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Oscar

Micheaux
Ministério da Cultura apresenta
Banco do Brasil patrocina e apresenta

Oscar
Micheaux
o cinema negro
e a segregação racial
Idealização
Paulo Ricardo G. de Almeida

Organização Editorial
Paulo Ricardo G. de Almeida
Calac Nogueira

VOA!
Rio de Janeiro
1ª Edição/2013
FREE AT LAST LIVRE ENFIM

Free at last, free at last Livre enfim, livre enfim


I thank God I’m free at last Agradeço a Deus por estar livre enfim
Free at last, free at last Livre enfim, livre enfim
I thank God I’m free at last Agradeço a Deus por estar livre enfim

Way down yonder in the graveyard walk Em minha descida rumo ao cemitério
I thank God I’m free at last Agradeço a Deus por estar livre enfim
Me and my Jesus going to meet and talk Eu e meu Jesus vamos nos encontrar e falar
I thank God I’m free at last Agradeço a Deus por estar livre enfim

On my knees when the light pass’d by De joelhos quando a luz passou por mim
I thank God I’m free at last Agradeço a Deus por estar livre enfim
Tho’t my soul would rise and fly Pensei que minha alma se elevaria e voaria
I thank God I’m free at last Agradeço a Deus por estar livre enfim

Some of these mornings, bright and fair Em uma dessas manhãs belas e risonhas
I thank God I’m free at last Agradeço a Deus por estar livre enfim
Goin’ meet King Jesus in the air Indo encontrar o Rei Jesus nos ares
I thank God I’m free at last. Agradeço a Deus por estar livre enfim

Canção negra americana tradicional do gênero conhecido como Spiritual, ori-


ginado durante os anos de escravidão no país. Publicada em American Negro
Songs (Nova York: Dover Publications, 1998), de John W. Work.
O
Ministério da Cultura e o Banco do Brasil apresentam Oscar Miche-
aux: O cinema negro e a segregação racial, retrospectiva sobre os
“race pictures”, filmes realizados para o público afro-americano no
auge do racismo e da política segregacionista que imperou nos Estados Unidos
na primeira metade do século XX.
Entre os realizadores negros do período, Oscar Micheaux se destaca com
mais de quarenta longas-metragens. O autor dirigiu o primeiro longa-metragem
afro-americano e o primeiro filme negro sonoro.
A programação conta com filmes dirigidos não apenas pelo cineasta – que
foi violentamente censurado e lutou ainda, durante sua carreira, contra a falta
de recursos –, mas também com filmes de outros diretores que colaboraram na
contextualização da produção negra da época.
Com esta retrospectiva, o Centro Cultural Banco do Brasil oferece ao público
a oportunidade de conhecer melhor essa fase do cinema afro-americano, com
seu mais prolífico e influente diretor finalmente redescoberto.

 Centro Cultural Banco do Brasil


E
m Dentro de nossas portas (Within Our Gates, 1920), Jasper Landry, pai
adotivo de Sylvia, a heroína, negocia com Philip Gridlestone, dono das
terras que arrenda. Gridlestone é assassinado por um posseiro branco,
mas Efrem — servo negro na tradição do palhaço estereotipado — vê a cena
como se Landry fosse o criminoso e trata de espalhar a notícia aos demais fa-
zendeiros da região, que lincham o padrasto de Sylvia. Oscar Micheaux filma
a sequência por dois pontos de vista diferentes: primeiro, o acontecimento ver-
dadeiro, com o narrador em terceira pessoa, que mostra o diálogo entre Jasper
e Gridlestone; depois, sob o olhar viciado de Efrem, o tiroteio que vitima seu
“mestre” e o leva a acusar, injustamente, Landry.
O professor e crítico Corey Creekmur chama de “white lies” (“mentiras bran-
cas”) a versão contada e recontada da História norte-americana — até que se
torne oficial — pela maioria (de brancos). O procedimento narrativo que Mi-
cheaux utiliza em Dentro de nossas portas serve para desmontar a aparente
“verdade” já naturalizada, o “fato” que não se discute. O diretor expõe a ima-
gem e seu espelho, o reflexo afro-americano sempre escondido, e provoca a
dúvida, a estranheza, a fissura indesejada e incômoda.
Micheaux volta aos múltiplos pontos de vista em Assassinato no Harlem
(Murder in Harlem / Lem Hawkins’ Confession, 1935), quando o advogado Henry
Glory — alter-ego do cineasta — força Lem Hawkins a abandonar sua máscara
de bufão, com a qual se protegia do racismo e da segregação do Sul, e a revelar
a dupla verdade: que ele apenas interpreta um papel (e, portanto, é bem mais
inteligente do que aparenta) e que o patrão branco acusou injustamente outro
vigia negro para se livrar do crime.
Oscar Micheaux, antes de se dedicar ao cinema, foi engraxate, mineiro de
carvão, trabalhador na indústria automobilística, cabineiro nos vagões Pullman
e, finalmente, adquiriu lotes de terras na Dakota do Sul (seguindo as palavras
de Horace Greeley, “Vá para o Oeste, meu jovem”) e se tornou fazendeiro. Cer-
cado por imigrantes europeus — suecos, russos, alemães, lituanos, escoceses
—, que jamais tinham visto um afro-americano, Micheaux prosperou e se apai-
xonou pela misteriosa “Garota Escocesa” (“The Scottish Girl”, amor que ele
renunciou em “obediência à raça”).
Micheaux se casou com Orlean McCracken, filha do reverendo Newton Mc-
Cracken, com quem Micheaux sempre teve ásperas discussões, especialmente
a respeito do Grande Educador Booker T. Washington, com o qual o diretor
concordava em sua política de melhora progressiva do negro através da apren-
dizagem de trabalhos manuais e industriais — Micheaux, contudo, também era
partidário das ideias de W.E.B. Du Bois, sobretudo quanto à educação univer-
sitária para afro-americanos.
O fracasso no casamento e nas colheitas levaram Micheaux para a literatura.

O
Admirador do Martin Eden, de Jack London, e de An Autobiography of an Ex- reassentamento incluía uma vívida discussão, nos anos 1910 e no iní-
Colored Man, de James Wheldon Johnson, Oscar Micheaux publicou, vendendo cio dos 20, sobre o “nome apropriado” da comunidade: Negro, afro-a-
ações de sua recém-fundada companhia para os vizinhos (prática que repetiria mericano, aframericano, etíopes, e outros. A Half-Century Magazine,
em sua carreira cinematográfica), The Conquest: The Story of a Negro Pioneer. por um breve período, usou o termo libranianos [libranians]. Eles rejeitavam o
De forma independente, publicou também The Forget Note e The Homesteader, termo Negro por que:
livro que atraiu a atenção dos irmãos Noble e George P. Johnson, da Lincoln
Motion Picture Company. é indesejável pela razão de que, em muitas partes
Desavenças quanto ao tamanho do filme (a Lincoln propunha três rolos, Mi- do país, o termo foi propositadamente distorcido para
cheaux queria oito rolos) e ao conteúdo (Micheaux fazia questão do romance ‘nigger’, e assim tem sido usado como um termo geral
inter-racial, explosivo na época) levaram ao rompimento da sociedade. Oscar para os negros e seus descendentes independentemen-
Micheaux escreveu, dirigiu, produziu e distribuiu The Homesteader em 1919, te de seu habitat... Africano não se aplica especifica-
primeiro longa-metragem afro-americano que, infelizmente, perdeu-se. mente a nós mais do que aos habitantes de Marrocos,
No entanto, The Homesteader iniciou a carreira que frutificou em mais de Egito, Trípoli, Argélia ou Transvaal. Essas pessoas e
quarenta longas-metragens, e abriu as portas para cineastas como Spencer seus descendentes são conhecidos especificamente
Williams, Melvin Van Peebles, Charles Burnett, Julie Dash e Spike Lee. O como marroquinos, egípcios, tripolitanos, argelinos e
resto, como se diz, são histórias. bôeres1... ‘De cor’ não é o melhor termo para se apli-
car aos membros da nossa raça, pois ele não se aplica
Boa mostra a todos. a nós mais do que à raça branca. Em termos de cor,
nossa tez vai do mais pálido caucasiano ao negro aze-
Paulo Ricardo G. de Almeida viche, mas o mesmo se dá com o homem branco. Ne-
Curador nhuma pessoa branca tem a pele realmente branca. Os
suecos e dinamarqueses, que são os mais próximos do
branco em cor, são de um creme bem claro – não mais
branco do que muitos membros da nossa raça.

A revista também rejeitava qualquer nome hifenizado: “‘Afro-americano’ não


deve ser usado, pois desde a Primeira Guerra Mundial um sentimento criou nos
Estados Unidos um tabu quanto ao costume de hifenizar cidadãos americanos.
É tão sem propósito chamar um de nós de ‘afro-americano’ quanto é chamar
um descendente de francês de ‘franco-americano’... Libéria e Librania são
derivados do termo latino ‘Liber’, que significa livre. Esses dois nomes, sendo 1 Bôeres, também conhecidos Known,” Half-Century Magazine, inflexões do “negro” depreciativo e
derivados da mesma palavra, são um constante lembrete a nós e aos liberianos como africâneres. Grupo étnico novembro de 1919. do “Negro” valorizado.
descendente de colonizadores
de que somos ligados intimamente por sangue. Ao mesmo tempo, a diferença no calvinistas (a maior parte vinda de 3 Clipping sem data, provavelmente 5 Jim Crow: referência às leis
Holanda, Alemanha e França) que de 1917. Clipping de arquivos de segregacionistas vigentes nos
fim da palavra serve para distinguir a nossa raça na América, os libranianos, ocupou determinados territórios jornal do Tuskegee Institute. estados do Sul dos EUA. (N.T.)
dos cidadãos da Libéria [liberianos].”2 durante a colonização da África,
em especial na África do Sul, na 4 Ver o ensaio de Stuart Hall, “The 6 LeRoi Jones, Blues People, p. 106.
Ao objetar o nome da companhia teatral Colored Players, um escritor no província de Transvaal. O grupo Rediscovery of ‘Ideology’: Return
desenvolveu um idioma próprio, of the Repressed in Media Studies” 7 Brunswick: Rutgers University
Freeman explicou: o africâner, ainda hoje falado em (em Culture, Society, and the Media, Press, 2000, p. 56-58. (N.E.) p. 56-
algumas regiões da África do Sul e ed. M. Gurevitch, T. Bennett, J. 58. Traduzido do inglês por Calac
da Namíbia. (N.T.) Curran e J. Woollacott [London: Nogueira. (N.E.)
Faço essa crítica sabendo muito bem da antipatia Methuen, 1982], pp. 78-79) para
2 “By What Name Shall the Race Be uma discussão sobre as diferentes
pelo termo “Negro” que alguns membros da nossa raça
professam. Mas “de cor” é um termo muito abstrato
para se usar neste caso. Há uma diferença entre produ-
zir peças que lidam com a “vida de cor” e peças que li-
dam com a “vida negra”. Há tanta diferença entre essas
duas peças quanto há entre uma lidando com a “vida
branca” e outras com a vida francesa ou irlandesa. O
negro não tem mais direito de reivindicar a apropriação
do termo “de cor” do que têm os índios, os japoneses,
os filipinos, os chineses e os malaios. “Negro” é a única
alcunha racial que nos dá a classificação etnológica
apropriada, e somente nosso sucesso dará ao termo
“Negro” o reconhecimento apropriado e o respeito que
o nome de uma raça merece.3

O Chicago Defender rejeitava o termo “Negro”, substituindo-o por “Raça”


ou “Homens da Raça”. Em sua coluna de entretenimento no Defender em 12
de maio de 1917, Tony Langston comentou sobre a Ebony Film Corporation,
observando que “O próprio termo ‘Ebony’ [ébano] é nauseante.”
Claramente, essas lutas se referiam não apenas aos termos em si, mas também
ao campo conotativo de significado.4 Nomear era um ato de reinvenção e autodefi-
nição, uma recodificação frente às descortesias e indignidades de Jim Crow5, bem
como às dolorosas memórias coletivas de três séculos de escravidão. Declarar sua
própria identidade era um ato de autocelebração, um exercício de poder. Olhan-
do retrospectivamente, nos anos 1960, para a “estranheza” da vida urbana para
os migrantes recém-chegados e para o “espaço psicológico mais amplo”, Amiri
Baraka observou que “a mão da sociedade paternalística era mais sutil, e essa
sutileza permitiu aos negros improvisarem um pouco mais em cima disso.”6

Pearl Bowser e Louise Spence, Writing Himself into History:


Oscar Micheaux, His Silent Films, and His Audiences.7
Índice
Livro um

Change the Pictures! 19


por Paulo Ricardo G. de Almeida

Em 1915 – D. W. Griffith
e o reembranquecimento da América 29
por Cedric J. Robinson

Livro Dois

“Algo para se ver a toda hora”: o cinema


e o lazer urbano negro em Chicago 61
por Jacqueline Stewart

EM BUSCA DE UM PÚBLICO -
A SEGREGAÇÃO E OS CINEMAS 81
por Pearl Bowser e Louise Spence

Livro Três

Uma breve história dos race movies 101


por Jane Gaines

Livro Quatro

A dualidade e o estilo de Micheaux 137


por J. Ronald Green

Cinema de classe média 157


por J. Ronald Green
Uma jornada tortuosa rumo à cidadania:
Dentro de nossas portas 181
por Jacqueline Stewart

Livro Cinco

Onde o Negro fracassa 199


por Oscar Micheaux

Três capítulos de The Homesteader


por Oscar Micheaux

Segunda época – Capítulo I


Sobre o casamento inter-racial 203

Quarta época – Capítulo II


O embargo 214

Quarta época – Capítulo III


Irene Grey 209

Caderno de fotos 225

Filmografia 249

Sobre os autores 277

Créditos 279
Change
the
Pictures!
Paulo Ricardo G. de Almeida

A
ntes do gesto icônico de Rosa Parks, de não ceder seu lugar no ônibus;
antes das passeatas pelos Direitos Civis de Martin Luther King; antes
dos discursos incendiários de Malcom X, houve Booker T. Washington,
o Grande Educador, que, por meio do Instituto Tuskegee, propunha o uplift de
race (a “elevação dos negros”) através da aprendizagem de trabalhos industriais
e agrícolas, bem como W.E.B. Du Bois, que preconizava, em The Souls of the
Black Folks, o acesso à educação universitária e ao voto para os afro-america-
nos. No cinema, antes de Spike Lee, ou Charles Burnett, ou Melvin Van Peebles,
houve Oscar Micheaux, que filmou no auge do racismo e da segregação, entre
as décadas de 1920 e 1940, sob vigilância implacável da censura e completa-
mente à margem dos estúdios de Hollywood. A retrospectiva Oscar Micheaux:
O cinema negro e a segregação racial traz para o Brasil, pela primeira vez, os
“race pictures”, produzidos exclusivamente para o público afro-americano, na
época em que as salas de cinemas também separavam os negros dos brancos.
Em 1954, no processo Brown vs. Board of Education, a Suprema Corte dos
EUA determinou, por unanimidade, que a separação de escolas para crianças
brancas e negras nos estados era inconstitucional. Chegava ao fim, oficialmente,
a segregação legalizada, que perdurou desde a Reconstrução (1865 - 1877) até
o movimento dos Direitos Civis, na década de 1950. Separate but equal (“sepa-
rados, mas iguais”), o mais nefasto eufemismo da História norte-americana, que

19
legitimou, no Sul das leis Jim Crow, mas também no Norte industrial e urbano, a voltavam para a massa de trabalhadores imigrantes, pobres e analfabetos que
existência de bares, restaurantes, banheiros públicos, bebedouros, ruas, guetos, chegaram aos milhões da Europa nas décadas anteriores. Italianos, alemães,
teatros e cinemas que segregavam os negros e os apartavam dos brancos. russos, judeus e irlandeses se aglomeravam nos grandes centros urbanos da
Havia cerca de 300 cinemas exclusivamente para o público afro-americano Costa Leste, onde dividiam até a mesma rua. Entre os imigrantes, o alemão Carl
durante a vigência da segregação, desde os grandes palácios nas darktowns Lammle, os húngaros William Fox e Adolph Zuckor, o russo Louis B. Mayer
do Norte (o Harlem, em Nova York, e o Sul de Chicago, principalmente), até e os irmãos poloneses Wonskoslaser (que americanizaram o sobrenome para
pequenas salas no Sul e no Meio-Oeste. Mixed theaters reservavam a plateia Warner), todos de ascendência judaica, desafiaram o Edison Trust e, para esca-
para os espectadores brancos e o balcão, ou seja, os assentos mais baratos, par do controle das patentes, foram para o local mais distante possível: a Costa
para os negros - que eram proibidos de descer ou de usar a mesma entrada que Oeste, onde fundaram, respectivamente, os estúdios Universal, Fox, Paramount,
os demais. Símbolos da época, as sessões midnight ramble permitiam que os MGM e Warner Brothers.
afro-americanos tivessem o cinema inteiramente a seu dispor apenas no último HOLLYWOOD(LAND). O letreiro, hoje incompleto, ainda se ergue em Los
horário do dia. Angeles, símbolo da indústria do cinema, terra onde se produziram sonhos e
Em 1942, quando a NAACP (Associação Nacional para o Avanço das Pes- estrelas: Clark Gable, Marilyn Monroe, Ava Gardner, Fred Astaire, Greta Gar-
soas de Cor) firmou com os cinco grandes estúdios de Hollywood — Univer- bo, John Wayne, Rita Hayworth, Bette Davis, Gary Cooper, Gene Kelly, Vivien
sal, Paramount, 20th Century Fox, Warner Brothers e RKO — um acordo para Leigh, James Stewart. Transformar o longa-metragem em padrão da indústria
aumentar e melhorar a representação dos afro-americanos nas telas, a fim de era vital para os estúdios que competiam com a MPPC: atrair não apenas os
se afastar dos estereótipos da Mammy, do Zip Coon, da Tragic Mulatta e do trabalhadores, mas suas famílias; trazer ao cinema não somente o proletariado,
Uncle Tom (de acordo com a classificação do pesquisador Donald Bogle), não como também a burguesia; conferir à nova arte os mesmos “direitos” da litera-
havia nenhum diretor, produtor ou roteirista negro dentro da maior indústria de tura e do teatro, a fim de legitimá-la.
cinema do mundo. As vozes se encontravam fora, do outro lado, nos subterrâ- D. W. Griffith trabalhou para o Edison Trust. Pela Biograph, dirigiu centenas
neos, dispersas, sufocadas. William D. Foster lançou The Railroad Porter em de curtas-metragens de um, de dois e de três rolos. Contudo, depois de assistir
1912, primeiro filme com elenco e diretor afro-americanos, assim como fundou a Cabíria (1914), de Giovanni Pastrone, Griffith dirigiu seu próprio épico, com
a primeira companhia negra cinematográfica, a Foster Photoplay Company, em mais de três horas de duração, sobre os EUA, O nascimento de uma nação, no
Chicago, em 1910. A ela se seguiram a Norman Picture Manufacturing Com- qual, já nas primeiras cartelas, o cineasta pede a igualdade do longa-metragem
pany, a Reol Films, a Ebony Film Company, a Lincoln Motion Picture Company, em relação às obras de Shakespeare. A importância seminal de O nascimento
entre outras. de uma nação para a História do cinema já foi mais do que debatida — de
O marco da explosão dos race pictures, contudo, foi o lançamento de O nas- como D.W. Griffith fundou a linguagem narrativa clássica, da continuidade do
cimento de uma nação (The Birth of a Nation), de D.W. Griffith, baseado no espaço, do campo / contracampo, da ação / reação, do tempo sujeito ao encade-
romance The Clansman, em 1915. A Motion Picture Patents Company (MPPC), amento lógico dos acontecimentos, por um lado, e de como os filmes saíram das
ou Edison Trust, fundada em dezembro de 1908, representou a união das maio- classes mais baixas em direção às mais abastadas, por outro. Contudo, apenas
res companhias cinematográficas norte-americanas da época — Edison, Lubin, recentemente, nos estudos de teóricos como Pearl Bowser, Jane Gaines, J. Ro-
Biograph, Vitagraph, Essanay, Selig, Kalem, Star Film Company e American nald Green, Corey Creekmur, Robert Stam, Louise Spence, Jacqueline Stewart,
Pathé — com o principal distribuidor (George Kleine) e a fornecedora de nega- Richard Peña e Charles Musser, destaca-se o lado perverso e racista do trabalho
tivos, a Eastman Kodak, para controlar a produção, a distribuição e a exibição de Griffith: a negação do afro-americano, que se torna o inimigo comum, contra
nos EUA. O Trust monopolizava as patentes, desde o filme virgem e a câmera, o qual todos os brancos, do Norte e do Sul, dos que já estavam e dos que imigra-
até o processo de revelação e os projetores nas salas. Assim, limitava-se o fi- ram, precisam se unir para combater.
nanciamento externo às companhias, impediam-se o surgimento e a competição Na sequência em que o grupo do Dr. Cameron se refugia na cabana com os
com novos estúdios e, para enxugar os custos, mantinham-se as produções res- dois veteranos do exército na União, a mensagem de Griffith é clara: os inimigos
tritas a apenas um rolo (de 13 a 17 minutos). são os negros, Norte e Sul devem se reconciliar para derrotar o “Mal” maior.
Diversões rápidas, baratas, acessíveis e descartáveis, os filmes da MPPC se “A chegada do Africano à América trouxe a primeira semente de desunião”,

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lê-se nas primeiras cartelas de O nascimento de uma nação. Mentira. O di- virulento discurso contra os afro-americanos: a célebre estrutura do “resgate no
retor mente, na verdade, desde o título: os EUA não nasceram com a Guerra último minuto”, com sua montagem paralela, servia para justificar a vingança
Civil, mas com os índios antes da chegada de Colombo, com os peregrinos do da Ku Klux Klan, a violência, os linchamentos, o sangue derramado. O final
Mayflower, com a Independência, com os “Pais Fundadores”. D.W. Griffith es- feliz, o duplo casamento entre os Stoneman e os Cameron, entre o Norte e o Sul,
colhe a Secessão, justamente, para criminalizar o negro, e apaga da sua versão era possível apenas com o extermínio completo de um povo, os negros, que fica-
da “História” qualquer referência aos diferentes interesses econômicos entre o rão à margem da indústria do cinema pelos quarenta anos seguintes.
Norte, industrial, urbano e com mão de obra livre e assalariada, e o Sul, rural Calvis S. e Belle Michaux, escravos alforriados, deixaram para trás o Ken-
e escravocrata. tucky, terra natal de D.W. Griffith, atravessaram o rio Ohio e se estabeleceram
D. W. Griffith nasceu no Kentucky, em 1875. Ouviu histórias sobre a Con- em Metropolis, Illinois, cidade em que Oscar Michaux (ainda sem o “e”) nasceu
federação, para a qual lutou seu pai. Mais importante, no entanto, para a cons- em 2 de janeiro de 1884, o quinto de treze irmãos. Como milhares de outras
trução dramática de O nascimento de uma nação, foi a literatura do período famílias afro-americanas, os Michaux abandonaram o Sul rural, onde impera-
Antebellum, que pretendia resgatar os supostos valores morais do Sul usurpados vam as leis Jim Crow e a segregação, rumo ao Norte, urbano, industrial, em que
pela invasão do Norte e pela libertação dos escravos. No final do século XIX e o racismo era mais velado e as possibilidades de ascensão econômica e social,
no início do século XX, emergiram as personagens da Southern Belle (a Bela mais palpáveis.
Sulista), meio menina, meio mulher, que provoca todos os homens, mas que, A Grande Migração: o maior movimento de corpos negros desde o tráfico de
paradoxalmente, mantém-se virgem — e sob constante ameaça de estupro pelos escravos, cujo ápice se deu nas décadas de 1910 e 1920. Ao mesmo tempo em
negros livres —, assim como a Mammy, negra gorda, assexuada, maternal e en- que os imigrantes europeus chegavam do Leste, os afro-americanos vinham do
graçada, oposto do que existia nas casas dos senhores (na maioria adolescentes Sul para as grandes cidades do Norte: Baltimore, Washington D.C., Detroit e,
de 12 a 14 anos, vítimas de abusos sexuais). Na sequência mais polêmica de O especialmente, Chicago e Nova York, nas quais se concentraram em guetos nas
nascimento de uma nação, Gus, o soldado negro da União, persegue Little Sister regiões Sul e no Harlem, respectivamente. O trabalho industrial pagava bem
que, a fim de manter sua honra, atira-se do penhasco. mais, a impressão de liberdade era maior do que nas fazendas — ao contrário
O nascimento de uma nação se baseia no romance The Clansman, do pastor das plantações, onde os negros nasciam e morriam nos mesmos lugares e fun-
Thomas Dixon. Sobre o racismo do filme, Griffith alegava que somente retratou ções, no meio urbano os limites eram tênues e fluidos, e havia a chance real
o momento histórico, sem julgá-lo. Após sua exibição na Casa Branca (a primei- de atravessá-los —, e a gama de divertimentos à disposição era incomparável:
ra vez que o cinema mereceu tal distinção), o presidente Woodrow Wilson, que o Jazz deixou Nova Orleans e subiu o Rio Mississippi em direção a Chicago;
fora historiador — e que instaurou a segregação no Executivo! — disse que “O o Blues saiu das lavouras de algodão e virou sucesso na voz de Bessie Smith;
nascimento de uma nação era a História escrita com a luz”. A legitimação pela comediantes negros em blackface dividiam os teatros exclusivos para afro-ame-
História, a película como documento, o cinema como verdade. Claro, tratava- ricanos com musicais e números de vaudeville; o Lafayette Players, em Nova
se apenas de uma versão dela: a falsa. O olhar do branco, dos vencedores, que York, encenava peças de prestígio para a comunidade; Zora Neale Hurston,
impuseram as leis Jim Crow, a perda dos direitos civis e do voto aos afro-ame- James Wheldon Johnson e outros expoentes literários da Renascença do Harlem
ricanos, a segregação. Griffith pregava para milhões de imigrantes, com pouco estavam em plena atividade; em Chicago, o “The Stroll”, rua com o melhor do
ou nenhum conhecimento da Guerra Civil e da Reconstrução, o que ele sabia entretenimento afro-americano, não parava.
— mesmo que fosse pura mentira. O Exílio (The Exile, 1931), primeiro longa-metragem afro-americano sonoro,
Por décadas, apontou-se Thomas Dixon como responsável pelo conteúdo ra- começa com planos da multidão que se aperta e perambula na cidade de Chicago.
cista de O nascimento de uma nação (pois Griffith seria apenas o “executor” Na trilha sonora, spirituals. A representação imagética do Norte e a musical do
da obra), análise que já caiu em desuso. Nos curtas-metragens que dirigiu para Sul se fundem para simbolizar, de acordo com Micheaux, a Grande Migração. Na
a Biograph, os “outros” de Griffith foram, sobretudo, os índios e os chineses, próxima sequência, o diretor nos leva ao nightclub, outro local de intercessão da
que ele tratou de maneira paternalista — a qual Dixon também emprega em cultura negra que, na época, em plena vigência da Lei Seca, era ilegal.
The Clansman: a raça ariana “superiora” deve ensinar e ajudar os negros a Nightclubs, cabarés, bordéis, jogos de azar, bebidas, pastores corruptos, ho-
progredirem. Em O nascimento de uma nação, porém, o cineasta invocou o mais mens que não trabalham, prostituição, amantes que sustentam seus parceiros,

