)

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Além disso, no respectivo estatuto de 1903 as identidades visuais foram criadas com a
adoção das cores, verde e branca para representar o seu caráter distintivo (ANTONACCIO,
2003, p. 50), o que nos relevam que os ritos, crenças e os modos de vida que são marcados
justamente por essas diferenças sociais, nos quais tanto bandeiras, pedra fundamental,
estandartes, símbolos e cores são marcas das identidades associativas que causam o efeito de
unidade e referências de seu caráter elitista. Segundo Michelle Perrot, os ritos são modulados
por muitas variantes, fruto de tradições e necessidades internas, no qual as combinações de
diversos elementos representam o modo como os grupos se apropriam de seus espaços,
cotidianos e tentam conferir um estilo de vida (PERROT, 2009, p.
174-175). Exemplo disso é como pequenos objetos como a flâmula
ou convite são utilizados em seu caráter simbólico para distinguir os
sócios, identificar o seu pertencimento ao grupo de
“idealinos” e serem utilizados como um modelo de chave de
entradas e saídas entre os demais no quesito distintivo e material. Nesse sentido, os valores
pertencentes ao clube passariam a valer “a esperança viva no futuro e a simplicidade e asseio
esmerados em nossas ações” (Ideal Club, 24 de setembro de 1904) representadas nas cores
verde (esperança) e branca (simplicidade) para a vida dos associados:

Figura 1. Flâmula com o símbolo e com cores verde e branca do Ideal Clube.
Fonte: Arquivo pessoal.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Figura 2. Convite destinada à Família B. Faria e Souza.


Fonte: Jornal Ideal Club.

Ademais, a partir do ano de 1904, com a decisão de ampliar as atividades oferecidas


pelo clube, veio a público o Jornal Ideal. Criado em 28 de fevereiro de 1904, o jornalzinho
servia para elogiosamente engrandecer a associação, estimular ao associativismo e às artes,
danças, literatura e possuiu duas fases: quando começou a circular em 16 de abril de 1904 até
05 de agosto de 1905 e de 17 de outubro de 1905 até 09 de junho de 1906 (ANTONACCIO,
2003, p. 17) e ofertado gratuitamente aos associados. É por meio do Jornal do Ideal que
podemos verificar os objetivos, esperanças e projeções sociais da associação. Com esse intuito,
aparentemente foi bem recebido pela alta sociedade, sendo enaltecido pelo Jornal do
Commercio:

Recebemos ontem o Ideal Club, mimoso jornalzinho que o órgão da simpática


associação desse nome. A feitura material do hebdomático é excelente e o
texto contém variadas e bem atraente matéria literária.
O Ideal Club está feito com esmero e arte e denota o bom gosto dos rapazes
da elegante sociedade. Acompanhando esse jornalzinho, foi-nos enviado
também um ingresso para a soirée do Ideal, a realizar-se a 31 do corrente na
sede social, Avenida Silvério Nery, 46. (Jornal do Commercio, 23 de
dezembro de 1904)

Ao que nos parece os convites, elogios, referências e investimentos nas propagandas


através dos periódicos do clube e locais foram bem sucedidas em longo prazo, permitindo que
o setor financeiro se solidificasse e promovesse eventos com a finalidade de exibição social e
agregação de sócios. A organização financeira pode significar a burocratização da instituição
que diante de um estatuto, número de sócios e valores das partidas mensais representa a
estimulação e continuidades das práticas recreativas que contemplava a vida associativa. Não
à toa que entre os anos de 1915, 1917 e 1919, o Ideal contava com 128, 158 e 127 sócios
respectivamente (ANTONACCIO, 2003, pp. 103, 109, 113). De acordo com Claudio Henrique
Batalha, embora trabalhe especifique sobre as associações operárias, os rituais são

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características de sociedades com maior estabilidade em sua organização diretória, financeira,


manutenção da sede e conta com a existência de símbolos para criação de uma tradição
(BATALHA, 2004, p. 100).
Dentre os critérios de participação no clube e nas suas programações, deveria ser
antecipada por ingressos e convites dos associados que estivessem com os pagamentos em dia
das mensalidades (Jornal do Commercio, 17 de setembro de 1904), conforme os avisos
constantes nos Jornais do Commércio e Correio do Norte. Apesar de não termos acesso aos
valores referentes às joias de associação do Ideal Club, podemos observar essa prática de
cobrança em outros clubes locais, como o Sport Club, que tinha como critério associativo o
pagamento do valor de 100:000 réis, pela joia de admissão, diploma, estatuto e regulamentos,
além de contribuir mensalmente com a quantia de 10:000 réis (Diário Official, 15 de maio de
1898). Além do valor monetário, o valor moral também era um pré-requisito para se associar a
muitos clubes de elites, uma vez que estar em seu bojo significava evidenciar as características
de um indivíduo distintamente referenciado e requintado em busca de prestígios, especialmente
no Ideal Club que nascia com a função social de cumprir um “padrão de glória conquistado
para a história da esperançosa sociedade” (Jornal do Commercio, 18 de novembro de 1904).
Com o novo estatuto, assinado em 13 de dezembro de 1903, a composição da diretoria
passou a ser um mecanismo legal de funcionamento por meio de suas próprias normas. O grupo
passava a ser constituído de uma Assembleia Geral (com Presidente, Vice-presidente, 1º e 2º
secretários), uma Diretoria Geral (Presidente, Vice-Presidente, 1º e 2º secretários), o Conselho
Fiscal (Presidente e membros), orador e vogais. Entre os anos de 1904 a 920, a Assembleia
Geral, foi dirigida por: sete Presidentes, dois Vice-Presidentes e sete Secretários Gerais.
Entretanto, assim como “um clube se mantém vivo pela vida de seus associados” (Jornal do
Commércio, 06 de junho de 1903), a execução das pautas, atividades e festividades eram feitas
pelos seus dirigentes que, em colaboração com os associados, consolidam a vida associativa
em torno dos ritos e das práticas para a criação de uma tradição. Cabe ressaltar a durabilidade
anual dos mandatos, sendo realizada a eleição antes dos preparativos para o carnaval, para que
a nova mesa diretora organizasse a tradicional festa amazonense.
Todas essas ações, além de reforçarem o espaço enquanto um campo autônomo,
consolidam de igual forma o associativismo enquanto dinamismo vivo para organização da

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classe e dos interesses em comum em uma república, é direcionado de forma independente ao


Estado. Na busca e interesses nas organizações, o ponto central e comum dos frequentadores
dos espaços recreativos informais possibilitava a criação de “uma rede de sociabilidade
abrangente que poderia gerar dividendos de várias ordens como relações de amizade,
matrimoniais, políticas e econômicas para a conservação do status quo ou para a inserção e
ascensão social” (TANNO, 2011, p. 346). Em nosso caso, com um interesse voltado
exclusivamente aos grupos e influenciadores do poder, os frequentadores do Ideal Club
investiram na participação e associativismo de uma entidade recreativa que evidenciavam com
suas programações o seu caráter elitista e classista.

Conclusão
As colocações aqui pontuadas servem para refletirmos sobre as características dos
sócios da primeira diretoria, assim como a fundação, função social, moral pública e política
idealina. A partir disso, podemos encaminhar os assuntos sobre a vida associativa no clube,
dado que esses espaços “participam de uma estruturação, instável, mas fecunda, da vida
política” (RÍOUX, 2003, p.100-101), levando em consideração a história, composição e
organização do mesmo. Para tanto, a explicação de que apenas os gostos estéticos por esportes,
danças, literaturas e saraus sejam capazes para explicar a união dos indivíduos em um único
espaço não são suficientes. É nítido que a vida nos clubes indica, por meio dos gostos, a
atribuição social para a legitimação das diferenças das classes sociais (BOURDIEU, 2007, p.
13), o que corrobora para as distinções, amizades e relações em variadas esferas.

Referências

ANTONACCIO, Gaitano Laertes Pereira. Ideal Clube de 06-06-1903 a 06-06-2003: Um século


de aristocratismo. Manaus. Imprensa Oficial, 2003.
BATALHA, Claudio HM (Ed.). Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do
operariado. Ed. Unicamp, 2004.
BOURDIEU, Pierre. A distinção. São Paulo: Edusp, 2007, p.13.
BRAGA, Genesino. Assim nasceu o Ideal. Manaus, Imprensa Oficial, 1979.
MARTIN-FUGIER, Anne. Os ritos da vida privada burguesa. História da vida privada, v. 4,
2009.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

PERROT, Michelle et al. História da vida privada 4: da Revolução Francesa à Primeira


Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, v. 4, 2009.
RÍOUX, Jean-Pierre. A associação em política. In: RÉMOND, René. Por uma História Política.
2ª ed. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003.
TANNO, Janete Leiko. Clubes recreativos em cidades das regiões sudeste e sul: identidade,
sociabilidade e lazer (1889-1945). Patrimônio e Memória, v. 7, n. 1, 2011.

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CRISE E REPERCUSSÃO DO SUICÍDIO DE VARGAS NO JORNAL


DO COMÉRCIO E A CRÍTICA

LARISSA LEITE COLARES


Universidade Federal do Amazonas, Mestranda
lari.leite19@gmail.com

Resumo
O presente artigo tem como proposta conhecer um tema que até o momento recebeu pouca
atenção: a crise de 1954 a qual culminou com o suicídio de Vargas, bem como sua repercussão
na imprensa manauara. Para a análise, utilizo como fonte o Jornal do Comércio e Jornal A
Crítica, periódicos de grande circulação naquele período. Com os novos ares de mudança no
governo democrático, Getúlio enfrentara acirradas disputas, pressões políticas, acusações
diárias e uma gama de opositores sedentos por sua queda. É notável a tensão nas páginas
jornalísticas, opositores aguardavam ansiosos por sua renúncia, e, de maneira oposta, Getúlio
lhes entrega sua vida, dando uma reviravolta jamais esperada e amplamente noticiada no país.
Os arderes de ódio se transpõem em lágrimas e juras de vingança. No aspecto desta virada,
analiso a importância da construção da figura de Vargas para a repercussão de sua morte
noticiada nos jornais manauaras.

Palavras-chave: Getúlio Vargas; Periódico; Morte

A construção do Mito Vargas

A fascinante caminhada política de Getúlio Dornelles Vargas rende, até os dias de hoje,
inúmeras pesquisas, artigos e teses. No campo político, social e econômico é um tema que não
se esgota, o que nos leva a refletir acerca da dimensão construída em torno do “mito Vargas”.
Um mito político, assumido no papel de uma personalidade, não surge das cinzas e se torna
ovacionado logo em seguida. Nessa caminhada, além do contexto oportuno e domínio da
oratória, é necessário investir na identificação do agente receptor: partilhar de suas memórias,
extrapolar a figura unicamente política e “desempenhar o papel de iluminador da história
futura” (FÉLIX, 1998, p. 144). O princípio dessa construção para Vargas se inicia no contexto

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regional, como aponta o trabalho do Professor Luciano Aronne de Abreu, que estuda a ascensão
política de Vargas antes dos anos 30. Para Abreu, foi ainda na década de 20, no Rio Grande do
Sul, que o futuro presidente iria se destacar devido a dois importantes aspectos: sua
remodelação em relação à velha política de Borges de Medeiros e sua fama de político
conciliador, governando com mais diálogo e tolerância. (ABREU, 1996, p. 20).

No contexto Rio-grandense, é na geração de acadêmicos de 1907 que nascem os novos


jovens políticos que ingressam nos quadros do Partido Republicano Rio-grandense (PRR) e
iniciam seu processo de reorganização política afastando-se da influência positivista. Vargas
atuou ativamente no partido, desde o princípio ao lado de João Neves, Oswaldo Aranha e Flores
da Cunha, sendo indicado, em 1923, para deputado federal a fim de reestabelecer a confiança
entre RS e o presidente Artur Bernardes, após estes terem apoiado a Reação Republicana contra
Bernardes no ano anterior. (ABREU, 1996, p. 46). Em 1928, sendo reconhecido pelo sucesso
da sua política conciliadora, Vargas é indicado e assume o cargo de Presidente do Estado do
Rio Grande do Sul, sendo este mais um importante passo para sua carreira política e processo
de construção de seu mito. A criação da BANRISUL- banco de crédito agrícola, incentivo a
formação de sindicatos, ação contra a prática de contrabando de gado e a criação da Frente
Única Gaúcha (FUG) são algumas das ações tomadas por Vargas durante esses 2 anos que
impulsionam sua escalada em direção a construção da sua imagem como “herói do povo”. É a
partir da Revolução de 1930 que Vargas, ao se consolidar Presidente do Brasil, vivera os 3
maiores momentos de seu governo: o conturbado período de 1930 a 1937 onde, para se
consolidar no poder nacional, foi rigoroso com aquilo que considerava “subversão pública”,
eliminando seus opositores em nome da “ordem nacional”. Em um segundo momento, no
Estado Novo, Vargas investe massivamente na promoção do seu governo através do
Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP forjando nos cinemas e escolas a imagem de
um “Salvador da Pátria”, além de censura aos meios de comunicação que se opunham ao seu
regime. O terceiro e último momento, de 1951-1954, é marcado pela perda da força política de
Vargas, perseguição e abandono por seus aliados. Nesse momento, apesar da sua perda de apoio
político, Vargas ainda é reflexo desses anos de construção de um mito. Prova disso é o abalo
nacional após seu suicídio, evidenciando a consolidação do “Mito Vargas”.

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Repercussão nacional do suicídio de Vargas

O país que exigia sua renúncia, em minutos, se transformou. O Rio de Janeiro, capital
do país, viveu um cenário de guerra. Vilas Boas Correa, jornalista no Rio à época do suicídio,
escreveu o primeiro capítulo do livro “Vargas e a crise dos anos 50” onde descreve a mudança
de ares do fatídico dia 24 de agosto. No clarear daquela manhã, quando questionado por seu
Manuel, dono e garçom do boteco onde o jornalista fazia sua primeira refeição, sobre a possível
queda de Vargas, Vilas Boas confirma a renúncia negociada do presidente, e logo a notícia se
espalha, resultando em um intenso e comemorativo alvoroço. Momentos depois, foi anunciado
no rádio a notícia do suicídio e tudo mudou. A comemoração converte-se em espanto e tristeza,
o ódio se transpõe em juras de vingança a quem prejudicou o governante:

E vi a cidade virar. Nunca assistira cena igual. O ar de festa, o clima de


desafogo que percebia nos pedaços de conversa afinada pelo tom de repulsa
do “já vai tarde”, incendiado pela chispa da tragédia, transformou-se
instantaneamente. (CÔRREA, 1996, p. 16).

Na capital do país a população fervia em dor e raiva. Não se via outra forma de vingar
a morte de Getúlio, se não atacando aqueles que o aviltaram. Os órgãos de imprensa da
oposição tiveram seus prédios atacados, muitos tiveram suas fachadas depredadas e suas
máquinas destruídas. Apesar da tentativa, os revoltosos não conseguiram entrar no prédio da
Tribuna da imprensa, sendo contidos pela Polícia Especial, porém, queimaram toda a edição
do jornal na rua da frente. (FERREIRA, 1994, p. 74). A população se dividiu em grupos para
atingir a maior parte da cidade, houve queima de veículos, ataque a sedes partidárias
oposicionistas a Vargas, perseguição a políticos como Carlos Lacerda, que precisou se exilar
do país; no motim, várias pessoas saíram feridas. Sobre essa questão, explica Jorge Ferreira:

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Assim como as elites conservadoras tudo fizeram para aniquilar politicamente


Vargas por meio de ideias-imagens e pela manipulação de símbolos
necessários à legitimidade do poder, agora a população, revidando,
destroçava a simbologia política dos adversários do presidente”.
(FERREIRA, 2005, p. 178).

Não muito distante da capital Republicana, a capital do Rio Grande do Sul vivia seu
desvio de ordem. O berço gaúcho do qual Vargas irradiou politicamente guardava na memória
o velho Getúlio. Bibiana Dias, através da análise do jornal Correio do povo, de Porto Alegre,
apresenta algumas manifestações noticiadas nas edições imediatas à morte do Presidente. O
jornal expõe através de cobertura fotográfica o cenário de guerra vivido naquele fatídico dia:
depredações, incêndios e tumultos. A autora cita ainda a manchete “Graves Ocorrências se
Registraram na Capital do Estado Durante Quase Todo o Dia de Ontem” remetendo a confusão
do dia anterior:

As ruas apresentavam aspecto impressionante, com labaredas e fumaça por


todos os lados, consumindo sedes partidárias, jornais e emissoras de rádio. Os
manifestantes, empunhando grandes retratos do presidente Vargas, bandeiras
nacionais e alto-falantes, clamavam contra os partidos de oposição,
responsabilizando-os pela morte do chefe da nação. (DIAS, 2011, p. 75).

Indústria, comércio, instituições públicas tiveram que parar, as ruas centrais ficaram
intransitáveis. A memória viva de Getúlio instigou em seus apoiadores o senso de dever de
justiça, dirigindo a todo e qualquer opositor de Vargas os mais violentos ataques.
Distante da capital, o município protagonista do nascimento e crescimento de Vargas
vivia um cenário diferente dos centros urbanos. Dias encontrou no Jornal Correio do Povo dois
textos escritos por um enviado especial que acompanhava a despedida fúnebre na cidade de
São Borja. Na narrativa os ares de tristeza e dor são visíveis na simplicidade e emoção da
cerimônia, transparecendo a relação próxima e íntima que a população sentia com os familiares.
Em edição menciona o enviado especial:

Tudo nesta pequena cidade da fronteira é diferente: inclusive a emoção


popular. A notícia da morte de Getúlio Vargas não foi recebida como o
trespasse de um estadista e líder de massas. Quem morria era, acima de tudo,
um filho de São Borja, sempre fiel à sua terra natal. (DIAS, 2011, p. 54).

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

A terra natal de Vargas guarda consigo uma sensação mais íntima, quase parental, por
terem dividido o mesmo solo, sua reação de pesar não transpassa a fúria e sede de vingança,
mas o mais profundo silêncio de pesar.
Longe dos centros de vivência de Getúlio, a capital do Maranhão não viveu o mesmo
drama. O professor José Ferreira Junior, ao analisar seis periódicos locais afirma a ausência de
baderna e revolta pela morte do chefe da nação: “Sobre a calma em São Luís, os jornais foram
unânimes”. Concluindo apenas alguns transtornos como o cancelamento da procissão e os
festejos do dia do soldado. (JUNIOR, 2008, p. 7). O autor apresenta um interessante panorama
político de cada jornal escolhido, apesar de uma análise curta, é considerável para percebermos
que a morte de Vargas suavizou o discurso político de alguns jornais conforme o desenrolar
dos acontecimentos, como, por exemplo, o jornal O Combate que no dia 24 de agosto escreveu:
“A presença de Vargas tornou-se insuportável. E os que o acompanham têm também de dar
lugar à coisa melhor”. A edição que foi publicada momentos antes da notícia do suicídio, e
após este ser divulgado, o jornal busca abrandar sua posição escrevendo no dia 26 de agosto:
“No balanço de tudo que há feito o homem que dominou o País, com mais veemência, nesse
quarto de século, somos dos que achamos um acentuado saldo a seu favor”. (JUNIOR, 2008,
p. 5).

Repercussão do suicídio de Vargas em Manaus pelo Jornal do Comércio e A Crítica


A cidade de Manaus acompanhava o desenrolar político nacional através,
principalmente, dos jornais e rádios. Sendo assim, a imprensa utilizada como fonte nesta
pesquisa viabiliza a compreensão do cenário local ainda que sua leitura seja remetida para o
campo da subjetividade e intencionalidade, tal qual nos orienta as historiadas Heloísa Cruz e
Maria do Rosário Peixoto. (CRUZ, PEIXOTO, 2007, p. 257).
Os periódicos escolhidos para esta análise eram de conhecimento popular, sendo eles
Jornal do Comércio e A Crítica. O primeiro, estava sob administração da rede Assis
Chateaubriand, chamada Diários Associados, desde 1943. Chateaubriand foi um dos homens
públicos mais influentes do Brasil; foi jornalista, advogado, político brasileiro e empresário.
Sua figura foi essencial na revolução de 1930, ao apoiar a candidatura de Vargas e utilizar da

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sua influência nos meios jornalísticos para render forças ao movimento revolucionário e
impedir a posse de Júlio Prestes. Sua relação com Vargas foi cheia de nuances. Em 1931,
apoiou o movimento de reconstitucionalização do Brasil, chegando a apoiar a revolução de São
Paulo, em 1932, por esse fato foi perseguido e teve que viver escondido por vários meses. Após
anos de relação trêmula, nas eleições de 1950, Chateaubriand deu discreto apoio à Vargas por
considerar que a situação havia mudado, anos mais tarde as divergências voltam a ser sentidas
no seio das relações com o petróleo pela posição antinacionalista do jornalista.
Após o suicídio do presidente, Chateaubriand apoiou João Café Filho, vice-presidente
do país, por considerar que aquele não era o momento de manter um clima de divisões.
(FERREIRA, S/A, p. 9)
Ao contrário do periódico Jornal do Comércio, nosso outro jornal utilizado como fonte
teve sua fundação tardia na história da imprensa amazonense. O jornal A Crítica iniciou suas
atividades em 1949, pelas mãos de Umberto Calderaro Filho e sua esposa, Ritta de Araújo
Calderaro, com o slogan “De mãos dadas com o povo”. (DUARTE, 2015, p. 20). Dito como
um jornal que lutava ao lado do povo pela liberdade, fazia forte oposição aos políticos locais.
Sua relação com Vargas era ambígua, em alguns números,combate o seu governo e em outros
pede sua volta ao poder. (SANTOS, 1990, p. 72).
Com a aproximação das eleições de 1954 para Governo do Estado do Amazonas, as
disputas políticas e trocas de farpas aparecem em ambos os jornais, porém, com mais
frequência em A Crítica. A corrida eleitoral era marcada, principalmente, por Rui Araújo, da
coligação UDN, PDC, PTN e PSD e Plínio Coelho pelo PTB. Araújo, que já havia atuado como
chefe de polícia e secretário-geral na interventoria federal e governo constitucional de Álvaro
Maia, obtivera o apoio de Vargas para as eleições a governador daquele ano. Por outro lado,
Plínio Coelho, que já havia sido eleito Deputado Estadual em 1950, tendo apoiado a
candidatura de Maia ao governo, rompera com o mesmo posteriormente, lançando-se a
liderança da sua oposição. (QUEIROZ, 2016, p. 51). As eleições marcavam-se então,
indiretamente, pela disputa entre Plínio Coelho e Álvaro Maia.
A edição do dia 24 de agosto do Jornal A Crítica que saíra pela manhã, circulou ainda
com as notícias da Reunião Ministerial daquela madrugada com a seguinte manchete: “CAIU
GETÚLIO VARGAS” e seguiu confirmando a licença negociada como uma “atitude honrosa

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do presidente”. Há somente uma pequena nota na parte central da capa, aparentemente escrita
às pressas: “RIO. (URGENTE) – A Rádio Nacional. Anuncia que o sr. Getulio Vargas
suicidou-se, as 8:35 horas, em seus aposentos”. (A Crítica, n. 2866, 24/08/1954, p. 1). No
entanto, nada mais foi dito nas páginas seguintes.
A edição do mesmo dia no Jornal do Comércio também se detém na tensão da decisão
de Vargas na noite do dia 23. As opções se mostravam ser apenas 3: deposição, golpe ou
renúncia. Esta última era a mais esperada pela população. Somente na edição do dia 24 de
agosto a palavra “Renúncia” aparece 6 vezes na capa do jornal, sendo uma delas a respeito de
uma passeata dos estudantes paulistas invadindo a capital do país para pedir a saída de Vargas.
É somente então na edição do dia 25 que o periódico noticia o suicídio do presidente apontando
para as desordens no Rio de Janeiro e em São Paulo com a manchete “Deplora a Nação o
suicídio de Getúlio Vargas”. O jornal também publicou nesse dia, em anexo, a Carta-
testamento de Vargas.

A respeito de Manaus o jornal expõe uma pequena nota informando que os cônsules do
Peru, Portugal, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, França, Bélgica, Alemanha e outras
autoridades se reuniram no Palácio do Rio Negro para prestar suas condolências ao governador
Paulo Marinho “pelo inesperado falecimento do Presidente da república do Brasil dr. Getúlio
Vargas”. (Jornal do Comércio, n. 13600, 25/08/1954, p. 1). O Governo do Estado do Amazonas
também expõe em Nota Oficial que está aguardando mais informações para que seja decretado
as “honrarias fúnebres”. As notas da capa são majoritariamente advindas do Rio e São Paulo
dando ênfase às arruaças dos populares e, sem avultar sobre o suicídio, priorizam informar
sobre o novo presidente que assume o país: João Café Filho. No decorrer da edição,
apresentam-se algumas homenagens à Getúlio exaltando sua coragem e amor pela Pátria,
incluindo declarações de pesar dos principais candidatos das eleições para o governo do
Amazonas: Rui Araújo e Plínio Coelho.

Apesar da aparente ordem na cidade, receava-se as mesmas ações de revolta popular


registrados no Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte. Sendo assim, o comandante da
Guarnição Federal de Manaus pede “calma e tranquilidade” à população, concluindo que “o

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

momento não é de agitação e sim de luto nacional. Em nota, o Governador Paulo Marinho
também declara:

Lamento a morte do presidente Vargas. A circunstância de que se revestiu o


falecimento deixa em minha alma a marca de uma dor imensa. Entretanto, é
preciso que encaremos a realidade nacional e pensemos na vida do Brasil e
dos seus filhos. E’ preciso calma. Nós todos, governantes e governados,
devemos agir com serenidade em defesa do Brasil, do regime e da
Constituição. Nada de precipitações para que não venham a se registrar
acontecimentos desagradáveis e prejudiciais à normalidade da Nação. (Jornal
do Comércio, n. 13600, 25/08/1954, p. 6)

Algumas medidas foram tomadas a fim de evitar tumulto e desordem, como a suspensão
de arraiais e quermesses por 3 dias pelas autoridades diocesanas, fechamento de repartições
públicas pelo Governo, além da determinação de luto por 24 horas pelo sindicato dos
estivadores de Manaus e ordem da Associação Comercial do Amazonas (ACA) para que
mantivessem por 8 dias as portas de seus estabelecimentos semicerradas. (A CRÍTICA, 1954,
p. 1)

Na edição seguinte do Jornal do Comércio, dois dias após o incidente do suicídio, o


Governador manifesta sua satisfação com o povo Amazonense por “sua formação altamente
pacífica” que concluiu nenhum incidente na capital: “foram manifestações de dor e não tiveram
absolutamente a participação de agentes da anarquia e da desordem”. (Jornal do Comércio, n.
13601, 26/08/1954, p. 6)

Acerca do Jornal A Crítica, é importante ressaltar que a edição do dia 25 de agosto não
foi encontrada na Biblioteca Pública de Manaus. Entretanto, no dia 26 relata em manchete
“DISTURBIOS CAUSADOS POR ESTIVADORES” contrapondo a afirmação do
Governador Paulo Marinho. Na ocasião do momento de paixão nacional, os estivadores,
induzidos de bebida alcóolica, entraram em conflito com aqueles que não se consideram
“Getúlio”. De acordo com a nota, a polícia interveio e demandou reforços, sendo os presos
posteriormente soltos por políticos candidatos do PTB, como Plínio Coelho. (A CRÍTICA,
n.2868, 26/08/1954, p. 1). Já na página seguinte, o jornal apresenta uma pequena nota sobre
uma greve dos estudantes do Colégio Estadual do Amazonas que se negaram a entrar na sala
de aula e que esta greve só finalizaria após a missa de 7º dia do falecido presidente.

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O jornal se detém, principalmente, às homenagens ao presidente e as notícias


importadas do Rio que apresentam os procedimentos tomados para velar o corpo de Vargas. É
interessante notar que as matérias que se seguem no jornal A Crítica nada comentam sobre o
atentado a sua sede naquele fatídico dia. É através da dissertação do historiador Thiago Queiroz
que podemos chegar a essa informação contida na edição especial de 25 anos do referido
periódico, no qual argumenta que, ao longo de sua história foi vítima de várias perseguições e,
entre elas, um motim organizado após o suicídio de Vargas. A matéria conta que o Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB) se concentrou em frente a sua sede e planejava destruí-la por ter
se posicionado contra o governo Getulista.

Os manifestantes decidiram destruir a sede do jornal na Lobo D`Almada.


Avisados do motim, a matéria comenta que os diretores do jornal
providenciaram do Exército uma patrulha que, “por azar”, se deslocou para a
antiga sede, na Eduardo Ribeiro. Armados com espingardas e garrafas de
vinho cheias de gasolina, os jornalistas se organizaram a espera dos
manifestantes, fato que não ocorreu. (QUEIROZ, 2013, p. 21).

Ao que indicam as edições de ambos os jornais, Manaus não viverá nas mesmas
medidas as tensões e revoltas que os principais centros urbanos naquele período. Todavia,
vivenciou as consequências políticas pelo afastamento da figura de Vargas quando Rui Araújo,
apoiado por Álvaro Maia, perde as eleições para Plínio Coelho, apresentando um novo projeto
político trabalhista. Assim, afirma Amaury Junior:

Contudo, a morte de Vargas distanciaria Maia de um apoio mais contundente


da cúpula do PTB nacional, o qual elegeria seu conterrâneo de Humaitá,
Plínio Ramos Coelho, como governador. O ostracismo chegara a pôr fim a
vida política de Álvaro Maia que voltaria entre 1955 e 1966 a um profundo
período de introspecção literária, retomando muito do que deixara de escrever
desde os anos 1930. (PIO JUNIOR, 2019, p. 78)

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Motins populares, repressão policial, protestos, greves, passeatas e paralisações. É


possível dizer que o país chorou em coro no dia 24 de agosto de 1954. Mesmo as manifestações
mais pacíficas demonstraram a eficiência do projeto Varguista de construção de uma memória
social coletiva. O mito Vargas estava mais vivo que nunca.

Referências

ABREU, Luciano Aronne. Getúlio Vargas: a construção de um mito (1928-30). Porto Alegre:
EDPUCRS, 1997;
JUNIOR, Amaury Oliveira Pio. Álvaro Botelho Maia: um caboclo na política amazônida. In
Trajetórias políticas na Amazônia Republicana. – Organizado por Auxiliomar Silva Ugarte;
César Augusto Bubolz Queirós. – Manaus: Editora Valer, 2019;
CORRÊA, Vilas Boas. Eu vi. In: GOMES, Ângela de Castro. (Org). Vargas e a Crise dos anos
50. Rio de Janeiro – RJ: Relume Dumará, 1994;
CRUZ, Heloísa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador:
Conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, n.35, 2007;
DIAS, Bibiana Sodré. A repercussão do suicídio de Getúlio Vargas e o processo de
mistificação post-mortem no jornal Correio do Povo de Porto Alegre. 2011. 150 f. Dissertação
(Dissertação em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011;
DUARTE, Durango Martins. A Imprensa Amazonense: chantagem, politicagem e
lama.1ªed.Manaus: DDC Comunicações LTDA-EPP, 2015;
FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-
1964. Rio de Janeiro – RJ: Civilização Brasileira, 2005;
_______. O carnaval da tristeza: os motins urbanos do 24 de agosto. In: GOMES, Ângela de
Castro. (Org). Vargas e a Crise dos anos 50. Rio de Janeiro – RJ: Relume Dumará, 1994;
FÉLIX, Loiva Otero; ELMIR, C. Mitos e Heróis: a Construção de imaginário. Porto Alegre:
Ed. Universidade – UFRGS, 1998;
FERREIRA, Marieta. CHATEAUBRIAND, Assis. <Disponível em:
https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/CHATEAUBRIAND,%20Assis.pdf> Acesso em 01 de Setembro de 2020;
JUNIOR, Jorge Ferreira. A notícia da morte de Getúlio Vargas nos jornais de São Luís. In: VI
Congresso Nacional de História Mídia – 200 anos de mídia no Brasil, 2008, Niterói. V.1;
SANTOS, Francisco Jorge e outros. Cem Anos de Imprensa no Amazonas (1851 – 1950) –
catálogo de jornais. Manaus,1990, 2.ed;
QUEIROZ, César Augusto Bubolz. O trabalhismo de Plínio Ramos Coelho e o golpe de 1964
no Amazonas. Manaus: Revista Mundos do Trabalho, vol.8. 2016;
QUEIROZ, Thiago Rocha. O Humoral: humor e abertura social nas charges de Miranda
(1972-1974). 2013. 165. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do
Amazonas, Manaus, 2013.

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“PAPEIS APAIXONADOS E ODIOSOS”: “CLAMORES” E


CONTENDAS ENTRE MORADORES E JESUÍTAS EM TORNO DO
TRABALHO INDÍGENA NA CAPITANIA DO CAETÉ (SÉCS. XVII E
XVIII).

LEONARDO AUGUSTO RAMOS SILVA


Universidade Federal do Pará, Mestrando
leo.arsilva147@gmail.com

Resumo

O objetivo deste trabalho é investigar os “clamores” e as contendas locais, entre os moradores


e jesuítas na capitania do Caeté (norte da Amazônia portuguesa), enviadas à metrópole. Nessa
capitania, é possível observar as dificuldades enfrentadas em razão da falta de trabalhadores
indígenas, culminando na eclosão de diversas contendas nos séculos XVII e XVIII. Essas
contendas pelo controle do trabalho nativo envolveram índios, militares, missionários,
moradores e autoridades coloniais que, motivados por seus interesses e necessidades, teceram
uma rede de alianças, intrigas e negociações expressas das mais variadas formas no cotidiano
colonial.

Palavras-chave: Contendas administrativas; Capitania do Caeté; Séculos XVII e XVIII.

Introdução

A temática dos conflitos entre jesuítas e moradores teve pouco ou quase nenhuma
análise para capitanias particulares da América portuguesa, como é o caso da capitania do Caeté
(1622-1751). Nessa capitania, é possível observar as dificuldades enfrentadas em razão da falta
de trabalhadores indígenas, culminando na eclosão de diversas contendas nos séculos XVII e
primeira metade do XVIII. As disputas em torno do trabalho nativo envolveram índios,
militares, missionários, moradores e, em especial, as autoridades coloniais que, motivados por
seus interesses, necessidades e descontentamentos, teceram uma rede de alianças, intrigas e
negociações expressas das mais variadas formas no cotidiano colonial.

Nesse contexto, os “clamores” e as contendas locais ecoavam pelas correspondências


que se faziam aos monarcas ao longo do tempo nas documentações contidas nos acervos do

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Arquivo Histórico Ultramarino (Avulsos do Pará e Maranhão); nos Anais da Biblioteca


Nacional (Livro Grosso do Maranhão) e na documentação missionária, sobretudo, dos jesuítas
João Felipe Bettendorff e Serafim Leite. Esta documentação é examinada a partir do viés
histórico-documental, na tentativa de perceber as ações, motivos, descontentamentos e
interesses desses sujeitos, pessoas livres, pobres e comuns perante a sociedade colonial.

O trabalho é dividido em duas partes. A primeira aborda as contendas no século XVII,


consideradas “inconvenientes” pelo rei D. Pedro II, tiveram maiores proporções a partir de
1655 com a instalação da missão de São João Baptista, na margem direita do rio Caeté. Na
segunda parte, acompanhamos as queixas e “clamores” produzidos pelos dois grupos, jesuítas
e autoridades locais, na primeira metade do século XVIII.

“Contendas inconvenientes” no século XVII

Na segunda metade do século XVII, a questão da mão de obra indígena na capitania


ganhou novas dimensões, principalmente, a partir de 1655 quando “alguns índios, que um
Padre acompanhou” mudaram-se do aldeamento de São João Baptista do rio Gurupi para a
nova residência às margens do rio Caeté (SERAFIM LEITE, 1943, p. 292). Em janeiro de
1672, quando ocorre juridicamente a transferência da missão, os moradores e os missionários
vivenciavam relações harmoniosas, “próspera e pacífica”, como descreve o Padre Serafim
Leite (1943, p. 293).

As décadas iniciais da missão no Caeté seriam harmoniosas até 1698, quando as


relações entre jesuítas e autoridades locais se estreitaram e os segundos enfrentavam novos
obstáculos jurídicos para o acesso à mão de obra indígena: o Regimento das Missões do Estado
do Maranhão e Grão-Pará, promulgado em 1686.

Na década de 1680, esse cenário mudaria, “os jesuítas haviam saído vitoriosos no seu
litígio com os moradores”, como compreende Márcia Eliane de Souza e Mello (2009, p. 92).
A vitória política da Companhia de Jesus se estabelecia no aspecto do governo temporal e
espiritual que competia, exclusivamente, aos padres jesuítas, como foi estabelecido em carta

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régia de 02 de setembro de 1684. Além disso, a lei de 21 de dezembro de 1686, denominada


de “Regimento das Missões”, ratificava esta questão em seus 24 parágrafos ao destacar as
normas em torno da repartição dos índios e das administrações das aldeias deixando, quase que
exclusivamente, à cargo dos missionários da Companhia de Jesus (SOUZA E MELLO, 2009,
p. 92).

Na capitania do Caeté, as primeiras recusas da atuação missionária foram representadas


por meio de cartas, expressando as demandas políticas e jurídicas do capitão donatário Manoel
de Mello e Souza, onde solicitava que as leis régias não se estendessem a dita capitania,
justamente por esta ser de particulares. Essa querela se dava em protesto à carta régia de 02 de
setembro de 1684, quando as capitanias se colocaram no direito comum ao Estado do Maranhão
e Grão-Pará (SERAFIM LEITE, 1943).

Na década de 1690, surgiram novos embates em torno da mão de obra indígena. Em


1691, o rei Pedro II escrevia para o governador do Maranhão, Antônio de Albuquerque Coelho
de Carvalho, sobre a observação da legislação referente aos resgates e repartições dos
indígenas. Em carta régia, se dá as seguintes observações:

[...] Me pareceu ordenar-vos como por esta o faço façais inviolavelmente


observar a dita Lei sobre resgates, e sua repartição, como também o regimento
das Missões, sem que em nenhum caso se possa aí fazer alteração ou
interpretação na dita Lei, e regimento [...] a minha atenção não foi deixar de
fora da repartição os índios das Villas de Tapuitapera, Icatú, Cayté e Cametá,
pois seu moradores são vassalos, e tem grangiarias, como os das Cidades de
S. Luiz e Belém (Anais da Biblioteca Nacional - ABN, vol. 66, p. 119. Carta
régia de 17/02/1691).

Tal ordem régia ratifica que os moradores da vila do Caeté estariam submetidos a estas
ordens reais, tendo em vista a capitania fazer parte do Reino de Portugal. A carta régia acima
representa um dispositivo legislativo que reitera a repartição dos índios, dando possibilidades
para interpretarmos que no cotidiano colonial a prática poderia ser contraditória ou não
cumprida na capitania, como tem observado Beatriz Perrone-Moisés (1992, p. 115) referente à
legislação indigenista: “contraditória, oscilante e hipócrita”.

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No entanto, no dia 17 de fevereiro de 1691, o rei ordenava ao padre superior das


Missões da Companhia de Jesus que na Capitania do Caeté o poder temporal estivesse com seu
donatário que o havia solicitado. O rei informava que:

[...] e pareceu-me dizer-vos tenhas entendido que a jurisdição chamada


temporal que se vos concedeu se não entende em forma que por virtude dela
fiquem os Índios das Aldeias da Capitania do Cayeté de que é Donatário o
dito Frei Manoel de Melo D. Prior do Crato isentos da sua jurisdição nem
para que possais de algum modo impedir seus mandados, que sempre se
presumem justificados, e quando acheis o contrário deveis fazer presente ao
dito Donatário, ou a seu Capitão Tenente por modo de requerimento e não de
Jurisdição para que vos defira como for justiça, e não voltar fazendo
recorrereis a mim para resolver o que for servido, por que desta sorte se
evitarão estas contendas inconvenientes que se experimentarão que é o
mesmo que fui servido resolver sobre este particular por carta de 26 de
fevereiro deste ano (ABN, vol. 66, p. 119. Carta régia de 17/02/1691).

A ordem régia acima evitava as “contendas inconvenientes”, além disso oscilava ao


presumir que o poder temporal fosse retirado das mãos dos jesuítas locais e transferido para o
donatário Manoel de Melo e Souza “por modo de requerimento e não de Jurisdição”. Esta
condição pode ser conferida nos relatos do padre Serafim Leite ao destacar: “Em 1693 atenua-
se esta administração (espiritual e temporal)” ao observar as contendas enfrentadas pela
Companhia de Jesus na capitania do Caeté (SERAFIM LEITE, 1943, p. 295).
Em 1694, o padre jesuíta João Carlos Orlandini, responsável pela missão de São João
Baptista, com o padre Ignácio da Silva, sofriam várias queixas – papeis falsíssimos - através
de cartas vinda da câmara da Vila de Souza, sendo o capitão-mor Amaro Cardoso o principal
reivindicador. O padre João Felipe Betendorf relata em sua crônica essas querelas locais:

[...] por que além de ter o capitão-mor Amaro Cardoso feito o que fez ao
missionário, também o tinha tratado mui descortesmente a câmara da Villa do
Caeté, tinham sido mandados papeis falsíssimos contra nós
(BETTENDORFF, 1910, p. 553).

Nesta ocasião, em meados de 1694, os padres jesuítas detinham o poder temporal e


espiritual dos índios aldeados, como “legitimava” o Regimento das Missões de 1686, o que
causava ânimos descontentes no capitão-mor Amaro Cardoso, pois, o mesmo

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[...] começou a tirar não somente governo temporal dos índios, mas até os
vinte e um casais ao Padre missionário, dizendo que sua Magestade não
compreendia ao Caeté e deixando-lhe primeiro somente seis ou depois doze
(BETTENDORFF, 1910, p. 550).

No mesmo ano, governador da Capitania do Pará, Antônio de Albuquerque, o ouvidor


geral Manoel Nunes Collares, e Miguel Ribeiro de Barros, o provedor-mor do Estado do
Maranhão, em visita àquela missão repreenderam o capitão-mor do Caeté “por ter escrito
contra os padres, sem nenhum fundamento nem razão” (BETTENDORFF, 1910, p. 554).
Nesta situação, o padre João Carlos se dirige até ao Governador do Estado, em Belém, para
comunicar tais queixas, sendo que o melhor “remédio” tomado fosse que o governador
comunicasse ao donatário, Manuel de Mello e Souza.
Em 1695, quando padre superior Bento de Oliveira passava pela Vila do Caeté, “achou
o capitão-mor Amaro Cardoso tão posto fora de boa razão com os moradores contra o padre,
acerca dos índios”. Segundo o padre Betendorf, ao chegar em Belém, Bento de Oliveira
escrevia ao padre da missão de São João Baptista o seguinte:

[...] na primeira ocasião, se viesse para o colégio do Pará, com todo seu fato
e o mais pertence a missão, pois não faltavam missões em que pudesse
empregar com mais proveito das almas, que lá em a aldeia do Caeté, entre
gente tão pouco afeiçoada que não tinha reparado em escrever falsidades e
calunias, ao donatário da Villa, contra os missionários da companhia
(BETTENDORFF, 1910, p. 579).

Percebe-se no relato acima que essa “gente tão pouco afeiçoada”, ou seja, seus
moradores escreviam através da câmara papeis cheios de “falsidades e calúnias” contra os
jesuítas. Em 1698, ocorreram novos denúncias contra as atitudes do capitão-mor Amaro
Cardoso, como relata o padre Betendorf:

[...] estando eu ainda em corte fui visitar o Sr. Manoel de Mello, o qual se
botou de joelhos diante de mim, pedindo-me lhe dissesse como se havia seu
capitão-mor governava por aquele tempo; e como soube que os índios se
queixavam dele por até fazer puxar as raparigas, em lugar de bois, para fazer
andar uma engenhoca de aguardente que tinha (BETENDORF, 1910, p. 480).

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Em decorrência deste encontro, entre o padre Betendorf e o donatário Manoel de Melo,


o capitão-mor Amaro Cardoso foi substituído por João Farto, marinheiro de profissão e
indicado ao cargo por sua mulher (BETENDORF, 1910). Em sua crônica, o padre reitera: “E
dizia-me o Sr. Manoel de Mello que ele bem sabia que o governo dos índios de sua capitania
ficava em mão de padres” (BETENDORF, 1910, p. 481).

“Papéis apaixonados e odiosos de uma e de outra parte”: as contendas na primeira


metade do século XVIII

Na primeira metade do século XVIII, houve novos confrontos na capitania envolvendo


missionários, autoridades coloniais (camarários, vereadores, ouvidor da capitania), militares e
moradores. Além disso, a partir de 1732, uma forte articulação entre o Loco-tenente Manoel
Ferreira da Silva de Albuquerque na capitania e do capitão-donatário José de Melo e Souza no
reino. Estas contendas seriam agravadas ainda mais pela epidemia de bexigas que havia
arruinado a região em 1724-1725, após deixarem dois índios enfermos que disseminaram a
varíola na missão do Caeté (CHAMBOULEYRON et al, 2011). A epidemia teria ocasionado
o crescimento de solicitações de descimentos devido à carência de mão de obra indígena.

Nesse contexto, nos discursos dos moradores e algumas autoridades locais, destacava-
se a necessidade dos descimentos e resgates para o êxito das atividades reais, já que a capitania
e seus moradores estavam em “miséria e pobreza”. Esse discurso ecoava pelas cartas,
requerimentos, solicitações que se faziam aos monarcas ao longo da primeira metade do século
XVIII, pois, o “remédio” para tal pobreza era trazer “gentios” dos sertões (AHU/PA, Cx. 28,
Doc. 2632 – Carta de 25/10/1745).

Em 01 de julho de 1716, já havia cartas sobre conflitos em que o conselho Ultramarino


respondia às queixas feitas por um missionário, o padre Joze Vidigal, responsável pelo
Aldeamento de São João Baptista. A carta enviada ao governador e capitão-general do Estado
do Maranhão relatava o seguinte problema:

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[...] a ordem que vos foi para informardes sobre a queixa que me fez o padre
Joze Vidigal, da liberdade que usava com os Índios, Mathias da Silva, Loco
Tenente do Donatário da Capitania do Cayté tirando-os da Aldeia em que
viviam para empregar nos seus interesses representando-me, que pretendendo
este levar da dita Aldeia sessenta pessoas entre Índios e Índias para lhe
trabalharem em um engenho que tem na Capitania do Pará e também mandar
alguma canoa ao negócio do sertão (ABN, vol. 67, p. 136-137. Carta régia de
01/07/1716).

Neste caso, os conselheiros ordenavam a observância das ordens do rei, neste período
o Regimento das Missões de 1686. Assim, a prática tida pelo Loco-tenente Mathias da Silva
era incondizente, pois o regimento assegurava a repartição para garantir o desenvolvimento da
colônia portuguesa, e não atender às necessidades particulares dos moradores, como ocorreu
na Capitania, uma vez que o Loco-tenente empregou os índios no engenho particular e nas
entradas ao sertão para o extrativismo de gêneros da região.
Em 17 de março de 1724, José de Melo e Souza pedia novamente a licença real para
aldear novos índios na capitania. Desta vez, o donatário era enfático, pois comunicava que

[...] necessita a mesma capitania de ser povoada pode fazer se maior povoação
mandando descer dos sertões a sua custa alguns casais de Índios que fiquem
de baixo da dominação do seu lugar-tenente e suposto há de fazer grande
despesa, resulta dela utilidade a capitania, e também a fazenda de V.
Magestade, em ordem de a que acrescendo os Índios e em Trabalho desta
gente hão de ter maiores os dízimos e direitos destes (AHU/MA, Cx. 13, Doc.
1385, Requerimento de 17/03/1724).

Nesta solicitação, o donatário é enfático ao pedir que os índios deste descimento


pudessem ficar sobre administração do Loco-tenente da capitania, ou seja, requerendo o poder
temporal, pois eles seriam empregados em serviços referentes às autoridades e aos moradores
locais, para que estes pudessem pagar os dízimos. Além disso, no ano de 1724, a epidemia de
varíola dizimou a população indígena, por isso “necessita a mesma capitania de ser povoada
pode fazer se maior povoação mandando descer dos sertões [...] alguns casais de Índios”.
Camila Loureiro Dias e Fernanda Aires Bombardi comentam:

Anos de epidemia eram anos de despovoamento dos espaços produtivos


portugueses – tanto em decorrência das mortes quanto das fugas dos índios

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com a finalidade de não contrair a doença. Nessas ocasiões, as atividades se


desarticulavam e os esforços se concentravam em salvar as vidas dos índios
que restavam (DIAS; BOMBARDI, 2016, p. 262).

Em fins da década de 1720, o rei comunicava ao recente Governador do Estado do


Maranhão, Alexandre de Souza Freire, sobre o estado dos “Povos circunvizinhos” da cidade
de São Luiz. D. João indicava:

[...] e que acheis ao Povo da Cidade de São Luiz do Maranhão reduzido a


grande pobreza e miséria, e o mesmo os mais Povos circunvizinhos, e as
fortificações todas umas arruinadas, e outras totalmente destruídas nascidas
todas estas ruínas não só da falta de operários, mas também pelo embaraço
que ocasionam àqueles moradores, os Padres da Companhia,
impossibilitando-os na introdução do cacau vedando-lhes a passagem dos
Rios, resultando disto um notório prejuízo a minha Real Fazenda (ABN, vol.
67, p. 233-235. Carta régia de 27/09/1727).

Ao que consta no discurso de D. João V, os prejuízos à Fazenda Real eram ocasionados


pelos surtos de bexiga (1695 e 1725) e da administração da Companhia de Jesus. Estes
segundos tornavam-se um obstáculo às atividades dos moradores no extrativismo das drogas
do sertão. Neste cenário, havia grandes embates entre os missionários e moradores, como o
próprio monarca relata os conflitos existentes na capitania do Pará em 1727. Diante disso, o rei
ressaltava que os moradores eram “capaz de pegar em armas” podendo causar revoltas, e que
passando a cidade [de Belém] do Pará:

[...] Achareis a Villa de Caeté totalmente destruída, sendo da impossibilidade


dos seus habitadores o não terem um só Índio ou Índia que o servisse e
sustentasse, assim nas roças, na pesca, e na caça, e quem lhe fosse ao mato
buscar um pouco de lenha para cobrirem as suas Casas, e brevemente se
acabarão de extinguir essas pobríssimas relíquias da dita Vila se o Padre
Missionário da Aldeia desta mesma Vila desprezar as providências que
deixastes negando-lhes os Índios e Índias que eu pelas minhas reais Leis
mando reparti-lhes (ABN, vol. 67, p. 233-235. Carta régia de 27/09/1727).

Pelo documento, podemos inferir que a falta de trabalhadores indígenas era causada
pelos padres missionários ao continuar “negando-lhes os Índios e Índias”, prática ilegal, de

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

acordo com o Regimento das Missões. Essas acusações referentes à repartição dos índios eram
recorrentes nas contendas, como destacou Márcia Eliane:

As câmaras, no que diz respeito a este assunto [da repartição dos índios],
apontavam como argumento as ilegalidades e o mau uso dos índios de
repartição por parte dos jesuítas, partindo da estratégia de acusar aqueles que
administravam a mão-de-obra indígena (SOUZA MELLO, 2009, p. 90).

O mesmo monarca, D. João V, relata os conflitos, pois os missionários, embora


tivessem o poder temporal sobre os índios no Caeté, dificultavam e não faziam a repartição aos
moradores. O principal argumento destes últimos era de que na capitania os padres estariam
infringindo os parágrafos 15º e 16º do Regimento das Missões, concernentes à repartição e seu
mau uso, podendo deixar brevemente extinta as “pobríssimas relíquias” da Vila de Souza, uma
vez que os habitantes apontavam as dificuldades em torno dos serviços nas “roças, na pesca, e
na caça, e quem lhe fosse ao mato buscar um pouco de lenha para cobrirem as suas Casas”.
Em 1733, em consulta do Conselho Ultramarino, podemos acompanhar o estado da vila
Souza do Caeté descrito pelo bispo do Grão-Pará, D. Fr. Bartolomeu do Pilar, ao destacar que
na vila não havia párocos há anos devido “não haver côngrua (...), aquelas ovelhas que por
pobres não tinham Pastor” (AHU/PA, Cx. 15, Doc. 1378, Consulta de 14/03/1733). O
documento ainda expõe as dificuldades enfrentadas pelos moradores para utilizar-se da mão de
obra indígena, destacando uma sugestão do bispo do Grão-Pará que considera:

[...] e os missionários se aproveitava destes [índios aldeados] para o seu


serviço e conveniência melhor era que deles se aproveitasse o Pároco assim
para remédio da sua sustentação como para a utilidade daqueles moradores,
por q sendo assim nem o Pároco estava a dependência dos Missionários para
lhe dar alguns Índios para lhe fazer algumas roças, pescar e cassar, nem
também os moradores para os ditos índios os tirem ajudar para o q fosse
necessário, pois sendo aquela Aldeia para o serviço dos ditos moradores, era
um jubileu conceder lhes um índio, ainda pagando lhe para os ajudarem nas
suas lavouras, tem a q’ não podem fazer passado por esta coisa com tanta
penúria, nem tão pouco tem que nos ajude a fazerem casas na vila, por q’ lhes
não dão os Índios para uso necessário (AHU/PA, Cx. 15, Doc. 1378, Consulta
de 14/03/1733).

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Aquela condição de “pobreza” e de falta de côngruas para o “Pároco” que assistia na


vila de Souza, poderia ser solucionada, segundo o bispo, por meio da repartição dos índios
aldeados da missão do Caeté, esse seria o “remédio” para a sustentação do vigário dos
moradores – que não pertencia a ordem da Companhia de Jesus – como para “utilidade
daqueles moradores”. O Bispo do Grão-Pará ainda ressalta as dificuldades das solicitações dos
trabalhadores indígenas para serviços dos moradores, indicando que “era um jubileu conceder
lhes um índio”, transtornos cotidianos que causava o estado de “penúria” da dita vila.
Mais tarde, em 04 de fevereiro de 1734, o donatário José de Melo e Souza pedia ao rei
D. João V, provisão para que os moradores da capitania pudessem resgatar cinquenta casais de
índios dos sertões. Nos argumentos para a solicitação, o donatário revela a situação
sociodemográfica da vila de Souza:

[...] algum tempo sendo populosa se acha há que quase despovoada e para se
conservar de todo sem moradores necessita visto de que V. Magestade servirá
dar faculdade pelo que cada um dos que habitarem possam a sua custa resgatar
de qualquer sertão cinquenta casais de gentio (AHU/MA, Cx. 21, Doc. 2146,
Requerimento de 04/02/1734).

Recorrentes nos argumentos dos moradores e algumas autoridades locais, adjetivos


como “despovoada”, “desprotegida”, “miséria” e “penúria” faziam parte do léxico a respeito
dos “clamores” feitos aos monarcas, além de descrever situações difíceis associadas ao mundo
do trabalho, ou melhor agravadas pela falta de trabalhadores indígenas na Vila de Souza do
Caeté. Como vimos, a relação entre os habitantes da Vila com os missionários da Companhia
de Jesus era de intrigas devido aos interesses diversos em torno do tempo de trabalho dos
indígenas em suas posses.
Nos anos finais da década de 1730 e início de 1740, a questão do trabalho indígena
tornou-se um barril de pólvora para motins. O governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará,
João de Abreu de Castelo Branco, ao se referir a estas queixas, informava:

As repetidas queixas e controvérsias que a Vossa Majestade tem vindo


presentes, que sempre continuarão entre os moradores do Caeté, e os
religiosos da companhia de Jesus, missionários da aldeia de são João agregada
a dita vila não havia, produzido mais que requerimentos, e papéis
apaixonados e odiosos de uma e outra parte; e por esta razão impróprias

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verdades dar numa conta impertinente a Vossa Majestade (AHU/PA, Cx. 25,
Doc. 2323 – Carta de 22/10/1742).

No trecho acima, o governador do Estado faz crítica aos “papeis apaixonados e


odiosos” produzidos pelos dois grupos sociais na capitania. Esses “papéis”, contidos por uma
“retórica apocalítica”, como frisou José Alves de Souza Júnior (2012, p. 160), eram presentes
nas correspondências de autoridades e moradores com a Corte portuguesa.

Considerações finais

Busca-se neste trabalho destacar as possibilidades de interpretações sobre as contendas


entre jesuítas e autoridades coloniais na Capitania do Caeté. Desde o século XVII, se produziu
“papeis falsíssimos” e “choveria a papelada” contra os jesuítas responsáveis pelo aldeamento
de São João Baptista (SERAFIM LEITE, 1943, p. 293). Na primeira metade do século XVIII,
após formalizar várias queixas na câmara da vila de Souza, as autoridades locais e moradores
expulsariam os missionários da companhia de Jesus, em 1741. Portanto, as contendas aqui
analisadas inferem o problema envolvendo os limites da jurisdição dos donatários de capitanias
privadas quanto ao governo dos índios, questão considerada como um dos principais elementos
conflitivos das donatarias na Amazônia colonial.

Referências

BETTENDORFF, Pe. João Felipe, S. J. Chronica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus
no Estado do Maranhão. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro,
tomo 72, parte 1, 1910.
CHAMBOULEYRON, Rafael; BARBOSA, Benedito C. Costa; BOMBARDI, Fernanda
Aires; SOUSA, Claudia Rocha de. ‘Formidável contágio’: epidemias, trabalho e recrutamento
na Amazônia colonial (1660-1750). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 18, n. 4, out-
dez, 2011
DIAS, Camila Loureiro; BOMBARDI, Fernanda Aires. O que dizem as licenças?
Flexibilização da legislação e recrutamento particular de trabalhadores indígenas no Estado do
Maranhão (1680-1755). Revista História, São Paulo, nº 75, jul/dez. 2016.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos. Os princípios da legislação


indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da
(Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1992.
SERAFIM LEITE, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo III. Rio de Janeiro:
Imprensa, 1943.
SOUZA MELLO, Márcia Eliane Alves de. O Regimento das Missões: poder e negociação da
Amazônia portuguesa. Clio - Série Revista de Pesquisa Histórica – nº 27-1, 2009.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

A UTOPIA DE LUTAR: O MOVIMENTO ESTUDANTIL E A


REPRESSÃO MILITAR NO AMAZONAS (1964-1985)

Leonardo Bentes Rodrigues


Universidade Federal do Amazonas, Mestrando
leobentesr@gmail.com

Resumo
Os estudantes tornaram-se o grupo social mais visível do país e a União Nacional dos
Estudantes (UNE) mantinha importante influência no debate político do país durante o governo
Goulart. No Amazonas, permaneceram organizados em dois órgãos estudantis: a União dos
Estudantes do Amazonas (UEA) e a União dos Estudantes Secundaristas do Amazonas
(UESA). Marcada por particularidades regionais, a ditadura enfrentou primeiramente o “perigo
ideológico” dentro do movimento estudantil. Porém, as medidas repressoras da ordem não
foram capazes de inibir o caráter contestador das utopias estudantis, seja na resistência ao golpe
civil militar de 1964 ou na criação dos centros acadêmicos e culturais no fim da década de 70.
Portanto, o presente artigo traduz o esforço de analisar a trajetória de luta e resistência do
movimento estudantil no Amazonas durante a vigência da Ditadura Militar.

Palavras-chaves: Movimento Estudantil; Repressão; Ditadura Militar

Introdução
Em seu recente artigo, intitulado Amazônia em Armas, o historiador César Queirós
afirma que em nosso estado carece de estudos “mais aprofundados” sobre os estudantes “a fim
de que se conheça melhor a resistência e organização estudantis no Amazonas” (QUEIRÓS,
2019, p. 53) e por fim, ressalta, que a “luta desses sujeitos esquecidos pela história deve ser
lembrada e celebrada” (idem).
Concordamos que precisamos de trabalhos mais ousados afim de desobscurecer o
silêncio que nos fora imposto a partir de 1964, pois a história está sempre em revisão. Mas, é
verdade que as experiências destes sujeitos já começaram a ser desveladas.
Maria da Conceição Fraga, cientista social, analisou o processo de organização dos
estudantes manauaras nos anos 70 através da construção de novas práticas políticas pelos

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

estudantes da Universidade Federal do Amazonas. Publicado em 1996, Estudantes, Cultura e


Política, a experiência dos manauaras constitui obra pioneira das análises sobre os estudantes
amazonenses e a ditadura militar, porém, seu trabalho configura-se dentro da ciência política.
Fraga nos direciona para o contexto cultural e político dos estudantes durante o processo da
distensão lenta e gradual da ditadura, quando “os universitários se apropriaram de importantes
redes de sociabilidade, utilizando-se de ambientes propiciados pelas partidas de futebol, bares
ou qualquer outro evento cultural como forma de mobilização de colegas” (FRAGA, 1996, p.
122).
O trabalho A utopia de lutar: o movimento estudantil e a repressão militar no Amazonas
(1964-1985), elaborado dentro do projeto Trabalho, Cultura e Cidade (PROCAD – CAPES),
analisou a trajetória de luta e resistência do movimento estudantil no Amazonas durante a
vigência da Ditadura Militar, buscando enfatizar sua organização, articulação e sociabilidades
diante da repressão militar. O referido trabalho, de minha autoria, careceu de maior divulgação
científica, de modo que pretendemos oferecer a perspectiva histórica das experiências do
movimento estudantil no Amazonas durante a ditadura. Deste modo, busca-se oferecer
direcionamentos e contribuições para a pesquisa histórica de nossa região, local que observa
com entusiasmo a crescente iniciativa de produções em torno do período de vigência do regime
militar.

Da utopia das reformas ao AI-5 (1964-1968)

Em 1968, na edição de 11 de novembro, o jornal A Crítica estampou em suas folhas em


grande destaque: Por que o estudante amazonense não protesta? Eram os dias de intensa
eclosão da agitação estudantil no fatídico ano de 1968. “O amazonense não protesta, pois, antes
procura resolver de forma racional suas dificuldades, assim suas pautas são atendidas pelas
autoridades de forma ‘civilizada’” (A CRÍTICA, 11 de novembro de 1968), declarou o
estudante “Sérgio”. O passado de ausência de pautas para o protesto estudantil, a falta de
“conscientização dos problemas” e o afastamento geográfico do estado apresentam-se como
pontos em comum nos motivos presentes em quase todas as opiniões divulgadas. Outros
destacaram a repressão imposta no pós-64 como causa para o não protestar no Amazonas,

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

notabilizando a presença do gigantismo do aparato policial que “vê, tudo sabe e a todos
conhece” (idem).
Durante os quatro primeiros anos do regime militar, o projeto de controlar os órgãos
estudantis resultou na tentativa de afastar o estudante da militância política, diante do
sentimento próprio de querer mudanças, aqui chamado de utopias estudantis. Todavia, o
aspecto de protesto dos estudantes representa uma postura que abalou a ordem da ditadura,
portanto, trata-se de uma utopia “que, transcendendo a realidade, tendem, se se transformarem
em conduta, a abalar, seja parcial ou totalmente, a ordem das coisas que prevaleça no momento”
(MANHEIM, 1982, p. 216). As utopias estudantis ocuparam corações e mentes dos estudantes
num país tomado pelas mudanças prometidas pelas Reformas de Bases que, segundo as classes
dominantes, a mobilização dos movimentos sociais poderia levar a possibilidade de uma
revolução comunista, tendo como insuflador o presidente João Goulart.
No Amazonas, em primeiro lugar, podemos constatar que o processo de repressão
contra os opositores através da “operação limpeza” nos órgãos estudantis foi mais forte do que
o confronto direto entre os estudantes e militares. De imediato, torna-se evidente a tentativa de
consolidar no seio do movimento a implantação da ideologia do regime respaldado pela Lei
4464, conhecida por Lei Suplicy. Em segundo lugar, após a vigência do AI-5, o aparelho
autoritário passou a enfrentar diretamente o movimento através de posturas repressivas e
arbitrárias. Finalmente, em terceiro lugar, não podemos reduzir nossas análises em torno da
“passividade” e “distanciamento dos demais centros”, pois as experiências dos estudantes no
estado foram permeadas por particularidades.
Discurso próprio das autoridades e instituições que acabaram por consolidar a opinião
no senso comum, o Consulado Americano caracterizou o movimento estudantil no Amazonas
como “fraco, paroquial e mais facilmente flexível aos ditames das autoridades”, críticos ao
regime, mas cautelosos a um confronto direto com as autoridades e as forças armadas (USA,
National Archives, 1965).
A União dos Estudantes Secundaristas do Amazonas (UESA), fundada em 13 de janeiro
de 1954, durante as décadas de 50 e 60 desempenhou importante função na organização dos
secundaristas na luta pelo passe estudantil, entretanto, durante a ditadura militar, sofreu

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constantes perseguições em seus grêmios causando a proibição de seu funcionamento, sendo


fechada em 1967.
Aliás, nos primeiros dias de 1964 organizaram na Casa do Estudante seminários que
tinham por objetivo debater, juntamente com trabalhadores, intelectuais, políticos e populares
os problemas sociais e econômicos da região amazônica. Promovidos em conjunto com a União
dos Estudantes do Amazonas (UEA)26 e a União Nacional dos Estudantes (UNE), tal evento
desmascara o discurso de que estavam distantes das discussões nacionais. O Seminário de
Estudos Amazônicos teve a participação de nomes que protagonizaram o cenário nacional:
Almino Afonso (deputado federal, ex-Ministro do Trabalho e Emprego de Jango) e do vice-
presidente da UNE, Marcelo Cerqueira.
O seminário causou indisposição no governo estadual, lido como “agitação subversiva”
pelo governador Plínio Coelho, que afirmou posteriormente ter proibido as manifestações de
rua durante o evento (O JORNAL, 17 de maio de 1964). Sua relação com os estudantes era
demasiado tensa, o ápice do desafeto foi a invasão da polícia ao quarto do então conferencista
Jocelyn Brasil, vista como atitude contra a liberdade de reunião e expressão (FIGUEIREDO,
2014, p. 83). Coelho também se indispôs com a relação do General Madeira com os estudantes
e demais movimentos sociais, acusando-o de oferecer “proteção para os grevistas pelegos” (O
JORNAL, 17 de maio de 1964).
Persistente no primeiro momento, logo que percebeu que as forças contrárias ao
presidente marcharam para a efetivar sua deposição, Madeira desautorizou os estudantes que
estavam em sua casa, na ocasião, a resistir ao golpe. Foi o então Comandante da Guarnição
Federal de Manaus, considerado “progressista” e compadre de Jango, que decidiu desarticular
a intenção de greve geral contra o golpe (FIGUEIREDO, 2014, p. 38). Tachado de “general de
esquerda”, foi acusado de apoiar uma suposta “conspiração comunista” contra a “revolução de
31 de março ao lado de estudantes que apoiavam o governo de Goulart” (USA, National
Archives, 1965).
Concretizada a vitória dos militares, expurgar os derrotados fez-se necessário. Os
estudantes da Faculdade de Direito do Amazonas saudaram o golpe em solidariedade a “luta

26 Fundada a 4 de janeiro de 1942 foi a representação dos corpos discentes das Escolas superiores existentes no
Estado do Amazonas.

