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MTC IdeIias e Conceitos
MTC IdeIias e Conceitos
Lilian M. Jacques
Área Interdisciplinar de História da Ciência e da Técnica e Epistemologia
COPPE/UFRJ
E-mail: ljacques@email.arizona.edu
Resumo
Este artigo aborda o campo da Medicina Tradicional Chinesa identificando a origem e
as características das idéias metafísicas que o inspiram. O momento da sistematização
com a compilação das idéias fundamentais nos cânones. Sua constituição enquanto
sistema médico com doutrina médica, morfologia, fisiologia, etiologia, semiologia,
diagnose e terapêutica.
Introdução
Todo sistema médico possui um objetivo comum que consiste em buscar restabelecer a saúde das
pessoas ou pelo menos minimizar os efeitos das doenças sobre elas. Para que esse objetivo seja
alcançado é necessário o desempenho de uma atividade, o ato ou a arte de tratar doentes, por um agente
treinado específicamente para o desempenho dessa função historicamente prestigiosa. O treinamento
1
desse agente pressupõe a existência de um conhecimento ou ciência das causas do adoecer e dos
recursos para tratamento.
Esse conhecimento desenvolve-se dentro de um contexto social histórico e específico, ancorado
num sistema metafísico que influencia a direção na qual os conceitos são construídos, articulados e
disponibilizados para orientar operações de ordem terapêutica no que se refere à arte de curar e aos
instrumentos usados para curar.
O sistema médico que chamamos de Medicina Tradicional Chinesa refere-se à medicina praticada
ainda hoje na China dentro do contexto institucional. O caráter sofisticado e cumulativo dessa tradição
surpreendeu os estudiosos ocidentais cuja história da medicina ignorava ou desqualificava como
“práticas populares” a experiência de civilizações não européias .
Seus recursos terapêuticos mais comuns, acupuntura e massagem terapêutica, penetraram a cultura
ocidental de maneira marcante depois da Segunda Guerra Mundial. Sómente nos Estados Unidos
estima-se que ao final do ano de 2001, as escolas que oferecem programas de treinamento de 2 a 3 anos
em Medicina Tradicional Chinesa estejam formando 2000 profissionais por ano.
No Brasil existem vários institutos privados de ensino de um ou mais ramos da medicina chinesa ,
sobretudo no Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Há um grande número de profissionais acupunturistas e
uma disputa política entre médicos, fisioterapeutas e outros profissionais de saúde pelo direito de usar o
método na prática clínica. O sistema de saúde pública começa absorver profissionais de acupuntura e
massagem terapêutica em algums hospitais e postos de saúde. Contudo trabalhos desenvolvidos em
instituições de pesquisa são poucos. O Instituto de Medicina Social da UERJ e a Fundação Oswaldo
Cruz são exemplos de instituições que abordam esse campo.
A origem da Medicina Tradicional Chinesa remonta a períodos muito antigos mas um momento
importante ocorre entre 481a .c. e 221a . c., no período conhecido como “Chou tardio” ou “Estados
Guerreiros“, época da dissolução do feudalismo chinês que cederá lugar à unificação do Império sob
uma autoridade central. Evoluem parcialmente nesse período os conceitos da “filosofia natural
chinesa”1 que irão influenciar toda a ciência chinesa: “a doutrina do Yin/Yang” , a “ Teoria das Cinco
Fases, a idéia de “Qi”, o Taoísmo e o Confucionismo.
Os “Estados Guerreiros” chegam ao fim com a unificação da China sob Shi-Huang-di ( 221 a . c. –
206 a . c.) que implementa um agressivo programa de reformas no sentido de eliminar quaisquer
vestígios da velha ordem feudal. Os senhores de terra foram expropriados e sua posição assumida por
oficiais de altas patentes que poderiam ser substituidos a qualquer momento pelo governo central. A
homogeneização cultural foi imposta com padronização da escrita, dos pesos e medidas e até mesmo
das bitolas dos veículos que utilizavam as estradas públicas. Todos os escritos históricos exceto os de
medicina foram queimados e as críticas proibidas.
A morte de Shih Huang-ti apenas onze anos após fundar a primeira dinastia imperial da China
reacende a oposição dos circulos feudais, ocorrem revoltas de trabalhadores e escravos, até que a
fundação a dinastia Han em 202 a.c. inaugura o grande desenvolvimento da civilização chinesa. A vida
social e religiosa deixa de ser controlada pelos nobres e uma classe de pessoas educadas passa a viver
independente de riqueza ou favores. A abertura da “Estrada da Seda” facilita intercâmbios comerciais e
culturais.
A dinastia Han (206 a . c. 220 d. c.) marca o período da sistematização da medicina chinesa. Os
principais documentos do período Han são os achados arqueológicos de Ma Wang-dui (168 a.c.),
quatorze manuscritos sobre os primórdios da medicina chinesa descobertos na década de 70 em
escavações de túmulos antigos na província de Hunan. O Tratado de Medicina Interna do Imperador
1
Aceitamos o uso da expressão “filosofia natural chinesa“ por Unschuld devido ao caráter eminentemente qualitativo da
ciência chinesa semelhante ao caráter qualitativo da ciência aristotélica . É importante frisar no entanto que a visão chinesa
é diferente da Grécia Clássica como ficará evidente neste trabalho.
2
Amarelo, “Huang Di Nei Jing”, e o “Nan Jing” , o Clássico das Questões Difíceis, compilados na
passagem do séc II a. c. para I a. c. .