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violência doméstica, estereótipos racistas. Ao contrário de outras produtoras ne- Micheaux adaptou seus três romances “autobiográficos” para o cinema. The
gras que competiam com Micheaux e visavam exclusivamente ao uplift the race, Conquest se transformou em O Exílio; The Wind from Nowhere, em The Be-
ou seja, mostrar o lado positivo que enobrecesse a comunidade afro-americana, trayal, seu último filme, em 1948; e The Homesteader no longa-metragem homô-
o cineasta não lhe escondia as mazelas. Criticava os vícios e os defeitos que nimo com que iniciou sua carreira nas telas, em 1919. A Lincoln Motion Picture
impediam os negros de progredirem: segundo Micheaux, havia o racismo, o pro- Company, dos irmãos Noble e George P. Johnson, que produzira os sucessos The
blema era real, mas sempre existiria — caberia aos afro-americanos superá-lo Realization of a Negro’s Ambition e The Trooper of Troop K, viu em The Homes-
por seus próprios méritos (olhar de acordo com o de Booker T. Washington). Em teader o veículo ideal para que Noble Johnson aumentasse seu prestígio entre o
Os filhos adotivos de Deus (God’s Step Children, 1938), talvez no discurso mais público afro-americano (character actor em Hollywood, ele interpretava sempre
ofensivo já proferido por um personagem negro, Jimmy compara a iniciativa do “o outro”, qualquer que fosse: negro, índio, chinês...). Contudo, as negociações
homem branco com a preguiça e a indolência do afro-americano, que prefere entre a Lincoln Motion Picture Company e Micheaux chegaram a dois pontos
gastar seu dinheiro em jogos e bebidas. Oscar Micheaux, antes de dar voz às insolúveis: primeiro, a Lincoln produzia filmes de apenas 3 rolos, e Micheaux
plateias negras, falava para esse público, queria ensiná-lo: o que nos parece queria que The Homesteader tivesse 8 rolos; segundo, e mais importante, Noble
revoltante hoje, foi compreendido por quem assistiu a ele em 1938, em cinemas Johnson temia o conteúdo inter-racial do romance, enquanto, para Oscar Mi-
segregados. cheaux, ele era fundamental — mesmo que só pela publicidade.
Nada era pior para Oscar Micheaux do que a falta de empreendedorismo A miscigenação está sempre presente no cinema de Oscar Micheaux, seja
do jovem afro-americano. Em 19 de março de 1910, no primeiro artigo que nos filmes sobre passing (personagens negros que se passam por brancos), seja
publicou no jornal Chicago Defender — Where the Negro Fails (“Onde o Negro no polêmico “sistema” de tons de pele que o cineasta emprega, no qual, apa-
Fracassa”, quando assinou com “e”, para se diferenciar do nome que herdou do rentemente, valoriza os mais claros em detrimento dos mais escuros. Em Veiled
senhor de escravos) —, Micheaux convocava os negros para seguirem o exemplo Aristocrats (1932) e Os filhos adotivos de Deus, Micheaux condena o passing,
de milhares de brancos (e dele mesmo, na verdade) e irem para o Oeste, com- mas não como John M. Stahl o faz em Imitação da vida (Imitation of Life, 1934).
prarem lotes de terras, transformarem-se em fazendeiros e voltarem ricos para No clássico de Hollywood, Peola se passa por branca, pois deseja as mesmas
as cidades. Desde 1905, ele se estabelecera no Condado de Gregory, na Dakota vantagens econômicas e sociais que os brancos possuem e, por isso, acaba pu-
de Sul, após trabalhar como engraxate, feirante, mineiro de carvão e cabineiro nida. Trata-se da lógica da segregação, ou seja, ela deve saber qual o seu lu-
dos vagões Pullman, através dos quais viajou pelos EUA, pelo México e pela gar. Para Micheaux, ao contrário, os afro-americanos precisam se igualar aos
América do Sul (quase chegou ao Brasil). No entanto, o casamento fracassado brancos, empreender. Ele condena Naomi, em Os filhos adotivos de Deus, por
com Orlean J. McCracken, filha do Reverendo Newton J. McCracken, mais as sua negação à comunidade afro-americana: ela trai a raça, ao não participar do
secas que devastaram a região, levaram-no à falência. esforço coletivo por sua melhoria
Oscar Micheaux, autodidata e leitor voraz de Jack London, James Wheldon Já o código com os tons de pele é bem mais complexo para explicar. Dos
Johnson e Charles W. Chesnutt, estabeleceu-se em Sioux City e fundou a Oscar filmes de Micheaux que sobreviveram — 15 dos mais de 40 que ele dirigiu
Micheaux Book Company. Para os vizinhos e amigos, vendeu ações da empre- —, heróis e heroínas mulatos de pele quase branca são, de fato, a maioria. O
sa até levantar o capital necessário para, independente das editoras, publicar cineasta, talvez, apenas seguisse a convenção adotada pelos demais race pictu-
The Conquest: The Story of a Negro Pioneer, em 1913, seu primeiro romance, res, ou se baseasse no padrão de beleza que D. W. Griffith moldou a partir de
no qual contava suas experiências como pioneiro na Dakota do Sul, o amor Lillian Gish e que influenciou as cinematografias do mundo inteiro nas décadas
impossível pela mulher branca, o casamento fracassado e as desavenças com o seguintes. O mais provável, no entanto — e se trata mesmo de suposições, visto
sogro e reverendo corrupto. Micheaux, na verdade, retornaria ao tema mais duas que a maior parte das obras se perderam —, aponta para o uso consciente das
vezes, em The Homesteader (1917) e em The Wind from Nowhere (1943), sempre diferentes tonalidades da pele como um indício da miscigenação que aconte-
dramatizando mais e mais os eventos, a fim de aumentar sua própria lenda de ceu nos Estados Unidos desde o período da escravidão. Em Birthright (1939),
maverick, de outsider e de herói: ao contrário do que reivindica, por exemplo, adaptação do romance homônimo do autor (branco) T.S. Stribling, por exemplo,
Micheaux não era o único afro-americano no Oeste; havia milhares, na Dakota o jovem mulato Peter Siner retorna de Harvard para o Sul, torna-se secretário
do Sul, em Oklahoma, e sua própria família migrara para Great Bend, Kansas! particular de fazendeiro local e, com a morte dele, recebe todas as suas proprie-

24 25
dades como herança. Stribling e Micheaux não falam diretamente, mas Peter Dentro de nossas portas une Dr. Vivian, do Norte, e Sylvia Landry, do Sul,
Siner (cujo sobrenome, Siner, significa “pecador” em português) é filho ilegítimo em casamento, como fizera D. W. Griffith em O nascimento de uma nação, com
do homem que o adotou já adulto, fruto de estupro ou concubinato com escrava Elsie Stoneman e Ben Cameron. No entanto, se o final feliz de O nascimento de
negra, o que justificaria a pele mais clara do rapaz. uma nação é possível apenas por meio da vingança e do extermínio dos afro-
Dentro de nossas portas (Within Our Gates, 1920) e O símbolo do incon- americanos, o que encerra Dentro de nossas portas acontece somente devido ao
quistado (The Symbol of the Unconquered, 1920) foram as respostas diretas de perdão e ao autorreconhecimento. Sylvia deve esquecer e perdoar o passado,
Oscar Micheaux a O nascimento de uma nação, a que ele assistiu, provavelmen- deixá-lo para trás, ao mesmo tempo em que se assume como negra e se orgulha
te, ainda na Dakota do Sul ou em Sioux City. O título Dentro de nossas portas de suas raízes. Se Griffith elege os afro-americanos como inimigos comuns a
se baseia na primeira cartela de The Romance of Happy Valley, que Griffith partir dos quais os imigrantes europeus podem se reconhecer como brancos
lançara meses antes: Harm not the stranger / within your gates / lest you your- norte-americanos, Micheaux afirma que os afro-americanos “nunca foram imi-
self be hurt (Não faça mal ao estranho / dentro de suas portas / para que você grantes”, sempre estiveram nos Estados Unidos, também construíram a nação
mesmo não seja ferido). Já O símbolo do inconquistado cita explicitamente uma e merecem sua parte.
cartela de O nascimento de uma nação: Here I raised the ancient symbol of an Em O símbolo do inconquistado, Micheaux parodia violentamente a Ku Klux
unconquered race of men, the fiery cross of old Scotland’s hills... (Aqui eu ergo Klan: em sua versão, integram os Cavaleiros da Cruz Negra um índio, um fa-
o ancestral símbolo de uma raça inconquistável de homens, a cruz ardente das quir, um negro que se passa por branco e um médico inglês casado com uma
velhas colinas escocesas...). afro-americana! Menos o racismo, e mais interesses econômicos os motivam:
Sylvia Landry, a heroína de Dentro de nossas portas, após desmanchar o eles querem expulsar Hugh Van Allen de suas terras, ricas em petróleo. Por
noivado com seu pretendente do Norte, retorna ao Sul para levantar fundos para outro lado, embora o público saiba, desde o começo do filme, que Eve Mason é
escola que muito se assemelha ao Instituto Tuskegee, de Booker T. Washington. negra, o herói acredita que ela seja branca, em outro romance inter-racial que
De volta ao Norte, ela conhece o também culto e educado Dr. Vivian (nome evoca a “Garota Escocesa” de The Conquest: The Story of a Negro Pioneer.
feminino para personagem masculino), que igualmente trabalha para a melho- Oscar Micheaux dirigiu, escreveu, produziu e distribuiu mais de quarenta
ria da comunidade afro-americana. Ambos se apaixonam, mas um segredo no longas-metragens, entre 1919 e 1948. Filmes baratíssimos, de 10 a 15 mil
passado de Sylvia, bem na tradição das “mulatas trágicas” da literatura do sé- dólares, três a quatro por ano, em locações de conhecidos ou estúdios an-
culo XIX, impede-a de se entregar ao amor. Oscar Micheaux recorre ao longo tigos, com pontas de negativos veladas, misturando atores experientes com
flashback que encerra a narrativa e coloca no Sul a razão do trauma de Sylvia: não profissionais. Um único take para cada plano, sem chance de erro (o
o assassinato e linchamento de sua família adotiva pela turba de fazendeiros e que não acontecia, claro). Se o roteiro pedisse mais de um cenário, a solução
de posseiros brancos e a tentativa de Armand Gridlestone, que se revelará seu era trocar os móveis e os quadros de lugar, para que o mesmo espaço pare-
verdadeiro pai, de estuprá-la. cesse outro: change the pictures!, ordenava Micheaux aos assistentes. A fim
Como em Birthright, outra vez, o cadáver insepulto da escravidão retorna de produzi-los, o cineasta vendia ações de sua companhia para investidores
para assombrar os personagens em Dentro de nossas portas; Sylvia Landry é da comunidade negra, levantava parte do capital e filmava; apresentava o
a filha ilegítima de Armand Gridlestone com uma escrava negra anônima, re- material incompleto para os donos de cinemas e pedia o resto do dinheiro;
sultado de estupro ou concubinato. Micheaux, assim, inverte a narrativa de O depois, concluía o filme; por fim, agendava as cópias nas salas, nunca mais
nascimento de uma nação: não são os negros libertos que, com sua sexualidade do que dois ou três dias a cada semana, e saía com elas cidade por cidade, no
bestial, ameaçavam as pobres e indefesas mulheres brancas do Sul, mas os se- Norte, Sul, e Meio-Oeste. Cada obra circulava por anos, até se esfarelar pelo
nhores das plantações que sistematicamente abusavam sexualmente de suas es- desgaste das exibições.
cravas, como métodos de intimidação e de controle. Quando havia a escravidão Micheaux faleceu em Charlotte, Carolina do Norte, em 1951, aos 67 anos,
e era fácil determinar o lugar do negro, a miscigenação não era um problema. de ataque cardíaco. Cuidava, pessoalmente, da venda de seu novo romance.
No entanto, com a liberdade e as fronteiras mais tênues entres as raças, as leis Empreendedor até o fim.
Jim Crow, a segregação e obras como as de Thomas Dixon e de D.W. Griffith se
tornaram necessárias.

26 27
27
Em 1915 -
D.W. Griffith e o
reembranquecimento
da América1
Cedric J. Robinson

O propósito do racismo é controlar o comportamen-


to dos brancos, não dos negros. Para os negros, armas
e tanques são suficientes.

— Otis Madison, “Confronting Racism”, janeiro de 1997.

Reembranquecendo a história

S
e tomarmos o ano de 1915 como um momento particularmente auspicioso
para a história cinematográfica, podemos dizer que o número crucial de
eventos históricos que colidiu com o surgimento de O nascimento de uma
nação (The Birth of a Nation), de D.W. Griffith, sugere que este foi um momento
em que o mapeamento da cultura norte-americana foi reestabelecido, em que
os contornos das práticas sociais que vieram a caracterizar o século XX para a
sociedade norte-americana foram demarcados. Vamos considerar essa possibi-
lidade por um instante. O ano de 1915, é claro, marcou o quinquagésimo ano
do fim da guerra civil norte-americana. Foi também o segundo ano da Primeira
Guerra Mundial, o ano em que submarinos alemães afundaram o Lusitania e
em que Hugo Junkers desenvolveu o primeiro avião militar. Também neste ano,

29
e mais próximos da preocupação deste texto, Leo Frank foi linchado; a segun- economia aparentava possuir um apetite voraz por trabalhadores, com as vastas
da Ku Klux Klan foi inaugurada; os Estados Unidos invadiram o Haiti; e Jess plantações destinadas à indústria — enormes minas de carvão e de prata no oeste,
Willard derrotou o negro Jack Johnson, lutador de boxe peso pesado. E, é claro, estaleiros e fábricas de bens de consumo duráveis ou não no nordeste, matadouros
o nacionalismo norte-americano e o imperialismo fora das fronteiras eram cons- no Meio-Oeste, serrarias no sul e no extremo oeste, sem falar na produção de aço,
tantemente estimulados pelos espetáculos sociais e pelos patrióticos catecismos ferro, ferrovias, vestuário, bens alimentícios, e na expansão horizontal e vertical de
morais incitados por 17 anos de domínio sobre as Filipinas e sobre o Caribe. suas cidades. Eles vieram em milhões: 5,5 milhões na década de 1880; 4 milhões
Também implicados em nossa história cinematográfica estão os protestos em na de 1890; 14 milhões entre 1900 e 1920.6 Alguns migraram do sul americano,
massa em resposta a O nascimento de uma nação levados a cabo pela NAACP, do Caribe e da Ásia, mas muitos mais vieram do sul e do leste europeu.
a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor, criada havia seis Nas cidades, os imigrantes se amontoavam em guetos esquálidos, arranjados
anos. Além disso, fora fundada a Associação para o Estudo da Vida e da História da forma como foram recrutados: por emprego, por língua, por cultura, por reli-
Afro-Americana (ASALH).2 Finalmente, o sucesso fenomenal de O nascimento gião e por nação de origem. A afirmação de Robert Sklar de que “a velha cidade
de uma nação (Neal Gabler o descreveu como “o primeiro blockbuster”)3 trouxe americana, que antes fora uma comunidade apenas, transformou-se numa nova
aos independentes o definitivo triunfo frente ao Edison’s Trust, estabelecendo cidade americana de muitas comunidades, separadas entre si por barreiras so-
assim a estrutura que governaria a indústria do cinema na década seguinte. ciais”7 não era historicamente correta, mas o imenso volume de recém-chega-
Nas telas, Griffith fez diversas alegações explícitas para seu filme. No início dos poderia dar tal impressão. Desde os tempos coloniais, o recrutamento para
de O nascimento de uma nação, antes de ele introduzir seus “farsantes” e os pa- assentamentos norte-americanos foi geralmente diverso, e a homogeneidade era
péis que eles desempenharam, Griffith combinou num intertítulo uma pretensa exceção. No campo, onde centenas de milhares de imigrantes estavam emprega-
sensibilidade para a etiqueta social, sua determinação para um sistema moral dos como mineiros e madeireiros, e onde foram organizados “residencialmente”
binário claro e abrangente, e a reivindicação de que seu filme era uma obra de por um planejamento de cálculo, os assentamentos existiam em cidadezinhas
arte: “Não temos o desejo de ofender com impropriedades ou obscenidades, e em campos, sendo arregimentados por fiscais e funcionários das empresas.
mas demandamos, como um direito, a liberdade de mostrar o lado obscuro do Numericamente dominados por homens, esses agrupamentos de migrantes e de
erro, para que talvez possamos iluminar o lado positivo da virtude — a mesma imigrantes exibiam em suas atividades recreativas o que a sociedade educada
liberdade que é concedida à arte da palavra escrita, à arte a que devemos a tinha como vícios dos pobres e dos ignorantes: alcoolismo, drogas (cigarros e
Bíblia e os trabalhos de Shakespeare.”4 Logo depois, tendo privilegiado Lillian ópio) e beligerância desordeira. E para aliviar as frustrações sexuais e a soli-
Gish (Elsie Stoneman), Mae Marsh (Flora Cameron), Henry Walthall (coronel dão que resultavam da separação de suas famílias e comunidades nativas, seus
Ben Cameron), Miriam Cooper (Margaret Cameron) e Mary Alden (descrita pelo desabridos impulsos sexuais incentivaram a prostituição e a transformação do
roteiro de continuidade como “Lydia, a governanta mulata de Stoneman”), e teatro burlesco em exibicionismo feminino. Os nickelodeons, cinemas antigos
apresentado outros 14 personagens, Griffith inseriu outra alegação: “Se neste cuja entrada era de cinco centavos de dólar, eram outra história. Kathy Peiss
trabalho tivermos transmitido a devastação que a guerra causa de forma a que conta que, quando substituíram os arcades,8 esses cinemas tomaram o aspecto
a guerra seja vista como abominável, então este esforço não terá sido em vão.”5 de “pontos de encontro da comunidade”. Os exibidores tinham como alvo as
Assim, o filme de Griffith é marcado pela colisão das forças econômicas e cul- mulheres e as famílias dos assentamentos, e, em 1910, 40% da plateia era com-
turais de seu tempo: a hegemonia dos valores morais vitorianos se confrontava posta por mulheres.9 Nesse mesmo ano, descobriu-se que a classe trabalhadora
com a meteórica expansão da classe trabalhadora, culturalmente diversa; ho- constituía 75% dos 26 milhões de espectadores cinematográficos registrados
mens de negócio insurgentes e empreendedores na nova indústria cinematográ- àquele ano.10
fica, de forma a justificar sua frágil posição econômica, passaram a reivindicar Durante anos, conforme Griffith sugere no prelúdio de O nascimento de uma
o status de artistas; e filmes sendo propostos como um lugar de instrução moral. nação, os nickelodeons foram objeto de suspeita e de revolta por parte das elites
Imensos interesses financeiros, industriais e comerciais já haviam transforma- e da classe média. Tom Gunning observou que “os filmes representavam um
do a economia norte-americana, de uma sociedade eminentemente rural ligada à passatempo da classe trabalhadora que surgira sem controle — ou mesmo co-
terra e às atividades manufatureiras, num gigante urbano e industrializado capaz nhecimento — da classe média, a guardiã da cultura”.11 Os reformistas tinham
de suplantar a produção industrial da Grã-Bretanha e da Alemanha. E agora a como objetivo limpar os cinemas de suas “obscenidades e impropriedades”, de

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forma a transformá-los em instrumentos para a educação moral e cultural. De fica em seu início, ao inventar, financiar e reparar equipamentos de filmagem”.
acordo com Mary Grey Peck, filiada ao Women’s Clubs12 de 1917, “os filmes vão Mas, em 1912, o truste foi efetivamente desafiado por exibidores e por produtores,
salvar nossa civilização da destruição que assombrou sucessivamente todas as que eram “judeus e católicos, em sua maioria”.17 Para Gabler, essas diferenças
civilizações do nosso passado. Eles fornecem o que toda civilização não possui, eram importantes, senão inteiramente factuais. Havia parceiros judeus no trus-
ou seja, o alívio, a felicidade e a inspiração às mentes das pessoas na base da te, e também nos dois arranjos que o precederam, que detinham relativo poder.
sociedade.” O World Today declarou em 1908 que os filmes eram “a academia Quanto a isso, a descrição de Gabler parece mais próxima da verdade. O rela-
do trabalhador, seu púlpito, seu jornal, seu clube”.13 Em O nascimento de uma to de Tom Gunning do litígio punitivo e protecionista iniciado durante a era do
nação, dado o enorme gasto de capital, Griffith fez uma tentativa de se apropriar pré-truste facilmente designa a Edison e a Biograph como as mais habilidosas,
dos objetivos dos reformistas, mas antes ele fora menos circunspecto. Kevin persistentes e poderosas.18 Nossa preocupação com essas questões é mais deri-
Brownlow informa que “D.W. Griffith nutria um desprezo particular por eles. vativa. No começo de 1908, em pleno ápice da competição com a Edison, a Bio-
Em 1913, ele havia feito um filme extraordinário chamado The Reformers; or, graph converteu Griffith de ator para diretor. Sua prolificidade àquele ano ajudou
the Lost Art of Minding One’s Own Business. (…) Dois de seus reformistas são a deixar a Biograph competitiva. Como consequência, a Biograph viu sua fortuna
obviamente homossexuais, e Griffith chegou ao ponto de mostrar prostitutas, florescer suficientemente (o que foi também facilitado pela agressiva busca de
vestidas como beatas devotas, indo ganhar a vida.”14 patentes, de parceiros de importação, e de produção e de estratégias de marke-
Brownlow, um cineasta e um estudioso do cinema mudo, assegura-nos de que ting) para forçar uma fusão com o truste da Edison no fim de 1908.19 Não menos
o período antes de 1919 foi a “fonte mais rica de filmes sociais”, mas que muitos importante foi um canal secundário que tratava do deleite do público pelo teatro
dos diretores desse gênero, como George Nichols, Barry O’Neill e Oscar Apfel, iídiche, com menestréis brancos (maquiados de negros).
foram logo esquecidos (no entanto, colaboradores mais ocasionais, como Raoul O truste assinara um acordo exclusivo com a Eastman Kodak, assegurando
Walsh e King Vidor, tiveram mais sorte). E provavelmente mais extraordinária que a película só estivesse disponível para aqueles que operassem sob suas
do que eles foi Lois Weber, uma cientista cristã que não era cínica quanto à re- licenças. Com esses diversos instrumentos de controle, o monopólio determi-
forma, devotando toda a sua carreira à causa. Em 1913, Weber dirigiu Suspense, nou que os filmes fossem passatempos de apenas um rolo para os pobres e que
Civilized and Savage e The Jew’s Christmas (preocupados com a pobreza e o neles seria inserida sua própria ética social, incluindo o antissemitismo. De
racismo, e com o antissemitismo, respectivamente); em 1914, ela produziu The acordo com uma reportagem de 1913 publicada no semanário Moving Pictu-
Hypocrites, expondo a corrupção de igrejas, de políticos e de grandes empresas; re World, como Kevin Brownlow conta: “‘Quando um produtor queria retratar
e depois ela filmou histórias que tratavam do aborto e do controle de natalidade um traidor da confiança do público’, diz o repórter da Liga Antidifamação, 20
(Where Are My Children, 1916), do contrabando de ópio (Hop, the Devil’s Brew, ‘um agiota durão, um jogador compulsivo, um extorsionário, um piromaníaco
1916), da pena de morte (The People vs. John Doe, 1916), e do alcoolismo (Even depravado, um escravo branco, ou outros vilões de variados tipos, ao ator era
as You and I, 1917).15 dada a instrução de que ele representasse um judeu.’”21 Os independentes —
Àquele tempo, a incursão de Griffith no domínio da moral com O nascimento como Adolph Zukor, Carl Laemmle com Robert Cochrane, William Fox e Harry
de uma nação não foi singular ou incomum, mas coincidiu com uma profun- Aitken22 — desafiaram o truste ao filmar às escondidas usando equipamentos
da mudança estrutural na produção e na exibição de filmes. De 1908 a 1914, patenteados por este, incursionando nas produtoras do truste à procura dos ato-
a produção e a exibição de filmes haviam sido dominadas pelo Edison’s Trust, res mais reconhecidos pelo público, movendo ações, introduzindo longas-me-
também conhecido como Motion Picture Patents Company (“O truste”, como tragens e importando filmes da Europa. E eles asseguraram financiamento por
Carl Laemmle o denominou), que reunia todas as grandes empresas de cinema meio de bancos de investimento judeus, como S.W. Strauss; Kuhn, Loeb & Co.;
norte-americanas (Edison, Biograph, Vitagraph, Essanay, Kalem, Selig, Lubin, e Goldman Sachs.23 Como consequência, Brownlow observa que “referências
Star Film Company, Pathé Frères e Méliès, e George Kleine).16 Os membros desse diretas a criminosos judeus começaram a desaparecer das telas, em parte por-
quase monopólio — baseado, entre outros, em patentes para câmeras e para pro- que mais judeus estavam controlando o negócio do cinema”.24 Dentre os filmes
jetores, cujas detentoras eram as produtoras Edison e a American Mutoscope and que eles importaram estavam o francês Rainha Elizabeth (Les amours de la
Biograph — eram, como Neal Gabler coloca, “primordialmente brancos, anglo- reine Élisabeth, 1912), com Sarah Bernhardt, e os épicos italianos Quo Vadis?
-saxões, protestantes, e já mais velhos, pois entraram na indústria cinematográ- (1913) e Cabiria (1914). E quando a guerra interrompeu o acesso à Europa, a