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pela preservação das liberdades fundamentais do homem, contra a tentativa de bolchevização


do Brasil pela grandeza da Democracia” (JORNAL DO COMMERCIO, 02 de abril de 1964).
O movimento estudantil foi o primeiro a sentir tais medidas, a eleição da nova diretoria da UEA
após o golpe deu a tônica deste “novo tempo”. Duas chapas competiram à direção do órgão:
oposição, com o acadêmico de direito, Luiz Augusto Santa Cruz Machado; situação, com o
acadêmico de Filosofia, Edson Farias. Considerado embate entre os democratas e esquerdistas,
a chapa de oposição recebeu amplo apoio do Jornal do Commercio, considerado o candidato
que encarnava o espírito estudantil revolucionário de então, que eliminaria “os estudantes por
cuja classe nada tem feito” (JORNAL DO COMMERCIO, 05 de abril de 1964). Edson Farias,
vice-presidente da gestão 63-64 e membro da Juventude Universitária Católica (JUC),
representava o passado que a ditadura queria expurgar. Na véspera da votação, um manifesto
aos universitários foi publicado no Jornal do Commercio apoiando integralmente a candidatura
de Luiz Machado, enfatizando que não fazia parte nem do Partido Comunista, nem da Ação
Popular, ao contrário da que misturava os ideais cristãos com os ideais esquerdistas.
No dia 12 de abril de 1964, a chapa oposicionista venceu para cumprir a lógica:
consolidar o espírito da ditadura dentro do movimento estudantil. Para Machado, a regeneração
conservadora no órgão se deu “contra a vontade dos comunistas e do Gal. Villanova Madeira”
(O TRABALHISTA, 22 de julho de 1964) graças ao sentimento democrático dos
universitários. Acusou a antiga diretoria de corrupção, de promoção de atividades subversivas,
como os seminários (pichamentos nas paredes) e o apoio a Goulart.
O relatório do Consulado Americano ressalta a chegada de um “grupo conservador” no
poder, que conseguiu reter o controle do movimento estudantil denunciando com frequência
seus predecessores acusados de “subversivos”, “reformadores sociais” e “intérpretes de Marx”
(USA, National Archives, 1965). A nova direção recebeu forte apoio do General Alvaro Alves
dos Santos, sucessor de Madeira, e caracterizado como “solidamente pró-revolucionário”
(idem).
Ademais, em 1965 a Universidade do Amazonas (UA) foi instalada, fruto da criação do
governo João Goulart, foi essencialmente moldada e construída na Ditadura Militar. Enfrentava
problemas sérios de infraestrutura e comodidade, tal situação foi fortemente protestada pelos
estudantes da Faculdade de Filosofia, que se articularam para pressionar as autoridades em prol

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da sede própria, chegaram a idealizar uma passeata pelas ruas de Manaus, porém, a
interferência do recém-criado Diretório Universitário retardou por alguns dias a intenção
(JORNAL DO COMMERCIO, 14 de maio de 1965). O governo cedeu diante da iminência de
uma nova agitação estudantil.
Foi diante deste novo espaço que se configurou novas realidades na vida estudantil.
Houve mudanças nos mandatários dos diretórios acadêmicos e principalmente a execução da
Lei Suplicy. Com o propósito de controlar as entidades estudantis, o ministro da Educação,
Flávio Suplicy, afirmava que “a intenção era também a de criar lideranças sadias, seguras e
esteiradas do civismo objetivo e construtivo, a fim de ampliar a voz de uma juventude”
(BRAGHINI, 2015, p. 221).
Na primeira eleição para o Diretório Central dos Estudantes (DCE), fazendo cumprir a
lei na UA, saiu vitorioso o acadêmico de Direito, Raimundo Crespo. O seu adversário,
Waldilson Cruz, contou com o apoio incontestável do D. A. Faculdade de Direito, lançou nota
oficial no qual acusava a candidatura de Crespo de provocadora e o retorno ao “estado de
alienação” da representação estudantil (JORNAL DO COMÉRCIO, 14 de agosto de 1965). O
Consulado Americano observou que Crespo foi apoiado pelo “grupo mais radical”, motivo que
levou a estar em constante alerta diante do futuro do movimento estudantil naquele momento
no estado (USA, National Archives, 1965).
Por conseguinte, em 1966, alguns grêmios e diretórios estudantis foram fundados, como
é o caso do Grêmio Estudantil do Colégio Solon de Lucena, criado para representar a UESA.
Entretanto, estavam impedidos de “fazer política” e qualquer ideia de movimento político por
estudantes seria reprimida (JORNAL DO COMÉRCIO, 30 de abril de 1966). Os órgãos
estudantis somente poderiam ser reconhecidos como instituições com finalidades cívicas,
culturais, sociais e esportivas.
Contudo, os secundaristas lideravam os protestos no Colégio Estadual do Amazonas,
em 1966, contra a precariedade do sistema de educação pública. A Polícia Civil foi solicitada
para desobstruir um “piquete”, vários policiais cercaram o colégio. Realizaram o comício em
frente a instituição onde oradores usaram a palavra “pedindo ao Governo liberdade para
protestar ou que não desse motivos para tais protestos” (A CRÍTICA, 03 de junho de 1966).
Em seguida, os secundaristas percorreram em passeata até a residência do Secretário da

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Educação. O movimento de protesto dos ginasianos se intensificou após a punição dos


secundaristas que participaram do ato, quatro tiveram suas matrículas canceladas. O
movimento teve a mediação do então governador Arthur Reis, relação considerada ambígua e
por vezes contraditória, os estudantes estimavam o governador, mas mantinham a criticidade
ao regime que representava. Sendo assim, tal relação necessita por ser investigada com certo
rigor microscópico.
Em 1968, diante das eclosões dos protestos estudantis pelo mundo, em nível nacional
pelo assassinato de Edson Luís, os estudantes agiram em silêncio e em 04 de abril de 1968,
contestando as autoridades, saíram em passeata após uma missa de sufrágio pelo secundarista,
sob forte vigilância policial e militar, portaram pano preto de luto e lenço amordaçando a boca,
responderam de forma direta e provocativa a repressão dos militares, a boca amordaçada
representou o símbolo de resistência do movimento estudantil amazonense, significando um
“amordaçamento total” (O JORNAL, 05 de Abril de 1968) e o pano preto luto pelo assassinato
do secundarista. “O Teatro Amazonas foi militarmente ocupado pelos policiais e militares que
instalaram ali seu QG de operações” (A CRÍTICA, 05 de abril de 1968), vigiados sob forte
esquema de repressão comandada pelo general Edmundo Neves. Apesar dos momentos de
tensão, a manifestação foi considerada pacífica mesmo diante das posturas de intimidação dos
policiais no fim do protesto (Cf. RODRIGUES, 2016).

Caminhos de Luta (1969-1978)

O Ato Institucional n° 5 foi o marco de um longo silêncio que o movimento estudantil


malogrou, suas movimentações foram fortemente vigiadas pelos diversos instrumentos da
repressão. O regime queria envolvê-los através do projeto Rondon, criado com o objetivo de
“desmobilizar o radicalismo dos estudantes, atraindo alguns líderes para os valores do regime
militar” (MOTTA, 2014, p. 87). Some-se a isto a presença da Assessoria de Segurança e
Informação (ASI) na Universidade do Amazonas (idem), que os manteve sob forte controle
político. Os espaços eram constantemente vigiados, com policiais federais à paisana entre os
alunos, intimidando-os durante as eleições para os diretórios com intervenção direta nos

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

resultados (FRAGA, 1996, p. 119). Deste modo, a desmobilização política e ideológica parecia
surtir efeito no estado.
Entretanto, o ano de 1978 representa a retomada da articulação política dos estudantes
amazonenses, reencontrando o motivo da luta, depois de serem obrigados “a não fazer política”
ou de se organizarem em entidades, novamente protagonizaram o caminho para a derrubada do
autoritarismo, enquanto novas formas de articulação política e cultural foram construídas no
seio da universidade: os Centros Culturais e Acadêmicos. De acordo com Conceição Fraga,
foram “novos espaços” criados fora da entidade oficial do Diretório Universitário, assim, o
“cotidiano dos estudantes da Universidade do Amazonas transformou-se em espaço de luta”
(FRAGA, 1992, p. 62).
Então, surgem o Centro Universitário e Cultural de Agronomia (CUCA); Centro
Acadêmico Filosófico e Cultural do Amazonas (CAFCA); Centro Cultural de Medicina
(CECUM) e o Centro Universitário de Comunicação Social (CUCOS). A própria criação destes
espaços foi fruto desta retomada de consciência dentro do movimento estudantil, que passou a
exigir maior representatividade no Conselho da Universidade do Amazonas. Ademais, dentro
dos Centros Culturais e Acadêmicos foram criados mecanismos de resistência e divulgação de
suas ideias. Surgiram os jornais, que lhes garantiu um espaço de crítica não só dos problemas
da universidade, também para resistir a ditadura. Ademais, O Grão (Agronomia); A Questão
(Filosofia); O Gen (Medicina); O Zero (Comunicação Social) ainda não foram objeto de estudo
e carecem de mapeamento, apenas alguns de seus registros são encontradas na obra de
Conceição Fraga (Cf. FRAGA, 1996, p. 77).

Rostos utópicos: a luta pela legalidade democrática (1979-1985)

Diante da agonia da Ditadura Militar, o protagonismo estudantil construiu movimentos


de greves e manifestações, assim, a promessa da redemocratização do país reacendeu as chamas
das utopias estudantis. A propósito, nos causa incômodo o tímido protagonismo feminino entre
os anos de 1964-1968, com raras presenças, que podem ser mapeadas nas eleições para o

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Grêmio 12 de maio da Escola de Enfermagem de Manaus, onde concorreram à presidência:


Norma de Melo e Maria Gonçalves. E, em 1969, Lucymare Souza conquistou a diretoria do
DCE (A CRÍTICA, 20 de setembro de 1969). A atuação de mulheres dentro do movimento
estudantil se acentua a partir de 1978, introduzindo no movimento pautas próprias, como direito
a creche para mães universitárias (A CRÍTICA, 14 de março de 1980), igualdade de salários e
fim da violência contra a mulher. Deste modo, análises pontuais dentro da perspectiva de
gênero são fundamentais.
A greve universitária de 1979, contra a falta de didática de professores, refletiu em dez
dias de tensão no campus: organizaram manifestações, passeatas nas ruas e até carnaval
improvisado realizado depois da confirmação do afastamento do professor Evandro Graça.
Grupo de alunos com a bandeira da UNE gritavam “o estudante unido, jamais será vencido”.
A participação efetiva dos Centros Culturais e Acadêmicos na construção da greve universitária
foi intensa, mesmo não reconhecidos pela administração da UA, incorporavam nova forma de
agir e resistir dentro do movimento.
Sobretudo porque a década de 1980 refletiu não só na resistência à ditadura e a luta pela
retomada da legalidade, mas a presença de forte crítica ao neoliberalismo. A preocupação com
o ensino público levou às ruas para protestarem contra os acordos entre o Ministério da
Educação (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID) que
pretendia reformar o ensino público brasileiro e, consequentemente, privatizar a educação. As
notas publicadas na Imprensa pelos órgãos estudantis denunciavam a falência e a precariedade
das universidades públicas. Como alegam os estudantes do curso de Física da UA, que
denunciaram a situação do ensino superior no Estado e “a educação voltada para a formação
de mão-de-obra para servir às multinacionais” (A CRÍTICA, 10 de maio de 1980). Em 1983,
estudantes de Estudos Sociais denunciaram a realidade do curso de licenciatura curta que não
oferecia nenhuma condição profissional, pois não havia mercado de trabalho, pediram a
extinção do curso em vista de alertar os vestibulandos mostrando a realidade do curso.
Convocados em nível nacional em setembro de 1980, entraram em greve por três dias
em consonância com a UNE. Extremistas de direita atacaram o movimento com pichações que
pediam “morte dos Comunistas do DU”. Em resposta, o presidente do Diretório Universitário,

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João Pedro, repeliu os ataques de agentes que queriam frear o movimento em favor da
democracia (A CRÍTICA, 16 de agosto de 1980).
Atos públicos, paralisações e greves foram realizados com a participação do DU,
centros acadêmicos, partidos de oposição e entidades democráticas. No ano era 1981, os
secundaristas retomaram a luta da UESA para criticar a maior crise do ensino brasileiro, fruto
da política do governo militar (A CRÍTICA, 03 de junho de 1981). Persistiram em junho, numa
nova paralisação nacional, desta vez, pontuando a escolha direta de reitores e sub-reitores em
suas pautas reivindicatórias. Com bandeiras da UNE a frente, cerca de 1500 estudantes
encerraram o dia de paralisação por melhores condições de ensino em passeata que saiu da
Praça de São Sebastião, parou diante do prédio da Reitoria, condenando a tentativa de
institucionalizar o ensino pago no país. Distribuíram pelo percurso a “Carta aberta à população
de Manaus”, justificando a greve e acusando o governo de institucionalizar o ensino pago. A
repressão se materializou na presença de agentes do DOPS que utilizaram do carro para
empurrar um estudante na calçada, na ocasião passava uma ambulância com a sirene ligada,
alguns estudantes pensaram em se tratar de outra viatura e não hesitaram em gritar: “abaixo a
repressão! Abaixo a repressão!” (A CRÍTICA, 05 de junho de 1981).
Ao denunciar o tom “agressivo e intransigente” da reitoria diante de sua “subserviência
frente à Portaria do MEC em instituir o ensino pago”, declararam greve por tempo
indeterminado em março de 1982. “A greve do bandejão” denunciou as posturas autoritárias
do reitor Otávio Mourão e de seu assessor, professor Nina, durante as conversações frente às
reivindicações de manter o preço da refeição em 20 cruzeiros e a reposição das aulas
interrompidas pela greve (A CRÍTICA, 30 de março de 1982).
A propósito, a década de 1980 representa o período de maior repressão durante os anos
vigentes da ditadura militar aos movimentos de protestos no Amazonas. É, portanto, na agonia
da ditadura que as feições autoritárias são reafirmadas durante o processo chamado de
“transição democrática”. Tanto o governo de José Lindoso (PDS), quanto de Gilberto
Mestrinho (PMDB), reprimira duramente os protestos estudantis.
Convocados para o dia 28 de agosto de 1981, a manifestação proibida por falta de
autorização, visou debater em praça pública os efeitos do aumento das passagens de ônibus e
a implantação do passe único e ilimitado. Cerca de trinta estudantes se concentraram em frente

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à Igreja de São Sebastião dando início ao ato público. Quando começaram os primeiros
discursos, os policiais investiram contra o grupo. Fugindo da repressão, procuraram refúgio
dentro do templo, em vista da perseguição da tropa com armas na mão, disparando tiros e
prendendo dez deles. Vasos e paramentos sacros foram danificados e estudantes chegaram a
ser reprimidos com cassetetes policiais, provocando lesões nos braços e costas. Ao tentar
apaziguar o conflito dentro do templo, Frei Mário foi agredido por policiais e o estudante Jorge
Vieira, para escapar da perseguição, escondeu-se dentro do tanque de água. A ação gerou
impasse na relação entre o governo estadual e a Arquidiocese de Manaus, que apoiara os
manifestantes (A CRÍTICA, 29 de agosto de 1981).
A chamada “Batalha da Matriz” consistiu no ato de maior truculência do aparelho
repressor durante a década de 80, devido aos fatos decorrentes desta circunstância se espalhar
por dias em verdadeiros atos contínuos de arbitrariedade. Conforme dito anteriormente, o então
governador Gilberto Mestrinho fora eleito por meio de sufrágio universal. A passeata de
entidades estudantis contra o aumento do preço dos ônibus consistia no trajeto da Praça da
Matriz ao Palácio Rio Negro (então sede do governo), terminou num forte confronto entre
estudantes e policiais. Prosseguiram, noite adentro, manifestações estudantis em diversos
pontos da cidade com depredações de bancas de revistas, ônibus e até um outdoor do
governador foi destruído. O governo democraticamente escolhido respondeu com truculenta
repressão, marcando para sempre a memória daqueles manifestantes (A CRÍTICA, 21 de
setembro de 1983).
Portanto, em todo o período ditatorial, o movimento estudantil se deparou com aparato
repressor pronto para conter o avanço de suas utopias, materializado na truculência e
arbitrariedade. Os estudantes apresentaram uma ampla capacidade de mobilização contra as
posturas autoritárias dentro de suas particularidades. Sempre resistiram. Podemos afirmar que
a universidade, embora estritamente vigiada, tornou-se o verdadeiro espaço de luta pelo retorno
a legalidade, e as ruas o lugar de ação em tempos de repressão.

Referências

BRAGHINI, Katya Mitsuko Zuquim. Juventude e pensamento conservador no Brasil. São


Paulo: EDUC: Fapesp, 2015.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

FIGUEIREDO, Paulo. O golpe militar no Amazonas: crônicas e relatos. 2° edição. Manaus,


2014,
FRAGA, Maria da Conceição. Estudantes, cultura e política: a experiências dos manauaras.
Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1996.
QUEIRÓS, César Augusto Bubolz. “Amazônia em Armas”: luta e resistência contra a
ditadura militar no Amazonas. Revista Labirinto, Vol. 31, 2019.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e
modernização autoritária. 1.ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
RODRIGUES, Leonardo Bentes. A juventude toma as ruas, 1968 e os dias de lutas contra a
repressão em Manaus. Revista Eletrônica discente História.com. v. 3, n. 6, 2016.

Fontes
⚫ USA, National Archives. Student Movement in the north. September 24, 1965. In:
Brown University Library; Brown Digital Repository. Opening the Archives:

Documenting U.S. – Brazil Relations, 1960s-80s.
⚫ A Crítica;
⚫ Jornal do Comércio;
⚫ O Jornal; O Trabalhista.

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A MÍDIA CINEMÁTICA NO ENSINO DE HISTÓRIA: PERSPECTIVAS


DOCENTES SOBRE ESTE PRODUTO CULTURAL

LUIZ PAULO DA SILVA SOARES


Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul, Mestre
luizsoaresrg@gmail.com

Resumo
O presente resumo expandido tem como objetivo apresentar algumas perspectivas docentes
sobre a utilização da mídia cinemática no ensino de História, com vistas a trabalhar os
conteúdos históricos em sala de aula. Nesse sentido, parte-se do pressuposto empreendido pelos
professores de que a mídia cinemática dá asas à imaginação, expandindo os horizontes de
análise. A investigação teve como empiria questionários semiestruturados (HILL & HILL,
2002) para obter dados quantitativos, qualitativos e entrevistas orais (SZYMANSKI, 2011)
com alguns professores de História que trabalham no ensino fundamental na rede municipal
e/ou estadual de ensino da cidade do Rio Grande/RS. O trabalho está pautado em autores como
Carmo (2012) e Fonseca (2012), que enfatizam a utilização das mídias cinemática como um
canal para fugir das aulas meramente expositivas e monótonas, favorecendo o diálogo e a
reflexão do estudante.

Palavras-chave: Mídia Cinemática; Ensino de História; Escola Pública

Introdução

A escola está sendo pensada, assim,


como espaço meditativo
cada vez mais cruzado pelas novas linguagens
e pelas transformações científicas, tecnológicas, culturais
e de comportamentos que marcam
o mundo contemporâneo.
Adilson Citelli (2004)

Ao ponderarmos as palavras de Citelli, corroboramos com seu pensamento, quando o


mesmo aponta que a escola cada vez mais se tornou um espaço de meditação, em função das
novas linguagens. Isso denota, que as mídias visuais, e não apenas essas, se fazem cada vez

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mais presentes no cotidiano escolar, uma vez que os professores buscam artefatos que possam
auxiliar a elucidar, problematizar, direcionar o trabalho com os temas das disciplinas junto aos
estudantes, com vistas a proporcionar uma aproximação dos conteúdos a realidade dos alunos.

Nesse sentido, este artigo originou-se da pesquisa intitulada Cartografando


Experiências no Ensino de História: a mídia cinemática como fonte educativa em sala de aula,
que foi desenvolvida no âmbito do Grupo de Pesquisa e Extensão Educação e Memória –
EDUCAMEMÓRIA cadastrado no CNPq, na linha de pesquisa Rede de culturas, estéticas e
formação da/na cidade – RECIDADE. A dissertação de mestrado acadêmico em Educação foi
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande – FURG, na linha de pesquisa Espaço e Tempos Educativos, e teve como problemática
buscar compreender quais as concepções de mídia educativa embasam as experiências docentes
quando os mesmos utilizam esse “produto cultural” (FERRO, 2010; FONSECA, 2012;
CARMO, 2012) para trabalhar os conteúdos históricos.

Delineamentos teóricos-metodológicos sobre a pesquisa

A realização da pesquisa de mestrado pautou-se em questionários semiestruturados que


foram respondidos por vinte e seis professores de História da rede básica de ensino e entrevistas
orais com cinco dos vinte e seis professores pesquisados no questionário como material
empírico da investigação. Assim, acreditamos que utilizar o cinema como um “produto
cultural” (CARMO, 2012) propicia aos estudantes uma ampla variedade de possibilidades que
podem ser problematizadas e discutidas em sala de aula, ampliando os horizontes de análise.

A metodologia utilizada para desenvolver a investigação é de cunho qualitativa


desenvolvida por FLICK (2009), cujos dados obtidos são descritos como significativos, densos
e de uma riqueza de informações, além de também quantitativo. Nesse sentido, para realizar o
desenvolvimento da investigação optou-se pelo método de análise de conteúdo proposto pela
pesquisadora Laurence Bardin (2012). Esse método, segundo a autora, tem por intuito a
descrição, inferência e interpretação dos materiais coletados e catalogados. Consistindo num
conjunto de técnicas e instrumentos metodológicos capazes de efetuar a exploração objetiva de

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dados, informações e/ou discursos, fazendo-os aparecer no conteúdo das diversas categorias de
documentos. A análise de conteúdo foi utilizada para realizar as análises de ambos os
instrumentos utilizados para coletar os dados empíricos, no caso os questionários
semiestruturados e as entrevistas orais.

Para realizar a análise dos dados obtidos, utilizamos como aporte metodológico a
análise de conteúdo proposta por Laurence Bardin (2012). Esse método de análise está pautado
na descrição, inferência e interpretação dos materiais coletados e catalogados. Consiste num
conjunto de técnicas e instrumentos metodológicos composto por três fases de análise distinta,
que compreendem a exploração dos dados empíricos, informações ou discursos coletados,
analisando-os de forma que, através da definição de categorias de análise, os mesmos
evidenciem o conteúdo do material fundante da pesquisa.

O tratamento dos questionários ocorreu através da divisão inicial contendo cinco


categorias base: Rede de Instituição de ensino; Professor(a); Formação Acadêmica; Gênero
Fílmico e Abordagem Metodológica empregada. Essas categorias compreendem a base da
segunda fase de análise da investigação. Lembramos que essa categorização foi realizada
levando em consideração a quantidade de professores pesquisados que estavam vinculados a
instituições de ensino diversas.

Um fator interessante que constatamos durante as análises dos questionários refere-se


à finalidade colocada pelos professores que os impulsionam a utilizarem as mídias cinemáticas
em sala de aula. Entre todos os pesquisados, fica claro que há certo consenso quanto à
finalidade da utilização de filmes em aula, ou seja, como apoio para discussões e significação
dos conteúdos. Dos vinte e seis (26) professores pesquisados, vinte e um (21) marcaram ambas
as respostas como motivação principal para utilizar as mídias cinemáticas em sala de aula
totalizando mais de 80,7% do grupo. No entanto, os participantes marcaram múltiplas opções,
como a utilização de filmes para a preparação de um novo tema ou conceito a ser trabalhado,
por exemplo, que aparece nas respostas de doze (12) professores. Já dezessete (17) professores
marcaram a opção ilustração de temas como um dos motivos para utilizar a mídia cinemática
para trabalhar os conteúdos históricos. E por último, mas não menos importante, onze (11)
professores, que corresponde a 44% do total, utilizam como forma a desenvolver conceitos

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relativos à ciência da história, enquanto quinze (15) ou 56% preferem esse “produto cultural”
(FERRO, 2010; FONSECA, 2012; CARMO, 2012), para aproximar o conteúdo a realidade do
aluno, além de outros, como, por exemplo, a avaliação de fontes históricas. É o que podemos
perceber no quadro abaixo:

Quadro 1: Finalidade da Mídia Cinemática nas aulas de História segundo os professores pesquisados
Finalidade/Objetivo Nº de vezes
Apoio para discussões sobre o conteúdo 21
Aproximar o conteúdo da realidade dos estudantes 15
Desenvolver conceitos 11
Ilustração de temas 17
Iniciar novos conteúdos 12
Significação do conteúdo 21
Outros: Avaliação de Fontes Históricas 01
Outros: Não Utilizo 01
Fonte: Dados organizados pelo pesquisador.

Diante dos resultados obtidos, é possível deduzir que as finalidades apontadas pelos
professores de História são diversas, isto é, não são centradas em apenas um objetivo e todas
as respostas sugerem para motivação ou motivações que os levam a trabalhar a mídia
cinemática com os estudantes de maneira diversa. Nesse ponto, temos que admitir que,
independente da finalidade apontada pelos pesquisados, todas elas buscam explorar algum
aspecto relativo à aula e aos seus sujeitos, seja o estudante ou o professor, mobilizando ambos
os lados. Podemos afirmar, também, que das oito características apontadas no quadro um (01),
apenas um pesquisado afirma que não faz uso desse “produto cultural” (FERRO, 2010;
FONSECA, 2012; CARMO, 2012), cinema para tratar do ensino de História na escola.

Assim, no estudo realizado junto aos professores, constataram-se alguns dados


peculiares como, por exemplo, o caráter apontado pelos professores ao utilizar as mídias
cinemáticas nas aulas de História. Sobre essas, os professores apontaram alguns aspectos,
conforme podemos perceber no organograma a seguir:

Quadro 2: Caráter apontado pelos professores sobre as mídias cinemáticas em História.

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Fonte: Dados organizados pelos pesquisadores

Ao analisarmos o quadro acima, percebemos que os professores pesquisados, cada qual


com sua concepção da mídia cinemática, infligem um caráter específico à mesma, totalizando,
após análise do material empírico, seis principais que se relacionam entre si. Não é foco deste
trabalho deter-se em cada uma separadamente, mas sim explanar/expor essas características ao
leitor.

Sob essa ótica, podemos salientar que a utilização das mídias cinemáticas na qualidade
de abordagem dos conteúdos históricos pode despertar nos estudantes, segundo os
investigados, um olhar profundo e analítico de todos os aspectos que compõem o filme,
incluindo sua produção. De acordo com uma das professoras pesquisadas, o cinema é:

Sem dúvida alguma [...] uma ótima abordagem, não só pelo conteúdo do
filme, mas também por despertar nos alunos um olhar mais profundo,
analisando todos os aspectos que envolvem o contexto de pré-produção,
produção e pós-produção de um filme, como a direção, a luz, a fotografia, os
diálogos, os cenários, o contexto em que a obra fílmica foi produzida, a
recepção do público e tantos outros significados e informações que a mídia
cinematográfica carrega. (Professora da Escola Municipal Altamir de Lacerda
do Nascimento, setembro 2014).

A professora pesquisada sintetiza a concepção de alguns dos professores pesquisados


em que o filme é visto como uma ótima abordagem, não apenas pelo conteúdo, mas, também,

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por despertar nos alunos um olhar mais profundo, analisando a época em que o filme foi
produzido, a direção, luz e tantos outros elementos que a mídia fílmica traz.

Outra categoria, a mídia cinemática como ferramenta didática e/ou recurso didático
corresponde aqueles professores que compreendem a mídia cinemática como um instrumento,
isto é, um material que auxilia no processo de desenvolvimento do trabalho pedagógico
docente, gerando aprendizagens aos estudantes em sala de aula. A utilização das mídias
cinemáticas, como ferramenta didática, evidencia uma “estratégia” de utilização do cinema em
sala de aula. De acordo com um dos professores pesquisados, o filme é concebido como:
“ferramentas que tornam as aulas de História mais didáticas e animadas” (Professor da
Escola Municipal de Ensino Fundamental João de Oliveira Martins). Nessa perspectiva, o filme
como “ferramenta didática” é um meio de trabalhar os conteúdos históricos de forma que o
mesmo possa contribuir para o aprimoramento da prática pedagógica, favorecendo e
estimulando o processo de ensino-aprendizagem por meio da promoção de debates e reflexões
organizadas sobre o conhecimento da História.

Dentre às seis categorias pontuadas no quadro acima, a que mais nos chama a atenção
é o binômio caracterizado pela fonte/conteúdo. Essa dimensão, que um único professor atribuiu
à mídia cinemática, reconhece que o filme é o próprio conteúdo, representa não apenas uma
maneira de conceber o filme, mas também de analisar o conteúdo histórico veiculado por esse
“produto cultural” (FERRO, 2010; FONSECA, 2012; CARMO, 2012). Nesse sentido, quando
o professor assevera que o filme é o próprio conteúdo, ele destaca a possibilidade de análise do
material fílmico em relação à História. A Fonte/Conteúdo denota uma característica peculiar.
Uma característica dada ao cinema como fonte da História, e como tal possui suas verdades e
inverdades, precisa ser analisada e refletida sob a égide de um contexto histórico, de uma
linguagem própria, com suas formas, seções e o contexto em que a obra fílmica foi produzida,
cenários, enredo, ideia do autor e do produtor, visto que o filme é produzido num coletivo e
numa determinada época até chegar aos telespectadores que são os receptores do filme pronto.

Essa materialidade da obra fílmica denota o trabalho árduo do professor que se dispõe
a trabalhar com filmes em sala de aula como fonte para o ensino de História e reflete na sua
prática uma conotação intrínseca que necessita de uma análise da conjuntura do filme

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produzido. Lembremo-nos dos ensinamentos de Ferro (2010) quanto às possibilidades de


análise de um filme: do visível, dos silenciamentos, do não dito, dos distanciamentos do
passado, que podem revelar uma nova maneira de conceber a História, etc. Nessa perspectiva
– do filme como fonte – desvela-se uma possibilidade de trabalho e de análise do discurso
veiculado na obra fílmica. De acordo com Ferro (2010), a análise do filme deve

[...] partir da imagem, das imagens. Não buscar nelas somente ilustração,
confirmação ou desmentido do outro saber que é o da tradição escrita.
Considerar imagens como tais, com o risco de apelar para outros saberes para
melhor compreendê-las. Os historiadores já recolocaram em seu lugar
legítimo as fontes de origem popular, primeiro as escritas, depois as não-
escritas: o folclore, as artes e as tradições populares. Resta agora estudar o
filme, associá-lo com o mundo que o produz. (FERRO, 2010, p. 86).

Associar as mídias cinemáticas ao contexto em que foi produzida a narrativa é analisar


a obra cinematográfica desde o seu princípio de criação. A tarefa do professor de História, mas
não apenas deste, é orientar e expandir os horizontes de análise dos seus estudantes, com vistas
à promoção da crítica reflexiva, problematizando a veracidade dos fatos propagados pelas
mídias cinemáticas e o conteúdo veiculado nessas obras. As mídias cinemáticas, vistas como
fonte de estudo, estimulam a disseminação de informações, saberes e conhecimentos da
História.

Algumas ponderações conclusivas sobre o processo

No que tange a utilização das mídias cinemáticas em sala de aula pelos professores,
quase 100% afirmou fazer uso da mesma e percebemos que a utilização deste “produto
cultural” (FERRO, 2010; FONSECA, 2012; CARMO, 2012) é considerada valiosa quando
utilizada com propósitos definidos pelo docente. Um dos aspectos que merece destaque neste
trabalho refere-se a sua finalidade de utilização, sendo unânime a intenção em proporcionar
aos estudantes uma significação do conteúdo através da estimulação, da reflexão e socialização
entre os colegas dentro da sala de aula.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Além disso, constatamos que as mídias cinemáticas, para os investigados, envolvem


diversos elementos que necessitam ser explorados e discutidos desde a produção passando pelo
cenário, enredo, pelos personagens, pela trilha sonora, pelas imagens em movimento, enfim,
todo esse processo que compõe a obra fílmica desdobra na compreensão de determinados
temas. Segundo os professores, a abordagem da história pelo cinema em sala de aula acaba
tornando a aprendizagem dos estudantes significativa, prazerosa e, conforme destacou Carmo
(2012), tem a função de expandir os horizontes dos alunos também.

Referências

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução: Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro.
São Paulo: Edições 70, 2012.
CARMO, Leonardo Cesar do. O cinema do feitiço contra o feiticeiro. Cinema de Massa e
Crítica da Sociedade. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2012.
CITELLI, Adilson. Comunicação e educação: a linguagem em movimento. 3. ed. São Paulo:
SENAC, 2004.
FERRO, Marc. Cinema e História. Tradução: Flávia Nascimento. São Paulo: Paz & Terra,
2010.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e Prática de Ensino de História. Campinas: Papirus,
2012.
FLICK, Uwe. Uma introdução a pesquisa qualitativa. São Paulo: Bookman; Artmed, 2009.
SOARES, Luiz Paulo da Silva.; CHAIGAR, Vânia Alves Martins. A Mídia Cinemática sob a
ótica docente: Um estudo sobre o ensino de História na cidade do Rio Grande/RS. Revista
Diálogo Educacional, v. 19, p. 1596-1615, 2019. Disponível em: . Acesso em 29 jul. 2020.
SOARES, Luiz Paulo da Silva. Cartografando Experiências no Ensino de História: A Mídia
Cinemática como Fonte Educativa em Sala de Aula. Dissertação (Mestrado em Educação)
Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGEdu – Universidade Federal do Rio Grande
– FURG, Rio Grande, 2017.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

“JURUTI VELHO ERA TERRA DA FARTURA, MUITO PEIXE,


MUITA CAÇA, EU AINDA VI MUITA FARTURA AQUI NESSE RIO”:
impactos da implantação da mineradora ALCOA em Juruti Velho.

MAIARA ANDRADE PAES


Universidade do Estado do Amazonas. Graduanda. Bolsista PAIC UEA /FAPEAM
map.his18@uea.edu.br
Resumo

O objetivo da pesquisa foi evidenciar os impactos sentidos pelas comunidades tradicionais com
a inserção da mineração na Amazônia especificamente no Lago Grande Juruti Velho na região
oeste do estado do Pará no Baixo-Amazonas através da perspectiva das mulheres moradoras
da região levantando os principais problemas decorrentes da atividade da mineradora ALCOA.
Situada na História Social, a pesquisa adentra nas vivências, experiências e modos de vidas de
sujeitos sociais afetados por esta atividade econômica. A metodologia empregada foi a História
Oral através de entrevistas com as trabalhadoras/moradoras de comunidades. Ao atribuírem
significados às suas memórias, suas narrativas orais evidenciam diversas problemáticas
presentes em seus contextos de vida como a poluição sonora causada pelos trens que passam
pela estrada de ferro construída para o transporte da bauxita, bem como os ruídos das máquinas.
Há, também, a preocupação com a contaminação da água do Lago Grande Juruti Velho e,
principalmente, o medo de que o rio morra com a quebra da barragem de detritos da empresa.

Palavras-chave: Juruti Velho; ALCOA; comunidades tradicionais

Introdução

O Lago Grande Juruti Velho fica localizado no oeste do estado do Pará (Baixo
Amazonas) e em seu entorno habitam várias comunidades tradicionais. É uma região rica em
minérios, especificamente a bauxita, e por essa razão a empresa ALCOA (Aluminum Company
of America) escolheu seu território para exploração. Em 2006, a empresa foi implantada e
iniciou suas atividades, em meio a esse cenário, os moradores tiveram que se adaptar com as
mudanças que sua chegada causou. A memória desses moradores tem grande importância para

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

evidenciar como a mineração se insere na Amazônia e como impacta na vida das comunidades
tradicionais, visto que segundo Lindomar Silva:

Uma grande mineradora ao implantar-se em um determinado território


impacta diretamente nas comunidades tradicionais [...] que organizam sua
vida tendo áreas de uso comum, voltadas para o extrativismo, a pesca, a
agricultura familiar e o pastoreio (SILVA)

As vozes das trabalhadoras rurais que vivem cotidianamente essa realidade evidenciam,
segundo suas perspectivas, a forma que esses impactos socioambientais afetaram a região.
O recorte espacial delimitado para a pesquisa foram 6 comunidades tradicionais do
entorno do Lago Grande Juruti Velho, que incluem as mais afastadas da sede da ALCOA como
Bom Jesus, Santo Antônio-Ingracia, Vila Muirapinima e Vila Vinente, como também as mais
próximas como Monte Sinai Católica e o Prudente. O recorte temporal escolhido abrange desde
da implantação da empresa em 2006 até os tempos atuais em que foram realizadas as entrevistas
nas comunidades. O objetivo norteador da pesquisa é analisar os impactos das atividades de
mineração da ALCOA através das narrativas orais de mulheres das comunidades da região.
A pesquisa situa-se no campo da História Social e da História vista de baixo, visto que
procura evidenciar as práticas, vivências, experiências e interpretações de sujeitos históricos
subalternos e dissidentes em relação à formação de uma memória hegemônica (WILLIANS,
1979) constituída na Amazônia que privilegia projetos econômicos para o “desenvolvimento”
e “progresso” da região.
A metodologia de pesquisa usada é a História Oral, no qual consistiu em utilizar de
instrumentos audiovisuais para realizar as entrevistas com as trabalhadoras/moradoras das
comunidades rurais da região do Juruti Velho. A História Oral para Alessandro Portelli “é uma
ciência e arte do indivíduo”, visto que, a partir desta metodologia o historiador penetra em
padrões culturais hegemônicos, estruturas sociais e processos históricos, que por meio do
diálogo com o seu entrevistado sobre suas experiências e memórias individuais, evidenciam os
impactos que estas tiveram em suas vidas (PORTELLI, 1997, p. 15). Segundo Jacques Le Goff
(1990, p. 424), a memória “[...] remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções
psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

ele representa como passadas”. Através das narrativas orais das moradoras, é visto a forma com
que a ALCOA se inseriu em suas vidas e como elas atribuem significados às suas memórias e
experiências individuais a partir dos impactos que a empresa causou na região. As mulheres
com quem dialogamos tem entre 32 e 63 anos e são agricultoras, pescadoras ou aposentadas.

Os impactos da mineradora ALCOA segundo a perspectiva das moradoras

Ao realizar as entrevistas, as problemáticas levantadas pelas moradoras foram


diversas. Percebe-se que os conflitos tendem a se acirrar quanto mais próximo à distância entre
comunidade e a sede da mineradora. Segundo Elaine Archanjo, “a implantação de grandes
projetos na Região Amazônica, sob a ideologia do ‘vazio demográfico’, tornou-se marco nas
transformações ocorridas nas vidas das populações locais, indígenas e negras” (ARCHANJO,
2015, p. 36). Os geógrafos Marciclei Silva e Reinaldo Costa falam da importância de analisar
a relação entre natureza e sociedade em uma Juruti capitaneada pela mineração, visto que, os
impactos trazidos com a implantação da ALCOA não são somente de cunho econômico, mas
também social. (SILVA; COSTA, 2015, p. 805).

O impacto mais levantado pelas moradoras foi a contaminação da água, segundo narra
Lidiane de Oliveira Cruz da Vila Muirapinima que nos diz: “os malefícios hoje é a poluição
dos rios, [...] a coloração da água mudô, hoje você não pode mais tomar água do rio [...]”. Nas
comunidades, a água era consumida diretamente do rio, mas ao continuar o seu uso surgiu
problemas de saúde nos moradores, disso partiu a necessidade de reivindicar a água potável e
a construção de um microssistema de tratamento de água para as comunidades. A dona Maria
da Saúde Sadi Souza da comunidade Monte Sinai Católico diz que: “A gente ajuda no diesel
pra puxar a água encanada daí porque essa água aí já tá um pouco meio poluída”. A moradora
Sandra Alves da Silva da comunidade Bom Jesus enfatiza: “A gente começou a sentir depois
problema de diarreia, vômito, depois da chegada dela”. Para Sandra, os moradores tiveram
complicações após a chegada da ALCOA. Os comunitários já solicitarem que profissionais
especializados da empresa fossem averiguar se há risco de contaminação grave da água, mas
não receberam resposta:

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

É, recente eu fiz té um documento e mandei pra lá e eles [ALCOA] falaram


que não, que não tem poluição, não tem modificação de...de químicos né, mas
a gente tem nossas dúvidas né porque várias comunidades aí que tomam água
já sentiram bastante (Lidiane Gomes de Souza, 34 anos, Vila Muirapinima).

A privatização de locais onde antes se praticava o extrativismo é umas das questões


levantadas pela pescadora Devanir Alves de Souza e Souza da comunidade Bom Jesus que diz
que “a castanha pra gente comprar é difícil já, paneiro, cipó, assim já muito difícil pra gente
comprar, se tornou mais caro, porque lá pros lugares onde eles tiravam foi lá que foi atingido
pela mineradora, aí ficou muito difícil mesmo, castanha ficou muito difícil”.
A caça de subsistência sempre foi uma prática tradicional para os moradores, mas
segundo as narrativas orais se “perdeu com o tempo”. Como aponta a agricultora Crisvalda
Batista Lopes da comunidade Monte Sinai Católica:

Era muito bom aqui, quando me entendi nesse mundo, Juruti Velho era terra
da fartura, muito peixe, muita caça, eu ainda vi muita fartura aqui nesse rio.
[...] Caça não se vê, é muito difícil, antes era muito bom mas depois que essa
empresa entrou aí, eu acho que foi uma coisa muito ridícula (Crisvalda Batista
Lopes).

Quando a gente cheguemo aqui era bom, porque nós tinha peixe, fartura. Meu
marido pegava peixe com fartura, caça também era com fartura meu filhos
ele, tudo caçava e matava mesmo, difícil eles saírem de uma caçada que eles
não chegassem com caça. Hoje em dia nós passa... quando ele vai pra várzea
nós come quando ele não vai não tem... porque não tem como pegar coloca
malhadeira e não pega nada vai pro mato e não pegam nada também, e aí o
que a gente faz? Fica passando fome né passa fome, porque de antes essas
matas eram todas grandes era mata mesmo e hoje em dia não. Você anda
nessa estrada aqui é só aquele rebolado daquela capoeirinha baixa que tem já
é mais esse lavradão que tem e ficou muito ruim pra nós que mora aqui todo
esse tempo aqui fica muito ruim pra nós (Maria da Saúde Sadi Souza, 53 anos,
comunidade Monte Sinai Católico)

Com tantos impactos no histórico de Juruti Velho recorrentes de exploração da região,


seja pela implantação da mineradora, pesca comercial ou desmatamento, uma das
consequências sentidas no presente pelos comunitários é a fome devido à impossibilidade de
caça ou a escassez da pesca. Lindomar Silva, chama de ‘desterritorialização’ as consequências
da imposição de grupos econômicos hegemônicos, que não consideram e nem respeitam as
formas de utilizar os recursos naturais pela agricultura familiar, das comunidades tradicionais

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e povos indígenas, e em decorrência ameaça aos modos de vida e a sobrevivência destes, como
a fome enfatizada pela Maria da Saúde. Essas ações que impactam os moradores são
legitimadas pelo Estado e pelos meios de comunicação (SILVA, 2009, p. 3-4). A pesca, caça e
outras práticas tradicionais que os alimentam são passadas de geração para geração em Juruti
Velho como narrado por Maria da Saúde ao citar seu marido e filhos. Thompson explica que:

Com a transmissão dessas técnicas particulares, dá-se igualdade a transmissão


de experiência sociais ou da sabedoria comum da coletividade [...]. As
tradições se perpetuam em grande parte mediante a transmissão oral, com seu
repertório de anedotas e narrativas exemplares (THOMPSON, 1998, p. 17-
18).

Outra questão levantada pelas moradoras das comunidades do entorno do Lago foi a
proliferação de insetos que evidenciam o desmatamento na região. Dona Crisvalda narra como
era no tempo em que seus pais eram vivos comparando com os dias de hoje:

No verão há muita perseguição de meruim [...] antes você dormia a noite por
baixo das ramas, que eu me lembro bem na época do meu pai quando era
muito quente, ‘umbora’ dormir debaixo da rameira que tá bonito muito a noite
muito linda (Crisvalda Batista Lopes).

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Em sua fala percebe-se uma mudança nas práticas sociais do passado comparados ao
do presente na relação com a natureza. Para ela e seus pais era comum usar da estratégia de
dormir fora para suportar o calor no período do verão, mas hoje não é mais possível por causa
dos insetos. Segundo dona Crisvalda, seus vizinhos e moradores da comunidade Prudente
também reclamam: “à noite, as comunidades vizinhas, aqui em Prudente, passam a noite toda
sem poder dormir com tanto carapanã”. A proliferação dos insetos está ligada diretamente ao
desmatamento.
A poluição sonora também é uma consequência da atividade de mineração devido à
Estrada de Ferro, que foi construída exclusivamente para transportar bauxita de Juruti Velho
até o porto da empresa que fica no município de Juruti. Para Cenira Camarão, o barulho foi
naturalizado durante esses anos e é o menor dos problemas: “a gente ouve barulho do trem a
modo que tá aqui pertinho mas é leve, de madrugada eu acordo e o trenzão tá aí, não é um
medo é uma alegria fica aquele barulhão né. Agora o medo só é da nossa água”.
Dona Cenira, e outras moradoras como dona Rosinete Prata, relatam que o medo a
respeito da água não é somente pela poluição, mas o medo por possível rompimento da bacia
de barragem da empresa.

A única preocupação que todo mundo tem, né, assim é sobre essa barragem
quando ela chegar a estourar aí. E esses daqui teve uns tempo mana que esses
meus filhos aqui não dormiam não. Ficaram muito com medo que não
estourou aquela barragem pra lá pra banda de Brumadinho, eles ficavam
muito com medo e eles não dormiam “Ai meu Deus” “ mas o que é?” aí
começavam a chorar dizendo “não mamãe, e se a barragem daí chegar a
estourar” “ minha filha só Deus pode livrar nós porque outro mais só...” né,
aí acho que é uma preocupação de todo mundo aí da região, todo mundo
(Rosinete Prata, 39 anos, comunidade Prudente).

Diante das notícias que são conhecedoras sobre a tragédia que ocorreu em Brumadinho
em que rompeu a barragem com rejeitos da mineradora Vale, o temor e a insegurança se tornam
recorrentes, principalmente quando chove.

Quando começa a chover é chuva chuva, aí quando é tempo de chuva é uma


preocupação da gente daqui porque a gente vive aqui embaixo e lá é em cima
né, qualquer hora e momento ela tá estourando porque ela já tava começando
a esgotar (Rosinete Prata, 39 anos, comunidade Prudente).

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Isso nos leva a uma reflexão sobre as narrativas orais das moradoras ao mencionaram
a violência psicológica sofrida por elas, seus filhos e filhas, que vivem na incerteza de
segurança de vida, do rio e de suas moradias. Os moradores já solicitaram para que a empresa
levasse técnicos especializados para diagnosticarem a situação da bacia, como também os
mesmos já foram através das representantes das comunidades para observar pessoalmente, mas
segundo os mesmos, não tinham o conhecimento para tirar suas próprias conclusões. E para
Canto, a “instalação dos equipamentos para exploração e processamento do minério, próximo
à borda do Lago, afeta e põe em risco a organização territorial das comunidades do Lago e,
inclusive, poderá ameaçar as suas existências”. (CANTO, 2008, p. 253).

Conclusão
Os impactos recorrentes da atividade mineradora na vida das moradoras foram: a
impossibilidade de caçar para consumo próprio e familiar em territórios que foram
privatizados, logo, proibidos. A proliferação de insetos devido o desmatamento na serra, a
perda de qualidade da água e a poluição sonora já naturalizada pelas moradoras.
As transformações ocorridas nas vidas das moradoras/trabalhadoras das comunidades
do Lago Grande de Juruti Velho desde da implantação da empresa de exploração de bauxita
ALCOA até os dias atuais, demonstram o quanto são afetadas as populações tradicionais da
Amazônia com mito do “progresso” imposto pelo poder político e econômico. Antes um Juruti
Velho com muitas riquezas, mas hoje possui uma população que passa fome e que vive com o
medo e a incerteza de que seu rio morra com o rompimento da barragem da empresa ALCOA.
Tais narrativas, nos levam a refletir como a inserção do capitalismo na Amazônia, que não
somente afeta a natureza, mas todo o meio, como os povos tradicionais, sua organização social,
econômica, que ameaça as suas existências e moradias.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Referências

ARCHANJO, Elaine Cristina O. F. Oriximiná terra de negros: trabalho, cultura e lutas de


quilombolas de Boa Vista (1980-2013). Dissertação (Mestrado em História Social).
Universidade Federal do Amazonas. 2015.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão ... [et al.] -- Campinas,
SP Editora da UNICAMP, 1990.
PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na História Oral. A pesquisa como um
experimento em igualdade. In: Projeto História. São Paulo. n. 14. Fev/97
SILVA, Lindomar. Natureza capitalista versus natureza orgânica: O advento da ALCOA e
a mobilização e organização das comunidades de Juruti no Baixo-Amazonas paraense. Tese
(Desenvolvimento Rural). Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRS. 2012.
SILVA, Lindomar. Organização E Mobilização Das Comunidades Contra Grandes
Projetos Na Amazônia: O Caso De Juruti Velho.
Tapajós, Marlon Aurélio; de Sales Belo, Patrícia. Grandes projetos minerários e
comunidades tradicionais na Amazônia: impactos e perspectivas. Revista de Políticas
Públicas, vol. 13, núm. 2, julio-diciembre, 2009, pp. 265-277.
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Companhia das Letras. 1998.
WILLIANS, Raymond. O campo e a cidade: Na história e na literatura. São Paulo: Companhia
das Letras. 2011.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

RESULTADOS PARCIAIS SOBRE “PATRIMÔNIO DOCUMENTAL”


NAS “MENSAGENS DOS GOVERNADORES À ASSEMBLEIA
LEGISLATIVA DO AMAZONAS” ENTRE 1889 E 1937

MARCELO PASSOS DA COSTA JUNIOR


Universidade Federal do Amazonas, Graduando
mpcosta93@gmail.com

Resumo
Pretende-se nesta comunicação apresentar os resultados preliminares do projeto “Mensagens
dos Governadores à Assembleia legislativa do Amazonas: análise histórica e arquivística”,
coordenado pelo professor Leandro Coelho de Aguiar, realizado entre 2019 e 2020 com bolsa
na modalidade PIBIC UFAM.

O projeto iniciou em 2018, com outra bolsista, onde foi realizado o levantamento das
instituições de custódia de acervos documentais históricos no Amazonas responsáveis pela
guarda de tal acervo. Em 2019, renovado o projeto, iniciou-se a identificação das “mensagens”,
da organização de seu arranjo, situação de preservação e acesso. Ainda nessa etapa, efetuou-se
a leitura do conteúdo das falas que envolvem a concepção de “patrimônio documental”,
principalmente buscando os termos “Archivo”, “Archivo público”, “Archivista”, “Biblioteca
pública”, “Museu” e “Instituto geográfico e histórico”. Cabe ressaltar que neste momento do
projeto, devido ao tamanho do acervo, a análise restringiu-se ao Museu Amazônico da UFAM.

Assim sendo, o foco desta comunicação será apresentar os resultados preliminares do


levantamento realizado no Museu Amazônico da UFAM, assim como a organização de seus
respectivos arranjos, preservação e acesso. Por fim, será apresentado resultados parciais acerca
do levantamento da leitura e busca dos termos descritos acima.

Palavras-chave: História e Arquivologia; História das instituições e acervos; História,


Arquivos e Sociedade

Introdução

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
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A forma burocrática na qual a sociedade se organiza tem por resultado a produção de


uma vasta gama de documentos, os quais, segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia
Arquivística (2005), são denominados como a “unidade de registro de informações, qualquer
que seja o suporte ou formato”. Tais documentos possuem diversos aspectos, sendo um deles
o aspecto histórico-social, o qual, servindo de comprovante histórico dos atos de uma
determinada sociedade, são distinguidos como patrimônio documental.

Inexistindo uma definição do termo patrimônio documental no Dicionário Brasileiro de


Terminologia Arquivística e, sabendo-se que patrimônio material abrange elementos dos quais
fazem parte tanto o patrimônio documental quanto o patrimônio arquivístico (RODRIGUES,
2016, p. 111), utilizou-se a definição de patrimônio arquivístico do Arquivo Nacional (2005),
o qual define-o como “conjunto dos arquivos de valor permanente, públicos ou privados,
existentes no âmbito de uma nação, de um estado ou município”. (ARQUIVO NACIONAL,
2005, p. 130). Dessa forma, permite-se inferir que Patrimônio Documental vem a ser o conjunto
de documentos que, independente da natureza do suporte e da informação, possui valores
concernentes à memória social de determinada nação, Estado ou município.

Ainda sobre Patrimônio Documental, para Merlo e Konrad (2015) patrimônio


documental pode ser visto como “[…] um capital da sociedade, de que o Estado possui a guarda
[...]”. (MERLO E KONRAD, 2015, p. 36). Segundo essa concepção, tal patrimônio diz respeito
à sociedade estando tão somente sobre a tutela do Estado através das instituições que o
gerenciam, em algumas das quais se encontram o material de estudo desta pesquisa.

Mensagens dos Governadores: Patrimônio Documental de memória social

Situando-se sobre uma definição do que venha a ser Patrimônio Documental, é


necessário que, além do entendimento sobre o valor de tal patrimônio documental para a
sociedade, sejam aplicados processos de preservação para que, em condições adequadas, seja

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disponibilizado o acesso à tais informações que, por sua natureza, são de extrema relevância
para a reconstrução da memória social.

Para Ana Celeste Indolfo (2007), “[…] os documentos serviram e servem tanto para a
comprovação dos direitos e para o exercício do poder, como para o registro de memória”
(INDOLFO, 2007, p. 29). Uma vez que tal patrimônio de cunho social possui finalidades de
âmbito jurídico para, como citado anteriormente, a comprovação de direitos e histórico para a
memória de determinado estado social, percebe-se a importância de aplicar as melhores
práticas de preservação e acondicionamento dos mesmos.

Em se tratando da preservação voltada ao Estado do Amazonas, é relevante que se


reforce a aplicação de tais práticas de conservação, pois, sendo um dos Estados mais distantes
da concentração de maior população ao Sul do país, possui dificuldades particulares por conta
de toda influência externa que tais acervos recebem, assim como possui riquezas em suas
narrativas da administração pública em seus registros, como percebidos nas mensagens dos
governadores descritas nesta pesquisa.

Em seus estudos, José Maria Jardim (1995) reúne conceitos diversos sobre a construção
da memória nos arquivos públicos e, em determinado momento, cita que “[…] desde a mais
alta Antigüidade, o homem demonstrou a necessidade de conservar sua própria ‘memória’
inicialmente sob a forma oral, depois sob a forma de graffiti e desenhos [...]” (LODOLINI,
1990, p. 157, apud JARDIM, 1995, p. 4). Dessa forma, percebe-se que a memória de
determinado grupo social fora registrada em diversos suportes ao longo da história humana.

No que concerne a esta pesquisa, as Mensagens dos Governadores como patrimônio


documental servem como registro histórico de atos governamentais em determinado período
no Estado do Amazonas, o que contribui para a construção da identidade desta população,
como citado por Pereira (2011):

[…] Visto que os documentos são uma forma de expressão da memória, então
os arquivos são os detentores da memória individual e coletiva, servindo de
suporte para a constituição da história das instituições e da identidade de um
determinado povo. (PEREIRA, 2011, p. 24, apud MERLO; KONRAD, 2015,
p. 35)

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Sendo assim, o material de estudo desta pesquisa, tendo sido gerado por atos do poder
público em diferentes gestões do governo, estando sob a guarda de instituições como o Museu
Amazônico da UFAM e o Arquivo Público do Estado do Amazonas - APEAM, se caracteriza
como um patrimônio documental que constitui a memória coletiva do povo do Estado do
Amazonas. Tal material permite com que os indivíduos de tal sociedade possam “rememorar
sua história” (MERLO e KONRAD, 2015, p. 31), pois as mensagens possuem diversos
assuntos no que tange ao poder público, como saneamento, instituições de ensino, saúde,
segurança, finanças, casos particulares que mereciam atenção em determinadas épocas, assim
como as próprias instituições de Arquivo e Biblioteca Pública do Estado. Porém, para que tal
memória não se perca, ou seja facilmente reprimida, é necessário que haja esforços na difusão
de tal patrimônio documental. Surge, então, a necessidade de difusão de tal patrimônio, em
específico, a difusão editorial, por se tratar do que objetiva esta pesquisa.

As publicações merecem uma consideração à parte. Elas são canais


comunicantes com o exterior, pois levam à comunidade, à administração e ao
meio acadêmico informações sobre o conteúdo do acervo documental, das
atividades e dos programas do arquivo. Com as publicações, o arquivo pode,
por outro lado, atrair novos usuários e fazê-los compreender o que é e o que
representa. (BELLOTTO, 2006, p. 229, apud, PRADE E PEREZ, 2017, p.
244)

Percebe-se que a difusão do patrimônio documental viabiliza benefícios tanto para a


instituição detentora da guarda do acervo quanto para o cidadão, pois permite a consulta de
informações de forma remota e auxilia na economia de tempo, tanto para a instituição quanto
para o usuário (PRADE e PEREZ, 2017, p. 244). Dessa forma, justifica-se a importância dos
resultados desta pesquisa, pois, além de reunirem informações sobre a localização de objetos
que possuem características de memória social, reafirmam a possibilidade de acesso ao
patrimônio documental analisado, garantindo benefícios para a sociedade e aos demais
pesquisadores, e iniciam um processo de difusão do mesmo.

Metodologia

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

A realização desta pesquisa teve início com o levantamento das mensagens dos
governadores as quais se dividiram entre os locais de pesquisa, como pode ser visualizado na
tabela abaixo apresentada por Rosangela Oliveira França no CONIC UFAM 2019:

Tabela 1. Locais de pesquisa


Instituições Pesquisadas Tipo da Pesquisa Encontrados Quantidade e periodicidade
Biblioteca Pública do 62 publicações (1950 a
Pesquisa in loco Sim
Amazonas 2016)
Biblioteca Mario Ypiranga
(Centro Cultural Povos da Pesquisa in loco Sim 15 livros (1901 a 1975)
Amazônia)
Biblioteca Arthur Reis (Centro
Pesquisa in loco Sim 12 livros (1898 a 1974)
Cultural Povos da Amazônia)
Arquivo Público do Estado do 6,8 metros lineares (1889 a
Pesquisa in loco Sim
Amazonas (APEAM) 2016)
Instituto Geográfico e Histórico
Pesquisa in loco Sim 7 caixas box (1915 a 1996)
do Amazonas (IGHA)
10 mil imagens (1891 a
Center For Research Libraries Pesquisa no site Sim
1930)
150 mensagens (1889 a
Museu Amazônico Pesquisa in loco Sim 1950)*
(ainda não finalizada)
Arquivo Nacional Pesquisa no site Não
Fonte: Apresentação de Rosangela Oliveira França no CONIC UFAM, 2019.

Com as informações de quais instituições de custódia teriam as mensagens e escolhido


o Museu Amazônico da UFAM para iniciar a segunda etapa, teve início a leitura e análise do
material. Nesta etapa, foi possível identificar e quantificar as mensagens que poderiam conter
“apenas mensagem”, “apenas relatório” ou “mensagem e relatório juntos”. Também foram
identificados os termos de interesse desta pesquisa e preencheram o formulário com os dados
obtidos, os quais foram: “Archivo”, “Archivo público”, “Archivista”, “Biblioteca pública”,
“Museu” e “Instituto Geográfico e Histórico”.

Durante o processo de obtenção dos dados foram encontradas dificuldades quanto ao


manuseio de certos documentos, os quais, devido ao estado em que se encontravam, não fora
possível analisá-los corretamente. Em outros documentos faltavam quantidades relevantes de
páginas, não sendo possível identificar se se tratava de uma mensagem e relatório no qual
extraviou-se a mensagem ou se era apenas um relatório faltando as primeiras páginas.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

No Museu Amazônico da UFAM haviam mensagens tanto no suporte de papel quanto


no de microfilme, os quais se complementam, uma vez que, inexistindo o documento físico,
um rolo de microfilme abrigava cerca de 3 (três) cartas dos governadores.

Verificou-se também a dificuldade que surgiu em determinar o estado de conservação


de alguns documentos, tendo em vista que os fatores de deterioração do documento variam
desde um rasgo em algumas páginas até o estado quebradiço das folhas e, nos formatos digitais,
a qualidade das imagens. Devido à natureza das dificuldades encontradas, foi requerido da
equipe maior atenção em tais documentos ou em partes dos documentos para descrevê-los da
forma correta.

Resultado do tipo de conteúdo encontrado nas mensagens

Através dos dados obtidos até o momento desta publicação, foi possível identificar com
clareza as mensagens dos governadores, em suporte de papel e microfilme, que estão sobre a
guarda do Museu Amazônico da UFAM. Tais mensagens se encontram em um estado de
conservação regular no geral. Devido ao progresso atual em que se encontra a análise dos
termos descritos nas mensagens dos governadores em suporte de papel do Museu Amazônico
da UFAM, as tabelas foram separadas entre quantitativa para as em suporte de microfilme
(Tabela 2), a qual apresenta o total de termos encontrados, e qualitativa para as de suporte em
papel (Tabela 3., em apêndice), focada mais na comunicação do tipo de conteúdo de tais
mensagens, podendo ser: 1) mensagem e relatório juntos; 2) apenas relatório; 3) apenas
mensagem.

Durante a pesquisa, foram encontradas variações dos termos que refletem a evolução
linguística do português, tais como Archivista, Arquivista, Bibliothecário (a), Muzeu, Muzeo
e, por se tratar de um termo antigo para denominar a função que seria ocupada pelo futuro
arquivista, Amanuense.

Tabela 2. Termos encontrados em microfilme no Museu Amazônico da UFAM


Termos Pesquisados Quantidade
Arquivo 42
Archivo 95
Archivista 6

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Arquivista 3
Biblioteca 92
Bibliotheca 102
Bibliotecário (a) 5
Bibliothecário (a) 0
Museu 19
Muzeu 0
Muzeo 0
IGHA 3
Amanuense 9
Fonte: Dos dados coletados pelo próprio autor.