O “Nei Jing” é o cânone da Medicina Chinesa e representa o ponto onde as idéias fundamentais
sobre adoecimento e tratamento alcançam a maturidade nesse sistema. A medicina torna-se um campo
distinto da atividade humana. É escrito na forma de diálogo entre Huang Di, o lendário imperador
amarelo e seu ministro Qi Bo. Consiste em duas partes: Su Wen ou “Questões fundamentais” que
elucida aspectos da teoria médica e Ling Shu ou “Eixo Espiritual, que é um manual de acupuntura.
Nessa época praticava-se a dissecção na China e as estruturas internas eram conhecidas, não obstante o
livro descreve o trajeto dos 12 canais principais de acupuntura que não constituem estruturas
anatômicas no sentido das que conhecemos.
O “Nan Jing” integra pela primeira vez todos os aspectos da saúde nas doutrinas do Yin/Yang e das
Cinco Fases que examinaremos nas próximas seções deste trabalho. Nesse tratado o sistema de canais
de acupuntura já apresenta os doze canais principais, o vaso da concepção Ren Mai e vaso governador
Du Mai. A escolha dos pontos de acupuntura faz-se baseada na idéia da circulação de Qi, categoria da
filosofia natural chinesa que nós ocidentais traduzimos como energia. Um aspecto importante da
semiologia chinesa , o estudo dos pulsos , conhecido como “pulsologia chinesa” também é abordado.
Na Medicina Tradicional Chinesa tal como é compreendida hoje, o conceito de saúde está vinculado
ao conceito de equilíbrio energético. Por equilíbrio energético entende-se o equilíbrio entre Yin e Yang
no organismo que é garantido pelo livre circular do Qi. O organismo é concebido como uma unidade
que compreende os níveis físico, psíquico, emocional e espiritual, em relação dinâmica com o meio
ambiente.
Quando ocorre uma desorganização ou bloqueio do fluxo de Qi no organismo as proporções entre
Yin e Yang se alteram, o equilíbrio energético é rompido e aparece a doença. As causas desse
desquilíbrio podem ser internas ou externas. As causas internas estão relacionadas com o padrão psico-
emocional da pessoa, com a deficiência da essência ou Qi ancestral, a energia herdada dos pais, e com
desequilíbrios anteriores que tenham enfraquecido os “Zang – Fu”, órgãos e vísceras. As causas
externas referem-se a fatores climáticos, alimentação, atividade física e intelectual em deficiência ou
excesso e a entidades da medicina ocidental como bactérias e vírus que certamente não estavam
presentes no sistema clássico.
Para restabelecer a saúde é necessário restaurar o equilíbrio entre Yin e Yang no organismo
regulando o fluxo de Qi nos canais de energia . Essa é a função da Medicina Tradicional Chinesa que
utiliza vários métodos de tratamento, selecionados de acordo com as características da doença :
Acupuntura, Fitoterapia, Dietética, Massagem e Exercícios.
A primeira visão nos é legada por Joseph Needham, bioquímico, embriologista e historiador da
ciência. O autor interessou-se pelas tradições científicas do extremo oriente, sobretudo da China, no
final dos anos 30 e deu partida a um projeto monumental que incluia no início 7 volumes sobre
Ciência e Civilização na China, mas que desdobrou-se em 22 volumes além da criação de um instituto
de referência para a pesquisa da ciência do leste asiático em Cambridge, Inglaterra.
Para a realização dos volumes individuais Needham reuniu colaboradores com talentos especiais e
conhecimentos científicos e técnicos detalhados, na maior parte estudiosos e especialistas chineses,
porém sua própria visão sobre a história da ciência é comunicada de modo inequívoco em toda a obra :
“Ao longo dessa série de volumes assume-se que exista apenas uma Ciência da Natureza, abordada mais ou menos de
perto, construída mais ou menos com sucesso e continuidade , por vários grupos da humanidade de tempos em tempos. Isso
significa que é possível estabelecer uma continuidade absoluta entre o início da astronomia e da medicina na Babilônia , o
avançar do conhecimento natural na China medieval, Índia, Islam e no mundo clássico Ocidental , até a ruptura do
3
Renascimento europeu tardio quando, como tem sido dito, o mais eficiente método para descobrir foi ele próprio
descoberto”.2
O autor teoriza sobre as causas que teriam impedido a civilização chinesa de experimentar o
equivalente à Revolução Científica do séc XVII, posto que do séc I a.c. até o séc XV d.c. o
desenvolvimento nas ciências, tecnologia e medicina na China foi muito superior ao da Europa
Ocidental e certos sistemas de idéias como o Taoismo e o Neo-Confucionismo pareciam mais
congruentes com a ciência moderna do que qualquer sistema europeu, incluindo a teologia cristã. Além
disso invenções e descobertas fundamentais para a transformação do mundo medieval no mundo
moderno, tais como o papel , a imprensa, a pólvora e a bússola, apenas para mencionar as mais
conhecidas, são originárias da China.
Contudo a Revolução Científica não acontece na China e sim na Europa Ocidental no séc XVII . A
explicação segundo Needham reside num paradoxo: o feudalismo militar aristocrático europeu parecia
mais forte do que sistema feudal chinês de caráter fundamentalmente burocrático mas na realidade era
mais fraco porque menos racional; das suas entranhas emerge a burguesia mercantil gerando as
condições para a transformação do modo de produção feudal em modo de produção capitalista que
acompanhado pela Reforma Protestante completa o “pacote” que viabiliza a Revolução Científica na
Europa ocidental .