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Mutual Company de Aitken e a Kuhn, Loeb & Co. (por meio de Felix e de Otto Griffith agora efetua uma fusão entre “a tormenta que se aproxima” — um
Kahn) retomaram os trabalhos ao apoiarem o projeto de Griffith de produzir o jornal sulista anuncia a posição do sul para as eleições presidenciais de 1860
primeiro épico feito nos Estados Unidos.25 Também é importante destacar que — e cenas que descrevem a dupla corrupção de Stoneman: sua ambição pelo
Louis B. Mayer, outro dos futuros magnatas do cinema, adquiriu seu primeiro poder e sua aparentemente íntima relação com Lydia, sua governanta mulata:
retorno financeiro no negócio (algo como 500 mil dólares) ao assegurar os di- “A fraqueza do grande líder vai envenenar uma nação.”31 Ao associar Stone-
reitos de exibição de O nascimento de uma nação para a Nova Inglaterra.26 “O man com mulatos como Lydia e, depois, Silas Lynch, Griffith se esquivou de
que é certo é que o período da história do cinema que se seguiu a Griffith trouxe outra verdade histórica, enxertando a “praga” da miscigenação num poderoso
imigrantes ao poder em Hollywood.”27 abolicionista do norte. Na realidade, a maioria dos quase 500 mil mulatos dos
Voltando a O nascimento de uma nação, logo após postulá-lo como filme Estados Unidos residia no sul na metade do século XIX, assim como escravas
antiguerra, ele introduz um padrão para a branquidade disfarçada de metáfora e donos de escravos. No entanto, uma vez que Griffith infundirá em seus dois
edênica: “Quando trouxeram africanos aos Estados Unidos, plantou-se a pri- personagens mulatos uma sexualidade neurótica demandada pelo enredo e pela
meira semente da desunião.” Ele omite a brutalidade e o sofrimento do tráfico ideologia, revelar a relação destes com os grandes proprietários seria arriscar
de escravos, a tirania da apropriação em massa da vida e do trabalho africanos, uma especulação inapropriada quanto à fonte de sua depravação sexual. En-
ao seguir tal intertítulo com uma cena que retrata o beneplácito de um pas- quanto isso, os irmãos Stoneman voltam ao norte.
tor cristão a um leilão de escravos. Seu próximo assunto são os insignificantes O restante da primeira parte do filme aborda a guerra civil. E aqui Griffith
abolicionistas brancos (suprimindo os abolicionistas negros que dominavam o exibe sua extraordinária habilidade técnica, estabelecendo as convenções cine-
movimento a partir da década de 1840), 28 sentimentalizados por sua preocu- matográficas que vão dominar as descrições da guerra pelas décadas seguintes:
pação com uma criança negra; e então ele instaura o primeiro antagonista de a beleza trágica e a elegância irônica do baile dos confederados interrompido
sua estrutura melodramática: “Em 1860, um grande líder parlamentar, a quem pela chamada às armas (imitado de maneira poderosa em A estrada de Santa
chamaremos Austin Stoneman, chegou ao poder na Câmara dos Representan- Fé [Santa Fe Trail, 1940], um filme que deve muito cinemática e ideologica-
tes.” As ambições de Stoneman pelo poder irão corromper o abolicionismo, mas mente a Griffith); as tropas confederadas desfilando nas ruas de Piedmont e
por ora a única tensão presente em sua idílica casa é o desconforto de Elsie de conduzidas por oficiais a cavalo; os exércitos em batalha, vastos, além dos atos
ser excluída do plano dos irmãos de visitar amigos (os irmãos Cameron) no sul. de heroísmo individualizados (Ben Cameron liderando suas tropas até uma bar-
Após estabelecer a casa dos Stoneman, Griffith imediatamente pastoreia a pla- ragem unionista, e depois levando água a um soldado ferido da União; um Ben
teia de volta à tradição edênica: “Piedmont, Carolina do Sul, o lar dos Cameron, Cameron ferido resgatando a bandeira dos confederados no meio do incêndio);
onde o tranquilo decorrer da vida tem os dias contados.” e a fraternidade estilhaçada (“Os amigos íntimos prometem se encontrar de
A descrição do lar dos Cameron difere da introdução por Griffith dos Stone- novo”), quando Tod Stoneman e Duke Cameron morrem juntos. Griffith reence-
man em duas formas importantes: há mais cenas exteriores do que interiores na o incêndio de Atlanta (que é precedido pelo maravilhoso plano do exército de
(uma longa cena passada na residência dos Cameron confirma visualmente o Sherman marchando) e providencia detalhes que trazem autenticidade à tenta-
sereno e estilizado aspecto patriarcal da vida pré-guerra civil); e as ruas e a tiva desesperada de Robert E. Lee de romper o cerco da União em Petersburg.
casa são decoradas com afáveis escravos domésticos adultos (interpretados por E, verdadeiro à promessa feita para sua plateia, Griffith mostra cenas gráficas
atores brancos maquiados de negros); as crianças negras brincam enquanto da carnificina da guerra.
brancos observam. Os Stoneman chegam, e os caçulas das duas famílias viram Enquanto isso, uma guerrilha composta por negros invade Piedmont (“O
amigos íntimos; Ben Cameron se enamora de um retrato em miniatura de Elsie, primeiro regimento de negros se forma na Carolina do Sul”), numa tentativa
enquanto Phil Stoneman se sente atraído por Margaret Cameron. Os jovens de de colocar fogo à residência dos Cameron, mas é frustrada por confederados
ambas as famílias visitam um bairro de escravos, e os escravos improvisam uma que vêm ao resgate. Na guerra real, aproximadamente 189 mil negros lutaram
dança, batendo os pés e aplaudindo. Griffith arrancou da história escravos fugi- no exército da União, a maioria deles de forma voluntária e vinda de estados
tivos, subjugando os Nat Turners e os David Walkers, 29 e, com eles, desapare- escravagistas. Eles lutaram em 449 confrontos, somando 16% das 360.222 bai-
ceram as centenas de comunidades de escravos fugitivos que levaram medo aos xas da União. As tropas confederadas, inicialmente, assassinavam os negros
corações dos proprietários de terra, das autoridades oficiais e de suas milícias.30 unionistas capturados (em Fort Pillow e em Poison Spring, por exemplo); mas,

34 35
quando pelotões negros juram que não farão prisioneiros, Lee e outros oficiais aparência física tinha a marca da selva e do animal bravio.”37 E os personagens
confederados insistem e então estendem aos negros as regras da guerra “civi- arianos de Dixon, um após o outro, são quase vencidos pelo “odor africano” da
lizada”.32 Uma vez mais, Griffith mescla história e ideologia, restringindo sua bestialidade negra.
reconstrução do trabalho das tropas negras a atos de pilhagem, e vitimizando É compreensível que a insatisfação de Dixon com os mulatos seja ainda mais
os fracos e as mulheres. pronunciada. A existência mestiça deles causa simultaneamente atração e re-
Wade Cameron é morto, e Ben, ferido, termina num hospital militar tem- pulsa. Dixon mais de uma vez se refere à Lydia como uma mulher de “beleza
porário da União (onde Elsie, fiel ao uso melodramático da coincidência, era animal” com um temperamento “pantérico”, de ambição incomum, e com mag-
voluntária), condenado a ser enforcado como um guerrilheiro. Elsie e a mãe netismo sexual suficiente para arruinar uma nação. Nas páginas finais de seu
de Ben voltam a se ver na cama de hospital de Ben; e a sra. Cameron, cien- romance, Dixon faz Stoneman confessar: “Três forças me moveram — sucesso
te do infortúnio de seu filho, viaja com Elsie para apelar a Lincoln pela vida no partido, uma mulher perversa, e o desejo imoderado de vingança pessoal.
dele. Lincoln (“o Grande Coração”) intercede. Lee se rende a Grant (Griffith Assim que eu me tornei vítima das armadilhas de uma exploradora covarde que
reproduz o quadro de Horace Porter da batalha de Appomattox); e Ben, agora guardava minha casa, sonhei em erguê-la ao meu nível.” E Dixon descreve Silas
restabelecido, retorna à sua amada porém arruinada propriedade. Cinco dias Lynch como “um homem de atributos aprazíveis para um mulato, que evidente-
após a rendição confederada, Lincoln comparece a uma apresentação da peça mente herdou todas as suas características físicas da raça ariana, enquanto seus
Our American Cousin [Nosso primo americano] no teatro Ford e é assassinado olhos escuros e amarelados abaixo das sobrancelhas grossas cintilam com o bri-
por John Wilkes Booth. Na casa dos Stoneman, Lydia exulta ao saber da notícia, lho da selva africana (...) da floresta primitiva.”38 Como Griffith mesmo revelou,
dizendo com malícia a Stoneman: “Você é agora o homem mais poderoso dos ele foi bem-sucedido na difícil tarefa de reconciliar a representação afetuosa de
Estados Unidos.” Na residência dos Cameron, o sr. Cameron lamenta: “Nosso seus primeiros filmes com a construção absolutamente feroz de Thomas Dixon
melhor amigo se foi. O que será de nós agora?” Fim da primeira parte. Jr. dos negros, ao interpor um mestre maligno: um nortista que apoiava a Re-
A representação de Griffith da Reconstrução33 é prefaciada por uma alega- construção e o partido republicano depois da guerra civil.
ção que ele repetiria até o fim de seus dias: “Isto é uma apresentação histórica A segunda parte de O nascimento de uma nação não é mais histórica do que
da guerra civil e do período de Reconstrução, e não intenciona refletir raça ou a antecedente; e, em sua constante e obstinada representação da consciência de
povo algum da atualidade.” E então, num excerto retirado de A History of the raça de Dixon, acentua-se a vilania de negros, de mulatos e de seu Rasputin
American People [Uma história do povo americano], de Woodrow Wilson, Grif- abolicionista com vitalidade melodramática. Sob a liderança do vice-governador
fith assegura sua plateia de que a Ku Klux Klan ergueu-se para defender “a Silas Lynch, os negros se apropriam do poder, ameaçam a tranquilidade das
civilização do sul” das depredações do Congresso e de invasores “aventureiros” ruas de Piedmont, e começam a destruir a civilização e as mulheres brancas.
que buscavam “extorquir, maltratar e usar os negros”. Na quase ininteligível imitação que fazem do inglês, eles demandam direitos
Em seus filmes anteriores, o racismo de Griffith assumiu uma forma senti- civis e políticos dos quais eles nada entendem: “Si eu não consigo vantage pra
mental e paternalista. Assim, como Jack Temple Kirby informa, negros eram encher os bolso, quero nem saber.” A corrupção e a cobiça deles não têm limi-
retratados por Griffith em filmes como In Old Kentuchy (1909), Swords and tes: a lei, as cortes, a legislatura (cenas da câmara dominada por negros têm
Hearts (1911), His Trust (1911) e His Trust Fulfilled (1911) como serviçais “ne- como intertítulo: “O alvoroço na Casa de Governo”), a terra e a propriedade, a
gros sempre leais que torciam, choravam, confortavam”, acorrentados à aristo- igualdade social, e as mais virtuosas mulheres brancas. Por sua ironia involun-
cracia rural.34 Kirby está convencido de que “a maior indulgência de Griffith tária, é fascinante que Griffith construa a acusação de negros num reflexo da
ao tema ‘o negro como besta’ estava em O nascimento de uma nação”. Thomas ordem escravagista pré-guerra civil: as fraudes e as injustiças durante o pleito
Dixon Jr. colaborara com Griffith na construção de trechos do filme na primeira (“Todos os negros têm sua cédula, enquanto que os líderes brancos não contam
parte, mas agora na segunda a virulência feroz do ódio racial verificado em com as suas”); o domínio racial sobre a lei (“O caso foi levado a um magistrado
The Clansman (1905), de Dixon,35 tornou-se dominante.36 Como Thomas Clark negro e o veredicto foi emitido contra os brancos por um júri negro”); o avanço
observa na reedição do livro em 1970, “não há comicidade (...) na descrição dos privilégios de raça na legislação (“Passam um projeto de lei, para permitir
que Dixon faz dos negros. Ele recita cada coisa abusiva que se tem dito sobre a casamentos entre brancos e negros”); o terror e o pânico (“A cidade entregue
raça. No decorrer de todo o livro, ele retrata o negro como um bruto sensual cuja a negros enlouquecidos trazidos por Lynch e por Stoneman para intimidar os

36 37
brancos”); as exibições públicas e rotineiras de insultos e de humilhações ra- bem-postas e apocalípticas, mas também preparam a plateia espertamente para
ciais, e assim sucessivamente.39 Como Woodrow Wilson, Griffith reposicionou a mensagem final nacionalista de Griffith: “Liberdade e união, uma e insepa-
seu sustentáculo moral do apoio à justiça para a preocupação racial. Ambos rável, agora e para sempre!” A justaposição abrupta dessas construções visuais
fizeram interpretações da história, transferindo os crimes da ordem escravagista funde na consciência de massa a branquidade, a predestinação histórica, a civi-
para o fantástico mito da Reconstrução deles. lização cristã, além da teodiceia, piedade filial e patriarcalismo raciais.
Enquanto as tragédias brancas se acumulam, Ben imagina fortuitamente (“A Em O nascimento de uma nação, Griffith invocou oposições estruturais e dis-
Inspiração”) a criação de um Império Invisível: a Ku Klux Klan. Essa invenção cursivas para lograr representações de bem e de mal, empregando convenções
quanto às origens da Ku Klux Klan não provém de Dixon, mas de Griffith. narrativas que eram absolutamente familiares à elite cultural e irresistíveis para
Dixon, que dedicou The Clansman a seu tio, o coronel Leroy McAtee, “grande a imaginação popular. Como Platão fez em A república para sua plateia na Acade-
titã da Ku Klux Klan”, tinha mais discernimento. No romance, Dixon prestou mia de Antenas, Griffith designou um lugar para sua contestação moral: o espaço
homenagem ao líder da Ku Klux Klan, Bradford Forrest, e detalhou com esmero metafórico e ideológico ocupado por duas famílias rivais, uma sulista, e outra
as minúcias dos rituais. A versão de Woodrow Wilson contradiz a verossimi- nortista. Ao contrário de Platão, para quem a oposição entre atenienses (os irmãos
lhança de Dixon quanto a este aspecto, mas compartilha com Dixon e com de Platão e Sócrates) e os não atenienses (Céfalo e seus filhos, além do sofista
Griffith as razões fundamentais de tal sociedade secreta: “Os negros ficavam Trasímaco) era imutável,43 Griffith resolveu a contradição entre o real (o sul) e o
em pânico ao ver esses membros da Ku Klux Klan encapuzados se aproximando irreal (o norte), ao transformar o conflito em construções raciais. Os Stoneman e
deles à noite; e o receio deles era tão cômico que estimulava os rapazes a fazer os Cameron são brancos, uma fraternidade racial ariana, a “nação” iminente. Em
muitas brincadeiras extravagantes e farsescas.”40 Uma dessas “brincadeiras” é oposição a esta utopia racial, estava o mal onipresente: os negros e seus mulatos
a castração de Gus, o negro depravado de uniforme, numa das sequências mais mestiços, cuja selvageria, anarquia e desejos sexuais envenenavam a força vital,
memoráveis do filme (a da perseguição a Gus), na qual ele persegue Flora, a biológica e espiritual dos bons. Estava claro que, tanto para Griffith como para
filha caçula de Cameron, e a leva ao suicídio.41 Mas é o espectro dessa deprava- Dixon, “uma das razões principais para a feitura do filme foi a de ajudar a ‘preve-
ção negra que vai reconciliar Elsie e Phil Stoneman, e também Ben e Margaret nir a mistura dos sangues branco e negro com o casamento inter-racial’.”44
Cameron, quando eles abraçam a causa do Klan: “Os antigos inimigos do norte Em vez de uma disputa entre facções opostas do capital pela dominação
e o sul se unem de novo na defesa comum de seu direito ariano de nascimento.” de milhões de trabalhadores sulistas (negros e brancos), Griffith remodela a
Enlouquecido por uma ambição que traz o caos para sua própria instabilida- guerra civil norte-americana como uma violenta confrontação fratricida entre
de congênita, Lynch interrompe sua farra com mulatas depravadas para cortejar brancos. E, no gênero melodramático que ele favoreceu, o sentimentalismo do
Elsie (“Veja! Minha gente enche as ruas. Com eles vou construir um Império conflito estava cristalizado nas ligações românticas, marcadas pelo destino,
Negro, e você, como minha rainha, sentará a meu lado”) e eventualmente é for- entre o velho Stoneman e os filhos de Cameron. Griffith, então, reimaginou a
çado a fazer tanto ela quanto o pai dela de reféns. Em outro lugar, agitados por Reconstrução como um momento temporário de ascensão política dos mulatos,
conta de ataques e confrontos da Klan, as tropas negras decretam lei marcial: marcado pelo triunfo negro, pela anarquia e por estupros. Entre os que “viam”
prendem brancos de forma indiscriminada; aprisionam famílias brancas ino- (os proprietários de terra brancos do sul) e os “cegos” (os brancos abolicionistas
centes; intimidam negros leais a seus antigos donos. A Klan derrota os soldados do norte) estava o que Griffith determinou dramaticamente como a “semente da
negros de Piedmont; Ben e seus companheiros da Klan resgatam Elsie do cati- desunião”, o escravagismo negro. Griffith instruiu (ou lembrou) sua plateia de
veiro, além de Phil, os Cameron e seus leais empregados; e a Klan desarma os que Abraham Lincoln (“o Grande Coração”) havia entendido o mal no paraíso
negros. Com a proteção da Klan, uma segunda eleição ocorre, e a ordem natural branco norte-americano e se preparou para expulsar os negros: “o sonho de
é restaurada. À beira-mar, Phil e Margaret ficam juntos, enquanto Ben e Elsie, Lincoln” era devolver os negros à África, e foi só seu assassinato que frustrou
sentados diante do mar, contemplam uma visão miraculosa: “A figura de Cristo, seu ato de purificação. Foi uma promessa somente abortada pela morte do pa-
projetada ao fundo, está montada num cavalo, e suas mãos seguram uma espada triarca à imagem de Cristo. Mas Lincoln também prometera aos brancos do sul
acima da cabeça. À direita, à sua frente, há uma imensa pilha de corpos, e, à que lidaria “com eles como se eles nunca tivessem partido”. Wilson, Dixon e
esquerda, uma multidão se contorce e apela a ele. A imagem do Deus da Guer- Griffith, cada um a seu próprio modo, e agora colaborando entre si, buscavam
ra desaparece gradativamente.”42 As imagens conclusivas são magnificamente trazer à realidade essa fraternidade ariana.

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O filme estreou em 8 de fevereiro de 1915 em Los Angeles; e então foi exi- ‘solução de Lincoln’ ao fim do filme, mostrando negros sendo deportados para
bido por sete meses no Cline’s Auditorium. Desde o princípio, os críticos de a África. Eliminaram cenas fortes em que negros atacavam sexualmente mu-
cinema dos maiores jornais se entusiasmaram diante do espetáculo.45 “Booth lheres brancas. E tiraram a castração de Gus.”52 Eventualmente, os detratores
Tarkington, Burns Mantle e outros historiadores concordam que o filme vale foram superados pela colaboração prática entre Wilson, Dixon e Griffith.53
a pena ser visto por seu valor educativo. Em Nova York, professores da escola Em meados de fevereiro, Dixon escreveu para o presidente Wilson, requi-
secundária levaram em conta tal conselho e conduziram suas turmas para ses- sitando uma audiência com seu antigo colega da universidade Johns Hopkins.
sões especiais do filme, enquanto pastores por todo o país endossaram o filme Apesar de Wilson ainda estar em luto pela morte de sua primeira esposa, ele
do púlpito. Em Cambridge, Massachusetts, o reitor da Harvard Street Unitarian consentiu recebê-lo. Ao ouvir o relato animado de Dixon sobre o poder propa-
Church deu três sermões a respeito de O nascimento de uma nação. ‘O filme’, gandístico em potencial do cinema, Wilson concordou em exibir O nascimento
defendeu ele, ‘deve ser preservado, e nossas histórias, reescritas.’”46 de uma nação na Sala Leste. O presidente assistiu ao filme no dia 18 de feverei-
Houve alguns detratores, no entanto, particularmente Moortfield Storey (da ro, assim como membros de sua família e de seu gabinete. No dia seguinte, após
Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor), W.E.B. Du Bois, a visita de outro colega, o secretário da Marinha Josephus Daniels, Dixon obteve
Oswald Garrison Villard, o rabino Stephen Wise (da comunidade reformista uma entrevista com Edward D. White, o chefe de justiça da Suprema Corte.
judaica) e Monroe Trotter (da Liga Nacional pelos Direitos Iguais, de Boston). White desprezava filmes (“Nunca vi um na vida, e não tenho a menor vontade
Os detratores notaram a mente de Dixon, e não a de Griffith, por trás do filme, de fazê-lo”), mas quando ele soube que o filme defendia a Klan, confidenciou a
e Jane Addams, da Hull House de Chicago,47 denunciou o filme de Dixon como Dixon que ele mesmo havia sido um membro, em Nova Orleans. Naquela noite,
“tanto injusto quanto falso”; o rabino Wise se revoltou contra a apresentação “do White, outros membros da Suprema Corte e convidados da Câmara dos Repre-
negro de uma geração atrás como uma besta malévola e assassina”; e Francis sentantes e do Senado assistiram ao projeto de Dixon, que se lembra de seu
Hackett, nas páginas do novo jornal New Republic, escreveu: “Dixon correspon- entusiasmo ao observar “os efeitos do filme entre aqueles espectadores cultos”.
de ao jornalista covarde (...) Ele é um clérigo covarde. É covarde porque distorce Wilson, conforme nos foi garantido, proclamou: “É como escrever a história
de modo impensado os crimes dos negros, dando a eles um lugar desproporcio- com luz. E meu único arrependimento é saber que tudo isto é terrivelmente
nado à vida, e porque os pinta com cores que inflamam, de modo desonesto, verdadeiro.”54 Armado com o endosso do presidente e de grande parte dos mais
os ignorantes e os ingênuos. Ele é especialmente covarde, de modo nojento e eminentes juristas e políticos dos Estados Unidos, Dixon retornou a Nova York
desprezível, porque suas perversões são perfeitamente calculadas para causar para enfrentar seus detratores (Griffith pode ter comparecido à sessão de 19
lisonja nos brancos e para provocar ódio e desprezo por negros.”48 E Du Bois, de fevereiro). Ele venceu, e o filme estreou em Nova York no dia 3 de março.
vinte anos antes de publicar seu estudo definitivo sobre a Reconstrução,49 adi- Quando saiu de cartaz, em 1917, o filme havia amealhado quase 60 milhões de
cionaria a seu editorial na edição de maio de 1915 da revista Crisis: dólares, segundo estimativa de Schickel.55
É suficiente acrescentar que o incidente principal em “The Clansman” seja
a levemente velada acusação de que Thaddeus Stephens [sic], o grande estadista
pró-abolição, foi induzido a dar aos negros o direito de votar e regozijou-se se- Parindo a nova América
cretamente com o assassínio de Lincoln por conta de sua afeição por sua amante
mulata. Não é de surpreender que um homem que consegue falsificar a história Griffith conscientemente auxiliou no nascimento de uma branquidade norte-
desse modo brutal nunca tenha conseguido criar algum projeto literário que -americana nova e viril, livre da memória histórica da escravidão, não intimida-
conquistasse a mínima atenção, exceto quando busca capitalizar em cima de da pelo espetáculo da humilhação racial tão repentinamente criado pelo choque
antagonismos de raça.50 dos imigrantes brancos e pobres que chegavam às cidades. Nenhuma força no
Os detratores procuraram banir o filme antes de seu lançamento em Nova mundo se equiparava a ela. Nenhum apelo moral ousaria desafiar a soberania
York e alhures.51 Além da censura completa, eles buscavam cortar as mais gro- do direito racial.
tescas e assustadoras cenas do filme, e obtiveram algum sucesso nesse intento: Os milhões de imigrantes, a maioria deles vinda dos “recantos inferiores” da
“Eles cortaram uma citação de Lincoln que se opunha à igualdade racial, ape- Europa (como grande parte de seus “superiores” acreditava), desertaram o Velho
sar de Lincoln ter mesmo dito aquelas palavras ofensivas. Eles censuraram a Mundo. Como animais selvagens se dispersando antes de um desastre cataclísmi-

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co, a infestação deles nos Estados Unidos antecipou a Primeira Guerra Mundial. negamos isso a eles quando os encorajamos a acreditar que eles ganharam algo
Desde o princípio, em agosto de 1914, o desastre foi se tornando mais iminente: ao ter alguém de sua raça como lutador campeão.”62 No Tennessee, “o Chat-
Howard Zinn observa que “nos primeiros três meses da guerra, a quase totali- tanooga Times publicou num editorial que não faria bem algum a um homem
dade do exército britânico foi morta.”56 E, quando chegou ao fim, 10 milhões de branco ver um filme em que ‘um negro poderoso nocauteia um branco no rin-
pessoas haviam morrido nos confrontos, e 20 milhões de civis haviam perecido. gue’ e que tais filmes seriam nocivos aos negros, uma vez que eles ‘inspirariam
Se o Velho Mundo, o pilar da civilização ocidental e anglo-saxã, detinha um con- no negro ignorante ideias falsas e perniciosas quanto ao poderio físico de sua
trole tão frágil sobre a ordem e a dignidade da vida, o que se poderia esperar dos raça’.”63 Discursos idênticos foram proferidos por governantes, pastores e líderes
Estados Unidos, praguejados pelo entulho genético europeu de judeus, católicos, cívicos, ouvidos e lidos por todo o país. A princípio, autoridades municipais
italianos, eslavos e tal, além das raças mestiças que eram naturais do país? baniram a exibição desses filmes (houve algumas exceções; por exemplo, Nova
Uma resposta foi o espectro perturbador de Jack Johnson. Em 1908, Johnson York, Philadelphia e Toledo); e então, em 1912, com o apoio de organizações
derrotou Tommy Burns como campeão de boxe peso pesado. “[Jack] London como a United Society for Christian Endeavor e a Women’s Christian Temper-
descreveu o novo campeão como um ‘colosso etíope’ (...) Na declaração mais ance Society, além da imprensa e de figuras notáveis como Theodore Roosevelt,
influente e citada da carreira de London, o escritor concluiu seu relato da luta o Congresso baniu o comércio entre estados norte-americanos de filmes de luta.
com um apelo racial às armas.”57 Mas, pelos sete anos seguintes, Johnson iria Apesar disso, como conta Dan Streible, “o filme de 1910 (...) se tornou tão discu-
corroborar sua bravura superior ao derrotar com facilidade a Grande Esperança tido quanto qualquer filme anterior a O nascimento de uma nação”.64
Branca, Jim Jeffries, em 1910, e uma série de oponentes brancos menores. Ain- Para piorar a situação, enquanto seus filmes inflamavam as imaginações e
da mais doloroso para os brancos norte-americanos, as atuações zombeteiras de as aspirações da plateia negra, Johnson se envolvia publicamente com mulhe-
Johnson foram filmadas. res brancas. E ele, de fato, acabou se casando com quatro mulheres brancas
Na luta com Burns, Randy Roberts assevera que Johnson deliberadamente sucessivamente. E, apesar de Randy Roberts salientar que as relações de amor
estendeu a luta em alguns assaltos, ciente de que a plateia do filme da luta difi- e ódio entre Johnson e as mulheres brancas o levaram a se associar com prosti-
cilmente pagaria para ver um confronto de pequena duração, mas também por- tutas brancas, foram seus relacionamentos românticos que trouxeram a ele seu
que odiava Burns (cuja valentia se restringia a chamar Johnson de “cachorrão”, primeiro descontentamento com a lei. A primeira esposa branca de Johnson,
“vira-lata” e “preto”). Johnson puniu Burns, “mas punir não era o bastante. Etta Duryea, cometeu suicídio em 1912; e a mãe de sua segunda esposa branca,
Johnson queria também humilhar Burns. E fez isso verbalmente. Já no primeiro Lucille Cameron (ironicamente, um eco do romance de Dixon), processou-o por
assalto, Johnson insultou Burns, falando com um sotaque inglês afetado, de abdução. Johnson se casou com Lucille em dezembro de 1912 e o casamento de-
forma que ‘Tommy’ converteu-se em ‘Tahmy’. Muitas das coisas que Johnson les alimentou editoriais e cartas ao editor em jornais negros e brancos; alentan-
disse eram banalidades (...) Em quase todas as provocações, Johnson se referia do também ameaças de linchamento (uma pelo governador da Carolina do Sul,
a Burns no diminutivo. E um sorriso de desprezo acompanhava as palavras.”58 Cole Blease); o estímulo a que se introduzisse uma emenda antimiscigenação na
O filme da luta de Johnson com Stanley Ketchel em 1909 mostrou o aparente constituição pelo senador Seaborn Roddenberry, da Geórgia, apoiado por diver-
knockdown59 de Ketchel no campeão. A plateia se levantou, comemorando, e sos governadores; e diversas leis estaduais bem-sucedidas banindo casamentos
então “um determinado Johnson voa pelo ringue, atingindo Ketchel em cheio na com tal arranjo.65 Mas, um mês antes do casamento, Johnson foi acusado por
boca e o deixando inconsciente. Johnson se curvou às cordas de modo casual, autoridades federais de violar a nova lei, o Mann Act, por supostamente trans-
com as mãos na cintura, e o juiz anunciou sua vitória.”60 portar uma mulher de um estado a outro com propósitos imorais. A mulher em
Os filmes foram perturbadores para os representantes de todos os setores da questão foi uma terceira moça branca, Belle Schreiber, uma prostituta de Chica-
sociedade branca, particularmente o filme da vitória de Johnson sobre Jeffries. go e antiga amante de Johnson (em sua autobiografia, Jack Johnson Is a Dandy,
Às margens, estava Al Jolson, sempre ansioso para estourar, que escreveu na ele insistiu que ela era sua secretária/contadora). O furor à volta de Johnson
Variety que a derrota de Jeffries foi “triste demais para se escrever a respeito”.61 agora envolvia as páginas esportivas, e escalou a ameaças de morte enviadas
Em São Francisco, a sra. James Crawford, vice-presidente do Clube de Mulheres por correio e a conclamações direcionadas a partidos sulistas pró-linchamento,
da Califórnia, escreveu ao Examiner: “Os negros são de certo modo uma raça para que visitassem Johnson em Nova York ou em Chicago.66 Eventualmente,
infantil, necessitando de aconselhamento, de educação e de encorajamento. Nós para evitar o litígio, Johnson e Lucille fugiram dos Estados Unidos.