Considerações Finais

Tendo em vista a difusão de tal tipo de informação para a construção da memória social
do Estado do Amazonas, exposta através das mensagens analisadas nos acervos do Museu
Amazônico da UFAM, no Arquivo Público do Estado do Amazonas (APEAM), no Center for
Research Libraries – Digital Delivery System, Biblioteca Pública do Amazonas, Biblioteca
Mario Ypiranga (Centro Cultural Povos da Amazônia), Biblioteca Arthur Reis (Centro Cultural
Povos da Amazônia), Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA) e Arquivo
Nacional (site), os resultados parciais desta pesquisa possuem potencial para auxiliar
pesquisadores que abordam temas aos quais possam recorrer ao produto final deste projeto de
pesquisa, a fim de encontrar de forma rápida a existência, a localização e as condições em que
se encontram os documentos de que necessitem.

É relevante citar que os termos pesquisados são fontes preciosas na identificação da


forma como os Arquivos, Museus e Bibliotecas eram interpretados no decorrer da história do
Estado do Amazonas, podendo-se também identificar a trajetória de algumas destas instituições
que custodiam o patrimônio documental no Amazonas ao longo da história.

Em se tratando de um patrimônio documental de viés histórico, contendo a narrativa


dos atos executados em um certo período no Estado do Amazonas, percebe-se a relevância de
tal produto para a sociedade como todo, não apenas para os pesquisadores de história como
para os de arquivologia, ciências sociais e demais áreas.

Tendo em vista a extensão das mensagens e locais a serem analisados, este projeto dará
continuidade através do levantamento de mensagens existentes em outras instituições para,

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assim, ao final deste projeto, poder oferecer um instrumento de pesquisa eficaz que facilite o
desenvolvimento de outras pesquisas.

Referências

MERLO, Franciele; KONRAD, Glaucia Vieira Ramos. Documento, história e memória: a


importância da preservação do patrimônio documental para o acesso à informação.
Informação & informação, v. 20, n. 1, p. 26-42, 2015.
RODRIGUES, Márcia Carvalho. Patrimônio documental nacional. RDBCI: Revista Digital
De Biblioteconomia E Ciência Da Informação, v. 14, n. 1, p. 110-125, 2016.
PRADE, Aline Marcia; PEREZ, Carlos Blaya. A importância da gestão documental no
contexto do acesso aos documentos e difusão dos arquivos. ÁGORA: Arquivologia em
debate, v. 27, n. 54, p. 226-253, 2017.
JARDIM, José Maria; FONSECA, Odila Maria. A invenção da memória nos arquivos
públicos. Ciência da Informação, v. 25, n. 2, p. 1-13, 1995.
ARQUIVÍSTICA, DICIONÁRIO BRASILEIRO DE TERMINOLOGIA. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2005. Publicações Técnicas, v. 51, p. 175-178, 2019.
KRAMER, Gislaine Pinto; BERTOTTI, Valéria Raquel. O acesso à informação como fonte
de conhecimento e transparência pública a luz da lei nº 12.527/2011: o caso da Justiça Federal
da cidade do Rio Grande. Ágora: revista da Associação de Amigos do Arquivo Público do
Estado de Santa Catarina. Florianópolis. Vol. 25, n. 51 (jul./dez. 2015), p. 354-376, 2015.
Apêndice A – Tabela

Tabela 3. Tipo e Conservação das mensagens encontrados em papel no Museu Amazônico da UFAM
Descrição Tipo¹ Conservação²
0000.00.00 2 2
1897.00.00 2 2
1897.07.15 2 2
1897.09.01 2 2
1897.12.15 2 1
1898.01.01 ou
2 3
1898.00.00
1899.00.00 Em branco 3
1900.06.11 2 1
1900.06.11 2 1
1903.06.12 2 2
1903.06.12 2 1
1903.06.12 2 1
1903.07.10 3 2
1904.01.20 1 2
1905.04.15 1 1
1905.05.00 2 2
1911.05.08 1 2
1912.00.00 2 2

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

1916.11.09 2 3
1921.07.15 2 3
1927.00.00 2 1
1927.00.00 2 2
1927.06.05 2 1
1928.00.00 2 3
1930.00.00 2 2
1930.00.00 2 2
1930.12.20 2 2
1932.00.00 2 2
1936.00.00 2 1
1936.00.00 2 1
1936.01.20 2 1
1936.08.02 2 1
1938.00.00 2 1
1939.00.00 2 3
1940.00.00 2 3
1940.00.00 2 2
1940/1939 2 2
1941.00.00 2 3
1943/1942 2 1
1944.00.00 2 2
1946.00.00 2 1
1947.00.00 2 1
1948.00.00 2 1
1949.05.13 2 2
1951.05.14 2 1
1951.05.14 2 2
1952.00.00 2 1
1956.03.11 2 1
1964.03.15 1 1
1965.03.15 1 1
1965.03.15 1 1
1966.02.02 2 1
1967.03.02 1 1
1969.00.00 2 2
1971.02.00 2 1
1975.03.01 1 1
1979.00.00 2 1
1979.03.01 ou
1 1
1982.03.01
1980.03.01 1 1
1984.00.00 2 1
1990.03.14 2 1
Fonte: Dados coletados pelo próprio autor.
¹tipo: (1) mensagem e relatório juntos; (2) apenas relatório; (3) apenas mensagem.
²conservação: (1) ótimo; (2) regular; (3) péssimo.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

INTERAÇÕES SOCIAIS NA FRONTEIRA DAS TERRAS DO CABO


NORTE COM A GUIANA FRANCESA NO PERÍODO DA
CABANAGEM

MARIA IZETH BRAGA BELTRÃO


Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Mestranda

Resumo

A fronteira entre as Terras do Cabo Norte e a Guiana Francesa foi palco de litígios, tanto no
período colonial como após a independência. Tornou-se espaço de fugas e interações sociais
entre diferentes sujeitos que por ela transitavam, sobretudo durante os anos de 1835 e 1840 em
que ocorreu a Cabanagem na Província do Grão-Pará. Assim, este artigo analisa estudos sobre
esta região fronteiriça, entre o Brasil e França, com o objetivo de entendê-la enquanto espaço
social, onde sujeitos envolvidos nos conflitos e outros que não estavam diretamente ligados às
lutas cabanas desenvolveram sociabilidades, trocavam ideias, experiências e solidariedades, de
tal modo que conseguiam forjar estratégias de sobrevivência e resistência em meio a um
contexto de instabilidade política, econômica e social. Para isso utilizaremos pressupostos da
História Social e o conceito de Heterotopia desenvolvido por Michel Foucault buscando assim
identificar e analisar a agência de diferentes sujeitos nesta fronteira Franco-Brasileira no
primeiro quartel do século XIX.

Palavras-Chave: Fronteira; Interações sociais; Cabanagem.

Introdução

Desde os tempos coloniais a região fronteiriça entre o Brasil (Terras do Cabo Norte
pertencente ao Grão-Pará - correspondente ao atual Estado do Amapá) e França (Departamento
Ultramarino chamado de Guiana Francesa), tornou-se espaço de trânsito e fluxo de diferentes
sujeitos, como franceses, negros escravos e livres, indígenas e soldados desertores. Essa
circulação foi intensificada, sobretudo, durante o período em que ocorreram as lutas e tensões
em torno da Cabanagem no século XIX.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

É importante dizer que durante a Cabanagem a fronteira, entre o rio Amazonas e o rio
Oiapoque, no Brasil, por possuí uma localização estratégica tornou-se reduto para os sujeitos
em conflitos e outros que não estavam ligados diretamente às lutas cabanas. Assim, entre vários
igarapés e furos, matas e florestas ocorriam encontros de fugitivos (indígenas, negros escravos
e livres, soldados desertores) e colonos, fazendeiros, comerciantes franceses, de ambos os lados
da fronteira. Esses sujeitos, por meio de sociabilidades, trocavam ideias, experiências e
solidariedades, de tal modo que conseguiam forjar estratégias de sobrevivência e resistência
em meio a um contexto de instabilidade política, econômica e social.
É interessante destacarmos a existência de estudos e pesquisas sobre relações sociais na
fronteira Franco-Brasileira no período colonial, porém não há estudos significativos sobre essa
temática na primeira metade do século XIX, sobretudo, que trate especificamente desse tema
nesse espaço fronteiriço durante o movimento da Cabanagem ocorrido na Província do Grão-
Pará no período pós-independência.
Assim sendo, nosso objetivo é analisar estudos de autores que pesquisaram sobre essa
fronteira no período colonial e após a independência, principalmente no período em que
ocorreram as lutas cabanas (tendo em vista que essa região entre as Terras do Cabo Norte e a
Guiana Francesa pertencia à Província do Grão-Pará) buscando com isso compreender essa
fronteira enquanto espaço social, onde os sujeitos que por ali transitavam desenvolveram
relações sociais.
Para isso utilizaremos pressupostos da História Social para compreendermos a agência
de diferentes sujeitos históricos na fronteira Franco-Brasileira desde o período colonial até o
século XIX, em específico no contexto da Cabanagem, bem como faremos uso do conceito de
“Outros Espaços”, ou Heterotopia, desenvolvido por Michel Foucault que nos permite pensar
a fronteira como espaço social, ou seja, “espaços efetivamente vividos e socialmente
produzidos” (ROMANI, 2008, p. 47).
Cabe salientar que este artigo apresenta resultados iniciais de uma pesquisa que se
encontra em desenvolvimento. Assim, a proposta desse trabalho é apresentar uma análise
bibliográfica sobre a região fronteiriça entre o Brasil e França com ênfase no contexto da
Cabanagem. Desta forma, começamos estabelecendo uma relação entre História Social, o
conceito de heterotopia e fronteira, seguindo com a apresentação de alguns estudos sobre a

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fronteira Franco-Brasileira no período colonial, buscando com isso familiarizar o leitor com
questões fronteiriças nessa região e concluímos com a análise sobre esse espaço fronteiriço no
período da Cabanagem.

História Social, heterotopia e fronteira

A fronteira tem sido tema de estudo recorrente na historiografia. Diferentes significados


são a ela empregados como, por exemplo, delimitação territorial, zonas de litígio e de conflitos
entre países. Em muitos estudos, predominaram apenas questões relacionadas à política, à
economia e/ou à diplomacia, em detrimento de uma dimensão histórico-social dos espaços
fronteiriços.
Contudo, pressupostos da história social permitem direcionarmos nossos olhares para
as regiões de fronteira de maneira que possamos refletir sobre o dinamismo e as interações
sociais desenvolvidas por diferentes sujeitos que transita(va)m por esse tipo de espaço. Pois, a
partir da perspectiva de que “a história da sociedade é história” (HOBSBAWM, 1998, p. 89)
podemos pensar em uma História Social da Fronteira, ou seja, pensar a fronteira como espaço
onde ocorrem interações sociais, onde se desenvolvem relações humanas. Assim sendo,

A história social mantém, entretanto, seu nexo básico de constituição,


enquanto forma de abordagem que prioriza a experiência humana e os
processos de diferenciação e individuação dos comportamentos e identidades
coletivos – sociais – na explicação histórica (CASTRO, 1997, p. 89-90).

Assim, a história social nos permite compreender a agência histórica de sujeitos em


regiões de fronteira e o importante papel da ação humana nesses espaços. Nessa perspectiva o
conceito de heterotopia27 desenvolvido por Michel Foucault (2009) como desdobramento de
suas análises sobre espaço, nos ajudará também a pensar a fronteira enquanto espaço produzido
socialmente.

27 Em 1967, ao participar de uma conferência de arquitetura, Michel Foucault apresentou o texto Outros Espaços,
por meio do qual discorreu sobre o conceito de Heterotopia. Vale ressaltar que o autor só autorizou a publicação
desse texto em 1985.

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Foucault denominou de heterotopias os “espaços singulares que encontramos em alguns


espaços sociais cujas funções são diferentes das dos outros” (DEFERT, 2013, p. 52),
considerada por ele também como “outros espaços” ou “espaços outros”. Nesse sentido, seria
possível por meio das análises foucaultianas considerarmos a fronteira como sendo uma
heterotopia? De acordo com Clarissa Naback (2016) e Carlo Romani (2008) seria (é) sim.
Segundo Naback a heterotopia é um conceito que vem sendo utilizado de maneira ampla
nas análises geográficas e urbanas, e que em sua análise sobre fronteira ela utiliza entendendo-
a como “espaço entre”, “espaço outro” que “A princípio [...] podemos atrelar a formação dos
Estados, a delimitação dos territórios nacionais [...] O que vemos hoje, porém, é que a fronteira
traz a questão da circulação, do que entra e o que sai desses territórios” (NABACK, 2016, p.
12), seria, portanto, um lugar que trata da relação entre “outros”. A fronteira aqui é entendida
como figura prioritariamente relacional, em que diferentes sujeitos circulam e a produzem
socialmente.
Romani, por sua vez, ao abordar o tema da fronteira, em específico a fronteira Franco-
Brasileira, utilizou o conceito de heterotopia, ou espaço outro, compreendendo-a como aquele
“espaço efetivamente vivido, humanamente explorado, em que o controle sobre ele se faz
através de uma troca relacional entre os grupos que nele vivem produzindo conflitos e disputas
pela posse das terras e poderes locais” (ROMANI, 2008, p. 63).
Nesse sentido, tanto Naback quanto Romani, entendem a fronteira como heterotopia,
em que diferentes sujeitos estabelecem relações de convivência, na qual ocorrem relações
sociais. Portanto, a fronteira enquanto espaço assim compreendido deixa de ser apenas uma
delimitação territorial ou zona de litígio, mas passa a ser entendida como espaço onde relações
humanas se engendram.
Deste modo, essa perspectiva teórica da história social da fronteira, concebida como
heterotopia, nos ajudará a compreender a fronteira Franco-Brasileira enquanto espaço social
no contexto da Cabanagem, pois nela diferentes sujeitos desenvolveram relações sociais, seja
para sobrevivência e/ou resistência.
Mas, antes de adentrarmos nesse contexto específico, faremos uma breve análise sobre
estudos que abordam experiências coloniais nessa região fronteiriça, uma vez que nos ajudarão

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

a compreender este contexto em que diferentes sujeitos criaram e recriaram suas próprias
trajetórias de vida.

Terras do Cabo Norte e sua fronteira com a Guiana Francesa no período colonial

A região de fronteira entre as Terras do Cabo Norte (correspondente ao atual Estado do


Amapá) e Guiana Francesa (Departamento Ultramarino da França na América) tem sido espaço
de circulação de pessoas e ideias desde os tempos coloniais, distanciando-se da ideia de um
“vazio demográfico” que por muito tempo foi imposto a essa região amazônica.
De acordo com Rosa Elizabeth Acevedo Marin haviam transcorrido mais de dois
séculos e meio de conflitos pela possessão desse território na costa setentrional do Grão-Pará,
quando então as autoridades portuguesas resolveram “povoar” essa região de fronteira. E em
1751 “As Terras do Cabo do Norte receberam um sopro de povoamento, com a entrada de
famílias embarcadas em Lisboa, com os escravos introduzidos da África e os indígenas
mobilizados de locais diversos do vale amazônico” (ACEVEDO MARIN, 1999, p. 39).
Mas, a administração lusitana na Amazônia entendia que, para garantir a ocupação e
proteção efetiva dessa região fronteiriça não bastava apenas povoá-la era necessário também a
militarizar. Assim, a militarização foi ocorrendo de maneira paulatina, destacadamente no
século XVIII. Essa militarização foi uma característica importante da ocupação militar dessa
fronteira, todavia, “Alguns administradores de Macapá e Mazagão incentivaram mais a
agricultura, mesmo que esses núcleos funcionassem mais como reserva militar e salvaguarda
de fronteira” (ACEVEDO MARIN, 1999, p. 43).
Flávio Gomes e Shirley Nogueira enfatizam que nem sempre a mobilização de militares
era uma solução, pois traziam também problemas, tendo em vista o grande número de
deserções e formação de mocambos em fronteiras coloniais internacionais, como nesta
fronteira Franco-Lusitana no período colonial. Segundo estes autores

A mobilização de tropas e unidades militares, assim como a construção de


fortalezas em áreas coloniais nem sempre foram soluções. Traziam
problemas. Na extensa floresta de mocambos, na Amazônia Colonial, outros
personagens entrariam em cena: desertores militares e acoitadores. Com o
problema das fronteiras coloniais internacionais e a militarização da região,
essa situação ficou cada vez mais agravada. Desertores militares podiam ser

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tanto “brancos” e mestiços, como índios aldeados, forros e negros livres.


(GOMES; NOGUEIRA, 1999, p. 195)

Assim, percebemos que a militarização da região fez com que diferentes sujeitos
reconfigurassem a movimentação nesse espaço fronteiriço, pois somado às deserções de
militares estavam também as fugas de negros escravos, livres e indígenas, que sabendo se
beneficiar do recorte geográfico da região, com muitos rios e planícies, fugiam tanto dos
recrutamentos militares como de seus senhores, e assim iam constituindo mocambos, espaços
onde podiam mesmo que de maneira temporária desfrutar de certa autonomia e proteção.
Flávio Gomes enfatiza que a fronteira não era apenas um refúgio geográfico, ia além,
era também um esconderijo social e econômico. Transformava-se, portanto, em um espaço
social onde “negros, escravos fugidos, libertos ou livres, também indígenas e outros setores
sociais criaram [...] um espaço para contatos e cooperação” (ACEVEDO MARIN; GOMES,
2003, p. 72) em meio as matas e rios. Estavam fugidos, mas não isolados.
Entre esses outros setores sociais com que desertores e fugitivos mantinham contato
estavam, taberneiros, cativos nas plantações, vendeiros, vaqueiros escravos, donos de canoas,
comerciantes, outros escravos, bem como colonos e indígenas do outro lado da fronteira. Desse
contato com os “acoutadores dos fugitivos” desdobravam-se apoio, proteção, trocas mercantis
e circulação de experiências. Nesse sentido, Gomes destaca que,

Havia uma extensa rede de comunicação e cooperação entre quilombolas e


escravos. Na região do Amapá, também em 1793, as autoridades tentavam
prender os escravos pertencentes a Thomé Bixiga e aqueles do Capitão
Antônio José Vaz, “por serem os que no campo participavam todas as
novidades de Macapá aos amocambados”. Revela-se mais: os tais eram
vaqueiros e havia determinados “sinais” que os quilombolas faziam nos
campos de pastagens para se comunicar com eles em “lugar ajustado”. Estes
quilombolas também mantinham relações com os taberneiros, e em períodos
de perseguição iam se “acoitar em um dos currais de Antônio José Vaz com
seus escravos”. (GOMES, 1999, p. 260)

Podemos perceber que diferentes sujeitos desenvolveram, por meio de alianças e


solidariedades, estratégias de sobrevivência e/ou subsistência. Dentre as estratégias utilizadas
estavam o comércio clandestino articulado com o roubo de gado, assim como as redes de trocas
por meio das quais “fugitivos amocambados e desertores vendiam os produtos de suas roças,

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obtendo em troca, sobretudo, pólvora, arma de fogo e água-ardente” (GOMES; NOGUEIRA,


1999, p. 202).
As razões que os levavam a estabelecerem alianças e experiências eram diversas, uns
pela caça e/ou pesca, outros por estarem fugindo, outros ainda por estarem a serviço de suas
nações, ou desertando de tais serviços, “fosse fugindo, migrando e/ou formando mocambos,
que estabeleceram as primeiras bases dessas fronteiras. Não circulavam só ideias, mas também
experiências” (GOMES, 1999, 297).
Assim, fugitivos amocambados e desertores, por meio das relações desenvolvidas com
outros setores da sociedade, iam reelaborando seus espaços sociais na região de fronteira entre
as Terras do Cabo Norte e a Guiana Francesa. As redes de trocas e proteção, bem como o
comércio clandestino e os laços de solidariedades desenvolvidos entre esses diferentes sujeitos
adentraram o século XIX, e foram intensificados pela eclosão da Cabanagem ocorrida nos anos
de 1830.

A fronteira franco-brasileira no contexto da Cabanagem

A Cabanagem ocorrida na Província do Grão-Pará entre os anos de 1835 e 1840 é


considerada uma das mais importantes revoltas do período regencial devido à participação
maciça de diferentes grupos sociais, entre eles negros escravos e livres, indígenas, soldados
desertores e demais segmentos pobres da Amazônia oitocentista.
As lutas cabanas tiveram início na capital da província: Belém. Todavia, repercutiram
em quase todas as vilas pertencentes ao Grão-Pará, chegando até a fronteira Franco-Brasileira.
Nesse sentido, Magda Ricci (2007, p. 28) destaca que os “revolucionários fugitivos abriram
outras frentes de luta, ampliaram suas bandeiras e alteraram as formas de guerrear [...]
Revolucionaram cidades como Santarém, Manaus e toda a região até a fronteira com o atual
estado do Amapá”.
A Cabanagem, portanto, chegou até a fronteira das Terras do Cabo Norte com a Guiana
Francesa, promovendo a intensificação de fugas e grande circulação de sujeitos de diferentes
grupos sociais, uma vez que “A Cabanagem intensificou esses movimentos, enquanto as
disputas fronteiriças tornaram o cenário ainda mais complexo”. (PAZ, 2017, p. 89).

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Destarte, com a interiorização da luta armada negros escravos e libertos, indígenas e


soldados desertores engrossaram as fileiras de cabanos nessa região limítrofe e se juntaram à
luta, ainda que muitos deles possuíssem expectativas distintas. “Aprenderam a usar a natureza
a seu favor, envenenando rios, queimando a mata, espantando os animais e dizimando
plantações de alimentos básicos para a subsistência das tropas inimigas” (RICCI, 2007, p. 28).
Assim, os laços de solidariedade e redes de comunicação forjadas nos anos que
antecederam a Cabanagem, como apresentado anteriormente, foram sendo intensificados nesse
contexto de lutas cabanas, pois de acordo com Magda Ricci, nesse período aumentaram os
contatos e as trocas de mercadorias, principalmente de armas e alimentos.
Ricci destaca também que o movimento cabano tocava em um problema que remontava
ao período colonial que era a questão das fronteiras na Amazônia, especialmente com ingleses
e franceses. Em nosso caso específico, com os franceses, pois essa região fronteiriça abrigou
muitos fugitivos envolvidos na Cabanagem, e outros que não estavam diretamente ligados às
lutas cabanas, mas que por temor dos “revoltosos” iam se abrigar do outro lado da fronteira,
em Caiena.
Nesse sentido, Débora Bendocchi Alves salienta que um relatório de 1836 do governo
francês apresentava uma relação com nomes e dados de brasileiros que haviam dado a entrada
em Caiena no período entre os meses de maio e dezembro de 1835. “Era um grupo de 136
refugiados do Pará, entre os quais se encontravam 86 indivíduos livres, entre homens, mulheres
e crianças, acompanhados por 50 escravos negros” (ALVES, 2016, p. 178). Assim sendo,
podemos inferir que houve uma intensa movimentação causada pela Cabanagem em ambos os
lados da fronteira.

Instalação de um posto militar francês em território brasileiro

Daqui a diante iremos nos deter em experiências ocorridas a partir da instalação de um


posto militar francês em território brasileiro no contexto da Cabanagem. Tendo em vista que
sob a justificativa de preservar as possessões francesas e os seus colonos dos ataques cabanos,
o governo francês solicitou ao governo brasileiro permissão para instalar um posto militar
provisório na margem direita do Oiapoque.

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Desse modo, autorizada a solicitação, em 1836 os franceses construíram um posto


militar próximo ao lago do Amapá. Esse posto, segundo informações coletadas por Adalberto
Paz, contava com algumas instalações entre elas estavam uma casa de tijolos, uma casa de
madeira, uma olaria, dois grandes galpões de madeira, um hospital e algumas cabanas onde
ficavam abrigados negros e indígenas.
Ressaltamos que apesar desse destacamento militar ter sido instalado com o pretexto de
salvaguardar os colonos franceses e seu território, esse posto militar serviu de abrigo para
muitos cabanos que perseguidos pelas tropas legalistas iam ali se refugiar, assim como “índios
refugiados” em busca de proteção se instalaram próximo ao posto francês. A esse respeito, Paz
(2017, p. 93) destaca também que por meio de um decreto “o comandante do posto francês era
autorizado a ‘ceder e até distribuir gratuitamente alimento aos refugiados brasileiros e índios
estabelecidos no Amapá’”.
Podemos perceber que os sujeitos que se movimentavam nessa região fronteiriça
buscaram desenvolver em meio às tensões e conflitos do movimento cabano laços de
solidariedade com os militares franceses instalados nessa região, seja em busca de proteção
e/ou de alimentos. Essas relações sociais, todavia, preocupavam as autoridades paraenses, pois
segundo Domingos Antônio Raiol (1970, v. 3, p. 998), um relatório de 1839 do governo
provincial relatava que

A proximidade do Pôrto Francês, no Amapá, quando mesmo não produza


uma proteção direta e decisiva aos rebeldes desta província, produz a
confiança que todos têm de serem ali bem recebidos, e por êste modo vão lá
refugiar-se, quando se sentem perseguidos, e dali voltam a inquietar-nos
quando julgam a propósito. A conservação daquele Pôsto, até hoje, só tem
sido útil a esta qualidade de gente.

Dessa maneira, nota-se que o contato entre franceses e cabanos ocorridos nesse posto
francês e seus arredores, demonstrava que os franceses estavam mais interessados em dar-lhes
abrigo do que em combatê-los. E assim, cabanos, negros e indígenas iam forjando, nessa região
limítrofe, estratégias de sobrevivência e subsistência.
Destacamos que apesar deste posto ter se tornado um lugar de refúgio, “Os ‘pretos’
fugiam constantemente e os índios permaneciam no posto apenas o tempo suficiente para

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realizar seus escambos” (PAZ, 2017, 98), ou seja, a Cabanagem havia causado uma intensa
movimentação na Fronteira Franco-Brasileira, assim como possibilitava as redes de trocas, seja
de mercadorias e/ou de experiências entre diferentes sujeitos sociais.
Assim sendo, podemos inferir que durante a permanência do posto francês em território
brasileiro cabanos, indígenas e negros escravos e livres, souberam se beneficiar do refúgio
oferecido pelos franceses até o ano de 1840, quando foram intimados a se retirarem dessa
região. Vale salientar que desde 1838 o governo brasileiro exigia a retirada desse posto francês
das terras brasileiras, pois dizia que a ordem já havia sido restabelecida na província e, sendo
assim, não havia mais motivos para continuarem ali instalados.
O contexto da Cabanagem, portanto, possibilitou a agência de diferentes sujeitos
históricos e sociais nessa fronteira amazônica do século XIX. Essa agência manifestou-se por
meio de laços de solidariedade e redes de troca e proteção em meio às tensões e conflitos do
movimento cabano na fronteira Franco-Brasileira.

Considerações finais

A fronteira Franco-Brasileira tem sido tema estudo e pesquisa de muitos historiadores


que abordam diferentes aspectos e temporalidades dessa região limítrofe. Buscamos,
entretanto, estudos que nos ajudassem a compreendê-la enquanto espaço social, que
evidenciasse a agência de sujeitos históricos nessa fronteira.
Nesse sentido, estudos como de Flávio Gomes e Rosa Acevedo Marin, entre outros,
sobre essa fronteira no período colonial nos permitiram perceber a movimentação e interação
de negros, indígenas, soldados desertores e demais sujeitos nessa região cercada por matas e
florestas, com muitos rios, igarapés e furos.
Sujeitos que formaram mocambos, criaram redes de trocas e proteção, desenvolveram
laços de solidariedade e assim transformaram essa região de fronteira em um espaço social,
onde podiam desfrutar de certa autonomia mesmo que temporariamente, sem a interferência
do Estado e/ou de seus senhores. Assim, criaram e recriaram sua maneira de viver e agir nessa
região limítrofe no período colonial.
Contudo, ao buscarmos material bibliográfico sobre a fronteira Franco-Brasileira no
período pós-independência, em específico no contexto da Cabanagem, percebemos que há certa

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limitação, sobretudo, que enfatize a agência de sujeitos históricos nessa região fronteiriça nesse
período. Todavia, encontramos dois estudos que abordam a instalação de um posto militar
francês nessa região de fronteira no período de 1836 a 1840.
Esses trabalhos nos ajudaram a compreender que a instalação deste posto francês, bem
como seus arredores, serviu de espaço para interações sociais entre diferentes sujeitos que
buscavam ali refúgio, pois lá encontravam alimentos, certa proteção e ainda realizavam trocas.
No entanto, percebemos que há necessidade de mais estudos e pesquisas sobre a agência de
sujeitos nessa região de fronteira no contexto da Cabanagem, o que nos instiga a continuar
pesquisando sobre esse tema.

Referências
ALVES, Débora Bendocchi. Reação francesa às ameaças de Cabanos e Bonis no território
litigioso entre o Brasil e a Guiana Francesa (1836-1841). Almanack. Guarulhos, n. 14, p. 160-
195, 2016.
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DEFERT, Daniel. “Heterotopia”: Tribulações de um conceito entre Veneza, Berlim e Los
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Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: N-1, 2013.
FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção
de texto, Manoel Barros da Motta, tradução, Inês Autran Dourado Barbosa – 2 ed. - Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2009. Texto consultado: Outros Espaços, p. 411-422 (Ditos e
escritos, III).
GOMES, Flávio dos Santos. Fronteira e mocambos: o protesto negro na Guiana Brasileira. In:
______. Nas Terras do Cabo Norte: fronteiras, colonização e escravidão na Guiana Brasileira
– século XVIII/XIX. Belém: Editora Universitária/UFPA, 1999.
GOMES, Flávio dos Santos; NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. Outras paisagens coloniais:
notas sobre desertores militares na Amazônia setecentista. In: GOMES, F. S. (Org.). Nas Terras
do Cabo Norte: fronteiras, colonização e escravidão na Guiana Brasileira – século XVIII/XIX.
Belém: Editora Universitária/UFPA, 1999.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo. Prosperidade e Estagnação de Macapá Colonial: As
experiências dos colonos. In: GOMES, F. S. (Org.). Nas Terras do Cabo Norte: fronteiras,
colonização e escravidão na Guiana Brasileira – século XVIII/XIX. Belém: Editora
Universitária/UFPA, 1999.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo; GOMES, Flávio. Reconfigurações coloniais: tráfico de


indígenas, fugitivos e fronteiras no Grão-Pará e Guiana Francesa (Séculos XVII e XVIII).
Revista de História, São Paulo, nº 149, p. 69-107, 2º – 2003.
NABACK, Clarissa. Pensar o poder, o espaço e o corpo: Heterotopias e fronteiras. Rio de
Janeiro: PUC Rio, Cadernos do Seminário da Pós, v. 1, n. 1, 2016.
PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. Repúblicas contestadas: liberdade, trabalho e disputa na
Amazônia do século XIX. Campinas: UNICAMP, 2017. (Tese de doutorado)
RAIOL, Domingos Antônio. Motins Políticos dos Principais Acontecimentos Políticos na
Província do Pará desde o ano de 1821 até 1835. Coleção Amazônica, Série José Veríssimo,
Belém, Universidade Federal do Pará, 1970, vol. 3.
RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo
na Amazônia entre 1835 e 1840. Tempo. Niterói, vol. 11, n°.22, p. 5-30, 2007.
ROMANI, Carlo. Algumas Geografias sobre a fronteira Franco-Brasileira. Ateliê Geográfico.
Goiânia-GO: UFG – IESA. v. 2, n. 1, p. 43-64, 2008.

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“O PRINCIPAL OBJETIVO ERA FAZER COM QUE O PEIXE NÃO


FALTASSE NA MESA DAS FAMÍLIAS DAS COMUNIDADES”: AS
LUTAS EM DEFESA DOS LAGOS EM PARINTINS/AM28

MÔNICA XAVIER DE MEDEIROS


Universidade do Estado do Amazonas/UEA, Doutora
mxdmedeiros@uea.edu.br

Resumo
O objetivo da pesquisa é analisar as lutas contra a pesca comercial, protagonizadas por
trabalhadores rurais de comunidades situadas no entorno de lagos da zona rural de
Parintins/AM entre 1980-2000. A metodologia da pesquisa baseou-se na História Oral através
de entrevistas com os moradores das comunidades rurais. Para entender o contexto do
fortalecimento da pesca comercial, recorremos à imprensa através do Jornal do Comércio. O
crescimento urbano de cidades como Manaus, Parintins e Santarém aumentou a demanda por
recursos naturais (peixes e madeira) de áreas florestais e essas atividades impactaram os modos
tradicionais de viver de moradores de comunidades rurais. A vigília de lagos, os Acordos de
Pesca e a formação do Grupo Ambiental Natureza Viva (GRANAV) foram estratégias
utilizadas na defesa dos recursos naturais nesta região.
Palavras-chave: Pesca comercial; Comunidades rurais; Parintins;

Introdução
Considerando que “a memória histórica constitui uma das formas mais poderosas e sutis
da dominação e legitimação” (ALMEIDA et al., 2004), esta pesquisa pretende perscrutar as
memórias alternativas tecidas na contramão de projetos econômicos dominantes e
hegemônicos, como a pecuária e a pesca comercial na região no Baixo Amazonas,
especificamente na zona rural do município de Parintins/AM, entre os anos de 1980 a 2000.

28 Esta pesquisa está referenciada na minha tese de doutorado que foi defendida no ano de 2017 na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, sob a orientação da Prof.ª Drª Olga Brites e foi financiada pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

O recrudescimento das relações capitalistas na Floresta tem como objetivo a


mercantilização dos recursos naturais (terras, madeiras e peixes) e colocou em xeque modos
de viver cujas lógicas de sociabilidade com a natureza não são mediadas pelo lucro. O processo
de territorialidade e o modo de vida de trabalhadores rurais no Amazonas apresentam uma forte
expressão cultural em relação às águas de rios e lagos. O modo de vida de trabalhadores rurais
no Amazonas traz a dimensão de uma cultura que vive a sazonalidade das águas, que marca o
viver, o lazer, o trabalho, as lembranças e as lutas desses sujeitos sociais. Leno Souza destaca:

Na Amazônia, excetuando talvez as metrópoles regionais Belém e Manaus, é


o rio, o paraná, a boca, o lago, que contém as cidades, municípios, vilas,
distritos, e não o contrário. Mais do que sobrepujá-las por suas dimensões,
estes circuitos fluviais se sobrepõem como uma expressão cultural que media
as vivências cotidianas da população ribeirinha, sendo fonte de trabalho,
moradia, lazer, histórias, memórias e outras sociabilidades; portos de onde
partem e onde chegam (SOUZA, 2010, p.38).

Para Albuquerque (1995), as águas embasam a noção de pertencimento a uma dada


localidade. A expressão cultural das águas no modo de vida de trabalhadores de áreas
rurais/florestais engendra percepções de território, temporalidade e pertencimento, que
significa “sentir-se parte de uma ampla coletividade, possuir valores em comum e sentimentos
profundos de identificação. [...] ter uma posição social reconhecida como legítima e situar-se
num espaço físico compartilhado” (ARANTES, 2000, p. 132-133). As águas forjam
sentimentos de pertencimento que são cerzidos na relação com os animais, com seres
encantados, com os diversos tipos de trabalhadores que habitam as áreas florestais, sejam
agricultores, pescadores, comerciantes, funcionários públicos e, também, na tensão e no
conflito com pecuaristas, pescadores comerciais, madeireiros e o poder público estatal.
Tentando apreender histórias que não estão nos marcos hegemônicos, utilizou-se a
História Oral para analisar as narrativas tecidas por trabalhadores rurais em entrevistas tanto
em comunidades rurais como no núcleo urbano de Parintins/AM. Porém, em se tratando do
estudo de comunidades tradicionais no Amazonas, a memória e a oralidade devem ser
entendidas dentro de um contexto amplo, não apenas enquanto metodologia de pesquisa, mas
como uma forma de conhecer o social, uma epistemologia vivida por culturas de tradição oral.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

A história oral e a tradição oral servem de fundamento para reescrever a


história, mas também para combater as injustiças do passado. Povos que
foram conquistados ou colonizados, no presente recorrem à sua tradição oral
e resgatam sua memória para reclamar direitos territoriais, linguísticos, ou
para recuperar uma identidade cultural própria. Sobreviventes das lutas contra
os regimes militares e opressivos questionam hoje a história oficial com suas
memórias subterrâneas e reclamam o reconhecimento social e o castigo legal
dos responsáveis pela violação dos direitos humanos. Ainda de modo menos
dramático, a gente comum exige respeito por suas memórias e tradições. As
investigações baseadas em história oral e, em certas ocasiões, os próprios
historiadores orais, intervêm no marco jurídico-legal e tanto a memória
quanto a tradição constituem evidência que sustentam as demandas de
reivindicações de direitos dos povos, seja por suas terras ou dignidade
(POZZI, 2012, p. 63-64).

A oralidade possibilita a compreensão das interpretações que o interlocutor elabora


sobre o processo vivido a partir de suas questões e demandas contemporâneas. Também
permite a identificação de outros sentidos para a história e as estruturas de sentimentos que lhe
são peculiares. A memória é um processo ativo que produz significados sociais. Os sujeitos
sociais interpretam o passado a partir de suas inquietações do presente. A memória também é
um lugar de pertencimento, que cria e recria valores. Ao dialogar com trabalhadores que moram
na zona rural de Parintins, podemos apreender que as histórias que contam sobre o seu cotidiano
e suas lutas no passado são estratégias de se colocarem no presente e reivindicarem políticas
públicas e bens sociais para suas comunidades.
Para entender o contexto em que ocorreu a estruturação da pesca comercial e o
fortalecimento da pecuária também utilizamos a imprensa através do Jornal do Comércio.

A estruturação da pesca comercial e o fortalecimento da pecuária

O fortalecimento da pecuária29 afetou o modo de vida de trabalhadores rurais em


Parintins, pois os pecuaristas começaram a comprar sistematicamente terras na região,
resultando num aumento da concentração fundiária. Além disso, havia o desmatamento para a

29 A partir da década de 80, a desvalorização da fibra levou à desestruturação deste setor econômico e a inversão
do capital que antes era empregado na juta para a pecuária, pesca comercial e o corte de madeira.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

criação de pastos, que incluía a destruição da mata ciliar e de igapó30 em rios e lagos,
fundamentais para a procriação dos peixes. O crescimento urbano de Parintins/AM,
Manaus/AM e Santarém/PA também pressionou o estoque pesqueiro dos lagos da região, pois
aumentou a demanda por peixes nas feiras dessas cidades, o que fez com que os trabalhadores
rurais, quando muito, pescassem apenas para a alimentação do dia. Anteriormente ao avanço
da pecuária e a estruturação da pesca comercial, os lagos eram fartos com várias espécies de
peixes. Ao perceberam a redução do peixe em rios e lagos próximos às comunidades rurais em
que moravam, os trabalhadores rurais começaram a organizar as Lutas em Defesa dos Lagos.
Em Parintins, os conflitos de pesca e a organização de moradores das comunidades
rurais se intensificaram na década de 80, pois foi o período em que a pesca comercial dos
estados do Amazonas e do Pará chegou aos lagos do Baixo-Amazonas. A intensa vazante de
1980 dificultou a entrada nos lagos próximos à Manaus, pois os barcos pesqueiros não
conseguiam passar por seus pequenos acessos. Os pescadores buscaram, assim, novos lugares
para a prática da pesca comercial: “a Colônia Z-12 está tomando as necessárias providências.
Inclusive, orientando barcos pesqueiros para a execução da pescaria no Baixo-Amazonas,
região ainda não explorada intensivamente” (JORNAL DO COMÉRCIO, 1980). Essa
reportagem do Jornal do Comércio mostra as alternativas que estavam sendo criadas para
driblar a estiagem e que acabou por estender a pesca comercial para os lagos do Baixo
Amazonas, que começaram a fornecer de modo sistemático peixes para os mercados de
Santarém/Belém (Pará) e para Manaus (Amazonas).
Nos artigos do Jornal do Comércio, vislumbram-se as diferentes experiências em que
a estruturação da pesca comercial é erigida no Estado do Amazonas. A partir das reportagens
selecionadas, percebemos como essa atividade incorporou novos espaços de pesca e
comercialização (rios, lagos, construção de terminais de pesca e frigoríficos); impactou o
mundo do trabalho impondo dificuldades àqueles que já estavam ligados à produção pesqueira
de pequeno porte (mercadores e pescadores); criou contingentes de trabalhadores assalariados
e desenvolveu a tecnologia de captura de pescado em larga escala. RAMALHO (2014) afirma

30 A vegetação de igapó é aquela à margem dos rios, lagos e igarapés, parcialmente submersa durante um período
do ano. É um local muito importante para a preservação das espécies de peixes, pois no igapó os peixes encontram
alimentação e procriam.

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que entre 1962 a 1989, o Estado brasileiro apoiou a formação de uma classe empresarial na
pesca, pois a industrialização no setor não havia sido consolidada até então e a SUDEPE31
empreendia esforços para realização desse objetivo. O autor coloca ainda que “os pescadores
deixaram de ser vistos pelo Governo Federal apenas como reserva naval e passaram a ser
compreendidos como força de trabalho de reserva para os industriais da pesca”.
A pesca comercial destinava-se, em grande parte, aos mercados consumidores nos
estados do Pará e Amazonas e, também, aos mercados internacionais no Peru, Colômbia e
Japão. Tanto ribeirinhos quanto cientistas ligados às entidades de educação e pesquisa no
Amazonas (INPA/UFAM) teciam duras críticas à exportação do peixe, sustentando que uma
de suas consequências era a diminuição da mercadoria e o aumento do valor nos mercados
locais.
A forma de realização da pesca comercial também foi objeto de controvérsias, pois
levou a uma redução drástica de algumas espécies, que ficaram à beira da extinção:

A pesca tem sido acima da capacidade de reprodução. [...] A pesca não é


racional nem científica, pois são capturados fêmeas e filhotes (JORNAL DO
COMÉRCIO)

O barco que esteve no Rio Andirá segundo Socorro Dutra Lindoso capturou
sete mil peixes afora os “bichos de casco” e como não tinham como conservar
o pescado, seus tripulantes deram um pouco para os caboclos e jogaram mais
de dois mil de volta ao rio porém mortos (JORNAL DO COMÉRCIO, 1981,
p. 05).

Os denunciantes afirmam que a pesca é feita através de cardume com redes


de arrastão. Após os lances (isso proibido pela Lei 466 da SUDEPE) pegam
toda a espécie, escolhem os peixes maiores e jogam no lago os menores, que,
por estarem já abatidos, morrem logo. O tambaqui um dos maiores peixes de
nossa região, inexiste na localidade. Os grandes barcos pesqueiros já deram
fim à espécie [...]. “O estrago – disseram os membros do CODEPI – é um
caso sério e de polícia. Primeiramente, os barcos arrastam os peixes menores
e os colocam na geladeira. Depois, mais na frente encontram outra qualidade
de cardume maior e jogam nos lagos os peixes menores” (JORNAL DO
COMÉRCIO, 1981, p. 03).

31 A SUDEPE (Superintendência de Desenvolvimento da Pesca) foi criada pela Lei Delegada nº 10 de


11/10/1962. Subordinada ao Ministério da Agricultura. Extinta em 1989, a responsabilidade pela gestão da pesca
foi repassada ao IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

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A pesca comercial era realizada em navios com geleiras para armazenar toneladas de
pescado, que permaneciam semanas nos lagos e usavam apetrechos de pesca com grande poder
de captura, como redes de arrastão, que também aprisiona peixes pequenos e sem valor
comercial, que eram atirados mortos de volta aos lagos. Os conflitos de pesca eram
protagonizados justamente por moradores/pequenos agricultores das comunidades rurais, que
tinham no pescado uma das principais fontes de proteína. O aumento do número de conflitos
de pesca foi evidenciado pelos jornais:

Nossa reportagem entrou em contato com a Capitania dos Portos, recebendo


a notícia de que estava sendo apurado realmente um conflito entre tripulantes
de um barco de pesca e de moradores de um lago onde o pescado é abundante,
mas explorado de maneira criminosa por pescadores vindos de outras
localidades. Segundo a mesma fonte, 12 tripulantes do Barco “Rei das Águas”
teriam sido mortos a tiros (JORNAL DO COMÉRCIO, 1980, p. 01/Capa).

No dia 17 de dezembro de 1986, segundo denúncias feitas pelo Comitê de


Defesa dos Direitos Humanos ligados à Diocese de Parintins, mais um
incidente registrou-se quando o pescador profissional Walclides Lopes de
Souza, acompanhado de mais três companheiros tentou “invadir o lago para
capturar pescados que seriam comercializados em Parintins”. O peixe
capturado foi tomado dos pescadores pelos moradores da região e depois
distribuídos à comunidade. Alguns que ainda estavam vivos, inclusive um
filhote de pirarucu, foram devolvidos ao lago. Os registros sobre conflitos
envolvendo comunidades ribeirinhas e pescadores profissionais são antigos e
refletem a inexistência de uma política para o setor no Estado. [...] os
pescadores, consideram rios e lagos como locais públicos aos quais têm o
direito de usufruir (JORNAL DO COMÉRCIO, 1987, Cidade, p. 10).

O crescimento urbano de Manaus, Parintins e Santarém certamente criou a necessidade


do aumento da utilização de recursos naturais que incidiram sobre os modos de vida de
trabalhadores rurais. Além disso, os fragmentos de jornais apontam para as ações de órgãos
estatais (SUDEPE), que neste caso favoreciam a estruturação da pesca comercial e não
buscavam regulamentar a pesca nos lagos da Bacia Amazônica.

As lutas em defesa dos lagos

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Ao perceber que os peixes estavam desaparecendo dos lagos devido à intensificação da


pesca comercial nos rios da Bacia Amazônica, os trabalhadores rurais começaram a se
organizar para proteger aqueles próximos às suas comunidades. Os espaços criados para a
defesa dos lagos através das vigílias transformaram-se em espaços coletivos de formação
política.
Eraldo Albuquerque morava na várzea do Paraná de Parintins, na comunidade Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro. Sua família, com outras da comunidade, iniciou as lutas em
defesa dos lagos contra a pesca predatória de barcos pesqueiros que vinham principalmente do
estado do Pará e do núcleo urbano de Parintins. Aos 14 anos começou a participar das “vigílias
de lagos” juntos ao seu pai e tios e relembra: “a gente ficava debaixo da árvore. Então era
interessante porque ali era um espaço não só pra vigiar, mas também pra trocas de ideias, pra
planejamento, a gente se reunia e acabava fazendo isso no acampamento” (ALBUQUERQUE,
2016).
Foi justamente numa dessas noites de vigília dos lagos que os comunitários tiveram a
ideia de formar uma associação que pudesse congregar as lutas pelos recursos naturais
ameaçados, que viria ser o Grupo Ambiental Natureza Viva (GRANAV). Eraldo rememora as
razões que teriam impulsionado a criação do grupo:

Eraldo – Uma das estratégias era que a gente precisava de uma instituição
que pudesse ser o suporte da luta que tava tendo...
Mônica – O sindicato não servia nesse momento?
Eraldo – Não, era muito frágil. Ele não conseguia dar suporte pra essa luta.
Mônica – Mas vocês atuavam com o sindicato também?
Eraldo – A gente era associado. Tinha a Igreja através da CPT, mas a gente
pensava que em alguns momentos eles poderiam deixar de atuar, então a gente
precisava de uma organização que fosse, que estivesse mais próximo...
independente da Igreja... e tinha também é... assim uma organização que
pudesse fazer esse link com essas instituições: Igreja, IBAMA, Ministério
Público, Sindicato, CDDH, CPT, que na época tinha né, então a estratégia era
essa, ter uma organização que pudesse tá se comunicando assim com outras
instituições externas (ALBUQUERQUE, 2016).

A criação do GRANAV reflete um momento específico de organização desses


moradores que já envolvia diversas comunidades do Paraná de Parintins, da Valéria, Laguinho,
Murituba e Jauari. Já estavam sendo elaborados Acordos de Pesca verbais apesar das

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

dificuldades e do envolvimento de alguns comunitários com a pesca comercial. PANTOJA


(2006) entrevistou, em sua dissertação de mestrado, Fernando Carvalho, fundador do
GRANAV e seu primeiro presidente, que ponderou sobre as novas formas de luta
protagonizadas pela juventude:

Fomos observando que estávamos lutando clandestinamente e de uma certa


forma desorganizados, sem forças, sem poder de expressão, sem poder de voz
e sem reconhecimento. A luta era grande, mas quando havia uma apreensão
de determinados apetrechos de pesca, eles eram devolvidos aos seus donos,
porque nossas ações eram consideradas ilegais [...]. Então fomos observando
que era preciso a gente criar uma forma, uma nova técnica, um novo método
de lutar (PANTOJA, 2016).

A narrativa dimensiona a constituição do GRANAV a partir das experiências vividas


nas vigílias de lagos. A ideia de fundar um grupo ambiental foi concretizada, como relembra
Eraldo Albuquerque:
Nós nos reunimos e decidimos que a gente precisava se organizar pra lutar de
forma organizada, foi aí que surge a ideia da criação de um grupo ambiental
e foi justamente idealizada pelo Fernando Carvalho e hoje a gente tem ele
como idealizador do grupo... E inclusive o primeiro nome era GRENV, Grupo
Ecológico Natureza Viva e depois passou a ser GRANAV, Grupo Ambiental
Natureza Viva. Isso em 92, depois disso, a gente passou a lutar de forma mais
organizada, mas antes disso a gente já tinha elaborado um Acordo de Pesca,
ele foi publicado em 89, em 89, antes do GRANAV já existia um Acordo de
Pesca elaborado a partir dessas discussões com as comunidades, em 93,
depois já da criação do GRANAV, a gente reelaborou esse acordo com
algumas regras bem definidas como os lagos de procriação, os lagos de
manutenção. A gente só não tinha os lagos livres pra pesca comercial porque
a gente entendia que era muita gente pra pouco lago, se a gente desse essa
abertura, o pessoal do local poderia ter problema com falta de peixe e assim
no início a principal luta do GRANAV, o principal objetivo era fazer com
que o peixe não faltasse na mesa das famílias das comunidades, isso naquele
momento era o principal objetivo, com o tempo a gente foi percebendo e até
por uma cobrança das comunidades que a gente precisava propor alternativas
de sustentabilidade, a gente perguntava como é que a gente vai sobreviver se
a gente não vai poder ir lá no lago e pescar, se a gente não vai poder desmatar
mais do que é permitido, não vai poder caçar se... então a gente começou a
trabalhar com algumas experiências, o manejo de quelônios foi uma
experiência que a gente iniciou na comunidade de Santa Maria do Murituba
(ALBUQUERQUE, 2016).

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Até a década de 80, o modo de vida de moradores da Floresta implicava um profícuo


relacionamento com a natureza. As práticas sociais tradicionais de uso dos recursos naturais
não sinalizavam perigo de extinção de espécies vegetais ou animais. Na pesca, as técnicas que
utilizavam (caniço, anzol, espinhel) garantiam ao mesmo tempo, a satisfação de suas
necessidades alimentares e a conservação das espécies. A industrialização da pesca
desestruturou essas formas tradicionais de relação com a natureza. Eraldo afirma, nesse sentido,
que houve conflitos entre os próprios moradores das comunidades rurais em virtude da adoção
dos Acordos de Pesca Comunitários e que a busca de “alternativas de sustentabilidade” pelo
GRANAV decorreu do fato dos moradores sentirem que esses acordos limitavam a sua inserção
na pesca comercial.

Considerações finais

A expansão capitalista nos rios da Bacia Amazônica contrastava com formas


tradicionais de apropriação da natureza e colocava não apenas a diversidade biológica em
perigo, mas as próprias populações que viviam nesses ambientes. A fundação do GRANAV,
ainda em 1992, possibilita a percepção do protagonismo das populações ribeirinhas quanto à
defesa desses recursos naturais, fundamentais para a manutenção de seus modos de vida, desde
o peixe que lhes garantia alimentação até as variadas espécies de árvores que serviam para a
construção de suas casas e canoas e que, também, significava a fartura no extrativismo. A
floresta garantia a presença da caça e dos peixes que vinham comer os frutos que caíam das
árvores situadas no entorno de lagos. O meio ambiente acionava sentidos de identidade, tempo
e memórias de experiências compartilhadas com parentes e vizinhos. Havia um encantamento
nas águas e florestas, lugares onde habitavam seres mágicos, como o boto e a cobra-grande.
As vigílias de lagos e posteriormente a organização do GRANAV são ações que têm
como base práticas tradicionais, que eram interpretadas como direitos consuetudinários que
garantiam a legitimação das lutas para que os moradores das comunidades enfrentassem a lei,
a polícia e a violência dos pescadores comerciais. Não era apenas o peixe na mesa que estava
em jogo, mas todo um modo de vida.

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Referências

Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de. Seringueiros, Caçadores e Agricultores:
Trabalhadores do Rio Muru (1970-1990). Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), 1995.
ALMEIDA, Paulo Roberto; FENELON, Déa; KHOURY, Yara Aun; MACIEL, Laura Antunes
(orgs). Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho Dágua, 2004.
ARANTES NETO, Antônio Augusto. Paisagens Paulistanas: transformações do espaço
público. Campinas, SP: Unicamp; Imprensa Oficial, 2000.
PANTOJA, Geandro Guerreiro. Acordos de Pesca: instrumentos para a cogestão dos recursos
pesqueiros em Parintins–AM. Dissertação (Mestrado em Ciências do Ambiente e
Sustentabilidade na Amazônia). Universidade Federal do Amazonas/UFAM. 2006.
POZZI, Pablo. Esencia y prática de La historia oral. In: Tempo e Argumento. Revista do
Programa de pós graduação em História da UDESC (Universidade do Estado de Santa
Catarina). Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 61-70, jan/jun. 2012.
RAMALHO, Cristiano W. N. Estado, Pescadores e Desenvolvimento Nacional: da reserva
naval à aquífera. In: Ruris, vol. 8, nº 1, março/2014.
SOUZA, Leno José Barata. “Cidade Flutuante”: Uma Manaus sobre as águas (1920-1967).
Tese (História Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), 2010.

Fontes Orais
⚫ Eraldo Albuquerque, 42 anos, casado. Sua entrevista foi realizada na sede da
EMBRAPA em Parintins. Eraldo fez agroecologia na Universidade do Estado do
Amazonas (UEA). Entrevistado por Mônica Xavier de Medeiros em 02/03/2016.
Gravado em áudio. Duração: 53 minutos. (25 páginas).
Jornais
⚫ JORNAL DO COMÉRCIO. Manaus ameaçada de ficar sem pescado na Semana
Santa: Vazante está grande. 29/02/1980. Cidade. Edição nº 22.926.
⚫ JORNAL DO COMÉRCIO. Piscicultura motivou debates entre deputados e técnicos.
p. 8. Edição nº 22.989. Manaus/AM.
⚫ JORNAL DO COMÉRCIO. Socorro denuncia barcos de pesca de Parintins no Rio
Andirá. 12/11/1981. Geral. p. 5. Edição nº 32.533. Manaus/AM.
⚫ JORNAL DO COMÉRCIO. Povo de Itapiranga reunido para denunciar o estrago do
peixe. 15/11/1981. Cidade. p. 3. Edição nº 32.536. Manaus/AM.
⚫ JORNAL DO COMÉRCIO. Capitania investiga massacre de 12 tripulantes do barco
pesqueiro. 12/02/1980.
⚫ JORNAL DO COMÉRCIO. Clima de tensão: Ribeirinhos disputam lagos com
pescadores. 13/01/1987. Cidade. p. 10. Manaus/AM.

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O ESTADO NOVO VISTO POR UM PAÍS VIZINHO: A PERSPECTIVA


URUGUAIA DA DITADURA VARGUISTA (1937-1945)

RAFAEL NASCIMENTO GOMES


Universidade de Brasília. Doutorando. Bolsista CAPES.
rafaelnascimentogomes@gmail.com

Resumo
O presente trabalho propõe-se a analisar a perspectiva uruguaia acerca da ditadura varguista a
partir da documentação diplomática. Este período do Estado Novo (1937-1945) é marcado pelo
autoritarismo de Getúlio Vargas, com violência, perseguição, exílio e repressão de seus
opositores. No Uruguai, após a ditadura de Gabriel Terra (1933-1938), ocorreu um amplo
processo de redemocratização conduzido pelo terrista Alfredo Baldomir (1938-1943) que
transmitiu o poder constitucional ao também colorado Juan José de Amézaga (1943-1947),
com uma campanha vitoriosa intitulada “Amézaga, candidato de la democracia”. Nesse
contexto, marcado pela deflagração da II Guerra Mundial (1939-1945), torna-se curioso e
necessário averiguar a perspectiva de um país vizinho, que passou por um processo de
redemocratização, acerca da ditadura varguista. Dessa maneira, a partir de sua projeção
regional, explorar-se-á os efeitos- e as contradições- da política externa estadonovista a partir
da ótica de diplomatas e políticos uruguaios. Isto é, o olhar de um país vizinho tem muito a
contribuir para a história nacional, em especial, de um período ditatorial em que as liberdades
eram cerceadas.
Palavras-chaves: Ditadura do Estado Novo; Getúlio Vargas; Relações Brasil-Uruguai

Introdução
A região do Rio da Prata foi uma preocupação constante e fundamental na política
externa brasileira do século XIX, sobretudo, em seu projeto a nível regional. Aqui, abordar-se-
á a região platina como um subsistema das Relações Internacionais do Brasil. Entende-se como
região do Prata países que estão física e historicamente inseridos na Bacia do Rio da Prata
(Argentina, Paraguai e Uruguai), banhados pelos rios Paraná, Paraguai e Uruguai, e não por
terem feito parte, no período colonial, do Vice-Reino do Rio da Prata. A Bolívia fez parte deste-

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era conhecida como Alto Peru-, mas, após a independência, geográfica e historicamente está
voltada para os Andes, embora o país seja signatário do Tratado da Bacia do Prata, de 1969.
Desde o processo de formação dos Estados Nacionais, a Banda Oriental enfrentou um
intenso conflito, ora externo, ora interno, até consolidar-se como Estado Oriental do Uruguai.
O Brasil, por sua vez, projetou-se no Rio da Prata como uma prioridade de sua política externa
imperial frente à rivalidade portenha. Nas palavras de Moniz Bandeira, eram os tempos do
expansionismo brasileiro, pois o Rio da Prata representava a chave de acesso ao estuário
superior do Paraná, Uruguai e Paraguai, que banhavam terras consideradas das mais ricas e
férteis do Brasil. Portanto, um elemento estratégico geopolítico e militar decisivo.
(BANDEIRA, 1998). Essa preocupação geopolítica permaneceu na formulação da política
externa brasileira ao longo do século XX.
Para analisar a perspectiva uruguaia acerca da ditadura varguista, a pesquisa
fundamentou-se em uma vasta e rica documentação diplomática do Archivo Histórico-
Diplomático de la República Oriental del Uruguay, em Montevidéu. Trata-se de uma
documentação composta por ofícios, despachos, telegramas, notas, relatórios, cartas e maços
pessoais analisada a partir do conceito de “forças profundas” de Pierre Renouvin e Jean-
Baptiste Durosselle. Para Renouvin e Duroselle, era necessário ir mais adiante e analisar as
“condições geográficas, os movimentos demográficos, os interesses econômicos e financeiros,
os traços da mentalidade coletiva, as grandes correntes sentimentais”, pois estas são “as forças
profundas que formaram o quadro das relações entre os grupos humanos e, em grande parte,
lhes determinaram o caráter”. Através desses documentos trocados entre as chancelarias,
embaixadas e consulados, é possível verificar a(s) perspectiva(s) do vizinho, no caso o Uruguai,
acerca da ditadura do Estado Novo. Com isso, pretende-se analisar os impactos, efeitos e
contradições de um regime ditatorial visto por um país vizinho que passava por um processo
de redemocratização num período marcado pelo conflito mundial.

As relações bilaterais entre o Brasil e Uruguai: breves apontamentos

Em relação à região do Rio da Prata, a diplomacia brasileira dos tempos de Vargas


manteve as diretrizes implantadas pelo Barão do Rio Branco (1902-1912); isto é: a defesa da

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estabilidade política regional; a não intervenção nos assuntos internos dos países vizinhos e a
permanente preocupação de manter o entendimento e o diálogo fluido com Buenos Aires. Isto
é, a política varguista dava continuidade à adesão, à solução pacífica de controvérsias e à
preocupação em aumentar o comércio regional, mas não estava totalmente descartada a
hipótese de guerra com o vizinho argentino. (DORATIOTO, 2014, p. 115). Cabe lembrar que
a perspectiva diferenciada de inserção na ordem internacional, somada à disputa pela influência
sobre os países vizinhos (Uruguai, Bolívia e Paraguai), marcou as relações políticas de
Argentina e Brasil entre 1930 e 1942. (SVARTMAN, 1999, p. 54).
Para Svartman, a construção da hegemonia brasileira na região não se restringia apenas
à presença econômica e à superioridade militar, mas envolvia também o campo político-
diplomático propriamente dito. No decorrer do Estado Novo, o Itamaraty imprimiu uma
orientação no sentido de intensificar a presença política brasileira nos demais países latino-
americanos, especialmente naqueles que faziam fronteira tanto com o Brasil quanto com a
Argentina. (SVARTMAN, 1999, p. 107). No plano bilateral, o Brasil também executaria uma
política ativa, cuja orientação era ampliar a sua presença política e econômica sobre os seus
principais vizinhos, em especial Uruguai e Paraguai.
Para isso, o Brasil explorava a rivalidade histórica entre os vizinhos platinos. Exemplo
dessa tradicional rivalidade no Prata entre Argentina e Uruguai foi a ruptura das relações
diplomáticas entre os países entre julho e setembro de 1932. (NAHUM, 1996, p. 194). Mais
uma vez os países platinos rompiam as relações diplomáticas por motivos de asilo político para
opositores do país vizinho, as chamadas “atividades de elementos subversivos” no território de
um ou outro. Depois de dois meses do rompimento das relações diplomáticas, Juan José de
Amézaga foi enviado por Gabriel Terra, como agente confidencial, a Buenos Aires para
retomar as relações entre os países vizinhos, e obteve sucesso. Enquanto isso, as relações com
o Brasil se intensificaram.
Nesse contexto, como contrapeso à Argentina, as relações do Brasil com o Uruguai
mereceram certa atenção da diplomacia brasileira e da diplomacia uruguaia. (GOMES, 2017;
p. 99-100). Com maior estabilidade política, apesar das radicalizações ideológicas entre
integralistas e comunistas, Vargas passou a valorizar uma presença mais ativa na região platina,
cuja orientação era ampliar a sua atuação política e econômica sobre os seus principais

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vizinhos. Segundo o presidente brasileiro, com os países americanos, particularmente,


“continuamos a praticar uma política de franca e crescente aproximação. Desejamos ampliar
cada vez mais, as relações de boa vizinhança, dando-lhes um caráter de verdadeira
solidariedade continental, e transportando-as mesmo para o terreno da cooperação econômica”.
(VARGAS, 1938, p. 88).
A constatação de que as legações do Brasil no exterior e as missões diplomáticas
brasileiras constituíam verdadeiros “postos de observação” da conjuntura internacional, para
orientar as ações do governo em sua política externa, facilitou a criação e organização de uma
agência anticomunista no governo Vargas junto ao Ministério das Relações Exteriores. Criada
oficialmente em 1937, junto ao Ministério das Relações Exteriores, a agência de Serviços de
Estudos e Investigações (S.E.I.)32 teve como objetivo central dar suporte à política de combate
à oposição, particularmente aos militantes partidários e sindicais, e um grande facilitador para
que os órgãos do governo monitorassem as conexões dos comunistas brasileiros além das
fronteiras do país. (NEPOMUCENO, 2018, p. 176).
Um dos resultados convergentes de proximidade entre os países foi a adoção de medidas
de repressão semelhantes e de proteção entre os governos contra seus opositores, de troca de
informações não somente entre as polícias políticas, mas entre as chancelarias, para impedir,
cercear, vigiar e até mesmo prender ou extraditar políticos e intelectuais que opunham
resistências aos regimes autoritários implantados em vários países da América Latina. No caso
das relações diplomáticas entre o Brasil e Uruguai, o combate aos chamados “subversivos”,
como defendeu a historiadora uruguaia Ana Maria Rodriguez Ayçaguer, foi um dos cinco
pontos que resumiu a agenda bilateral, estritamente política, assinada em 1930 pelos dois
países. (AYÇAGUER, 2008, p. 101) Esse acordo implicou não mais em meras recomendações
ou prisões de opositores de ambos os lados, mas no rompimento das relações do Uruguai com
a Rússia, por pressão do governo brasileiro, em dezembro de 1935. A alegação do Brasil era
de que a Rússia, que tinha amplos acordos comerciais com o Uruguai, estava ajudando o
Partido Comunista Brasileiro na organização dos levantes de 1935. Mesmo sem comprovação

32 O S.E.I, segundo o projeto de portaria assinado pelo Ministro das Relações Exteriores em 1937, estaria em
atividade (ainda que em caráter experimental), desde 1934. In: AHDI-RJ. Doc 352.345. Maço 15.604. Lata 980.
M 500.1.p2.