Dessa forma, a não transformação da sociedade chinesa a despeito de sua produção de múltiplas
descobertas e invenções, deveu-se a um “equilíbrio homeostático”3 atribuído à racionalidade intrínseca
no jogo de forças sociais, que a tornava impermeável à influência das inovações que ela própria
introduzia, garantindo assim a continuidade de um modo de operar que converteu-se num entrave ao
desenvolvimento científico.
A sociedade européia do séc XV e XVI ao contrário da chinesa apresentava uma inestabilidade
intrínseca que a tornou vulnerável à penetração da nova visão de mundo esboçada por Copernico,
desenvolvida por Kepler e Galileu e completada por Newton. A imagem de mundo medieval que
decorria da Escolástica , síntese da filosofia natural aristotélica com o cristianismo foi então
substituída na Europa . O método científico inaugurado mostrou-se eficiente na produção de um
conhecimento expresso num idioma universal, a linguagem quantitativa precisa da matemática que o
liberou do “selo étnico” 4 das sociedades que o precederam.
A segunda visão é a de Paul Unschuld, uma das principais autoridades mundiais em História da
Medicina Chinesa com inúmeros trabalhos de referência publicados, membro do Instituto de Estudos
Avançados em Berlim e diretor do Instituto para a História da Medicina da Universidade de Munique.
O autor critica a visão de Needham e Lu Gwei-djen’s baseada na verdade inquestionável do
conhecimento científico moderno, que privilegia os aspectos da medicina chinesa importantes para os
médicos praticantes ocidentais ou os que representam uma forma embrionária do pensamento médico
da atualidade. Acredita que esses autores negligenciam pensamentos e fatos históricos da medicina
chinesa que são irreconciliáveis com o que eles consideram científico, protocientífico ou racional.
Unschuld também chama atenção para a limitação da abordagem da “medicina como um sistema
cultural“ presente na antropologia médica atual. Considera o conceito “sistema cultural” vago quando
aplicado a civilizações complexas, com grande diversidade intracultural como a civilização chinesa,
onde nos últimos 2000 encontra-se anos uma variedade de sistemas terapêuticos baseados em
2
Joseph Needham, Lu Gwei-Djen. Science and Civilization in China . Vol 5 , part 2, section 33. Cambridge University
Press , Great Britain, 1974, p. xxi.
3
Joseph Needham. La gran titulación - Ciência y sociedad em Oriente y Occidente . Alianza Editorial, p. 216.
4
Expressão utilizada por Needham no prefácio do livro de Robert Temple, The Genius of China – 3,000 years of science,
discovery and invention.
4
diferentes conceitos, que em parte se sobrepõem e em parte são antagônicos mas que são igualmente
representativos da cultura chinesa.
Na sua investigação, Unschuld pretende tratar não apenas das origens e do desenvolvimento dos
diversos conceitos de sistema de saúde na China ao longo do tempo, dentro do contexto
socioeconômico e socioideológico, mas também da pluralidade e das mudanças desses conceitos.
Sugere uma abordagem histórica e sistemática, baseada nas fontes mais antigas disponíveis, já que elas
são abundantes na China, datando de 1500 a. c. até os dias de hoje.
Nesse período de 3500 anos o autor identifica sete sistemas conceituais maiores no âmbito da
Medicina Chinesa sem que tenham ocorrido numa sucessão linear simples : terapia oracular, medicina
demoníaca, cura religiosa, terapia pragmática com uso de drogas, medicina Budista, medicina da
correspondência sistemática e a medicina ocidental. O sistema que Unschuld identifica como Medicina
da Correspondência Sistemática é o que nos interessa e que chamamos de Medicina Tradicional
Chinesa.
A cosmovisão dos chineses que repercute na Medicina Tradicional Chinesa baseia-se numa
metafísica cujas categorias centrais, Tao e Yin/Yang, são diferentes daquelas que orientaram a
formação do pensamento ocidental moderno. Os pensadores chineses não tentaram formular leis para
entender o Universo, nem tampouco veneraram deuses, no entanto seu pensamento demonstrou um alto
poder civilizatório como atestam os costumes, artes, caligrafia , medicina e sabedoria. Marcel Granet
elucida essas categorias centrais:
“As idéias conjuntas de Ordem, Totalidade e Eficácia dominam o pensamento dos chineses. Eles não se preocupam em
distinguir reinos da Natureza . Toda realidade é total em si . Tudo no Universo é como o Universo. A matéria e o espírito
não aparecem como dois mundos opostos . Não se confere ao homem um lugar à parte ... a não ser na medida em que ,
possuindo uma posição na sociedade , são dignos de colaborar na manutenção da ordem social, fundamento e modelo da
ordem universal. ... Essas idéias coadunam-se com uma representação do Mundo que se caracteriza não pelo
antropocentrismo , mas pela predominância da noção de autoridade social. A ordenação do Universo é efeito de uma
Virtude principesca, que as artes e a ciência devem ser empregadas para prover. Uma regulamentação protocolar é válida
para o pensamento e para a vida; o reino da etiqueta é universal. Tudo lhe está submetido na ordem física e na ordem moral,
que os chineses se recusam a distinguir de modo contrastante como uma ordem determinística e ordem de liberdade. Eles
não concebem a idéia de Lei. Tanto para as coisas quanto para os homens, propõem apenas Modelos.” 5
A idéia de Totalidade é referida pela palavra Tao que significa caminho, via central, eixo . O Tao
não é concebido como um princípio primordial mas como uma categoria concreta que dirige as
articulações de todos os processos exercendo um poder regulador. No entanto não é considerado uma
força ou substância, não é em si mesmo uma causa primária , não é um criador. É apenas uma
sublimação da Eficácia e da Ordem que ordena as ações e torna o mundo inteligível.