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A exibição de insolência racial por parte de Johnson era perturbadora por- “O ódio de classe foi incentivado” pelos promotores, reclamou o advogado de
que ele parecia impenetrável, por sua natureza e seu status de celebridade, à Frank na corte. “Eles incentivaram o ódio mútuo que os pobres sentem dos
disciplina que controlava os “bárbaros” negros mais comuns. Ele também in- ricos” e encorajaram “a insatisfação”. O reverendo C.B. Wilmer, um dos mais
quietava porque, como o monstro de Frankenstein, escapou do confinamento e proeminentes defensores progressistas de Frank, observou que “o preconceito
dos propósitos da invenção original. O mito nacional do negro estuprando bran- de classe era perfeitamente óbvio” em cada estágio do caso e alertou para os
cas inocentes havia sido empregado para patrulhar homens negros por gerações, perigos de se entregar a ele.73
e, mais importante, para mascarar a realidade dos estupradores brancos. Ne- Na conclusão de seu discurso, o promotor Hugh Dorsey disse ao júri que
gros acusados de estuprar mulheres brancas, ou mesmo suspeitos de pensar em “apesar de ele nunca ter mencionado a palavra ‘judeu’, uma vez que ela fora
estuprar brancas, eram linchados ou agredidos até a morte. Multidões em fúria introduzida ele a usaria. Os judeus ‘ascenderam magnificamente’, asseverou
faziam isso, e tinham a certeza de que tais atitudes contavam com a aprovação ele, ‘mas eles também afundaram nas profundezas da depravação’.”74 Depois
moral e social.67 Seus membros tinham para si que negros eram covardes e que de um julgamento de quatro meses coberto extensivamente pela mídia, Frank
a massa de linchadores brancos significava aprovação, não medo. Os primeiros foi condenado e sentenciado à morte. Em junho de 1915, sua sentença mudou
documentários mudos de Edison fizeram sua parte em confirmar a tradição tri- para prisão perpétua por determinação do governador Slaton (que então teve
bal: “O mito do lutador negro ‘assustado’, na verdade, aparecia frequentemente de declarar lei marcial como medida de autoproteção). Mas, em 16 de agosto
em relatos sobre os primeiros filmes.”68 Johnson representou a ruptura de frag- de 1915, Frank foi raptado da prisão estadual da Geórgia pelos “Cavaleiros de
mentos inteiros do mito, e seus filmes de vingança documentavam uma verdade Mary Phagan”, levado para Marietta, cidade onde Phagan morava, e linchado.75
terrível: ele não apenas não temia seus oponentes brancos, como também os Muitos dos significantes culturais de Griffith presentes em O nascimento de
desprezava. Na vida, contudo, diversas reportagens de jornal falavam que John- uma nação lembram claramente elementos do caso Phagan-Frank. Em termos
son confirmava o desejo e a atração exercidos por homens negros: suas esposa e de lugar, Griffith reconstruiu a região da Geórgia de Mary Phagan na cidade fic-
amantes brancas o adoravam.69 tícia de Piedmont, e, neste processo, transformou-a, de uma região rural caipira,
Enquanto o desafio de Johnson à superioridade branca era público, aterro- num centro de bem-nascidos sulistas. Mais impressionante, em sua dramatiza-
rizante e contraintuitivo de formas perigosas, outras ameaças vindas das raças ção de The Clansman, de Dixon, foi Griffith ter substituído o duplo suicídio de
inferiores eram furtivas. Mas Griffith mesmo assim fundiria esses “outros”, bem Mãe Lenoir e de sua filha violada, Marion, pelo salto solitário de Flora. A Flora
distintos entre si, em seu roteiro. Um modelo para o suicídio de Flora em O nas- de Griffith, como Mary Phagan na situação imaginada por Dorsey, escolheu
cimento de uma nação foi o assassinato em 1913 de Mary Phagan, de 13 anos. a morte quando confrontada com o estupro. E, como Flora (interpretada pela
“A descendente de uma família rural estabelecida em Piedmont que perdeu sua atraente Mae Marsh), a quem Griffith imaginou servir como um inocente ícone
terra e que foi reduzida à condição de arrendatária e, então, à de assalariada”, da branquidade, Mary Phagan foi reformulada pela imprensa com um propósi-
Phagan foi assassinada na National Pencil Factory, em Atlanta,70 no dia da pa- to similar. Como Nancy MacLean relata, as fotos publicadas de Phagan foram
rada comemorativa ao Confederate Memorial Day.71 Ela morreu, de acordo com alteradas: seu nariz achatado fora arianizado; suas sobrancelhas grossas foram
o promotor, “porque não queria entregar sua virtude aos mandos de seu supe- diminuídas com glamour; seu cabelo foi modificado para um penteado além da
rintendente”.72 O acusado foi Leo Frank, um gerente da fábrica, judeu nortista. destreza das cabeleireiras a quem a menina tinha acesso. Na vida real, sua apa-
Originalmente houve outro suspeito: o zelador negro da fábrica, Jim Conley. rência era bastante similar à das apalaches pobres e brancas, a quem eugenistas
O papel de Conley, no entanto, foi reduzido a cúmplice, porque, ao testemunhar fizeram campanha para eliminar do capital genético norte-americano.76 Mas,
contra Frank, ele admitiu em juízo que o ajudou a transportar o corpo de Mary. em sua morte, a versão modificada de Phagan poderia servir de emblema para a
Mas, apesar de uma estratégia de defesa que Nancy MacLean considerou “uma ameaça representada pelos judeus à raça branca norte-americana, e a inocência
virulenta ofensa racista contra o único outro suspeito (...) Jim Conley”, a animo- e beleza fabricadas de Phagan seriam provas de virtude racial.77
sidade de classe e o antissemitismo sobrepujaram a negrofobia. Para completar seu palco, que reencenaria o espetáculo de Phagan para o
A preocupação das elites a respeito do caso refletiu medos profundos sobre público nacional, saturado do julgamento de Frank, Griffith usou Gus, o renega-
a estabilidade da ordem social, presidida por elas. Eles reclamavam repetida- do negro, para curar a ruptura diegética (já que Frank não era negro ou mulato).
mente sobre o aumento da “anarquia” e da “arruaça”, como revelado no caso. No romance, Gus fora o líder de “quatro negros brutos” que estupraram Marion

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Lenoir; no filme, ele era um “negro mau” da primeira cena em que aparecia -americana. Para Griffith, a Europa era o lugar de origem da mítica civilização
(como escravo fugitivo) até seu último suspiro. E, com Gus servindo de substi- branca que ele tinha como sagrada, e, assim como a presente guerra estava se
tuto a Frank, Griffith importou Jim Conley, que era o assassino da escolha de provando catastrófica, a “guerra entre os estados”, como os brancos sulistas
muitos dos que apoiaram Frank.78 O renegado Gus, traiçoeiro e pronto para ata- se referiam à guerra civil, virou a ordem natural de ponta-cabeça. E dadas as
car, com movimentos que o faziam se parecer com um símio, poderia servir para origens majoritariamente europeias de grande parte da plateia, a fácil transfe-
apagar Jack Johnson, o ousado e gracioso atleta, das mentes da plateia; e o ato rência entre ambas as guerras encorajou Griffith a sobrepor a negrofobia aos
suicida de Flora desmentiria o estratagema intolerável de que mulheres brancas sentimentos antiguerra. Ele poderia demonstrar empiricamente, ou seja, histo-
poderiam se submeter por vontade própria a negros. E já que Walter Long, um ricamente, a perversidade da guerra ao fornecer uma compreensão dramática a
ator branco maquiado de negro e com a cabeça raspada, interpretou Gus, Grif- suas consequências. Ademais, a estratégia retórica de Griffith em afirmar que
fith se certificou de que ele jamais fosse confundido com Jack Johnson. Assim, o seu épico “não intenciona refletir raça ou povo algum da atualidade” foi esperta-
Gus de Long enfatiza o desprezo racial de Griffith. Afinal, Griffith explicou: “Ao mente empregada para estabelecer que, mesmo diante da imparcialidade mais
pesar todos os detalhes a respeito, tomou-se a decisão de não ter sangue negro delicadamente calculada, a própria história documentou a inferioridade negra.
entre os protagonistas.” Dessa forma, Michael Rogin observa que “os negros O nascimento de uma nação foi concebido, realizado e exibido dois anos
de Griffith eram tão maus quanto ele os pintava porque ele pintava brancos de antes da entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial. E, apesar de
preto (...) Griffith permitiu que alguns negros atuassem nos papéis de negros, sua dificuldade de determinar a opinião pública no envolvimento com a guerra
mas ele não queria abandonar a representação da negritude.”79 O personagem europeia, conforme Howard Zinn atesta, antes de 1917 “o governo tinha que tra-
de Gus, ao prover realidade visual às suposições que cercavam Conley, reduziu balhar duro para criar um consenso” para a guerra. “George Creel, um jornalis-
a ameaça racial que Johnson passou a representar. ta veterano, tornou-se o propagandista oficial do governo em defesa da guerra;
Diz-se que a vida imita a arte. E isso ocorreu na noite de Ação de Graças de ele estabeleceu um comitê para informar e para persuadir os norte-americanos
1915, quando William Joseph Simmons e um grupo de amigos se encontraram de que a guerra era o caminho a seguir. Tal comitê patrocinou 75 mil alto-falan-
em Stone Mountain, nos arredores de Atlanta, e declararam um novo começo: os tes, que deram 750 mil discursos de quatro minutos em cinco mil cidades dos
novos Cavaleiros da Ku Klux Klan.80 Pelos próximos dez anos, particularmente Estados Unidos.”82 Apesar disso, conseguiu-se 73 mil alistados seis semanas
entre 1920 e 1925, a segunda Klan alistou milhões, frequentemente ganhando depois da declaração da guerra, sendo que se precisava de um milhão, e o Con-
recrutas com exibições de O nascimento de uma nação. É claro que a segun- gresso convocou um alistamento. A venda de munição e de outros equipamentos
da Klan agia em defesa de esposas maltratadas, de famílias empobrecidas, de aos aliados transformou os Estados Unidos de uma nação devedora à primeira
defensores da Lei Seca, além de comunidades onde agiam políticos corruptos nação credora do mundo (posição esta que só foi perdida na guerra do Vietnã).
e empregadores que exploravam seu empregados; mas sua base de ação era o Isso era razão suficiente para que interesses norte-americanos interviessem em
ódio: a negros, a judeus, a católicos e a imigrantes.81 defesa de seus novos devedores. E, conforme Eric Hobsbawm aponta, “graças
à inundação de reforço e munição norte-americana, os aliados se recuperaram,
mas por um momento isso quase não aconteceu”.83
O expansionismo ariano-americano Griffith ficou do lado dos bons por um tempo, mas, no fim de 1915 e início
de 1916, ele se preparava para explorar sua nova reputação como “o diretor
Jack Johnson e Leo Frank eram marcas registradas da presença de um ini- mais preeminente de espetáculos militares”.84 Ao viajar para a Grã-Bretanha
migo doméstico perturbador, uma tensão potencialmente degradante da alma para a estreia de Intolerância (Intolerance, 1916), Griffith simpatizou com a
pura e branca do país. Enquanto isso, as elites comerciais, industriais e políti- ideia do primeiro-ministro britânico, Lloyd George, de produzir um espetáculo
cas buscavam simultaneamente políticas cada vez mais expansivas que pudes- de guerra, Aos corações do mundo (Hearts of the World, 1918). “Griffith havia
sem lhes assegurar lucro, uma identidade nacional preferível e uma parcela do chegado ao evento que iria desfazer o consenso cultural que havia formado sua
poder mundial. sensibilidade e permeado todo o seu trabalho. Mas ele emergiria desse encontro
A guerra que havia acabado de começar, em 1914, na Europa, deu a Grif- essencialmente incônscio da natureza da guerra e do efeito que ela tinha nas
fith a oportunidade de fabricar um contraponto alegórico à guerra civil norte- gerações mais jovens, que ficavam com a pior parte.”85 Cada vez mais arrebata-

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do por sua fama crescente, a decisão de Griffith de explorar “a devastação que haitiano, quantia essa devidamente instalada nos cofres do National City Bank.
a guerra causa de forma a que a guerra seja vista como abominável” evaporou. Em julho de 1915, uma grande invasão ocorreu. Pelos próximos anos, foi extir-
De modo interessante, a primeira intervenção militar dos Estados Unidos pada a resistência nacionalista (“bandidos”, a imprensa norte-americana asse-
em nome dos aliados não foi a declaração de guerra em 1917, mas a invasão gurou a seus leitores); o exército haitiano foi reorganizado numa força colonial;
ao Haiti dois anos antes. De 1915 a 1934, militares norte-americanos ocupa- os sistemas de transporte e de comunicação foram apropriados; e um governo
riam o Haiti, providenciando a força repressiva necessária para a conversão do sólido (ditatorial, é claro) foi estabelecido. Foi tudo pelo bem do Haiti, como
Haiti de nação semiautônoma para colônia norte-americana, empreendida por Robert Lansing (o sucessor de Bryan) escreveu em 1918 para o contra-almirante
empresários e financistas norte-americanos e por burocratas do Departamento J.H. Oliver, outro oficial norte-americano alocado numa colônia (governador das
de Estado.86 As razões oficiais para esta invasão norte-americana foram o medo Ilhas Virgens Americanas): “As experiências da Libéria e do Haiti mostram que
da influência germânica no Haiti, a garantia da segurança do canal do Panamá a raça africana é desprovida de qualquer capacidade de organização política e
e uma preocupação com a ordem e com a estabilidade de tal país (de 1888 a não tem tino para governar. Inquestionavelmente, há nela uma tendência ine-
1915, dez presidentes haitianos foram assassinados ou depostos do poder).87 À rente a reverter à selvageria e a se livrar das amarras da civilização, que causam
superfície, todas essas questões eram legítimas, mas também eram maculadas: incômodo à sua natureza física (...) É isso que faz do problema do negro algo
desde 1804, quando o Haiti passou a existir, os Estados Unidos foram a princi- praticamente insolúvel.”91
pal fonte de desestabilização do país na maioria das vezes.88 A Revolução Hai- O conhecimento de Lansing a respeito dos negros guarda uma profunda
tiana para a independência do domínio francês (e inglês) fora a segunda rebelião semelhança com as imagens, escritas e visuais, que Wilson, Dixon e Griffith
bem-sucedida no Novo Mundo, mas, ao contrário da dos Estados Unidos, que a transmitiram à nova cultura norte-americana em 1915: “No alvoroço da Casa de
precedeu, ela foi liderada por escravos.89 Assim, durante a primeira metade do Governo (...) um deputado furtivamente tira uma garrafa de bebida de baixo de
século XIX, o Haiti foi visto como uma ameaça ao escravagismo norte-ameri- um livro e dá um gole (...) um deputado com os pés sobre a mesa tira um sapato,
cano pelos proprietários de terra e pelo governo nacional dominado por eles; e, enquanto outro, em pé à sua frente, comendo um bife, vira-se (...)”92 Wilson,
na segunda metade, governos maleáveis no Haiti, encabeçados por presidentes Dixon e Griffith não inventaram esses mitos, mas eles os tornaram acessíveis a
instalados pelos Estados Unidos, facilitaram a conversão do país num tesouro milhões, e os fizeram inesquecíveis. O trio e sua imensa irmandade de intelec-
nacional norte-americano. tuais racistas proveram uma história fabulosa, uma história branca, que retratou
No entanto, foi o capital norte-americano o agente central que incentivou a os brancos como a raça responsável pela ordem do mundo, sempre normal e
invasão. Roger Farnham foi o vice-presidente do National City Bank, do grupo real, a raça que era o destino da espécie, o verdadeiro Sujeito da história mun-
Rockefeller; Farnham foi também vice-presidente do banco central haitiano, o dial e de suas civilizações.
Banque Nationale, e da estrada de ferro nacional do Haiti. Todos esses cargos
se entrelaçavam, e davam a Farnham interesses especiais em seu papel adicio-
nal: o de conselheiro principal do secretário de Estado norte-americano, William Consciência reprimida
Jennings Bryan. O desejo de Farnham era de que o Haiti se transformasse numa
colônia norte-americana, e a falta de sofisticação de Bryan no que concernia ao Na edição de junho de 1915 da revista Crisis, publicação oficial da Associa-
Haiti (em 1912, Bryan comentou com John Allen, outro funcionário norte-ameri- ção Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor, comentou-se que o New York
cano do Banque Nationale: “Minha nossa, pense nisso! Pretos falando francês!”)90 Evening Globe reclamou que até o título de O nascimento de uma nação cons-
deu a vantagem a Farnham, que estava preocupado que os bancos alemães (ou tituía um insulto às conquistas de George Washington e de Abraham Lincoln:
franceses) pudessem superar o National City Bank. Por isso, ele orquestrou o Washington contribuiu para o início da nação norte-americana com a guerra
empresariado e o governo dos Estados Unidos em ações que garantiriam total civil; Lincoln lutou contra “a tentativa de desnacionalizar a nação”.93 Havia,
dominação norte-americana na economia haitiana (o único elemento significativo é claro, alguma justificativa para que se desafiasse a peculiar cronologia que
que faltou foi o controle norte-americano das receitas aduaneiras haitianas). motivou Dixon e Griffith. Mas, como vimos, essa crítica passava meramente pela
O presidente Wilson, Farnham e os militares orquestraram uma pequena superfície da pauta racial do filme. O memorial histórico de Griffith instaurou
invasão em dezembro de 1914, tomando posse de 500 mil dólares do tesouro e exonerou, inventou e removeu, de acordo com seus propósitos. Seus enredos,

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encenações, arquétipos, escolhas de planos e técnicas de montagem eram de- como os filmes sobre índios funcionavam culturalmente, pode-se dizer que eles
clarações complexas que intentavam inundar a consciência de sua plateia. Ele traduziram a luta política entre as nações indígenas e os Estados Unidos para
possuía certo conhecimento do que, e de como, deveria ser lembrado, e do que tragédias (ou farsas) domésticas que ocorriam entre indivíduos.”97 E, ao con-
era necessário para que o intolerável passado desaparecesse. trário das práticas convencionais à representação de negros, atores e atrizes de
Além da efemeridade visual do passado, ou seja, os cenários, os figurinos e fato indígenas (como James Young Deer e Miss Redwing) atuaram em papéis
os dioramas romantizados, não se sabe ao certo se Griffith tinha domínio firme proeminentes em muitos dos filmes do gênero.98 Neste gênero, os indígenas fo-
da história social. Já que as severas oposições morais encontradas nos melo- ram tratados com compaixão, refletindo o tema da “raça em desaparecimento”
dramas geralmente resultam da empáfia quando enquadrada como narrativa popularizado pelo romance O último dos moicanos (1826), de James Fenimore
histórica, muitos dos filmes “históricos” ou foram formulados por estratégias de Cooper, e que apareceu, com “certa ironia”, como Roberta E. Pearson comen-
marketing (esta sendo a interpretação mais generosa) ou foram os produtos de ta, nas memórias de 1874 do general George Armstrong Custer. A totalidade
um imaginário inadequadamente construído, alternando camadas de ideologia do colonialismo norte-americano foi memoriada como “teses de fronteira” por
(superioridade branca) e de mitologia (o Velho Sul). Ainda mais perturbador, Frederick Jackson Turner duas décadas depois.99 Mas, se enquadrados como
quando avaliamos o retrato que Griffith faz dos índios norte-americanos, é o alegorias românticas do genocídio ou dos imperativos territoriais da evolução, os
ritmo ágil dos filmes que contrasta com a economia de ideologia e de mitos, con- filmes sobre índios complementaram um consenso cada vez mais amplo sobre o
finando a opressão real dessas pessoas às bobagens narrativas do melodrama selvagem patético. Eram bobagens sentimentalizadas, a demonstração empírica
e do romance. Não surpreende que o próprio Griffith se referisse à sua “arte” da futilidade da resistência do selvagem à civilização branca.
neste período como “fabricando uma outra salsicha”.94 De muitas formas, Jay (e muitos outros de seus predecessores) entende os
Ainda é surpreendente que, apesar da proeminência da Biograph em exi- filmes sobre índios de Griffith como conformados aos arroubos de distração
bir filmes degradantes para negros, antes de O nascimento de uma nação, a da cultura popular: “Na maioria dos filmes sobre índios que Griffith fez para a
contribuição de Griffith para essas convenções tenha sido modesta. As mais Biograph, os indígenas evocam uma compaixão melodramática dos brancos, e
importantes foram The Guerrilla (1908), His Trust (1911) e His Trust Fulfilled os mineiros, pioneiros e soldados brancos são frequentemente descritos como
(1911). Todos eles apresentavam um serviçal ou escravo interpretado por um ator canalhas ambiciosos.”100 Preenchendo seus filmes com conflitos engendrados
branco maquiado de negro, que arrisca a vida em lealdade à sua amante branca por encontros entre selvagens agitados e brancos dementes, não surpreen-
ou (nos últimos dois filmes) à família de seu dono, já morto. Em vez de serviçais de que, quando se apropriou da lenda de Custer para o filme The Massacre
e escravos, as justaposições raciais mais frequentes em Griffith eram entre bran- (1912), Griffith tenha falhado em registrar os atos do general em favor do
cos e indígenas. Entre 1908 e 1914, começando com The Redman and the Child levantamento de rotas em terras indígenas da ferrovia Northern Pacific em
(1908) e concluindo com The Battle of Elderbush Gulch (1914), Griffith empre- 1873.101 Esses acontecimentos, afinal, foram conflitos raciais ou disputas cós-
gou seus talentos em aproximadamente trinta filmes sobre índios. A atenção a micas entre civilizações, e em nenhum desses dois casos os impulsos estrutu-
esta temática, no entanto, não era idiossincrática. De acordo com Eileen Bowser, rais da acumulação e da exploração capitalistas estiveram ausentes ou foram
os gêneros dominantes na era do cinema mudo eram as comédias, os faroestes e trivializados. Mas um dos subtextos mais visíveis desses filmes é a antipatia
os filmes sobre índios (os dois últimos eram gêneros diferentes, até então).95 Uma de Griffith quanto à miscigenação. Em The Call of the Wind (1908), George
razão para a popularidade dos filmes sobre índios, aponta Bowser, pode ter sido Redfeather, um jogador de futebol americano muito famoso e estudante ho-
a exibição quase inevitável de personagens indígenas seminus numa era ainda norário da Carlisle Indian College (um personagem vagamente inspirado em
atrelada à moral vitoriana.96 Mas, se olharmos mais profundamente pela ótica Jim Thorpe), recorre à sua natureza selvagem depois que uma moça branca
ideológica, a popularidade desse gênero poderia ser explicada de modo mais o repele. Depois, ao resgatar a mesma mulher branca de outros “selvagens”,
eficaz pelo serviço que esses filmes faziam à doutrina da supremacia branca. ele se redime de sua luxúria e do vício pela bebida, ao reconhecer a “pureza
Gregory Jay comenta que “nas telas, o índio do cinema mudo serviu tanto como superior das mulheres brancas”.102 Em A Romance of the Western Hills (1910),
um lembrete nostálgico ao que supostamente estava perecendo, como um foco a marca maligna inevitavelmente atrelada à miscigenação é dramatizada pela
para se perceber as qualidades superiores da cultura dominante”. Ademais, ha- sedução de uma índia (Mary Pickford) por um desprezível e rico homem bran-
via a função deste gênero como uma memória deslocada: “Em relação ao modo co. Aconselhada por seu amante indígena de que “homens brancos não pres-