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convincente, a pressão do governo brasileiro levou o Uruguai, contra a sua vontade, mas em
nome dos pactos entre países americanos, a romper as relações comerciais durante muitos
meses com a Rússia. Inaugurava-se naquele momento, dentro do governo Vargas, a atuação
ativista de uma diplomacia voltada para consecução de políticas anticomunistas.
(NEPOMUCENO, 2018, p. 188).
Na verdade, Getúlio Vargas já vinha mantendo entendimento com o governo uruguaio
desde o golpe de Estado desferido por Gabriel Terra e seus aliados, em março de 1933.
Documentos diplomáticos atestam que Terra contou com Getúlio Vargas para deter os
opositores de seu governo que adentraram o território brasileiro pela fronteira, logo após o
golpe. Em contrapartida, o Uruguai ajudou o governo do Brasil a. impedir o trânsito entre
comunistas brasileiros e uruguaios, em 1935, a pedido de Getúlio, num episódio que resultou
no rompimento de relações entre o Uruguai e Rússia. Em 1937, a polícia política do Uruguai
conseguiu desbaratar um núcleo de opositores a Getúlio, liderados por Flores da Cunha, que
desde a Argentina e o Paraguai se articulavam no Uruguai para marchar contra o governo de
Vargas.
Durante os anos mais tenebrosos da ditadura terrista, muitos uruguaios conseguiram
asilo no Brasil, retornando somente alguns anos depois. Caso, por exemplo, de Tomás Berreta,
que voltou para o Uruguai somente em 1942, tendo sido eleito presidente em 1947, ou o caso
de Luís Batlle Berres, que regressou para ser vice-presidente de Berreta, e o substituiria como
o 30º presidente da República do Uruguai, de 1947 a 1951. E outros tantos brasileiros também
se exilaram no Uruguai, como Jorge Amado (Argentina e Uruguai, de 1941 a 1944), Candido
Portinari (Uruguai, 1947 a 1948), Lídia Besouchet (Uruguai, 1938 a 1940; Argentina, até 1948)
e Newton Freitas, entre outros. (NEPOMUCENO, 2015, p. 13-14).

O Estado Novo sob a ótica dos uruguaios

Em novembro de 1937, mais uma vez as relações brasileiro-uruguaias eram testadas,


com a implantação da ditadura do Estado Novo varguista. Nessas circunstâncias, a cooperação
fronteiriça como política de vigilância dos opositores à Getúlio Vargas marcou esse momento
de consolidação de seu poder. O Uruguai, por sua vez, vivia a transição de governos terristas.

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O ditador Gabriel Terra era sucedido pelo seu ministro da Guerra. Durante o governo de
Alfredo Baldomir, marcado pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, ocorreram mudanças
significativas no cenário internacional e regional que afetaram as relações bilaterais entre o
Brasil e Uruguai. Isso porque apesar de ser um dos seguidores de Terra, o governo baldomirista
prometeu mudanças significativas na condução de sua política, tanto interna quanto externa,
sobretudo, na política doméstica com a redemocratização do país
No Brasil, desde maio de 1937 pelo menos, avançaram os planos para isolar o Rio
Grande do Sul com tropas federais, pois, segundo o presidente, “havia indícios de que Flores
da Cunha preparava um movimento armado”. (MCCANN, 2009, 511). Parra Vargas, o
governador gaúcho representava a pedra angular da potencial oposição política dos estados à
centralização; os políticos de outros estados provavelmente não se mexeriam sem sua liderança.
Os movimentos políticos de Vargas culminados com a instauração do Estado Novo não era
novidade para os círculos políticos e diplomáticos uruguaios. El País, de 8 de outubro de 1937,
por exemplo, estampava “Se esta gestando em Brasil-fríamente- la implantación de una
dictadura militar”. Un ataque a las instituciones”, em um de seus artigos.33 El Diário, em 19
de outubro, estampava em sua capa: “En el tren internacional llegó esta mañana a Montevideo
el General José A. Flores Da Cunha.”.34 Um dos principais opositores de Vargas, Flores da
Cunha, instalara-se em Montevidéu, exilado. Desde sua passagem por Rivera, era observado
atentamente pela diplomacia uruguaia.35
No mês seguinte, após a implantação do Estado Novo no Brasil, um novo embaixador
era designado para ocupar a embaixada em Montevidéu para seguir os passos de Flores da
Cunha. Em nota emitida ao chanceler uruguaio, em 4 de janeiro de 1938, João Batista Lusardo
oficializava o pedido de vigilância policial ao político gaúcho Flores da Cunha. Essa assistência
política e policial num momento em que o Brasil se encontrava sob “estado de emergência”,

33 El País, 8 de octubre de 1937. In: Ofício No. 214, de 22 de outubro de 1937. Lucílio da Cunha Bueno ao
Ministro Mário de Pimentel Brandão. Situação política do Brasil. Ofícios. Set/1937-Fev/1938. Embaixada
brasileira em Montevidéu. In: AHI, Rio de Janeiro.
34 El Diário, 19 de octubre de 1937. In: Ofício No. 214, de 22 de outubro de 1937. Lucílio da Cunha Bueno ao
Ministro Mário de Pimentel Brandão. Situação política do Brasil. Ofícios. Set/1937-Fev/1938. Embaixada
brasileira em Montevidéu. In: AHI, Rio de Janeiro.
35 Telegrama de 18 de octubre de 1937. Garibaldi Batello, cónsul uruguayo en Rivera, al Ministro de
Relaciones Exteriores. Diplomacia. Montevideo. In: Política del Brasil. Informaciones-1937. Legación en el
Brasil. Serie Brasil (1930-1940). Caja 4 (1935-1945). Carpeta No. 231; AMREU.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

conforme enfatizava o embaixador brasileiro, era necessário para prevenir ações futuras e
conspiratórias dos opositores de Vargas residentes na capital uruguaia. O governo brasileiro
jurava tratamento de reciprocidade caso necessário. Dias depois, em encontro com o presidente
Getúlio Vargas em Uruguaiana, Lusardo confirmava o apoio do governo terrista.36
Em Montevidéu, ao substituir Lucílio da Cunha Bueno, acusado de manter contato com
Flores da Cunha, o novo embaixador brasileiro tinha um objetivo muito claro: vigiar e combater
as ações políticas de Flores da Cunha e demais opositores. (SVARTMAN, 1999, p 65). Assim,
ao se aproximar de Gabriel Terra, Lusardo conseguiu com que o governo uruguaio
determinasse um regime de liberdade vigiada para o político gaúcho, e daí, organizou um
dispositivo legal para vigiá-lo, tal como a embaixada brasileira em Buenos Aires tinha
solicitado ao governo argentino.
Entretanto, mesmo exilado em Montevidéu, Flores da Cunha empreendia campanhas
contra o governo de Getúlio Vargas. Em janeiro de 1939 foi responsável por um artigo
publicado em português intitulado “Panorama financeiro e econômico do Brazil” no jornal
nacionalista El País com diversas críticas ao Estado Novo. Apesar de Flores da Cunha não ter
assinado o artigo, Lusardo descobriu que a autoria era do político gaúcho, que mantinha
relações próximas com ex-senador Rodriguez Larreta e seu cunhado e ex-embaixador em
Buenos Aires, Leonel Aguirre, ambos dirigentes do El País. No entanto, a sua ligação com o
blanco Luíz Alberto de Herrera era ainda mais forte, segundo o embaixador brasileiro. Não
teria publicado a matéria crítica ao governo brasileiro no jornal de Herrera, El Debate, pois
ficaria evidente a sua produção.37
Inicialmente prevista para durar apenas o período necessário para obstruir as atividades
políticas de Flores da Cunha, a estadia de Lusardo na capital uruguaia se prolongou até outubro
de 1945, com a deposição de Getúlio Vargas. Sendo o diplomata brasileiro que mais tempo
permaneceu em Montevidéu, João Batista Lusardo conquistou certa notoriedade nos ambientes
políticos e sociais uruguaios. Nesse sentido, foi figura fundamental da política varguista para

36 Nota no. 2, de 4 de janeiro de 1938. João Batista Lusardo ao Ministro de Estado das Relações Exteriores José
Espalter. In: Ofícios. Mar/Jul. 1938. Embaixada brasileira em Montevidéu. AHI, Rio de Janeiro; 33/3/9.
37 Ofício No. 6, de 17 de janeiro de 1939. João Batista Lusardo ao Ministro Oswaldo Aranha. Campanha contra
o Brasil por brasileiros. In: Ofícios. Nov/1938-Jan/1939. Embaixada brasileira em Montevidéu. AHI, Rio de
Janeiro; 33/3/11.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

o Uruguai, uma vez que a sua longa permanência na cidade implementou uma aproximação do
Brasil com o Uruguai, tanto em termos políticos quanto econômicos e culturais.
Além da assinatura de acordos e do incremento do comércio bilateral, Luzardo
encabeçou os esforços do Itamarati para tornar o Brasil mais presente no vizinho meridional,
pela inauguração de linhas regulares de trem e de avião entre os países. Do ponto de vista
político, a Embaixada brasileira gozou de sensível êxito junto aos governos uruguaios do
período, conseguindo desde a colaboração da polícia local na vigilância de Flores da Cunha até
a obtenção de informações sigilosas a respeito da Argentina, cuja influência política na região
preocupava tanto o governo brasileiro quanto o de Montevidéu. Antes mesmo da Conferência
do Rio de Janeiro, em 1942, por exemplo, o Brasil consolidara o apoio do Uruguai à sua política
para o Prata, de forma que Luzardo indicou Alberto Guani, chanceler uruguaio, para assessorar
Oswaldo Aranha nos trabalhos dessa conferência. (SVARTMAN, 1999, p. 65).
O Uruguai, por sua vez, mantendo sua “neutralidade aliadófila”, passava por mudanças
de governos colorados. Em 1º de março de 1943, Alfredo Baldomir transmitiu o seu mandato
presidencial para Juan José de Amézaga (1943-1947), declaradamente pró-aliado e pró-norte-
americano. Seu governo foi marcado por intensos e ferrenhos debates políticos acerca do
envolvimento ou não de seu país no conflito mundial. Sobretudo, após a participação efetiva
do Brasil com envio de tropas militares. Alberto Guani, chanceler de 1938 a 1943 e vice-
presidente de 1943 a 1947, passou de um governo transitório em termos de redemocratização
para a consolidação aliadófila do governo Amézaga com inalterável adesão à Washington, da
neutralidade ao compromisso bélico. Para Romeo Pérez Antón, se dependesse pessoalmente
de Guani, o Uruguai teria declarado guerra ao Eixo imediatamente após os ataques de Pearl
Harbor. (ANTÓN, 2010, 30). O presidente Amézaga em seu primeiro discurso público
destacou que nada mudaria em relação à condução da política externa uruguaia. Segundo ele:

El Uruguay se mantendrá solidario con los países del continente americano


y mantendrá los lazos fraternales que lo unen a sus dos grandes vecinos:
Argentina y Brasil. La nación reprueba enérgicamente el régimen de las
dictaduras que han impuesto al mundo la más cruel de las guerras, verdadero
desafío a la civilización. 38

38 Telegrama No. 231, de 16 de marzo de 1943. Joseph de Neef, ministro de Bélgica, comenta el discurso
inaugural del nuevo Presidente de la República, Juan José Amézaga, y el nombramiento de José Serrato en el
Ministerio de Relaciones Exteriores. In: NAHUM, 1998; p.484.

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De toda forma, o Uruguai rompeu relações diplomáticas com os países do Eixo em 25


de janeiro de 1942. Anteriormente tinha assumido uma postura de neutralidade que se inclinava
para os beligerantes antifascistas e compatível com a solidariedade continental em sistema
defensivo. (ANTÓN, 2010, p. 30). Apesar de ter assumido uma postura pró-aliada desde o
início do conflito, o país declarou guerra ao Eixo somente em fevereiro de 1945. Por outro
lado, no dia 22 de agosto de 1942, o Brasil declarou guerra à Alemanha e à Itália. A decisão
não foi fácil, sobretudo diante da penúria e despreparo bélico das Forças Armadas. A
declaração de guerra era uma resposta ao afundamento de cinco navios de passageiros pelo
submarino alemão U-507, entre os dias 15 e 17 de agosto, matando 605 brasileiros no litoral
de Sergipe e da Bahia. Durante dois dias na capital do país, e em diversas capitais de estados e
em inúmeros municípios ocorreram manifestações de protestos, passeatas e comícios
condenando a atitude do governo alemão e exigindo que Vargas declarasse guerra à Alemanha.
(FERREIRA, 2017, p. 90)
A Segunda Guerra Mundial redefiniu o contexto mundial e regional. Desde o
momento em que o Brasil se definiu pela democracia contra o totalitarismo nazifascista, o
governo de Getúlio viu-se condenado. O Estado Novo foi se deteriorando à medida que a guerra
chegava ao fim. Muitas forças sociais, inclusive os militares, que haviam apoiado o regime, se
adaptaram rapidamente às novas tendências internacionais e afirmavam seu apoio à causa
democrática, enquanto sobre o presidente Vargas se concentravam os ataques dos descontentes.
Fossem neodemocratas por conveniência ou convicção, o fato é que a conversão desses líderes
desempenhou um papel expressivo na erosão do apoio ao regime varguista. (MOURA, 2012,
p. 170).

Considerações finais

A partir da documentação consultada e analisada, pode-se concluir que as relações


diplomáticas entre o Brasil e Uruguai durante o Estado Novo foram, predominantemente,
amistosas, no entanto, não esteve livre de pressões, tensões e conflitos, sobretudo, a partir do
início da II Guerra Mundial. Tradicionalmente, no Rio da Prata, as relações bilaterais entre o

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Brasil e Uruguai serviram como um contrapeso às relações conflitantes entre Brasil e


Argentina, e também às relações hostis entre Uruguai e Argentina. Com a instalação do Estado
Novo, houve uma reafirmação das relações brasileiro-uruguaias. Isso, em grande medida, por
conta da aproximação político-ideológica dos regimes políticos daquele período, isto é, os
governos terristas de Gabriel Terra (1931-1938) e Alfredo Baldomir (1938-1942), no Uruguai
e o governo estado-novista no Brasil (1937-1945). Nem mesmo com as mudanças de regimes
políticos houve o esfriamento das relações brasileiro-uruguaias. É verdade que as preocupações
e tensões com a Argentina contribuíram para essa aproximação entre os países. Por
conseguinte, o Uruguai se aproximou ainda mais do Brasil, bem como assumiu posturas
convergentes às posições brasileiras em fóruns pan-americanos.

Nota-se, portanto, que a perspectiva uruguaia acerca da ditadura varguista a partir da


documentação diplomática uruguaia em contraste com a documentação brasileira muito
contribui para a análise da política externa brasileira durante o Estado Novo, em especial na
política de vigilância de Flores da Cunha, exilado em Montevidéu, e de outros opositores. O
Uruguai, mesmo durante o processo de redemocratização iniciado pelo governo Baldomir e
consolidado pelo governo Amézaga, aproximou-se politicamente da ditadura varguista.
Getúlio Vargas não era uma unanimidade; não era visto de forma homogênea pelos políticos,
diplomatas e militares uruguaios, no entanto, era um aliado necessário para se opor e
contrabalancear ao vizinho agressivo do outro lado do Rio da Prata. Por fim, constata-se que
olhar de um país vizinho como o Uruguai tem muito a contribuir para o estudo do
funcionamento político e diplomático do Brasil.

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(Montevidéu, Uruguai);
⚫ Biblioteca del Instituto Artigas del Servicio Exterior (Montevidéu, Uruguai);
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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

A CIDADE COMO TEXTO: PATRIMÔNIO EDIFICADO, HISTÓRIAS E


MEMÓRIAS DA CIDADE DE PARINTINS (AM)

RODRIGO TAVARES DE SOUZA


Universidade Federal do Amazonas, Mestrando
rsouza90@hotmail.com

Resumo

Este artigo faz parte do projeto de pesquisa intitulado “A cidade como texto: patrimônio
edificado, histórias e memórias da cidade de Parintins (AM)”, cujo objetivo foi analisar as
múltiplas interações entre História e Memória da cidade de Parintins a partir da identificação e
análise das ideias e valorações acerca do patrimônio histórico edificado da cidade que se
materializam na percepção de seus habitantes. A pesquisa buscou ainda indicar a relevância do
patrimônio edificado da cidade de Parintins como suporte para a construção/resgate de outras
memórias e histórias da cidade.

Palavras-chave: História; Memória; Patrimônio histórico;

Introdução
Este artigo faz parte do projeto de pesquisa intitulado “A cidade como texto: patrimônio
edificado, histórias e memórias da cidade de Parintins (AM)”, cujo objetivo foi analisar as
múltiplas interações entre História e Memória da cidade de Parintins a partir da identificação e
análise das ideias e valorações acerca do patrimônio histórico edificado da cidade, que se
materializam na percepção de seus habitantes. A pesquisa buscou ainda indicar a relevância do
patrimônio edificado da cidade de Parintins como suporte para a construção/resgate de outras
memórias e histórias da cidade.
Em que pese ser uma das mais importantes cidades do Estado do Amazonas e
nacionalmente conhecida por suas festas populares e produção cultural, há poucos estudos
históricos sobre o patrimônio edificado da cidade de Parintins. Pouco se comenta que o
Patrimônio Histórico e Cultural da cidade também conta uma história da localidade e de seus

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habitantes, assim como estes conhecem e difundem histórias da cidade que assimilaram por
suas lembranças e pela memória dos mais velhos (pais, mães, avôs e avós).
Neste sentido, tomando o patrimônio histórico edificado como mote, o projeto buscou
explorar essas múltiplas interações entre memória e história. Para o desenvolvimento do
trabalho, foram realizadas leituras contextuais sobre a cidade de Parintins e sobre o tema do
Patrimônio Histórico, visando reforçar o embasamento da pesquisa. Realizamos ainda pesquisa
de campo, utilizando técnicas da História Oral, abrangendo uma série de entrevistas com
moradores destacados (mais velhos, historiadores e professores de história) da cidade.
O Patrimônio Histórico de Parintins é composto de um conjunto de elementos materiais
e imateriais, entre eles, suas manifestações culturais, seus sítios arqueológicos e,
principalmente, suas edificações históricas, as quais apresentam um quantitativo pequeno de
exemplares, porém, construídos nos seus mais variados estilos e épocas. Com base nisso,
esperamos detectar as relações existentes entre a população do município de Parintins e o seu
patrimônio edificado. A pesquisa buscou inventariar as edificações e outros bens materiais do
período de 1895 a 1970.

Memória, Patrimônio e Preservação


A preservação do patrimônio histórico, nas últimas décadas, vem ganhando muita
importância na sociedade. A preservação busca manter viva a memória de uma cidade, de um
país e de seu povo, pois uma sociedade que não preservar a sua história e de seu patrimônio,
consequentemente, “não conseguirá planejar o seu futuro, pois, o patrimônio construído e
preservado é um ativo urbano de fundamental importância para as futuras gerações”
(SOMEKH , 2014).
O conceito de patrimônio, da origem romana patrimonium, desde a sua invenção até a
contemporaneidade, já recebeu muitos significados. Podem ser identificados com destaque
dentro das cidades, despertando reflexões, por se inserirem no conjunto de manifestações
populares ou por representações de fatos históricos memoráveis, o patrimônio, em sua esfera
material, constitui-se de um grupo diversificado de monumentos, conjuntos arquitetônicos,
sítios urbanos históricos, etc. E em sua esfera imaterial, as manifestações das culturas
populares, festejos tradicionais, rituais, técnicas produtivas, cantos, contos, lendas.

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Françoise Choay conceitua a expressão “patrimônio histórico” como o produto do saber


humano, e destaca que:

A expressão designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que


se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumulação contínua de
uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras
e obras-primas das belas artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de
todos os saberes dos seres humanos. (CHOAY, 2001, p. 11).

A preocupação com a proteção e salvaguarda dos patrimônios históricos começou no


início do século XX, quando foram criadas várias comissões e conferências para estabelecer
critérios para proteger e conservar o patrimônio histórico no mundo todo. No Brasil, as
primeiras medidas oficiais surgiram em 1936, através da criação do SPHAN-Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje denominado IPHAN, cuja missão é proteger,
restaurar, documentar, preservar, divulgar e fiscalizar os bens culturais brasileiros, com vistas
a assegurar a permanência e usufruto desses bens para as futuras gerações.
A Constituição Federal de 1988 apresenta um espaço significativo relativo à cultura e
aos bens culturais, tendo no artigo 216, incisos I a V, a relação dos bens que constituem o
patrimônio cultural brasileiro. A carta magna dispõe que “constituem patrimônio cultural
brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira”.
A Constituição brasileira, no Artigo 30, também atribui aos municípios a
responsabilidade de “promover a proteção do patrimônio histórico cultural local, observada
a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual”. Também define a preservação do
patrimônio cultural como um direito fundamental à pessoa humana, pois deste se produz
também a preservação da identidade cultural do sujeito.
Um dos mecanismos das políticas públicas de preservação do patrimônio cultural é o
tombamento, que devido à pouca divulgação torna-se uma ação desconhecida pela maioria da
população e gestores municipais. Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional - IPHAN, o tombamento é um ato administrativo realizado pelo Poder Público com
o objetivo de “preservar, por intermédio da aplicação da legislação específica, bens de valor

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histórico cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população,


impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados”.
A preservação do patrimônio histórico tem por objetivo manter viva a memória e os
valores destas construções dentro das cidades que, sem políticas de preservação, estão cada vez
mais ameaçadas pela especulação imobiliária e construção de grandes empreendimentos. O ato
de preservar deve ser a alternativa, pois, além de revitalizar o uso desses imóveis, permite que
a sociedade tenha maior percepção da importância histórica daqueles bens e espaços para a
própria comunidade.
O reconhecimento destes espaços, bem como sua preservação e revitalização, são
necessários para promover a recuperação de um passado importante para a formação daquela
cidade. Essa opinião é confirmada pela afirmação de MESQUITA (2006) quando diz que “a
interrogação sobre a cidade conduz à história ao buscar identificar as diversas forças que
moldaram a cidade evidenciando seus múltiplos artesãos”. Neste sentido, a sociedade deve ter
papel ativo neste processo de reconhecimento e preservação dos bens que compõem o seu
patrimônio histórico, atribuindo-lhes os significados e valorização desses bens e espaços.
Para realizar a melhor forma de preservação, é necessário antes de tudo compreender o
sentido do patrimônio cultural como um legado para as gerações futuras. Neste processo de
compreensão e escolha dos bens a serem considerados como patrimônio cultural, a história,
memória e identidade cultural exercem tarefas muito importantes na orientação e definição dos
valores, direcionando as escolhas desses bens.
A memória é definida como sendo a capacidade de reter ideias, impressões e
conhecimentos adquiridos, é comumente relacionada ao ato de lembrar ou reminiscência de
experiências vividas num tempo que passou. Assim, toda lembrança é uma espécie de
reconstrução do passado, a partir dos valores de um indivíduo ou um grupo de pessoas que
lidam cotidianamente com a memória, mas, também com o esquecimento.
Nesse sentido, a sociedade contemporânea tende a construir os “lugares de memória",
locais de rememoração tão significativos para afirmação de iniciativas de preservação e
continuidade da noção pertencimento. Segundo Pierre Nora (1993, p. 12) “os lugares de
memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência
comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora".

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Os espaços de memória representam o registro simbólico ou material que dão sentido à


vida humana, representam as vivências de pessoas que conviveram ou ainda convivem
naqueles espaços. Estes “lugares de memória” são instrumentos permanentes para o exercício
da memória nas sociedades e têm como objetivo evitar o desaparecimento dos registros
históricos.
Sendo assim, ao relembrar o passado, a relação entre memória e história acaba por se
tornar também uma forma de preservação, uma reminiscência dos acontecimentos para evitar
o esquecimento. Nessa perspectiva, Le Goff (2003, p. 14) corrobora que “a memória, na qual
cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente
e ao futuro”.
A memória exerce assim função importante para construção do patrimônio, uma vez
que ela oferece significados nos espaços classificados como algo sem valor. Segundo Maurice
Halbwachs (2006, p. 29) a memória pode ser classificada, em “memória coletiva, que são
lembranças referentes a uma nação, comunidade ou cidades, e memória individual, que
corresponde à memória de uma pessoa, relatos orais e biografias”. E acrescenta que estas
memórias não existem de forma isolada, elas se complementam mutuamente.
Michael Pollak (1989, p. 10), ao abordar os indicadores da memória coletiva, de um
lado destaca o monumento, o patrimônio e as datas, e do outro, o folclore, as tradições e
costumes, como duas linhas formadoras de identidade histórica. Para Pollak, uma das funções
essenciais da memória é justamente manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo
que um grupo tem em comum, ou seja, os seus “pontos de referência” que reforçam os
sentimentos de pertencimento dos indivíduos aos grupos.

Metodologia

Inicialmente, efetuamos leituras contextuais sobre a cidade de Parintins, bem como as


leituras teóricas sobre o tema do Patrimônio Histórico, visando reforçar o embasamento da
pesquisa. Em paralelo, foi realizado ainda, o levantamento das principais edificações que
frequentemente são arroladas nos discursos oficiais e nos estudos acadêmicos como integrantes
do patrimônio histórico. A pesquisa buscou inventariar as edificações e outros bens materiais
no período de 1895 a 1970. Realizamos também a pesquisa de campo, utilizando técnicas da

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

História Oral, abrangendo entrevistas com moradores destacados (mais velhos, historiadores e
professores de história) da cidade. Para análise dos dados foram utilizadas técnicas qualitativas.
Devido à diminuta existência de registros escritos sobre o patrimônio histórico de
Parintins-AM, demos ênfase e utilizamos como recurso metodológico a História Oral. Neste
sentido, nos apoiamos na leitura de produções historiográficas de teóricos como Alberti (2013),
Freitas (2006), Meihy (2018), Nora (1993), Pollack (1989), Portelli (1997), entre outros
autores, como meio para construir o trabalho por meio das narrativas de moradores da cidade
acerca de seu patrimônio.
A História Oral fornece documentação para reconstruir o passado recente, pois o
contemporâneo também é história, isso legitima a história do tempo presente, visto que a
história durante muito tempo fora relegada somente ao passado. De acordo com Freitas (2006),
“utilizando a metodologia da História Oral, produz-se uma documentação diferenciada e
alternativa à história”, antes realizada quase exclusivamente com fontes escritas. Neste sentido,
a História Oral abriu novas perspectivas para o entendimento de um passado recente,
amplificando as vozes que não se fariam ouvir, possibilitando assim o conhecimento de
diferentes “versões” sobre os fatos, podendo os depoimentos apontar continuidades ou
contradições nas narrativas dos entrevistados.
Para Meihy (2018, p. 15) História Oral é um “procedimento premeditado realizado
segundo a orientação de expressa de um projeto”, e “usado para elaboração de documentos,
arquivamento e estudos referentes a experiência de social de pessoas e de grupos”.
De acordo com Verena Alberti (2013, p. 155), existem alguns equívocos sobre a
História oral que devem ser descartados de imediato, como a consideração de que “a História
oral é a própria História”, de que a “história vista de baixo é a democrática”, em oposição à
história das elites, e ainda que “a História oral busca dar voz às minorias”, o que apenas
reforçaria as diferenças sociais. Para a autora, a História oral deve ser compreendida como
visões de mundo e experiências de vida.
É importante destacar que o uso da história oral como metodologia não evidencia a
exclusão da importância da escrita para a pesquisa em história. Contudo, compreende-se a
necessidade de tal metodologia como importante instrumento para conhecer as memórias
daqueles que frequentemente têm suas histórias silenciadas na historiografia oficial.

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Neste sentido, o historiador que utiliza as metodologias da História Oral tem por
objetivo a compreensão dos diversos pontos de vista narrados por seus colaboradores, que
narram e reconstroem a memória de si e da sociedade em que convivem, ou conviveram. Para
reconstrução dessas memórias e histórias, o estudo do patrimônio histórico e das cidades, são
espaços que apresentam muitas manifestações que constituem signos reveladores das
reminiscências das histórias do lugar, e podem ser contadas para que a história se mantenha
viva nas tradições e na memória das pessoas.

Resultados e discussões

As entrevistas foram realizadas como parte da pesquisa de campo para escrita da


dissertação ao Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal do Amazonas.
O objetivo do trabalho foi identificar as múltiplas concepções de patrimônio histórico
manifestadas na percepção dos moradores da cidade de Parintins, partindo das memórias
recolhidas desses moradores e que presidem suas valorações em termos do que melhor
identifica e expressa a história da cidade.
As entrevistas foram realizadas na cidade de Parintins, nos meses de dezembro de 2019
e julho de 2020. Entre os critérios de seleção para entrevistas foi o de que os entrevistados
fossem moradores da cidade. Foram entrevistados cerca de 16 moradores com idades entre 33
a 79 anos, entre estes professores de História, funcionários públicos, microempresários,
aposentados, poetas e escritores.
Estes moradores guardam parte das memórias da cidade, e por intermédio da História
Oral, buscamos perceber interações e contrapontos com a história oficial e a visão dos
historiadores da cidade. Como forma de promover o conhecimento das memórias desses
moradores, optamos por manter os nomes desses narradores bem como a narrativa em sua
originalidade.
Para identificar as concepções de patrimônio histórico que presidem a compreensão dos
moradores da cidade de Parintins e quais edificações são por eles indicadas como
exemplificadoras desse patrimônio, através de roteiro semiestruturado, perguntamos sobre a
definição que os entrevistados têm sobre patrimônio histórico, buscando estimular estes
moradores a falarem o que eles entendem sobre o tema e as múltiplas concepções por eles

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percebidas e as edificações por eles consideradas de valor histórico e dignas de preservação e


conservação.
A respeito deste primeiro questionamento, os moradores responderam de forma
bastante ampla sobre o entendimento e o significado de patrimônio histórico, mencionando os
diversos tipos de patrimônio, sendo em sua maioria relacionados à cidade de Parintins, como
as edificações, ruas e praças do centro histórico da cidade, as questões relacionadas à identidade
e memória do povo parintinense, tais como culinária, as manifestações culturais como a festa
do Boi-Bumbá, as quadrilhas juninas, as pastorinhas, o sítio arqueológico da região da Valéria,
entre outras manifestações. O trecho a seguir reforça este entendimento.
Para o morador do bairro da Santa Clara, Deilson Trindade, 45 anos, professor de
História no IFAM-Campus Parintins, que nasceu e cresceu na cidade de Parintins e passou
parte de sua infância morando no bairro Centro, o professor e pesquisador afirma que o
patrimônio histórico:
Tem várias concepções. Se você for pela aquela questão conceitual, o
patrimônio histórico material, o patrimônio histórico imaterial, é muito amplo
estas considerações. Mas, se eu for buscar uma vertente, por exemplo, do
patrimônio material, é tudo aquilo te remete a uma memória, é tudo aquilo
que você se referencia. Por exemplo, na questão de Parintins, como eu vivi
minha infância no centro da cidade, eu tenho como patrimônio histórico os
lugares que eu frequentava, a praça da prefeitura, o mercado municipal onde
eu ia com minha mãe, a principal rua da cidade que era rua da frente, que ia
desde o cais (Porto de Parintins). Aliás, desde a praça do Sagrado até a praça
do Comunas [...] Então, é isso que ficou na minha memória, então pra mim
essa região, ela tem uma memória e por isso eu considero como patrimônio
cultural. As casas, muitas delas foram demolidas, as outras estão
abandonadas, mas, pra mim existe um marco de patrimônio. [Antiga]
Prefeitura, [igreja] Sagrado Coração, o Cais do Porto, embora muito
modificado, ainda me remete a patrimônio, porque ali é um lugar de chegadas
e de saídas. (DEILSON TRINDADE, 2019/ ENTREVISTADO)

Dando prosseguimento, os entrevistados foram questionados sobre em qual região da


cidade, estão localizados os bens considerados como patrimônio histórico no município de
Parintins. Muitos deles apontaram a região central da cidade como a área que concentra grande
parte dos prédios considerados como patrimônio histórico por eles. Outros também
mencionaram áreas distantes do centro da cidade como a comunidade do Parananema, onde

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existe uma capela antiga em homenagem a São Benedito e a comunidade da Valéria, interior
do município, onde há um sítio arqueológico.
Em Parintins, um dos moradores conhecidos da cidade é o senhor Basílio Tenório, 67
anos, historiador, pesquisador, escritor e poeta. Ele nasceu em Urucará, mas reside na cidade
desde os 12 anos, ele nos relata que:

O centro de Parintins. E nem poderia ser diferente. Por exemplo, ali junto aos
cais do Porto, a residência episcopal [...] ela é um patrimônio histórico, ali era
os Correios, era onde se fazia a comunicação, o cabo submarino partia de lá
[...] ali tem história. Temos também ali, a antiga igreja Matriz Sagrado
Coração de Jesus, e o Colégio Nossa Senhora do Carmo atrás, que foi
desenhado pelo padre Victor, entre os anos de 1920 e 1930. De lá, nós vamos
ter aqui, o Mercado Municipal, nós vamos ter a casa das Maranhão, a casa do
Elias Assayag, o antigo Cine Brasil, que depois virou Cine Saul, que já não
existe mais. [...] Já ali acima, em frente à antiga praça Cristo Redentor,
aquelas casas ali era dos Judeus, aquilo já remete aos primeiros anos do sec.
XX. (BASÍLIO TENÓRIO, 2019/ ENTREVISTADO)

Com base nos relatos acima, os historiadores mencionam como a área central da cidade
e suas edificações contam uma parte importante da história de Parintins, com destaque à
formação do primeiro núcleo de organização dos primeiros aldeamentos, povoados e missões
religiosas que deram origem a Villa Nova da Rainha e, posteriormente, à cidade de Parintins.
Mencionam ainda, o papel importante da Igreja Católica na construção dos primeiros templos
religiosos da cidade. Além de citar as edificações construídas por imigrantes judeus que se
estabeleceram na cidade no final do século XIX, dedicando-se às atividades comerciais,
também contribuíram para o desenvolvimento do município.
Quando perguntados se pudessem escolher alguma edificação como patrimônio
histórico para representar a cidade de Parintins, entre as respostas foram mencionadas as
principais edificações, ao lado dos nomes constam os ano de construção desses bens imóveis:
Casa da Família Maranhão (1901); Palácio Cordovil ou antiga Prefeitura (1937); Mercado
Municipal (1931); Grupo Escolar Araújo Filho (1929); Casario dos Judeus (1937); Igreja do
Sagrado Coração (1883); Escadaria da Praça Cristo Redentor (1895); Catedral de Nossa
Senhora do Carmo (1963); Colégio Nossa Senhora do Carmo (1956); Cine Oriental (1964);
Residência de Furtado Belém (1952). Os entrevistados também mencionaram algumas
construções que não existem mais ou foram descaracterizadas, como a sede do antigo Cine

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Saul (1948), antigo Cine Teatro Brasil, cuja fachada foi demolida e hoje abriga lojas
comerciais; e a antiga praça do Cristo Redentor (1956), que passou por reforma em 2005,
passando a se chamar praça Digital.

Antiga Praça do Cristo Redentor


Fonte: IBGE, 2017.

Uma opinião expressada pelo senhor Marco Aurélio, 42 anos, professor de História,
morador da cidade, aponta a Casa das irmãs Maranhão como sendo um dos principais prédios
considerados pelos moradores como sendo um patrimônio histórico da cidade, as menções à
residência que pertenceu a Família Maranhão e que foi construída no início do século XX
(1901) são muito recorrentes nas falas dos entrevistados.

Se a gente for pegar certos locais, que possa identificar determinados


momentos da história de Parintins, eu penso que bem preservado e que
identifica uma bela época, eu acho que é a casa das Maranhão, por estar bem
preservado e por identificar uma época que ainda pegaria o período áureo da
Borracha, e identifica muito. É uma edificação que ainda não foi modificada,
acho que é casa das Maranhão [...] porque traz todo um traço de aspecto de
linguagem, de aspecto arquitetônico, da arquitetura de uma época e pelo fato
de estar bem preservado. (MARCO AURÉLIO GARCIA, 2019/
ENTREVISTADO)

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Casa das Maranhão


Fonte: Rodrigo Tavares, 2002.

A residência da família Maranhão ou “Casa das Maranhão” como é conhecida na


cidade, fica localizada na Rua Benjamim da Silva, centro da cidade, e foi erguida no início do
séc. XX. A edificação ainda apresenta suas formas originais, com linhas neoclássicas, telhas
de barro, assoalho feito em acapú e pau amarelo. Com amplas dependências, a residência era
bastante frequentada, sediando festas e encontros sociais no passado. A casa pertencia às irmãs
Beatriz, Dulce e Corina. Beatriz Maranhão foi professora do ensino primário e prestou
relevantes serviços a educação no município.
Num outro momento, quando perguntados se a frente ou centro da cidade representa
para estes moradores a memória e história da cidade da Parintins, todos foram unânimes em
responder que sim, que o local que se relaciona intimamente com a memória desses moradores
e da cidade. Em seguida, os entrevistados foram questionados se estes prédios históricos fazem
parte de sua história pessoal, e muitos deles afirmaram que sim, pois têm muitas lembranças
da infância que viveram naqueles espaços de memória. Destacamos as lembranças de seu
Heraldo Jorge Machado, 68 anos, aposentado, que mora na cidade desde os 5 anos na rua
Coronel José Augusto, centro da cidade. Com saudosismo, ele relata alguns aspectos daquela
época, principalmente, da lembrança que tem de um dos cinemas da cidade, o Cine Saul:
Olha, a frente da cidade era os prédios mais antigos que tinha, quando
cheguei, é começo da cidade. A praça do Cristo era diferente. Me lembro do
cinema do Saul, cheguei a ver o Saul, frequentava ali. [Eu] era moleque e
gostava de jogar bolinha (risos), essa hora assim da tarde era muita gente, a
gente ficava lá jogando bolinha, aí o Saul, o velho Saul passava lá aqueles,
aqueles tempos antes do filme que ia passar de noite [os trailers]. Aí de lá
mesmo, a gente já fica lá, e aí já entrava no cinema. Foi uma infância [boa].
Dizem assim, que a gente é feliz quando a gente é criança. E é verdade

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mesmo, viu. Estou lhe dizendo. Estes tempos não voltam mais, mas, a gente
se lembra. (HERALDO MACHADO, 2020/ ENTREVISTADO)

A lembrança que estes moradores mais antigos têm dos cinemas da cidade, o Cine Saul
e Cine Oriental, é algo que ficou patente nas entrevistas, o saudosismo daquela época é
marcante nos discursos desses parintinenses, revelando que a representação destes espaços
culturais ainda estão presentes nas memórias individuais e coletivas dos moradores que
frequentavam estes locais entre as décadas de 60 e 70.

Cine Saul
Fonte: Acervo UEA, 2005.

O Cine Teatro Brasil foi construído em 1948, com características de arquitetura greco-
romana, sob a orientação do Pe. Victor Heinz, e ficava localizado na esquina da rua João Melo
com a rua Faria Neto. Posteriormente, na década de 70, passou a ser chamado de Cine Saul,
quando foi comprado pelo empresário José Saul e tinha capacidade para 350 pessoas. O Cine
Saul, infelizmente, teve sua fachada demolida.
Quando perguntamos se a comunidade local valoriza estes imóveis da área central da
cidade, os entrevistados responderam que não, que a maior parte da população não valoriza
estes bens e espaços localizados no centro histórico, e apontam como o principal motivo a falta
de conhecimento da história da cidade por grande parte da população, pela ausência de projetos
de educação patrimonial na rede de ensino e, principalmente, por falta de uma política de
preservação pelo poder público no município.

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No último momento, perguntamos sobre o estado de conservação e preservação dos


bens imóveis do centro da cidade. As respostas foram variadas, alguns moradores acreditam
que os prédios que atualmente ainda estão em uso como o Grupo Araújo Filho, onde funciona
uma escola de ensino médio da Secretaria Estadual de Educação (SEDUC), apesar de ter
passado por reformas que descaracterizam parte do imóvel, ainda encontra-se com suas
fachadas originais preservadas. Citaram ainda as Igrejas Sagrado Coração de Jesus e a Catedral
de Nossa Senhora do Carmo, que também, por estarem continuamente em uso, ainda recebem
a atenção dos fiéis e da Diocese de Parintins. Outro prédio que se encontra conservado e
preservado é o da Casa das Maranhão, em que os herdeiros ainda mantêm a residência com as
mesmas características do início de sua construção. Além desses, os imóveis da Loja Maçônica
ainda se encontra preservado. Outro patrimônio que os moradores consideram como
preservado e conservado é o Mercado Municipal Leopoldo Neves que passou uma grande obra
de reforma e restauração por parte da prefeitura e foi reinaugurado em 2019, uma obra que teve
grande aprovação da comunidade, por valorizar aquele local.
À exceção desses imóveis mencionados anteriormente, os entrevistados afirmaram que
a maioria das edificações do centro histórico da cidade de Parintins ainda se encontram em
estado de abandono e descaso por parte do poder público e de seus proprietários. Lamentam a
ausência de uma lei específica no município que assegure a manutenção e conservação desses
imóveis e que impeçam suas demolições, descaracterização e abandono. Estes moradores
atribuem a ausência de políticas públicas de preservação desse patrimônio por parte dos
poderes públicos do município, eles também reivindicam, tanto do Legislativo quanto
Executivo municipais, mais proteção aos imóveis do entorno da antiga Prefeitura (Palácio
Cordovil), que atualmente encontram-se abandonados, especialmente, o Casario do Judeus, em
que uma dessas residências encontram-se em processo de arruinamento.

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto Juarez de Oliveira. 4º.ed. São
Paulo: Saraiva, 2003.

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TRABALHO COMPULSÓRIO E RESISTÊNCIA INDÍGENA NA


PROVÍNCIA DO PARÁ (1821-1831)

SAMUEL ROCHA FERREIRA


Universidade Federal de São Paulo, Mestre
samueellrochafe@hotmail.com

Resumo

A presente comunicação analisa as maneiras pelas quais os indígenas resistiram ao trabalho


compulsório na província do Pará entre 1821 e 1831. Argumenta-se que o extrativismo e as
obras públicas demandaram braços em uma intensidade que se traduziu em grande pressão
sobre os índios que moravam nas vilas: os tapuios. Na primeira metade da década de 1820, os
indígenas procuraram abolir o trabalho compulsório, através das normas liberais ou levantes
armados. Na segunda metade, prevaleceram formas de resistência cotidiana como a deserção
ou a denúncia de abusos, cujos objetivos eram mitigar as perdas. Porém, elas tiveram efeitos
notáveis na província, levando inclusive a comarca do Rio Negro a uma crise econômica.

Palavras chave: tapuios; resistência indígena; trabalho compulsório.

Introdução

Ao chegar em Santarém em meados de 1828, Hércule Florence anotou em seu diário


que havia cinco classes distintas na população. Uma delas era justamente “os índios [que] são
geralmente apelidados tapuios [...] São eles que fazem quase exclusivamente a navegação dos
inúmeros rios da província do Pará”. Os braços tapuios eram empregados de maneira
compulsória. Segundo Florence, “quando lhes dá na cabeça, deixam o amo sem se lhes importar
com o que devem ou têm que receber [...] Fogem para o mato, deixando a casa no momento
mais urgente ou a canoa em meio da viagem” (FLORENCE, 2007, p.264).

Tapuios não foram empregados compulsoriamente apenas como remadores, mas


também em obras públicas, atividades extrativistas e agrícolas. Contudo, eles resistiram ao
trabalho compulsório de maneiras variadas. O objetivo da presente comunicação é analisar as
diversas formas de resistência que os tapuios desenvolveram face ao trabalho compulsório a

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que foram submetidos na província do Pará entre 1821 e 1831. O marco inicial diz respeito à
adesão do Pará às Cortes de Lisboa. O liberalismo político possibilitou aos indígenas novas
formas de resistência ao trabalho compulsório. O marco final será o ano de 1831 quando um
golpe derruba o presidente da província, e a Milícia de Ligeiros, instituição responsável por
recrutar os indígenas avilados obrigados ao trabalho, é abolida.

A economia paraense e os demandantes dos braços indígenas

Na década de 1820, a atividade extrativista permaneceu como o carro chefe da


economia paraense, a despeito do notável crescimento da agricultura desde o último quartel do
século XVIII. O extrativismo pode ser definido como “uma maneira de produzir bens na qual
os recursos são retirados diretamente da sua área de sua ocorrência natural [...]”. A “coleta de
produtos naturais, a caça e a pesca são os três principais exemplos da atividade extrativista”. A
partir daí, os produtos colhidos são consumidos ou mesmo comercializados (GOMES, 2018,
p. 129-130).

O extrativismo atendia tanto a demandas internacionais como ao mercado interno. Dos


produtos colhidos para o mercado mundial, o mais relevante foi o cacau. Além dele,
salsaparrilha, cravo, óleo de copaíba, dentre outros gêneros, foram coletados para serem
transformados em mercadorias. A demanda por estes produtos provinha de Portugal, locais
diversos no interior do império britânico, da França, Estados Unidos e Espanha. Siméia Nazaré
Lopes demonstrou que uma complexa rede surgiu a partir do extrativismo. Comerciantes
localizados em Belém montavam canoas cheias de produtos a serem comercializados nos
“sertões” da província. Em troca, eles obtinham as “drogas dos sertões” com saída para o
mercado mundial ou para abastecimento da própria província.

Via de regra, a tripulação destas embarcações era majoritariamente indígena. Segundo


Lopes, entre 1812 e 1819, a Coletoria de Impostos de Gurupá registrou a passagem de 346
embarcações, e 80% dos remeiros eram indígenas, 10,5% escravos e o restante composto de
pretos forros, mulatos e homens brancos pobres (LOPES, 2013, p. 179). Não há razão

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pensarmos que ao longo de toda a década de 1820 tenha havido alguma mudança substancial
no perfil étnico dos tripulantes das canoas. Ao contrário, já vimos que Hércule Florence
afirmou que os tapuios faziam quase que exclusivamente a navegação no Pará. Os negociantes
eram dependentes dos indígenas no processo de extração das drogas dos sertões, como
argumentou Heather Roller. Estes decidiam onde e o quê coletar. O considerável contingente
de indígenas empregados nestas atividades criou um conjunto de trabalhadores com expertise
na coleta, e eles eram amplamente demandados.

Os demandantes eram comerciantes e instituições estatais que tomaram parte na


atividade extrativista. Como Lopes demonstrou, alguns poucos negociantes monopolizaram o
processo de montagem de canoas do Rio Negro para Belém nas primeiras décadas do século
XIX. De fato, quatro deles foram responsáveis por montar quase metade das embarcações entre
1812 e 1819. As formas por que os negociantes obtinham braços indígenas para trabalhar na
extração das drogas do sertão ainda precisa ser estudada em detalhes. Eles poderiam obter
trabalhadores índios nas vilas através dos dispositivos previstos na carta régia de 12 de maio
de 1798, como explicaremos adiante. Comparada com as solicitações doutros demandantes, a
requisição de braços indígenas através dos mecanismos previstos pela mencionada carta régia
feita pelos negociantes foi consideravelmente menor. A possível explicação para isso é que
eles obtinham trabalhadores índios doutras maneiras que ainda precisam ser melhor
escrutinadas pela historiografia.

As coletas das drogas dos sertões ocorreram às margens dos rios Amazonas, Negro,
Solimões, Madeira, Purus, Jupurí e Juruá, dependendo dos gêneros que se pretendia obter. Nos
locais de difícil acesso, podia-se recorrer aos indígenas que neles habitavam para participar das
expedições de colheita. Por vezes, o engajamento das etnias indígenas locais na atividade
extrativista podia ocorrer através da figura do “regatão”. Esta figura incursionava pelas
florestas, levando gêneros de interesse dos índios, e obtendo gêneros demandados pelos
comerciantes de Belém. Por outro lado, há indícios de que indígenas escravizados também
foram empregados na extração de drogas do sertão na comarca do Rio Negro, embora não
houvesse base legal para a escravidão de índios (SOUZA, 1848).

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

A participação de demandantes estatais no extrativismo parece ter sido relevante na


extração de madeiras e na pesca. O Arsenal da Marinha de Belém, que foi um dos mais ativos
do Império na construção de embarcações e reparos de navios em trânsito, foi um consumidor
destacado de lenhosos. Não por acaso que entre 1799 e 1830 foram criadas três fábricas de
madeiras. (FERREIRA, 2020, p.159-160). Além destas, há menção na documentação a uma
fábrica de carvão e às fábricas de amarras de piaçaba na Barra do Rio Negro, ambas com
vínculos com o estaleiro estatal, embora em graus distintos. Nestas instituições, mais uma vez,
a maioria dos trabalhadores era indígena (INGLEZ, 1949, p.138-141).

Durante a década de 1820 pelo menos três pesqueiros estatais estiveram em atividade:
em Soure, na ilha do Marajó; outro em Vila Franca, e, por fim, outro em Faro. Os pesqueiros
tinham dupla função: prover parte do soldo dos soldados através dos peixes e levantar verbas
para o Estado através da comercialização de pescados e do azeite extraído da gordura dos
peixes. Aqui, mais uma vez, os indígenas avilados compuseram a maioria do contingente
empregado nestas instituições, embora nelas pretos forros, escravos e brancos livres pobres
também tenham trabalho.

O Estado também geriu cacoais, mas tratava-se do cacau cultivado. O crescimento da


produção deste gênero talvez tenha acompanhado tendência similar na atividade agrícola no
Pará. De fato, entre o último quartel do século XVIII e a década de 1820, a produção agrícola
cresceu quase que ininterruptamente, chegando a superar em alguns anos o extrativismo. A
cana de açúcar, arroz e algodão foram as principais culturas cultivadas no Pará. Abocanhando
metade da escravaria da província, as unidades escravistas na Zona Guajarina, e no Baixo
Amazonas foram altamente relevantes na produção destes gêneros. Mesmo com a prevalência
da mão de obra escrava africana, não era incomum que indígenas e escravos trabalhassem
conjuntamente.

Da limpeza das ruas, aos preparativos para festivos da independência, passando pela
construção de igrejas e de estradas, reformas de prédios públicos, isto é, nas obras públicas, em
geral, os indígenas avilados foram a mão de obra predominantemente empregada pelo Estado.
A dependência por estes braços era tal, que a falta deles poderia significar a não realização de
obras ou atividades de reforma e/ou manutenção de prédios. (FERREIRA, 2020, p. 178-182).

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Assim, o extrativismo e as obras estatais foram os principais demandantes dos trabalhadores


indígenas avilados.

Ao contrário dos demandantes particulares, que obtinham braços indígenas por meio
variados, os demandantes estatais acessaram estes trabalhadores principalmente pelo disposto
na carta régia de 12 de maio de 1798. Este documento aboliu o Diretório pombalino e instituiu
uma nova política indigenista com o fito de que “os índios fiquem sem differença dos outros
vassalos, sendo dirigidos e governados pelas mesmas leis que regem todos aquelles dos
diferentes Estados que compõem a monarquia”. Foi criada uma instituição, a Milícia de
Ligeiros, responsável por arregimentar mão de obra composta por “índios que já vivem em
aldeias promiscuamente com os outros [...]” (Carta régia, 1857, p.433-445). A identidade destes
indígenas não estava associada etnias específicas, mas a reelaboração de um senso de
pertencimento mais amplo a partir da convivência de diversas etnias nos aldeamentos coloniais
no Pará. Estes índios, que viveram nas aldeias e tornaram-se avilados quando elas foram
transformadas em vilas em meados do século XVIII, falavam a língua geral amazônica e
passaram a ser conhecidos como tapuios. Este etnônimo foi uma atribuição de identidade por
terceiros, e não se pode descartar a possibilidade de ter havido pertencimentos específicos entre
os índios avilados.

Justamente estes índios avilados que foram referenciados na carta régia. Eles deveriam
trabalhar compulsoriamente “uma parte do anno, ficando-lhes a outra para cuidarem dos
negócios de suas famílias”. Em muitos casos, o tempo inicialmente estipulado não foi cumprido
e os tapuios foram obrigados a continuar trabalhando. Eles deveriam receber algum estipêndio
por causa do trabalho, mas nem sempre este foi o caso. E esta inadimplência certamente foi
intensificada pelos problemas financeiros que as instituições estatais enfrentaram na década de
1820 (FERREIRA, 2020, p.102-106).

A pressão pelos braços tapuios foi alta durante a década de 1820. Neste momento, o
número da escravaria no Pará estabilizou-se na casa dos 30.000, ou seja, 20% da população
oficialmente registrada nas vilas. Mas, como já dito, a distribuição dos escravos africanos foi
largamente desigual. Deve ser lembrado que alguns publicistas passaram a discutir a
necessidade de se repensar a política indigenista em vigência com vistas a obtenção de braços

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indígenas, mitigando os possíveis impactos da interdição do trato, então no horizonte de


expectativas (SILVA, 1833, p.156). Embora proibidos pela carta régia de 12 de maio de 1798,
os descimentos dos índios que viviam nas florestas continuaram a ser realizados, mas não na
proporção necessária para atender a demanda por braços (ZANY, 1822, p.239-240). Diversos
dos índios avilados foram empregados em expedições de coleta das drogas dos sertões e o
conhecimento deles passou a ser relevante para os demandantes inseridos no extrativismo. Por
estas razões é que a grande pressão por braços se traduziu em demanda alta pelos tapuios, que
não aceitaram a este cenário passivamente: eles lutaram pelo fim do trabalho compulsório ou
por mitigação de perdas.

Resistência indígena ao trabalho compulsório

A adesão do Pará às Cortes de Lisboa, em janeiro de 1821, significou a introdução de


estruturas e normas liberais na província. Logo de cara, o governador foi deposto e o Pará
passou a ser governado por juntas governativas até abril de 1824. A liberdade de imprensa
tornou possível a circulação de jornais, como O Paraense. Se no Antigo Regime só havia a
possibilidade da emissão de juízos morais na esfera privada, com o Vintismo surgiu abertura
para expressar opiniões políticas publicamente. É importante lembrar também que a prisão sem
culpa foi proscrita.

A novidade do Vintismo também permitiu aos tapuios argumentarem que o trabalho


compulsório era uma prática do Antigo Regime. Em um requerimento de 1821, os operários
do Arsenal da marinha, cuja maioria era composta por indígenas avilados, afirmaram que
“depois de tantos tempos de sofrimento de amarguras apareceu o nosso horizonte a Aurora da
Liberdade e Regeneração dos Portugueses no dia 1° de janeiro”. Os tapuios passaram a alegar
que o recrutamento para o trabalho compulsório constituía prisão sem culpa formada,
colocando em “xeque a utilização da sua mão de obra”. Além disso, passaram a exigir a
demissão de funcionários públicos envolvidos com o labor obrigado, num esforço para minar
a estrutura dele. Mais do que um conjunto de ações com objetivos similares, mas
desarticuladas, a resistência indígena foi vista pelas elites da província como um radical projeto
de “invenção” do Brasil no Pará no período da independência (MACHADO, 2010, p. 134 e

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181-182). Os pedidos de demissão de funcionários públicos foram feitos de diversas maneiras


incluindo representações e até mesmo levantes militares, como o ocorrido em 15 de outubro de
1823, que demandou a deposição do presidente da Junta e a sua substituição por Batista
Campos. A repressão foi dura, incluindo não apenas a prisão de Batista Campos, mas também
a morte de 256 presos revoltosos que estavam no brigue Palhaço. A situação se tornou ainda
mais radicalizada porque os tapuios compreenderam este massacre como o início de um projeto
de eliminação física daqueles que discordavam dos grupos dominantes da província. Assim,
eles pegaram em armas num processo que resultou numa guerra civil entre 1823 e 1825.
(MACHADO, 2010, p. 188 e ss).

O processo de adesão do Pará ao projeto de separação com Portugal, que era encabeçado
pelas províncias do Sul, passou não apenas pela repressão ao levante armado com larga
participação dos tapuios, mas também pela retirada do fim do trabalho compulsório do
horizonte de expectativas, ainda que temporariamente.

A partir de 1826, a resistência indígena passou a ser expressa em formas cotidianas.


(SCOTT, 2011). Neste sentido, vale a pena chamar atenção para a deserção, que já tinha sido
utilizada pelos indígenas desde o período colonial. Se ela era notada em toda a província, não
há dúvidas de que foi muito mais intensa na comarca do Rio Negro. Em sua viagem de visitação
pela comarca, que foi iniciada em 1823 e terminada em 1826, o vigário José Maria Coelho
registrou diversos vilarejos que perderam 90% de seus habitantes. Na verdade, em nenhum
local por que ele passou houve crescimento demográfico. As estimativas dos contemporâneos
da época indicam que houve uma sangria demográfica. Para André Fernandes de Souza, entre
1790 e 1826 houve um decréscimo populacional de 90% (APEP, códice 815, d 122).
Especificamente para a década de 1820, Baena estimou que a comarca teria perdido mais de
18.000 almas. (BAENA, 1839, p. 7).

Na opinião de Fernandes de Souza, a deserção em massa dos indígenas estava


certamente vinculada ao trabalho compulsório: eles “que se tinham unicamente revertido a
trabalhar nas fábricas reaes, deviam desistir dos antigos estabelecimentos [que possuíam]. O
que fez desaparecer os índios vilas e dos lugares até agora”, aniquilando as produções
particulares “porque tendo cada um dos lavradores nos índios parentes, afilhados e compadres

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

para se coadjuvarem mutuamente, faltando estes, ficaram reduzidos ao nada”. (SOUZA, 1848,
p. 472-473). Com ênfase maior ou menor, a maior parte dos comentaristas da época
reconheceram o trabalho compulsório ou pelo menos vexames a ele associados como
causadores do decréscimo populacional rionegrino.

Este decréscimo foi sempre lamentado pelo impacto na economia. Após discorrer sobre
potencialidade agrícola e extrativista do Rio Negro, Francisco Ricardo Zany afirmou que “de
muitos destes preciosos gêneros se exportão apenas amostras por falta de povoação”. (ZANY,
1822, p. 240). José Maria Coelho lamentou que os produtores agrícolas estivessem
impossibilitados de expandir suas lavouras por não terem “braços para aumentarem a sua
agricultura”. Não é exagero afirmar que a massiva deserção de indígenas foi um dos fatores na
crise econômica do Rio Negro no início do século XIX. (FERREIRA, 2020, p. 209-216).

Os indígenas fugiram para dois destinos distintos: para as matas, locais onde a presença
do Estado não estava consolidada, como atestado por diversos viajantes e comentaristas. As
autoridades estatais encetaram esforços em pedir para que juízes de vilas fora do Rio Negro
aprendessem desertores e os enviassem de volta às vilas onde estavam registrados como
moradores. A possibilidade de os tapuios e outros indígenas serem obrigados ao trabalho era
menor nas matas do que em vilas fora da comarca do Rio Negro, onde há indícios de que eles
foram obrigados ao trabalho. (FERREIRA, 2020, p. 213-214).

Outra forma de resistência cotidiana comum foi a denúncia de abusos. Usualmente, ela
envolveu não apenas a exposição de violações dos direitos dos tapuios, mas também a
associação hierárquica e desigual deles a algumas autoridades civis ou militares, ou a
demandantes particulares com influência e poder. As referidas autoridades conflitaram entre
si sobre a natureza da Milícia de Ligeiros, se era civil ou militar, e este embate foi uma disputa
pela distribuição da mão de obra. Os tapuios procuraram tirar vantagem deste conflito.

Em julho de 1828, Manoel Roiz de Sá, juiz na vila de Thomar, iniciou uma viagem em
alguns povoados da capitania do Rio Negro com o objetivo de recensear população e avaliar
plantações de mandioca. Em Santa Bárbara, ele tentou forçar o principal deste povoado a
trabalhar para ele como prático, alegando ter autoridade superior a dos militares. O tapuio deu
parte às autoridades militares locais, com quem Sá tinha divergências. O relato dele veio bem

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a calhar para estas autoridades retratarem Sá como alguém que não respeitava a jurisdições de
militar. Assim, com a proteção dos militares, o principal conseguiu evitar o trabalhar
compulsoriamente para Sá. (2020, p. 202-203).

Tendo desertado do serviço da Ribeira, onde trabalhava como calafate, o tapuio Álvaro
logo passou a trabalhar como cabo no 2° corpo de ligeiros da comarca do Rio Negro, passando
a realizar o recrutamento de ligeiros. Mas alguns meses depois, em dezembro de 1829, o
ouvidor da comarca ordenou que ele fosse capturado e obrigado a retornar ao ofício de aprendiz
de calafate. Uma vez preso, Álvaro tentou continuar a trabalhar como cabo e recorreu à ajuda
de seu superior, o capitão Henrique Strauss, que disputava o controle dos baços indígenas com
o ouvidor. Strauss questionou a legalidade do procedimento, mas seus esforços não foram
suficientes para evitar que Álvaro voltasse ao serviço da Ribeira (FERREIRA, 2020, p. 201-
202).

A resistência cotidiana indígena operava por dentro da ordem, procurando mitigar os


males causados pelo trabalho compulsório. Neste caso, o questionamento do labor obrigado
em si não estava em questão, possivelmente pelo impacto da derrota do levante armado iniciado
em 1823. O ponto aqui era como evitar trabalhar para determinados demandantes, como
demonstram os casos acima e abaixo.

Em junho de 1827, foi instaurada uma devassa para averiguar os supostos insultos
proferidos pelo negociante Salvador Rodrigues do Couto à membros de uma escolta da milícia
de ligeiros, cujo objetivo era capturar e recrutar tapuios para o trabalho compulsório. A questão
é que os indígenas alvo da escolta fugiram para uma propriedade de Couto, e lá encontraram
abrigo. Quando os militares solicitaram que os tapuios fossem entregues a eles, Couto se
recusou e citou ilegalidades na escolta, como a realização de recrutamento à noite, ao arrepio
do previsto no artigo 179 da Carta Constitucional de 1824. Segundo uma testemunha, a
propriedade do negociante era um local para onde se dirigiam os “índios ligeiros para não hirem
ao Serviço de Sua Majestade quando as diligências os procuravam”. É importante lembrar que
Couto, negociante de grosso trato, foi responsável por 9,99% de todo cacau transportado do
Rio Negro para Belém entre 1812 e 1819. É improvável que Couto não empregasse estes
indígenas em expedições de coleta ou em viagens para transportar o cacau.

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A formulação de abaixo-assinado não foi um expediente relativamente comum entre os


tapuios para denunciar abusos. Em todo caso, em janeiro de 1827, os indígenas residentes na
vila Franca enviaram um documento deste tipo ao presidente da província, no qual pediam que
o alferes da Milícia de Ligeiros da vila fosse demitido. De acordo com os signatários, o alferes
“dispuz de parte de nós obrigadamente para o seu serviço deixando por isso de inteirar o
numero de indivíduos para o serviço de S.M.I”. Para encobrir esta apropriação indevida, o
alferes empregou tapuios dispensados do trabalho compulsório por alguma incapacidade física.
Caso não fossem atendidos, eles então desertariam. (FERREIRA, 2020, p. 203-205).

Não sabemos qual foi a resposta ao abaixo-assinado. Mas ele coloca uma questão que
ainda precisa ser escrutinada: que possíveis relações é possível estabelecer entre denunciar
abusos e desertar? A ameaça de desertar teria sido empregada frequentemente pelos tapuios em
pleitos relacionados ao trabalho compulsório? Responder a tais questões certamente ajudarão
compreender não apenas a resistência cotidiana, mas mesmo o questionamento aberto ao
trabalho compulsório que ocorreu na Cabanagem.

Referências

Carta régia de 12 de maio de 1798. In: Revista do Instituto do Histórico e Geographico


Brazileiro, t XX, v.20, 1857. p.433-445.
FERREIRA, Samuel Rocha. “Filhos bastardos da constituição do Império”: trabalho
compulsório indígena e a formação do Estado nacional na província do Pará (1826-1831).
Dissertação (Mestrado em História Social). Guarulhos: Unifesp, 2020.
FLORENCE, Hércules. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Tradução:
Visconde de Taunay. Brasília: Edições do Senado Federal, 2007.
GOMES, Carlos Valério Aguiar. Ciclos econômicos do extrativismo na Amazônia na visão
dos viajantes naturalistas. In: Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas,
v.13, n°1, jan-jun de 2018.
INGLEZ, José de Brito. Memória sobre a capitania do Pará. In: Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, n 203, 1949. p.135-165.
LOPES, Siméia de Nazaré. As rotas do comércio do Grão Pará: negociantes e relações
mercantis (c.1790 a c.1830). Tese (Doutorado em História Social). Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades. A crise política
do Antigo Regime Português na província do Grão Pará (1821-1825). São Paulo: Hucitec,
2010.