O Tao é constituído por dois aspectos polares, complementares, alternantes e intercambiantes, o Yin
e o Yang . Porém não é a soma deles e sim o regulador de sua alternância cíclica. Granet diz sobre
esses aspectos fundamentais do pensamento chinês:
“O Yin e o Yang não podem ser definidos nem como puras entidades lógicas, nem como simples princípios
cosmogônicos. Não são nem substâncias, nem forças, nem gêneros. São tudo isso, indistintamente, para o pensamento
comum, e nenhum técnico jamais os considera sob um dessses aspectos , à exclusão dos outros. ... Totalmente dominado
pela idéia de eficácia , o pensamento chinês move-se num mundo de símbolos feito de correspondências e oposições.
Quando se quer agir ou compreender, basta pô-lo em funcionamento.”6
5
Marcel Granet , O Pensamento Chinês , 1a. ed. , Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p. 211.
6
Granet,op. cit. , p. 99.
5
Yin refere-se ao “ lado da montanha que está na sombra” e yang ao “ lado da montanha que está
no sol”. Entretanto como esclarece Granet, os termos yin e yang não retém um significado específico
como forças ou substâncias , servindo apenas como emblemas para caracterizar duas linhas de
correspondência onde os atributos de cada elemento determinam sua natureza Yin ou Yang indicando a
linha a que pertencem.
Na linha de correspondência Yin estão arrolados os fenômenos mais materiais, mais densos, mais
profundos, mais frios, mais inertes, mais escuros. Na linha Yang os fenômenos mais imateriais, mais
voláteis, mais quentes, mais claros e com mais movimento. (fig1e fig 2 )
Céu – símbolo do
Yang
Terra – símbolo do
Yin
Fig 1 Fig 2:
“Tai Qi, princípio Yin & Yang “Símbolos do Yin & Yang”
efetor do Tao” (Requena: 100)
(Requena: 100)
7
A categoria ‘núcleo duro” traduzida de “hard core” demonstra a adesão de Paul Unschuld ao pensamento de Imre
Lakatos in “The Metodology of Scientific Research Programmes” .
7
humanos e sua relação com o mundo. Entretanto a função operativa do Qi é executada por outros tipos
de Qi que derivam dos primeiros: Qi original, Qi dos alimentos, Qi nutritivo e Qi defensivo.
4. Doutrina Médica
Madel Luz em “Racionalidades Médicas, Estudo Comparativo da Medicina Ocidental Moderna, da
Medicina Tradicional Chinesa, Medicina Ayurvédica e Homeopatia” constrói a categoria
“racionalidade médica” a partir da identificação nos diferentes sistemas médicos de “dimensões”
fundamentais: cosmologia, doutrina médica, morfologia, fisiologia ou dinâmica vital, sistema
diagnóstico, sistema terapêutico.
O estudo define como doutrina médica a formulação de certas concepções teóricas sobre as origens
e as causas do adoecer do homem. Na Medicina Tradicional Chinesa a doutrina médica está expressa
nas teorias do Yin/Yang e das Cinco Fases, utilizadas para orientar as estratégias terapêuticas que
visam equilibrar o organismo eliminando as causas do adoecer.
Todas as estruturas e funções orgânicas e todos os sinais e sintomas que apontam para disfunções
orgânicas, podem ser analisados e interpretados segundo a ótica da interação dos dois princípios
Yin/Yang como demonstram os quadros abaixo.
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
YIN & YANG
Sinais Sintomas
Doença crônica doença aguda
início gradual inicio rápido
alteração lenta do quadro alteração rápida do quadro
frio calor
sonolência, apatia agitação, insônia
deita-se encolhido deita-se esticado
face pálida rubor facial
voz fraca -falar pouco voz alta - falar muito
respiração lenta e superficial dispnéia
8
ausência de sede sede
urina profusa e pálida urina escassa e escura
diarréia constipação
língua pálida - saburra branca língua vermelha - saburra branca
pulso vazio pulso cheio
A teoria das Cinco Fases é a outra doutrina que atravessou os tempos, à semelhança do Yin/Yang, e
até hoje desempenha papel importante na Medicina Tradicional Chinesa praticada em todo o mundo.
Sua importância advém do padrão de relacionamento que as fases estabelecem entre si no processo de
transformação contínuo dos fenômenos naturais que, no organismo humano determina a manutenção
ou a ruptura do equilíbrio, produzindo a saúde ou a doença. O terapêuta deve identificar os
desequilíbrios no ciclo das cinco fases para orientar a sua intervenção no sentido de restaurar as leis do
sistema.
A primeira das leis do sistema das cinco fases diz respeito ao equilíbrio entre o Yin e o Yang dentro
de cada fase. As funções do órgão, da víscera e de seus respectivos canais de energia numa
determinada fase, devem coexistir em equilíbrio dinâmico. Quando uma fase apresenta desequilíbrio
haverá repercussão em todo o sistema, já que as leis que se seguem demonstram a interdependência
entre as fases.
A lei da geração de energia ou lei mãe-filho, trata da ordem de transformação das fases segundo sua
sucessão normal na natureza, por exemplo: primavera-verão-canícula-outono-inverno–primavera... De
acordo com essa lei cada fase gera energia para reforçar a fase seguinte. De forma simbólica a relação
entre os elementos que representam cada fase pode ser lida como : a madeira é mãe do fogo pois
fornece a matéria prima para a ocorrência dele; o fogo é mãe da terra, formada pelas cinzas. A terra
engendra os metais que no processo de contração eliminam a água, que irriga a madeira, favorecendo a
germinação de um novo ciclo.