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tam”, a índia é dada aos brancos que ela tanto adora, após seu pai trocá-la por (1911), da Vitagraph, e Old Mammy’s Charge (1913).109
um relógio. Eventualmente, ela vai perdendo sua ingenuidade, e volta para sua Diante de suas alegações pretensiosas para O nascimento de uma nação,
tribo, redimida pelo ato de intervenção que reúne seu pretendente branco e Griffith aperfeiçoou um gênero, denominado por Ed Guerrero como “gênero da
seu amante original.103 Quando Griffith conclui seus estudos “indígenas” com plantação”, que dominaria por gerações a representação hollywoodiana do Ve-
The Battle of Elderbush Gulch, os índios já foram reduzidos a caricaturas: o lho Sul, dos anos pré-guerra civil, da escravidão e de seu fim, e dos negros.110
catalisador dramático dos ataques aos brancos é a chegada tardia do filho Nesta narrativa fabulosa, os brancos pobres que trabalharam e que às vezes
do chefe à orgia ébria da Dog Feast104 (“que você coma cachorro e viva mui- lutaram junto com os escravos, e posteriormente libertaram os negros, desapa-
tos anos”). Conforme observa Eileen Bowser, a miscigenação entre brancos receram. A ambiguidade e a complexidade histórica dessa lealdade entre raças
e índios foi também uma preocupação persistente entre os contemporâneos não poderiam caber no gênero. No gênero da plantação, apenas duas classes
de Griffith.105 Mas, com Griffith e seus pares, esse discurso da miscigenação tinham alguma importância: os proprietários de terra e os negros. Abolicionis-
era decorado com uma compreensível atração física. As mulheres indígenas tas brancos notáveis, como o Stoneman fictício, foram transfigurados, no caso do
presas pela trágica atração a romances inter-raciais eram jovens e belas (par- filme A estrada de Santa Fé, em megalomaníacos fanáticos como John Brown
ticularmente quando Lillian Gish ou Mary Pickford as interpretavam). E as (Raymond Massey) ou verdadeiros Judas (o papel de Van Heflin). As mulheres
mulheres brancas que despertavam o desejo de índios eram, naturalmente, aristocráticas brancas do sul dificilmente eram adultas responsáveis, como a
objetos de desejo. Tais uniões, no entanto, foram deixadas de lado pela colisão que Margaret Sullivan interpretou em Noivado na guerra (So Red the Rose,
de diferentes estágios de civilização. A miscigenação nos filmes sobre índios 1935). Elas eram geralmente desajuizadas, infantis, materialistas e egoístas,
era sempre posicionada numa paleta de beleza proibida. Isso não acontecia como tão brilhantemente retrataram Bette Davis em Jezebel (1938) e Vivian
quando a questão era transferida para o terreno da negritude. Leigh em ...E o vento levou (Gone with the Wind, 1939), além de Shirley Temple,
Como vimos, Dixon e Griffith enquadraram a miscigenação no campo do ela mesma uma criança.
proibido: a mulata era uma sedutora destrutiva; o mulato era um violador com- Com raras exceções, a representação de negros nos filmes norte-americanos
pulsivo de mulheres brancas. Com a figura da mammy, serviçal que era a carac- era ainda mais aviltante do que as oposições de Griffith entre o leal e o bru-
terização predominante das mulheres negras em O nascimento de uma nação, to. Atores negros com treinamento profissional como médicos (Rex Ingram) e
Griffith apagou dois ou mais séculos do que um porta-voz negro condenou como advogados (Paul Robeson, Clarence Muse) interpretavam serviçais modernos,
uma “depravação imposta” pelos brancos. Diversas escravas (e brancas na con- escravos e selvagens colonizados. A maioria deles se treinava, como fez Louise
dição de aprendizes) foram, é claro, abusadas sexualmente por seus supostos Beavers no papel de Delilah em Imitação da vida (Imitation of Life, 1934),
donos e outros homens protegidos pela raça e pelos privilégios de classe. A para articular suas línguas ao pseudodiscurso cinematográfico de negros que
documentação dessa degradação, insiste Ida B. Wells, poderia ser facilmente Griffith popularizou com O nascimento de uma nação. Durante a era do cinema
percebida na grande porcentagem de mulatos, como ela conta em sua autobio- mudo, somente os cineastas negros independentes, como George e Noble John-
grafia: “Eu descobri que o estupro de meninas e mulheres negras indefesas, son (da Lincoln Motion Pictures) ou Oscar Micheaux, e alguns poucos brancos
que começou com a escravidão, continuou sem qualquer impedimento ou repro- que produziam filmes com elencos negros, como os da produtora Norman Film
vação da Igreja, do Estado ou da imprensa até que se criasse uma raça dentro Manufacturing Company, resistiram. Mas a arte deles era largamente restrita às
de outra.”106 De fato, apesar da serviçal assexuada de Griffith ter negado esta plateias que se congregavam no circuito de cinemas negros — aproximadamen-
possibilidade, uma razão para a exploração da mulher negra tem sido sua lascí- te 500 cinemas, comparados aos 12 mil ou mais disponíveis para negrófobos
via, seu apetite sexual e seu poder de atração.107 Para os grandes proprietários na década de 1920.111
brancos (e para os segmentos apoiados por eles, como supervisores, milicianos Griffith teve sorte: seu amadurecimento como cineasta coincidiu com
etc.), a sociedade escravagista era uma estufa onde imperava a sexualidade, ou, aquele momento em que imigrantes envolvidos nas mais diversas atividades
nas palavras de Catherine Clinton, “a mistura de carne e de sangue era explosi- tomaram controle da indústria do cinema. A memória histórica deles consistia
va no Velho Sul”.108 A serviçal de Griffith tomou o lugar da real, e ela já era um nos guetos da Europa e no Pale;112 já quanto aos Estados Unidos eles sabiam
personagem estereotipado dentre os diversos empregados domésticos negros em muito pouco. Griffith, cuja sensibilidade moral e histórica fora emprestada
filmes norte-americanos, como Mammy’s Ghost, or Between the Lines of Battle das autoridades do antigo regime da escravidão, imaginou o passado dos Es-

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tados Unidos como os ideólogos da escravidão intencionaram que ele fosse O patrimônio branco enganou a maioria dos norte-americanos, e o patriotismo
lembrado: como uma hierarquia de raça. Isto é precisamente o que ele não e o nacionalismo enganaram alguns outros, mas a realidade mais fugidia era
foi — uma rica aristocracia dona de terras imperando sobre a mão de obra o roubo que eles mesmos tiveram de suportar e a expropriação voraz de outras
negra, branca e indígena —, mas o domínio desse oligopólio apenas pôde pessoas que eles facilitaram. As migalhas que obtiveram como recompensa fo-
ser sustentado com o apoio ou com a indiferença daqueles cujos privilégios ram a instalação da inferioridade negra em sua cultura nacional partilhada. Foi
políticos e sociais eram ao menos consideráveis. A vantagem de Griffith sobre um dividendo miserável, mas que ainda opera.
seus associados na indústria do cinema era que ele possuía alguma memória
dos Estados Unidos, ainda que ela fosse fraudulenta.
Griffith, durante a maior parte de sua carreira, foi um diretor artesão. 1 Trecho selecionado do capítulo 9 Peiss, Cheap Amusements, p. 148- 17 Gabler, Empire, p. 58.
Somente 25 dos mais de quatrocentos filmes que ele dirigiu foram produzi- “In the Year of 1915: D. W. 49.
Griffith and the Rewhitening 18 Gunning, D.W. Griffith, p. 61 e
dos depois de O nascimento de uma nação e excederam um ou dois rolos. E of America”, em Forgeries of 10 Brownlow, Behind the Mask, p. xvi. seguintes.
Memory and Meaning: Blacks and
apenas um ou dois de seus filmes posteriores (o abundantemente sentimen- the Regimes of Race in American 11 Gunning, D.W. Griffith, p. 89. 19 Ibid., p. 65.
tal Lírio partido [Broken Blossoms, 1919] e Horizonte sombrio [Way Down Theater and Film Before World
War II (Chapel Hill: University 12 Consistiam em organizações 20 Organização não governamental
East, 1920]) ensejaram apreciações críticas sérias, que iam além de “mais of Nor th Carolina Press, 2007). voluntárias originalmente formadas sediada nos Estados Unidos cujo
Direitos cedidos pelo autor e por mulheres, a quem foi negado objetivo principal é combater o
um trabalho do diretor de O nascimento de uma nação”. Seis anos depois pela editora. Traduzido do inglês o acesso às principais instituições antissemitismo. (N.T.)
de completar seu filme mais conhecido, Griffith criaria algo próximo a uma por Guilherme Semionato. (N.E.) da sociedade civil democrática dos
Estados Unidos. Após a guerra 21 Brownlow, Behind the Mask, p. 376.
antologia com Órfãs da tempestade (Orphans of the Storm, 1921). Na verdade, 2 Cripps, Slow Fade to Black, capítulo civil norte-americana, embora as
2; Aptheker, Afro-American History, mulheres continuassem a pertencer 22 Zukor, Laemmle e Fox, todos
ele nunca superou a criatividade narrativa e o lirismo poético das imagens de p. 160. aos clubes literários, sociais e judeus, viriam a fundar três dos
de caridade, a maioria deles principais estúdios do cinema
grandes diretores do cinema mudo, como Sergei Eisenstein ou Jean Renoir.113 3 Gabler, Empire, p. 90. Em 1916, teve agendas cívicas e políticas norte-americano das décadas
Schickel, seu biógrafo mais compassivo, conseguiu elaborar a seguinte defe- o New York Times estimou que específicas. Os objetivos específicos seguintes: Paramount, Universal e
872 mil nova-iorquinos haviam de cada clube variavam, mas um Fox, respectivamente. (N.E.)
sa: “Considerando o ritmo das inovações desde 1914 e o estabelecimento das visto o filme no primeiro ano dos mais comuns era trazer mais
de exibição: “Isso equivale a 1/7 justiça social para a sociedade 23 Gabler, Empire, p. 117. Fox, a
primeiras convenções dramáticas para filmes sonoros aproximadamente vinte da população de Nova York, e, norte-americana. Assim, os clubes exceção, juntou capital por meio
anos depois, é ridículo pedir de um homem, não importa quão talentoso, que calculando que cada ingresso vale
aproximadamente 75 centavos de
das mulheres trabalharam para
implementar leis de inspeção de
do banco de investimento Halsey,
Stuart & Co. (gentio).
partilhe de todas elas, ou mesmo que as aprove, que dirá que as estabeleça dólar, um total de 600 mil dólares fábricas, para colocar limites ao
foi pago pelos nova-iorquinos. O número de horas da jornada de 24 Brownlow, Behind the Mask, p. 377.
sozinho. Griffith obviamente tinha limitações e, se não há obras-primas entre filme foi exibido simultaneamente trabalho, para eliminar o trabalho
em outras grandes cidades do infantil e para aumentar a idade 25 Schickel, D.W. Griffith, capítulo 9.
seus últimos oito filmes, apenas dois ou três deles são absolutas desgraças.”114 país, e estima-se que 5 milhões de mínima para o ensino obrigatório,
Técnicas e mecânicas, como Renoir asperamente falou referindo-se a Grif- pessoas já o assistiram.” “Written por exemplo. Clubes de mulheres 26 Gabler, Empire, p. 90-91.
on the Screen”, New York Times, 2 afro-americanas lutaram contra o
fith, nada têm a ver com a questão.115 O que distinguiu Griffith foi que ele de janeiro de 1916, X8. linchamento, a segregação racial e a 27 Rogin, Blackface, White Noise, p. 77.
discriminação. Clubes de mulheres
estendeu uma história fantástica dos Estados Unidos à mais profundamente 4 Lang, The Birth of a Nation, p. 43. católicas e judaicas atraíram 28 Ver Quarles, Black Abolitionists.
significativa forma de arte da cultura de massa antes da televisão. Seu timing Todas as citações dos intertítulos
do filme foram retiradas do roteiro
mulheres dessas religiões que não
se sentiam confortáveis em​​ outros 29 Ambos eram abolicionistas negros.
foi acidental, mas não menos determinante por isto, já que ele ofereceu sua de continuidade confeccionado clubes, o que também deu atenção (N.T.)
por Robert Lang, conforme foi especial aos problemas enfrentados
visão a uma plateia bastante desinformada sobre os Estados Unidos, com a publicado neste volume. pelo grupo religioso em questão. 30 Ver Robinson, Black Movements in
(N.T.) America.
colaboração de produtores, de exibidores e de financiadores que eram igual- 5 Ibid., p. 44.
mente ignorantes quanto ao país, exceto como mercado. 13 Ambas as citações são de 31 A forma como Thomas Dixon
6 Zinn, People’s History, p. 261, 373. Brownlow, Behind the Mask, p. xvii, retratou “Austin Stoneman”
Juntos — Griffith (Dixon, Wilson etc.), seus consortes na indústria e sua xviii. (careca, com pés tortos congênitos
7 Sklar, Movie-Made America, p. 4. e com uma amante mulata etc.)
plateia —, eles constituíram a plataforma social e cultural para uma economia 14 Ibid., p. xviii-xix. não deixou dúvidas de que
robusta e uma agenda política; uma agenda imersa no processo de se apossar 8 Penny arcades: estabelecimentos
anteriores à chegada dos 15 Ibid., p. xxi-xxiii.
Stoneman era Thaddeus Stevens,
membro da facção radical do
do trabalho doméstico e internacional, além da terra e do capital. Com a apro- nickelodeons que englobavam Partido Republicano na Câmara
atrações como caça-níqueis, peep 16 Ver Gunning, D.W. Griffith, p. 143- dos Representantes e um dos
vação oficial do destino de raça, lidou-se com as vidas e com os destinos de shows, o próprio kinetoscópio de 44; e Sklar, Movie-Made America, p. maiores apoiadores da abolição
Edison, entre outras. (N.E.) 33 e seguintes. da escravidão, e de que “Lydia
homens e mulheres mundo afora como bens comerciáveis, como capital humano.

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Dixon” era mesmo Lydia Smith. de forma alguma idênticos, em Gaze, capítulo 2; e Schickel, D.W. League, além de membro da Grieveson, Policing Cinema, p. 126. p. 102. No ano seguinte, Dorsey
Para saber mais sobre a relação relação ao sul”. Merritt, “Dixon, Griffith, capítulo 10. Para a reação National Equal Rights League de foi eleito governador, seu segundo
de Stevens com Lydia Smith, sua Griffith”, p. 39. Mas o próprio da imprensa negra ao filme, ver Trotter. Ambas as organizações 62 Gilmore, Bad Nigger, p. 81. mandato.
governanta mulata, ver Brodie, questionamento de Merritt a pesquisa abrangente de Anna intervinham radicalmente em favor
Thaddeus Stevens. Wallace, ao mostrou um espaço muito mais Everett em Returning the Gaze, das vítimas de linchamento em 63 Ibid., p. 83. 75 “Warden Is Overpowered”, New
discursar sobre filmes mudos amplo de desavença entre ambos. particularmente o capítulo 2. potencial. York Times, 17 de agosto de 1916,
baseados em Uncle Tom’s Cabin, Dixon acreditava que a guerra 64 Streible, “Race and Reception”, p. 1.
romance antiescravagista de Stowe, civil era uma catarse necessária 46 Merritt, “Dixon, Griffith”, p. 28. 52 Rogin, “Sword”, p. 174. Lang p. 193.
afirma que Lydia Brown é baseada do feudalismo, e não “amarga, não acredita que as cenas de 76 Gould, Mismeasure of Man,
na caracterização de Cassie na inútil” (ibid., p. 41); para Dixon, 47 Casa de abrigo (especialmente de depor tação foram filmadas, mas 65 Gilmore, Bad Nigger, p. 106 e capítulo 5.
versão de 1914 produzida pela a formação da Ku Klux Klan foi imigrantes) em Chicago, criada em ele descobriu que “a sinopse seguintes.
World Film Corporation. Isso tira uma restauração deliberada e 1889 por Addams e Ellen Gates submetida ao U.S. Copyright 77 Griffith também mudou
por completo o contexto histórico coletiva do exército confederado, Starr. (N.T.) Office em 8 de fevereiro de 66 Ibid., capítulo 5: “Jack Johnson consideravelmente a versão
do assassinato dos personagens inspirada em lendas medievais 1915 incluía o comentário: ‘O and White Women: The National feminista de Dixon para Elsie
de Stevens e de Smith pelo autor, e liderada pelo general Bedford 48 Para Addams e Wise, ver plano de Lincoln de restaurar Impact”; Roberts, Papa Jack, Stoneman. A Elsie que, num longo
e lida de forma inadequada com Forrest, não uma forma de “Opinions”, Crisis, maio de 1915, p. os negros à África foi apenas capítulo 5: “White Hopes and debate sobre a escravidão, declara
a transmutação de uma heroica populismo branco espontâneo, 19; e para Addams e Hackett, ver sonhado, nunca concretizado’, o White Women”. a Ben: “Eu não me incomodo
Cassie (no filme de 1914) numa como acreditava Griffith. Schickel, D.W. Griffith, p. 283-84. que dava credibilidade à hipótese em me sentir arrebatada por um
Lydia que é “demonizada e de que o filme incluíra ao menos 67 Leon Litwack observa: “De homem qualquer” (Dixon, The
horrendamente sexualizada”. Ver 37 Thomas Clark, introdução, p. xvi. 49 Du Bois, Black Reconstruction. um inter título para este efeito.” todas as classes da sociedade Clansman, p. 127), foi transformada
Wallace, “Uncle Tom’s Cabin”, p. O romance, na verdade, começa Lang, The Birth of a Nation. Merritt branca sulista, dos ‘caipiras’ aos numa adolescente dependente e
149. Stevens mereceu a hostilidade com o encontro entre Elsie e Ben 50 Originalmente intitulado The concorda, citando um vestígio ‘virtuosos’, os linchadores se uniam apegada ao pai por Griffith e por
da escola Dunning de historiadores Cameron, então com 19 anos, Clansman, afirma Schickel, o filme da cena deletada “nas primeiras numa exibição impressionante de Lillian Gish.
norte-americanos por seu ferido, num hospital militar de recebeu novo título no início de notas e resumos de O nascimento solidariedade racial e comunitária.
envolvimento na defesa e no apoio Washington, D.C. março, depois de “Griffith cortar de uma nação, mantidos no Museu Nem os pobres-diabos loucos ou 78 Para as tentativas de provar a
logístico dado a escravos fugitivos, uma cena de amor entre o senador de Ar te Moderna”. “Dixon, a escória da sociedade branca, o culpa de Conley, ver Dinnerstein,
por defender a abolição como 38 Ibid., p. 57, 93. Stoneman e sua amante mulata, e Griffith”, p. 42. grosso dos linchadores tendia a “Fate of Leo Frank”; Goldfarb,
objetivo da guerra, por ter sido o outra sequência em que um branco ser pessoas comuns e respeitáveis, “Framed”; e Frey e Thompson-
arquiteto do serviço militar negro, 39 Em sua extensa e bastante e um negro brigam”. Schickel, D.W. 53 A descrição que se segue e poucas delas tinham qualquer Frey, Silent and Damned.
e por seu papel na reconstrução abrangente crítica da literatura Griffith, p. 282. Para um registro das atividades de Dixon em dificuldade em justificar as
dos Estados Unidos. sobre a primeira Klan, Lisa mais usual sobre o título, ver Washington, D.C., foi retirada de atrocidades que cometiam em 79 As citações são de Rogin, “Sword”,
Cardyn alerta: “Como muitos Merritt: “A famosa história sobre Rogin, “Sword”, p. 154; Schickel, nome de manter a ordem social e p. 181-82.
32 Ver os relatos do veterano da observadores contemporâneos Dixon gritando para que o título D.W. Griffith, p. 268 e seguintes; racial e a pureza da raça anglo-
guerra civil Joseph Wilson, Black admitem prontamente, o terror fosse mudado de The Clansman e Raymond Cook, “Man behind -saxã.” Litwack, “Hellhounds”, 80 MacLean, Behind the Mask, p. 5.
Phalanx, p. 330-36; e Cornish, Sable da Klan tem seu ímpeto derivado para The Birth of a Nation, durante Birth”, p. 529 e seguintes. p. 19.
Arm, p. 170 e seguintes. da intensa resistência por parte de uma pré-estreia do filme em Nova 81 Para uma apologia típica da
seus perpetradores aos processos York, foi descrita primeiro em 54 As três citações neste parágrafo 68 Streible, “Race and Reception”, Klan como “uma organização
33 A Reconstrução foi o período da históricos por meio dos quais [Terry Ramsaye, A Million and One foram retiradas de Raymond Cook, p. 170. social e cívica, revigorando o
história dos Estados Unidos que se os antigos escravos passavam a Nights, 1926, p. 641]. A história é, “Man behind Birth”, p. 531, 532, senso de unidade e de coesão da
iniciou após o término da guerra ganhar acesso aos direitos e às no mínimo, parcialmente apócrifa, 530. Wilson depois negou seu 69 Randy Roberts assegura que vida em comunidade com seus
civil, em 1865, e se estendeu até responsabilidades usufruídas pelos uma vez que muito antes desta apoio a O nascimento de uma nação. “nos desenhos, a cabeça calva [de espetaculares eventos sociais,
o ano de 1877. Foi marcado pelo cidadãos.” Cardyn, “Sexualized pré-estreia em março de 1915 em Schickel, D.W. Griffith, p. 298-99. Johnson] era às vezes retratada atividades cívicas e trabalhos
retorno gradual dos estados que Racism”, p. 777. Nova York já se referia ao filme como a cabeça de uma cobra, com filantrópicos”, ver Moore,
haviam se separado do país e como The Birth of a Nation. Numa 55 Schickel, D.W. Griffith, p. 281. todas as implicações sexuais que “Historical Interpretations”.
formado os Estados Confederados 40 Woodrow Wilson, History of the propaganda de página inteira do esse réptil propicia (...) Sexualidade MacLean responde à “tendência
da América, e pelo início do American People, p. 60. jornal The Los Angeles Daily Times, 56 Zinn, People’s History. era a essência de Jack Johnson, recente na pesquisa historiográfica
processo de integração dos antigos de 9 de fevereiro de 1915, pode-se a força por trás de seu sucesso, sobre a Klan de tirar a ênfase ao
escravos afro-americanos. (N.T.) 41 Manthia Diawara reinterpreta a ler: ‘Durante toda a semana, The 57 Ver Gilmore, Bad Nigger, capítulo e esse poder era percebido por ódio racial de suas políticas e à
“perseguição a Gus” com detalhes Clansman — ou The Birth of 4: “The Supression of the Johnson mulheres e homens brancos.” violência de suas práticas”, ao
34 Jack Temple Kirby, “D.W. Griffith’s em “Black Spectatorship: Problems a Nation. Produzido por D.W. Fight Films”; e Streible, “Race and Roberts, Papa Jack, p. 74. sugerir que “polaridades falsas” (se
Racial Portraiture”, p. 121. of Identification and Resistance”. In: Griffith.’” Merritt, “Dixon, Griffith”. Reception”, p. 173. a Klan era primordialmente rural
Diawara, Black American Cinema, p. 70 MacLean, “Leo Frank Case”, p. ou urbana, se preocupava-se com
35 Polêmico romance em que 212 e seguintes. 51 Ida B. Wells, em Chicago, 58 Roberts, Papa Jack, p. 19, 63. 921. políticas em nível local ou nacional,
Thomas Dixon descreve a condenou a NAACP da cidade se consistia em paladinos cívicos ou
desintegração social, política 42 Descrição de Robert Lang, The por seu fracasso em preparar 59 Termo reservado para ocasiões 71 Feriado oficial de nove estados em vigilantes, se eram populistas
e econômica que assolou o Birth of a Nation, p. 155. a resistência contra a exibição em que um soco derruba um dos sulistas dos Estados Unidos ou racistas) encobrem o fato de
sul durante a Reconstrução, do filme. Ver Wells, Crusade lutadores — ou seja, tira-o da (Alabama, Flórida, Geórgia, que “a Klan era a um só tempo
retratando o surgimento da Ku 43 Robinson, “Slavery and Platonic for Justice, p. 342-44. Wells foi posição em pé —, que consegue Louisiana, Mississippi, Carolina convencional e extrema, hostil a
Klux Klan e as reações de duas Origins”. uma das pessoas que fundou a se levantar em menos de dez do Norte, Carolina do Sul, grandes negócios e antagonista de
famílias ao conflito racial. (N.T.) campanha de antilinchamento segundos. (N.T.) Tennessee e Texas) para honrar os sindicatos industriais, antielitista
44 Robert Lang, “The Birth of a Nation: no final do século XIX, e talvez confederados que morreram na e abominadora de negros e de
36 Raymond Cook, “Man behind History, Ideology, Narrative Form”. sua figura mais importante. Ela 60 Streible, “Race and Reception”, guerra civil norte-americana. (N.T.) imigrantes, a favor da lei e da
Birth”. Em 1972, Russell Merritt In: Lang, The Birth of a Nation, p. 17. também é uma das fundadoras da p. 176. ordem, mas também da violência
reconheceu que “a segunda parte NAACP, em 1909. Wells deixou 72 Ibid., p. 930. extralegal. Se os estudiosos
de O nascimento de uma nação foi, 45 Para um apanhado de críticas, a organização, descontente com 61 Agradeço a Lee Grieveson por viam esses atributos como
então, um trabalho colaborativo ver o New York Times e o Christian a falta de militância radical em esta descoberta, descrita por 73 Ibid., p. 924, 926. incompatíveis, os membros da Klan
entre dois sulistas que partilhavam Science Monitor; Cripps, Slow Fade oposição aos linchamentos, e se ele como “uma dessas surpresas não o faziam.” MacLean, Behind the
de pontos de vista similares, mas to Black; Everett, Returning to tornou a líder da Negro Fellowship curiosas de arquivos históricos”. 74 Dinnerstein, “Fate of Leo Frank”, Mask, p. xiii.