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SILVA, Ignácio Accioli Cerqueira e. Corografia paraense ou descripção física, histórica e


política da província do Gram Pará. Salvador: Typografia do Diário, 1833.
SOUZA, André Fernandes de. Noticias geográficas da capitania do Rio Negro no grande rio
Amazonas exornadas com várias noticias históricas do paiz, do seu governo civil e politico, e
de outras cousas dignas de atenção. In: Revista Trimensal de Historia e Geographia ou jornal
do instituto histórico e geográfico brasileiro. v. 10, 1848. p.411-504.
ZANY, Francisco José Ricardo. Projeto para os índios do Grão Pará. In: Diário das Cortes,
1821/1822. Sessão de 26 de agosto de 1822, p.239-242.

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MESTRE DE CAMPO PERANTE O INQUISIDOR – VÁRIAS


DENÚNCIAS E UMA VOZ PERDIDA NOS DOCUMENTOS DA
INQUISIÇÃO

SARAH DOS SANTOS ARAUJO


Universidade Federal do Amazonas, Mestra
araujosarahsantos@gmail.com

Resumo

Neste breve trabalho apresentaremos a história de Antonio Ferreira Ribeiro, mestre de campo,
militar de patente do período colonial. Contaremos sua história, que surge em meio a
documentação do Santo Ofício em Visita ao Grão-Pará, e pode ser rastreada em consulta a
documentação do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Sua trajetória na colônia, suas
relações políticas e eclesiásticas, trazem um perfil do que significava ser militar no período.
Deste modo levantamos algumas questões: Qual o significado de ser mestre de campo no
período? Qual o impacto da fala de um militar perante um Inquisidor? Como se davam seus
contatos com outros poderes na colônia? Por meio dos documentos que exploramos, pudemos
vislumbrar um pouco dessa rede de relações da personagem e entender seu papel social no
século XVIII.

Palavras-chave: mestre de campo; Inquisição; Grão-Pará

Introdução
Através de uma denúncia sobre blasfêmia conhecemos a história de Antonio Ferreira
Ribeiro. Essa denúncia foi a primeira apresentada ao Inquisidor e Vigário Capitular Geraldo
José de Abranches na abertura das atividades de Visitação do Santo Ofício ao Grão-Pará em
1763.
Na denúncia temos a referência a Antonio Ribeiro, sendo apresentado como mestre de
campo dos auxiliares, que é uma patente militar do período colonial (SALGADO, 1985, p.
308). A heresia havia sido cometida em uma capela de sua fazenda, quando um homem
chamado Manoel Pantoja se veste com uma loba de padre e finge uma missa.

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Tal denúncia vai nos permitir perceber as relações, não apenas da Inquisição, mas toda
uma estrutura de poder que buscava controlar e punir os desvios de fé. Nesse caso, nos
apresentando um militar perante o Inquisidor. Na situação o mestre de campo aparece como
participante indireto da situação, porém, em outra denúncia ele já é acusado de afirmar sobre a
não existência do inferno ou fogo no inferno. Notícia que chega ao conhecimento do Inquisidor
que o chama para testemunhar sobre o caso, e na conjuntura, o Antonio Ribeiro já se encontrava
preso por outra situação, acusado de falso testemunho sobre um crime de lesa majestade.
Sobre esse caso, que torna a leitura dos documentos ainda mais interessante, ficamos
sabendo que a denúncia de Antonio Ribeiro foi feita com testemunho de outras pessoas contra
o padre José Carneiro de Morais e seu irmão Ilário Carneiro. Nela indicava que os dois estavam
proferindo injúrias ao rei, e sendo todos chamados para obter esclarecimentos sobre o fato as
testemunhas negaram a acusação e o mestre de campo foi preso.
Há muitas questões ainda a serem pontuadas sobre o caso, mas estas já dão tônica da
situação do personagem, diante das relações que se envolveu. Acreditamos que Antonio
Ferreira Ribeiro é uma figura icônica para conhecermos como as relações eram estreitas na
colônia, e com a chegada da Inquisição e a reestruturação do aparato eclesiástico com a pessoa
de Geraldo José de Abranches, reconfigura a vida e a administração da Igreja na região
(MATTOS, 2012). Essa história também possibilita conhecer os entremeios da Igreja e as
estruturas administrativas, e como ainda continuam muito conectadas no período. As disputas,
interesses e intrigas, dependendo do seu lugar social naquele momento, podiam trazer
consequências severas como a prisão e até a morte.
Após a instalação da Mesa do Santo Ofício, com a chegada do Inquisidor, apresentação
do Edital da fé, que anunciava os crimes contra a fé que deveriam ser denunciados; o tempo
da graça foi instalado com o período de trinta dias para que as pessoas espontaneamente se
apresentassem ao Inquisidor. Nesse momento foi recebida a denúncia de Manoel de Oliveira
Pantoja, na qual temos a primeira referência ao mestre de campo, Antonio Ferreira Ribeiro. É
na fazenda dele que Manoel Pantoja se veste com a loba de padre e finge uma missa, ao que
diz ser apenas para zombar de uma velha chamada D. Clara. Tendo tudo isso acontecido há 16
anos. (LAPA, 1978. p. 126).

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Tal relato já nos faz refletir sobre as conexões existentes no Grão-Pará, apesar das
distâncias existentes, podemos perceber que as pessoas se conheciam, fossem elas da capital
Belém, ou de regiões adjacentes. Fato que nos possibilitar estudar um pouco da vida dessas
figuras e entender como as relações se constituíam nesse espaço social da colônia (VAINFAS,
2002).

A apresentação do mestre de campo ao Inquisidor

Na declaração ao Santo Ofício feita em carta por Antonio Ferreira Ribeiro, entregue a
Mesa da Visita no dia 17 de maio de 1763, encontramos na sua exposição, os protestos iniciais
de bom cristão católico, obediente aos preceitos da Igreja. Direcionando ainda, falas de respeito
ao Inquisidor do Santo Ofício e a indicação de que estava preso na Fortaleza da Barra a mando
do antigo governador do Estado Manoel Bernardo de Mello e Castro.
Depois disso, começou a tratar das questões que deveriam ser de conhecimento do
Inquisidor. Iniciou falando do caso ocorrido há mais de vinte anos no seu engenho no rio Acará,
sobre Manoel de Oliveira Pantoja ter se vestido depois de uma missa com uma loba clerical e
simulado um culto (LAPA, 1978. p. 126). Situação que o mestre de campo afirmou que
aconteceu depois que ele já tinha se retirado da igreja, e posteriormente ouvindo risadas
retornou ao local onde viu uma mulher chamada D. Clara, já falecida, e Manoel Pantoja que
estava em cima de um tamborete vestido de sacerdote. Diante da cena, perguntou a mulher D.
Clara, se ela tinha se confessado com Manoel Pantoja, o que negou argumentando que não se
confessava com homem casado.
Tal descrição nos traz a perspectiva do mestre de campo, perante a situação, relatando
ao Inquisidor suas inquietações e justificando atitudes que eram graves para um cristão velho.
Ainda perante Geraldo Abranches disse: “Não me persuadiu houvesse erro no dito Manoel de
Oliveira Pantoja, parecendo lhe podia ser confessor não sendo sacerdote, mas sim que por
graciosidade e leveza, por ser de gênio alegre, obrara esta farsa, nem sei que a repetisse mais
alguma” (ANTT, Processo 13201, fls.111-112).
Aqui podemos perceber como o mestre de campo lida com a situação crítica de
presenciar uma pessoa não eclesiástica agir como se fosse uma. Ainda que confirme que era

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por ser Manoel Pantoja uma pessoa de gênio alegre, ainda que tivesse acontecido tal
“graciosidade” há 16 ou 20 anos, a Inquisição ainda lhe enquadrou, mesmo sendo ele apenas
um expectador da situação. O braço da Inquisição ainda pesava, mesmo sendo a última
Inquisição, e principalmente por essa ser a primeira denúncia levada ao Inquisidor Visitador e
Vigário Capitular Geraldo Abranches. (ARAUJO, 2015).
Depois dessa confissão, passou a tratar sobre as denúncias feitas contra ele pelo padre
José Carneiro de Morais e seu irmão Ilário Carneiro de Morais. Relatou o mestre de campo
sobre as acusações de ter participado da encenação com Manoel Pantoja:

[...] me tinham capitulado de cúmplice neste de fato: a mim não lembra, que
nem direta, nem indireta concorresse para a sobredita farsa, pois me não
achava presente, porem se acaso dei algum concurso de que não lembro me
acuso de toda, e qualquer culpa, que nesta parte tenha de que peço perdão de
Deus, e rogo a este Santo Tribunal se haja com piedade e misericórdia
comigo: pois creio que só os sacerdotes podem ser ministros do santo
sacramento da penitência, e de tudo o mais que a santa Igreja Romana crê e
ensina (ANTT, Processo 13201, f.112).

Com estas palavras o mestre de campo Antonio Ferreira Ribeiro, se defendeu das
acusações, afirmando que acreditava no que dizia a Igreja e pedindo misericórdia se tinha agido
mal. Disse ainda, que sobre esse caso já tinha falado a um falecido comissário do Santo Ofício,
o padre Manoel Ferreira, que foi reitor da Companhia de Jesus (ANTT, Processo 13201,
f.112).. Argumentos com os quais o denunciando tentou demonstrar que desconhecia ser crime
as ações de Manoel Pantoja e que delas não participou. A misericórdia clamada pela
testemunha representava o desejo de não ser punido, levando-se em consideração, que o mestre
de campo já se encontrava preso temos mais esse agravante na condição do militar.
Diante desses relatos, podemos perceber que a situação piora a cada denúncia que o
mestre de campo tinha que justificar perante o Inquisidor.
Nos estudos que fizemos sobre essa patente no período colonial, um dos poucos que
encontramos destaca que é uma das mais altas na hierarquia, que tais encargos eram dados
desde que os portugueses começaram o processo de ocupação do território e fixação das vilas.
Gabriela Dias destaca que esses militares tiveram papéis importantes, principalmente na região
das Minas Gerais no período em que se encontrara ouro no local. Eles resguardavam os lugares

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

em nome da Coroa Portuguesa, ao mesmo tempo que participavam de insurreições contra os


abusos fiscais no período. (DIAS, 2013, p. 59).
No estudo de Dias também encontramos um levantamento sobre quantitativo de
pedidos de patente de mestres de campo ao Conselho Ultramarino e indicações sobre sua
presença na região no sul do Brasil, sobre a qual foi destacado, com curiosidade pela
pesquisadora, que entre 1740-1750 não há nenhum pedido de nomeação para esse tipo de cargo
(DIAS, 2013, p. 56). Tal constatação também nos traz curiosidade, pois, a autora demonstra a
importância militar no período, suas ações, e a influência que esses militares tem na colônia. E
ao olharmos para Antonio Ferreira Ribeiro no Grão-Pará, podemos refletir que ainda que tenha
as mesmas qualificações citadas pela autora, se encontra em difícil situação diante das relações
que estabeleceu no Estado. Podemos destacar com certeza que era homem de posses e tinha
contatos com pessoas influentes da região, na denúncia sabemos que era dono de engenho. Mas
ao pensarmos nesse homem no contexto da Amazônia Colonial, o vemos como um militar
neutralizado pela rede de relações local que o colocou na prisão. Veremos como continua essa
história com mais de seus relatos.
Além da denúncia que já descrevemos, Antonio Ribeiro fez referência a outra denúncia
na qual estava envolvido. Nela havia sido acusado à Inquisição pelo padre José Carneiro de
Morais e o irmão dele, Ilario Carneiro, de afirmar não existir inferno, ou fogo no inferno, tendo
a notícia se espalhado pela região onde moravam e cuja menção lhe deu D. Maria, já falecida.
Em sua defesa, explicou o mestre de campo:

[...] afirmo não me lembro proferisse em tempo algum, só sim dizer que eu
suponho que os ditos Carneiros entendem que não há inferno porque se
embebem na culpa de levantarem falsos testemunhos e se caso o fiz me acuso
disso a este Santo Tribunal e lhe rogo e sempre cri, que havia inferno assim e
da mesma sorte que Cristo Nosso Senhor Redentor o disse e ensina a Santa
Madre Igreja Católica Romana como também o fogo nele existente por cuja
razão logo que tive esta notícia me apresentei ao reverendo padre Caetano
Eleutério de Bastos comissário desse retíssimo Tribunal acusando me assim
e da mesma sorte que acima faço (ANTT, Processo 13201, f.113).

No testemunho, o mestre de campo afirma que não disse as palavras na forma como foi
denunciado. Colocando-se numa posição humilde afirmando que se alguma vez tivesse feito
algo do tipo, se acusava ao Santo Ofício. Afirmou que não desviava do que dizia a igreja e que

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quando soube das acusações apresentou-se ao comissário do Santo Ofício. Declarações do


mestre de campo, que não coincidem com os outros testemunhos que haviam sido dados no
sumário de testemunhas, porém, comum aos denunciados ao Santo Ofício que buscavam sair
da condenação prometida aos que cometiam os crimes contra a fé. Alguns deles modificavam
seus testemunhos para não serem severamente punidos como dizia a Inquisição. Na sua
condição de preso, acreditamos que poderia não querer agravar mais seu caso.
Pensando ainda sobre as relações do mestre de campo o Grão-Pará, a referência que
temos sobre ele aparece no artigo de João Antônio Lima “Vivem rica e abastadamente: clérigos
e suas posses nos bispados do Maranhão e Pará setecentista”. No trabalho é feita a citação de
que o militar tinha se apresentado ao comissário do Santo Ofício tratando da questão de ter
blasfemado: “[...] Citamos um caso em que se envolve o Pe. Caetano Eleutério de Bastos, que
averigua uma denúncia contra o mestre de campo Antonio Ferreira Ribeiro, acusado de heresia,
ao afirmar que não existia céu e inferno.” (LIMA, 2016, p. 151). Tal indicação nos ajuda a
endossar o quadro de relações que o militar tinha e como a questão da heresia havia realmente
se tornado,pública e como isso afetou o quadro já complicado do homem.
Na busca de mais informações sobre Antonio Ferreira Ribeiro, encontramos alguns
ofícios, que relatam as circunstâncias que levaram esse homem a ser preso, pois como sabemos
antes da chegada do Inquisidor já se encontrava recluso. No primeiro documento que
encontramos remetido do Pará, com data de 19 de setembro de 1762, temos o mestre de campo
discorrendo sobre calúnias que contra o rei e seu ministério teriam proferido o padre José
Carneiro de Morais e o irmão Ilario Carneiro de Morais. Junto ao ofício um memorial da
referida denúncia (AHU, Pará, Cx. 53. Doc. 4840.).
Esse documento foi remetido pelo mestre de campo na ocasião que já se encontrava
preso na Fortaleza da Barra. Ao que indicou preso por suspeitas de falso testemunho. Nele,
enunciou com louvores seus serviços que lhe foram designados pelo rei, e denunciava os irmãos
Carneiros que de forma arrogante e petulante falavam mal do rei, em crime de lesa majestade.
Nas palavras de Antonio Ferreira Ribeiro:

[...] E parecendo-me que a ninguém mais, que a mim corria a obrigação de


delatar logo estes insultos não só pela honra com que nasci, mas por aquela
com que tenho servido a S. Majestade estando atualmente em posto tão
honorífico de seu real serviço: como juntamente por saber, que esta matéria é

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tão melindrosa, que um dia de segredo, ou demora em a descobrir pode ser


culpa grave (...) (AHU, Pará, Cx. 53. Doc. 4840 f.1.).

Nesse documento em que o mestre de campo Antonio Ferreira Ribeiro contou às razões
que o levaram a denunciar as difamações feitas ao rei português pelos irmãos Carneiros, rogava
ainda, para que seu caso se finalizasse advogando sua causa, em virtude de sua condição de
preso. Indicando que denunciou por ser culpa grave omitir insultos feitos à majestade real.
Informações que nos ajudam a compreender sua prisão e complementam seu testemunho
escrito, dado ao Inquisidor Geraldo José de Abranches.
Retornamos um pouco às datas para citarmos a carta de 4 de fevereiro de 1762, que foi
a que o mestre de campo usou para denunciar José Carneiro e Ilário Carneiro ao governador e
capitão-general do Estado. Nela estavam inclusos, os testemunhos de quatro pessoas que
sabiam do caso e confirmavam o que o Antonio Ferreira Ribeiro dizia. Feito isso, foi chamado
pelo Juiz de Fora José Feijó de Mello Albuquerque e pelo Ouvidor Geral Feliciano Ramos
Nobre Mourão, que estavam cientes da diligência encaminhada por Antonio Ferreira Ribeiro.
Os quais, de acordo com o mestre de campo, o fizeram assinar um auto de denunciante da carta
com as testemunhas, para assim procederem-se devassa aos delitos, do que o mestre de campo
assinou afirmando que era para não desdizer do que tinha escrito (AHU, Pará,Cx. 53. Doc.
4840 f. 4).

Tais afirmações e confirmações, até por escrito, do mestre de campo denotam como ele
estava tentando desenrolar o emaranhado de questões em que se viu envolvido. Acreditamos
que é salutar destacar que o Governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, também era seu
superior militar como Capitão-General. E isso é muito significativo para as relações que se
tecem no período. Endossamos também a presença do Juiz de Fora e do Ouvidor Geral que
acompanharam em juízo o que o mestre de campo estava declarando na forma de denúncia.
Essas relações demarcam como a vida e os contatos com os altos escalões de autoridades da
região acabavam se cruzando de uma forma ou de outra.

Sobre esse ponto da situação da denúncia de Antonio Ferreira Ribeiro, destacamos a


relação com a política na região, pois ela significativa para entender o caso do mestre de campo.
O governador e capitão do Estado Bernardo de Melo e Castro foi um dos governadores

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escolhidos a dedo para a assumir a continuidade dos planos de colonização e desenvolvimento


do Grão-Pará e sobre esse elemento é importante destacar como essa seleção era feita. De
acordo com Ângela Domingues:

[...] O aparelho estatal reconheceu que o sucesso de colonização a estabelecer


sobre o território ultramarino dependia, de forma indissociável, das pessoas
que escolhia para o exercício do mais alto cargo governativo no Norte da
colônia. Na nomeação dos governadores do Estado do Grão-Pará, a coroa
jogou com relações nítidas de dependência e de fidelidade, que pressupunham
não só questões de natureza ideológica como também tiveram implícitos
vínculos familiares e noções de gratidão pessoal por parte dos indivíduos
designados para o cargo. Paralelamente, esta nomeação devia ser prestigiante
quer para o escolhido que para a família a que pertencia. (DOMINGUES,
2000, p. 128).

Em estudo mais recente Fabiano Vilaça (2017), endossa a fala de Ângela Domingues,
ao tratar as trajetórias dos governadores da Amazônia Colonial, indicado os pressupostos de
ordem pessoal para as reformulações no aparelho administrativo das conquistas do Norte na
segunda metade do século XVIII. (VILAÇA, 2017, p. 159). Deste modo, podemos entender
como uma denúncia a determinada pessoa, ou determinadas pessoas, poderiam trazer sérias
consequências, como trouxeram para Antonio Ribeiro. Os laços pessoais marcavam de forma
indelével a vida no Grão-Pará e Maranhão, de modo que, o mestre de campo com sua denúncia
de lesa majestade, acabou sendo preso e ainda sofrendo por mais inquéritos que nem esperava
que fosse ter de responder.

Conclusão

Em 14 de abril do ano de 1763, o militar com os seus sessenta anos de idade, meses
antes da chegada da Visita do Santo Ofício, permanecia preso na fortaleza da Barra. Remeteu
uma carta diretamente ao secretário da Marinha e Ultramar sobre a condição de penúria nos
setes meses em que estava encarcerado, pedindo piedade, pois se encontrava doente. Contava
ainda, que não lhe permitiam que um dos filhos pernoitasse para lhe auxiliar e da situação
decrépita da prisão que se encontrava (AHU, Pará, Cx. 54. Doc. 4918).
Em resumo, Antonio Ferreira Ribeiro foi acusado de blasfêmia ao corpo eclesiástico
por supostamente participar do uso indevido de indumentária de um clérigo e participar de

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simulação de um culto; outras blasfêmias que ficaram publicamente conhecidas foram a de que
ele teria negado a existência do inferno, sobre essas duas o Inquisidor acompanhou e buscou
averiguar a veracidade. Contudo, o militar já preso, por falso testemunho, indicava que o
endosso das acusações de blasfêmia, poderiam ser para manutenção de sua reclusão... O que
realmente aconteceu e o levou a morte.
Essa história demonstra que mesmo uma pessoa de alta patente militar, com prestígio e
renome, podia se encontrar em péssimas situações dependendo das relações que mantinha na
colônia. A carreira militar era um dos caminhos de ascensão social, tanto na metrópole, quanto
na colônia, contudo, mesmo com as influências de sua patente, o mestre de campo não
conseguiu se livrar das sucessões de acusações que recaíam sobre seu nome.

Referências
ARAUJO, Sarah dos Santos. A espreita do sentimento: rastros do medo e cotidiano no contexto
da ação inquisitorial setecentista no Grão-Pará. Programa de Pós-Graduação em História.
Manaus: UFAM, 2015.
DIAS, Gabriela Duque. ‘Uma muy honrosa’ patente militar: os mestres de campo nas Minas
Setecentistas (1709-1777). Dissertação de Mestrado, Juiz de Fora, 2013.
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no
Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000.
LAPA, José Roberto do Amaral. Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado
do Grão-Pará (1763-1769). Petropólis, 1978.
LIMA, João Antônio Fonseca Lacerda. Vivem Rica e Abastademente: Clérigos e suas posses
nos bispados do Maranhão e Pará Setecentista. Fronteiras & Debates, Macapá, V. 3, n. 1,
Jan/Jun.2016.
MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: Os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício
no Grão-Pará pombalino (1750-1774). Jundiaí: Paco Editorial, 2012.
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: micro-história. Rio de Janeiro:
Campus, 2002.
SANTOS, Fabiano Vilaça dos. Governadores e capitães-generais do Estado do Maranhão e
Grão-Pará e do Estado do Grão-Pará e Maranhão (1702-1780): trajetórias comparadas. Crítica
Histórica, v.8, n.16, 2017.

Fontes:
⚫ ANTT, Inquisição Lisboa, processo n° 13201.
⚫ AHU (Projeto Resgate), Pará,Cx. 53. Doc. 4840
⚫ AHU (Projeto Resgate), Pará, Cx. 54. Doc. 4918.

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A EMERGÊNCIA DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE MANAUS


E A FILANTROPIA NA PROVÍNCIA DO AMAZONAS (1860-1880)

SHIRLEY PEREIRA CARDOSO


Universidade Federal do Amazonas, Mestranda
shirleycardosos@gmail.com

Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar as discussões desenvolvidas no âmbito do mestrado, acerca
da emergência da Santa Casa de Misericórdia de Manaus, fundada em 1880, relacionando-a à
atuação filantrópica. A segunda metade do século XIX inaugurou um novo quadro na medicina
e na saúde pública no Brasil. Um fenômeno comum desse período foram as ações conjuntas
entre Estado e as elites econômicas de cada localidade. Em Manaus a atuação filantrópica foi
mais notável a partir do momento em que a região passou a sentir os efeitos do aumento
progressivo das exportações da borracha, nas últimas décadas do século XIX, uma vez que ela
foi o principal caminho das elites amazônicas em direção a ascensão econômica para um nível
até então inédito na região, o que permitiria a elas empreenderem as ações de filantropia. Dessa
maneira, este trabalho tem como objetivo estabelecer uma discussão a respeito do vínculo entre
as ações filantrópicas e a constituição da Santa Casa de Misericórdia de Manaus, percebendo
as dimensões dessa relação com o Estado. Com esse intuito, a pesquisa efetiva-se por meio da
análise documental, a partir dos Relatórios de Presidentes de Província.
Palavras-chave: Santa Casa de Misericórdia de Manaus; Filantropia; Estado.

Introdução
A etimologia da palavra “filantropia” sugere amor à humanidade, implicando que
aqueles que se colocam como “filantropos” devem agir de maneira generosa para com os
extratos sociais que se encontram em posições desfavorecidas. Dentro do cânone do
cristianismo e em torno da categoria de caridade, desenvolveu-se um lugar-comum que tem
sido uma constante nas sociedades ocidentais, ainda que com certas variantes no tempo e no
espaço. Na literatura europeia, exemplos clássicos como o do personagem Jean Valjean, de Os

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miseráveis (HUGO, 2014), que tem a sua redenção possibilitada pela figura de um sacerdote
caridoso, representa o engajamento clerical para com sujeitos subalternos que não possuem
posses. Conforme se espalhava a colonização europeia e penetrava na construção de valores de
ex-colônias, esse ethos de filantropia e caridade se ajusta ao corpus administrativo e estatal das
novas nações. No caso do Brasil, a Santa Casa de Misericórdia, instituição portuguesa, foi um
desses canais que tomou para si a bandeira da caridade, uma “irmandade pia”.
Na maioria das províncias que, com a proclamação da república se tornaram estados da
federação, foram instituídas as Santas Casas. Investidas com o papel social de hospitais para
cuidar da saúde da população, incluídos aqueles que não dispunham de condições para pagar
tratamentos, as unidades dessa instituição passaram a apresentar singulares características,
potencialmente contraditórias, em relação aos propalados objetivos de simples “amor à
humanidade”.
Nessa dinâmica, interesses financeiros e morais se aliam e dão pistas sobre quais
alicerces estavam fincadas algumas das colunas daquela sociedade que, segundo o historiador
José Murilo de Carvalho (CARVALHO, 1990), possuía uma lógica de liberalismo excludente
que estabelecia verdadeiros estamentos sociais de antigo regime. A constelação de valores que
guiava as ações políticas pode agregar elementos econômicos aliados a certo discurso religioso,
formando um par que se legitimava mutuamente. Nesse ponto, faz-se presente nos próprios
relatórios de governo uma importante documentação que dá a ver lugares de privilégios e de
exclusão, mesmo que apresentado sob pretextos pios, denotando a proximidade entre os
poderes eclesiásticos e estatais no primeiro quartel do século XX.

A “caridade moderna” em Manaus


De acordo com Renato Franco, foi no decorrer da época Moderna que os estados
europeus deram um novo tom ao atendimento aos necessitados que cresciam exponencialmente
(FRANCO, 2015, p.). Isso ocorre na medida em que se efetiva uma racionalização nos serviços
de atendimento hospitalar e assistência aos pobres, que foram em grande medida, patrocinados
por membros abastados da sociedade e pelas autoridades locais, fenômeno responsável pela
“institucionalização da caridade”. Nesse sentido, Portugal é pioneiro em conceder certos
privilégios aos membros de instituições de assistências como confrarias e irmandades.

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A historiadora Laurinda Abreu salienta a existência de algumas confrarias de caráter


assistencialista, fundadas entres os séculos XV e XVI (ABREU, 2004, p.11). Não obstante, foi
a Irmandade de Misericórdia, fundada em 1498, sob os auspícios de Dona Leonor, no reinado
de D. Manuel I, na cidade de Lisboa, que obteve os maiores privilégios e amparo régio. Diante
disso e de uma grande rede de articulação que contava com a participação leiga, em pouco mais
de um século a Irmandade de Misericórdia dispunha de uma grande estrutura administrativa e
centenas de filiais espalhadas por todo o império ultramarino português (ABREU, 2001). A
Irmandade de Misericórdia recebera, ainda no início do século XVI, a tutela dos hospitais
portugueses, centralizando uma gama de serviços assistenciais, contribuindo para a
consolidação do Estado moderno português.
José Murilo de Carvalho faz uma análise do alcance político do governo imperial a
partir do seu orçamento e, segundo este autor, trata-se de um importante componente para o
entendimento da “distribuição de poder de um sistema político”. Neste sentido, ao analisar os
dados, o historiador destaca que as despesas com saúde pública não foram uniformes e
apresentaram picos de variação de acordo com os surtos epidêmicos (CARVALHO, 2010).
Fato observado no Amazonas, visto que a Província recorria constantemente às verbas
nomeadas de “Socorros Públicos”, frente a momentos em que as epidemias grassavam a região.
(COSTA, 2009). No ano de 1869, por exemplo, o Dr. Jacintho Pereira do Rego, no exercício
da presidência da província, deparou-se com um surto de varíola. Em fala à Câmara Provincial,
ele expôs as ações empreendidas em sua gestão, que consistiram em: montar um lazareto para
isolar os doentes, contratar um médico e alguns farmacêuticos para realizar visitas sanitárias e
aplicação de vacinas. No relatório, Rego informa também que a origem da verba para tais feitos
era provinda dos Socorros Públicos (RPPAM, 1868, p. 5).
Essa verba era proveniente de um auxílio concedido pelo Ministério do Império,
repassada a Junta Central de Saúde com o propósito de cobrir seus gastos e servir de suporte
em casos de epidemia, “denominação que acabava por demonstrar o caráter emergencial que
permeou as ações de saúde pública do Império” (COSTA, 2009, p. 47). Ainda de acordo com
José Murilo de Carvalho (2010), ao ponderar sobre os “direitos sociais” desse período, constata
que eles estavam relegados a “associações particulares”, como as Santas Casas de
Misericórdias e outras confrarias que prestavam suporte médico e demais serviços aos seus

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membros e aos pobres, ficando as cidades mais afastadas, muitas vezes, sem esse tipo de
assistência. Um exemplar do fenômeno descrito pelo autor supracitado pode ser a província do
Amazonas, evidenciado pela fala do então presidente de província, o Dr. Adolfo de Barros
Cavalcanti, no ano de 1864:

Começa a tornar-se sensível a falta de instituto de beneficência, onde sejam


recolhidos os enfermos pobres. O espetáculo da indigência já de si afligidor;
mas quando a esta se ajunta a enfermidade, o quadro de todo se anuvia; e o
sentimento cristão, que não é senão a filantropia esclarecida pela luz do
Evangelho, sente-se ferido e interroga mudamente a sociedade.
Entretanto, com pesar, vo-lo digo, sem embargo da proteção devida aos
desvalidos, é força reconhecer que tão palpitante necessidade não pode ser,
por enquanto, mais largamente atendida do que é pela província. Não o
permitem as suas circunstâncias.
Nem me parece que deva produzir resultado mais eficaz o recurso, lembrado
por alguns, à caridade individual; não porque ponha em dúvida os sentimentos
de humanidade dos filhos da província, mas sim porque vejo o quão limitada
e modesta é aqui a fortuna particular.
Uma instituição de caridade, para o fim que aludo, exige recursos avultados
e permanentes, que o grau de riqueza dos habitantes ainda não pode suportar
[...] (RPPAM, 1864, p. 4-5).

Algumas informações importantes podem ser extraídas desse fragmento. O Dr. Adolfo
Cavalcanti apontou a situação dos doentes pobres, que não possuíam um local de destino
adequado para serem tratados quando necessário e lamenta a falta de um hospital de caridade
e de uma atuação filantrópica mais efetiva, a qual justifica por conta da “limitada e modesta
fortuna particular” dos seus cidadãos, o que denota certo anseio em dividir ou mesmo repassar
tal incumbência aos membros da sociedade civil, a fim de aliviar as despesas e
responsabilidades da província para com essa clientela. Lilia Ferreira Lobo analisou a situação
do que classificou como “os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil”
(LOBO, 2015, p. 270-273), desde o período colonial essas categorias sem assistência acabavam
dependendo das iniciativas de “caridade moderna”. A filantropia diferia da tradicional caridade
cristã na medida em que visava muito mais o caráter de “utilidade social”. Em Manaus, a
atuação filantrópica será mais notável a partir do momento em que a região passar a sentir os
efeitos do aumento progressivo das exportações da borracha, uma vez que ela foi o principal
caminho das elites amazônicas em direção a ascensão econômica para um nível até então

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inédito na região (DAOU, 2004, p. 21) o que permitiria a elas empreenderem as ações de
filantropia.
Entretanto, anterior a esse momento de “boom econômico”, o cenário que se revelava
não oportunizava ações de cuidados perenes com a saúde pública, sendo estes meramente
paliativos. Dessa maneira, nos relatórios dos presidentes de província, inúmeras são as queixas
quanto às necessidades sanitárias da região. O quadro manifesto era que, para acudir os doentes
do interior e capital da província, os presidentes enviavam socorro por meio de ambulâncias
que consistiam em comissões dotadas de medicamentos e profissionais para prestar assistência
aos enfermos atacados por alguma epidemia.
Ante o exposto, é sabido que, na Província do Amazonas, o Hospital Militar, fundado
em 1856, era o único estabelecimento hospitalar existente (SILVA, 2012, p. 67). De modo que
este teve que absorver o tratamento não apenas aos militares, mas também aos pobres e
indigentes que passaram a ser um estorvo para aquela instituição, situação esta reiteradamente
denunciada nas falas oficiais. Desta forma, a falta de um hospital de caridade na região era um
tema recorrente e um dos agentes de inquietação, motivo de preocupação em meio a tantas
epidemias. Face a esses momentos, além do destacamento de ambulâncias, lazaretos e
enfermarias eram improvisados com o objetivo de amenizar a penúria que pairava sobre os
indigentes e os desvalidos. Vale ressaltar que eram ações paliativas, sendo postas em prática
somente durante períodos epidêmicos e encerradas tão logo normalizasse a situação.
Não obstante, tais iniciativas não foram capazes de modificar a conjuntura patológica
da Província. Nesse sentido, as epidemias continuavam a acometer a população. Diante do que
foi exibido é possível inferir que numa época em que já se privilegiava a eficiência e as formas
de trabalho se transformavam, apontava-se para condições históricas em que se faria necessária
a construção de uma instituição como a Santa Casa de Misericórdia. Isso é recorrentemente
corroborado, conforme pode-se perceber nas fontes apresentadas.
É nesse contexto de fins do século XIX que o projeto de fundação da Santa Casa de
Misericórdia do Amazonas é posto em prática. Sendo assim, mediante a Lei n. 202, de 12 de
maio de 1870, foi autorizada a construção de um Hospital de Caridade (RPPAM, 1871, p. 12),
na administração de João Wilkens de Matos. No entanto, somente em dezembro de 1872 deram
início às obras, no terreno concedido para a construção do Hospital, pelo presidente da

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província, Domingos Monteiro Peixoto. No local, foi inicialmente feito o trabalho de preparo
e limpeza do terreno, bem como a demarcação de limites estabelecidos entre as ruas do
Progresso e de José Clemente, com travessa na Matriz e travessa no Largo de São Sebastião
(RPPAM, 1973. p. A5-3).
Com o objetivo de dar andamento ao projeto de construção do hospital de caridade,
Domingos Peixoto recorreu, segundo ele, ao “sentimento humanitário” de algumas das figuras
proeminentes da sociedade local. Desta forma, o Estado agia como um cooptador de forças no
sentido de criar as condições para a construção do hospital, redimensionando os discursos
filantrópicos para o atendimento humanitário. Arregimentava-se assim, um grupo considerável
de pessoas dispostas a bem servir a sociedade por meio de uma suposta generosidade
despretensiosa, dentre os quais cita: os Tenentes-Coronéis Clementino José Pereira Guimarães,
João José de Freitas Guimarães, José Marcellino Taveira Brasil e José Coelho de Miranda
Leão, Tenente Emílio José Moreira, Comendadores Francisco de Souza Mesquita e Alexandre
Paulo de Brito Amorim e os comerciantes José Antonio da Costa, José Teixeira de Souza e
Manuel Alves dos Santos (RPPAM, 1873, p. 34.). É importante destacar que o “sentimento
humanitário” evocado por Domingos Peixoto está associado à filantropia que diverge do
princípio de caridade, posto que este, “reflete o temor a Deus e uma atitude de resignação ante
a pobreza”, ao passo que a filantropia, além de estar dissociada da Igreja, é posta em prática
pensando na questão da “utilidade social” (SANGLARD; FERREIRA, 2018) e, para tanto,
requer a iniciativa de particulares que integrem um seleto grupo, a exemplo dos nomes
supracitados.
Além das contribuições financeiras feitas pelos benfeitores, eles encarregaram-se
também de angariar donativos para o hospital. Sendo assim, a Santa Casa de Misericórdia de
Manaus foi conjuntamente custeada pelo Estado e pela filantropia, com o subsídio concedido
pela elite provinciana. Neste sentido, formaram uma comissão responsável por agenciar a
construção do hospital onde recebiam doações de particulares engajados com o propósito da
obra levantada. Em 1875, o Comendador Francisco de Souza Mesquita, tesoureiro da comissão
encarregada de promover e receber os donativos para a construção do hospital de caridade,
entregou à Presidência da Província do Amazonas, a quantia de 16:029$320, que foram obtidos
por meio de doações diversas: de particulares nacionais e estrangeiros, sendo políticos,

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militares, comerciante além de subscritores do rio Madeira. O tesoureiro concluiu a prestação


de contas informando haver uma lista com “os nomes destes distintos cavalheiros que ainda
uma vez revelaram elevados sentimentos humanitários, oferecendo seus valiosos donativos
para a realização de tão útil instituição” (RPPAM, 1875, p.35).
Com os recursos angariados, foram feitas encomendas de materiais para a construção,
diretamente de Lisboa, em Portugal. Não obstante a esses esforços, as obras foram
interrompidas em 1875, por falta de verbas nos cofres públicos. De modo que, no ano de 1876,
o presidente da província, Dr. Antonio de Passos Miranda, mandou que fossem feitos somente
alguns serviços de manutenção no terreno como: roça e conserto dos cercados, a fim de
preservar o que havia sido edificado até aquele momento. Ademais, autorizou que a construção
do pavilhão térreo fosse iniciada de acordo com o orçamento obtido por meio dos donativos,
demonstrando que cabia aos filantropos a maior parte do suporte econômico dado a esse
empreendimento, no início das obras.
A despeito das ações e doações promovidas por particulares, as obras permaneceram
sem muitas alterações. Posto isto, as obras para o erguimento do hospital se estenderam por
vários anos, ultrapassando até mesmo o ato de sua inauguração que se deu em 1880, momento
em que o presidente da província, o Tenente Coronel José Clarindo de Queiroz (1879 a 1880),
relatava seus esforços no sentido de entregar o quanto antes o Hospital de Caridade à província,
manifestando assim o desejo de inaugurar, se não toda, ao menos uma parte do prédio que já
estivesse em condições para tal, uma vez que não haviam estabelecimentos dessa natureza na
região. Nesta perspectiva, com o intuito de realizar a inauguração do hospital, determinou a
execução de vários serviços como: embuço, caiação, consertos de telhados, construções de
novas alas (RPPAM, 1880, p. 10).
Conforme o historiador José Roberto do Amaral Lapa, foi característico desse período
entre o final do século XIX e início do século XX, o aumento das diligências para gerenciar a
pobreza, pois era vista como um mal que a sociedade moderna precisava controlar
(LAPA,2008, p. 50). Além de ser uma forma encarada pelo novo sentimento cristão de
remissão espiritual que, vinculado ao humanitarismo tendo em vista a utilidade social em
cooperação com as autoridades políticas, criou instituições de assistência aos pobres e
necessitados, sendo as Irmandades de Misericórdia um dos vários exemplos dessas iniciativas.

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Neste sentido, o coronel José Clarindo de Queiroz nomeou uma comissão para organizar o
compromisso da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia que administraria o respectivo
hospital. Portanto, de acordo com a Lei nº451, de 14 de Abril de 1880, foi criada a Irmandade
de Misericórdia. O hospital de caridade, que passou a ser conhecido como Santa Casa de
Misericórdia de Manaus, foi inaugurado em 16 de maio daquele ano (RPPAM, 1880, p. 12).
Dessa maneira, o hospital fora aberto com as obras ainda inconclusas devido à
imperatividade que se faziam sentir os seus serviços. De modo que, durante os anos que se
seguiram à sua inauguração, a Santa Casa passou por várias intervenções e esteve no centro de
debates políticos, suscitados pela conjuntura política e econômica a partir da década de 1890.
Uma vez que ficou responsável pelo atendimento de pobres, desvalidos, indigentes, presos,
órfãos,etc.

Considerações finais

Temos aqui um ponto que consideramos importante para a compreensão do papel a ser
desempenhado pela Santa Casa de Misericórdia de Manaus. Lembrando que Abreu destaca o
caráter de longa duração da trajetória das Santas Casas portuguesas e como seguiram uma
lógica organizacional que garantiu o sucesso da irmandade de Nossa Senhora de Misericórdia,
fundada no século XV em Portugal, sendo que seus objetivos não se restringiam apenas aos
cuidados médicos, assim como de tornar menos amarga a vida dos necessitados promovendo a
caridade cristã por onde se estabeleciam (ABREU, 2004). Em contrapartida, as Misericórdias
instaladas no Brasil seguiram de acordo com as peculiaridades de cada região, de modo que
em Manaus reside com um detalhe que chama a atenção, pois, em descompasso a outras
irmandades organizadas, em grande medidas por membros particulares da sociedade, com o
propósito de exercer a caridade, a congênere do Amazonas caracteriza-se por ter se
estabelecido por iniciativa do Estado, a fim de atender às demandas de políticas públicas
voltadas para a área da saúde.
Nesse sentido, a historiadora Josali do Amaral, ao pesquisar o assistencialismo a
desvalidos e indigentes, considera a emergência da Santa Casa de Misericórdia alinhada aos
interesses do Estado, estando no cerne das políticas higienistas do período (AMARAL, 2011,

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p. 183). O Estado agiu então como um elemento de captação de forças que conseguiu compor
um grupo formado por diferentes segmentos da elite amazonense em prol da causa
assistencialista. Em contrapartida, os filantropos membros da Irmandade ganhavam prestígio
uma vez que, fazer parte deste seleto grupo onde se exigia de seus componentes um padrão
pecuniário e moral, os notabilizavam com distinção social. O Estado, juntamente às ações
filantrópicas, formou uma aliança que possibilitou a emergência da Santa Casa de Misericórdia
de Manaus. Instituição que desempenhou um papel preponderante na saúde pública do Estado
do Amazonas, durante todo o período no qual funcionou, desde a sua inauguração em 1880 até
seu fechamento no ano de 2004.

Referências
ABREU, Laurinda.: .O papel das Misericórdias dos lugares de além-mar na formação do
Império português. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, vol. VIII(3): 591-611, set.-dez.
2001.
______, Laurinda . Igreja, caridade e assistência na península Ibérica (sécs. XVI-
XVIII), Lisboa, Edições Colibri/Évora, Cidehus-Universidade de Évora, 2004.
AMARAL, Josali do. Ritmos e dissonâncias: controle e disciplinarização dos desvalidos e
indigentes nas políticas públicas do Amazonas. (1852-115)- Dissertação apresentada à Banca
Examinadora do PPGHAM em 2011.
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil.
São Paulo: Companhia das letras, 1990.
___________, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das
sombras: a política imperial. 5ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
COSTA, Cybele Morais da. Socorros públicos: as bases da Saúde Pública na Província do
Amazonas (1852-1880). 2009. 142 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade
Federal do Amazonas, Manaus, 2009.
DAOU. Ana Maria. A Belle Époque amazônica. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
HUGO, Victor. Os miseráveis. 1ª ed. Editora: Martin Claret, 2014.

LAPA, José Roberto do Amaral. Os excluídos: contribuição à história da pobreza no Brasil.


Campinas.: Ed. UNICAMP, 2008.

LOBO, Lilia Ferreira. Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. 2ª Ed.
Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2015. p. 270-273.
SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio. Caridade e Filantropia: elites, estado e
assistência à saúde no Brasil. In: TEIXEIRA, L. A.; PIMENTA, T. S.; HOCHMAN, G. História
da Saúde no Brasil. Hucitec Editora, São Paulo, 2018. pp.145-176.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Relatórios, falas e exposições dos Presidentes da província do Amazonas (1864-1880).


Disponível em <http://ddsnext.crl.edu/titles/164/search?terms=amazonas> Acesso em: 30 de
ago. de 2020.

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TRANSAMAZÔNICA E IRACEMA: UM CONTRASTE NA ESTRADA


DA DITADURA MILITAR BRASILEIRA (1964 – 1985)

SIDNEY BARATA DE AGUIAR (1); AIDA VASCONCELOS DO NASCIMENTO (2)


(1) Universidade Federal do Amazonas, Doutorando
sidneybaratadeaguiar@gmail.com
(2) UNINORTE, Graduada
aidaaanasc@gmail.com

Resumo

Neste pequeno ensaio científico não nos propomos a fazer uma análise fílmica aprofundada
sobre esta obra fundamental do cinema documental e ficcional brasileiro da década de 1970.
Aqui iremos apresentar apenas alguns apontamentos que são de análises, conversas e obras do
campo da História e Ciências Sociais consolidadas, mas que abrem possibilidades para debate
mais que atual sobre a Amazônia contemporânea e sua estrada que em muitos trechos desfaz-
se sem o asfalto do progresso. No final do texto disponibilizamos o Quick Response Code (Qr
Code) para o leitor ou leitora ter acesso à película e ver ou rever este clássico do cinema
nacional.

Palavras-chave: Cinema; Transamazônica; Ditadura Militar.

Introdução

A Amazônia sempre foi vítima de inúmeros projetos políticos e econômicos míopes


e/ou modelos equivocados de ocupação e desenvolvimento para a região, sempre vista como
estratégica e importante para a nação brasileira.

O Brasil passou por um modelo de colonização de exploração ligado umbilicalmente


com a Metrópole portuguesa. As matérias-primas e riquezas naturais retiradas do solo brasileiro
foram necessárias para o fortalecimento da economia e do Estado Nacional lusitano. Com as
constantes investidas de espanhóis, franceses, ingleses e holandeses foi necessário levantar
guarda para a proteção deste vasto território. Para Corrêa:

Os invasores dos invasores, com ou sem o apoio de seus governos, disputam


na Amazônia escravos potenciais, possíveis mercados, rotas marítimas e

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comerciais alternativas, terras matérias-primas e um espaço propício para a


medida e o ajuste de forças da corrida colonial. A Amazônia é um dos lugares
dos reajustes econômicos e políticos da Europa dos séculos XVI e XVII.
(CORRÊA, 2012, p. 23).

A Amazônia muito cobiçada pela sua enorme reserva de madeiras, minerais e


principalmente as chamadas drogas do sertão (urucum, canela, castanhas, pimenta e outras)
volta a ser preocupação para Portugal. Percebemos que estes primeiros projetos de exploração
da Amazônia não priorizaram os colonos aqui fixados e muito menos os autóctones da região,
o que ocasionou um verdadeiro genocídio dos povos indígenas e um empobrecimento
sistemático e lamentável destes pagos. Na virada do século XIX para o XX, o produto nativo
que será cobiçado pela indústria automobilística internacional será o látex da árvore da
Seringueira (Hevea Brasiliensis). Segundo Silva:

Com a massificação da seringa no processo industrial, houve o deslocamento


de importantes empresas constituídas na França, Holanda, Rússia, Alemanha,
Inglaterra, Itália e Estados Unidos, destacando-se as vinculadas com a
fabricação de automóveis, como a B. F. Goodrich (1870), a United States
Rubber Co. (1892), a Goodyear Tired and Rubber Co. Ltd. (1885) e a Societá
Italiana Pirelli (1872). (SILVA, 2011, p. 75).

A borracha, principal produto de exportação da Amazônia enriqueceu muitos


produtores e comerciantes. Na cidade de Manaus, no seu centro histórico é fácil perceber esta
riqueza nos prédios suntuosos construídos neste período. É bom ressaltar que este “fausto” de
abundância econômica e cultural não foi distribuído para todos os envolvidos neste processo
produtivo que imperava, principalmente para os seringueiros que sofriam com as “contas” ou
seja, dívidas que nunca eram extintas, aprisionando o trabalhador à avidez do seu “patrão” no
seringal. Teixeira (2009) apresenta um relato bastante iluminador do uso da violência como
forma de manter este trabalhador no seu labor diário:
O seringalista passa a ser visto como um homem mau e cruel e sua fama corre
assim por toda a redondeza. Ainda hoje é comum ouvir relatos em certos
“coronéis” faziam valer sua autoridade pelo uso de castigos corporais. Diz-se
que em Humaitá costumava-se ordenar o lançamento de indivíduos
considerados malfeitores numa imensa cratera infestada de cobras, situada à
margem da cidade. (2009, p. 116).

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Mas não tardou para que o colapso econômico pairasse sobre o Vale Amazônico e sua
população. Em 1912 o inglês Henry Wickham Steed transportou ilegalmente sementes do
Brasil para a cidade de Londres e de lá para as regiões do Ceilão (hoje Sri Lanka) e Malásia
onde os seringais prosperaram e derrubaram a quase exclusividade da economia gomífera
amazônica em âmbito mundial como relata Charles Wagley (1988).

A construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré no início do século XX na região


que hoje está localizado o Estado de Rondônia. Os obstáculos climáticos e naturais do solo e
das moléstias tropicais foram responsáveis pela dizimação de vidas das centenas de
trabalhadores nacionais e estrangeiros que contribuíram nesta empreitada hercúlea (LIMA,
2001, p. 130-131). Com a falta de conservação e investimentos pecuniários, os trens deixaram
de percorrer os seus trilhos.

A chegada de Getúlio Vargas ao poder central significou o final da chamada República


Velha (1930) e também se intensificou o debate sobre os trabalhadores rurais e processos de
colonização. A migração Nordeste-Sudeste deveria ser desestimulada imediatamente. No
Discurso do Rio Amazonas, proferido na data de 10 de outubro de 1940, o “Chefe Supremo”
da nação não poupou promessas e retórica para colocar em prática o seu plano “definitivo” de
reerguimento econômico do Vale do Amazonas, principal fornecedor da borracha, produto
estratégico e de primeira ordem (VARGAS, 1944). As teorias da chamada ocupação do Espaço
Vazio foram colocadas em prática na hinterlândia amazônica em dois momentos. A Marcha
para o Oeste que traria os nordestinos para Goiás e Mato Grosso, incluindo também a
Amazônia, e posteriormente, uma política de mobilização de trabalhadores durante a Batalha
da Borracha.

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A investida surpresa do Japão sobre base naval norte-americana de Pearl Harbor no


arquipélago do Havaí em dezembro de 1941 foi um passo importante no teatro de combates na
II Guerra Mundial (1939-1945). O Império Nipônico tomava posse do sudeste asiático onde
estava as maiores plantações de borracha da seringueira, depois de suas sementes serem
transportadas para esta região, ocasionando o declínio da economia da Amazônia no chamado
primeiro ciclo da borracha (BENCHIMOL, 1992, p. 70-71). Os países aliados (Inglaterra,
Estados Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviética) necessitavam de borracha para
a indústria bélica e desta forma, voltaram os olhos para a borracha nativa da Amazônia. Com
a assinatura dos Tratados de Washington entre o Brasil e o Estados Unidos em pleno combate
em terras europeias e asiáticas, os países aliados investiram no ressurgimento da produção da
borracha nativa para o combate ao nazi-fascismo. Em uma velocidade sem precedentes,
milhares de migrantes nordestinos ocuparam as “estradas de seringa” e iniciaram a extração do
látex da borracha, estes ficaram conhecidos pelo epíteto de soldados da borracha.

Neste caso específico do "recrutamento" desta mão de obra nordestina para os seringais
da Amazônia ficou sob a responsabilidade do órgão governamental chamado SEMTA (Serviço
Especial Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia) que posteriormente teve seu nome
modificado para Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a
Amazônia (CAETA), com ligação direta ao DNI (Departamento Nacional de Imigração), que
possuía o controle e a política de recrutamento, distribuição, hospedagem, alimentação e os
meios de transportes da massa migrante em trânsito (BENCHIMOL, 1992, p. 16).

Foi criada a SAVA (Superintendência do Abastecimento do Vale Amazônico) que se


encarregava pela promoção do abastecimento de gêneros alimentícios de primeira necessidade
para todos os seringais, a organização e prática de racionamento destes em consequência do
bloqueio marítimo ocasionado pelos alemães. (MATIAS, 1997, p. 85). Com o fim do conflito
e a gradativa retirada de investimentos dos dólares americanos a estes programas resultaram
no abandono destes homens e mulheres que foram largados à própria sorte. Segundo Lima,
alguns setores lucraram bem com o fim da batalha. (2014, p. 143).

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Somente em 1967 é colocado em prática um modelo econômico para a região sediada


na capital do Amazonas. Trata-se da Zona Franca de Manaus (ZFM). Durante os anos 1980
houve uma ascensão nos números positivos deste modelo e que sem dúvida alguma, é
fundamental para a manutenção da floresta amazônica em pé. Infelizmente, a ZFM vem
recebendo pouca atenção por parte de vários mandatários do governo federal brasileiro.

A Amazônia para os militares

O governo ditatorial militar, jurídico e civil (1964-1985) instalado, também defendeu a


ocupação das regiões amazônicas, sob os lemas: Integrar para não Entregar ou Brasil: Ame-o
ou Deixe-o! E dentro destas perspectivas, estava a preocupação e o combate contra as
insurgências de trabalhadores campesinos e de focos guerrilheiros que começavam a eclodir
no interior do Brasil, vide a experiência da Guerrilha do Araguaia (1967-1974) no sul do Estado
do Pará (MORAIS, 2005). Segundo Alves Filho:

A ideia da luta armada não era novidade. A vitoriosa Revolução Cubana


havia-se tornado um referencial de reação ao imperialismo. Seus exemplos já
estavam sendo seguidos em outros países da América Latina: Venezuela e
Bolívia. Em 1962, a divisão do comunismo no Brasil já antecipava a
disposição a essa modalidade de luta. Dissidentes do antigo partido
Comunista, que não concordavam com a nova linha “pacifista” de Moscou,
optaram pela luta armada. Surgiu o Partido Comunista do Brasil. Os
comunistas dissidentes não acreditavam no reformismo janguista. Assim, a
Guerrilha do Araguaia já existia, nos planos do PC do B” (ALVES FILHO
2000, p. 72).

Neste projeto dos generais estavam a abertura de estradas para as regiões mais distantes
do país para dispersar nordestinos e evitar que surgissem colunas guerrilheiras na floresta
amazônica. A Transamazônica ou BR-230 teve sua pedra fundamental fincada no governo do
General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e seu trajeto inicia-se no município de
Cabedelo no Estado da Paraíba. No projeto inicial desta “obra faraônica” constava que a
rodovia ligaria o Brasil ao Oceano Pacífico, atravessando o Peru e o Equador.

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No rastro destes projetos, o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma


Agrária) criou centenas de colônias e agrovilas por quase toda a extensão da estrada. Colonos
de todo o Brasil, principalmente da região sul do país fixaram moradia, que aos poucos foram
sendo desassistidos por este mesmo governo federal. Segundo Alves Filho:

Ao longo da Transamazônica, o governo pretendeu implantar um projeto de


colonização com base na pequena propriedade e construído,
fundamentalmente, de mão-de-obra originária do Nordeste e do Centro-sul.
O incentivo ao deslocamento de trabalhadores dessas regiões para a
Amazônia foi uma estratégia para esvaziar a tensão social em outras regiões
do país e uma forma de recompensar as elites do Nordeste e centro-Sul, pelo
apoio de 64. (ALVES FILHO, 2000, p. 57).

Com a promessa governamental de um apoio financeiro, o erguimento de uma


infraestrutura e assistência técnica mínima para produção de milho, feijão, arroz e mandioca,
estes posseiros, logo, devastaram a floresta e ergueram suas casas e abriram seus roçados. Com
o passar do tempo, perceberam que aquilo acordado não seria cumprido, como relata Alves
Filho:

Neste contexto de desatinos, circulou, medianamente, uma classe média que,


tecnicamente mais qualificada, ora usufruiu das benesses desse modelo, ora
deu-lhe sustentação ideológica na condição de intelectualidade orgânica. Do
outro lado, concentrou-se o grande contingente dos desapossados, dos índios,
dos posseiros, dos excluídos, dos condenados às migrações, dos ganhadores
de salário mínimo, dos subempregados, dos marginalizados, dos miseráveis.
Esses só cabiam nos projetos – quando cabiam – como mão-de-obra barata e,
em muitos casos circunstancializada. (ALVES FILHO, 2000, p. 58-59).

Em solo amazonense, a partir da cidade de Manaus surge a conhecida BR-319 que corta
uma vasta área de floresta que ao chegar aos municípios de Lábrea e Humaitá ligam-se a
Transamazônica até o estado vizinho de Rondônia. Em meados dos anos 1980 órgãos
responsáveis como o antigo Departamento de Estradas e Rodagem do Amazonas (DER/AM)
não faziam a manutenção desta pista com regularidade, pois alegavam a falta de tráfego e ao
longo das décadas o descaso e a erosão se agravaram exponencialmente.

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O “Brasil Grande” e Iracema

Iracema, uma Transa Amazônica foi produzido em 1974 por Jorge Bodanzky, Orlando
Senna e Wolf Gauer. A película se propõe a ser um contraste com a propaganda oficial da
Ditadura Militar brasileira (instalada desde 1964) sobre o binômio cultura/natureza da planície
amazônica. Os generais divulgavam um país moderno e em expansão e entre suas maiores
obras estaria a construção da Transamazônica ou BR-230.

A história narra o encontro do gaúcho Tião Brasil Grande (Paulo César Pereio) e da
jovem Iracema (Edna de Cássia). Tião Brasil Grande um motorista de caminhão que
transportava madeira na cidade de Belém do Pará no norte “atrasado” do país para o sudeste
“desenvolvido”. Para Tião Brasil Grande o desenvolvimento só poderia ser representado pela
abertura de estradas que cortariam o país levando o progresso para as regiões mais distantes e
assim, tirando esses povos de um verdadeiro isolamento geográfico e civilizacional. As
rodovias são o símbolo de uma almejada modernidade para os brasileiros e brasileiras deste
período em tela.

Este caminhoneiro sulista conhece Iracema em um bordel da área portuária. A menina


cabocla, tentando fugir da miséria que está em sua volta, resolve se prostituir durante a Festa
de Círio de Nazaré na capital paraense e aceita o convite de Tião para uma aventura pelas
estradas desta nação que se dizia do “futuro”. Iracema, foi influenciada por informações de
outras cortesãs mais experientes sobre outros centros urbanos (Rio de Janeiro e São Paulo),
onde a ideia de riqueza poderia ser alcançada e experimentada com mais rapidez e facilidade.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Figura 01: Iracema ébria e abandonada na beira da estrada (Foto: Divulgação).

O casal começa um trajeto pela Transamazônica na boleia do caminhão. Durante a


viagem são apresentadas ao telespectador todas as mazelas sociais da região amazônica de
forma bem contundente. As imagens são bastante realísticas e chocam os desavisados. O
desmatamento e as queimadas da floresta amazônica, o comércio ilegal de madeira nobre, o
trabalho análogo ao escravo e o uso da mão de obra infantil, a prostituição de menores de idade,
a grilagem de terras, o abandono e a extrema pobreza do agricultor neste torrão nortista,
contrastando com a publicidade oficialesca do regime ditatorial vigente.

Tião Brasil Grande abandona Iracema em outro meretrício de uma estrada longínqua.
Meses depois, o caminhoneiro, agora dirigindo um caminhão boiadeiro que transportava rezes
de bovinos, em direção ao estado do Acre, reencontra-a suja, desdentada e maltrapilha.

Tião depois de alguns tragos de aguardente segue sua estrada deixando Iracema falando
impropérios ao motorista, por causa da sua negativa em dar dinheiro a jovem que trajava um
vestido empoeirado, repleto de fuligem e ébria de aguardente. Fica explícita a metáfora do
progresso e da civilização que precisam percorrer seu caminho ininterrupto rumo à
modernidade, enquanto quem não se adequa a estas regras será ultrapassado e ficará pelo meio
do caminho, estagnado, preso a tudo que apresentasse uma representação do “atrasado” e do
“selvagem”.

Atualmente, nos seis meses do chamado verão amazônico, a estrada BR-319 está repleta
de buracos, poeira e pontes de madeira improvisadas e durante os seis meses do inverno, a
rodovia torna-se intransitável. Quem se aventura a percorrer a estrada neste período enfrenta
chuvas torrenciais e muita lama tem uma experiência inenarrável. Mesmo após o processo de
redemocratização e vários governos civis, ainda hoje, discussões acirradas entre entidades
ambientais, organizações não-governamentais e membros dos poderes executivo e legislativo
complicam o asfaltamento de uma grande parte desta estrada.

Para nós, amazônidas desta última fronteira, só nos resta figurar na condição de “reféns”
do transporte fluvial e aéreo que nos liga ao restante do Brasil com valores exorbitantes sendo

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cobrados por estes serviços de importância estratégica e constitucional. Mesmo depois de


quatro décadas, continuamos “ilhados” no meio da floresta e os problemas sociais e ambientais
mostrados na película, infelizmente, continuam fazendo parte da realidade da Amazônia.

Referências
ALVES FILHO, Armando. A Política dos Governos militares na Amazônia. In. Pontos de
História da Amazônia. 2º Edição. Revisada e ampliada - Belém: Paka-Tatu, 2000.
............................ A Guerrilha do Araguaia [1972 – 1975]. In. Pontos de História da Amazônia.
2º Edição. Revisada e ampliada – Belém: Paka -Tatu, 2000.
BENCHIMOL, Samuel. Romanceiro da Batalha da Borracha; ilustrações de Jorge Palheta e
Moacir Andrade. Manaus: Imprensa Oficial, 1992.
DISCURSO DO RIO AMAZONAS. Pronunciado pelo Exmo. Sr. Dr. Getúlio Dornelas
Vargas, digno Presidente da República, em 10 de outubro de 1940. Pará – Belém. Oficinas
Gráficas do Instituto Lauro Nobre [Escola Profissional do Estado], 1943.
LIMA, Araújo. Amazônia, a terra e o homem. 5º Edição. Manaus: Edições Governo do Estado
do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 2001.
LIMA, Frederico Alexandre de Oliveira. Soldados da Borracha – Das Vivências do Passado às
Lutas Contemporâneas. Manaus: Editora Valer e FAPEAM, 2014.
MATIAS, Francisco. Pioneiros: ocupação humana e trajetória política de Rondônia. Francisco
Matias. Gráfica e Editora Maia Ltda. Porto Velho, 1997.
MORAIS, Taís. Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha. São Paulo: Geração
Editorial, 2005.
SILVA, Marilene Corrêa Silva. O Paiz do Amazonas. 3º Edição – Manaus: Editora Valer, 2012.
SILVA, José Lopes da. Amazonas – do extrativismo à industrialização. Manaus: Editora Valer,
2013.
TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão humana na Selva – O aviamento e o barracão nos
seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer, 2009.
WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos. 3º Edição.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

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ASCENSÕES E CARREIRAS DE BACHARÉIS NA JUSTIÇA RÉGIA:


OUVIDORES GERAIS DA COMARCA DO PARÁ POMBALINO

STEPHANIE LOPES DO VALE


Universidade Federal do Pará, Mestre
stephanielopes.989@gmail.com

Resumo

Exercendo funções de Ouvidoria, bacharéis formados em Direito buscavam se destacar para


demonstrar bom serviço através de ações envolvidas na representação régia nas diversas
jurisdições da monarquia pluricontinental. Os magistrados estavam se deslocando por cargos
em busca de uma carreira ou boas mercês pelo serviço ao rei, e os caminhos para a ascensão
exigiam boas relações e serviços bem avaliados por outros magistrados que fariam a residência
recolhendo os testemunhos dos moradores e demais agentes. O Grão-Pará e Maranhão era parte
de uma rede administrativa ampla e maleável, também era caminho de ascensão aos
magistrados que adentrassem na carreira das letras da Justiça – periférica ou não, a região era
palco da atuação de agentes coloniais. Assumindo tal encargo, na rede da burocracia e mercês,
se destacam as estratégias dos letrados para seguirem pelos patamares da carreira na Justiça do
Rei. A Comarca do Pará foi uma das experiências que viveram na administração ultramarina,
importa saber o que elas significaram para esses homens e questionar os motivos de alguns
terem mais exercícios no estado.

Palavras-chave: Rede Administrativa; Magistrados do Rei; Experiências.

Introdução
A Vila de S. José de Macapá está no seu primeiro estabelecimento, com
precisão de muitas obras públicas de calçadas, fontes, pontes, caminhos, e
serventias do Povo. As outras Vilas, de Câmara, e Cadeia, e mais que tudo de
hum cais nos portos das mesmas Vilas, porque o mar vai minando, e
demolindo a terra, de Sorte, que em breve tempo o arruinará as Casas
fronteiras; porque lhe tirará o fundamento, ou terra, em que se acham situadas,
o que se poderá evitar com adjutório dos rendimentos das terças, aplicando-
se para as ditas obras por tempo de vinte anos. O que represento a V. Ex.ª,
para o por na presença de Sua Mag.e, e se dignar o mesmo Senhor mandar
aplicar as ditas terras para as referidas obras, e determinar, o que for servido.
(AHU – Pará, Avulsos. Cx. 49, Doc. 4522, 28/06/1761.)