9
Órgãos Fígado coração baço/pâncreas Pulmão rins
(Zang)
Vísceras vesícula biliar intestino estômago intestino bexiga
(Fu) delgado grosso
A fim de evitar que se forme uma espiral energética excessiva e descontrolada, cada fase ao mesmo
tempo que fornece energia para o desenvolvimento da fase seguinte, controla a formação da terceira
fase, obedecendo à lei da dominância ou controle, também conhecida como a lei avô-neto.
Assim uma fase ao gerar seu filho, controla seu neto. Simbólicamente temos que a madeira gera o
fogo mas controla a terra, extraindo energia do solo; o fogo gera a terra e controla o metal, fundindo-o;
a terra gera o metal mas controla a água contendo-a; o metal gera a água mas controla a madeira
cortando-a e por fim a água gera a madeira mas controla o fogo apagando-o.
No terreno da saúde e das doenças, as relações patológicas se instalam quando ocorrem
desequilíbrios no ciclo da dominância. Uma fase com excesso de energia pode exercer uma
superdominância, enfraquecendo a fase dominada, em lugar de apenas controlá-la. Por exemplo,
quando a energia do fígado está em excesso pode depletar a energia do baço/pâncreas. Nesse caso
temos a madeira agredindo a terra, causando alterações digestivas. Ao contrário, pode ocorrer a
contradominância, quando a fase dominada fica tão excessiva que agride seu controlador. Um excesso
de energia no coração pode voltar-se contra o rim. Temos então o fogo contradominando a água com o
aparecimento da hipertensão arterial.
A terapêutica da Medicina Tradicional Chinesa oferece recursos para a regulação energética do ciclo
das cinco fases, uma vez que o diagnóstico do desequilíbrio tenha sido alcançado. A identificação das
fases acometidas e dos padrões de acometimento pode ser facilitada por meio do agrupamento e
classificação dos sinais e sintomas do paciente de acordo com as cinco fases. É importante ressaltar, no
entanto, que o diagnóstico e tratamento pelas cinco fases não é o método exclusivo utilizado pelos
praticantes de Medicina Tradicional Chinesa.
Na Medicina Ocidental Contemporânea segundo Kenneth Rochel de Camargo Jr. A doutrina médica
está implícita e não claramente enunciada. Pode ser deduzida da forma consensual do exercício da
prática médica e de representações coerentes com a visão mecanicista que alicerça o saber médico tais
como:
“as doenças são coisas, de existência concreta, fixa e imutável, de lugar para lugar e de pessoa para pessoa; as doenças se
expressam por um conjunto de sinais e sintomas que são manifestações de lesões, que devem ser buscadas no âmago do
organismo e corrigidas por algum tipo de intervenção concreta” 8 .
8
Kenneth Rochel de Camargo Jr. Racionalidades Médicas: A Medicina Ocidental Contemporânea. Instituto de Medicina
Social, Uerj, 1996, p 13, 24 ,25.
10
Kenneth sugere que apesar da inexistência no contexto do saber médico de uma conceituação geral
do que seja uma doença, é possível identificar elementos dessa categria em três níveis: explicativo,
morfológico e semiológico. O primeiro refere-se à caracterização de doenças como processo com uma
causa e uma história, campo da fisiopatologia, onde o saber médico mais se aproxima das ciências
duras. Há aqui uma idéia de mecanismo causal produzindo um fenômeno.
O segundo nível refere-se à descrição das lesões patognomônicas com auxílio dos exames
complementares obtidos por meio da “parafernália laboratorial”. O terceiro nível é o da clínica onde as
doenças são vistas como “constelações de sinais e sintomas formando gestalts semiológicas “. Os dois
últimos níveis vão em direções contrárias: o da generalização e classificação que aproxima a clínica da
epidemiologia e o da individualização no caso das gestalts semiológicas.
O nível explicativo da fisiopatologia está presente na Medicina Tradicional Chinesa porém com
linguagem própria e o que Kenneth chama de gestalt semiológica é exatamente o contexto que um
praticante hábil de Medicina Tradicional Chinesa deve penetrar para propor a terapêutica.
Fig 3 Fig 4
Ciclo da geração Ciclo do controle
11
RELAÇÕES PA TOLÓGICAS EN TR E AS FASES
Fig 5 Fig 6
Superdominância Contradominância
A causa mais geral da doença em Medicina Tradicional Chinesa é tida como a ruptura do equilíbrio
entre o Yin e Yang que ocorre em conseqüência de uma perda de capacidade do “Qi - antipatogênico”
de proteger o organismo, ou devido à penetração de fatores patogênicos ultrapassando as possibilidades
de defesa orgânica. As causas mais específicas podem ser internas, externas, ou relacionadas com a
energia ancestral e hábitos de vida.
As causas internas relacionam-se com emoções intensas e persistentes ou hipersensibilidade a
determinados agentes que prejudicam os órgãos e vísceras, Zang Fu, seletivamente. Fala-se em sete
fatores emocionais considerados como fatores endógenos desencadeadores da alteração no equilíbrio
Yin/ Yang do organismo: a fúria que faz o Qi ascender e afeta o fígado. A euforia que faz o Qi fluir
lentamente e afeta o coração. A melancolia que dissolve o Qi e afeta o pulmão. A preocupação e
excesso de abstração que paralisam o Qi e afetam o baço. O medo que faz o Qi descender e afeta o rim.