56 57
Manufacturing Company, onde Clansman à atenção de Griffith) acurada sensibilidade e impacto
82 Zinn, People’s History, p. 355. atuou como roteirista, diretor e 107 Ervin Jordan, “Sleeping with the quanto descredita (“ele não era no desenvolvimento da narrativa 114 Schickel, D.W. Griffith, p. 510.
ator. A Biograph o contratou para Enemy”, p. 56. bem uma eminência parda”) em Griffith. D.W. Griffith, p. 66,
83 Hobsbawm, Age of Extremes, p. 29. que aparecesse em The Mended Woods. Schickel, D.W. Griffith, 186; enquanto Jay sustenta que 115 Ibid., p. 597.
Lute, e a Vitagraph o contratou para 108 Clinton, “Southern Dishonor”, p. 140, 212, 242. Gunning Woods empreendeu a maior
84 Schickel, D.W. Griffith, p. 342. o filme Red Wing’s Gratitude. Ele p. 52. frequentemente cita as colunas parte da pesquisa para os filmes
acumulou as funções de ator e de mais antigas de Woods no New sobre índios de Griffith. “White
85 Ibid., p. 343. diretor na Pathé desde o começo 109 Ver Sampson, Blacks in Black and York Dramatic Mirror por sua Man’s Book”, p. 10.
das atividades desta empresa no White, p. 83-84, 95-96.
86 Ver Hans Schmidt, United States leste (A Cheyenne Brave, The Red Girl
Occupation; Plummer, Haiti and the and the Child) e (...) estabeleceu o 110 Ver Guerrero, Framing Blackness,
Great Powers; e Plummer, Haiti and estúdio da costa oeste da Pathé.” capítulo 1.
the United States. Bowser, Transformation of Cinema, p.
174, 175. Para Turner, ver Cronon, 111 Ver Cripps, Slow Fade to Black,
87 Hans Schmidt, United States “Revisiting the Vanishing Frontier”. capítulo 3. Ver também Paul
Occupation, p. 42. Bowser e Jane Gaines, “New
99 Pearson, “Revenge of Rain-in-the- Finds/Old Films” (p. 2-5);
88 Ver Plummer, Haiti and the Great Face?”, p. 273; e Jay, “White Man’s Alex Albright, “Micheaux,
Powers. Book”, p. 7. Para a contribuição de Baudeville and Black Cast Film”
Carter aos filmes sobre índios, ver (p. 6-9, 36); Gloria Gibson-
89 Ver James, Black Jacobins. Kilpatrick, Celluloid Indians, p. 2-5. Hudson, “The Norman Film
Manufacturing Company” (p.
90 Schmidt, United States Occupation, 100 Jay, “White Man’s Book”, p. 10. 16-20); e J. Ronald Green, “The
p. 48. Micheaux Style” (p. 32-34), em
101 A versão de The Massacre “History of Black Film”. Para o
91 Ibid., p. 62-63. lançada pela distribuidora Kino número de cinemas entre 1912
Video não inclui o que Jay e 1921, ver Sklar, Movie-Made
92 Lang, The Birth of a Nation, p. 110- descreve como sendo o início America, p. 146.
11. do filme: “Dois sulistas vão para
a guerra depois de cortejarem a 112 O Pale denominava a zona
93 “Opinion”, Crisis, junho de 1915, p. mesma mulher. Um deles, marido de assentamento judeu na
70. Em 1915, o que contraria muito dela, é morto, deixando ao Rússia, que perdurou entre
do que se comenta recentemente, pretendente rejeitado, Stephen, a 1791 e 1917. Consistia numa
grande parte, senão a maioria, das tarefa de levar a notícia a ela. Ao determinada região do Império
críticas que o filme recebeu tinham transmitir o ocorrido, a esposa, Russo designada exclusivamente
Dixon como alvo, o intelectual que já se encontrava doente, aos judeus, sendo a sua
e novelista, e não Griffith, que acaba morrendo. Sua filhinha residência proibida no restante
parecia ser considerado um mero acaba sendo criada por Stephen. da Rússia. Foi determinada
cineasta. Anos se passam.” Jay, “White entre uma linha de demarcação
Man’s Book”, p. 15. É neste ponto (pale) oriental e outra ocidental,
94 Citado do manuscrito não que a versão lançada pela Kino se que terminava na fronteira
publicado de G.W. (Billy) Bitzer, inicia. Ver D.W. Griffith’s Biograph do Reino da Prússia (Império
“Dixon, Griffith”, p. 30. Shorts, Kino Video DVD, Nova Alemão) e o Austro-Húngaro.
York, 2002. A zona de assentamento
95 Bowser, Transformation of Cinema, judeu incluía o território
p. 173. 102 Jay, “White Man’s Book”, p. 11. atual da Lituânia, Bielorrússia,
Polônia, Moldávia, Ucrânia e
96 Conforme Gregory Ray descreve: 103 Ibid., p. 12. partes da Rússia ocidental. O
“A estimativa é de que cinquenta Pale, com grande população
filmes de um rolo com a temática 104 Literalmente, Festa do judaica e também católica, foi
indígena, de faroeste ou de caubói Cachorro, uma das mais adquirido pelo Império Russo
foram lançados em 1909, e entre reverenciadas tradições de (majoritariamente de religião
100 e 200 a cada ano, até 1914.” diversas tribos indígenas ortodoxa) numa série de
“White Man’s Book”, p. 6. Jay norte-americanas. Ela envolvia conquistas militares e manobras
identifica 31 filmes sobre índios da o sacrifício ritualístico de diplomáticas entre 1791 e 1835
autoria de Griffith. Ver o apêndice cachorros e era mantida apenas e durou até a queda do Império
em ibid., p. 23. em ocasiões especiais, em que se Russo em 1917. (N.T.)
queria mostrar grande respeito
97 Ibid., p. 8, 7. ao convidado. (N.T.) 113 Ao se avaliar a importância de
Griffith como cineasta, mais
98 Eileen Bowser conta que “Young 105 “Era comum que casos de atenção deveria ser dada às
Deer e Miss Redwing eram da tribo amor entre índios e brancos contribuições de Frank Woods,
Winnebago. James Young Deer, terminassem em tragédia, para que escreveu um roteiro
nascido em Dakota City, Nebraska, que se evitasse a miscigenação.” “perdido” para O nascimento de
trabalhava em circos itinerantes até Bowser, Transformation of uma nação e que foi assistente
que foi contratado para fazer filmes Cinema, p. 176. de roteiro de Griffith a partir
pela Kalem Company. Young Deer de 1909. Schickel tanto credita
também trabalhou para a Lubin 106 Wells, Crusade for Justice, p. 70. (foi Woods que trouxe The

58 59
“Algo para se ver
a toda hora”: o cinema
e o lazer urbano
negro em Chicago1
Jacqueline Stewart

A
virada do século XX testemunhou grandes mudanças na liderança social
e política da comunidade negra de Chicago. Baseando-se no trabalho de
August Meier, Allan Spear descreve essas mudanças, por um lado, nos
termos das diferentes ideologias raciais para as quais se voltou a “Elite Negra” de
Chicago e, por outro, na “nova liderança” composta por profissionais com interes-
ses econômicos e políticos.2 Antes de 1900, os “refinados”, ou a elite dos afro-a-
mericanos, controlavam as principais atividades sociais e cívicas da raça. Alguns
membros dessa classe pertenciam a famílias que estavam em Chicago há várias
gerações, e a maioria delas se notabilizava em arenas profissionais onde travavam
contato frequente e próximo com os brancos. Indivíduos como John G. Jones (um
advogado eleito para o legislativo do Estado), o Reverendo Archibald J. Carey
(ativista político e poderoso pastor da Capela Quinn, então conhecida como Igreja
Institucional) e Daniel Hale Williams (o mais célebre cirurgião negro no país e
cofundador do Hospital da Providência) aderiram à noção de W. E. B. Du Bois
dos “10% mais talentosos”,3 conveniente às suas sensibilidades culturais e sociais
elitistas. Ainda que membros dessa elite negra de Chicago sustentassem posições
ideológicas divergentes em questões particulares nessa época, na maior parte das
vezes eles compartilhavam a crença comum de que seu alto nível de educação, sua
experiência em liderar e/ou seu longo período de mandato e residência na cidade
os autorizava a servir como representantes da raça como um todo.

61
Na tradição militante abolicionista, muitos desta elite negra chicagoense — a ter um impacto significativo nas vidas dos chicagoenses negros (como políticos,
como a maior parte dos líderes negros do norte na época — eram veementemen- empregadores, donos de terra ou policiais, por exemplo), era dentro de uma “Me-
te contrários a qualquer forma de segregação, e evitavam o estabelecimento de trópole Negra” rigidamente segregada que a maior porção dos afro-americanos
instituições negras separatistas.4 Depois de 1900, porém, as filosofias de autoa- vivia sua vida cotidiana e engajava na maioria de seus lazeres.
juda e a solidariedade racial popularizadas por Booker T. Washington se torna- Não é surpreendente que a maioria das atividades sociais afro-americanas
ram bastante atrativas aos segmentos não elitistas da comunidade negra, à luz fossem organizadas por suas instituições mais antigas — igrejas e alojamentos.
do estado deteriorado em que se encontravam as relações raciais nos EUA. Logo, Na virada do século, as igrejas de negros de Chicago uniram esforços para pro-
a primeira década do século XX assistiu ao surgimento de uma nova liderança videnciar serviços sociais e atividades para além da religião. Por exemplo, des-
na região Sul de Chicago. Estes “homens bem sucedidos” eram relativamente de 1905, uma das maiores igrejas negras de Chicago, a Olivet Baptist, oferecia
novos na cidade; eles não tinham a mesma formação cultural e educacional do programas laicos, incluindo boates para meninos e meninas, clubes literários e
grupo “refinado” e nem sempre verbalizavam a ideologia racial. Ao contrário, atividades atléticas. A Institutional Church and Social Settlement (Instituição
“eles deixaram sua marca não falando ou escrevendo, mas em empreendimen- da Igreja e Serviços Sociais), fundada em 1900 pelo Reverendo Reverdy Ran-
tos comerciais, instituições e organizações políticas.”5 Diferentemente da antiga som, teve como modelo a Hull House de Jane Addams e oferecia atividades e
elite, homens como o Dr. George Cleveland Hall (a quem Daniel Hale Williams serviços que incluíam desde creche e jardim de infância até aulas de culinária
rejeitou por conta de seu treinamento médico “inadequado”), empresários como e costura, ou lições ministradas por “líderes brancos e negros”.9 Ainda que a
Theodore W. Jones e Jesse Binga, os políticos profissionais Edward H. Wright maioria das igrejas negras de Chicago fossem estratificadas por classe, algu-
e Oscar DePriest, e o editor do Defender Robert S. Abbott não se beneficiaram mas, como a Institutional, criavam oportunidades para os mais diferentes seg-
primeiramente de ligações profissionais, sociais e políticas diretas com os bran- mentos da comunidade cultuarem e interagirem socialmente uns com os outros.
cos.6 Ao invés disso, eles construíram suas bases de poder político e financeiro A elite negra de Chicago desfrutava de atividades cívicas e de lazer organi-
sobre as comunidades negras socialmente segregadas que se desenvolviam na- zados por seus próprios alojamentos e organizações fraternais como os Good Sa-
quele momento. Seus clientes, leitores e constituintes eram trabalhadores ne- maritans (organizada em 1859), o Prince Hall Mason, o Illionois Grand Lodge e
gros nos serviços industriais da cidade, cujo número crescia rapidamente após a o Odd Fellows. Outros clubes exclusivos da elite, como o Ladies’ Whist Club e
virada do século. Essa massa de população negra necessitava e procurava bens, o Prudence Crandall Club (clube literário organizado em 1887), excluíam mem-
informações, serviços sociais, educação e atividades sociais e de passatempo bros da classe média negra emergente, que, por sua vez, criava suas próprias
que eram rotineiramente negadas a eles pela segregação estrita que existia em organizações sociais, como o Appomattox Club.10 O Chicago Defender reportava
Chicago, bem como nos círculos fechados da elite negra da cidade. regularmente as funções exercidas pelas organizações da elite e da classe mé-
A essa altura, a maior parte da população afro-americana da cidade já havia dia, por vezes na primeira página, detalhando quem estava presente, que trajes
sido cerceada em uma área residencial estreita na região sul conhecida como usavam, prêmios distribuídos e presentes trocados.11 Esses clubes funcionavam
Black Belt (Cinturão Negro), onde os negros pobres e de classe média pagavam primeiramente como uma oportunidade de seus membros criarem uma rede de
altos aluguéis pelo pior parque habitacional da cidade.7 Ainda que a elite negra relações. Os bailes, lições, danças, piqueniques e concertos patrocinados por
de Chicago se opusesse à ideia de instituições negras separatistas, a vasta maioria eles davam aos membros a oportunidade de confirmar seus gostos refinados,
da comunidade afro-americana precisava de hospitais, bancos, igrejas, lojas, res- bem como seu status financeiro e social diante dos outros membros do grupo.
taurantes, diversões e outros estabelecimentos onde não recebessem tratamento Também funcionavam para padronizar formas aceitáveis de lazer negro para os
de segunda classe ou fossem evitados por completo. Logo, como observa Spears, membros das classes inferiores, através de exemplos amplamente divulgados.
enquanto a hostilidade dos brancos criara o “gueto físico” na região sul — con- As classes operárias de negros haviam desenvolvido suas próprias atividades
finando os negros em áreas residenciais — entre 1900 e 1915, a nova liderança de lazer formais e informais, muitas as quais eram desaprovadas pela elite e
da classe média construiu o “gueto institucional”, incluindo “um complexo de pela classe média. O historiador James Grossman observa que “culto entusi-
organizações comunitárias, institucionais e empresariais” onde a doutrina da au- ástico” na frente das igrejas e uma “intensa vida noturna” feita de apostas,
toajuda, ao invés da doutrina da integração, encorajava a lealdade dos negros à saloons e festas compensavam os trabalhadores negros com “uma folga de seus
sua própria “cidade dentro da cidade”.8 Ainda que os brancos tenham continuado trabalhos cansativos, de baixo escalão.”12 Essas formas de diversão agitadas

62 63
não projetavam a imagem racial que as lideranças negras de Chicago queriam para dar oportunidades aos jogadores negros, que eram excluídos das principais
transmitir. Mas esses tipos de atividade persistiram e proliferaram nos anos ligas de beisebol. O Leland Giants foi o primeiro empreendimento negro na área
seguintes, especialmente na Grande Migração do final dos anos 1910, quando de beisebol a obter sucesso, jogando semanalmente na rua 77 e na Wentworth.
os membros da crescente classe operária de negros chicagoenses criaram for- Além do Chateau, Jackson e Moseley tentaram abrir um parque de diversões e
mas de passar suas preciosas horas livres em ambientes livres das pretensões e um hotel de temporada; eles também tentaram organizar a liga nacional negra de
proibições da classe média. beisebol. Mesmo que houvesse muito entusiasmo nessas empreitadas, eles não
Chicagoenses negros de todas as classes tinham acesso a uma variedade conseguiram levantar o capital necessário para realizá-las.18 Por muitos anos,
de atividades e diversões não comerciais, muitas delas conectadas à religião, à porém, o Leland Giants e o Chateau Gardens ofereceram aos chicagoenses ne-
educação e/ou à elevação. Em 1912, o Defender anunciou a “Segunda Assem- gros ambientes confortáveis que os permitia apoiar empreendedores negros.
bléia Anual de Chautauqua”, com “exercícios de religião, música, retórica e A edição de 1908 do Rhea’s New Citizens’ Directory, um guia da Chicago
sermões.”13 A Negro Fellowship League (domiciliada na S. State, 2830), como negra compilado pelo publicitário H. W. Rhea, incluía anúncios de vários em-
outros estabelecimentos, apresentava palestrantes em seus encontros sema- preendimentos de proprietários negros, e uma listagem individual e de negócios
nais e oferecia “uma das melhores salas de leitura da cidade, principalmente indica dezenas de proprietários e empregados negros em confeitarias, saloons,
para homens e meninos,” onde eles poderiam “encontrar as principais revistas restaurantes e salões de bilhar. Empreendimentos como o Jordan’s Century
e jornais, os melhores livros, e também mesas onde poderiam escrever suas First-Class Billiard and Pool Room na State Street, 2958, e a sorveteria Edward
cartas.”14 Ocasionalmente, lições patrocinadas pelos estabelecimentos usavam Felix (que vendia charutos, cigarros, tabaco, doces e guloseimas) na Rua 30
imagens fotográficas projetadas, como ocorreu em um sermão na Fellowship Leste, 368, atendia aos diversos segmentos da crescente população de negros
League ilustrado com “slides estereópticos de imagens do ‘Desenvolvimento chicagoenses. Por um breve período de tempo, os chicagoenses negros podiam
Industrial em Cuba’.”15 Essas formas de atividades eram oferecidas não somente fazer compras na Sandy W. Trice & Company, “a maior loja de departamento
como alternativas à vida nas ruas, mas também como alternativas não discrimi- negra no oeste”, localizada na State Street, Sul, 2918. Ainda que alguns afro
natórias às diversões comerciais dos brancos na cidade. -americanos vivessem e tivessem negócios em outras partes da cidade (p. ex. a
Os afro-americanos também controlavam uma grande variedade de espaços sorveteria da região norte, localizada na Orleans Street, 307, e administrada por
comerciais de entretenimento durante a primeira década do século XX, e muitos negros que viviam fora do Black Belt), os estabelecimentos perto da South State
deles anunciavam-se como adequados para famílias, crianças e pessoas procu- Street serviam como locais principais onde os negros passavam seu tempo livre
rando uma diversão boa e tranquila, sem discriminação racial. Por exemplo, o e gastavam seu dinheiro.19
Chateau de Plaisance, localizado no sul do Black Belt, na State Street, 5318- Os chicagoenses negros também gozavam de uma cidade que ostentava
26, anunciava em 1908 ser um “resort de verão para homens e mulheres que uma cena teatral extremamente ativa. Em outubro de 1900, o Chicago Broad
encontrarão o melhor lugar no único estádio e pavilhão de parque de diversões Ax anunciou em suas notas do caderno de entretenimento que “vinte teatros
administrado e propriedade de negros no mundo.” Os visitantes do Chateau de competirão pelo público sedento por diversão em Chicago nesta temporada.”20
Plaisance, local de fácil acesso por automóvel, poderiam aproveitar uma varieda- Apesar de este artigo provavelmente contabilizar teatros dentro e fora do Black
de de “atrações ao ar livre”, incluindo “shows de bandas, solos vocais, derbies de Belt, o escritor se refere à variedade de lugares onde afro-americanos poderiam
patins e as melhores refeições disponíveis” por um preço baixíssimo de somente potencialmente assistir a performances musicais e teatrais sem restrições ra-
dez centavos.16 O Chateau anunciava frequentemente nos jornais Defender e Bro- ciais. Enquanto o Broad Ax raramente detalhava os dados de entretenimento, as
ad Ax, citando visitas ilustres como a da Sra. Booker T. Washington e do mito do páginas do Defender eram recorrentemente preenchidas com anúncios e críticas
vaudeville, Bert Williams. Os visitantes também podiam ir ao Chateau conhecer das aparições dos atores de vaudeville — cantores, dançarinos, comediantes e
e parabenizar os jogadores mais populares do time de beisebol Leland Giants.17 outros especialistas — em locais em torno da South State Street, popularmente
O Chateau era, de fato, propriedade e operado pela Associação de Beisebol e conhecida como o Stroll (Passeio). O foco do Defender no entretenimento do
Diversão dos Leland Giants, capitaneada pelos empresários Robert R. Jackson Black Belt, porém, não evitava que os seus redatores se mobilizassem pelo aces-
e Beauregard F. Moseley. O beisebol era um esporte que gozava de enorme po- so a lazer no restante da cidade, e que comentassem com crescente frequência
pularidade entre os afro-americanos, e Jackson e Moseley fundaram os Giants formas culturais de massa dominantes como, por exemplo, o cinema.

64 65
(...) porte (normalmente, a taxa do trem) para o Norte. Em suas cartas, migrantes
em potencial insistiam que queriam ir para o Norte para trabalhar, e não para
Atrações e Distrações Urbanas: se divertir. Um homem de Pensacola, na Flórida, respondeu a um anúncio no
O Lazer dos Negros Defender procurando trabalhadores para uma fundição em 1917: “Eu sou um
e a Grande Migração homem trabalhador, não sou um jogador, apostador ou aventureiro... Sou um
homem que quer aprender, trabalhador de família, com esposa e filho de nove
Anos antes da Grande Migração de 1916-19, muitos observadores negros anos.”23 Outro escritor de Atlanta disse que gostaria de ir para Chicago “como
eram céticos sobre o impacto da vida urbana no futuro e no bem-estar da Raça. um trabalhador... não um vadio” e descreve a si mesmo como um “homem de
Por exemplo, durante uma palestra na Chicago’s Bethel A.M.E. Church realiza- bem, religioso e de moral forte, sem hábitos ruins.”24 Ainda outro escritor, de
da em Janeiro de 1900, Booker T. Washington advertiu os pais negros a ficarem West Palm Beach, na Flórida, assegurava não apenas o seu caráter, mas tam-
constantemente de olho nos meninos e meninas para “preveni-los de estar em bém o de seus filhos: “Não bebo nada, nem coisas como uísque, sou um ho-
companhia com os vícios e a vileza associados — prevenindo-os de vagabun- mem de igreja e todos os meus filhos também são.”25 Esses indivíduos, e muitos
dear pelas ruas durante o dia ou a noite — mantê-los longe dos saloons, infer- outros, tentaram apresentar-se como modelos de industrialismo, sobriedade e
ninhos de apostas e bordéis,” pois esse tipo de pessoas e lugares os conduziria respeito, conduzindo-se de acordo com os ideais abraçados por seu farol, o De-
para sua ruína e consequente encarceramento. Washington reconheceu que “é fender. “Não estamos indo por prazeres,” escreveu um homem de Nova Orleans,
uma verdade inegável que mais vícios e crimes cercam nossa raça nos grandes “estamos procurando trabalho, melhor tratamento e mais dinheiro, e peço sua
centros de população do Norte do que nos do Sul” e clamava que os “douto- ajuda para nos garantir uma boa posição de trabalho, porque somos homens de
res constatam que, devido à dissipação e práticas criminais, estamos morrendo família e não temos um ganha-pão.”26
mais rapidamente do que os brancos.”21 Washington afirmava dramaticamente Migrantes que achavam empregos e se instalavam em cidades como Chicago
que a saúde física da Raça estava em perigo no lado indecoroso da vida urbana tinham que se aclimatar a muitos aspectos da vida urbana no Norte, incluindo
do Norte, apesar das numerosas vantagens econômicas e sociais que o norte uma nova noção de trabalho e tempo livre. Como inúmeros historiadores apon-
industrial clamava oferecer. Mesmo com Washington encorajando os afro-ame- taram, os migrantes que trabalharam como “fazendeiros, faz-tudo e serventes
ricanos a permanecerem e construírem seu capital e caráter no Sul, milhares de pessoais” no Sul não estavam acostumados ao ritmo célebre e rígido do traba-
sulistas negros aceitaram os riscos e se mudaram para o norte. lho industrial em fábricas e armazéns. Junto a isso, como Grossman explica,
Chicago era um destino particularmente atrativo para os migrantes do Sul “a jornada de trabalho dos negros sulistas, como fazendeiros e trabalhadores
durante o final dos anos 1910, não somente por conta dos benefícios econômicos rurais, não dependia do relógio, mas do sol, do calendário e das vicissitudes
(particularmente, o trabalho industrial mais bem pago), mas também porque da lavoura.”27 Isso quer dizer que a concepção que o imigrante tinha em sua
os sulistas negros já sentiam uma certa familiaridade com as firmas do setor cabeça de estar terminando um dia de trabalho ou um serviço particular estava
frigorífico da cidade (negócios cujos proprietários eram negros), acontecimentos ligada aos ciclos sazonais, e não àqueles regulados e mecanizados em uma base
sociais e entretenimento divulgados pelo Chicago Defender. James Grossman diária por um empregador. No Sul rural, trabalhadores negros tinham muito
notou que o jornal militante de Robert S. Abbott era promovido e distribuído no mais flexibilidade em seus calendários individuais do que o trabalho industrial
Sul pelos carregadores da Black Pullman, eventualmente se tornando “o jornal permitia. Como resultado, muitos empregadores chicagoenses reclamaram que
mais lido por negros no Sul, colocando milhares de vislumbres prospectivos os migrantes recentes falhavam em aparecer para trabalhar todos os dias e
de uma cidade emocionante com uma comunidade negra vibrante e assertiva.” frequentemente se atrasavam. Essas críticas eram incorporadas nas orienta-
Chicago era facilmente acessível de muitos pontos ao Sul via a estrada de ferro ções dadas aos novos migrantes pelas organizações de serviço negras, tal qual
central de Illinois. Grossman estima que de 1916 a 1919, “entre 50 e 70 mil a Wabash Avenue YMCA (S. Wabash Avanue, 3763). Spear cita A. L. Jack-
negros sulistas realocaram-se em Chicago, e mais uns milhares passaram pela son, o diretor executivo do YMCA, que relata uma conversa com um migrante
cidade movendo-se em direção a outros locais no Norte.”22 que reclamava que havia perdido o emprego: “Havia ele ido trabalhar todos os
Muitos sulistas escreviam diretamente para o Defender sobre anúncios de dias?... ’De jeito nenhum... Eu tinha que ter uns dias da semana livres para o
emprego que viam em suas páginas, pedindo assistência financeira para trans- lazer.”28 Os migrantes tinham de fazer ajustes em sua concepção de tempo livre

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de acordo com seus novos calendários de trabalho nas indústrias. Enquanto no cadas após a emancipação, o lazer negro sulista e rural continuava limitado a
Sul “os meeiros tinham dias inteiros de folga e transformavam casamentos e distrações fugazes, conspícuas e altamente monitoradas.
funerais em ocasiões sociais prolongadas, especialmente durante temporadas No entanto, os migrantes negros de Chicago no final dos anos 1910 encontra-
de trabalho menos intenso,” nas cidades do Norte, os empregadores industriais ram novas possibilidades de mudar sua estrutura de trabalho e tempo de lazer,
que supervisionavam um “processo contínuo de produção” tinham pouca tole- bem como seu novo posicionamento em espaços públicos e privados. Quando os
rância para “tais ‘feriados’ espontâneos, declarados unilateralmente” por parte migrantes eram entrevistados pela Comissão de Relações Raciais de Chicago
de seus trabalhadores.29 (CCRR) sobre a sua experiência migratória, 14 de 20 dos que respondiam di-
Mesmo que os migrantes negros tivessem que estruturar o seu tempo livre de ziam que a vida em Chicago era mais fácil, e muitos creditavam isso a jornadas
forma diferente, o descanso e a recreação ainda constituíam porções significati- de trabalho mais curtas e aumentos de salário. “Eu ganho mais dinheiro pelo
vas de seu novo estilo de vida urbano. Os migrantes negros experienciaram mu- meu trabalho e tenho mais tempo livre,” um dos migrantes constatou. Um outro
danças drásticas em suas concepções de “passar o tempo” quando se moveram concordou, adicionando que ele tinha “mais tempo para descansar e passar com
para as cidades do Norte. Muitos relataram que o trabalho industrial havia, em sua família.”32 Logo, parece que, apesar dos avisos de Booker T. Washington e
última instância, proporcionado a eles mais tempo livre e, uma vez que eles re- de outros, de algumas maneiras, o cenário urbano era um benefício à vida do-
cebiam salários maiores, uma renda maior do que jamais haviam tido no Sul. O méstica negra, permitindo que afro-americanos passassem mais tempo livre em
trabalho industrial e as condições de vida em locais lotados poderiam ser difícil casa e com a família do que teria sido possível no Sul.
de suportar nas cidades, mas havia tempo e dinheiro para procurar diversão fora Porém, também fica claro que os negros urbanos passavam boa parte do seu
de suas residências. Portanto, de muitas formas, a vida negra em Chicago era de novo tempo livre em passatempos públicos e comerciais. A “viagem à cidade”
um contraste gritante à vida agrária do Sul, tal como descrito por Du Bois em típica do Sul fora substituída na vida urbana do Norte por atividades de lazer
The Souls of Black Folk (As almas das pessoas negras, 1903). Du Bois faz um mais frequentes, muito mais próximas das áreas residenciais negras. Assim,
retrato desolador da vida dos negros em Dougherty County, na Geórgia, na vi- a transmissão da cultura direta que Du Bois imaginou como um resultado da
rada do século, enfatizando a falta de tempo livre: “Dentre estas pessoas não há migração urbana ao norte, na realidade, não ocorreu mais frequentemente entre
tempo para lazer... aqui, 96% estão na labuta; ninguém tem tempo o suficiente os negros que gozavam de mais tempo de lazer. Inúmeros comentadores cultu-
para transformar suas tristes cabines em casas, não há velhos para se sentarem rais, brancos e negros, expressaram preocupações sobre o impacto das diver-
entorno da fogueira e passar adiante as tradições do passado... A labuta, como sões comerciais sobre as famílias e a vida em comunidade, à luz das mudanças
todo trabalho na fazenda, só é interrompido pela agradável ausência de pensa- radicais precipitadas pela urbanização e industrialização. Por exemplo, John
mento e pelos passeios de sábado à cidade.”30 Du Bois define “lazer” não tão Collier, um membro do Conselho Nacional de Censura Cinematográfica (Na-
somente como um marcador de distinção de classes e privilégios econômicos, tional Board of Censorship of Motion Pictures), contou a um público no Clube
mas também como qualquer tempo livre do trabalho que poderia ser usado de Econômico de Providence, em 1912, que, como um resultado de um “governo
modo mais produtivo para aproveitar e cultivar a domesticidade, a interação livre” e de uma produção mecânica, “nós temos hoje na América mais tempo
familiar, a transmissão de cultura e tradições. Mas, por causa da natureza san- de lazer do que provamos poder utilizá-lo bem,” particularmente em áreas ur-
guessuga física, emocional e econômica do trabalho agricultor no sul, os negros banas.33 Sob essas condições, Collier argumenta que fábricas, escolas públicas
rurais tinham pouca energia ou oportunidade para fazer um uso produtivo do e atividades de lazer exteriores levam as famílias a se desmoronarem, deixando
pouco tempo livre que conseguiam ter. Muitos dos parâmetros de tempo livre às pessoas pouco tempo ou motivos para ficarem juntos em casa. Collier está
negro no Sul foram estabelecidos durante a escravidão, quando as atividades mais preocupado em relação aos efeitos danosos dos entretenimentos comer-
negras como ir à cidade, dançar, beber e participar de cultos religiosos eram ciais irresponsáveis e sem regulamentação: “Não podemos deixar a recreação
permitidas, mas monitoradas pelos brancos. E. Franklin Frazier aponta o quão nas mãos do comércio. Recreação comercializada significa dissipação; dissi-
significativo era, anteriormente à Guerra Civil (1861-65), manter o lazer negro pação significa que o tempo de lazer, não mais o grande agente criativo da
visível e legível, notando que, ainda que supervisores e mestres permitissem sociedade, se tornou um destruidor social. Recreação comercializada são os
certas formas de “folias”, tais como as atividades religiosas, eles suspeitavam saloons, são as boates, são os teatros dominados por especulação financeira e
quanto a negros usando seu tempo livre para “meditação e reflexão.”31 Nas dé- o cinema reduzido ao nível médio de jornalismo.”34 Ainda que a discussão de