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Em 1761, Feliciano Ramos Nobre Mourão se dirigiu ao secretário de estado da Marinha


e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, tratando da organização de uma vila
recente: São José do Macapá. Esta vila também se tratava de uma localidade com uma fortaleza
importante, dada a sua proximidade com a colônia francesa de Caiena. Mas quem seria Nobre
Mourão nessa conjuntura amazônica?

Estrutura de Governação e Justiça: a magistratura régia

O poder majestático tinha funções e limites. A existência ordenatória e central do


monarca deveria ter sentido nessa sociedade de Antigo Regime corporativa. Funcionando como
um polvo, com vários tentáculos, a burocracia lusitana pode formar e estender suas redes de
compadrio, controle e fiscalização alimentada pelos seus leais súditos.

Uma sociedade corporativa, como o era a portuguesa até o século XVIII, foi sendo
estruturada com base em relações de fidelidade e reconhecimento pelo rei dos sacrifícios (de
bens e vidas) dos súditos e pelo compromisso de lealdade com a cabeça do corpo social: o
monarca. Esse deveria se ocupar de suas funções, não ampliando seu poder além do papel de
manutenção daquela sociedade. Assim, “fazer justiça” entra como papel primário do rei. Tal
atribuição régia era direcionada para manter a unidade portuguesa, assegurando a cada qual o
que era de direito. Nisso estava: reconhecer os privilégios dos súditos, inclusive os que eram
inalienáveis pelo rei, e os que era compromisso serem dados como dons ou graças. Eram os
vários privilégios que tornavam esta complexa comunidade hierarquizada. Desfazer essa
estrutura seria um ato de injustiça ou tirania.

A amplitude pluricontinental da monarquia portuguesa desenvolveu variados


privilégios, elites coloniais com direitos, niveladas de diversas maneiras pelo território.
Governos são constituídos dentro de processos próprios de articulações e possibilidades,
entrando nessa construção o acaso e os limites de circunstâncias muito específicas, como o
caso português que se envolveu com as múltiplas comunidades existentes nas colônias, fazendo
uso de principais da terra, degredados e autoridades autóctones. Reconhecendo a formação das
câmaras portuguesas como bases essenciais para confirmação e sedimentação da presença da

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Coroa lusa e costura da rede administrativa por todo esse vasto espaço interatlântico, é preciso
compreender como a articulação intermediária era fundante para conectar as câmaras até a
Coroa – seja em Portugal ou Macau, por exemplo.

Nessas articulações da rede administrativa estavam agentes coloniais que circulavam


pelos variados postos da administração portuguesa. Tais cargos podem ser localizados entre
três áreas maiores da administração: Fazenda, Milícia e Justiça, esta é uma compreensão
analítica sobre a governação, pois a noção de governo como função separada não exista e
atribuições correlatadas eram exercidas por Capitães mores e Provedores da Real Fazenda, por
exemplo. A área da Justiça era particularmente vinculada à manutenção da sociedade, como
uma prerrogativa e papel básico do rei: manter a unidade do reino que ele simbolizava. Resolver
ou intermediar querelas, conflitos e fiscalizar o bom andamento da atuação de agentes coloniais
eram atribuições que constavam nos regimentos de Ouvidores Gerais (Comarcas do Ultramar)
e Corregedores Gerais (em Portugal): Devassas Gerais nas vilas, Correições das câmaras,
Inquirições dos denunciados e testemunhas e Residências dos funcionários. Fazer Justiça era
exercer tais atuações nos territórios das vilas, agindo nas ordens e poder delegado pelo rei, por
meio de suas instituições, ao nomear os magistrados formados em Coimbra que se
apresentassem ao serviço real. A Justiça era um setor específico e particular, no qual o
desenvolvimento na carreira das letras possuía trilhas e normas próprias aos que ingressassem
nela.

Os regimentos de nomeações eram documentos que descreviam as atribuições que o


oficiais de régia nomeação tinham que executar, todavia, era comum que se apresentassem em
vários agentes que não possuíam hierarquia entre si. Essas atribuições dos ofícios se cruzavam,
conflitavam-se e completavam-se, dando ao monarca o palco para harmonizar esses agentes e
súditos em disputas. Dessa maneira, o rei interferia quando ocorressem conflitos, reforçando o
seu papel na própria estrutura que “funcionava” e que sempre recorria a ele. Através desses
meandros indefinidos se expressava a necessidade do rei como a principal e final figura para
conectar e articular a sociedade. O conflito existiria, fosse em decorrência dos regimentos, das
defesas de prerrogativas ou pela inércia das autoridades locais, mas o peticionar e poder de
Graça do monarca era uma via de solução constante – mesmo que distante para muitos.

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Por esses limites práticos, de progressiva ampliação da estrutura administrativa e dos


domínios além Portugal, se adicionava a autonomia do autogoverno das câmaras – um direito
medieval e tradicional. O monarca e seus representantes eram o recurso para a solução de
impasses entre funcionários e meio para a satisfação dos povos, mas, primariamente, a câmara
era uma “corte” local com eleições e discussões de orçamento – uma república, que possuía
Juízes em sua composição, eleitos entre a gente da terra considerada digna do cargo. Com tais
questões postas entendamos: ao fazer justiça, o rei pesaria argumentos e acusações, decidindo
o melhor modo de punir e perdoar na medida certa. Era essencial evitar a vingança da parte
ofendida e obter a sensação de justiça para os queixosos e o povo, sendo presente de muitos
modos a representação do monarca.
No decorrer dos séculos, os quadros da Justiça do rei eram ocupados pela magistratura
formada que iam recebendo nomeações com novos termos jurisdicionais e ordens régias de
maior atividade interventora. A governação colonizadora se complexificava para conservar a
monarquia pluricontinental.

O modelo setecentista de administração activa, sobretudo na segunda metade


do século XVIII, obrigou, em contrapartida, a coroa a assumir um desígnio
para o sociedade e a traçar o melhor ordenamento possível com vista a
optimizar as condições materiais da actividade produtiva. De uma situação de
“impossibilidade” governativa para mudar o status quo, típica da
“administração passiva” jurisdicionalista, passa-se para uma situação
interventora, em que a capacidade dos actos governativos se mede pela acção
exequível dos programas políticos (“administração activa”). (SUBTIL,1998.
p. 143)

Enviados para os domínios coloniais, bacharéis em Direito nomeados como Ouvidores


Gerais, visitaram todas as vilas das suas comarcas, avaliando os procedimentos de juízes
ordinários, bem como dos juízes dos órfãos, dos juízes de fora, dos vereadores e procurados,
além de verificar as contas da câmara – com os usos dos recursos da arrecadação conseguida
com os contratos e fazer a eleição. Esses funcionários régios eram conectados a presença das
vilas e ligavam esses territórios aos órgãos centralizadores, como o Conselho Ultramarino, a
secretaria de estado da Marinha e Ultramar, o Desembargado do Paço e a Casa de Suplicação.
A atribuição de proceder em Inquirições e Residências desses camarários, em conjunto
com os demais funcionários encarregados do Governo dos povos nas vilas, era determinado

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nas Ordenações Filipinas. O papel dos Ouvidores Gerais era dependente da existência das
câmaras. Na segunda metade do século XVIII, a instalação das câmaras pelo Ultramar em
exploração era um pilar da colonização pois demarcava a presença da Coroa lusitana, definindo
um termo urbano e a intenção de habitação permanente naquele sertão tornado território
português – nem sempre bem sucedido. Com a ausência desse órgão se perdiam mecanismos
para a aplicação da fiscalização e do controle por agentes régios, que no contexto das partidas
demarcatórias entre Portugal e Espanha (Tratado de Madri, 1750), esvaziava os argumentos
portugueses daquela colonização como realidade. As vilas serviriam a muitos projetos daquele
reinado josefino.
A criação de novas capitanias (no caso da colônia norte São José do Rio Negro e São
José do Piauí, e a reorganização do estado como estado do Grão Pará e Maranhão, com sede
em Belém) acompanhou a criação de novas povoações e a elevação de aldeamentos
missionários para a condição de vilas, exigindo a implantação de câmaras, a elevação de
fortalezas e fortes em certos pontos. Ocorreu também a organização territorial com planos
urbanos e a inclusão dos nativos como potenciais moradores e camarários. Nesse cenário de
transformações, a realização de eleições estabelecia por si novos territórios para a visitação de
Ouvidores, a presença deles significaria mais olhos e ouvidos do rei nas colônias.
Nessa configuração, as transformações e novas nomeações buscaram aglutinar outras
fontes de poder e influência local às estruturas régias centralizando e vinculando o exercício e
o poder local ao monarca. Com tais perspectivas, reconheceu-se o Principal como parte da
administração e a possibilidade de eleição de lideranças indígenas em cargos da república –
mesmo que tutelados, segundo o Diretório dos Índios, as Leis de Liberdades de 1755
vigoravam –, como vereadores e juízes ordinários (função leiga e do direito costumeiro).

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Figura 1: Instâncias da Justiça. Fonte: autoria própria.

Além de novas capitanias e comarcas (jurisdições específicas de governo e justiça),


também foi criado o Tribunal da Relação no Rio de Janeiro (existia um na Bahia) e foram
implantadas, de modo permanente, Juntas de Justiça como recurso seguido à Ouvidoria, na
qual os eclesiásticos poderiam ser denunciados e os recursos seriam tratados pelo colegiado
dos magistrados régios atuantes na sede da comarca: Ouvidor, Intendente da Agricultura,
Manufatura e Comércio e Juiz de Fora.
A Figura 1 permite observar a vinculação, de modo geral, dos caminhos de recursos dos
súditos do rei para obter Justiça. Temos na figura tribunais e foros que eram independentes
entre si, cada qual tratava de suas jurisdições e eram necessárias denúncias contra a instância
anterior ou recurso para as causas subirem. A Justiça “criminal” era mais reativa – ainda que
vistoriasse via Devassas Gerais. Os agentes eram parte da governação, nesse sentido, estavam
dialogando e arbitrando em questões que, atualmente, não são interpretadas como jurídicas,
mas como ocupantes de cargos em elevados patamares. Esses bacharéis estavam trilhando as
suas trajetórias de enobrecimento pelas letras.
Nessas instâncias, as denúncias e querelas eram expostas e pedidas em cartas de seguro,
de liberdade e de perdão. Elas eram ouvidas e julgadas, mas alçá-las mais e mais acarretavam
altos custos. Os altos tribunais não eram acessíveis a todos e a justiça não interpretava as
palavras de testemunhos com igual peso e valor. Essas instâncias observavam a moral e os
privilégios como parte dos processos jurídicos, que agregavam valor (positivos ou negativo)
sob as partes, raramente são vistos na documentação de pessoas pobres e de cor –
tendencialmente tais casos eram ouvidos apenas pelos juízes locais e “resolvidos” oralmente.

Os cargos da Justiça Régia nas malhas da monarquia pluricontinental portuguesa

Como estamos observando, o campo da Justiça detém funções e particular importância


para a implementação e execução de projetos de colonização, como também para a intervenção
régia nas questões locais. Nesse sentido, temos os termos das vilas que realizavam eleição e os

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oficiais desta dirigiam as localidades, recolhiam tributos, decidiam e executavam gastos para a
conservação de prédios e edificações públicas. Portanto, parte essencial para tornar mais
portuguesa a rotina de vida e trabalho dos povos. Ao inquirir e vistoriar as contas, os Ouvidores
Gerais corrigiam e orientavam esses oficiais sobre seus erros e, tal como acima, indicavam
usos e maneiras de melhor executar os papéis das câmaras.
Esses exercícios de visitação, inquirição e devassa das contas e acontecimentos eram
atribuições executadas durante os seis meses de Viagens de Correição anuais dos Ouvidores.
Importante momento da vida colonial para esses magistrados, pois não bastariam as normas e
leis, necessitavam os bacharéis de entendimento das circunstâncias e costumes locais para
dosar a implantação de novas ordens sem conflitar com as práticas da terra e nem construir
contra si redes de inimigos – que poderiam denunciá-los e mover-se para retirá-lo. De fato,
esses bacharéis viviam e percorreram os rios amazônicos, construindo outras imagens e
opiniões acerca da maneira de aplicar, nesse momento histórico, as medidas pombalinas.
O agente que se dirige ao secretário de estado, na introdução dessa exposição, era
Feliciano Ramos Nobre Mourão que, no estado do Grão Pará e Maranhão, foi Ouvidor Geral
da Comarca do Pará de 1760 até 1767, mas já havia atuado como Juiz de Fora de Belém e
Provedor da Fazenda Real do Pará. Em norma, não ocorreria a circulação dos magistrados, com
isso, não teriam associados nem favorecidos quando fizessem devassas e defenderiam os
interesses da Coroa, em vez de acobertar aqueles que cometessem crimes e desvios. Todavia,
encontramos no período pombalino (período que está em pesquisa).

Tabela: Circulação da Magistratura na Justiça do Grão-Pará e Maranhão


An João da Cruz Feliciano Ramos José Feijó de João Inácio de Francisco Xavier
os Dinis Pinheiro Nobre Mourão Melo e Brito e Abreu Ribeiro de
Albuquerque Sampaio
174 Ouv – MA
7
174 Prov – MA
9
175 Ouv – PA
3
175 Prov – PA
5
175 Prov – PA
6 JF – BEL

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175 Int – PA Prov – PA


7 JF – BEL
175 JF – PA
8 Prov – PA
176 JF – PA Int – PA
0 Prov – PA
176 Ouv – PA
3
176 Ouv – PA
7
177 Ouv, Int e Prov –
3 RN
Legenda: Ouv – Ouvidor; Prov – Provedor; Int – Intendente da Agricultura, Comércio e Manufatura; JF – Juiz de
Fora; MA – Maranhão; PA – Pará; BEL – Belém e Rio Negro – RN.
Fonte: AHU – Pará, Avulsos: Cx. 29, D. 3032; Cx. 34, D. 3176; Cx. 39, D. 3671; Cx. 41, D. 3751; Cx.42, D.
3876; Cx. 43, D. 3966; Cx. 44, D. 4058; Cx. 46, D. 4197; Cx. 47, D. 4299; Cx. 48, D. 4398; Cx. 60, D. 5330 Cx.
60, D. 5331; 69, D. 5950.

Observemos a tabela 1, todos os bacharéis indicados passaram por mais de um ofício


na região e em cargos que os envolveram com verificações das condições rotineiras da
jurisdição. Deslocando-se pelos rios amazônicos, destacamos os que atuaram como Ouvidores,
envoltos nas suas funções de investigar a implantação das vilas, também eram responsáveis por
ações para assegurar que o termo de povoação, como suas ruas, áreas de rosa do comum,
residências de moradores, casa de câmara e igrejas seguissem padrões.

Figura 2. Planta da Vila de S. José de Macapá tirada por ordem do governador Manoel Bernardo de Melo e
Castro no Ano de 1761 pelo Capitão Engenheiro Gaspar, João de Gronsfeld. Fonte: AHU – Cartografia
Manuscrita, Pará 1789.

A ordem e a civilidade não ocorreriam apenas com a direção dos Diretores de Índios,
mas com a conformação de um ambiente civilizatório pelas suas ruas retas. A centralidade da

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praça com os prédios públicos, dirigindo o olhar dos moradores e reunindo a população que lá
encontrava o governo, a fé e o mercado. Correlato a essa questão foi criado o cargo de
Intendente Geral da Agricultura, Manufatura e Comércio nas capitanias da colônia norte. Esse
novo agente não suplantou as funções do Ouvidor Geral com a organização da câmara. A
Ouvidoria Geral, ao inquirir moradores e inspecionar as contas das câmaras, apuraria os gastos
com a conservação da vila. Assim, encontramos ouvidores indicando formas de utilizar as
rendas das câmaras.

Podemos avaliar como a manutenção de uma rede de vilas e povoações eram essenciais
para a conservação da colonização e da transformação do espaço do sertão em território
português. Apresentando de outro modo: as iniciativas de direcionamentos das contas e do
ordenamento local era uma maneira de fazer justiça, pois eram ações para a manutenção
daquela sociedade que a colonização buscava construir. “A instituição da vila [Cuiabá] não só
instaurava a legitimidade do poder administrativo sobre o espaço como também regulava, em
termos sociais, a própria vivência naquele espaço que, sem as respectivas autoridades, tendia
para o caos.” (ARAUJO, jan-jun. 2012. P. 43). Ao menos nisso acreditavam as autoridades
coloniais.

Em 1755, ouvidor geral e intendente da capitania do Pará, João da Cruz Dinis Pinheiro,
dirigiu-se ao secretário do Estado e Negócios Estrangeiros e da Guerra, o conde de Oeiras,
Sebastião José de Carvalho e Melo, sobre a descoberta do rio Tapajós, as guerras com indígenas
e as fundações das vilas de Ourém e Bragança. Dessas ocasiões, relatou que:

Para este efeito levei desta Cidade a minha custa Astrólogos, e Engenheiros,
com quem pus em execução a ideia de lhe facilitar a comunicação por terra,
para que se pudessem servir de Bois, e Cavalos, sem o embaraço, que causa
a Navegação dos Rios por ser toda de remo que só se faz a força de muita
gente: para o que lhe mandei abrir uma estrada por Linha reta na distância de
quatro Léguas com quarenta palmos de Largo, que não só por franca a
comunicação mas a fiz mais suave e útil por diminuir hum dia dos que se
gastavam embarcando. (Anexo: AHU – Pará, Avulsos, Cx. 42, D. 3838.
13/08/1755.)

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O bacharel Dinis Pinheiro anteriormente atuou no Maranhão e tinha indicações para


seguir viagem para o Piauí. Sua experiência figurou – numa região de pouco prestígio para
atrair muitos magistrados e com certa particularidade – como grande qualidade para que fosse
deslocado entre funções e andanças pelo norte. Sua carreira se encerrou em consequência a sua
morte no sertão do Piauí, enquanto se deslocava para Oeiras.

Esse não era, por fim, o único caminho para bacharéis na região amazônica. Os
magistrados Feliciano Ramos Nobre Mourão e José Feijó de Melo e Albuquerque alçaram
postos nos Tribunais da Relação e Feliciano Mourão recebeu carta de título do Conselho da
Rainha e Desembargador no Desembargo do Paço. Embora a Amazônia não fosse uma
colocação prestigiada, o exercício bem avaliado e com a adequada habilidade negociativa
poderia ser parte de uma destacada trajetória no serviço régio. Observando a tabela 1 é possível
notar que Melo e Albuquerque com constância na região, sendo que esta foi a primeira
jurisdição que ele atuou, até ser nomeado como desembargador no Tribunal da Relação do Rio
de Janeiro, em 1779, havia somente serviço ao rei no Grão-Pará.

Referências

ARAUJO, Renata Malcher de. A Urbanização da Amazônia e do Mato Grosso no século


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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
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AS CAUSAS MORTIS E AS DOENÇAS DOS ESCRAVIZADOS E


LIBERTOS NA CIDADE DE TERESINA NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX

TALYTA MARJORIE LIRA SOUSA NEPOMUCENO


Universidade Federal do Piauí
talytamarjorie@hotmail.com

Resumo

Um dos principais objetivos do estudo do passado é investigar as permanências e as rupturas


ocorridas ao longo do tempo em um dado espaço. O objetivo desse trabalho é analisar a
condição de saúde, a causa da morte e as doenças dos escravizados e libertos na cidade de
Teresina, na segunda metade do século XIX. Escolhemos o recorte espacial e temporal
baseados no Livro de Óbitos da freguesia de Nossa Senhora das Dores, entre os anos de 1869
a 1877, visto que este é o único registro paroquial disponível acerca dos óbitos de escravizados
e libertos na cidade de Teresina. No que diz respeito ao levantamento da documentação,
recorremos às fontes primárias existentes no Arquivo da Casa Paroquial de Nossa Senhora do
Amparo e Arquivo Público do Estado do Piauí. Essas informações nos ajudam a compreender
a vida cotidiana e as condições de saúde desses sujeitos históricos que ao longo do tempo,
foram anônimos e silenciados por uma produção historiográfica tradicional.

PALAVRAS-CHAVE: História; Escravizados e Libertos; Registro de Óbito; Condição de


Saúde; Doenças.

Introdução

Aos trinta e um dias do mês de outubro do ano de 1869, foi sepultada no cemitério
público da cidade de Teresina-PI, a escravizada Victoria, natural da freguesia de Santo Antônio
de Campo Maior, Piauí, aos quarenta anos de idade, de dor de estômago. (ARQUIVO DA
IGREJA DE NOSSA SENHORA DO AMPARO. Registros de Óbitos da Freguesia Nossa
Senhora das Dores, 1869-1877) A partir da descrição do Livro de Registro de Óbitos da Igreja
de Nossa Senhora das Dores, foi possível perceber a riqueza de informações e as várias
possibilidades de pesquisas contidas nos registros eclesiásticos. O estudo desses registros

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eclesiásticos permitiu aos historiadores debruçarem-se sobre as dinâmicas sociais,


possibilitando-lhes construir taxas de mortalidade e examinar as condições de saúde, as atitudes
diante da morte e os ritos fúnebres da população teresinense. (SOUSA, 2012, p. 83)
Os livros de registro paroquiais passaram a ser fonte excepcional para os historiadores
a partir da escola dos Annales, quando a história deixou de privilegiar os grandes eventos e
passou a contemplar o cotidiano de personagens desconhecidos. A escola dos Annales propôs
novos objetos, problemas e abordagens para a disciplina histórica, além de defender uma
concepção crítica sobre as fontes e o uso de aportes analíticos de outras ciências, objetivando
assim a interdisciplinaridade. Desenvolveu-se, então, a chamada Demografia Histórica, com
estudos sobre a reprodução humana, crescimento demográfico, nascimentos, casamentos e
taxas de mortalidade.
Os pesquisadores Louis Henry e Michel Fleury tornaram-se referência nessa temática
de estudo, criaram uma metodologia para a coleta e análise das informações contidas nos
registros paroquiais franceses e utilizaram essa documentação para reconstruir o
comportamento das populações que viviam em outros regimes demográficos. A metodologia
da Demografia Histórica teve ressonância no Brasil a partir dos trabalhos produzidos por Maria
Luiza Marcílio e Altiva P. Balhana. (BASSANEZI, 2009, p. 162)
A partir dessa renovação temática, das mudanças ocorridas na escrita dos historiadores
e da ampliação das fronteiras da crítica e da análise dos documentos, os registros eclesiásticos
tornaram-se um valioso material de estudo sobre a vida cotidiana. De fato, as experiências de
múltiplos sujeitos foram abordadas, proporcionando a reconstrução de processos históricos.
Nesse sentido, a Demografia Histórica influenciou as pesquisas no âmbito da
Demografia da Escravidão. No seu bojo, surgiram reflexões sobre os movimentos de
nascimento, casamento e óbito, sobre costumes, tradições e mentalidades, sobre a existência
de família e matrimônio entre a população escravizada, sobre a ocorrência de compadrio e as
redes de ajuda mútua. (BASSANEZI, 2009, p. 145).
Dessa forma, podemos analisar as condições sociais de vida e morte de vários grupos
populacionais. As análises quantitativas e qualitativas referentes aos registros paroquiais nos
levaram a indicadores básicos como a mortalidade infantil, o quadro nosológico, o panorama
por sexo e idade, a causa da morte e a condição de saúde dos escravizados e libertos. Assim, o

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objetivo deste artigo é analisar a condição de saúde, a causa da morte e as doenças que incidiam
sobre os escravizados e libertos na cidade de Teresina-PI, na segunda metade do século XIX.
O recorte espacial e temporal foi selecionado com base nos assentos do Livro de Óbitos
da freguesia de Nossa Senhora das Dores entre os anos de 1869 e 1877, visto que este é o único
registro paroquial disponível referente aos óbitos de escravizados e libertos na cidade de
Teresina-PI.
Devemos ressaltar que a riqueza de informações contidas nas várias categorias de
assentos apresentou-se como resultante das observações dos párocos responsáveis pela escrita
do documento, registrando os pormenores do óbito. Foram analisados 69 assentos de óbitos
entre escravizados e libertos, sendo que sete desses registros são de filhos(as) de cativas que
nasceram após a Lei Rio Branco (Lei do Ventre Livre - 1871).
Inicialmente, traçaremos um panorama sobre a cidade de Teresina, observando como
as relações escravistas estiveram presentes na trajetória de consolidação como capital da
província do Piauí. Em seguida, analisaremos os assentos de óbito, verificando as causas de
mortalidade, quais doenças mais incidiam sobre a população cativa e liberta, os aspectos
relacionados à faixa etária e sexo, à mortalidade infantil, e outras possibilidades de estudo que
envolvem os livros de óbitos.

A formação da cidade de Teresina

A cidade de Teresina foi fundada por meio da resolução nº. 315 de 21 de julho de 1852,
que elevou a Vila do Poti à categoria de cidade. O Presidente da Província, José Antônio
Saraiva, habilitou-se a fixar residência na nova sede do governo e pessoalmente inspecionar as
obras provinciais que se realizavam. (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO PIAUÍ. Livro
de Registro de resoluções – 1852. Código das Leis Piauienses – 1852 / Tomo 13º Parte 1ª
Secção 1ª – Resolução nº 315 Publicada a 21 de julho de 1853)
Para a nova capital foi transferida a sede do governo com todos os seus
estabelecimentos e repartições públicas. Na sua fundação, a cidade de Teresina foi dividida
administrativamente entre a freguesia de Nossa Senhora do Amparo e a de Nossa Senhora das
Dores. O limite entre as freguesias se fazia por uma linha reta do pasto público de Teresina, no

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Rio Parnaíba, na Praça da Constituição (atualmente conhecida como Praça da Bandeira) até o
porto chamado de Eufrásio, no Rio Poti.
A freguesia de Nossa Senhora do Amparo recebeu o mesmo nome da padroeira da
capital. Nessa freguesia estavam localizados os prédios da administração pública da Província,
a Igreja Matriz, o mercado, as lojas e os armazéns da cidade. Segundo o censo de 1872, esta
possuía 1.270 pessoas escravizadas, sendo 474 pardas e 796 pretas. (BRASIL. Recenseamento
Geral do Império. Typ. G. Leuzinger, 1872).
A freguesia de Nossa Senhora das Dores possuía, segundo o censo de 1872, 1.803
pessoas escravizadas, sendo 471 pardas e 1.332 pretas. (BRASIL. Recenseamento Geral do
Império. Typ. G. Leuzinger, 1872) Observamos o número maior de escravizados nesta
freguesia, isso ocorria possivelmente porque era onde ficava localizada a subida para o Campo
de Santana ou Rua dos Negros (atualmente próxima à Praça João Luís Ferreira e Rua Eliseu
Martins), local da cidade de Teresina onde, segundo Mairton Celestino, a cultura negra podia
se manifestar com mais intensidade através dos batuques e das festas religiosas. (SILVA, 2008.
p. 43).
Em toda a província do Piauí havia cerca 202.222 pessoas, das quais 178.427 eram
livres e 23.795 eram escravizadas. As cidades de Oeiras e Teresina foram as que apresentavam
um número significativo de escravizados. A cidade de Oeiras possuía um número total de
12.794 habitantes, dos quais 10.807 eram livres e 1.987 eram escravizados; a cidade de
Teresina possuía 21.692 habitantes, dos quais 18.619 eram livres e 3.073 eram escravizados.
(BRASIL. Recenseamento Geral do Império. Typ. G. Leuzinger, 1872) Enfatizamos que os
índices elencados no Censo subestimaram o número total de cativos, pois o fim do tráfico
atlântico, a baixa taxa de natalidade e a alta mortalidade provocaram uma diminuição relevante
do número de escravizados entre as décadas de 1850 e 1860, fatos que não foram considerados
para o censo de 1872. (CHALHOUB, 2012, p. 42)
Notamos, através do Recenseamento Geral da Nação de 1872 e do pedido do mestre de
obras na edificação da cidade de Teresina, um número reduzido de escravizados em
comparação às outras cidades do Brasil. A edificação desta cidade teve seu início após a Lei
Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico negreiro e prescrevia punições mais rigorosas para
quem dele participasse.

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A partir do ano de 1850, o tráfico interno intensificou-se, em especial na transferência


de cativos das regiões nordestinas para as plantações de café do sudeste brasileiro. Durante a
década de 1870, muitos negociantes e políticos dedicaram-se à captura e venda de escravizados,
e a cidade de Teresina passou a ser um ponto de apoio para o tráfico interprovincial. (SILVA,
2008, p. 44)
No ano 1871, houve a promulgação da Lei Rio Branco (Lei do Ventre Livre) que
implementou novas medidas para a concessão de liberdade aos filhos de mulheres cativas,
nascidos a partir de 28 de setembro de 1871. A Lei Eusébio de Queirós e a Lei do Ventre Livre
comprometeram a permanência dos escravizados na cidade de Teresina, pois o Governo
Imperial necessitava de trabalhadores no Rio de Janeiro e em outras províncias para a
manutenção da lavoura de café.
Mesmo possuindo um reduzido plantel de cativos em comparação às outras cidades do
Brasil, notamos que a característica fundamental da formação social e econômica da cidade de
Teresina estava balizada no trabalho escravizado. As relações escravistas, presentes nesse
espaço, nos oferecem significações, visto que construíram um caleidoscópio de múltiplas
imagens e a partir delas podemos analisar as causas das mortes e as condições de saúde dessa
população.
Os registros paroquiais oferecem subsídios para observarmos realidades ainda pouco
conhecidas como: os movimentos de óbitos refletindo costumes, tradições e mentalidades de
um dado momento histórico; a condição de saúde de causa mortis da população escravizada e
liberta. A prática de registrar os sacramentos como o batismo e o matrimônio existe desde o
século XVI nos países da Europa. No Brasil, em 1707, as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia seguiram as recomendações do Concílio de Trento e estabeleceram
normas e a obrigatoriedade dos registros paroquiais. (BASSANEZI, 2009, p. 146)
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia eram formadas por cinco livros e
pretendiam considerar tanto as questões dogmáticas (da fé católica), como as atitudes frente às
“coisas sagradas”, o comportamento dos fiéis no cotidiano, o procedimento desejável do clero
e por último instituiu as sanções determinadas pelo descumprimento das disposições. (VIDE,
2007) A primeira parte das Constituições tratava dos sete sacramentos da Igreja Católica:
batismo, confirmação, eucaristia, penitência, extrema-unção, ordem e matrimônio.

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Quanto aos registros de óbitos, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia


especificavam que as paróquias deveriam ter um livro para assentar os nomes dos defuntos,
que o registro precisava ser feito até o terceiro dia do falecimento, escrito “no comprido”, sem
abreviaturas ou algarismos. Todos os dados na seguinte ordem: data do falecimento, nome do
sacerdote, estado civil, filiação, local, se era paroquiano ou não, idade (se pudesse saber),
sacramentos recebidos ou sem eles, lugar do sepultamento, se fez testamento, quantas missas
e quantos ofícios queria por sua alma, se morreu pobre ou possuía algum patrimônio, se o
enterro foi ou não pago. No caso dos escravizados ainda era registrada a cor e o nome do
proprietário.
Os registros paroquiais desempenhavam a função de registro oficial e público, sendo
revestidos de força de ato civil. A regulamentação cível para o registro dos casamentos,
nascimentos e óbitos ocorreu em 1874, a partir do decreto nº. 5.604, mas foi cessada por meio
do decreto nº. 9.886 de 07 de março de 1888, que revogou o anterior e suspendeu os efeitos
cíveis dos registros eclesiásticos.
No século XIX, antes do advento das teorias médicas, as doenças afligiam grande
número de pessoas, principalmente nos centros urbanos, onde as práticas terapêuticas e de
higiene eram geralmente baseadas na tradição ou na religião. (STEIN, 1990, p. 233). As
doenças desse período eram classificadas e diagnosticadas diferentes em relação aos padrões
atuais. As causa mortis eram registradas de forma ambígua, com a apresentação de uma
sintomática variada e um quadro específico para os nomes das doenças daquele momento
histórico.
Os elementos que identificam o quadro nosológico dos cativos e libertos indicam
doenças, curas, condições de vida e morte. Essas condições podem estar relacionadas a
questões mais gerais sobre o cotidiano da população escravizada e liberta, como má
alimentação, falta de assistência, trabalhos excessivos, e se estavam enquadradas no contexto
rural ou urbano. (BARBOSA, 2016, p. 273-305).
De acordo com Odilon Nunes, os cativos das Fazendas Públicas recebiam, por um dia
de trabalho nos canteiros de obra durante a edificação da cidade de Teresina, 200 gramas de
carne seca, duas canecas de farinha, meia de feijão, meia quarta de libra de toucinho, sal, milho
cozido com rapadura e arroz, e sabão para lavar as roupas. (NUNES, 2007, p. 34) Mas, a

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situação dos escravizados era diferente da exposta por Odilon Nunes. Além da condição
subumana, os cativos tinham uma alimentação rarefeita, composta basicamente por farinha e
carne seca, que levava uma parte dessa população à morte. Essa base alimentar ainda sofria
com o problema do abastecimento interno, visto que a capital não era autossuficiente na
produção de farinha de mandioca, milho e arroz, e o período seco se estendia por quase todo o
ano.
À luz dessas informações, há possibilidades para a análise da condição de saúde, causa
mortis e as moléstias que se manifestavam em escravizados e libertos na cidade de Teresina,
na segunda metade do século XIX. Uma delas está baseada no trabalho de Mary Karasch, A
vida dos escravos no Rio de Janeiro, onde a autora classifica as doenças que causaram a morte
dos escravizados, enterrados no cemitério da Santa Casa do Rio de Janeiro, entre os anos 1833
e 1849. (KARASCH, 2000, p. 497-503).
Em meio às causa mortis encontradas no livro paroquial referente à freguesia de Nossa
Senhora das Dores, podemos identificar seis grupos de doenças elencados por Mary Karasch:
doenças infecto parasitárias; sistema nervoso e neuropsiquiátrico; sistema respiratório; sistema
digestivo; sistema circulatório; doenças geniturinárias e causas não definidas.
A maior incidência dos registros paroquiais está nas causas de morte por doenças não
definidas, como a do párvulo Cosme, de dez meses, que faleceu de febre no dia 1o de outubro
de 1869, e do cativo africano Parclino, que faleceu de quebradura no dia 20 de janeiro de 1876.
(ARQUIVO DA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO AMPARO. Registros de Óbitos da
Freguesia Nossa Senhora das Dores, 1869-1877) A causa da morte em decorrência de “doenças
não definidas” era registrada dessa forma porque a sintomatologia era parecida com as de
outras doenças e assim tinha a sua identificação inibida, não sendo possível determiná-la
apenas com o que fora relatado na maioria dos assentos. (REIS, 2008, p. 3).
Se retirarmos as doenças por causas desconhecidas da análise, os dados obtidos na
pesquisa apontam para uma maior incidência do grupo das doenças do sistema respiratório
como: pleuris; garrotilho; bronquite e doença de fluxo. Muitos fatores poderiam corroborar
para a existência das doenças do sistema respiratório como a insalubridade das casas e ruas, os
hábitos de higiene pessoal que quase não existiam na sociedade oitocentista, e as intempéries

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climáticas, pois verificamos que os falecimentos registrados ocorreram na passagem dos meses
mais quentes para os mais amenos.
Nos assentos de óbito, as doenças do sistema nervoso e neuropsiquiátrico foram as que
tiveram a segunda maior incidência entre os cativos e libertos. Com destaque para os espasmos
e estupor. As doenças infecto-parasitárias tiveram a terceira maior ocorrência entre os sujeitos
pesquisados. Identificamos bexiga, tísica e câimbra de sangue. Relacionamos quatro óbitos de
escravizados entre os meses de janeiro e fevereiro de 1876, causados por bexiga ou varíola,
doença muito comum no século XIX e que, segundo Langgaard, tinha uma “afecção febril,
aguda e contagiosa, que desenvolve pústulas na superfície do corpo”. (LANGGAARD, 1873,
p. 280).
Nos assentos paroquiais, oito sujeitos tiveram causa do óbito ligada às doenças do
sistema digestivo, entre elas, dor de estômago, indigestão, vermes e hidropisia. Observamos
que, tanto as doenças do sistema respiratório quanto as do sistema digestivo poderiam ocorrer
pela pouca higiene, falta de salubridade e saneamento. A capital da província do Piauí não
possuía sistema de abastecimento de água, de iluminação pública, calçamento das ruas ou
esgoto. As primeiras obras de infraestrutura para o abastecimento de água só ocorreram no
início do século XX.
Outros fatores poderiam estar ligados à proliferação e existência das moléstias que
atingiam o sistema digestivo, como a ausência na limpeza e manuseio dos alimentos, e a
proximidade com os locais que serviam de depósito de lixo. (VIANA, 2016, p. 134) A falta de
vestimenta adequada também poderia servir de acesso para a propagação de doenças.
Por fim, foi assinalado nos registros o falecimento do párvulo Nicolau, de quatro anos
de idade, filho natural da cativa Lourinda, que morreu de retenção de urina (doença
geniturinária), e o óbito de Mônica, que faleceu de sofrimento do coração (doença do sistema
circulatório).
Foi possível identificar que, na relação entre as causas da morte e a faixa etária, a maior
incidência de mortes foi em adultos. Desses registros, a maioria é de óbito por doenças de
causas desconhecidas como febres, tumor, “fulminada” e inflamação. Na sequência, aparecem
as doenças infecto-parasitárias, seguidas pelas doenças do sistema digestivo, doenças
respiratórias, doenças do sistema nervoso e doenças do sistema circulatório.

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A segunda faixa etária de maior incidência foi de párvulo/inocente/criança, com o


registro de 28 óbitos, em sua maioria de doenças sem causa definida (febres) e doenças do
sistema nervoso e neuropsiquiátrico (espasmos). Esses dados apontam um alto índice de
mortalidade infantil devido aos riscos de exposição às doenças que começavam na hora do
parto. Na faixa etária dos idosos, a maior incidência de óbitos foi de doenças do sistema
digestivo. Não identificamos nenhum registro na faixa etária dos infantes.
A diferença de mortalidade entre os sexos não foi discrepante, foram registrados 35
óbitos do sexo feminino e 34 do sexo masculino. No grupo de causa mortis, a que mais afetou
o grupo do sexo feminino, desconsiderando as causas de morte não definidas, foram as doenças
do sistema digestivo, com destaque para dor de estômago, indigestão e hidropisia. No caso do
sexo masculino, a pleuris, doença do sistema respiratório, foi a de maior incidência.
Além dos dados relativos às causas da morte e às doenças, divisamos um leque de
possibilidades quanto ao uso dessa fonte. Quanto à filiação, percebemos o predomínio de mães
escravizadas e que a condição jurídica indicada foi de “filho (a) ilegítimo (a)”. Assim,
constamos que as mães eram solteiras e que ilegitimidade poderia ser em consequência de uma
relação consensual, não legalizada formalmente pelo matrimônio, proveniente de violência, ou
originária de adultério, ou seja, quando o pai ou a mãe eram casados, e o(a) filho(a) era fruto
de relação extraconjugal.
Nos registros pesquisados, identificamos a predominância de mortalhas brancas em
crianças, adultos e idosos. Essa cor de mortalha tradicional poderia significar pureza, paz,
alegria da vida eterna, e era a cor fúnebre de grupos africanos. Encontramos também mortalhas
pretas que, segundo a concepção da Igreja Católica, era a cor da “penitência”, e mortalhas
azuis, de Nossa Senhora e do Menino Deus. (REIS, 1991, p. 120) A roupa mortuária era um
objeto simbólico de múltiplos sentidos. Poderia exprimir a importância do ritual de passagem,
a integração do morto ao outro mundo, a proteção na viagem rumo ao paraíso, ou um disfarce
do pecador.

Considerações Finais

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Após examinarmos os assentos de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora das Dores da


cidade de Teresina-PI, entre os anos de 1869 e 1887, com base na análise dos dados
quantitativos e qualitativos nos diferentes documentos contrapostos, observamos que as causas
das mortes e as doenças nos escravizados e libertos são de difícil constatação. Os assentos
trazem em sua maioria a denominação “doença não definida”, ou seja, doenças que abrangiam
termos muito amplos que não revelavam o verdadeiro motivo do falecimento.
As causas de morte mais presentes nos registros atestavam que doenças do sistema
respiratório, sistema nervoso, neuropsiquiátrico e infecto-parasitárias são as que mais afligiam
a vida dos escravizados e libertos. Essas moléstias, principalmente as infecto-parasitárias,
durante o início do século XX, continuaram a ser as de maior expressividade e incidência entre
a população na capital piauiense.
Vale destacar que as doenças têm relação intrínseca com a alimentação, vestimentas,
condições sanitárias, higiene, salubridade e desgaste físico. Todos esses fatores influenciavam
as condições dos escravizados e libertos, mesmo que não sejam registradas de forma direta nas
fontes analisadas. Os registros de óbito, além de oferecerem subsídios para o estudo da saúde
e da doença, fornecem outras possibilidades de pesquisa como a filiação, os rituais fúnebres, a
procedência e cor do cativo ou liberto.
Dessa forma, os registros paroquiais são instrumentos para mensurar a condição de
saúde e as enfermidades mais frequentes entre a população. Esses assentos ampliam as
possibilidades de pesquisa para a percepção de como estava estruturada demográfica e
socialmente a população escravizada e liberta, evidenciando a vida cotidiana desses sujeitos
históricos que ao longo do tempo foram anônimos e silenciados por uma produção
historiográfica tradicional.

Referências

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historiográficas. In: Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil. Rio de Janeiro: Outras
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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
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ENTRE ASSÉDIOS E PERSEGUIÇÕES: AS RESCISÕES DE


CONTRATO DAS/OS TRABALHADORAS/ES NA 1ª JCJ DE PORTO
ALEGRE (1941-1945)

TATIANE BARTMANN
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Doutoranda
tati_bartmann@hotmail.com

Resumo
A presente pesquisa pretende analisar os processos trabalhistas da 1ª Junta de Conciliação e
Julgamento de Porto Alegre (RS), desde a sua instalação (1941) até o final do Estado Novo
(1945), destacando um tipo de reclamação em especial: as rescisões contratuais. Através dessas
ações iniciadas pelas/os trabalhadoras/es cuja reivindicação se centra na rescisão sem justa
causa, é possível perceber reclamações e denúncias das mulheres quanto aos assédios e
perseguições sofridas no interior dos estabelecimentos industriais. Analisando mais
detalhadamente o processo iniciado por uma trabalhadora no ano de 1942, busca-se
compreender de forma mais específica como esses possíveis abusos aconteciam, como eles
eram relatados na Justiça do Trabalho, tanto pela reclamante quanto pelas testemunhas, qual a
importância dada a essas delações e como esses processos eram julgados na 1ª Junta de
Conciliação e Julgamento da capital. Com isso, se pretende problematizar os embates, conflitos
e disputas em torno das rescisões contratuais, bem como, as violências e explorações as quais
principalmente as mulheres trabalhadoras estavam expostas.

Palavras- chave: Trabalhadoras; Rescisões; Assédio.

Introdução
A presente pesquisa pretende analisar os processos trabalhistas na 1ª Junta de
Conciliação e Julgamento (1ªJCJ) de Porto Alegre (RS), desde a sua instalação (1941) até o
final do Estado Novo (1945), destacando um tipo de reclamação em especial: as rescisões
contratuais. Através dessas ações iniciadas pelas/os trabalhadoras/es cuja reivindicação se
centra na rescisão sem justa causa é possível perceber reclamações e denúncias das mulheres

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quanto aos assédios e perseguições sofridas no interior dos estabelecimentos industriais. Com
isso, se quer compreender a utilização da Justiça do Trabalho (JT) por parte das/os operárias/os
através de uma perspectiva relacional a qual considera que “as mulheres e os homens eram
definidos em termos recíprocos” (SCOTT, 1995, p. 72). Assim, para se ter a compreensão das
reivindicações e lutas das mulheres é interessante tratar também das reclamações dos homens
e abordar a experiência fabril das trabalhadoras envolvendo o controle e a chefia, de modo
geral, feita por homens.
A partir do levantamento da quantidade de processos trabalhistas iniciados por
mulheres contra um conjunto de empresas, na maioria, dos setores têxteis e alimentícios da
capital, se observou a relevância de suas reclamações considerando que dos 57 processos
reclamando rescisão sem justa causa, 21 foram iniciados por elas, ou seja, 36,8% das ações
sobre rescisões contratuais encontradas no período em questão. Esses números são bastante
expressivos, mas a análise dos motivos que levaram as mulheres a reivindicar as rescisões
contribui ainda mais para a compreensão das demandas e reivindicações muitas vezes
exclusivas das trabalhadoras, como é o caso do assédio.
Buscando compreender de forma mais específica como esses possíveis abusos
aconteciam no interior das empresas, o processo iniciado por Jovina Estelita Nunes de Oliveira,
no ano de 1942, merece destaque. A reclamante era empacotadora, solteira e trabalhava na
fábrica de caramelos Ernesto Neugebauer e Cia. Conforme sua reclamação, ela “vinha sendo
assediada pelo mestre geral; que não lhe tendo correspondido, passou a ser perseguida”. Jovina
declarou em audiência que as perseguições do mestre ocorriam há mais de um ano e se
estendiam por todos os locais da empresa, até mesmo na própria privada. Na sequência,
aprofundaremos a análise desse processo da trabalhadora Jovina, o qual contribuirá também
para a compreensão sobre os embates e as disputas das mulheres ocorridas na Justiça do
Trabalho (Memorial da Justiça do Trabalho, TRT4, 1ª JCJ, Porto Alegre, processo nº 2523,
1942).
Essas disputas aconteciam nas Juntas de Conciliação e Julgamento, primeira instância
da Justiça do Trabalho, instituídas durante o Estado Novo para dirimir os conflitos entre
empregados/as e patrões. A JT era organizada seguindo “orientações de gratuidade dos custos,
de dispensa de advogados, da oralidade e da maior informalidade no julgamento dos

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processos”, isso com a intenção de ser uma justiça de “fácil acesso” (GOMES, 2006, p. 62).
Além disso, a JT tinha como princípio a conciliação entre as partes, e nos casos das rescisões,
a maioria dos processos terminara com a conciliação. No entanto, na ação de Jovina o resultado
foi outro. Diante disso, caberia também questionar sobre as considerações e os valores morais
expostos por juízes ao julgar as ações que envolviam reclamações de assédio e perseguições
das mulheres no ambiente fabril.

“[...] vinha sendo assediada pelo mestre geral” – As Reclamações de Rescisões


Contratuais

Entre os processos cuja reclamação inicial são as rescisões de contrato, grande parte
das trabalhadoras e dos trabalhadores alegaram que foram despedidos sem causa justificada e
por isso pediam indenização por tempo de serviço, aviso prévio ou reintegração ao cargo que
possuíam. Enquanto os pedidos iniciais, baseados na legislação existente, eram praticamente
os mesmos entre os homens e as mulheres, quando se analisa os motivos geradores das
rescisões e os conflitos existentes, percebe-se algumas distinções entre eles e elas. Essas
rescisões tinham diversas motivações. Comparando as causas das rescisões e os tipos de
reclamações dos trabalhadores homens e das trabalhadoras mulheres, é possível constatar que
algumas situações se repetem e independem do gênero, no entanto, outras são exclusivas das
mulheres. A seguir serão apresentadas algumas dessas motivações entre os operários e as
operárias, para se ter uma ideia geral das circunstâncias que resultaram na rescisão do contrato.
Entre os trabalhadores homens, essas rescisões envolviam conflitos em torno da
ingestão de bebidas alcoólicas e embriaguez em serviço; faltas ao trabalho, as quais eram
justificadas por motivos de doenças do reclamante ou de familiar; alegações por parte do
empregador de abandono de serviço; atrasos; conflitos com o superior hierárquico; alguns
reclamantes alegaram ainda que foram suspensos por tempo indeterminado e portanto se
consideravam demitidos. Entre as reclamações dos trabalhadores também há o que parece ser
uma estratégia da empresa para burlar o direito à estabilidade do trabalhador com mais de 10
anos de serviço, cito: “como se depreende do exame do tempo de serviço do reclamante,
faltavam-lhe apenas dois meses e quinze dias para atingir sua estabilidade funcional quando

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capciosa e dolosamente foi demitido sem justa causa pela empregadora” (Memorial da Justiça
do Trabalho, TRT4, 1ª JCJ, Porto Alegre, processo nº 2529, 1942).
Já entre as mulheres, as rescisões eram motivadas pelas faltas ao trabalho e
afastamentos por motivo de doença da reclamante, suspensão por tempo indeterminado; falta
de serviço e/ou falta de matéria-prima na firma reclamada; acusações de furto e improbidade
praticada pela empregada. Outra motivação para a rescisão de contrato, segundo a reclamante,
era o fato dela ter reclamado anteriormente na JT o pagamento do salário-mínimo, em ação que
foi arquivada. Também apareceu a seguinte reclamação entre as rescisões: “que a firma
empregadora, dolosamente fê-la assinar um documento no qual dizia retirar-se por espontânea
vontade” o que pode ser uma prática estratégica da firma reclamada para evitar o pagamento
de indenização e aviso prévio (Memorial da Justiça do Trabalho, TRT4, 1ª JCJ, Porto Alegre,
processo nº 1101, 1942). Importante destacar ainda a reclamação de uma trabalhadora que
enfatizou que o motivo do seu afastamento do trabalho se dava por conta “de doença de sua
filhinha”, e ela, boa mãe e muito zelosa, não teve outra opção senão se afastar do trabalho. Essa
mesma trabalhadora afirmou ter recebido a licença, mas ao retornar “a reclamada alegou que
no momento não tinha serviço”, por isso se considerava demitida (Memorial da Justiça do
Trabalho, TRT4, 1ª JCJ, Porto Alegre, processo nº 663, 1941). Além de todas essas questões
envolvendo as rescisões, existe a denúncia de assédio que terá maior destaque ao longo do
texto.
Nas reclamações ou no decorrer do processo, se observa como ocorriam as rescisões de
contrato de trabalho, os motivos das rescisões por parte dos empregadores, as justificativas
dadas pelos empregados e suas denúncias de burla da legislação trabalhista. Como se pode
perceber, havia muitos conflitos, embates e disputas em torno das rescisões e as motivações
eram diversas para esses rompimentos contratuais. Algumas características dessas ações são
comuns entre homens e mulheres, no entanto, a reclamação de assédio e perseguição chamou
muita atenção por ser exclusiva de mulheres e por isso será mais explorada ao longo deste
artigo.
O processo dentro do conjunto de rescisões que merece destaque é do ano de 1942,
portanto, uma ação tramitada em fase ainda bastante inicial da JT que foi instalada no ano
anterior. Isso significa dizer que esse órgão nascido no Estado Novo (1937-1945) buscava

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ainda se estabelecer e legitimar sua atuação na mediação dos conflitos envolvendo


empregados/as e patrões. Nesse contexto, Jovina Estelita Nunes de Oliveira, conforme já
mencionado, era empacotadora, solteira e trabalhava na fábrica de caramelos Ernesto
Neugebauer e Cia. Conforme sua reclamação, ela

[...] vinha sendo assediada pelo mestre geral; que não lhe tendo
correspondido, passou a ser perseguida; que interpelada por uma outra
operária "como amante" do mestre, pelo que reagiu dando um tapa na
senhora; que por esse motivo foi demitida; que se considera demitida
injustamente, pois que apenas reagiu contra uma grande mentira, o que lhe
cabia fazer. Pede pois a indenização correspondente a três anos de trabalho e
o aviso prévio (Memorial da Justiça do Trabalho, TRT4, 1ª JCJ, Porto Alegre,
processo nº 2523, 1942).

Essa é a primeira ação encontrada cuja reclamação faz referência direta ao que
atualmente se denomina de “assédio sexual”. Carme Alemany (2009) explica que “foram as
feministas americanas da Universidade de Cornell que, nos anos 70, designaram pela primeira
vez sob o nome de ‘assédio sexual’ esse gênero de condutas masculinas” (ALEMANY, 2009,
p. 26). No processo trabalhista de Jovina, observa-se a utilização do termo “assediada” pela
reclamante, fato confirmado pelas quatro testemunhas que deram seus depoimentos no tribunal.
Tanto as testemunhas da reclamante quanto da reclamada, afirmaram que o mestre
vinha “assediando” a trabalhadora Jovina. Entre seus depoimentos, pode-se observar outros
termos como a expressão “requisitando” quando afirmavam que o mestre andava requisitando
a reclamante. Ainda nos depoimentos das testemunhas se verifica a qualificação das atitudes
do mestre como “desrespeitosas” ao declararem: “o mestre referido sempre se mostrou
desrespeitoso para com as empregadas”. Assim, o termo “assédio sexual” não foi registrado
nas atas de audiências na JCJ, mas diferentes denominações eram dadas pelas trabalhadoras às
desaprovadas atitudes do mestre. Nesse sentindo, parece que não apenas a reclamante, mas
também as testemunhas reclamavam o assédio sexual através de expressões próprias e
reconhecidas por elas, como: assediar, requisitar e desrespeitar.
Existem atualmente, distintas definições para o assédio sexual, mas de modo geral,
segundo Alemany (2009)

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Essa denominação designa todas as condutas de natureza sexual, quer sejam


de expressão física, verbal ou não verbal, propostas ou impostas a pessoas
contra a sua vontade, principalmente em seu local de trabalho, e que
acarretam um ataque à sua dignidade (ALEMANY, 2009, p. 26)

Embora saibamos que as mulheres não são as únicas vítimas do assédio sexual, “a maior
parte desses comportamentos é dirigida contra as mulheres e constitui uma expressão do poder
dos homens sobre elas” (ALEMANY, 2009, P. 26). Essas expressões de poder poderiam
acontecer de diversas formas e não apenas no ambiente fabril, mas a hierarquia nas indústrias
propiciava uma série de abusos, chantagens e perseguições, em especial, às mulheres.
Conforme o depoimento da reclamante, as perseguições do mestre ocorriam há mais de um ano
e se estendiam por todos os locais da empresa, até mesmo na própria privada:

[...] que há mais de um ano o mestre vem perseguindo a depoente; que até na
própria privada do estabelecimento se estendeu essa perseguição; que em
determinada ocasião o mestre pediu que permanecesse na fábrica, escondida
durante o período de interrupção para o almoço dos empregados; que recusou-
se a depoente a atender ao pedido do mestre, alegando que somente o faria
caso ficasse também uma colega e o patrão; que nessa ocasião o mestre lhe
pediu um beijo, tendo a reclamante lhe atirado uma lata contra o referido
mestre e nessa ocasião foi segurada pelo braço; que desde essa ocasião o
mestre a vem perseguindo (Memorial da Justiça do Trabalho, TRT4, 1ª JCJ,
Porto Alegre, processo nº 2523, 1942).

Muitas foram as reclamações sobre perseguições dos mestres e das mestras, mas
“assédio”, foi a única reclamação encontrada no conjunto dos processos analisados. No entanto,
essa temática rara em ações trabalhistas, era abordada nos jornais operários, conforme
demonstra Gláucia Fraccaro (2016). A autora observa que na pauta das reivindicações das
trabalhadoras estava o “respeito” e segundo a autora:

Reivindicar respeito, que bem poderia ser uma referência a abusos sexuais
cometidos por feitores e capatazes, tinha mais valor e estava mais ligado à
experiência de classe das mulheres do que, até mesmo, os ideais de igualdade
e emancipação, ao menos entre anarquistas (FRACCARO, 2016, p. 45).

Conforme Fraccaro, era frequente a reivindicação por respeito entre as trabalhadoras.


Analisando as reclamações das mulheres através dos processos trabalhistas, dificilmente se
separaria a reclamação de assédio sexual das reivindicações por igualdade e emancipação, pois

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se compreende que o assédio sexual no trabalho é uma violação da dignidade humana, ou seja,
lutar contra o assédio é o marco no qual se desenvolvem os demais direitos fundamentais, as
ideias de emancipação e igualdade estariam, então, contidas na luta contra o assédio sexual.
Pensando assim, seria impossível dissociar as reclamações de assédio sexual das reivindicações
por direitos fundamentais como o direito a intimidade, a integridade física, psíquica, a
igualdade e liberdade. (RUANO, 2019, p. 26).
Segundo Ruano, “cuando se habla de violencia de género no siempre se relacionan con
la discriminación por razón de sexo como medio generador-sustentador”. (RUANO, 2019, p.
26). Buscando interpretar as situações de abusos sexuais sofridas pelas mulheres, a partir da
análise do caso reclamado por Jovina, se compreende que a origem do assédio está na histórica
discriminação dessas mulheres e quando elas possuem a coragem e o ímpeto de reclamar
através de uma ação ajuizada na Justiça do Trabalho, elas reivindicam ao mesmo tempo por:
respeito, dignidade, igualdade, liberdade e emancipação.
Conforme consta na ata de reclamação, o estado civil de Jovina era “solteira” assim
como outras trabalhadoras que também reclamaram “perseguições” dos mestres de seção, sem
mencionar a expressão “assédio”. Possivelmente, o fato de não ter uma “proteção masculina”
deixava essas mulheres solteiras ainda mais vulneráveis nos ambientes de trabalho. Sobre os
grupos mais propensos aos abusos sexuais, Ruano explica que o assédio sexual “se ejerce
contra personas que en el imaginario social no tienen poder, básicamente las mujeres en
general, así como se agrava en los casos que las mujeres están “solas”, entendiendo por mujeres
“solas” a aquellas que no tienen un hombre protector al lado”. (RUANO, 2019, p. 28).
Assim, mulheres como Jovina que eram solteiras e trabalhavam fora de casa, nos setores
industriais, corriam maiores riscos de sofrer esse tipo de abuso se comparadas às mulheres
casadas. Até mesmo porque depois de casadas era possível ocorrer o afastamento das atividades
fabris, é o que presume Jéssica Bitencourt Lopes (2019) analisando o estado civil das
trabalhadoras da empresa A. J. Renner através dos dados coletados para a elaboração das
carteiras de trabalho entre 1933 e 1943. Segundo a autora, “tendo em vista a preferência por
mulheres no setor têxtil, percebemos que na Renner além delas serem maioria, em relação ao
estado civil elas são predominantemente solteiras” (LOPES, 2019, p. 387).
Ainda que a trabalhadora Jovina seja empacotadora na fábrica de doces Ernesto

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Neugebauer e Cia, o dado apontando a predominância de mulheres solteiras nos setores da


indústria têxtil A. J. Renner é interessante para pensar que o casamento poderia significar para
o imaginário popular o afastamento e a “proteção” da mulher pelo homem provedor. Por sua
vez, as mulheres deixavam seus empregos e passavam a se dedicar aos trabalhos domésticos
que envolviam a casa, o marido e os filhos, voltando assim, para o seu lugar “natural”. Segundo
Rago (1987) a fábrica era um lugar ameaçador para a mulher frágil, delicada e indefesa. Esse
ambiente era associado a prostituição, a promiscuidade, ao abuso sexual e a dominação
exercida pelo superior hierárquico, por isso o espaço fabril poderia ser comparado ao cabaré,
cito:
A fábrica, ‘furna sem ar e sem luz’ (...) emerge como lugar da prostituição,
como o espaço onde a mulher, frágil e indefesa corre o risco de corromper-se
física e espiritualmente: o lugar do trabalho é a antítese do lar. Além disso,
critica-se a ameaça sexual representada pela relação de dominação exercida
pelo superior hierárquico (RAGO, 1987, p. 67).

Conforme a autora, “[...] o retrato da mulher pública é construído em oposição ao da


mulher honesta, casada e boa mãe, laboriosa, fiel e dessexualizada” (p. 90). No entanto, as
mulheres pobres que por necessidade ofereciam sua mão-de-obra nas fábricas, encontrariam
na JT um lugar para reclamar. Dessa forma, a JCJ mediando o conflito trabalhista parece
exercer o papel de protetora à parte mais fraca e frágil da relação que seria a mulher
trabalhadora. No entanto, Jovina não se coloca como fraca, frágil, muito menos delicada ao
afirmar que atirou uma lata no mestre e desferiu um tapa na mestra quando a mesma a chamou
de “amante do mestre”.
Diante disso, a empresa Ernesto Neugebauer e Cia. alegava ser improcedente a
reclamação, negando a declaração da empregada. Ao final do processo, sem ter as partes
entrado em acordo, a JT julgava improcedente a reclamação, pois considerava que ficou
provada a agressão cometida por Jovina contra a mestra, cito:

[...] considerando que ficou provado, não só pelo depoimento das


testemunhas, como também pelas declarações da própria reclamante, que esta
agrediu a mestre de oficina, sua superiora hierárquica, desferindo-lhe uma
bofetada, considerando que a reclamante não provou ter havido motivo
justificado para a agressão referida; considerando, assim, que a reclamante
praticou uma das faltas graves previstas no art. 5º letra h) da lei no 62;
considerando, pois, que houve motivo justo para a sua demissão (Memorial

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da Justiça do Trabalho, TRT4, 1ª JCJ, Porto Alegre, processo nº 2523, 1942).

Neste caso, como se verifica, os juízes vogais e o presidente procuravam responder se


teria a reclamante agredido ou não a superiora hierárquica, sem questionarem as arbitrariedades
e os abusos sexuais e de poder dentro da empresa. O que estava de fato em julgamento era a
moral da trabalhadora, suas atitudes e reputação. Pesquisando nos jornais operários, Rago
(1987) apontava que “ao retratarem as condições de trabalho da mulher [os jornais operários]
atém-se, portanto, ao aspecto moral da relação de dominação exercida no interior da fábrica”
(RAGO, 1987, p. 68). Da mesma forma, a disputa nos tribunais do trabalho, girava em torno
do aspecto moral e da avaliação da conduta da trabalhadora.
Por fim, a ação de Jovina resulta na improcedência da reclamação, ou seja, sua rescisão
aconteceu por justa causa e a trabalhadora perdia o direito ao aviso prévio e à indenização
solicitada na inicial. Sobre as atitudes do mestre acusado de assédio, nada mais é apurado, ele
não depõe em audiência, nenhum julgamento é exposto sobre suas práticas e provavelmente
nada acontece com ele.
Contudo, esses foram alguns apontamentos e observações sobre as reivindicações dos
homens e das mulheres na 1ª JCJ de Porto Alegre, no período em questão. Como se pode
perceber, algumas pautas são reivindicações exclusivas das mulheres, entre elas as reclamações
contra o assédio no ambiente fabril. Nesses casos, o que está em disputa nos tribunais é a moral
e a disciplina das trabalhadoras, uma vez que Jovina não demonstrou uma atitude frágil de
mulher delicada e dócil, seu julgamento resultou improcedente. Nesse sentido, a JT contribuía
mais uma vez para a manutenção do comportamento ideal desejável das mulheres e
disciplinava assim o trabalho feminino. No entanto, sobre essas questões, muitos pontos ainda
podem ser explorados, visto que esse artigo resulta de uma pesquisa que está em andamento.
Futuramente, pretende-se trazer novos questionamentos especialmente sobre o trabalho
feminino.

Referências

ALEMANY, Carme. Violências. In: HIDRATA, Helena. LABORIE, Françoise. LE DOARÉ,


Hélène. SENOTIER, Danièle (Org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora
UNESP, 2009.

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Texto integrando dos Anais 2020, do V Encontro Estadual de História – ANPUH
Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

FRACCARO, Glaucia. Os Direitos das Mulheres: organização social e legislação trabalhista


no entreguerras brasileiro (1917-1937). Tese (Doutorado em História). UNICAMP, Campinas,
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GOMES, Ângela Maria de Castro. Retrato falado: a Justiça do Trabalho na visão de seus
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Fontes
⚫ Memorial da Justiça do Trabalho/Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região.
Processos trabalhistas movidos na 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Porto
Alegre (1941-1945).

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

DA VILA DE GUIMARÃES A SÃO PAULO: ACLAMAR É


LEGITIMAR

THIAGO DA SILVA PINTO


Universidade Federal Fluminense, Mestrando, bolsista capes).
thiagopinto17@hotmail.com

Resumo
Na sociedade lusitana do Antigo Regime, os súditos deveriam demonstrar publicamente
a sua fidelidade ao soberano. No início de cada reinado, a aclamação era realizada em todo o
reino e nos territórios do ultramar. Aclamar o rei significava a adesão de uma determinada
localidade, momento em que as vilas e cidades juravam fidelidade ao novo monarca. Ciente
das especificidades locais, a presente comunicação terá como finalidade uma análise que irá
além da dicotomia entre metrópole e colônia, visando demonstrar a conexão existente entre
Portugal e a América portuguesa, tendo como fundamento esse aspecto da cultura política
lusitana, a aclamação do rei. Para tanto, utilizaremos a comparação entre a aclamação do duque
de Bragança (D. João IV), ocorrida em Vila de Guimarães (Portugal), e a aclamação de Amador
Bueno, em São Paulo (América portuguesa). Não importava aonde fosse, a construção da
legitimidade do movimento de 1640 passava, indispensavelmente, pela realização da
aclamação.