O choque que dispersa o Qi afetando o rim e o coração.
As causas externas envolvem as variações climáticas para além da capacidade de adaptação do
organismo. Os fatores patogênicos penetram no organismo através da pele, nariz e boca e podem atuar
isoladamente ou em associação com outros fatores, por exemplo, vento-frio ou calor-umidade. Os
fatores climáticos denotam tanto causa como padrão patológico. Por exemplo, a doença pode ser
causada por um fator patogênico externo como o vento, que pode provocar paralisia facial periférica ou
pode ser produzida por causas internas e apresentar um padrão de vento, como a paralisia facial central,
considerada vento interno.
Os seis fatores climáticos são: vento , calor de verão , umidade, secura , frio e fogo. O vento, fator
yang, típico da primavera, ataca a porção superior do corpo provocando dores de cabeça, obstrução
nasal, irritabilidade, dores migrantes, sintomas que aparecem e desaparecem como artrite, urticárias,
espasmos, tremores, paralisia facial. O calor de verão, fator yang, consome yin, tem direção ascendente
e perturba a mente, provoca transpiração, sede, respiração ofegante, cansaço, urina concentrada, febre
12
alta, inquietação, pele avermelhada, delírio, coma. Costuma associar-se à umidade causando tontura,
cabeça pesada, sensação de sufoco no peito, náusea, falta de apetite, diarréia e lentidão.
A umidade é um fator etiológico típico da canícula, época das chuvas, aumenta a viscosidade dos
líquidos provocando estagnação. Manifesta-se como indolência, sensação de distensão na cabeça,
tonturas, cansaço geral, opressão do epigástrio, náusea, vômito, viscosidade e sabor adocicado na boca,
abcessos, úlceras gotosas, leucorréia de natureza purulenta com odor, urina turva, doenças prolongadas,
artrite reumatóide, encefalite, epidemias. A secura, fator patogênico do outono, consome os líquidos,
principalmente yin do pulmão, afeta a pele provocando ressecamento, rugas e rachaduras, provoca
ainda secura na boca e nariz e garganta, irritabilidade e tosse seca.
O frio, fator yin, ocorre no inverno, consome Qi e yang. Caracteriza-se por contração e estagnação,
retardamento da circulação de Qi e sangue, que pode manifestar-se como entorpecimento das
extremidades, arrepios, calafrios, membros frios, palidez, diarréia com alimentos não digeridos nas
fezes, urina límpida com aumento de volume. O fogo, fator yang, danifica o yin, perturba a mente,
incita o vento, provoca distúrbio no sangue e esgota o yin do fígado. Manifesta-se como febre alta,
coma, delírio, convulsão, rigidez no pescoço, hemorragia, hematêmese, epistaxe, erupções e infecção
na pele, edema, calor, dor, furúnculos e úlcera.
Além das emoções e dos fatores climáticos, as doenças podem ser produzidas por fatores
patogênicos variados como a compleição debilitada herdada dos pais ou decorrente de intercorrências
na concepção e no nascimento. Esse fator pode ser modificado dentro de certos limites pelo cultivo do
Qi por meio de dieta, exercícios e tratamento adequado. A dieta irregular é outro fator patogênico.
Alimentos crus e frios afetam baço-pâncreas e estômago provocando regurgitação ácida, dor
epigástrica e abdominal, borborinho e diarréia. Bebidas alcoólicas, gorduras, alimentos aromatizados
produzem umidade-calor ou fleugma-calor no baço-pâncreas. Pouca ingestão de alimentos produz
insuficiência de QI e sangue. Excesso de alimentos enfraquece o baço e o estômago produzindo
acúmulo de muco. O excesso ou a falta de atividades físicas, as lesões traumáticas e o excesso de
atividade mental e sexual estão incluídos no rol dos fatores patogênicos variados. A estagnação de
sangue e fleuma constituem também fatores patogênicos importantes.
6. Morfologia Humana
13
(206 a.c.- 220d.c.), e utilizados com sucesso na clínica médica, em profilaxia, gestão de doenças
crônicas e degenerativas, e também no tratamento de algumas doenças agudas.
A possibilidade de se fazer analgesia por acupuntura aponta para a existência de um mecanismo de
ação sobre circuitos neurais e endócrinos induzindo a síntese de substâncias químicas que influenciam
o desempenho de tais circuitos. A analgesia por acupuntura tem motivado a pesquisa do sistema de
canais e pontos de acupuntura pelos cientistas ocidentais e orientais da atualidade na busca de
esclarecimento sobre o mecanismo de ação, contudo esse não é seu campo de aplicação mais
importante.
Os canais e colaterais constituem uma rede que conecta todas as partes do organismo transportando
Qi, Xue ( sangue) e Jing Ye ( líquidos orgânicos ) para todos os órgãos, vísceras e tecidos. Desses
canais, doze são considerados canais principais. Localizam-se no tecido subcutâneo e descrevem um
percurso longitudinal em relação à linha média do corpo. São bilaterais, simétricos e relacionam-se
com os Zang Fu por meio de canais secundários. Aparecem acoplados em pares, são designados pelo
nome do órgão ou função que representam e estão associados às Cinco Fases. Cada par é formado por
um canal Yin e um canal Yang. Os canais Yin referem-se aos órgãos (zang) e os canais Yang às
vísceras ocas (fu): Fígado/Vesícula Biliar (F/VB), fase madeira; Coração/Intestino Delgado (C/ID) e
Circulação Sexualidade/Triplo Aquecedor (CS/TR), fase fogo; Baço Pâncreas/ Estômago (BP/E), fase
terra; Pulmão/Intestino Grosso (P/IG), fase metal e Rim/Bexiga (R/B), fase água.