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Collier esteja limitada a considerações do lazer para brancos (anglo-saxões, soal enquanto promoviam estabelecimentos onde os afro-americanos poderiam
irlandeses), suas palavras ressoam aquelas expressas por muitos durante as rapidamente gastar a sua recém-conquistada renda extra.
primeiras décadas do século XX em relação a monitorar as atividades de outros Os relatos de alguns migrantes fazem parecer que o mundo estava aberto a
imigrantes europeus e migrantes afro-americanos quando eles não estivessem eles em Chicago, diferentemente do Sul, não só porque tinham mais dinheiro e
trabalhando. mais tempo para gastar se divertindo, mas também por conta da discriminação
Como já comecei a indicar, apesar do fato de muitos negros enfatizarem o racial comparativamente menor. Um migrante relatou ao CCRR: “Em casa, eu
desejo de trabalhar ao irem atrás de empregos no Norte e pedirem bilhetes de não ganhava muito dinheiro e não tinha nenhuma sobra para ir aos poucos
trem, depois que chegavam a Chicago, as atividades de lazer se tornavam uma lugares em que pessoas de cor podiam ir. Aqui, os negros podem ter o que
parte importante de suas novas vidas longe “da escuridão do sul”.35 Entrevis- quiserem.”40 Os migrantes apreciavam o fato de tanta diversão estar disponível
tas conduzidas pelo CCRR ilustram o significado tremendo que teve esse novo a eles, mesmo se eles não escolhessem gastar seu dinheiro com todas elas. Um
senso de liberdade pública experienciado pelos migrantes do Sul. Por exemplo, migrante observou que os negros em Chicago podiam “gastar seu dinheiro onde
como citado no capítulo anterior, a família Thomas, de Seals, no Alabama, re- quisessem, ir para onde tivessem dinheiro o suficiente para ir; não saio muito,
latou sua surpresa ao ser capaz de se mover pelos espaços públicos de Chicago mas gosto de saber que posso ir aonde e quando eu quiser.”41 Outros migrantes
sem ser molestada. Migrantes como a família Thomas indicam que a oportuni- notaram que, na ausência de segregação no estilo sulista de Jim Crow,42 eles
dade de frequentar “mais locais de atrações” complementava as oportunidades poderiam “ir aos parques e locais de diversão (sem) serem segregados”, gozar
econômicas, políticas e educacionais oferecidas pelas cidades do Norte.36 Um de “condições melhores nas ruas e nos cinemas” e não ter de “baixar a cabeça
outro migrante registrou tanto o leque de opções de diversão em Chicago quanto para o homem branco, sair da frente dele na rua, e ir para o poleiro nos shows.”43
o tempo que poderia se gastar usufruindo destas: “Um lugar cheio de vida. Fui Essas observações indicam as imagens comparativas do Sul e do Norte
conhecer lugares todas as noites durante um mês.”37 transmitidas pelo Defender, mesmo antes de começar a Grande Migração. Por
O número de opções de diversão para os afro-americanos cresceu dramatica- exemplo, a primeira página do dia 23 de Maio de 1914 trazia duas histórias,
mente durante a Grande Migração, na medida em que formas de entretenimento uma sobre uma gangue de duzentos brancos em Jackson, no Mississippi, que
para uma população negra segregada e crescendo rapidamente se tornou logo forçaram o cinema No Name a fechar quando os seus novos donos o converte-
muito lucrativa. Negócios ao redor do Stroll (Passeio) estavam florescendo, e a ram em uma sala só para negros, e outra anunciando que o Stroll de Chicago
imprensa negra refletia este fenômeno em suas colunas e anúncios. Por exemplo, estava expandindo suas fronteiras do sul, da rua 35 para a rua 39.44 Enquanto
em 1918, a Chicago Broad Ax, que raramente publicava notícias de entreteni- os negros em Jackson testemunhavam a destruição violenta do único cinema
mento, elogiava as performances de jazz e o ragtime no Dreamland Café, “um aberto para eles (“a gangue cortou os cabos, desconectou o aparato de projeção,
dos pontos de diversão mais agradáveis da região sul.”38 Como um jornal funda- e finalmente trancou o lugar”), os negros chicagoenses gozavam de uma faixa
mentalmente político (Democrático) que circulava dentro de Chicago, o Broad comercial em expansão para oferecer-lhes uma variedade maior de atividades
Ax nunca havia demonstrado tanto interesse em entretenimentos comerciais, de lazer. Gradualmente, anúncios apareciam no Defender sobre espaços de di-
mas por volta do final dos anos 1910, os pontos de diversão em torno do Stroll versão no Sul (p. ex., a abertura do teatro e cinema Douglas em Macon, na Ge-
encontram seu espaço em suas páginas.39 O Defender, por outro lado, destacava orgia, em 1917), indicando que o entretenimento comercial estava cada vez mais
notícias e anúncios de entretenimento em cada edição semanal (principalmente se tornando disponível para os negros sulistas, talvez como parte dos esforços
sobre a cena teatral vibrante no Stroll), não somente para informar os leitores dos brancos em estancar o escoamento do trabalho negro para o Norte.45 Mas
locais, mas também para projetar a imagem do Black Belt para leitores de todos certamente Chicago oferecia uma faixa sem precedentes de locais atendendo a
os locais do país, incluindo aí migrantes sulistas em potencial. Dessa forma, o negros. A Grande Migração expandiu a clientela negra da cidade, aumentando
Defender (e em menor grau o Broad Ax) enviava sinais confusos aos migrantes o número de acomodações públicas para servi-los. Além disso, migrantes re-
em potencial e aos recém-chegados a Chicago. Eles ressaltavam a importância lataram que não só possuíam passatempos em suas próprias vizinhanças, mas
de perseverança e de trabalho aos migrantes, ao mesmo tempo em que pintavam também que poderiam gozar de entretenimentos mainstreams fora do Black
uma Chicago repleta de diversas formas de entretenimento a serem gozadas nas Belt. Por exemplo, além de seus times amadores e profissionais (p. ex., ligas de
horas de lazer. Enfatizavam a virtude do trabalho regular e da economia pes- beisebol de igrejas e o time de beisebol Leland Giants), os afro-americanos po-

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deriam ir aos jogos do White Sox na liga principal. Em uma carta enviada para vida comunitária rural.” Após chegarem a Chicago, todavia, se envergonhavam
casa, um migrante recente em Chicago escreve para um amigo: de seus modos e sotaques sulistas. O resultado é que “(todas as) famílias eram
tímidas e conscientes de seus trejeitos, e por um bom tempo evitavam contatos,
Queria que você estivesse lá... aqueles jogos. Eu os privando-se assim de conselhos que poderiam ajudá-los.”49 Frequentar “espa-
vi, e, acredite, eles valem o dinheiro que gastei para ços de diversão variados” talvez os ajudasse a compensar a vida comunitária
assisti-los. T.S. e eu fomos ver o jogo de domingo, que que deixaram para trás. A experiência da família Thomas sugere a forma como
foi 7 a 2 para os White Sox, e eu vi o jogo de sábado, os migrantes tiveram de redefinir suas identidades e práticas enquanto indi-
que foi 2 a 1 para os White Sox. Por favor, J ------ es- víduos e enquanto famílias em cidades do Norte, produzindo novas formas de
creva que ele nunca verá nada enquanto ficar aí em- relações “comunitárias”. A vida comunitária em Chicago foi habilitada, para
baixo debaixo do sol, há algo para se ver aqui em cima o bem (como relatado por vários migrantes satisfeitos) ou para o mal (na visão
a toda hora.46 de Colier e de Franklin), por esferas públicas que eram mais comercializadas,
porém também mais “livres” do que as estruturas tradicionais da vida social
Grossman escreveu que cartas como esta, nas quais os migrantes relatavam no Sul. Como diz um outro migrante descrevendo suas impressões de Chicago:
suas primeiras experiências da vida urbana para os amigos e familiares de suas “Não gostei; é solitário, até eu sair de casa. Então passei a gostar dos locais de
casas no Sul, circulavam amplamente nas comunidades negras sulistas, fa- diversão, onde não havia restrições.”50
zendo mais para convencer as pessoas a migrarem do que “qualquer anúncio, Mas a vida do negro em Chicago não era de forma alguma completamente
agente ou publicação.”47 livre das restrições raciais. Ainda que os migrantes fossem otimistas sobre as
A gama de diversões disponíveis não só deu aos migrantes um novo senso de melhorias em seu status político, econômico e social fora do Sul, assim que
liberdade e igualdade social no Norte urbano, mas também os ajudou a superar eles chegavam a cidades como Chicago, logo descobriam um novo conjunto de
seus sentimentos de isolamento, saudade e solidão. A socióloga Donna Franklin práticas sociais. O aumento dramático da população de negros em Chicago re-
argumentou que a transição para a vida urbana do Norte fragmentou o senso de sultou em uma variedade de processos discriminatórios em moradia, empregos
comunidade dos negros porque as pessoas passaram a se visitar menos e tinham e acomodações públicas. A segregação de instalações públicas (incluindo aí
menos amigos, e que a intimidade que caracterizava as relações no Sul fora “hotéis, restaurantes, locais de alimentação, pousadas, máquinas de refrige-
substituída pelas “relações sociais frouxas e impessoais da cidade.”48 A visão rante, saloons, barbeiros, banheiros, teatros, ringues de patinação, concertos,
de Franklin sobre as relações comunitárias sulistas difere significativamente cafés, ringues de bicicleta, elevadores, sorveterias” e transporte) havia sido
da descrição que Du Bois faz do sul rural, onde a “labuta” na agricultura faz proscrita pelo Ato dos Direitos Humanos de Illinois de 1885.51 Ainda assim, os
com que tal intimidade, comunidade e familiaridade pareçam impossíveis, do afro-americanos eram banidos, ou recebiam um atendimento ruim em muitos
mesmo modo que os relatos de migrantes dizem que o estilo de vida urbano na locais públicos, alguns até mesmo dentro do Black Belt. Por exemplo, o CCRR
realidade proporciona a eles mais tempo para passar com a família. Ainda as- relatou que um restaurante em formato de “L” na esquina da 31 com a Ave-
sim, Franklin faz ecoar observações feitas por muitos dos migrantes em relação nida Indiana servia os brancos no lado da 31 e os negros no lado da Avenida
à dificuldade que encontraram em se adaptar ao relativo isolamento social das Indiana. O lado “branco” era “arrumado e bem cuidado” e cheio de garçonetes
cidades do Norte, longe das suas famílias. Enquanto alguns migrantes realo- brancas. O lado “negro” tinha “garçonetes ‘de cor’ e era ‘estreito’, ‘escuro’, ‘mal
cavam-se em grupos (como extensões familiares ou múltiplas famílias, congre- cuidado’ e ‘com poucos suprimentos’.” Dois salões de jantares eram servidos
gações inteiras) ou conectavam-se a membros de igrejas, amigos ou parentes pela mesma cozinha, mas tinham nomes diferentes. Se um negro entrasse na
quando chegavam à cidade, muitos outros vinham sozinhos ou como famílias sala da 31, designada para os brancos, “eles recebiam um serviço indiferente,
isoladas, não tendo quaisquer contatos em Chicago e sentindo-se estrangeiros esperavam por um longo tempo, e eram atendidos com relutância e falta de
em um novo ambiente intimidador. Por exemplo, a família Thomas (que mencio- cortesia.”52 Mesmo dentro do Black Belt, muitos proprietários brancos conti-
nei anteriormente), que era formada pelo “Sr. Thomas, sua esposa e dois filhos, nuavam a manter uma segregação racial rígida em um esforço para preservar
uma garota de 19 anos e um rapaz de 17,” pertenciam a uma igreja e a outras as hierarquias sociais que a migração e o fortalecimento dos afro-americanos
ordens fraternais quando ainda moravam no Sul, onde “participavam de uma estavam ameaçando redistribuir.

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Logo, as experiência públicas e privadas dos afro-americanos em Chicago do tratamento racista nas acomodações públicas chicagoenses e a liberdade
eram muitas vezes paradoxais. As liberdades sociais e políticas da qual goza- para externar suas reclamações em espaços como o Defender que lhes tenha
vam eram temperadas por instâncias de discriminação social, tanto dentro como dado um senso geral de que a segregação era um fator a menos em suas vidas
fora do Black Belt. Uma entrevista com a família Jones, que migrou para Chica- ao Norte. Farah Jasmine Griffin argumentou que, enquanto a força de racismo
go vinda do Texas em 1919, ilustra como as experiências urbanas dos migrantes, dos brancos sulistas era “imediata” e “identificável” (normalmente tomando a
bem como a narrativa dessas experiências, poderia ser bem contraditória. O forma de ataques físicos tais como “linchamentos, espancamentos e estupros”),
investigador do CCRR relata: “Eles haviam sido informados que nenhuma dis- no Norte, os negros sulistas confrontavam um novo “mecanismo de poder”, que
criminação fora praticada contra os negros em Chicago; que poderiam ir aonde era “mais sutil e sofisticado.”59 Os diferentes contornos das relações raciais no
quisessem sem embaraços ou obstáculos por causa de sua cor. Dessa maneira, Norte poderiam ser desanimadores e difíceis de reconhecer, mas não eram con-
quando chegaram a Chicago, entraram em farmácias e restaurantes. O serviço sistentes e inflexíveis como os do Sul. Portanto, enquanto o racismo continuava
lhes era negado em inúmeros restaurantes e nas bancadas das farmácias.”53 a moldar a vida pública do negro, os migrantes aprendiam a navegar na discri-
Mesmo com essas experiências negativas nas acomodações públicas, a família minação da cidade (identificar quais teatros poderiam frequentar, de quais lojas
Jones ainda afirma que sua “maior satisfação” em chegar a Chicago fora “esca- se tornariam clientes) ao mesmo tempo em que, simultaneamente, se opunham
par da segregação e das condições de Jim Crow”, bem como encontrar melhores a toda forma de segregação racial e experienciavam o Norte como uma melhora
condições de trabalho. Aqui, a família Jones sustenta que a vida em Chicago dramática em suas vidas quando comparado ao Sul de Jim Crow.
lhes oferece liberdade da segregação, mesmo após reconhecer que lhes fora Os migrantes não eram os únicos que expressavam visões contraditórias
negado serviço em inúmeros locais. sobre a experiência dos negros no Norte urbano. Muitos afro-americanos que
Talvez a “fuga de Jim Crow” que eles descreveram seja comparativa — no viviam em Chicago antes da Grande Migração afirmam que, anteriormente ao
Sul, eles teriam sido barrados imediatamente das acomodações públicas, en- grande influxo de negros sulistas, o preconceito racial não era um grande fa-
quanto em Chicago, a discriminação racial era “não oficial, informal e incer- tor em suas vidas. Drake e Cayton citam um número de “velhos colonos” que,
ta.”54 De acordo com Spear, a discriminação que os afro-americanos encaravam com nostalgia, relembram a prevalência e aceitabilidade das relações pessoais
nos restaurantes do centro, teatros, lojas de departamento como a Marshall e profissionais entre brancos e negros, indo desde casamentos inter-raciais até
Field’s era esporádica; muitos estabelecimentos brancos “serviam negros com doutores negros atendendo pacientes brancos. Os velhos colonos afirmavam que
cortesia” ou “não tinham política sobre o assunto, mas permitiam que cada antes da Grande Migração eles podiam trabalhar e frequentar quaisquer locais
atendente seguisse suas próprias inclinações.”55 Esse tipo de inconsistência pa- ou negócios da cidade. “Não havia discriminação em Chicago durante a minha
rece ter caracterizado o tratamento que os afro-americanos recebiam nos teatros infância,” de acordo com uma mulher que veio para a cidade na década de
localizados fora do Black Belt. Por exemplo, em março de 1912, o Defender 1890, “porém, quando os negros começaram a vir para Chicago, parece que
relatou que os lanterninhas brancos no Teatro de Columbia, na rua North Clark trouxeram a discriminação junto com eles.”60 Certamente as relações raciais em
perto da Division, instruíram uma negra a se sentar na galeria ou ser barrada.56 Chicago passaram por mudanças dramáticas na medida em que a população
Mas, na semana seguinte, o Defender fez correr uma matéria na seção de “Mu- negra cresceu, e talvez esses velhos colonos achassem que era mais fácil, mais
sical e Dramaturgia” elogiando boas obras, vozes talentosas e um serviço de seguro, culpar os novos migrantes, com seus trejeitos sulistas, do que condenar
qualidade oferecido no Orpheum Photo Play House, localizado ao sul de Chica- os chicagoenses brancos por seu tratamento discriminatório à comunidade ne-
go, na State Street, perto da Monroe.57 Logo, tanto antes como depois da Grande gra como um todo durante este período. Mesmo com as reclamações, porém, é
Migração, os negros “nunca podiam ter certeza de quando seriam humilhados improvável que a discriminação racial tenha se desenvolvido somente por oca-
ou envergonhados por práticas discriminatórias.”58 sião da Grande Migração. As páginas do Defender, por exemplo, demonstram
A incerteza e inconstância da discriminação racial do Norte urbano certa- claramente que os afro-americanos enfrentavam tratamento racista mesmo an-
mente teve um tremendo impacto nas concepções de lazer e diversão dos ne- tes da Grande Migração, especialmente em recreações públicas.
gros migrantes, já que eles sempre tinham de estar preparados para encarar Além da “conduta covarde” dos lanterninhas brancos no Teatro Columbia
a discriminação, mesmo tendo se mudado para o Norte, em grande parte, jus- descrita acima, o Defender reportou inúmeros casos durante o início da década
tamente para escapar das restrições raciais. Talvez fosse essa irregularidade de 1910 de afro-americanos discriminados em teatros do centro. Em junho de

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1910, um par de histórias detalhava como dois homens negros, George A. Wil- negros como alternativa para os saloons, boates, salas de bilhar e teatros ba-
son e Frank D. Donaldson, tiveram suas entradas recusadas no piso inferior do ratos.65 Mas enquanto os migrantes e reformistas respondiam a vários perigos
Teatro Colonial.61 Wilson, um agente de seguros, levou o Colonial para o tribu- urbanos sérios, e às desigualdades na alocação de recursos municipais, a ima-
nal, onde todos os membros brancos do júri negaram o seu pedido por $200 em gem da cidade perigosa também era evocada por membros da elite negra para
danos morais. Donaldson, ao contrário, ganhou o processo, talvez porque tenha justificar suas posições elevadas e para manter suas funções como guardiões
contratado os serviços do advogado militante negro Edward H. Morris, que, da vida e da imagem pública dos negros. Portanto, enquanto a vida social e o
enquanto membro do legislativo do Estado, ajudou a criar a lei de direitos civis entretenimento chicagoense vibrante eram parte dos atrativos para milhares de
de Illinois. Supostamente, o persuasivo argumento final de Morris convenceu o migrantes sulistas em meados dos anos 1910, após chegarem, eles descobriram
júri, que incluía um homem branco que afirmara na seleção do júri que “negros que o lazer urbano era moldado pelo vício, pela discriminação racial, por di-
deveriam ir ao Pekin (proeminente estabelecimento no Black Belt), e não aos ferenciações de gênero, idade e classe social no interior da comunidade negra,
teatros do centro.”62 Mais tarde, naquele mesmo ano, a Sra. Monroe L. Manning, fatores que complicavam a sua apreciação das diversões públicas.
a esposa de um carregador numa estação ferroviária, se recusou a sentar na Entre a virada do século e os anos da Grande Migração, os negros em Chi-
seção Jim Crow do Globe Theatre. A Sra. Manning reclamou com o administra- cago haviam desenvolvido uma vida pública ativa, incluindo uma vasta quanti-
dor, que, relutantemente, lhe cedeu um lugar melhor na seção reservada para dade de atividades de lazer. Mesmo com o tratamento discriminatório que rece-
os brancos. Manning contou ao Defender que afro-americanos eram rotineira- biam dos chicagoenses brancos, da excludente Feira Mundial ao estreitamento
mente sujeitos a esse tipo de discriminação porque “muitos deles não sabem das restrições raciais com o influxo de migrantes sulistas, os afro-americanos
que um teatro, restaurante, loja de departamento e a igreja são locais públicos criaram diversas instituições e práticas culturais que brotavam de seus próprios
e que, como tais, ninguém deve ser barrado.”63 As três histórias demonstram interesses culturais, bem como de seu desejo em espelhar (e eventualmente de
que os afro-americanos enfrentavam discriminação nas acomodações públicas se promover a) os modelos do mainstream. Apesar das diversões e atividades
de Chicago bem antes do início da Grande Migração. No mais, ilustram que negras tradicionais (p. ex., aquelas oferecidas pelas igrejas, estalagens e clubes)
as repostas dos negros e dos brancos a esse tipo de discriminação eram tão terem um lugar central em suas vidas culturais, em meados dos anos 1910, as
inconsistentes quanto a situação da discriminação em si mesma. Juízes bran- diversões comerciais se tornaram cada vez mais importantes entre as atividades
cos provavelmente absolveriam os teatros que ofendessem os negros com tanta de lazer urbano que modelaram a experiência negra moderna. Tornar-se cliente
facilidade com que os condenariam; frequentadores de teatros como Wilson, de salas de cinemas passou a ser um método extremamente popular de partici-
Donaldson e Manning protestavam contra o tratamento racial, mas muitos ou- par da vida comunitária urbana, ainda que os líderes da raça e a imprensa dos
tros (como Manning sugere) sofriam em silêncio esse tipo de segregação ilegal. negros expressasse ambivalência em relação à sétima arte.
Os migrantes negros tinham não só que enfrentar a possibilidade da discri-
minação racial em Chicago, mas também ficar alerta a possibilidades alegadas
e reais de perigo na vida urbana, incluindo atividades ilícitas e criminais. Os 1 Trechos selecionados do capítulo 3 No original, talented tenth. Teoria aber to a pacientes, médicos
novos migrantes não eram apenas vítimas em potencial da criminalidade; eles “Something to See Up Here All segundo a qual um a cada dez e estudantes de enfermagem
the Time’: Moviegoing and Black negros se tornaria um líder de negros, que eram rotineiramente
também podiam ser facilmente seduzidos para as atividades de apostas e pros- Urban Leisure in Chicago”, em sua raça através da educação rejeitados pelos outros hospitais
Migrating to the Movies: Cinema contínua, da escrita de livros e do de Chicago. Spear, p. 52-53.
tituição no submundo efervescente do Black Belt. Como um migrante narrou ao and Black Urban Modernity envolvimento em mudanças sociais. O Dr. Daniel Hale Williams
investigador do CCRR, os sulistas que não tinham contatos quando chegavam (Berkeley/Los Angeles: University (N.T.) cofundou o Hospital da
of California Press, 2005). © 2005, Providência (primeiro localizado
em Chicago eram os que mais sofriam tais riscos: “O perigo está em se envolver The Regents of the University of 4 Além de terem se oposto ao na rua 29, em Dearborn, e mais
California. Traduzido do inglês por “Dia do Americano de Cor” tarde na rua 36), um modelo de
com o tipo de pessoa errado.”64 Como elaborarei mais profundamente no próxi- Pedro Henrique Ferreira. (N.E.) durante a Feira Mundial (World’s como os membros deste grupo
mo capítulo, durante os anos 1910, o Black Belt continuou a ser a residência de 2 Spear explora essas diferenças
Fair, Chicago 1893), muitos
líderes da elite negra eram
da elite obtinham verbas de
fontes brancas e negras (Philip
numerosas atividades de vício, e líderes negros continuaram a expressar suas na liderança negra ao longo dos contra outras instâncias, vistas Armour, Marshall Field, George
capítulos 2 e 3 de Black Chicago: por eles como autossegregação, Pullman) para criar instituições
preocupações sobre a segurança de mulheres e crianças afro-americanas. Por The Making of a Negro Ghetto, incluindo um jardim de infância inter-raciais endereçadas às
1890–1920 (Chicago: University of para crianças negras e até necessidades da comunidade
exemplo, os clubes femininos procuravam lidar com o problema mobilizando-se Chicago Press, 1967), p. 51-89. mesmo o estabelecimento negra.
para, entre outras coisas, obter mais “recreações e instalações” para os jovens do Hospital da Providência,