Palavras-chave: Aclamação; Vila de Guimarães; São Paulo

Introdução

No vocabulário de Raphael Bluteau, aclamação aparece como “Nomeação pública de


príncipe, rei, imperador, com aprovação e aplauso do povo” (BLUTEAU, 1720, p. 71). Na
sociedade lusitana do Antigo Regime, os súditos deveriam demonstrar, publicamente, a sua
fidelidade ao soberano. No início de cada reinado, a aclamação era realizada em todo o reino e
nos territórios do ultramar. Aclamar o rei significava a adesão de uma determinada localidade,
momento em que as vilas e cidades juravam fidelidade ao novo monarca. Tratava-se de uma

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lei fundamental que regulava a sucessão régia (ARAÚJO, 2001, p. 177), uma característica
marcante da cultura política portuguesa:

[...] Que os Reis, ainda que tinhão o direito da sucessão, não tomavão o
governo por si, porque sempre era necessário que o Reino, ou quem o
representava, se sogeitasse em acto publico à sua obediência com os antigos
estylos, e usadas cerimonias de cada h𝑢 ~a particular nação: e que em quanto
aquelle acto se não fasia, não estava conferido o poder ao sucessor do Reino
[...]. (CATASTROPHE, 1669, p. 74-75)

Apesar de ter o seu direito ao trono garantido por hereditariedade, o príncipe herdeiro
não possuía a prerrogativa de entronizar-se. Além do mais, cabia ao reino a realização do
cerimonial que, obrigatoriamente, deveria se dar de forma voluntária, e em momentos de
instabilidade política, como na restauração de 1640, tal ato adquire maior relevância, dado que
aclamar D. João IV se configurava como uma tomada de partido, tornando-se inimigo do
rejeitado, a saber, Filipe IV da Espanha (III de Portugal).
Nosso objetivo é analisar a aclamação de D. João IV em Portugal (vila de Guimarães)
e na América portuguesa (São Paulo), interligando os 2 lados do atlântico, demonstrando a
conexão entre Portugal e a América, através desse aspecto da cultura política lusitana da época.
Buscaremos a compreensão do impacto da notícia da restauração nessas localidades,
destacando as atitudes tomadas diante dessa nova conjuntura política. Logo, o que pretendemos
fazer é demonstrar a importância da aclamação no processo de consolidação da dinastia
brigantina no poder.

Para além da dicotomia entre metrópole e colônia


Atualmente, conceber a ligação entre Portugal e a América portuguesa como uma
relação caracterizada pela subalternidade da segunda para com a primeira é demasiadamente
anacrônica. É o que pensa o historiador Carlos Ziller Camenietzki ao afirmar que, durante os
2 séculos e meio após a chegada dos portugueses em solo americano, aqueles que residiam em
terras brasileiras de forma alguma se viam inferiores aos seus patrícios do outro lado do
atlântico. Na verdade, se consideravam tão portugueses quanto os habitantes de Lisboa, Braga
e Évora (CAMENIETZKI, 2014, p. 147). Opinião esta igualmente compartilhada pelos seus
conterrâneos do Velho Continente:

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[...] a índia e outros territórios ultramarinos cujo governo é preocupação deste


conselho, não são diferentes nem separados deste reino, tal qual o reino do
Algarve e qualquer das províncias do Alentejo, Minho e Douro etc. [...] e
portanto qualquer um que nasça em Goa, Brasil ou Angola, é tão português
quanto os que nascem e crescem em Lisboa. (apud CAMENIETZKI, 2014,
p. 147)

A citação acima, datada do século XVII, corrobora com a assertiva de Camenietzki,


todavia, é importante frisar que ele se refere aos portugueses e seus filhos nascidos na América,
não estendendo sua tese para a população indígena nativa e a cativa, oriunda do continente
africano. Ou seja, esses 2 grupos se enquadravam na categoria de dominados, já a população
de origem portuguesa não. Além do mais, os descendentes desse último grupo não enxergavam
o local em que viviam como um território sob o domínio de uma metrópole, mas como uma

das províncias do reino (CAMENIETZKI, 2008, p. 77).


A veracidade dessa afirmação torna-se inteligível se nos voltarmos para o caso de Diogo
Gomes Carneiro, natural do Rio de Janeiro, que, em 1641 publicou Oração Apodixica aos
Scismaticos da Patria. Nesse texto, ele defende a restauração lusitana e ataca aqueles que desde
a época da união das coroas em 1580 traíram e continuam traindo Portugal ao se colocarem ao
lado de Castela, se mostrando contra a aclamação do Duque de Bragança em 1640
(CAMENIETZKI, 2014, p. 153). Sendo assim, é perceptível que em seu escrito, Carneiro age
como um português preocupado com os rumos político do reino, não há qualquer menção a
uma pretensa subordinação do seu local de nascimento a uma metrópole distante que direciona
os seus rumos cerceando qualquer possibilidade de autonomia e intervenção política dos seus
habitantes nos assuntos do reino (CAMENIETZKI, 2014, p. 153-155).
O texto de Diogo Carneiro é um retrato da conturbada conjuntura política lusitana após
o 1º de dezembro de 1640. Parte desses traidores a quem o autor se refere são os nobres
portugueses contrários ao estabelecimento de uma nova dinastia e que, em apoio à manutenção
da coroa em poder de Filipe IV, fugiram para Castela. Esse clima de incerteza acerca do sucesso
dos acontecimentos do dia supracitado tomou conta do reino quase que instantaneamente após
a aclamação de D. João IV. Os eventos ocorridos em Lisboa foram apenas o pontapé inicial no
processo de construção da legitimidade do novo rei.

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A aclamação de D. João IV na Vila de Guimarães

Feita a aclamação na capital, os governadores que detinham o poder até a chegada de


D. João IV em Lisboa, enviaram cartas às câmaras municipais de todo o reino, noticiando o
ocorrido e ordenando que seguissem o exemplo de Lisboa. Era preciso obter a adesão das
demais localidades, caso contrário, a revolta não frutificaria.
Alguns dias depois do sucedido, começou a circular em Vila de Guimarães rumores de
que o Porto havia aderido à restauração e que remetera uma carta a vila, convidando a Câmara
municipal de Guimarães a fazer o mesmo. Os Vimaranenses receberam com entusiasmo a
notícia e realizaram, no dia 10 de dezembro de 1640, uma sessão pública para discutir como
procederiam (CARVALHO, 1940, p. 163).

Antes do início da sessão, uma multidão se aglomerou na entrada da Câmara, ávida


para assistir à aclamação do duque como rei. Dando início a audiência, o juiz de fora leu a carta
que a vereação portuense havia enviado (CARVALHO, 1940, pp. 163-164). De fato, como se
especulava, o primeiro lugar a aclamar D. João IV na província de entre Douro e Minho foi a
cidade do Porto, onde a Câmara local, no dia 9 de dezembro, um dia depois de realizar o
levantamento do novo rei, remeteu correspondência para a Vila de Guimarães, com o seguinte
dizeres:
Com geral aplauzo deste povo omtem dia de nossa senhora da comseiçam se
llevantou nesta cidade por Rey destes Reinos ao duque de braguamça em que
todos os moradores dela assim ecliziasticos como seculares fizeram gramdes
excessos de allegria por nos vermos restetuidos à nossa lliberdade antiga [...]
pareceo fazermos a saber a vosas merces desta Rezulluçam que foy a
ymitação de llisboa de quem seguimos a mesma ordem que nos foy dada por
seus gouernadores e com o mesmo ezempllo de todo o allguarue allentejo
Samtarem he Coimbra e outras pera que vossas merces com o mesmo feruor
precurem o mesmo [...] esperamos que vossas merces façam o mesmo não
faltando no vallor com que essa sempre se ouue no serviço de nossos reis
portugueses [...]. (apud CARVALHO, 1940, p. 164).

Anexada a esta carta, os portuenses encaminharam uma cópia da missiva que tinham
recebido da parte dos governadores do reino, provavelmente para demonstrar que agiram

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seguindo a ordem da capital. Então, após a leitura da primeira correspondência, o juiz pegou a
transcrição e, também, a leu em voz alta:

Os arcebispos guovernadores destes Reinos aclamados pella nobreza em


auzemcia do duque &tc. Fazemos saber à câmara da cidade do porto cidadois
moradores della que antontem primeiro dia deste mês de dezembro a nobreza
e povo desta cidade de llisboa apellidarão por Rey destes Regnos ao duque de
braguamça dom João [...] e mandamos á Camara da dita cidade e moradores
dela com toda a quietasão apelidem por Rey ao duque comformandose com
que está feito e por este Correio avizem de como está executado [...]. (apud
CARVALHO, 1940, p. 164).

Mesmo após as leituras, alguns ficaram receosos e sugeriram esperar a chegada da


correspondência vinda de Lisboa endereçada diretamente à vila. Entretanto, a maior parte dos
que estavam presentes, se posicionou em defesa da ideia de proceder imediatamente com a
aclamação. Em dado momento, em meio à discussão, o Capitão-mor da vila, Manoel Machado
de Miranda, levantou-se, pegou o guião da Câmara, e em seguida dirigiu-se até a janela e
bradou “Real! Real! Viva D. João o IV, rei de Portugal!”, palavras que foram prontamente
repetidas pela nobreza e povo presentes no local (CARVALHO, 1940, p. 165).

Apesar da demonstração de aprovação à causa brigantina, a vila não passou ilesa a


manifestações de descontentamento com o ocorrido. No dia 13 de dezembro, 3 dias depois da
aclamação, homens armados, em sua maioria pertencentes aos segmentos mais baixos da
sociedade lusitana, ou seja, o chamado povo miúdo, se dirigiram a Câmara municipal,
maldizendo os traidores que não aclamaram o novo monarca. O principal alvo da turba era
Afonso Soares, corregedor da comarca. E em sessão camararia, do dia 15 de dezembro, o caso
do jurista foi posto em apreciação. (CARVALHO, 1940, p. 166):

Pelos misteres da meza antonio de faria he Joam mendes foi requerido que
afonso soares corregedor que desta comarqua levara muito dinheiro desta
comarqua que estava depositado pera os soldados e da caixa dos órfãs levara
muito dinheiro he que estando fazendo audiencia em um dos conselhos da
comarqua entraram dois clérigos y alguns leigos na audiencia dizendo viva
elrey dom Joam o quarto de portugal o dito corregedor se alevantara [...].
(apud CARVALHO, 1940, p. 166).

Além de lesar os cofres da vila, o corregedor havia se negado a dar vivas ao novo
monarca, não tomando parte na aclamação, e, dessa maneira, passou a ser qualificado como

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traidor. Vale destacar que dois dias antes, com o intuito de manter os postos de comando nas
mãos daqueles que eram leais ao duque de Bragança, a Câmara da vila cedeu à pressão dos
revoltosos e optou por substituir os alcaides, escolhendo Antonio Lopes e Andre Borges para
ocuparem os respectivos postos (CARVALHO, 1940, p. 167). Portanto, durante o processo de
cooptação de apoiadores para o estabelecimento da nova dinastia, os arquitetos do 1º dezembro
tiveram que lidar com a hesitação dos que não acreditavam no sucesso da revolta e a oposição
aberta daqueles que se posicionaram contra o rompimento com Castela.
Tomamos como exemplo o caso de Barcelos, onde Francisco de Gouveia Mendanha,
entrou em uma igreja no dia 7 de dezembro de 1640, na companhia de algumas pessoas e disse:
“Viva el Rey Dom João, Rey de Portugal”. Gaspar Pinto Correa, cônego da igreja, questionou
a sua atitude, Mendanha retrucou o clérigo, reafirmando que o duque de Bragança era, agora,
o rei de Portugal. Não satisfeito, saiu com os seus correligionários, nobres, eclesiásticos e povo
pelas ruas da vila repetindo o ato realizado na igreja. O juiz Luiz da Cunha ameaçou os
aclamadores de prisão caso persistissem com o ato. Em resposta ao jurista, se dirigiram à torre
dos sinos e, no intervalo entre 30 e 1 hora, aclamavam o novo rei. Mesmo enfrentando oposição,
foram bem sucedidos e Barcelos aderiu à restauração (SARAIVA, 2018, p. 50).
Com a da chegada da embarcação que trazia a notícia da entronização de D. João IV,
em 15 de fevereiro de 1641, seria a vez das autoridades da América portuguesa pesarem na
balança as implicações de uma tomada de partido. Os poderes locais precisavam decidir se
seria prudente ou não aclamar o duque, dado que ao aderir ao movimento, a localidade estaria
consequentemente declarando guerra contra Filipe IV, tornando-se assim, vassalos rebeldes na
concepção do rei de Castela.

A aclamação de Amador Bueno em São Paulo

Na Bahia, ao receber o comunicado da aclamação, o vice-rei, D. Jorge Mascarenhas, o


Marquês de Montalvão, solicitou aos prelados, a nobreza e aos cabos da milícia, um parecer

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sobre a questão. Em comum acordo, decidiram se posicionar a favor da restauração. A atitude


de terceirizar uma decisão que cabia somente a ele na condição de vice-rei, causou
desconfiança quanto à lealdade do Marquês à dinastia brigantina. Além disso, a permanência
de 2 dos seus filhos em Castela agravou ainda mais a situação, levando a sua deposição do
cargo (PITTA, 1730, p. 288-290).
Em 10 de março de 1641, chega ao Rio de Janeiro, uma carta vinda da Bahia,
informando ao então governador Salvador Correa de Sá e Benevides a notícia sobre o 1º de
dezembro. Imediatamente, o governador reuniu os notáveis da cidade no colégio da companhia
de Jesus. Semelhante ao que ocorreu na Bahia, resolveram por aderir à restauração, aclamando
D. João IV como legítimo rei dos lusitanos (RELACAM, 1641).
No dia 11 de março do mesmo ano, Salvador Correa de Sá e Benevides enviou
mensageiros às demais capitanias, para que seguissem os passos do Rio de Janeiro. Todavia,
em São Paulo, mesmo cientes do ocorrido, os homens do planalto não aclamaram o duque de
Bragança:

Chegando a S. Paulo a notícia de que Luís Dias Leme havia aclamado Rei na
Vila Capital de S. Vicente ao sereníssimo senhor Duque de Bragança com o
nome de D. João IV, por ordem e recomendação que para isso lhe dirigira em
carta particular D. Jorge Mascarenhas, Marquês de Montalvão e Vice-Rei do
Brasil foi esta inesperada novidade um golpe sensibilíssimo aos espanhóis
que se achavam estabelecidos e casados na dita Vila de S. Paulo [...] Êles
desejavam conservar as Povoações da Serra acima na obediência de Castela
e não se atrevendo a manifestar seu intento, por conhecerem que seriam
vítimas sacrificadas à cólera dos paulistas [...] resolveram entre si usar de
artifício [...] Tinham por certo que a Capitania de S. Vicente e quase todo o
sertão brasílico antes de muitos anos tornariam a unir-se às Índias de Espanha
[...]. (MADRE DE DEUS, 2010, p. 118-119)

Um fato interessante no fragmento acima, fornecido pelo Frei Gaspar da Madre de


Deus, é o impacto que a notícia causou nos espanhóis que residiam na América portuguesa. De
acordo com o clérigo, esses castelhanos teriam arquitetado um plano para evitar que os
paulistas aclamassem D. João IV. O estratagema consistia em convencê-los a não tomarem
partido na questão, direcionando os homens do planalto na adoção de uma via alternativa, para
que, futuramente, São Paulo retornasse a órbita castelhana:

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[...] figindo-se penetrados do amor ao país onde estavam naturalizados e do


zêlo do bem comum, propuseram [...] elegerem um rei paulista; e ao mesmo
tempo apontaram como o mais digno da Coroa a Amador Bueno de Ribeira,
em cuja pessoa, para não ser rejeitado pelos seus patrícios, concorriam as
circunstâncias de ser de qualificada nobreza e de muito respeito e autoridade
pelos empregos públicos que havia ocupado e ainda exercia [...]. (MADRE
DE DEUS, 2010, p. 119)

Os espanhóis acreditavam que o fato de ser filho de Bartolomeu Bueno de Ribeira,


natural de Sevilha, seria o suficiente para que Amador Bueno deixasse de lado as suas raízes
maternas lusitanas e se posicionasse a favor de Filipe IV. Faltava, agora, convencer os
moradores a concordarem com a eleição:

Valeram-se os espanhóis de todos os argumentos possíveis para persuadirem


os paulistas e europeus pouco instruídos, que, sem encargo de suas
consciências, nem faltarem à obrigação de honrados e fieis vassalos, podiam
não reconhecer por Soberano a um príncipe a quem ainda não haviam jurado
obediência. [...] Eram sinceros os moradores de S. Paulo, e, ainda fiéis, bem
poucos entre eles teriam a instrução necessária para conhecerem o Direito
incontestável da Sereníssima Casa de Bragança ao cetro, e para perceberem
os laços e as funestas desgraças em que aquelas maquinações os iam
precipitar. Além disso, a plebe em tôda a parte é fácil de mover-se e de arrojar-
se a excessos. Os espanhóis conseguiram seduzi-la e ajuntar um grande
número de pessoas de todas as classes que, aclamando unanimemente por seu
Rei a Amador Bueno de Ribeira, concorreram cheios de alvoroço e de
entusiasmo, à sua casa a congratular-se com ele. (MADRE DE DEUS, 2010,
p. 119-120)

O direito dos Paulistas escolherem o seu rei se assentava na argumentação de que, por
não terem jurado fidelidade ao Duque, estariam isentos de incorrer no crime de lesa-majestade.
Vale ressaltar que, na fonte acima, a participação dos moradores de São Paulo aparece como
fruto de sua ingenuidade, principalmente a da plebe, facilmente manipulável. Embora o relato
nos permita encontrar pessoas oriundas de vários segmentos sociais entre os aclamadores, a
participação do povo miúdo é apresentada como algo imprescindível para concretizar a eleição.
Entretanto, a reação do aclamado surpreenderia a todos:

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Pasmou Amador Bueno de Ribeira quando ouviu semelhante proposição: ele


detestou o insulto dos que a proferiram e com razões eficazes procurou dar-
lhes a conhecer sua culpa e cega indiscrição. Lembrou-lhes a obrigação que
tinham de se conformarem com os votos de todo o Reino e a ignomínia de
sua Pátria, se não reparasse a tempo com voluntária e pronta obediência o
desacerto de tão criminoso atentado. Mas a repugnância do eleito aumenta a
obstinação do povo ignorante: chegam a ameaçá-lo com a morte se não quiser
empunhar o cetro. Vendo-se nesta consternação o fiel vassalo, saiu de sua
casa furtivamente e, com a espada nua na mão para se defender, se necessário
fosse, caminhou apressado para o mosteiro de S. Bento, onde intentava
refugiar-se. Advertem os do concurso, que havia saído pela porta do quintal,
e todos correm após ele, gritando: viva Amador Bueno, nosso Rei: ao que ele
respondeu muitas vezes, em voz alta: viva o Senhor D. João IV, nosso Rei e
senhor, pelo qual darei a vida. (MADRE DE DEUS, 2010, p. 120)

A surpreendente reação de Amador Bueno gerou um fato inusitado: por um lado a turba
revoltosa o perseguia aclamando-o, por outro, o eleito retrucava, dando vivas ao duque de
Bragança. Pedro Taques nos oferece uma pequena discrepância acerca da maneira pela qual
Amador Bueno respondia aos sediciosos, ao invés de gritar “viva o Senhor D. João IV, nosso
Rei e senhor, pelo qual darei a vida”, ele teria vociferado: “Real, real por D. João IV, rei de
Portugal” (apud MONTEIRO, 1999, p.24).

Essa guerra de vozes aclamatórias encontrou sua resolução no mosteiro de São Bento,
onde, a portas fechadas, Amador Bueno recorreu aos clérigos mais notáveis para, assim, traçar
uma estratégia e demover a obstinação daqueles que queriam alçá-lo à condição de rei. Seus
esforços deram resultado e com os notáveis conseguiu convencer a multidão do equívoco que
cometeram (MADRE DE DEUS, 2010, p. 120-121).

Tema controverso na historiografia brasileira, essa aclamação tem sua validação


respaldada pela patente de capitão de reformados, concedida pelo governador da repartição sul,
Artur de Sá, ao neto de Amador Bueno, chamado Manuel Bueno da Fonseca (MADRE DE
DEUS, 2010, p. 121). Nesse documento, depositado no arquivo da Câmara da Vila de São
Vicente, é enaltecida a lealdade de Amador Bueno à coroa portuguesa:

E quando não bastarão estes serviços, era merecedor de grandes cargos, por
ser neto de Amador Bueno, que sendo chamado pelo Povo para o aclamarem
Rei, obrando como leal, e verdadeiro vassalo, com evidente perigo de sua vida

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clamou, dizendo que vivesse ElRey D. João IV seu Rey, e Senhor, e que pela
fidelidade, que devia de vassalo, digno de grande renumeração, hei por bem
nomear [...]. (MADRE DE DEUS, 2010, p. 121)

Esse documento, datado do ano de 1700, ou seja, 59 anos após o pretenso episódio, foi
utilizado, tanto pelo Frei Gaspar da Madre de Deus quanto por Pedro Tanques, como um
elemento que comprovava a veracidade do evento supracitado. Segundo Luiz Felipe de
Alencastro, o episódio da aclamação possui um caráter místico, uma vez que Gaspar da Madre
de Deus e Pedro Taques apresentam apenas um documento de autenticidade duvidosa, a patente
concedida ao neto de Amador Bueno, e se baseiam em uma tradição oral que, estranhamente,
foi registrada somente por eles, dado que não existe nenhum registro contemporâneo aos fatos
que teriam ocorrido em São Paulo em 1641 (ALENCASTRO, 2000, p. 397-398). Para Rodrigo
Bentes Monteiro, se a aclamação não aconteceu, ela poderia ter acontecido devido ao
conturbado clima político enfrentado pela vila nesse período:

Portanto, é na confluência de todos os fatores mencionados – a questão da


mão de obra, do conflito com os religiosos, entre famílias ou com autoridades
governantes, sua posição no império – que se busca o sentido da aclamação
de Amador Bueno em 1641; não com o intuito de mesurar a sua importância
para a história política do Brasil, mas sim de entendê-la como um elemento
simbólico capaz de expressar um contexto histórico. (MONTEIRO, 1999, p.
24).

Portanto, era plausível que, em meio a tudo isso, São Paulo optasse pela escolha do seu
governante. Ao tratar sobre o tema, Charles Boxer afirmou que “No Brasil tem se gasto uma
despropositada quantidade de tinta com o caso em questão, aliás relativamente insignificante”
(BOXER, 1973, p. 161).

A luz do que foi exposto, discordamos do historiador inglês. Apesar de o episódio não
ter se apresentado como um empecilho para a adesão da América portuguesa; à restauração
que teve lugar no reino; e se embasar em documentação extremamente duvidosa, a narrativa
traz à tona a crença de que o rei era considerado legítimo somente após ser aclamado.
Independentemente das especificidades locais inerentes entre as localidades estudadas e

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mesmo que a aclamação do rei de São Paulo não passe de uma tradição, os dois casos nos
permitem apreender que era consenso nos 2 lados do atlântico que o triunfo da restauração
portuguesa passava, indubitavelmente, pela aclamação pública do duque de Bragança. Não
importava aonde fosse, quer no reino ou no ultramar, aclamar era legitimar.

Referências

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Companhia das Letras, 2000.
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moderno. O caso da aclamação de D. João IV em Barcelos (1640-1642).: In.: CLIO: REVISTA
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AS TRABALHADORAS RURAIS DO VALE DO JEQUITINHONHA:


HISTÓRIAS CONTADAS POR ELAS

TÚLIO HENRIQUE PINHEIRO (1); ÉRICA PINTO DE MORAES(2)


(1) Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Mestrando
tulio.pinheiro@ufvjm.edu.br
(2) Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Mestranda
ericamoraesdireito@hotmail.com

Resumo

Pesquisas que tratam dos trabalhadores rurais vêm sendo realizadas com maior frequência nos
últimos tempos. Porém, ainda existem relativamente poucas pesquisas que tratem sobre a
mulher trabalhadora rural e suas trajetórias. Nesse sentido, neste trabalho buscamos tratar sobre
as trabalhadoras rurais, dando foco para a região do Vale do Jequitinhonha, área que se destaca
pelo elevado número de localidades rurais. A proposta deste trabalho é apresentar um breve
estudo sobre as trabalhadoras rurais e ressaltar que esse é um campo que pode ofertar
significativas contribuições para os estudos com foco nos trabalhadores rurais. Esse trabalho
faz uso da orientação metodológica da história oral, pois a fonte oral constituiu-se da base dessa
pesquisa. O objetivo central é apresentar um breve estudo sobre as histórias de vida das
mulheres das áreas rurais do Vale do Jequitinhonha.

Palavras-chave: Memórias; Mulheres; Rural.

Introdução

A história rural esteve por muito tempo, ligada às grandes propriedades fundiárias e
escravistas. Nos últimos anos, a história agrária tem aberto espaço para dialogar com os sujeitos
do campo que estiveram margeados da história oficial, nesse caso apontamos os trabalhadores
rurais. Na mesma direção encontram-se as mulheres que foram excluídas das páginas oficiais

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da história. Quando nos referimos às mulheres falamos de um modo geral, pois a história
feminina vem, somente há pouco tempo, ganhando espaço nas pesquisas científicas. Quanto às
mulheres rurais, suas histórias ainda são pouco contadas. Nesse sentido, a intenção desse
trabalho é fazer algumas considerações sobre a história das mulheres trabalhadoras rurais. É
desejado fazermos apontamentos que podem resultar em interesses de pesquisa em um campo
que ainda permanece pouco explorado.

A proposta em trabalhar com a história das mulheres trabalhadoras rurais do Vale do


Jequitinhonha surgiu justamente da inexistência de pesquisas nessa área que contemplem as
histórias de vida dessas trabalhadoras rurais. Apesar de estarmos vivenciando o começo de
algumas pesquisas nessa área, especialmente com a presença da UFVJM nessa região, ainda
temos um universo farto e rico na história dessas mulheres que precisa ser explorado.

A história oral foi eleita como uma significativa metodologia para o alcance dos
objetivos almejados no percurso deste trabalho. Por meio da história oral foi produzida a fonte
com a qual trabalhamos ao longo dessa pesquisa. [1] A escolha metodológica não foi por acaso,
a história oral nos é cara para o trabalho com sujeitos que se mantiveram, ao longo do percurso
histórico, margeados da história oficial. A história oral também é uma metodologia que nos
permite estudar as histórias de vida. Carvalho (2012) considera que por meio da história de
vida “passamos a enxergar a conjuntura pela “lente” de sujeitos que não aparecem nas fontes
oficiais, mas cujas ações e sentimentos integram os processos históricos que nos propomos a
compreender”. (CARVALHO, 2012, p. 30-31)

Foram realizadas entrevistas com diferentes mulheres trabalhadoras rurais de várias


comunidades no Vale do Jequitinhonha. Trabalhamos com a memória dessas mulheres, suas
trajetórias de vida e suas dinâmicas de trabalho. A memória é uma das ferramentas acessórias
da história oral. Nesse sentido, podemos tomar como base o que Carvalho (2012) pontuou, de
que o depoimento, resultado da entrevista, trata-se de um relato de memória. Quando estamos
falando de memória, nesse caso, a concebemos como um conhecimento do passado que é
guiado pelo presente.

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Podemos conceber a memória como um conhecimento que faz uso das lembranças
individuais ou coletivas. A memória é uma reconstrução do passado evocada através de
interesses do presente. Podemos considerá-la um compartilhamento de lembranças acerca do
passado, que tem suas bases no presente, ou seja, toda memória evoca as lembranças do passado
com base nos moldes do presente. É por meio dessa perspectiva que concebemos o conceito de
memória para fins de trabalho com a história oral.

Interessa-nos nas histórias de vida das trabalhadoras rurais, observar suas dinâmicas de
vida, trabalho e o lugar que ocupavam no meio rural do Vale do Jequitinhonha. Observamos
que as mulheres rurais desenvolviam diferentes trabalhos no campo, assumindo diferentes
posições nas configurações familiares. Na dinâmica de trabalho, muitas mulheres exerciam
atividades iguais aos seus maridos, muitas delas assumindo até a responsabilidade de suas
propriedades, mas, ainda assim, seu trabalho era colocado como um complemento ao do
marido, ou como se o trabalho feminino fosse apenas de ajuda ao marido.

O rural do Vale do Jequitinhonha

O Vale do Jequitinhonha fica localizado no nordeste de Minas Gerais e conta com mais
de cinquenta municípios. De acordo com Fávero e Monteiro (2014) mais da metade da
população, entre sedes e distritos, executam atividades agropecuárias, habitando ou realizando
atividades no meio rural. (FÁVERO; MONTEIRO, 2014). Existe no Vale do Jequitinhonha
uma grande quantidade de propriedades que executam a agricultura de caráter familiar. Desde
o período colonial, com as primeiras expedições em busca de riquezas, foram formando-se
núcleos de povoamento em diversas áreas que permaneceram. Há uma divisão territorial do
Vale do Jequitinhonha entre Alto, Baixo e Médio Jequitinhonha que pode ser visto na figura a
seguir.

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Figura I – Mapa do Vale do Jequitinhonha e suas microrregiões. Fonte: UFMG – Polo Jequitinhonha. Disponível
em https://www.ufmg.br/polojequitinhonha/o-vale/sobre-o-vale-do-jequitinhonha/. Acesso em 01/08/2020.

De acordo com Botelho (1999), até mesmo os primeiros desbravadores, bandeirantes


paulistas, que vinham explorar o Vale do Jequitinhonha foram formando fazendas. Com as
descobertas minerais, especialmente no Alto Jequitinhonha, e a dos diamantes, em
Diamantina/MG, essa região ficou conhecida e colocada na trilha da exploração. (LIMA JR.
1978). Houve, ao longo dos anos, a formação de vários núcleos familiares que, juntamente com
a exploração mineral, executavam também a agricultura. Mesmo com as baixas nas
explorações minerais, houve a continuidade de muitos sujeitos na agricultura e pecuária. Com
o fim do trabalho escravo (legalizado), muitos dos novos libertos também formaram núcleos
comunitários de povoamento e que desenvolviam agricultura. (SILVA, 2014). Destacou-se,
principalmente no Alto Jequitinhonha, grande quantidade de propriedades de trabalhadores
rurais com atuação na agricultura de caráter familiar. (GALIZONI, 2005, 2007). Quanto ao
Médio e Baixo Jequitinhonha, teve o predomínio das fazendas de gado. (RIBEIRO, 1997).
Tanto nas propriedades familiares, quanto nas fazendas localizavam-se ao longo do século XX,
as ações dos trabalhadores rurais, sejam como proprietários de suas pequenas terras ou como
agregados nessas fazendas.

O trabalho rural no Vale do Jequitinhonha contribuiu, desde o período colonial, com o


abastecimento alimentar de diferentes cidades e vilas mineiras. Destaca-se que o trabalho rural

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no Vale do Jequitinhonha desde muito cedo possuiu certo nível de diversificação de atividades.
A agricultura começou a ser desenvolvida concomitante com as primeiras explorações
minerais, era uma agricultura de subsistência. Juntamente com o garimpo, outras modalidades
de trabalho foram dividindo espaço com a agricultura, como a criação de animais e outras
práticas que contribuíram para a manutenção das atividades rurais e a permanência de muitos
sujeitos no campo.

As trabalhadoras rurais

O conceito de trabalhador rural foi sendo cunhado em meio às lutas camponesas,


especialmente em razão da sindicalização de trabalhadores rurais no Brasil. O conceito de
camponês também é bastante usado, especialmente no campo sociológico, para determinar
aqueles trabalhadores do campo que exercem a agricultura de caráter familiar em propriedades
menores. Camponês é também um conceito político utilizado especialmente no contexto das
lutas pelas terras e aquisição de direitos para o sujeito do campo. (MARTINS, 1983).

Poucas as mulheres eram efetivamente consideradas trabalhadoras rurais antes da


Constituição de 1988. Para fins de sindicalização e conquista de direito previdenciário, as
mulheres rurais, quando solteiras, poderiam ser sindicalizadas, mas geralmente quando se
casavam passavam a ser dependente de seus maridos. A principal justificativa dessa
dependência é resultado de uma concepção de que os homens eram aqueles que trabalhavam e
poderiam adquirir dinheiro para arcar com os custos sindicais. Enquanto que, nesse sentido, o
serviço da mulher era sempre visto como complementar, ou voltado, apenas, para trabalhos
domésticos.

Quando uma mulher solteira permanecia solteira ela continuava no Sindicato e


alcançava os direitos previdenciários, porém a sua posição como trabalhadora rural ainda era
pouco reconhecida. Com a Constituição de 1988, as mulheres conseguiram mais espaços e
destaque, justamente pela união de diversas frentes que reivindicavam maiores direitos para as
mulheres no campo. (BRUMER, 2002). As dificuldades em reconhecer uma mulher como
trabalhadora rural é resultado de um percurso histórico patriarcal, isso para o meio rural ainda
era bastante visto até a Constituição de 1988 e as mudanças geradas, especialmente no interior

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da CONTAG e a partir de forte empenho desse órgão, as instituições sindicais passaram a


congregar mais as mulheres e dar a elas espaços, inclusive nos processos de gestão política e
sindical. [2]

As trabalhadoras rurais do Vale do Jequitinhonha

Nosso estudo, realizado no primeiro semestre de 2020, buscou trazer uma pequena
síntese das histórias de trabalhadoras rurais no Vale do Jequitinhonha. Nesse sentido, nas linhas
seguintes desse trabalho mostraremos algumas histórias de trabalhadoras rurais dessa região.
Fica evidente que essas histórias têm muito a nos contar da estrutura rural do Vale do
Jequitinhonha. Nosso foco é nas histórias de vida dessas mulheres, que hoje já são aposentadas,
tendo entre 60 a 78 anos. Suas histórias são sobre sua juventude, com a família e suas trajetórias
pessoais. Compreendemos que essas histórias ainda têm muito o que nos oferecer, nesse sentido
fazemos alguns apontamentos que podem nos oferecer debates significativos no campo da
história dos trabalhadores rurais.

Mulher? Há não tinha vez não. Mulher não tinha fala, dentro de casa os irmãos
homens podia falar alguma coisa, as mulheres não, era como se a mulher não
soubesse de nada. Quando casava, era o marido que decidia tudo, o que podia a
mulher fazer era cuidar da casa, dos filhos e do marido. Às vezes as mulheres só ia
ter algum lugarzinho assim, quando ficava mais velha e se tivesse tido uma família
exemplo. [3]

A gente cresceu trabalhando muito, era ajudando a levar coisas pra vender na cidade,
era capinando, roçando e de um tudo a gente fazia. Quando eu casei continuei da
mesma forma, cuidando de casa de filho e ajudando o marido na lida da roça. [...]
Quando ele [o marido] ia para o garimpo, eu ficava aqui, às vezes ele ficava lá quinze
dias e eu ficava aqui cuidado das coisas aqui. [4]

A vida sempre foi de muito trabalho, a gente tinha que fazer de um tudo. Quando a
gente casava o serviço ainda duplicava porque tinha o serviço de casa, cuidar dos
filhos e ainda tinha que ir pra luta. Muitas vezes o marido não estava dentro de casa
e a gente tinha que dar conta de tudo. Há e se acontecesse alguma coisa com os
filhos era de nossa responsabilidade também. [5]

Aqui tinha muita mulher que o marido às vezes invernava na bebida e era a mulher
que tinha que dá conta de tudo. E dava. Tinha muitas aí que trabalhava de um tanto
que você nem imagina, era cuidando de casa, cuidando de criação de animais,
fazendo cerca, tirando leite, campeando. Da mesma forma eram algumas que

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ficavam viúvas e tinha que lidar com isso tudo, muitas vezes as crianças estava
pequena dentro de casa e as mulheres tinha que dá conta de criar. [6]

Quando meu marido morreu eu estava cheia de menino pequeno. [...] Teve muita
gente que queria pegar meus meninos pra criar, mas eu falei que se eu não pudesse
comer angu seco com meus filhos aí eu dava ele pros outros. Criei eles trabalhando
na luta, trabalhando pros outros roçando, apanhando café, plantando milho, feijão e
tudo mais. [7]

Pouco tempo que eu casei, meu casamento não deu muito certo não, e eu separei.
Os meninos estavam pequenos e eu tive que dá conta de tudo. O homem queria era
tirar a terra de mim ainda, mais eu lutei junto com o Sindicato e consegui ficar com
minhas terras. Nela eu trabalhei muito, plantava feijão, milho, mandioca, fazia
farinha, torrava café, fazia rapadura e foi assim que eu criei os meus filhos, graças
a Deus. [8]

O histórico patriarcal enraizado na sociedade fez com que muitas trajetórias dessas
mulheres fossem invisíveis. O próprio comportamento masculino como provedor do lar e da
família fazia com que as ações dessas mulheres fossem tratadas como feitos dos maridos.

Verificamos nas trajetórias dessas mulheres que havia algumas delas que atuavam em
negociações diversas, de gado, venda de terras e outros. Ocorriam casos em que os maridos
estavam ausentes e essas mulheres controlavam a propriedade, quando os maridos voltavam,
ganhavam o crédito dos serviços realizados.

Às vezes a gente via a pessoa falando que fulano tinha comprado boi era na mão do
marido, mas bem que quem tinha vendido era a esposa. Era assim também em outros
casos, as pessoas viam uma roça capinada, pronta pra plantar e o pessoal logo falava
que a roça do fulano estava no jeito de plantar e que ele era trabalhador, mas bem
que quem tinha feito o serviço era a mulher. [9]

Havia ainda os casos em que alguns homens tinham problemas com bebidas alcoólicas
e ficavam por vezes dias bebendo seguidamente e deixavam as mulheres sozinhas para cuidar
de toda a propriedade. Nesses casos, o homem não aceitava a dar o crédito do trabalho, pois
conforme se observa em alguns depoimentos, o homem pensava perder seu lugar de provedor
declarando o serviço da mulher perante a sociedade. Na melhor das hipóteses, o trabalho
feminino era reconhecido como complementar ao do marido.

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A responsabilidade em criar filhos e cuidar da casa era da esposa. Entretanto, o que


observamos ao longo desse estudo é que algumas mulheres, dadas essas atribuições, eram
responsabilizadas, caso ocorresse algo de negativo com a criação dos filhos. Para usarmos de
um exemplo bastante recorrente, podemos mencionar casos em que ocorresse uma gravidez de
uma filha que ainda não tivesse contraído matrimônio. Nesse caso, o próprio marido outorgava
à responsabilidade da ocorrência à mãe, entendendo que essa teria feito um serviço ruim em
educar a filha, não tendo a devida atenção com vistas a ter prevenido o fato.

Até nesses casos a condição da mulher sofre alteração. A começar pelo fato de que a
filha mulher recebe uma educação diferenciada do filho homem. As filhas têm uma educação
mais rigorosa, crescem bastante ligadas às mães e com poucas saídas de casa. De acordo com
alguns depoimentos, as mulheres informam que foram criadas sendo proibidas de saírem para
qualquer que seja o evento sem estar acompanhada da mãe, pois entendia que ambientes de
diversão, sem o devido cuidado, era apenas para mulheres “perdidas”, aquelas que não eram
bem vistas para casamentos.

Esse pensamento, remonta a uma mentalidade patriarcal que sobreviveu por longo
período. Se as ditas mães de família tivessem criado seus filhos com o devido cuidado, casado
todos os filhos no ritual religioso e sob as bases do respeito, que incluía o casamento das filhas
sem terem adquirido filhos, isso fazia com que a mãe fosse tratada como modelo para outras
mulheres. O conjunto de comportamentos da mulher ao longo de sua vida poderia lhe conceder
na velhice um status de mulher-exemplo.

Logicamente que esse é um status social. Quando falamos na conquista de um status


não estamos querendo dizer que a mulher passou a possuir uma identidade a qual exibia como
um título. Esse status se refere ao fato de que se essas mulheres tivessem sido modelo de
comportamento, elas eram na velhice referências, fosse quanto a educação de netos ou
referências sociais. Além disso, passavam a serem mulheres-símbolo de sabedoria, aquelas que
podiam opinar sobre decisões da família ou de outrem. Muitas vezes essas mulheres eram
procuradas para ofertar conselhos e opiniões. O que essas mulheres diziam tinha peso na
sociedade, pois, além da idade, apresentavam também um histórico de vida exemplar. Era

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nesses casos que a mulher tinha seu espaço. Era também nesses casos que a trajetória feminina
era ressaltada, a fim de que se tornasse argumentação para reafirmar o caráter da mesma.

Há de se reconhecer que há semelhanças entre as trajetórias das mulheres tanto no Alto,


médio ou Baixo Jequitinhonha. O lugar subalterno, a invisibilidade de suas ações perante a
sociedade e a manutenção de mentalidades patriarcais são fenômenos com os quais muitas
dessas mulheres conviveram ao longo de suas vidas. Podemos narrar uma trajetória comum de
várias mulheres do Vale do Jequitinhonha ao começar na juventude. Muitas dessas mulheres
começaram a trabalhar cedo, seja em casas de família, fábricas de tecido ou em propriedades
rurais de terceiros. Aquelas que se mantinham dentro das casas de suas famílias trabalhavam
desde criança, em diferentes atividades.

O casamento era uma ação quase que imposta. A maioria dessas mulheres casava
jovem, na faixa dos 15 aos 25 anos. Antes de casar, as filhas era responsabilidade da mãe e do
pai, depois de casadas, as mulheres passavam a ser subalternas aos maridos. Deve-se ressaltar
que essa condição da mulher sofre variações em diferentes casos. O mais comum nessas
situações é essa relação de dependência dos maridos, especialmente econômica. Os casamentos
ainda eram pensados como um vínculo para a toda a vida, o que fazia com que muitas mulheres
se sujeitassem a situações delicadas em desejo da manutenção de seus casamentos.

Considerações finais

As mulheres, ao darem seus depoimentos, reconhecem mudanças nas mentalidades,


inclusive delas próprias. É comum que as próprias mulheres nutram pensamentos patriarcais e
os reproduzam. Ao falar sobre suas memórias e seus lugares, elas próprias constroem narrativas
de uma época em que ao fazer a ponte típica da memória, entre passado e presente, deduzem a
existência de rupturas com ações que elas reproduziam com base nos padrões sociais do que
era considerado comum e adequado.

No que se refere ao trabalho, todas as mulheres entrevistadas apontaram que não só


elas, mas as demais mulheres em suas comunidades, trabalhavam tal qual os homens, mas os

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trabalhos ainda eram creditados apenas aos homens. Fosse a lida nas roças, no comércio, no
garimpo, essas mulheres ocuparam diferentes espaços nas dinâmicas de trabalho e merecem
ser melhor estudadas no que se refere à história dos trabalhadores rurais. Deve-se reconhecer a
importância do trabalho feminino nas propriedades de caráter familiar e também nas fazendas
ou nos empregos rurais. Mesmo em trabalhos externos às suas propriedades, a dinâmica de
trabalho feminino colaborou com a manutenção de propriedades rurais, pois muitas mulheres
trabalhavam fora de suas propriedades para colaborarem com as rendas dentro de casa, em
situações em que os pais não tinham condições de trabalhar, seja na velhice ou situações de
doença.

É preciso dar mais espaço para a presença das mulheres nos estudos referentes às
comunidades tradicionais, aos camponeses, aos trabalhadores rurais. Existem muitas histórias
de mulheres rurais que podem oferecer elementos significativos para compreender não somente
o lugar feminino da mulher rural, mas também a estrutura rural. Nesse breve texto, a intenção
foi justamente apresentar essas mulheres e tratar de como suas histórias tem a contribuir nos
estudos rurais e na história agrária. É um campo repleto de possibilidades de trabalho e que
ainda se encontra pouco desbravado.

Notas

[1] Seguindo as diretrizes do Comitê de Ética em Pesquisa da UFVJM usamos apenas as


iniciais dos nomes das entrevistadas.
[2] CONTAG – Cartilha comemorativa dos 40 anos. Disponível em:
http://www.contag.org.br/imagens/CONTAG-Revista40anos.pdf. Acesso em 11/08/2020.
[3] Depoimento de M. A. S. em entrevista realizada em janeiro de 2020. Idade da
entrevistada: 63 anos.
[4] Depoimento de C. M. M em entrevista realizada em janeiro de 2020. Idade da
entrevistada: 76 anos.
[5] Depoimento de M. D. P. em entrevista realizada em janeiro de 2020. Idade da
entrevistada: 64 anos.
[6] Depoimento de E. M. S. em entrevista realizada em janeiro de 2020. Idade da
entrevistada: 73 anos.
[7] Depoimento de A. A. S. em entrevista realizada em julho de 2020. Idade da entrevistada:
72 anos.
[8] Depoimento de A. N. S. em entrevista realizada em julho de 2020. Idade da entrevistada:
78 anos.

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[9] Depoimento de M. N. S. P. em entrevista realizada em janeiro de 2020. Idade da


entrevistada: 67 anos.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

MUNDOS DO TRABALHO E IMPRENSA: DENÚNCIAS E DEMANDAS


DOS TRABALHADORES DO DISTRITO INDUSTRIAL DE MANAUS
NA DÉCADA DE 1980

VANESSA CRISTINA DA SILVA SAMPAIO


Universidade Federal do Amazonas. Mestranda
vanessa-css@hotmail.com

Resumo

Os passos gradativos da luta operária no Distrito Industrial de Manaus acompanharam o


processo de renovação do movimento operário em âmbito nacional na década de 1980. Cada
vez mais os conflitos fabris se tornaram latentes e insustentáveis haja vista que o processo de
precarização do trabalho ficava mais evidentes. Diante disso, compreender a atuação dos
trabalhadores no cotidiano laboral a partir de relações de conflitos e tensões estabelecidas no
chão das fábricas é um dos objetivos deste trabalho, relacionando-os com as fontes
jornalísticas, principalmente as notícias pertinentes às denúncias dos trabalhadores encontradas
nos jornais A Crítica, Jornal do Comércio e no jornal operário, O Parafuso. Neste sentido, a
imprensa foi um aliado em dar visibilidade às condições de trabalho e a precariedade enfrentada
pelo operariado nas empresas do Distrito Industrial na década de 1980.

Palavras-chave: Distrito Industrial de Manaus; Imprensa; Trabalhadores

Introdução

Se referindo ao impacto da imprensa na historiografia regional, Maria Luiza Ugarte


Pinheiro destaca que “se tomarmos os jornais não como fonte, mas como objeto da própria
investigação historiográfica, emerge de forma flagrante a quase inexistência de estudos”.
(2001, p. 58). Essa carência de trabalhos é ainda maior na imprensa operária, apesar dos
espaços conquistados nos últimos anos dentro da História Social do Trabalho. De acordo com
Luciano Everton Costa Teles, “a utilização da imprensa periódica como fonte para a pesquisa

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histórica brasileira ganhou terreno, ainda de forma tímida e lenta, na década de 1970 após a
superação de antigas posturas que marcaram a prática historiográfica”. (2015, p. 27-28).

Acompanhando o contexto de abertura política em consonância com os primeiros sinais


de esgotamento da Ditadura Civil Militar implantado no país em 1964, marcado pela repressão
e pelo autoritarismo aos movimentos sociais, e de maneira mais significativa, a classe a
trabalhadora, a imprensa foi uma estratégia de enfrentamento utilizada pelos trabalhadores no
combate à exploração no chão das fábricas.

As condições de trabalho no Distrito Industrial de Manaus

No caso do operariado do Distrito Industrial de Manaus, objeto deste estudo, as


mobilizações se deram inicialmente, por melhoria nas condições de trabalho, potencializando
o poder de organização destes trabalhadores. Esses embates ocorreram no setor
economicamente mais promissor e notável da região amazônica na década de 1980: o Distrito
Industrial.

Neste sentido, foi implantado inicialmente em uma área de 16.974.824.00 m2, situado
a 5km do centro de Manaus. Na década de 1980, a Zona Franca de Manaus possuía um total
de 212 projetos industriais que estavam em funcionamento, oferecendo 47 mil empregos
diretos. Desse total, 77 empresas funcionavam ativamente, divididos entre os setores
eletroeletrônico, principalmente. Seguidos do setor de relojoaria e polo de duas rodas. O setor
eletroeletrônico foi responsável pelo abastecimento de 70% de produtos no mercado nacional.

Com o objetivo de acelerar o desenvolvimento local, o Distrito Industrial nasce como


uma estratégia de crescimento econômico e de avanço industrial na Amazônia. Contudo, os
primeiros anos da Zona Franca de Manaus foram marcados por um forte comércio importador.
A indústria não teve o mesmo impacto que o setor terciário no alvorecer do modelo de
desenvolvimento. O lançamento da pedra fundamental do Distrito Industrial ocorreu em 30 de
setembro de 1968 e as primeiras fábricas foram implantadas em 1969. O marco do setor
industrial, no entanto, é o ano de 1972, com a inauguração do Distrito Industrial, reunindo no

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ato histórico, o superintendente da Zona Franca de Manaus, Floriano Pacheco, e o governador


do Amazonas, Danilo Duarte de Mattos Areosa.

De modo geral, essa perspectiva de desenvolvimento trouxe consigo o entusiasmo em


relação à geração de empregos na região amazônica. A propaganda em torno do Distrito
Industrial de Manaus era realizada intensamente na imprensa local, como ficou evidente no
Jornal A Crítica, ao salientar que “Cinquenta mil empregos nascem do mato”. A reportagem
destacou que o Distrito Industrial era o coração de Manaus, sendo a máquina que movimentava
o desenvolvimento econômico local, proporcionando bons empregos, “transporte adequado,
refeições de qualidade superior a preços simbólicos, assistência médica, social e
farmacológicas para a toda a família do trabalhador, assim como creches, programas de esporte
e lazer” (A Crítica, 1985, p. 05). A propaganda projetava o Distrito Industrial como um
empreendimento próspero, com um forte apelo expansionista. No entanto, em relação à criação
de novos postos de trabalho, esse desenvolvimento não acompanhou a política que orientava o
setor industrial. Mesmo com os incentivos fiscais, o barateamento da produção via baixa
remuneração do trabalhador era um atrativo a mais às empresas que no Distrito Industrial de
Manaus se instalaram. A mão de obra empregada era, sobretudo, de jovens vindos do interior
do estado do Amazonas, que em busca de melhores condições de vida, logo eram absorvidos
pelo setor industrial. (ARAUJO, 1985, p. 122). No estudo de Eufrásio Alves Bezerra, o autor
destaca que na década de 1980 “49% da mão de obra do Distrito Industrial eram de jovens de
18 a 25 anos, 15% possuía menos de 18 anos e 1% 45 anos ou mais” (1980, p. 57-58). Ressaltou
ainda que a ampla participação feminina neste setor foi justificada como uma possibilidade de
complemento na renda familiar e também pelo pouco esforço físico exigido nas linhas de
montagem, principalmente dos subsetores de relojoaria e de eletroeletrônico. Nessa
perspectiva, Márcio Souza (1977) define esse contingente de trabalhadores como “dóceis e
barata” que a qualquer momento poderiam ser substituídos. Dessa forma, o excesso de mão de
obra não qualificada e facilmente disponível repercutiu no prolongamento das jornadas de
trabalho, no aumento da exploração em massa dos trabalhadores, na redução significativa nos
direitos trabalhistas, agravadas pela precariedade nas condições de trabalho ofertado pelas
empresas.

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Neste sentido, as condições de trabalho dentro das fábricas do Distrito Industrial


tornaram-se insuportáveis, conforme o relato de Raimundo Elson de Melo Pinto, trabalhador
da empresa Philco e também ex-dirigente e presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do
Amazonas durante a década de 1980. Segundo o sindicalista, “o contexto da condição de
trabalho do operário no Distrito Industrial era horrível, a comida era ruim, o transporte era
péssimo, o ambiente de trabalho era insalubre. Era muito calor, havia muita poeira”39,
destacando que “você entrava numa fábrica, parecia que estava entrando numa selva”40,
salientando que as condições desumanas de trabalho eram comuns a quase todas as empresas
do Distrito Industrial de Manaus. Esse relato também ficou expresso no depoimento de
Hamilton Madeira Macedo, trabalhador das empresas Philco e Philips e também ex-dirigente
do Sindicato dos Metalúrgicos do Amazonas, entre os períodos de 1982 a 1986. Para ele, essas
pequenas reivindicações pautadas em melhores condições na alimentação ou mesmo contra o
calor excessivo, impulsionou o aumento no número denúncias, o que indiretamente favoreceu
o fortalecimento da luta operária dentro do Distrito Industrial, se tratando, portanto, de
reivindicações imediatas que logo deram origens às grandes greves a partir de 1985.41

A alternativa encontrada pelos trabalhadores do Distrito Industrial de Manaus foi cruzar


os braços, fosse mediante a algumas horas ou durante dias. As primeiras reivindicações foram
motivadas pelas altas temperaturas no interior das empresas, assim como sucessivas
reclamações com relação à alimentação servida aos trabalhadores. De acordo com Maria Célia
Santiago, antes mesmo de 1985 havia protestos que denunciavam “as altas temperaturas nos
galpões das fábricas, que não contavam com condicionadores de ar, também geraram alguns
protestos e uma greve na Philco em 1979” (2010, p. 80) conforme o relato de um dos
trabalhadores entrevistado pela referida autora. Reivindicações como o calor excessivo nas
fábricas, transporte, má alimentação e o ambiente de trabalho insalubre foram queixas bem
definidas, originando sobretudo, “uma série de ocorrências internas e externas no local de
trabalho” (LINDER, 2013, p. 207). Essas reivindicações cristalizam o estopim de

39 Entrevista com Raimundo Elson de Melo Pinto, realizada no dia 13 de abril de 2019.
40 Entrevista com Raimundo Elson de Melo Pinto, realizada no dia 13 de abril de 2019.
41 Entrevista com Hamilton Macedo Madeira, realizada no dia 18 de dezembro de 2019.

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acontecimentos específicos e traduzem fortemente o descontentamento dos trabalhadores no


ambiente laboral.

Nessa perspectiva, Marlene Ribeiro salienta que essas lutas cotidianas no interior das
empresas do Distrito Industrial eram frequentes e que os casos de má alimentação e
diagnósticos de intoxicação alimentar foram corriqueiros. Diante disso, “os problemas de
comida estragada foi uma das causas de maior número de paralisações internas, “batalha de
pratos e demissões por justa causa” (1987, p. 291). No estudo de João Pinheiro Salazar, acerca
do novo proletariado industrial de Manaus, o autor também destacou as inúmeras denúncias
referentes às condições de trabalho, traçando o perfil de exploração praticado pelas empresas
do Distrito Industrial. Acerca dessas práticas abusivas, Cheywa Rojza Spindel ressalta que as
instalações das empresas, em sua maioria, apresentavam “altas temperaturas, sobretudo, nos
meses do verão. A poluição sonora e do ar eram insuportáveis. A poluição ambiental era total”.
(1987, p. 13). Essas inúmeras denúncias também foram encontradas nos jornais locais,
tornando públicas as práticas de exploração cometidas pelo patronato industrial em Manaus.

Uma dessas denúncias são dos trabalhadores da empresa CCE da Amazônia que
relataram ao Sindicato dos Metalúrgicos os frequentes casos de desmaios nas dependências da
empresa em decorrência das péssimas condições do ambiente de trabalho, onde a concentração
de calor aliado a manipulação de produtos químicos causavam reações das mais diversas ao
trabalhador, que iam de tonturas, enjoos e desmaios às internações por problemas respiratórios.
(Jornal do Comércio, 1985, p. 02) Essas condições, ressaltam segundo Iraildes Caldas Torres,
“a cadência do trabalho repetitivo, acelerado e pressionado tem fortes implicações na saúde do
trabalhador, pondo em risco sua saúde física e psíquica”. (2005, p. 179)

No boletim operário, O Parafuso que se denominava “Uma produção do trabalhador


para o trabalhador de Manaus” em colaboração com a Pastoral Operária são nítidas as
principais demandas do operariado do Distrito Industrial. Comparava-se a situação deste
trabalhador análogo ao de escravo, onde o “caboco era transformado em peças de máquinas,
como foi dito por um supervisor de uma fábrica, a uma operária que teve a ousadia de reclamar
da comida” (O Parafuso, 1980, p. 02). O boletim fazia um esclarecimento sobre a importância
do trabalhador defender os seus direitos, assim como se informar, sobretudo “ler jornais,

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conversar com os companheiros, discutir os seus problemas, pois enquanto o operário está
distraído com banhos, olimpíadas e futebol, o patrão está sugando o seu salário e o alimento de
sua família descaradamente”. (O Parafuso, 1980, p. 02).

Ainda segundo essa edição de O Parafuso, os trabalhadores necessitavam unir-se e


organizar-se. Sem organização e adesão a causa operária, embora fossem maioria, os operários
não poderiam lutar por direitos e tão pouco por melhores condições de vida. Necessitavam,
sobretudo, “estar por dentro de todas as leis que existem para nos proteger e que o patrão além
de não cumpri-la, faz questão de que nós estejamos por fora dela para melhor nos enganar”. (O
Parafuso,1980, p.07) De acordo com César Augusto Bubolz Queirós, “as estratégias dos
trabalhadores só são eficazes se são coletivas, uma vez que as estratégias individuais de
ascensão social são limitadas e incertas” (2012, p. 139). A despeito dessas considerações,
Santiago destacou que essas estratégias eram ações espontâneas e que demonstravam uma
“guerra pela sobrevivência física dentro das fábricas, sem qualquer conotação política ou
mesmo qualquer outra pretensão a não ser garantir o direito a uma alimentação que os
permitisse viver”(2010, p. 75). Perspectiva semelhante é apresentada por Milton Melo dos Reis
Filho, ao destacar que havia uma distinção hierárquica nas refeições servidas. Para os “peões”
eram os bandejões, onde “a CCE chegou a servir galinha podre antes de o Sindicato ser uma
direção combativa, a Philco chegou a servir galinha dura, enquanto a gerência tinha a sua
disposição, serviços à la carte”. (2008, p. 109)

O Parafuso denunciava que os operários deveriam estar bem alimentados para executar
um bom trabalho, no entanto, “nas condições em que viviam, estavam sempre doentes e muitas
vezes são chamados de preguiçosos e acomodados por seus supervisores” (O Parafuso, 1980,
p. 02). Em uma publicação intitulada “Moto-Honda: um exemplo de exploração” se acentuou
os “casos de acidentes, operários trabalhando e respirando solda e engolindo suor, debaixo dos
berros dos supervisores que querem sempre mais produção. Não podem beber água, lavar as
mãos ou ir ao banheiro. Salários eram baixos. Tudo era descontado” (O Parafuso, 1980, p. 05).
Na empresa Gradiente, por exemplo, as condições de trabalho eram semelhantes. Eram
obrigados a cumprir metas diariamente. Quando não as conseguiam, eram pressionados a
“trabalhar até 15 minutos depois da batida para o almoço. Além disso, os chefes nos ameaçam

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sempre de demissão. Banheiro, era no máximo duas vezes ao dia. Um dos chefes teve a audácia
de dizer que os nossos salários eram ótimos” (O Parafuso, 1980, p. 06). Na Sharp, vemos igual
descaso. Era uma das empresas mais recorrentes no número de denúncias por falta de higiene
no trabalho, o que ocasionalmente provocava o aumento no número de doenças, acrescido de
um “atendimento médico péssimo, interessado em não apontar as doenças existentes. E os
remédios que são passados não curam, causam mais doenças” (O Parafuso, 1981, p. 03).

Ainda de acordo com O Parafuso, cerca de 70% dos funcionários do Distrito Industrial
de Manaus sofrem com problemas de vista resultante da ausência de proteção contra as soldas.
As caixas d’águas raramente eram limpas. Os banheiros sempre sujos e os chuveiros entupidos.
Em relação à comida, “o feijão ficava em torno de uns 40 grãos. Para receber os outros 40 grãos
eram mais 20 minutos na fila. E o trabalho não é pouco, não”. (O Parafuso, 1981, p. 03).
Empresas como a Sharp, Moto Honda, Philips, Springer, apenas para citar alguma, tinham os
seus refeitórios em pavilhões distantes e sem cobertura, ficando o trabalhador em dias de chuva,
com duas alternativas: “não almoçar e ficar sequinho, ou ir almoçar e voltar ao trabalho todo
molhado, correndo o risco de ficar doente” (O Parafuso, 1981, p. 07). Essa prática é condizente
com o relato da operária Valdiza Ferreira da Silva, trabalhadora da empresa Sony da Amazônia
no ano de 1985. Segundo o seu depoimento, “a Sony não tinha refeitório dentro da empresa,
era uma dificuldade imensa na hora do almoço. Era preciso correr para dar tempo de comer, ir
ao banheiro e voltar ao posto de trabalho”42

A adoção dessas práticas causou a curto e a médio prazo, doenças ocasionadas pelo
calor e o barulho excessivo. Gripes, sinusites, pneumonias e até tuberculoses eram registrados
com frequência, assim como, diarreias e úlceras causados pelos alimentos de péssima
qualidade, servidos aos trabalhadores. (O Parafuso, 1981, p. 10). Com a saúde comprometida,
era necessário medidas que minimizassem os prejuízos gerados a vida do operariado
amazonense. Neste sentido, os médicos que chefiavam os departamentos de saúde das
empresas do Distrito Industrial de Manaus comprometeram-se a conversar com os empresários,
a fim de “sensibilizá-los” quanto a necessidade de melhorias nas ações preventivas contra as

42 Entrevista com Valdiza Ferreira da Silva, realizada no dia 23 de março de 2019.

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doenças que afetavam o trabalhador, consequência da negligência e ambição dos empresários.


(Jornal do Comércio, 1986, p. 10).

De acordo com José Maria Santana, coordenador da Secretaria Estadual de Saúde, o


órgão recebeu várias denúncias graves em relação às péssimas condições de saúde dos
operários. O coordenador a classificou como “caótica”, citando os vários surtos de rubéola e
difteria que atingiu os trabalhadores no início de 1986. (Jornal do Comércio, 1986, p. 11) Além
dos cuidados com a higiene e alimentação, era preciso uma forte campanha de imunização
dentro das empresas. No combate, a doenças infecciosas, por exemplo, a imunização era baixa,
não atingia 20%. (Jornal do Comércio, 1986, p. 11). Óbitos por tétano e difteria foram
registrados no Distrito Industrial. Segundo José Maria Santana, “uma jovem operária faleceu
simplesmente pelo fato de um médico (sem citar o nome da empresa) ter dado uma orientação
errada no tratamento de uma doença” (Jornal do Comércio, 1986, p. 11) Havia, portanto, o
conhecimento por parte dos órgãos competentes, acerca das condições desumanas a qual estava
sujeito o trabalhador, sem que houvesse qualquer interferência.

Outra reclamação arrolada pelo O Parafuso, era a superlotação nos ônibus do Distrito
Industrial de Manaus. “Os trabalhadores vinham todos amontoados, os que corriam primeiro,
tinham sorte e vinham sentados. O restante ia em pé mesmo, era pior que o transporte público”.
(O Parafuso, 1980, p. 09). Essa situação ficou evidente no acidente envolvendo três coletivos
que faziam o transporte dos trabalhadores das empresas Evadin e Di Gregório em 11 de janeiro
de 1986. Ao todo, foram dezenove mortos e cerca de sessenta feridos. O Sindicato dos
Metalúrgicos do Amazonas, acusou o Departamento Estadual de Trânsito do Amazonas –
DETRAN- AM pela omissão em relação às denúncias que vinham sendo feitas desde 1985, em
relação a superlotação e a falta de condições básicas desses veículos. Ainda de acordo com o
Sindicato dos Metalúrgicos, os veículos apresentavam freios precários, assentos soltos e sem
partida elétrica e extintores de incêndios, apontando como exemplo a Sharp que necessitava de
quarenta ônibus e dispunha apenas de trinta, superlotando os coletivos. (Jornal A Crítica, 1986,
p. 15).

Após o acidente, o Sindicato dos Metalúrgicos fez um levantamento das condições dos
veículos e constatou que dos duzentos ônibus vistoriados, sessenta apresentavam

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irregularidades, “circulando sem placas e faróis, proporcionando risco de vida aos operários’.
(Jornal A Crítica, 1986, p. 15). Os trabalhadores da empresa CCE também denunciaram que
os ônibus apresentavam pane mecânica e algumas vezes o trajeto foi interrompido por
pequenos focos de incêndios nos motores. (Jornal A Crítica, 1986, p. 15) Estes problemas
demonstram o sucateamento da frota e falta de fiscalização, associado a negligência das
empresas, revelavam a precariedade nas condições de trabalho que estavam submetidos
homens e mulheres dentro Distrito Industrial de Manaus. Para os trabalhadores era necessário
que “esses veículos saíssem de circulação, em nome da segurança e do respeito às vidas
humanas. Sem prevenções mínimas, os acidentes continuariam a ceifar vidas inocentes.”
(Jornal A Crítica, 1986, p. 14).