A fase fogo está associada a dois pares de canais, o par C/ID é chamado de fogo príncipe e o par
CS/TR, fogo ministro. Este último tem a função de proteger o coração e se relaciona com todos os
Zang Fu para manter o equilíbrio do organismo. O CS está associado ao pericárdio e o TR embora não
esteja vinculado diretamente a uma estrutura anatômica, guarda uma relação com a atividade das
glândulas endócrinas na manutenção do equilíbrio interno.
Considerando a posição anatômica chinesa, com as mãos para o alto e as palmas voltadas para a
frente, o trajeto dos canais Yin ascende dos pés para o tórax pela face medial dos membros inferiores e
abdome (R, F, BP), e do tórax para as mãos pela face anterior dos membros superiores e mãos (C, CS,
P). A energia dos canais Yin desemboca nos canais Yang, nas extremidades dos dedos da mão. Os
canais Yang então, a partir das extremidades digitais, dirigem-se pelo dorso das mãos e dorso dos
membros superiores, para a cabeça (ID, TR, IG), daí descendem até as extremidades digitais dos pés
(B, VB, E), onde desaguam sua energia nos canais Yin.
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Fig 6
“Os três canais Yin e a polarização da parte anterior do corpo. Em branco o que é
mais Yin e em preto o que é mais Yang”. (Requena:109)
Fig 7
“ Os três canais Yang e a polarização da parte posterior do corpo. Em branco o que é mais Yang
e em preto o que é menos Yang” . (Requena:108)
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Cada um dos três canais Yin das pernas se associa a um dos Yin dos braços para formar três grandes
canais Yin ligando a parte inferior e superior do corpo. O mesmo ocorre com os canais Yang dos
braços que se ligam aos Yang das pernas relacionando o alto do corpo às partes inferiores, por meio de
três grandes canais Yang. Esses seis grandes canais correspondem a seis níveis energéticos de acordo
com a profundidade que a energia adquire. Os canais Yin, localizam-se ântero-medialmente,
relacionando-se com a linha média anterior. Do nível mais profundo para o mais superficial temos:
Shao Yin (R e C), Jue Yin (F e CS) e Tai Yin (BP e P). Os canais Yang são mais superficiais que os
canais Yin e localizam-se póstero-lateralmente, com exceção do canal do E que desce pela região
ântero-lateral do corpo. Do nível Yang mais profundo para o mais superficial temos: Yang Ming (E e
IG), Shao Yang (VB e TA) e Tai Yang (B e ID). Os níveis energéticos não consistem em unidades
isoladas, formam um sistema fechado de circulação de energia onde cada nível Yin se relaciona com
um nível Yang e transfere energia para o nível seguinte, incessantemente do Yin para o Yang e do
Yang para o Yin.
Ao longo dos canais principais, em locais anatômicos precisamente delimitados de mais ou menos
1mm, situam-se os pontos de acupuntura, através dos quais o canal se comunica com o meio externo. A
regulação do fluxo energético nos canais pode ser feita a partir do exterior por meio de estímulos
adequados nos canais e pontos. Dentro da tradição chinesa cada ponto de acupuntura recebe um nome.
Existem 361 pontos nos doze canais principais e alguns pontos extras, fora dos canais. Como cada
canal é simétrico e bilateral, na verdade estamos falando de 722 pontos nos canais principais.
Numa série de experimentos recentes, os pontos de acupuntura foram examinados por dissecção
para a verificação de sua correspondência direta com nervos , vasos sanguíneos e linfáticos: em 324
pontos examinados 304 eram supridos por um nervo cutâneo superficial; 155 por um nervo cutâneo
profundo; 137 pontos eram supridos por ambos. Somente um ponto não era inervado. Num outro
experimento 309 pontos foram examinados, verificou-se que 24 deles encontram-se diretamente sobre
ramos arteriais; 262 encontram-se a meio centímetro de ramos arteriais ou venosos. Poucos pontos, no
entanto, apresentaram relação com um mesmo vaso linfático.
8. Sistema diagnóstico
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O adoecimento é visto como um processo dinâmico em Medicina Tradicional Chinesa. A doença
sofre transformações progressivas em relação a seu momento inicial. Diagnosticar significa então
identificar as características presentes do adoecimento a fim de prevenir sua futura evolucão. O
dignóstico será alcançado a partir de vários procedimentos. O exame deve ser o mais abrangente
possível. Todas as características têm significado.
O estado das relações entre Yin/Yang e das Cinco fases pode ser avaliado pela observação do
aspecto das unhas, pele, cabelo, olhos, orelhas, nariz, lábios, dentes e garganta; o volume e o timbre da
voz, a postura do corpo e os gestos, o cheiro do corpo e o hálito. O exame dos pulsos ou “a pulsologia”
chinesa é um método de verificação de qualidades básicas do Qi e da relação entre os sistemas
ZangFu/Canais por meio do estudo de três posições contíguas na artéria radial proximas às pregas do
punho, de ambos os lados. Cada posição corresponde a um par acoplado de canais de energia e as
características do pulsar da artéria radial sob a polpa dos dedos do terapeuta em cada posição, fornece
informações sobre a natureza, local e extensão do adoecimento. Outro recurso importante na
semiologia chinesa é o exame da língua quanto à sua forma, movimento, cor e revestimento. Esse
exame revela o interior do paciente ou seja os Zang/Fu.
Procede-se então o diagnóstico segundo os oito princípios, “Ba Gang”, para determinar a natureza, a
intensidade, a localização e a profundidade da doença. Os oito princípios organizam-se em quatro
pares: Interno/Externo, indica a profundidade e gravidade do adoecimento. Frio/Quente, relaciona-se à
maneira como o paciente percebe a doença. Vazio/Plenitude, avalia o enfraquecimento da essencia em
relação à virulência do Qi patogênico. Yin/Yang trata da reunião das síndromes em que o Yin/Yang
estão em desarmonia. Existe literatura técnica abundante sobre o dignóstico segundo a Medicina
Tradicional Chinesa.
Na Medicina Ocidental a diagnose envolve várias técnicas denominadas em conjunto de semiologia
que compreendem a anamnese e o exame físico. Este último subdivide-se em: inspeção, palpação,
percussão e ausculta. São muito importantes os exames complementares que dependem de intrumentos
tecnológicos. Passa-se então à leitura do quadro clínico apresentado pelo paciente e localiza-se a
doença na grade conceitual das doenças conhecidas.
Kenneth Rochel de Camargo comenta a esse respeito que muitas vêzes as hipóteses dignósticas
influenciam a coleta de dados, o que reforça a tese de Harré sobre a não existência de “fatos puros”.
Vale a pena chamar atenção para a valorização do diagnóstico em relação à terapêutica pela corporação
médica na prática médica ocidental, atitude que encontra-se no centro da crise de relacionamento
médico/paciente presente na Medicina Ocidental Contemporânea e que desempenha um papel no
crescimento da procura por tratamentos alternativos por parte da população à medida em que se
desenvolve o conceito de qualidade de vida.
9. Sistema terapêutico
10 . Conclusão
Como todas as idéias podem ser abordadas numa escala que vai do pragmatismo ao dogmatismo, o
caminho do meio da filosofia taoísta parece uma via qualificada, ao lado da ciência que pergunta e
duvida sempre, exigindo explicações e testes, fazendo críticas e impondo reformulações, com
consciência do provisório e do paradoxo sem com isso se angustiar.
No que concerne a metafísica chinesa, a idéia de Qi tem suscitado analogias com o atomismo:
Yin/Yang, Positivo/Negativo, Próton/Elétron. Com a Relatividade Geral: todas as coisas refletem o Qi
e têm ressonância com o Qi ainda que não estejam conectadas no tempo e no espaço. Ou com a
mecânica quântica : aspecto Yin do Qi como partícula , aspecto Yang como onda.
Mas também tem suscitado analogia com místicas medievais, paracelsianas , do tipo como em
cima, embaixo, à semelhança de microcosmo/macrocosmo dos astrólogos e alquimistas. Ou se presta a
analogias qualitativas como as da filosofia natural: todos os fenômenos compartilham qualidades e
relações baseados na sua origem comum no Qi, o Qi se diferencia em formas. No entanto os chineses
não possuiam o horror ao vácuo dos aristotélicos pois se referiam ao Tao como o grande Vazio, embora
o Qi tudo permeasse:
O caminho é o Vazio
E seu uso jamais o esgota
É imensuravelmente profundo e amplo,
Como a raiz dos dez mil seres 9
Ou
Mas como lidar com categorias tão abrangentes que parecem desejar encampar todos os paradoxos
sem assumir o nome de Deus?
Os campos da Filosofia Chinesa , da Relatividade Geral e da Mecânica Quântica são tão vastos que
proferir veredictos sobre as analogias propostas por alguns autores é tarefa de alto risco. Um caminho
mais seguro é ater-se à visão da Filosofia da Ciência que aceita diferentes maneiras de conhecer e
construir objetos científicos. Nesse sentido o modelo conhecido como “Sistema de Canais e Pontos”
ou “Sistema de Meridianos” da Medicina Tradicional Chinesa constitui um objeto científico
promissor.
A idéia de que tal sistema tenha sido descoberto empiricamente por meio de dissecção de
prisioneiros vivos como sugere certo tipo de literatura sobre o assunto parece tão pouco plausível
como a que considera o sistema revelado por sábios-heróis num período mítico.
No entanto como um sistema de representação, o sistema de Canais e Pontos de Acupuntura pode
ser operado e ensinado ao corpo por meio dos estímulos exercidos por agulhas ou massagem nos
9
Parte do Poema 4 do Tao Te Ching de Lao tsé traduzido por Wu Jyh Cherng
10
Parte do Poema 41 do Tao Te Ching de Lao tsé traduzido por Wu Jyh Cherng.
18
pontos de acupuntura. Seus fundamentos neurofisiológicos podem ser estabelecidos com base na
plasticidade neural que faculta à experiência sensorial influenciar a modificação de fluxos cerebrais,
estimulando ou inibindo a secreção de substâncias químicas específicas. As alterações de fluxo
cerebral têm sido verificas por meio de experimentos com acupuntura e as modernas técnicas de
imagens funcionais do cérebro
Resta no entanto esclarecer em que bases a tradição preconiza o uso de diferentes conjuntos de
pontos para os diferentes tratamentos. Uma exploração desse objeto por meio de uma abordagem
multidisciplinar com base nas ciências naturais, nas teorias de sistemas e de linguagem, e na
neurociência computacional, sem perder de vista a tradição filosófica e o contexto histórico do
aparecimento e desenvolvimento do sistema , deve trazer frutos tanto para o campo da Medicina
Tradicional Chinesa como para o campo da História e Filosofia da Ciência e da Técnica.
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