Ainda com relação à saúde do trabalhador, convém destacar os casos de doenças


mentais entre os operários do Distrito Industrial de Manaus, causados por um ambiente de
trabalho precário e hostil, contribuindo para o esgotamento físico e mental desse operariado.
De acordo com o Jornal do Comércio, haviam casos severos de distúrbios mentais entre os
operários do Distrito Industrial. Casos estes que foram denunciados à Secretaria de Saúde do
Estado do Amazonas e confirmado pelo secretário, Euler Bentes Ribeiro. Para ele, “em
determinadas indústrias de montagem, a rotina gera estafa mental, deixando sequelas em
muitos operários”. (Jornal do Comércio, 1986, p. 09). Segundo o secretário, os trabalhadores
que estivessem sujeitos a esses problemas, deveriam estar protegidos por uma legislação
específica, sobretudo, por ser um caso de saúde pública. Dessa forma, as ações preventivas
também eram de responsabilidade dos empresários, apontou Euler Ribeiro.

Para o Sindicato dos Metalúrgicos do Amazonas, os distúrbios emocionais eram


causados, essencialmente pela exploração física, baixa remuneração e a falta de estabilidade
no trabalho. É importante destacar que esses problemas não se constituíam em uma novidade
e ficavam perceptíveis nas “manifestações e greves, onde a sensibilidade do operário já
adquiriu o ponto máximo em suportar as situações no ambiente de trabalho”. (Jornal do
Comércio, 1986, p. 09). No entanto, indo na contramão dessas informações, o superintendente
regional do Instituto Nacional de Previdência Nacional – INPS, Aldo Salles, desmentiu
publicamente as denúncias referentes aos distúrbios mentais entre os trabalhadores do Distrito

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Industrial. Segundo o superintendente, foram confirmados em um levantamento geral, no


período de janeiro a dezembro de 1985, cerca de quarenta e um casos eram oriundos de
distúrbios mentais. Porém, houve a ressalva que nem todos eram de trabalhadores do Distrito
Industrial, afirmando não ser possível assegurar que “as atividades normais de trabalho tenham
condições de provocar no operário doenças mentais” (Jornal do Comércio, 1986, p. 11). Ou
seja, o que poderia existir era uma predisposição do indivíduo a distúrbios mentais, sem que a
origem necessariamente pudesse ser a atividade laboral. Neste sentido, o sofrimento é
vivenciado, mas não reconhecido como uma doença.

Pelo que se pode depreender da documentação analisada, os trabalhadores vinham


denunciando constantemente a precariedade no ambiente de trabalho nas empresas do Distrito
Industrial de Manaus, em um período antecedente às grandes greves, ocorridas a partir de 1985.
Os relatos encontrados salientam, principalmente reivindicações baseadas em princípios
básicos da dignidade humana. As denúncias apontadas nas fontes jornalísticas eram quase
sempre rebatidas pelo empresariado local, expressando a omissão do poder público e a
intransigência da classe patronal. Através das lutas cotidianas, acentuou- se às demandas do
trabalhador, fundamentados nas relações de exploração e no radicalismo existentes no
ambiente laboral. Com isso, mostrou-se a intensidade da luta operária construída sob a égide
da resistência e da ação coletiva.

Considerações finais

Ainda que brevemente, o presente artigo pretendeu mostrar a realidade vivida pelos
trabalhadores do Distrito Industrial de Manaus na década de 1980. Vimos que o
desenvolvimento proporcionado pelo setor industrial não foi condizente com as experiências e
as denúncias arroladas por este operariado através da imprensa. Consideramos que as lutas
travadas cotidianamente expuseram a precariedade nas condições de trabalho e o menosprezo
à dignidade humana. De modo geral, o desafio foi combater a banalização da força humana de
trabalho, cujo impactos foram refletidos nas greves gerais de 1985 e 1986. Reverberar sobre

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esses aspectos do cotidiano é, sobretudo, um exercício de compreensão da formação da classe


operária em Manaus germinadas em condições adversas. Desta forma, ressaltar os conflitos
fabris a partir das resistências cotidianas foi o que motivou esta investigação, alinhando
tenacidade e amadurecimento enquanto classe dos trabalhadores do Distrito Industrial de
Manaus na década de 1980.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

⚫ O Parafuso
⚫ Entrevista com Raimundo Elson de Melo Pinto, realizada no dia 13 de abril de 2019.
⚫ Entrevista com Hamilton Macedo Madeira, realizada no dia 18 de dezembro de 2019.
Entrevista com Valdiza Ferreira da Silva, realizada no dia 23 de março de 2019.

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

ALDEIAS NA CIDADE? HISTÓRIAS E TERRITORIALIDADES


INDÍGENAS EM TEFÉ
VITOR MATEUS DANIEL DA COSTA (1), PATRÍCIA CARVALHO ROSA (2)
(1) Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Graduanda, Bolsista IC
costavitor991@gmail.com
(2) Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Doutora pati.carvalho.rosa@gmail.com

Resumo

Este trabalho é fruto de um Projeto PIBIC Sênior, produzido no Instituto de Desenvolvimento


Sustentável Mamirauá na cidade de Tefé-AM, realizado entre agosto de 2019 e julho de 2020.
A presente pesquisa visa conhecer e descrever os processos históricos de ocupação e formação
dos territórios indígenas da região do Médio Rio Solimões, tendo como foco o município de
Tefé. Com esse recorte geopolítico, o objetivo central da pesquisa é produzir um levantamento
bibliográfico sobre os processos de formação do município, observando neles como as
narrativas historiográficas e documentais tratam a presença da alteridade indígena,
pretendendo, com isso, mostrar o sistemático apagamento étnico-cultural ocorrido durante esse
período. A partir disso, pode-se entender a ocorrência do ressurgimento étnico mais recente e
sua relação com as atuais demandas territoriais do município. A pesquisa é orientada por
metodologias qualitativas, empregando-se ferramentas de coleta de dados de natureza
bibliográfica e documental, tendo como embasamento a leitura e interpretação de materiais
acadêmicos, documentos históricos, além de relatórios técnicos da FUNAI e relatórios de
estudo de casos sobre as reivindicações fundiárias produzidas pelas organizações indigenistas
que atuam no município.
Palavras-chave: Povos indígenas; territórios; Tefé.

Introdução
Numa dupla perspectiva de compreensão, os fenômenos de territorializações no
passado e aqueles, no presente, de reivindicações por territórios indígenas na região do Médio
rio Solimões e Afluentes, remete-nos aos levantamentos bibliográficos nos quais informa-se
que os primeiros registros históricos sobre as sociedades nativas da Amazônia surgem a partir

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do século XVI, momento em que viajantes, naturalistas e missionários registravam, datavam e


cartografavam a ocupação do continente pelos europeus.

Em tais registros evidencia-se a linguagem colonial, cuja perspectiva de quem a


produziu está calcada sob a imagem do outro carregada de noções reducionistas, percebendo-
o como “selvagem”, “preguiçoso” e dotado de mentalidade atrasada, em comparação ao
referente europeu branco, embasado na ideia de desenvolvimento e progresso. Assim, a
historiografia produzida por esses atores coloniais conta uma história homogênea sobre o
sucesso da colonização, criando mecanismos discursivos e dotados de poder classificatório.
Nesse roteiro, o processo de apagamento histórico e político das alteridades indígenas,
mediadas por instrumentos assimilacionistas, deixam de lado nas narrativas oficiais os conflitos
profundos que marcaram um desencontro dos povos, enaltecendo-se, do contrário, os regimes
políticos desencadeados para controlá-la, como o letramento e a evangelização.

Como sugere Porro (1995), pelo emprego desses conceitos equivocados no passado,
parte dos dois milhões de indígenas que habitavam a Amazônia no século XVI foram retirados
da história. Isso ocorre, de acordo com o autor, como efeito perverso dos mecanismos de
subalternização da alteridade indígena em prol da exploração de suas terras e recursos.

Nesse sentido, tornados sujeitos centrais para a mão de obra colonial, a formação e a
manutenção de povoados indígenas nas calhas do rio Solimões pelos missionários foram
estratégias primordiais para a organização e gestão do território em fundação. A presença das
missões jesuíticas empregava regimes disciplinares que resultaram no processo forçado de
“aculturamento” dos índios (QUEIROZ, 2015), quando a eles foram impedido o exercício das
línguas maternas para o uso da língua portuguesa, e impelido o uso de seus costumes, de modo
que, paulatinamente, se tornassem “civilizados”. No caso da formação do município de Tefé,
fundado sobre a missão de Santa Tereza, que mais tarde se tornaria a Vila de Ega, ações
civilizatórias ocorreram e foram registradas com mérito. À exemplo, o Frei André da Costa
recolheu índios e brancos sobreviventes das aldeias e assentamentos destruídos em 1710,
trazendo-os em 1712 para a tapera da Missão de Santa Teresa, fundada por Samuel Fritz, em
1688. A partir disso, Frei André da Costa, com os indígenas já domesticados, como lemos nos
registros bibliográficos, encontrou um terreno propício, cheio de castanheiras e que tinha

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instalada uma pequena aldeia de índios provenientes da cabeceira do rio Tapi. A missão passou
a se chamar de Missão de Santa Teresa D’Ávila dos Tupebas (PESSOA, 2005). Segundo seus
relatos, esses indígenas tinham fugido da destruição da missão do Padre Sanna, em 15 de
outubro de 1718.
Fundada sobre aldeamentos indígenas marcados por fenômenos de deslocamentos e
fugas, em 1757 a Missão de Santa Teresa D’Ávila já tinha um total de 495 habitantes, sendo
36 brancos, 10 escravos e 449 indígenas (PESSOA, Idem). Apesar desse contingente
significativo de população indígena, a história narrada focaliza os eventos dos atores coloniais,
restando aos povos originários as margens dela.

Presença indígena na cidade


A presença de indígenas na formação da cidade de Tefé é apresentada nos registros
sócio-históricos e, como nota Faulhaber (1992), eles estavam nos portos e nas ruas da cidade,
salientando que os brancos eram minoria, mas passaram a ser os proprietários das terras,
fazendo com que os indígenas ocupassem lugares distantes ou fossem integrados como
empregados nas casas e fazendas dos patrões locais. Disso decorre o apagamento das
identidades étnicas, tornando “caboclos” alguns desses sujeitos. Esse termo, além do
apagamento identitário que homogeneíza as categorias diversas de alteridade, segundo Lima
(2009), é utilizado na região amazônica como uma categoria de classificação social que revela
em sua história o processo de colonização e apagamento histórico dessas populações locais.
Para melhor compreensão, portanto, dos atuais fenômenos de ressurgimento étnicos na
região e no município, Santos (2012) sugere levarmos em consideração os fatores da
colonização e seus instrumentos de produção sistemática da diferença associada às
desigualdades: os índios foram submetidos ao regime de trabalho, ao estilo de vida que os
forçavam a se converter ao cristianismo, ao abandono de suas referências étnicas e a não
permissão de falarem suas línguas maternas, somente o uso de uma língua geral. O uso dessa
língua como código de distinção étnica os homogeneizou na categoria política de índios
genéricos. Tudo isso produziu no imaginário local a crença nos dados da presença de um
contingente significativo de “população misturada”, que no século XIX já era apresentada
como “civilizada” ou “assimilada”. E nesse trajeto de apagamento, as alteridades ameríndias

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foram classificadas como “cabocla” (SANTOS E SOUZA, 2012). Assim, esses sujeitos
“deixaram de ser” entendidos como “indígenas” e, desse modo, ficaram sujeitos à perda dos
direitos mínimos que eram a eles garantidos, especialmente em decorrência do entendimento
equivocado de que os direitos diferenciados de saúde e educação, garantidos na Constituição
de 1988, eram concedidos apenas àqueles em situação de aldeamentos reconhecidos pela
FUNAI (NEVES et al 2018).
Mas, isso mudaria já nas primeiras décadas do século XX, com a emergência dos
direitos constitucionais que oportunizou legalmente a restituição de seus territórios, através de
procedimentos técnico-jurídicos, pautados no Artigo 321 da Constituição, que versa sobre o
conceito de terra indígena. Um dos efeitos mais significativos desses processos legais foi o
fenômeno conhecido na região como “passar a ser índio”, que mobiliza os diferentes segmentos
dos movimentos indígenas em prol da luta por seus direitos e, com isso, parcelas da população
antes não identificada etnicamente diferenciada, passa a fazê-lo.
Os povos que se encontram na cidade são remanescentes de muitos desses “caboclos”,
que se tornaram resistência e que com novos espaços de atuação política encontram-se
dispostos a reivindicar os seus direitos, com o objetivo de manter as suas tradições, continuar
as suas histórias e a fazer seus lugares. Esses direitos só foram possíveis, portanto, com a
visibilidade que os indígenas brasileiros conseguiram durante as últimas décadas, ainda que
hoje sigam lutando contra os retrocessos cometidos pelas políticas governamentais,
especialmente agravadas desde 2016.

A visibilidade dos índios na cidade: movimentos e articulações


Nesse processo de lutas por seus direitos na região, algumas instituições tomaram como
bandeira a causa indígena, apoiando esses povos na conquista dos seus direitos. No município,
destacamos a União das Nações Indígenas de Tefé (UNI-Tefé), criada em 1989, que desde
então está engajada na defesa dos interesses 14 dos povos do Médio Solimões e Afluentes,
atuando para que tenham acesso aos seus direitos sociais e constitucionais. Um dos ex-
membros da UNI-Tefé, morador da Terra Indígena Jaquiri, menciona que os trabalhos feitos
pela UNI-Tefé funcionaram como um impulso para que os povos do Médio Solimões e
Afluentes intensificassem suas lutas.

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Outra instituição fundamental nesse contexto político é o Conselho Indigenista


Missionário (CIMI), ligado a Prelazia de Tefé. Desde a sua criação, em 1970, o Conselho é um
órgão indigenista, que vem cooperando para a mudança de pensamento junto ao Estado
Brasileiro, que adota uma política assimilacionista (SILVA, 2019). Vale ressaltar que o CIMI
nasceu em um contexto político em que a Ditadura Militar vigorava no país, década que
pregava que o Brasil chegaria ao ano de 2000 sem índios em seu território. A mesma narrativa
de genocídio vem sendo reafirmada pelo atual governo federal.
De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Fundação Nacional do
Índio (FUNAI) no Médio Solimões e Afluentes, temos 25 Terras Indígenas (TIs) regularizadas,
englobando 16 etnias na abrangência de 10 municípios, e outros 49 territórios com registros de
demandas demarcatórias (FUNAI, 2019). Na cidade de Tefé há apenas uma TI identificada,
demarcada e homologada, a área indígena da Barreira da Missão, há outros 10 territórios com
pedidos de identificação junto à Funai, e outros 10 registros locais (COSTA, 2020; CIMI,
2017).
Cabe situar que todos esses territórios reconhecidos na região resultam dos movimentos
sociais mobilizados no decorrer das décadas de 1970 e 1980 com consequência na emergência
das áreas protegidas constituintes do Corredor Ecológico da Amazônia Central. Antes disso,
apenas as terras indígenas Miranha estavam reconhecidas. Entretanto, a ampla região possui
ainda um contingente significativo de povos indígenas organizados através das instituições
citadas, lutando pelo reconhecimento étnico e territorial.
Segundo os arquivos do CIMI (2017), existem registrados no banco de dados da FUNAI
20 territórios indígenas em fase de reivindicação, mas sem processo de identificação e
demarcação em andamento, sequer com a qualificação das demandas atendidas pelo órgão.
Dessas 20 demandas fundiárias, três ficam no município de Tefé.
Ressalta-se que, além desses processos já encaminhados junto ao órgão indigenista em
Brasília, segundo a Coordenação Técnica Local (CTL) da FUNAI em Tefé, existem outros 34
pedidos de reconhecimento de novas Terras Indígenas (TIs), todos sem nenhuma providência
assumida por esse órgão. Desses 34, 10 ficam em Tefé. Assim, entre demandas oficiais e
aquelas esquecidas na ingerência da CTL local, somam-se 30 situações reivindicatórias no
município. Ainda que esses dados sejam inconstantes – havendo registros de demandas

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classificadas pela FUNAI como “antigas”, com mais de 20 anos de espera por qualificação da
demanda, enquanto há registros recentes datados de abril de 2019 – eles revelam a problemática
da terra vinculada à temática da garantia de acesso aos direitos e a incidência de um conjunto
de violações aqueles já garantidos (CIMI, 2019).

Comunidade do Porto Praia de Baixo

Para compreendermos esse quadro de situações reivindicatórias, escolhemos uma para


conhecer e contextualizar nessa pesquisa, a Comunidade do Porto Praia de Baixo. Desde 1990,
seus moradores vêm organizando-se como comunidade indígena, oficializando sua demanda à
FUNAI em 2005. Sua demanda consta no registro na FUNAI em Brasília à espera de
qualificação para averiguar as condições para a identificação e reconhecimento, seguindo os
critérios do Artigo 231 da Constituição Federal, que define os quesitos jurídicos do conceito
de Terra Indígena.

Apesar de sua demanda territorial ser datada de 2005, através das narrativas orais de
seus moradores, sabemos que a comunidade possui um histórico de 30 anos em busca da
garantia de direitos em relação à terra. Nela habita um povo que almeja que sua cultura seja
respeitada em todos os aspectos: território, educação, saúde, economia. Com isso, buscam a
garantia de condições mais propícias para a sua reprodução física, econômica e cultural.
A terra indígena reivindicada por eles corresponde a uma área de aproximadamente
3.021 hectares e sua população corresponde a um total de quatrocentas pessoas, localizada à
margem direita do rio Solimões, cuja maioria identifica-se como Kokama, havendo alguns
poucos Ticunas. Desse modo, é notório que o processo de demanda antecede o pedido
formalizado à FUNAI, tratando-se de um reconhecimento de direitos territoriais e identitários
que progressivamente é elaborado pela comunidade até culminar na reivindicação (CREVELS,
2019).
Crevels (2019) descreve que a formação da territorialidade de Porto Praia resulta de
diversos deslocamentos rio abaixo, comumente empreendida por povos indígenas ao longo do
rio Solimões no decorrer de todo século XX. Os moradores do Porto Praia de Baixo são

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oriundos do Alto Solimões (Peru, Colômbia e Brasil), onde o começo do processo de extração
da borracha trouxe outras formas de pressão sobre a vida indígena. Já desestruturados pela
colonização e escravização, os povos indígenas passaram a ser ameaçados pelos seringueiros e
castanheiros que ocupavam áreas cada vez mais extensas em busca de recursos naturais para
explorarem nas feitorias dos patrões (Arquivo do CIMI, 2017). Em decorrência desses eventos
chamados de “correrias” e “descimentos” forçados (PORRO, 1995) existe uma inconstância
nas formas de habitar dos núcleos indígenas, culminando nos processos continuados de
territorialização em distintos assentamentos. Desse modo, mais recentemente, recomeça um
movimento continuado de migração rumo ao Médio Solimões, como já haviam realizado os
antigos grupos Miranha relatados por Faulhaber, em busca de melhorias de vida,
principalmente, dos Kokama peruanos e de coletivos Kambeba (Arquivos do CIMI, 2017).
A reivindicação da terra por moradores de Porto Praia de Baixo também se dá pela
questão de conflitos que existem nessa área. Os dilemas que estão narrados nos relatórios do
CIMI são: a utilização da Ilha do Machado (um ilha em frente da comunidade), na qual há
posseiros; invasões para a extração de areia da praia; e a presença de sobreposição de títulos
fundiários que acirra as disputas entre os diferentes atores locais. Essas questões, em conjunto,
reforçam o desejo deles de continuarem com as suas reivindicações. Um dos moradores narra
que o sustento e subsistência da aldeia advém das práticas de extração de castanha, da produção
das roças e da pesca nos lagos da Ilha e, ao tentarem proteger seu território, pouca legitimidade
lhes é atribuída pela falta de “uma placa dizendo que a terra é demarcada, que não pode ser
invadida” (Arquivo do CIMI, 2017).
A fala dessa liderança e antigo morador da aldeia nos permite observar que o
apagamento histórico produzido desde os tempos coloniais conduzem na atualidade esse
quadro de precarização e marginalização dos povos ameríndios, de seus direitos e territórios.
A história de luta de Porto Praia mostra elementos importantes, portanto, para conhecermos e
analisarmos os contextos constitutivos dos fenômenos políticos e sociais subjacentes as tantas
“novas” demandas territoriais no município e região. Eles, como os demais povos locais,
sofreram com várias violações, sendo uma delas o apagamento de suas identidades da História
de formação e ocupação do município, transformando-se em atores residuais, associados às

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imagens do passado e sobre os quais não valeria lançar luz sobre sua historicidade, restando
sua participação como parte mais baixa na estrutura social.
Tal visão etnocêntrica, que marcara as narrativas coloniais, perdura e age perversamente
contra a população indígena local, impulsionando-os nas formas de resistências, cujas ações
políticas mais potentes residem precisamente na luta por territórios e na produção de
legitimidades relacionadas com as políticas diferenciadas as quais têm, desde 1988, direitos
garantidos.

Considerações finais

Um fato que não pode ser negado é que a exploração da região amazônica foi um evento
histórico que ocasionou a modificação do espaço e a diminuição dos povos indígenas nesse
território, ocorrendo também o desaparecimento de algumas etnias que faziam da Amazônia a
sua casa.

Através de documentos e literatura regional e local, percebeu-se que a presença de


povos indígenas no território hoje conhecido como Tefé é notória. Ela perpassa no tempo em
que região estava sendo formada e tendo o seu mapa político construído, mas com o avanço da
civilização esses sujeitos indígenas se tornariam cada vez menos visíveis aos olhos da
sociedade e suas políticas.

De todos os povos indígenas que existiam no território, hoje apenas poucos indivíduos
existem e continuam mantendo a sua cultura, apesar de que alguns desses sujeitos são
classificados como caboclo, termo complexo que, segundo Lima (2009), é utilizado na região
amazonense brasileira como uma categoria de classificação social. E esse termo surge a partir
de políticas adotadas durante a colonização desses sujeitos.

A região do Médio Solimões apresenta muitas reivindicações de TI e possui muitas


terras reconhecidas pela FUNAI, mas que na cidade de Tefé apenas uma TI é reconhecida por
essa instituição, a área indígena da Barreira da Missão que teve sua reivindicação homologada
no ano de 1991.

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Uma dessas reivindicações parte da Comunidade do Porto Praia de Baixo localizada no


município de Tefé, à margem direita do Rio Solimões. Desde a década de 1980, a comunidade
se organiza para buscar os seus direitos e, no ano de 2005, enviaram a demanda por demarcação
dessa terra. Essa reivindicação se dá por questões de afirmação étnica e porque existem
conflitos no local (COSTA, 2019). Logo percebemos que esses povos ainda enfrentam
dificuldades e que estão constantemente em luta.

Referências

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EXPANSÃO COLONIAL PARA O BAIXO AMAZONAS: ATUAÇÃO DA


FAMÍLIA MOTA (1684 –1740)

VITÓRIA MASCARENHAS DE JESUS


Ufopa, Graduanda
vitoria99134@gmail.com

Resumo
O presente trabalho analisa a atuação de particulares no avanço da fronteira para o Baixo
Amazonas colonial. Trata-se de uma região estratégica, para a qual a Coroa portuguesa
dispunha de poucos recursos para a efetivação da colonização do espaço ameaçados por
franceses e holandeses. Verifica-se, especificamente, a atuação da família Mota a partir da
construção das fortificações do Tapajós, Parû e Pauxis, no período de 1684 a 1740. Os acordos
entre Francisco da Mota e a Coroa resultou em diversas mercês que a família acumulou em
postos, terras e títulos e, sobretudo, na expansão lusa para a região. A partir da análise de
diversos documentos, conclui-se que a região do Baixo Amazonas se inseria nas políticas de
Portugal, quanto a proteção e defesa do território e por isso, muito sujeitos visualizavam na
região um meio de ascender como nobreza adquirindo mercês, em forma de títulos, cargos e
posses, objetivando a concretização de interesses pessoais.
Palavras-chave: família Mota; defesa; Amazônia colonial

Introdução

A construção de fortalezas constituiu um mecanismo central da expansão portuguesa


para a Amazônia desde o século XVII. Entendida como sertão, a região do Baixo Amazonas,
também foi pontilhada pelas fortificações portuguesas, tendo em vista o controle e o domínio
lusitano do território por completo.

Nesse sentido, para o melhor embasamento da análise, tem-se a utilização de trabalhos


como o de Joel Santos Dias (2016), ao refletir sobre o interesse de outros países na região
Norte, de Wania Alexandrino Viana (2019), dada as especificidades das construções de
fortificações na Amazônia, de Arthur Cézar Ferreira Reis (1982), a partir do estado em que se

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

encontravam os espaços militarizados na capitania do Pará, sob ótica do engenheiro Pedro


Carneiro, o artigo de Roseane Norat e Marcondes Costa (2017) na abordagem das fortificações
como vetores de ocupação e defesa da fronteira frente ao rio, o artigo de Nuno Monteiro (1997)
sobre a composição da nobreza na colônia portuguesa, o trabalho de Luciene Maria Pires
Pereira, em decorrência da estruturação da colonização na América portuguesa e por fim, os
trabalhos de Leonardo Kelmer Mathias (2006), que auxilia na conceituação da prática de mercê
fornecida pela Coroa portuguesa ao conferir a sujeitos títulos e cargos militares, em troca da
prestação de serviços e o de Maria Fernanda Bicalho (2005), ao analisar o conceito de mercê
como forma de sustentação das políticas ibéricas na Amazônia colonial. Dentre os documentos
analisados, têm-se relatórios, cartas e alvarás, referentes ao Arquivo Nacional da Torre do
Tombo e ao Arquivo Histórico Ultramarino.

Assim, no ano de 1684, em carta ao rei, Francisco da Mota se colocava à disposição da


Coroa portuguesa para cumprimento de atividades de interesses coloniais. Entre elas, Mota se
encarregava, com recursos próprios, da construção de quatro fortificações no rio Amazonas,
dentro do período de quatro anos. (Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Registo Geral de
Mercês, Mercês de D. Pedro II, liv. 1, f.51.)

Incentivados pela Coroa portuguesa, os serviços prestados por particulares ajustavam-


se à necessidade de conquista e expansão do território. A falta de recursos humanos e
econômicos do império português no processo de colonização, o fez adotar diferentes
mecanismos na colônia buscando estratégias diversificadas para o domínio do vasto território.
A compreensão dessas estratégias para expansão, tanto de defesa visualizada nas fortificações,
como em formas de acordos da Coroa portuguesa com a família Mota é o objetivo do trabalho
em questão.

Fortificações no Baixo Amazonas Colonial e a família Mota

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Posicionadas em locais estratégicos e na margem dos principais rios, as fortificações da


Amazônia colonial assinalavam a presença portuguesa na região, e o seu propósito defensivo.
Configuravam-se como espaços para impedir a presença de franceses, holandeses e ingleses na
região que mantinham contatos com grupos indígenas desde meados do século XVII.

Vale ressaltar que alguns desses países, como Holanda e Inglaterra também
estabeleceram fortificações na Amazônia e os portugueses sabiam disso. Conforme Joel Santos
Dias menciona “Esses pequenos núcleos fortificados eram usados pelos invasores para o
reconhecimento das terras e o contato com os índios dispersos em aldeias nas margens dos rios
ou no interior do sertão." (DIAS, 2016, p. 207). Um exemplo disso, é o avanço dos holandeses
na região, em 1626, que em função da Companhia das Índias Ocidentais, haviam montado uma
casa forte, na altura do Gurupá, outra posição no Xingu e uma terceira, nas cercanias do Pará”
(REIS, 1984). Isso resulta no interesse holandês que através de companhias e projetos fez
investimentos na Amazônia, movidos pelo que Arthur Cezar Ferreira Reis pontua de “cobiça
mercantil”. (REIS, 1982).

Atentos à conquista da Amazônia, com o pleno conhecimento dos interesses de outros


países na região, a Coroa portuguesa criou mecanismos para expandir a fronteira e manter o
monopólio do território. Sobre a questão, é importante pontuar que:
[...] As bases sobre as quais se estruturou essa colonização estavam inseridas
no contexto da expansão comercial europeia, o que significa dizer que a
colonização do território brasileiro foi planejada dentro de um projeto de
ampliação do poderio comercial lusitano. Fazia-se necessário fazer uma
exploração econômica que possibilitasse um retorno a curto prazo.
(PEREIRA, 2011, p. 2)
Para além de ações ligadas ao povoamento da região, por meio de projetos
expansionistas, como o sistema de capitania privadas e as cartas de doações de sesmarias, tem-
se destaque formas de defesa da capitania. Erguidas em partes significativas do território
colonial português, as fortificações se concebiam como um elemento de proteção e garantia
para impedir a entrada de invasores, assegurar a anexação do território ao império lusitano e
além disso, auxiliar na tentativa de exploração econômica da região unicamente pela Coroa
portuguesa.

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Nestes termos, entende-se a necessidade da construção de fortificações no sertão do


Baixo Amazonas, visto ser uma região que delimita fronteira, ao ser banhada pelos rios
Amazonas e Tapajós, que possuem uma extensa bacia hidrográfica, sendo os meios pelos quais
se tinha de acesso à região. Em virtude disso, as fortalezas eram estrategicamente posicionadas
próximas a esses principais rios e afluentes, em geral, que tinham importância para o comércio
e proteção das posses de Portugal.

Na densa floresta e às margens do Rio Amazonas e seus principais afluentes,


encontram-se a maior concentração de suas fortificações. Estas, além de
atuarem como principais vetores de ocupação regional desempenharam
importante papel na fixação das fronteiras e na própria contenção das
investidas de invasores, pois além dos portugueses, ingleses, franceses,
holandeses e irlandeses participaram das investidas de ocupação e estabeleceram, em
parte por meio das diversas estruturas fortificadas, permanentes ou transitórias sendo
estas investidas posteriormente extinguidas pelos portugueses. (NORAT; COSTA,
2017, p.03)
No entanto, é necessário pontuar que Portugal não dispunha de muitos recursos para o
processo de colonização, principalmente no que diz respeito a essas áreas mais afastadas dos
pontos centrais da capitania. Por obter recursos materiais de exploração, esses sertões
precisavam ser ocupados, pela presença lusa. Isso resultou na abertura de um campo amplo de
possibilidades para prestação de serviços de indivíduos em troca de diversos benefícios,
funcionando como auxílio ao incentivo à migração. Ao fornecer, por sua vez, chances de
ascensão na escala hierárquica da sociedade, por meio da doação de títulos e posses, a Coroa
portuguesa ampliava seu campo de atuação, anexando novos territórios ao império (BICALHO,
2005). Assim, a relação estabelecida, por meio dos tratos, entre a figura do rei e os colonos, era
baseada no sistema de mercês.
Com a expansão e a conquista de novos territórios, a Coroa pôde atribuir
ofícios e cargos civis e militares; conceder privilégios a indivíduos e grupos;
e dispor de novos rendimentos com base nos quais se distribuíam pensões. (..)
Dentre os objetivos de tais conquistadores residia a vontade de aumentarem
seu cabedal material, simbólico e político, resultando em uma possibilidade
de serem revestido com o manto da nobreza e, por conseqüência, ascenderem
na hierarquia estamental, o que significava reforçar o exercício de suas
prerrogativas de mando. (MATHIAS, 2006. p. 26)

Somadas às dificuldades de conseguir ascender como nobreza em Portugal, diversos


indivíduos visualizavam na América portuguesa a oportunidade de conseguir riquezas e títulos

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(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

em formas de mercês. Nesse sentido, o caso da família Mota vinculada a prestação de serviços
no sertão é um dos exemplos é o enfoque do trabalho.

Em 1684, Francisco da Mota se comprometia com a construção de quatro fortificações


(Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Registro Geral de Mercês, Mercês de D. Pedro II, liv.
1, f.51), recebendo o cargo de governador de uma delas em forma de mercê real, segundo sua
própria escolha (REIS, 1984). Dentre elas, três se situavam no Baixo Amazonas, a de Parû,
Pauxis e Tapajós, responsáveis pela defesa daquele sertão, posicionadas em frente ao rio, como
destacado no mapa abaixo:

Figura 01: Fortificações do Baixo Amazonas. Adaptado de VIANA,2019.

Assim, como um dos responsáveis pelo avanço da fronteira na região, através das
fortificações, no mesmo ano, por meio de alvará, Francisco da Mota solicitava a concessão da
promessa do foro de fidalgo feita pelo rei, na justificativa de ter os requisitos necessários para
nobreza, estando o governador do estado e o engenheiro satisfeitos com seu desempenho
(Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Pedro P, liv.
1, número de ordem 37, f.376v). Nesses termos, ressaltam-se as formas que o sistema de Antigo
Regime adquiriu na Amazônia colonial, a partir da própria ampliação na composição social da
nobreza. Ser nobre, nesse momento, incluía características mais diversas, a partir da inclusão
de uma diversidade de funções distintas das realizadas pelos nobres tradicionais (MONTEIRO,
1997).

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Além de solicitar a construção das fortificações, em consulta do Conselho ultramarino


ao rei, em 1685, tem-se o relato de sua ação no Estado do Maranhão em uma viagem realizada
com Gomes Freire de Andrade, sendo Francisco da Mota o responsável junto com Jacinto de
Moraes Rego por trazer informações do estado em que se encontravam as terras em questão, o
que demonstra sua prestação de serviços na capitania, para além da construção de fortificações
(Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos do Maranhão, Cx.6, D.731).

Em 1688, o governador Artur de Sá e Meneses comunica ao rei o falecimento de


Francisco da Mota (Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos Pará, Avulsos do Pará, cx. 3,
D.279). É interessante ressaltar que mesmo antes de seu falecimento, o seu filho Manoel da
Mota de Siqueira, já aparece em alvará de 1684, como o indicado a assumir as mercês e
responsabilidades do pai, caso o pai venha a falecer sem cumprir o que lhe foi ordenado
(Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Pedro P, liv.
1, número de ordem 37, f.376v).

Em carta régia de 1690, consta que ficando as obras imperfeitas por seu pai, Manoel da
Mota de Siqueira continuou os serviços a partir de 17 de agosto de 1688 (Arquivo Histórico
Ultramarino, cód. 268, cx. 04, f. 0370). No entanto, ainda na carta de falecimento de Francisco
da Mota, como novo superintendente, Manoel da Mota de Siqueira, nas palavras do governador
do Estado, parecia ser incapaz de dar cabo as obras não terminadas por seu pai (Arquivo
Histórico Ultramarino, Avulsos do Pará, Cx.3, D.279). Em outubro de 1688, Arthur de Sá
Meneses, envia o capitão-mor Antônio de Albuquerque para verificar o estado que as
fortificações se encontravam se deparando com “os alicerces das fortalezas abertos”, resultando
em obras inacabadas (Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos Maranhão, Cx. 7, D.803).

Mesmo sendo relatado sua incapacidade de atuação frente às obras inacabadas por seu
pai no sertão, em 1695, no relatório do engenheiro da capitania do Pará, Pedro Carneiro,
Manoel da Mota ainda aparece como responsável pelas fortificações do sertão do Baixo
Amazonas colonial “segue-se a fortaleza do Tapajós, uma das obrigações de Manoel da Mota
de Siqueira” (REIS, 1984, p. 225).

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

Um aspecto a ser considerado, é a especificidade da região quanto a essas construções.


Ainda em relatório, Pedro Carneiro enfatiza a necessidade de reforma do forte do Parú “pelas
contínuas chuvas daquelas terras.” (REIS, 1984, p. 225). Em sua tese, Viana aponta a
Amazônia como um verdadeiro “Laboratório de práticas”, onde se tem a execução de teorias a
partir dos problemas encontrados, como as chuvas, o inverno e as distâncias, fatores que
dificultavam a construção das fortificações (VIANA, 2019).

Somados a isso, a escolha do material era de extrema importância, pois nesse caso, o
engenheiro se queixa do fato de Manoel da Mota ter usado pau a pique, podendo ter utilizado
pedra e barro, e por isso em breve tempo, a fortificação se encontrava em ruínas (REIS, 1984).

Por meio desses fatores, tem-se o inacabamento das obras naquele sertão, o que por
vezes podia indicar a fragilidade da defesa lusitana frente ao interesse das demais potências
europeias. A exemplo, tem-se a tomada da fortaleza do Parú, em 1697, pelos franceses
(BETENDORF, 1920). O que foi acordado entre a Coroa e os particulares para ser 04 anos, em
1684, aparece concretizado somente em 1716, em alvará de Manoel da Mota de Siqueira ao
comunicar o cumprimento do serviço prestado das obras, “as quais se acham em sua última
perfeição”, acompanhando a solicitação de despacho da mesma mercê que foi feita ao seu pai,
para o governo da fortaleza do Tapajós.

No ano seguinte, Manoel da Mota de Siqueira faz a solicitação do título de foro de


fidalgo, que também foi solicitado por seu pai, com a justificativa de ter continuado o serviço
inacabado por Francisco da Mota (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registo Geral de
Mercês, Mercês de D. João V, liv. 8, f.243). Assim, pelo que consta no conselho ultramarino,
Manoel da Mota de Siqueira ocupou o posto de capitão da fortaleza do Tapajós até o seu
falecimento, sendo aberto outro edital para o cargo, apenas em 1745. (Arquivo Histórico
Ultramarino, Avulsos Pará, Cx. 28, D. 2623)

Nesse contexto, um aspecto importante a frisar, é que ao se estabelecerem na colônia,


esses sujeitos buscavam adquirir a manutenção de cargos para os seus familiares. A indicação
de Manoel da Mota de Siqueira para ser o superintendente das fortificações do Baixo
Amazonas, antes do falecimento do pai, se configura em um indício da questão. As

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documentações enviadas ao rei, referentes a pedidos de cargos e títulos, sempre pontuam a sua
filiação, com o objetivo de obter alguma influência nos pedidos solicitados.

Situação não muito diferente é notória em carta de sesmaria de Caetano Jozeph Castelo
que ao realizar uma solicitação de sesmaria próxima ao rio Mojú, para cultivar cacau, menciona
o fato de ser casado “com uma filha do governador da fortaleza dos Tapajós, Manoel da Motta
de Siqueira.” (ITERPA. Carta de Sesmaria. Livro: 01, documento: 11, folha: 11 v).

Assim, a atuação da família Mota atrelada a prestação de serviços no Baixo Amazonas


colonial, estava ligada ao recebimento de mercês, em formas de títulos, cargos e posses.
Ressalta-se a inserção da região, como parte do império português ao sistema de Antigo
Regime que sofreu algumas adaptações devido, como já aqui mencionado, a escassez de
recursos materiais e humanas de Portugal para colonizar o território.

Logo, a prestação de serviços era uma característica do regime na colônia e o meio pelo
qual se tinha acesso a mercês. Pontuada nos estudos de Maria Fernanda Bicalho essas formas
de remuneração, estavam de acordo com as práticas do Antigo Regime. “O imperativo do dar
criava uma cadeia de obrigações recíprocas”, baseada na retribuição de serviços prestados,
doação de mercês em forma de posses, títulos e cargos, status e honra, e a possibilidade de se
desempenhar mais e maiores serviços para o rei (2005).

Ao solicitarem títulos, por meio da prestação de serviços, eram informados certos


dados sobre ocupação profissional, descendência e serviços prestados à coroa pelos familiares,
notáveis na solicitação de foro de fidalgo de Manoel da Mota de Siqueira. Nesses termos, a
coroa realizava a renovação de acordos, reforçando a permanência de famílias em sua forma
hereditária na ocupação de cargos a serem nomeados.

Conclusão

A região do Baixo Amazonas, descrita nas fontes como sertão, se caracterizou como
importante fronteira a ser conquistada pelos portugueses. Com interferência de outras nações
também interessadas nas potencialidades da região, a Coroa precisaria de uma solução prática

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e a vinda para a colônia de sujeitos das mais diversas proveniências sociais ocuparam espaços
de interesse, sobretudo defesa e povoamento.

Ao se instalarem na colônia, a Coroa portuguesa forneceu a esses indivíduos a ocupação


de cargos locais decisivos para o bom funcionamento do projeto colonial. Mais do que isso,
proporcionou também uma relativa autonomia de exercício, por conta da distância geográfica.
Dentre esses sujeitos, Francisco da Mota e Manoel da Mota de Siqueira ganham destaque, pois
a Coroa os delegou o empreendimento de uma linha de defesa, através de fortificações, em
todo o Baixo Amazonas, evidenciando a importância estratégica que a região possuía. A partir
da prestação de serviços, esses indivíduos conquistaram títulos de fidalguia, cargos importantes
nas fortificações e posses. Tanto que em relatório, Pedro Carneiro menciona que Manoel da
Mota, tinha muito mais a ganhar com a coroa do que servi-la. (REIS, 1984).

Essa dinâmica era responsável pela consolidação de laços, através do estabelecimento


de compromissos da Coroa para com os vassalos que tinham como obrigação o empenho no
cumprimento dos objetivos da expansão ultramarina. (GOUVEA, 2001). Os acordos
apresentavam ganhos para ambos os lados, uma vez que se tem a ocupação da região e a
possibilidade por particulares de ascenderem na hierarquia imposta pelo Antigo Regime.

Conclui-se que a região do Baixo Amazonas se inseria nas políticas de Portugal, quanto
a proteção e defesa do território e por isso, muito sujeitos visualizavam na região um meio de
ascender como nobreza adquirindo mercês, em forma de títulos, cargos e posses, objetivando
a concretização de interesses pessoais.

Referências
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, Mercês e poder local: A nobreza da terra na América
portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack Brasiliense n° 02, novembro de 2005.
DIAS, Joel Santos. “’ Confuso e intricado labirinto’. Fronteira, território e poder na Ilha de Joanes
(séculos XVII e XVIII)”. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Pará (UFPA) - Programa de
Pós-Graduação em História-PPHIST-, Belém, 2016.
GOUVEA, Maria de Fátima. Poder político e administração na formação do complexo atlântico
portugûes (1645-1808). In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de
Fátima S. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI –
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 285-315.

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Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
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MATHIAS, Leonardo Kelmer. O sistema de concessão de mercê como prática governativa no alvorecer
da sociedade mineira setecentista: o caso da (re)conquista da praça fluminense em 1711. Revista de
História. João Pessoa, jan./ jun. 2006.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo
Regime. Análise Social, vol. xxxii (141), 1997 (2. °), 335-368.
NORAT, Roseane & COSTA, Marcondes. As fortificações da Amazônia: desafios e perspectivas para
sua preservação. 1º Simpósio Cientifico ICOMOS Brasil, Belo Horizonte, 2017.
PEREIRA, Luciene Maria Pires. Reflexões acerca da distribuição de terras no período colonial
brasileiro: o caso das sesmarias. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo,
julho, 2011.
REIS, Arthur Cezar Ferreira. A Amazônia e a cobiça internacional. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira; Manaus: Superintendência da Zona Franca de Manaus, 1982. (Coleção Retratos do Brasil,
v. 161).
REIS, Arthur Cézar Ferreira. “As fortificações da Amazônia no período colonial”. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Rio de Janeiro, n. 344, Julho/Setembro, 1984.
VIANA, Wânia alexandrino. “Gente de Guerra, Fronteira e Sertão: Índios e soldados na capitania do
Pará (Primeira metade do século XVIII)”. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação
em História-PPHIST- Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.

Fontes
⚫ “Carta Régia ao Governador do Maranhão, sobre o pedido de Manoel da Motta” 09/12/1690.
Arquivo Histórico Ultramarino, cód. 268, cx. 04, f. 0370.
⚫ Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos do Maranhão, Cx.6, D.731
⚫ Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos Maranhão, Cx. 7, D.803
⚫ Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos Pará, Avulsos do Pará, Cx.3, D.279
⚫ Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos Pará, Cx. 28, D. 2623
⚫ Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Pedro II, liv. 1,
f.51.
⚫ Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Pedro P, liv. 1,
número de ordem 37, f.376v.
⚫ BETENDORF, João Felippe. Chronica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no Estado
do Maranhão. Revista do Instituto Historico e Geographico Brazileiro, Tomo LXXII. Rio de
Janeiro. Parte I. Ano: 1910.
⚫ ITERPA. Carta de Sesmaria. Livro: 01, documento: 11, folha: 11 v.

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MANAUS EM SUA METAMORFOSE DA MODERNIDADE E SEUS


EFEITOS: DÉCADA DE 1930

WANDERLENE DE FREITAS SOUZA BARROS


UFAM, Mestra.
wanda.sc.barros@gmail.com

Resumo

Das experiências e transformações vividas, podemos atribuir a Manaus a capacidade de se


reafirmar a cada adversidade de maneira estratégica em prol da própria sobrevivência. A
característica agregadora e desafiadora desse espaço “exótico” propõe uma verdadeira
metamorfose amalgamada dentro dessa Babilônia cultural. A uma cidade cosmopolita, que
enfrentou a concorrência do sistema de Plantation da Malásia, mas ainda assim muniu-se de
outros meios, além do extrativismo, para sustentar a economia tão ameaçada naquele momento.
A migração reversa inchou Manaus e diante das perspectivas econômicas, trabalhadores,
governo e empresariado utilizaram-se de novas estratégias de ação, reafirmando outras práticas
do cotidiano. A interferência Federal tentou garantir a política Vargas e não a de
desenvolvimento na região. Concessionárias mantiveram-se, porém não com a qualidade
necessária para atender ao consumidor; dentre elas está a Manaós Tramways – com os serviços
de tração, força e luz. Seu bonde, aparato responsável por boa parte da mobilidade urbana e
transformador da paisagem citadina, atendeu como meio locomotor no transporte de cargas e
passageiros. E nessas trajetórias os motorneiros de bondes faziam parte da sociologia urbana,
com suas trajetórias imbricadas nos espaços pelo contato direto com a população e a paisagem
do lugar.

Palavras-chave: cidade, bonde, trabalhadores.

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A cidade entre paradas e avanços por novas estratégias de sobrevivência

A cidade é o espaço em que a história tem a versatilidade de se apresentar diante de


várias perspectivas. É o lugar propício para uma gama de relações, entre conflitos, resistências,
dominação, igualdades, diferenças e outros aspectos que se transforma constantemente sob os
olhares e conjecturas que se formam. A tendência para novas abordagens traz vida e voz a
sujeitos que por muito tempo foram excluídos da história que, ao se reconstruir, mostra novos
atores sociais. Parafraseando Marc Bloch “O passado é, por definição, um dado que nada mais
o modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente
se transforma se aperfeiçoa” (BLOCH, 2001, p.75). A cidade, portanto, é o pano de fundo em
que os efeitos da mão humana, entre ações e reações, continuidades e rupturas, vai se
modificando entre paisagens e modos de viver.

A cidade e os bondes

Diante da modernização da cidade, em todo um projeto de urbanização, despontaram


de dentro da floresta palacetes suntuosos, lojas, passeios, teatros, praças, porto, entre outros. O
olhar dos viajantes detalhou em minúcias toda uma rotina do lugar e formas de viver,
demonstrando que naquela época a cidade ainda se apresentava como o que havia de moderno
e promissor.

A cidade mudou rapidamente de “rosto” e de hábitos, como se fosse possível apagar


tradições e costumes já existentes. Porém, com o passar do tempo, diante das crises seguidas
que assolaram a urbe, o desmonte econômico põe em risco o desenvolvimento da mesma
trazendo à tona problemas como: a migração reversa dos seringais, a queda no mercado
exportador, a falta de novos investimentos estrangeiros e a desídia do governo Federal - apesar
da Intervenção; Manaus, com parcos recursos, passa a enfrentar problemas econômicos, sociais
e estruturais. Thiago de Mello reafirma o novo panorama da cidade com a queda econômica ao
relatar que:

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Era também o fim da grande vida. Do dia para a noite, se foram acabando o
luxo, as ostentações, os esbanjamentos e as opulências sustentadas pelo
trabalho praticamente escravo do caboclo seringueiro lá nas brenhas da selva.
Cessou bruscamente a construção dos grandes sobrados portugueses, dos
palacetes afrancesados, dos edifícios públicos suntuosos. Não se mandou
mais buscar mármores e azulejos na Europa, ninguém acendia mais charutos
em cédulas estrangeiras. O enxoval das moças ricas deixou de vir de Paris.
Os navios ingleses, alemães e italianos começaram a escassear na entrada da
barra. Muitas grandes firmas exportadoras, de capital europeu, começaram a
pedir concordata (MELLO, 1984, p. 27).

A década de 1930 foi marcada por um processo “revolucionário” empreendido por


Vargas. O estado do Amazonas, devido ao isolamento geográfico, não teve participação direta
nesse processo, porém aliou-se a obediência do poder como membro da Federação brasileira.
Após a efetiva consolidação do movimento “revolucionário” a tomada de poder ocorreu de
maneira ordeira, com direito a festejo. A companhia inglesa Manaós Tramways colaborou com
as comemorações populares de ascensão do governo, tudo como afirma Silva “dentro do
espírito tradicional dos festejos da época, com cessão de dois bondes especiais para os alunos
do colégio Dom Bosco e do Gymnasio Amazonense para passearem pela cidade erguendo vivas
ao movimento revolucionário [...]” (SILVA, 1995, p. 28). Era bem comum a disponibilidade
de carros da empresa Tramways para festejos e comemorações, sugerindo uma parceria com o
governo.
Álvaro Maia, político do Norte, inicia como primeiro interventor, sai após dissidência
política e retorna ao cargo por um bom tempo. Sua gestão aponta mais para ajustes estruturais
e saliento aqui uma parte de sua conclusão após o primeiro mandato, reconhecendo assim que
esteve sujeito a erros como qualquer um em sua gestão:

Estão expostos, com a precisa clareza os acontecimentos principaes da


administração revolucionaria. Todos erram, e é possível que também tenha
errado. Certo da consciência do meu erro, sou o primeiro a resgatá-lo porque
ao homem público falha completamente razão em imolar os direitos alheios
aos seus caprichos. (DIARIO OFICIAL, 1931, p.13).

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Amazonas - Trabalho, Direitos Sociais e Democracia no Brasil e na Amazônia. César
Augusto Bubolz Queirós; Francisca Deusa Sena da Costa; e Leandro Coelho de Aguiar
(Orgs.). - 1. ed. - Manaus: ANPUH -AM; Universidade Federal do Amazonas, 2020.

É importante destacar que após a Segunda Guerra (1939-1945) os serviços da


companhia inglesa decaíram tanto que, em setembro de 1947, o Presidente Getúlio Vargas,
através de um decreto, autoriza a intervenção Federal dentro da “Manaós Tramways” no
intuito de normalizar os serviços. Suspensa em junho de 1947, sem condições de uma
reestruturação, a companhia já se encontrava cada dia mais decadente (STIEL, 1978, p. 198).
A tão sonhada ideologia da “Ordem e Progresso” procura impor novas formas de
dominação reformulando seu Código de postura municipal (SAMPAIO, 2016, 406 p.), para os
que pudessem financeiramente permanecer no centro da cidade, certamente não abarcava o
poder aquisitivo das classes menos abastadas. A área central era seu cartão de visitas, devendo
ser apresentado como o lugar das elites, das movimentações financeiras e o espaço da cultura
importada. Sendo assim, Manaus cresceu abrindo caminhos entre os igarapés e seu
desconforme espaço geográfico. Para a grande maioria, seja dos antigos moradores e os recém-
chegados dos seringais falidos, ficava como única opção os bairros periféricos que foram
crescendo, apesar da pouca estrutura. O discurso sanitário dentro das cidades era uma das
justificativas para o distanciamento das classes, já que um espaço mais higiênico e de
desinfecção das moradias afastava a possibilidade das doenças e das epidemias nas áreas
centrais. Samuel Benchimol, ao analisar os espaços de moradia, afirma que:

A riqueza, concentrada nas mãos do governo e de pessoas ricas, estrangeiras


ou nativas, serve para traçar a linha divisória entre a área central e os
subúrbios. Quando os melhoramentos públicos são feitos é natural que eles
se encaminhem para a área ocupada pela classe dominante. As ruas são
pavimentadas, os trilhos dos bondes são assentados e alinhas telefônicas são
estendidas. Assim a área central ficou equipada com as conveniências
urbanas, as quais não existem na periferia suburbana. Quem possui recursos
para escolher, opta por residir no centro. Além disso, ela é uma área de
tradição. (BENCHIMOL, 1977, p. 74).

Os bondes chegaram e as pessoas, acostumadas a transitar livres pelas ruas, demoraram


a se adaptar a essa nova dinâmica de tráfego urbano, que foi se adensando junto aos veículos
já existentes. Deusa Costa comunga com essa afirmação quando diz que “Os serviços de

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transportes contavam – além das carroças, caminhões e carros de aluguel movimentados por
tração animal – com os bondes elétricos da modernidade” (COSTA, 2014, p. 45). Em uma nova
configuração de moradia os trabalhadores se deslocavam para o ponto central, no intuito de
ocupar a função diária das mais diversas formas. Visto que o bonde não estava ao alcance de
todos, por questões financeiras ou topográficas, os moradores dos subúrbios poderiam ir a pé,
a cavalo, de catraia, entre outras opções. O guia turístico e comercial, criado por Edesio de
Freitas, descreve as dez linhas existentes no período:

SERVIÇOS ELETRICOS EM MANAUS


[...] pois a companhia de luz e bondes de Manaus, mantém em trafego (10)
linhas para diferentes ramais, os quais percorrem a urbs em todas as suas
direções, assim distribuídas : Saudade, com um percurso de 2.717 metros;
Remedios , com 2.484; Fabrica de Cerveja, com 2.800; Joaquim Nabuco-
Nazareth, com 3.139;Cachoeirinha, com 3.826; Avenida Circular e
Cachoeirinha- Circular que dão a volta em quase toda a cidade, com 10.304;
Vila Municipal, com 4.477; Bilhares, com 4.489 e finalmente Flores, para
esse bairro, com o percurso de 9.337( FREITAS, 1932, p. 35).

O elétrico veio como um dos protagonistas que se incorporou na urbe a partir dos
aparatos tecnológicos que invadem a cidade – a energia elétrica foi um ganho para a cidade em
termos de dinâmica, sendo apontada como um dos maiores inventos de todos os tempos.
Realmente, era o que tinha de mais moderno para a época, conduzindo a unanimidade da
população sem distinção de classe; apto tanto para o deslocamento para o trabalho, quanto para
o transporte de gêneros alimentícios e/ou bagagens, assim como para os passeios. Jefferson
Peres informa como eram os bondes de Manaus:

Dali partiam todos os bondes. Sem portas nem janelas, inteiramente abertos
de ambos os lados, com sanefas de lona corrediças, baixadas apenas como
proteção contra o sol e a chuva, eram carros ecológicos, claros, ventilados,
próprios para o nosso clima, além da vantagem obvia de não causarem
poluição. Servido por um motorneiro, um cobrador e um fiscal, devidamente
uniformizados, deslocando-se com rapidez num trânsito que não conhecia
congestionamento, esses veículos forneciam desconforto apenas quando
superlotados nas horas de rush. Mas quando semivazios, a viagem era
realmente um prazer. (PERES, 1984, p. 24).

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E nesse emaranhado do progresso, a cidade modificou-se testemunhando o espaço de


liberdade das ruas dividir-se com o trafegar dos meios de transporte, principalmente os elétricos
que, muitas vezes, podiam tornar-se uma arma fatal. Acidentes recorrentes foram dados a
registros em jornais, inquéritos policiais e processos criminais no decorrer dos anos de
funcionamento deste meio de locomoção. Os registros mais recorrentes eram de idosos,
crianças e os passageiros afoitos em chegar a determinado destino. Dentre os vários Recursos
Criminais constantes nos arquivos do IGHA, podemos citar um acidente devido à imprudência
da vítima, como segue:

[...] guiava este um bonde, ao qual se achava preso um outro, quando a vitima,
correndo atrás do veiculo em movimento, tentou tomar o que vinha na
frente[...] Não conseguindo apoiar-se a um dos balaústres, que pegara,
escorregou e caiu ao chão, com as pernas sobre os trilhos, de maneira que
foram elas esmagadas pelas rodas do segundo carro[...](R.C. 2120, 1935,
p.181-182).

O discurso de exclusão se solidifica para aqueles que, por força do código de postura,
se afastaram do centro da cidade. Este caminho férreo seria mais um modo coletivo de
locomoção para os trabalhadores, já que estariam morando distante. E ainda o que dizia ser um
meio de locomoção rápido, cômodo e barato, a partir da efetiva atuação deste transporte, passa
a gerar algumas controvérsias. Desta feita, o bonde entra na cidade alterando seu espaço físico
e os costumes da urbe, abarcando uma boa extensão na sua rota diária.

Os trabalhadores e seus modos de vida

Partindo de regramentos de como deveriam se estruturar as edificações da cidade, fica


claro diante de tantas exigências a exclusão dos trabalhadores menos abastados do que se
entendia como área central da urbe. Não só imputando multa para os descumpridores como
impedindo o direito à liberdade se a penalidade fosse a prisão. Partindo de leis que revelam
uma segregação velada, fica clara a separação de classes diante de uma estratégia política.
Henri Le Febvre aponta para este “sujeito” dentro de um resultado total das ações recorrentes,
mostrando a clareza da segregação como estratégia de classe no sentido político; pontua que

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para a classe operária, vítima da segregação, expulsa da cidade tradicional, privada da vida
urbana atual ou possível, este é um problema prático e político (LEFEBVRE, 2001, p. 104).
De forma mascarada, os cortiços mais conhecidos como estâncias perduravam e
resistiam às imposições do espaço citadino, com uma fachada que, de acordo com a arquitetura
vigente, se harmonizava com o restante das construções. Acontecia mais pelo reconhecimento
do poder público que via essas edificações “clandestinas” como um mal necessário. Mesmo
admitindo a insalubridade e as condições internas das edificações – com pequenos quartos sem
divisões, com cozinha e banheiro coletivos – a fiscalização sanitária hesitava em exterminá-los
por completo. As estâncias resistiram anos, volta e meia sendo fiscalizadas. A partir de um
jornal confirma-se a presença desses cortiços e a situação sanitária desses locais ainda na
década de 1930, que continuava a mesma, diante da necessária ação fiscal ao afirmar que “[...]
Acham-se, também, em preparação as notificações escriptas aos donos das estancias julgadas
fora dos preceitos hygienicos exigidos, cuja observância vae ser rigorosamente aplicada [...]”
(JORNAL DO COMERCIO, 1938, p. 01).
Um discurso utópico e contraditório que defendia a liberdade do cidadão, mas que
reservara para os segmentos populares áreas ainda não preparadas em sua estrutura para recebê-
los, os subúrbios. As transformações faziam a cidade estar sempre em movimento, não
permitindo que espaços degredados se tornassem ameaça ao lado estético da urbe, portanto se
fez necessário a moradia que valorizasse a estética do espaço. Como alternativa, e utilizando-
se de uma estratégia de resistência, alguns trabalhadores se tornaram muitas vezes inquilinos
na cidade, morando nas estâncias existentes. Consoante com essa reflexão, Deusa Costa afirma
que:

Foi na condição de inquilino que o trabalhador habitou no período urbano


manauara do fausto. Trabalhadores qualificados e autônomos que, mesmo
com dificuldades auferiam um salario mensal ou quinzenal como os
comerciários, gráficos, condutores de bonde, carroceiros, lavadeiras,
carregadores e estivadores, donos de pequenos estabelecimentos,etc. tinham
condições de aí permanecer. Mesmo vivendo em condições precárias, habitar
no centro era mais viável que morar, como inquilino em condições ainda
piores nas periferias distantes dos locais de trabalho e sem infraestrutura
urbana (COSTA, 2014, p. 136).

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Confirma-se a necessidade da moradia de alguns trabalhadores nas imediações do


centro, pela necessidade de cumprir o horário de trabalho, que para uns principiava no escuro
da madrugada, o que se aplica perfeitamente aos motorneiros, profissionais que levantavam
muito cedo para sair ainda nas primeiras horas da manhã até a garagem, localizada na avenida
Sete de setembro – centro, e iniciar sua jornada de atividade conduzindo outros trabalhadores
até a área central. Pesquisando, assim, em jornais, encontramos alguns indicativos que
apontavam para essa moradia dos motoristas no centro, perto da garagem. O trecho que se
encontra na página policial apresenta a localização da moradia do motorneiro de bonde:

[…]Trata-se de Ubirajara Fortes, solteiro, amazonense, de 28 annos de idade,


motorneiro 47 da Manaós Tramways, residente a rua Dr. Almino, 115[…](O
JORNAL, 1933).

Mesmo diante dos obstáculos criados pela classe dominante, no intuito de afastar os
“indesejáveis”, diante das construções e do novo planejamento urbano, que mudaria a paisagem
e proporcionaria um atrativo para a cidade, ainda assim, conseguimos encontrar esses sujeitos
marcando sua presença nas fontes que buscamos. A necessidade diante do trabalho, que
movimentava a cidade, proporcionou a alguns trabalhadores meios de resistir a essas objeções,
usufruindo dos espaços. O motorneiro identificado morava no centro, próximo ao seu local de
trabalho. Percebemos que este “não lugar” lhe permite mobilidade, mas numa docilidade aos
azares do tempo, para captar no vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que
utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder
proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia,
dita por Michel de Certeau. (CERTEAU, 1998, p. 100-101).
A partir de uma reflexão de Chalhoub, percebe-se que o capitalismo avança como um
símbolo de escravização e aprisionamento do trabalhador ao novo sistema, uma vez que “[...]
este homem livre – leia-se ‘livre’ da propriedade dos meios de produção, isto é, despossuído –
que será a figura essencial da formação do mercado capitalista de trabalho assalariado”
(CHALHOUB, 2001, p. 46). A saída recente de uma tradição escravocrata, a iminente mudança
nas relações de trabalho e dos modos de vida da urbe, mostrou que o século que se iniciou veio
incumbido de trazer um ajuste estratégico para manter um sistema econômico pujante e bem
delineado, mesmo que disso dependessem mudanças drásticas, principalmente no que se referia

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à ideologia do progresso, que associa a ideia do novo à civilização como referência da


modernidade. De acordo com Sidney Chalhoub:

Se não era mais viável acorrentar o produtor ao local de trabalho, ainda


restava amputar-lhe a possibilidade de não estar regularmente naquele lugar.
Daí o porquê, em nosso século, de a questão da manutenção da “ordem” ser
conhecida como algo pertencente ao poder público e suas instituições
especificas de controle – polícia, carteira de identidade, carteira de trabalho,
etc. Nenhum desses elementos estava no cerne da política de domínio dos
trabalhadores na escravidão [...] (CHALHOUB, 1990, p. 07).

Os motorneiros de bonde (PONTES, 2008, p. 74-75) são de uma categoria que entra
em cena em plena efervescência da cidade, que assim como outras capitais, se vê impregnada
por uma ideologia de modernidade, que se estende por décadas a partir da implantação da
República, mostrando novos ideais como diferencial. Apesar de assalariados, tinham um certo
status diante de outros trabalhadores, pela boa apresentação e porte. Em sua grande maioria
eram solteiros, de diferentes origens, e com uma qualificação profissional.

Considerações finais

A cidade de Manaus apesar de tantas oscilações econômicas não estava inerte no


momento de crise, mas sim se ornando de novas medidas para que desse prosseguimento a sua
dinâmica. A borracha decaiu, mas através de novos insumos que ascenderam como: castanha
do Pará e o beneficiamento de outros produtos, o comércio prosseguiu.

A concessionária inglesa, mesmo diante das oscilações econômicas do Estado, assumiu


os serviços na primeira década de XX, e ainda prestou os serviços de transporte por décadas,
quase todos administrados pelo americano Edward Bingham Kirk, homem bem conhecido e
participante da sociedade manauara. Lembrando que ao mesmo grupo pertencia à companhia
de navegação, serviços elétricos da cidade, concessionárias de carros, entre outros.

O bonde foi um protagonista que surgiu com a ideologia do progresso, mudando a


conformidade das ruas e a sua paisagem. Este instrumento e local de trabalho dos motorneiros
teve uma participação efetiva e longínqua na dinâmica da cidade – em torno de 50 anos,
extinguindo com a nova ideologia em 1940, trocando os trilhos pelas estradas de rodagem.

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O motorneiro de bonde fez história nessa espacialidade, e percebemos que o trabalho


com o público tem muito a nos dizer sobre a pessoa e/ou o profissional que diariamente
transitava entre “populares” ou não nas relações do cotidiano, na troca de práticas e
experiências.

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