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5 Spear, p. 71. 15 “Stereopticon, Exhibition, Free”, que ficariam felizes em encontrar problema da divisão de cor”, a falta 43 Negro in Chicago, p. 98. 57 “Particular Points in Playdom,”
Chicago Defender, 17 de fevereiro pequenas cidades no Norte, mais de atenção de Collier à diferença Defender, 16 de março de 1912.
6 Spear, p. 72-82. de 1912. Charles Musser aponta do que cidades grandes como racial no ambiente urbano o leva 44 “No ‘Movies’ for Race; Mob Puts
que, entre as instituições brancas, Chicago, pois eles “não têm escolha a identificar um problema central Shows to Bad” e “‘Stroll’ Moves 58
7 Afro-americanos também viviam esse tipo de leitura ilustrada era sobre ficar na cidade.” Portanto, da “modernidade” diferente – Southward,” Defender, 23 de maio
em outras áreas de Chicago, adotado por dois grupos culturais enquanto muitos migrantes em aquele de conservar o tempo de 1914, p. 1. 59 Farah Jasmine Griffin, “Who Set
como Morgan Park, Hyde Park – aqueles de sensibilidade refinada potencial eram atraídos pelas livre: “O problema do século XX You Flowin’?”: The African-American
e Evanston. Ainda assim, se e aristocrática que patrocinavam vantagens econômicas e sociais é a conservação, o que significa 45 “The Douglas”, Defender, 10 de Migration Narrative (Nova York:
comparada a outras cidades, como “eventos culturais do gosto da vida no Norte, eles também a utilização do tempo de lazer fevereiro de 1917. Oxford UP, 1995), p. 4–5.
Cleveland, Philadelphia e Boston, médio” e grupos de igrejas que tinham reservas sobre a qualidade das pessoas, pois apenas assim
a segregação rígida do Black Belt procuravam oferecer eventos de vida numa grande metrópole. podemos chegar a um povo 46 60 Drake and Cayton, Black
de Chicago se formou bastante culturais alternativos às diversões Scott, “Letters”: p. 430-34. educado, e apenas através de um Metropolis: A Study of NegroLife in a
cedo: “Somente Chicago tinha um corruptoras. De muitas maneiras, povo educado podemos esperar 47 Northern City (Chicago: University
black belt nitidamente marcado o projeto da elevação (uplift) de 27 Grossman, p. 191–95. garantir a justiça econômica, of Chicago Press,1993), p. 73–75.
antes de 1900.” Kenneth L. Kusmer, instituições negras como a Negro liberdade política responsável ou 48 Donna L. Franklin, Ensuring Ver também Grossman, p. 152,
“The Black Urban Experience in Fellowship League representa uma 28 Spear, p. 156. Enquanto uma a conservação dos recursos da Inequality: The Structural 164.
American History”, The State of amálgama desses grupos. Charles instituição central de cultura e Terra.” Transformation of the African-
Afro-American History: Past, Present Musser, The Emergence of Cinema: serviços no Black Belt, ainda que American Family (Oxford: Oxford 61 “Mr. George A. Wilson”, Defender
and Future, ed. Darlene Clark Hine The American Screen to 1907 contestado, o YMCA da Avenida 35 Scott, “Additional Letters”, p. 440. UP, 1997), p. 74. 4 de junho de 1910, p. 1; e Frank
(Baton Rouge: Louisiana State UP, (Berkeley: U of California P, 1990), Wabash é um lugar-chave para a S. Heffron, “Colonial Theater
1986), p. 109. p. 41-42. coleção e análise de dados sobre 36 Negro in Chicago, p. 97–103. 49 Negro in Chicago, p. 95, 96. Refuses Colored Gentlemen—
a cultura e a experiência afro- Aqui, os Thomases prefiguram o Fined,” Defender, 11 de junho de
8 Spear, p. 91. 16 Rhea’s New Citizen’s Directory of americana, tanto formal quanto 37 Negro in Chicago, p. 99. isolamento social experienciado 1910, p. 1.
Chicago, Ill. and Suburban Towns informal. O lugar servia de sede pela migrante Pauline Breedlove
9 Spear, p. 94-95. (Chicago: McCleland, 1908), s.n. para a Associação para o Estudo da 38 “The Dreamland Cafe, William na novela The Bluest Eye, de Toni 62
Vida e da História Negra, fundada Bottoms, Proprietor, 3520 S. State Morrison, bem como sua virada
10 Spear, p. 107-108.. Outros clubes 17 Spear relata que “notas sobre em 1915 por Carter G. Woodson. Street,” Broad Ax, 7 de setembro para o entretenimento comercial. 63 “Mrs. Monroe L. Manning Refuse
exclusivos incluíam a Manasseh as atividades no Chateau de la de 1918, p. 12. Toni Morrison, The Bluest Eye [sic] Jim Crow Seat at Globe
Society, para casais inter-raciais. Plaisance apareciam semanalmente 29 (Nova York: Holt, 1970), p. 93-89. Theatre,” Defender, 19 de novembro
Spear nota que algumas dessas no Broad Ax de 1907 até 1910.” 39 Ainda que o Broad Ax incluísse de 1910, p. 1. Monroe L. Manning é
organizações de serviços, Spear, p. 117. As aparições da Sra. 30 W. E. B. Du Bois, The Souls of Black “notas pessoais e sociais” sobre a 50 Negro in Chicago, p. 99. listado como carregador da estação
como as de seguro, acabaram Washington, de Williams e dos Folk em Three Negro Classics (1903; Chicago negra (p. ex., as atividades ferroviária no Rhea’s Directory.
eventualmente controladas por Leland Giants era mencionada Nova York: Avon, 1965) p. 307–8. das organizações fraternais), ele 51 Negro in Chicago, p. 232.
empresas comerciais. na coluna de “pessoas”, Chicago não cobria recreações comerciais. 64 Negro in Chicago, p. 101.
Defender, 31 de julho de 1909. 31 52 Negro in Chicago, p. 310.
11 Por exemplo, o Appomattox 40 Negro in Chicago, p. 102. 65 Anne Meis Knupfer. Toward a
Club, que tinham um salão de 18 Spear, p. 117. 32 Comissão sobre Relações Raciais 53 Negro in Chicago, p. 97. Tenderer Humanity and a Nobler
festas no número 3441 da rua de Chicago, The Negro in Chicago: A 41 Negro in Chicago, p. 102. Womanhood: African American
Wabash, abrigou uma festa para o 19 Rhea’s Directory Study of Race Relations and a Race 54 Spear, p. 48. Women’s Clubs in Turn-of-the-
aniversário de casamento do Sr. e Riot (Chicago: U of Chicago Press, 42 No Sul, ao contrário, as chamadas -Century Chicago (Nova York:
da Sra. John T. Morton. A primeira 20 “Amusement Notes,” Broad Ax: 13 1922), p. 99–100. Leis Jim Crow garantiam 55 Spear, p. 207. New York University Press,
página do Defender elogiou o de outubro de 1900, p. 4. juridicamente a segregação entre 1996), p. 69–71.
evento, descrevendo a decoração 33 John Collier, “Leisure Time, the brancos e negros em ambientes 56 “Theater’s Dastardly Conduct,”
da festa (“flores, samambaias e 21 “Booker T. Washington,” Broad Ax: Last Problem of Conservation,” como transportes públicos e até Defender, 9 de março de 1912, p. 1.
palmeiras”) e listando aqueles que 20 de janeiro de 1900, p. 1. Playground 6.3 (1912): p. 94. mesmo escolas. (N.E.)
compareceram, juntamente com
os presentes que trouxeram (p. 22 Grossman, p. 4 34 Collier, p. 101. As ideias de Collier
ex., “Sr. & Sra. B. F. Moseley, uma sobre o tempo de lazer como
bandeja de prata”; “Sra. M. C. 23 Emmett J. Scott, comp., “Additional um “grande agente criativo” em
Cowan, louça chinesa”). “Mr. and Letters of Negro Migrants of potencial ecoa a noção de Du Bois
Mrs. John T. Morton”, Defender, 4 1916–1918,” Journal of Negro History de que o melhor uso do tempo
de junho de 1910. 4 (1919): 428. Cito essas cartas livre envolve o desenvolvimento
como elas aparecem na compilação da cultura. Collier escreve:
12 James R. Grossman, Land of Hope: de Scott, assumindo que elas foram “Esperemos que possamos,
Chicago, Black Southerners, and transcritas (ortografia, pontuação, tal como fizeram os antigos
the Great Migration (Chicago: ênfases etc.) o mais próximo o atenienses, usar o tempo livre
University of Chicago Press, 1989), possível das fontes originais escritas para criar grandes ideais, grandes
p. 131. à mão. lealdades e um grande poder”
(p. 94). Claramente, então, isso
13 Defender, 18 de maio de 1912. 24 Scott, “Additional Letters”, p. 430. não tem lugar no discurso de
Um endereço de contato da Collier em grande medida devido
Chautauqua é listado como 3125 S. 25 Scott, “Additional Letters”, p. 432. à grande quantidade de diversões
State. designadas para o lucro, mais
26 Emmett J. Scott, comp., “Letters do que para a elevação cultural
14 “The Negro Fellowship League”, of Negro Migrants of 1916–1918,” e moral. Portanto, enquanto
Chicago Defender, 11 de junho de Journal of Negro History 4 (1919), p. Du Bois, nove anos antes, fez
1910: 1. 336. Na realidade, um número de a profética observação de que
migrantes esperançosos escrevem o “problema do século XX é o

78 79
EM BUSCA DE
UM PÚBLICO -
A SEGREGAÇÃO
E OS CINEMAS 1

Pearl Bowser e Louise Spence

I
magens empolgantes da vida na cidade faziam parte do fascínio pela mi-
gração. Assim, os novos migrantes acabaram por assimilar hábitos de lazer
urbanos: ver filmes era muito popular. A indústria do cinema, na metade
da década de 1920, reivindicava ser a quinta maior dos Estados Unidos. Ha-
via informações, no entanto, de que as salas geridas por proprietários brancos
cobravam entradas mais caras aos negros para desencorajá-los. No Sul, negros
eram usualmente barrados na plateia, ou, em auditórios menores, relegados à
metade da sala, separados pelo corredor central2 que dava acesso aos assentos.
Às vezes havia portas separadas, de maneira que ir ao cinema implicava “pagar
os preços de primeira classe pelo questionável privilégio de subir uma escada-
ria escura num beco para conseguir uma cadeira na peanut gallery 3 ”. 4
Em muitas comunidades do Norte, embora os negros tivessem por lei o direi-
to de sentar em qualquer lugar, a segregação de facto manteve-os confinados a
áreas determinadas. A Comissão de Chicago para Relações Raciais,5 fundada
depois dos sangrentos confrontos raciais do verão de 1919, entrevistou o geren-
te do recém-construído cinema State Street, onde a clientela afro-americana
era levada a uma seção separada do auditório. Relatando que “nada em suas
palavras indicava qualquer forte preconceito contra negros, mesmo quando ex-
pressava sua convicção de que estes deveriam ocupar apenas os espaços a eles
delegados”, a comissão citou a fala do gestor “em resumo”:

80 81
Muitos negros não compram bilhetes — talvez dez ou uma dúzia ao dia. Um um gerente de cinema multado”, o jornal relatou que F. F. Proctor, operador de
esforço é feito para sentá-los numa parte específica das dependências, prefe- uma cadeia de teatros de variedades e salas de cinema, fora condenado em Troy,
rencialmente no balcão, aonde eles são encaminhados pelos lanterninhas. O Nova York, de violar o Código Civil do Estado de Nova York por negar à Sra. S.
motivo é a reclamação dos fregueses brancos que se negam a sentar ao lado Clarissa Evans o acesso a um lugar da plateia. Em 1912, no dia 29 de agosto, o
dos negros por uma hora, ou uma hora e meia. Cheiro repugnante é a causa jornal noticiou que havia enviado correspondentes para investigar um pequeno
geralmente apontada. Clientes brancos sempre se queixam à gerência na saída cinema no Harlem acusado de cobrar de negros valores extras para “assentos
se estiveram sentados próximos a um negro. reservados” na galeria. Quando o Lafayette Theatre abriu no Harlem naquele
A conduta dos negros não é censurável — é mais ou menos a mesma de todos mesmo ano, “apresentando espetáculos de vaudeville e filmes9 de primeira clas-
os usuários. Às vezes alguém resolve “tentar”. Recentemente dois negros reclama- se”, o jornal noticiou no dia 14 de novembro que a gerência havia tentado impe-
ram ao gerente, num saguão lotado, depois de assistirem a uma sessão, acerca dos dir os negros de sentar nas cadeiras do térreo. Depois do tumulto popular que
lugares que receberam no balcão e aonde foram direcionados pelos lanterninhas, se seguiu, a casa substituiu a gerência e publicou um anúncio no Age de 20 de
alegando que havia cadeiras vazias na plateia. Queriam saber por que foram discri- fevereiro de 1913 que proclamava: “Admissões abertas para qualquer parte do
minados. O gerente não queria argumentar na presença de outros clientes e disse estabelecimento: balcão, orquestra e camarotes; Tratamento cortês concedido a
aos reclamantes que, tendo visto o espetáculo, escutado a música, e compartilhado todos”. Quando um magistrado da Filadélfia defendeu o direito de uma jovem
tudo com os demais pagantes, ele não via nenhum motivo real para a queixa.6 mulher, Madleine Davis, de pegar qualquer lugar vago no cinema, o Age repu-
Mesmo tardiamente, em 1925, uma casa de cinema no Brooklyn, o Apollo blicou a capa do Philadelphia Bulletin e louvou tanto Margarete Morris quanto
Theater, foi acusada de orientar os negros para o balcão, e um dentista recebeu senhorita Davis na edição de 19 de março de 1914.
U$S 2 mil em danos porque os lanterninhas o insultaram quando ele se recusou Muitos sugeriram o combate político e econômico de Jim Crow por meio de
a ocupar um assento pior do cinema Tivoli, de Chicago.7 construção e favorecimento “dos nossos” cinemas; por exemplo, o Birmingham
Jim Crow,8 porém, não era aceito em silêncio. Pessoas resistiram, lutaram (Ala.) Reporter suplicou em 1910 que “as pessoas de cor em Birmingham resolvam,
contra, e a imprensa negra celebrou tais esforços, relatando casos de discri- de maneira prática, os seus problemas de diversão, como o haviam feito as pessoas
minação contra negros, suas recusas de serem sentados à parte, e os devidos de cor em Washington, Nova Orleans, e em outros centros negros, ao estabelecerem
processos judiciais contra segregação e maltrato. A imprensa frequentemente seus próprio teatros... onde eles pudessem entrar pela porta da frente sem medo ou
investigava essas alegações e trâmites, e ocasionalmente até incitava ação co- tremor, e ocupar os melhores lugares por um preço de bilhete aceitável”. 10
munitária. Por exemplo, em 6 de setembro de 1913, o Defender publicou uma O Atlanta Independent rodou, em 1919, uma série de cartuns na capa apre-
matéria de capa a propósito das divisões de cor traçadas pelo Avenue Theater, sentando os cinemas Jim Crow munidos de policiais ameaçadores e entradas para
com quatro furiosos subtítulos: “Cidadãos exigem a revogação das licenças dos negros em ruelas laterais. Em uma delas, com inscrição Montgomery, Alabama, um
cinemas”, “Apenas brancos e judeus permitidos na plateia — Sr. R. Hill e espo- policial dizia: “Vocês, negros do Tuskegee,11 fiquem na fila como todos os outros
sa recusaram lugares na plateia — ‘Vocês têm de sentar em cima!’ — Homem espertalhões”. Outra tira apresentava fregueses bem-vestidos em Atlanta respon-
de cor ainda precisa armar o rifle para proteger a propriedade deste homem em dendo: “Por que não vamos a um teatro de cor na Auburne Avenue? Você vê os
tempos de guerra”, “A grandiosa latrina — o bolor do Avenue!” e “O Grand mesmos filmes, não precisa entrar pelo beco lateral” — “Vamos lá. Podemos entrar
Theater, a três quadras, vende assentos para todos os cidadãos americanos — o pela frente e sentar em qualquer lugar; ademais, é gerido por homens de cor”. 12
Avenue Theater precisa ser obrigado a respeitar Illinois, ou sua gerência deverá Em Louisville, negros boicotaram o National Theatre no inverno de 1913 por
ser deportada para o país de origem”. O artigo chamava para uma campanha por conta das cadeiras reservadas das galerias e da entrada pelos fundos. O New
meio de envio de cartas ao prefeito e ao chefe da polícia. Uma semana depois, York Age reimprimiu um apelo do Louisville News:
o semanário agradeceu aos leitores pelo apoio e proclamou o sucesso: “Avenue Agora é com as pessoas de cor. Será que elas irão sustentar cinemas (a casa
Theater afrouxa divisão de cor”. mais nova da cidade, o National Theatre) cujos acionistas recusam-lhes tratamen-
Em 1911, no dia 28 de setembro, o New York Age reportou a discriminação to cordial e digno? Será que a paixão deles pelo prazer é maior que sua autoesti-
que ocorria num cinema de Austin, Texas, em que aos negros era cobrado o ma? Será que eles irão engolir esse insulto em nome da diversão? Será que nossas
dobro do preço pago pelos brancos; em 23 de dezembro sob manchete “Mais mulheres subirão prédios de três andares e pagarão o mesmo dinheiro que todas

82 83
as outras pessoas que conseguem acomodações diferentes e melhores? Eles irão anunciou com orgulho a inauguração, em 1912, do Howard Theatre em Wil-
marcar sua raça como inferior e estimular outras discriminações ao aceitar trata- mington, “a primeira sala de cinema com proprietários e gerentes da raça na
mento pior? Essas e outras questões semelhantes precisam ser consideradas pelas Carolina do Norte”).15 Sua construção era vista como o estabelecimento de um
pessoas de razão, levando-as a se perguntar se tudo isso vale a pena. Haverá uma espaço social separado, um lugar de ação e um ponto comunitário: um espaço
casta que irá frequentar, mas certamente nenhum homem de autoestima e apreço público sem a indigência das escadas de serviço e sem a segregação na distri-
pela própria raça irá aceitar as acomodações desse novo teatro. buição dos assentos das salas brancas, um lugar em que a identidade cultural
A solução é esta: apoiar os cinemas de cor Olido e Ruby, cujos proprietários negra poderia ser afirmada. O Frolic em Lexington advertia: “Pessoas de cor,
são homens de cor, e erguer esses estabelecimentos até que eles consigam ofe- atenção: Vão aonde são bem-vindos e juntem-se aos seus amigos.”16.
recer espetáculos de qualidade igual. Portanto, faça valer a sua autoestima e Em 1909, a People’s Amusement Company de Baltimore abriu “um salão de
mantenha o seu dinheiro dentro da raça.13 imagens em movimento de primeira qualidade”, apresentando filmes, canções
O Age elogiou o público de Louisville e o Louisville News, convocando os ilustradas, e um leve teatro de variedades, divulgando a casa como o único “sa-
americanos negros que moravam em lugares em que não pudessem obter repa- lão de imagens em movimento de propriedade de negros e totalmente gerido e
ração legal a parar de apoiar os cinemas em que eram insultados e rebaixados controlado por negros, aberto a todas as pessoas”. Em 24 de fevereiro de 1912,
pelos gerentes brancos. o Freeman citou a gloriosa descrição do novo Majestic Theater pelo Nashville
O material promocional do cinema Frolic, em Lexington, Kentucky, admi- Globe, “um belo e cômodo teatro que atendia às necessidades dos artistas e dos
nistrado por proprietários negros, ressaltava que “em outras salas de filmes, ou usuários,” um moderno edifício de dois andares feito com tijolos, um espaço mul-
as pessoas de cor haviam sido excluídas, ou haviam sido colocadas em jaulas tiuso, com um “auditório magnífico”, cabine de projeção em “aço galvanizado”,
apertadas”. Em artigo do Indianapolis World, depois de debate aprofundado da cortinas com fibras de amianto, camarotes dos dois lados do palco dotados de “es-
discriminação em cinemas, foi notado que “o negro consome boa parte de seu plêndidas entradas e saídas”, e um balcão em declive, com cadeiras almofadadas
tempo falando de discriminação e preconceito. Ele havia gasto tempo suficiente e ventilação. Louvando o estabelecimento como uma grande instituição cultural
falando de discriminação... para construir e manter seu próprio cinema de pri- em voga, o artigo continuava: “O sucesso parece garantido, pois os negros de
meira qualidade.” Um homem de uma pequena cidade do Mississipi escreveu Nashville apoiaram duas fortes instituições bancárias, mantiveram aceso o en-
para o colunista de cinema D. Ireland Thomas, do Chicago Defender, solicitando tusiasmo pela educação, conservando o reconhecimento da cidade como pioneiro
instruções para abrir seu próprio cinema de cor, “já que a sala branca daquela centro educacional, do mesmo modo que, por meio de assistência e zelo religioso,
cidade permitia aos homens de cor apenas subirem as escadas e se acomodarem fizeram de Nashville o grande centro de publicações religiosas dos Estados Uni-
em bancos sujos e mal acabados”. 14 dos — e assim, também, enquanto a cidade é a casa, ou, pelo menos, a mãe do
A importância da vivência, na condição de clientela de cinema, que o públi- orgulho eclesiástico, ela também será bem-sucedida como um polo de cinemas.”
co afro-americano desfrutava nas salas afro-americanas, precisa ser observada William Foster, um dos primeiros cineastas afro-americanos, escreveu, assi-
no contexto dessa exclusão e humilhação social e, também, no âmbito da leal- nando como Juli Jones Jr., no Half-Centry Magazine de junho de 1919, acerca
dade racial. Fidelidade aos empreendimentos comerciais negros transformou dos cinemas negros do Sul: “O sulista pobre17 deixou de ter outra arma de seu
o progresso econômico numa força unificadora, um meio de fortalecimento da preconceito quando perdeu os cinemas Jim Crow do Sul... Agora moços e moças
comunidade. A ascensão individual dos empresários refletiu na raça enquanto negros podem assistir aos bons filmes em cinemas de bairro geridos, ou por
coletividade, e ela deu-lhes apoio, beneficiando-se de suas realizações. Em 24 brancos que lhes prestam serviços, ou, melhor ainda, por homens negros de vi-
de fevereiro de 1912, Minnie Adams defendia o suporte ao teatro Pekin em um são”. Como foi colocado por Charles H. Trupin, proprietário e gerente do Booker
artigo do Defender intitulado “Na união está a força”. Mesmo admitindo que a T. Washington Theatre em Saint Louis, Missouri, “O meu povo está interessado
qualidade das opções pudesse não corresponder às das salas dos brancos, “os nessa empreitada para fornecer ao público divertimento limpo e decente, e para
esforços de indivíduos para a melhoria e o prazer da raça deveriam ser retribu- manter dentro dos canais da nossa raça parte dos lucros necessariamente gastos
ídos pela cooperação franca de todo homem e mulher”. com prazer e entretenimento edificante”.18
Os novos teatros negros eram descritos com entusiasmo na imprensa ne- Muitos destes cinemas eram nomeados em honra aos heróis afro-america-
gra como esforços empresariais bem-sucedidos. (O The New Age, por exemplo, nos: Booker T. Washington, Frederick Douglass, Crispus Attucks, e assim por

84 85
diante. O Hampton Teatre in Roanoke, Virginia — que à época da abertura, nham US$ 3 por dia ou mais, resultando no melhor desempenho comercial que
em 1917, reivindicava o título de “maior cinema da Região Sul” — foi nomeado os cinemas de negros já tiveram em sua história”. O artigo também mencionava
em tributo ao Hampton Institute.19 O New York Age pediu aos seus leitores su- que filmes eram exibidos todas as noites no YMCA, 22 dentro do acampamento
gestões apropriadas para designar uma nova sala que estava sendo construída militar. Em Chicago, em 1919, mais da metade do dinheiro gasto pelos traba-
na rua 138 West Street, no Harlem. Depois de considerar os nomes de “muitos lhadores para diversão era destinado aos cinemas.23
negros que fizeram História pela raça”, os diretores do Johnson Amusement
Company optaram por Walker-Hogan-Cole, em homenagem aos artistas George ***
W. Walker, Ernst Hogan, e “Bob” Cole, como gesto de “mais alto elogio aos
homens de cor da profissão teatral” e sua “importante participação na resolução As race houses podiam acomodar o gosto local com eventos ligados ou não a
do assim chamado problema da raça”.20 filmes, evitando preços que pudessem ser ofensivos. O Chicago Whip anunciou
O principal efeito da urbanização do período entre 1890 e 1920 foi o sur- em 27 de Agosto de 1921, “Teatro Blue Bird (na Indiana Avenue em Chicago)
gimento de uma classe de comerciantes e profissionais autônomos que possuía reabre com filmes de cor e sob gerência de cor”. O artigo dizia que “o teatro
capital para investimento, mas que também percebia sua dependência da co- Blue Bird está sob a administração de W. C. Gates e foi inteiramente renovado
munidade negra. Ainda que a segregação e outras formas de alienação racial com instalações para oferecer aos clientes a melhor diversão existente pelo pre-
— a dinâmica social imposta à raça negra — possam ter contribuído para o ço que podem pagar. As condições sanitárias e a decoração interior fazem-no o
crescimento dos negócios e das instituições comunitárias dos negros, elas não mais limpo e aprazível pequeno cinema para a nossa gente na cidade. ‘Iremos
foram sua causa principal. Também seria errôneo igualar as leis e os padrões escolher os longas-metragens para atender ao gosto da nossa clientela’, afirma
sociais que proibiam negros de ocupar mesmos espaços ou receber o mesmo o gerente Gates, ‘e lhe ofereceremos a valia em divertimento e serviço cortês’.”
tratamento que brancos (em função do estabelecimento da supremacia branca) As salas eram também lugares para organizações fraternas e clubes que
com a afirmação de uma identidade social autônoma, esta sendo resultante de faziam ali conferências, peças teatrais de temática histórica, e outros eventos
um esforço positivo e criativo (cuja função é fomentar o senso de comunidade, especiais. Em 1917, durante algumas noites, o salão do Palace Picture em Lou-
orgulho e independência).21 isville, Kentucky, num esforço de angariar público, agendou oradores negros
Em maio de 1919, Howard A. Phelps escreveu no Half-Century: “A estabili- juntamente com sessões de filmes: “Atenção, Sr. Negro: ... Você possui uma gota
dade do negro repousa em sua independência financeira. Independência signi- de verdadeiro sangue pulsando em suas veias? A sua espinha é feita dos ossos e
fica o emprego do homem e da mulher da raça por pessoas de negócios, homens cartilagem pretendidos por Deus, ou você se degenerou tão profundamente que
e mulheres da raça. O mundo mercadológico é a esfera da vida que o homem uma larva de pesca jaz onde deveria estar a sua coluna? Você já não foi sepa-
negro precisa explorar antes de estar pronto para participar do jogo da vida rado o bastante dos seus irmãos?... Você não pensa que chegou a hora de vocês
juntamente com as outras raças sem sair em desvantagem. A opressão tem aba- acordarem e se juntarem?”. O restante do anúncio, apelando para a consciência
lado as bases de outras raças ao longo de centenas de anos, porém sua condição da raça, descrevia uma iniciativa para “estimular o espírito de união, apoio à
financeira lhes impôs o respeito do mundo.” raça, e amor fraterno”, cabendo ao cinema destinar parte de suas receitas para
O desenvolvimento de um público afro-americano substancial, que conquis- alojamentos, clubes, igrejas, e afins. Esses eventos especiais incluíam “progra-
tou determinado grau de segurança financeira e tempo para lazer, tornou os mas de filmes de primeira qualidade” e discursos de dez minutos proclamados
filmes um alvo ideal para investimentos. A população urbana reservava parte por um orador apontado por um clube ou organização — “Discursos da raça
significativa dos salários para diversão comercial, com os operários gastando por homens da raça”, um esforço para “fortalecer a raça”. O estabelecimento
uma percentagem superior de seus ganhos nessa finalidade, em comparação aos prometia que as apresentações, “embora não pretendam ser inflamatórias ou
profissionais de classe média. Durante a Primeira Guerra Mundial, empregos de ofender outras raças, irão fervilhar em vigor e determinação racial ao ponto de
alta remuneração garantiram aos americanos negros mais dinheiro para o con- emocionar os ouvintes da cabeça aos pés”.24
sumo. O Moving Picture World relatou, por exemplo, em 19 de outubro de 1918, Em Chicago, entre 1905 e 1913, existiam ao menos doze salas oferecendo
que os soldados negros estacionados no Cam Taylor, em Louisville, Kentucky, filmes, música, e espetáculos de vaudeville na extensão de quatro quadras da
estavam enchendo os cinemas: “Salários estão altos, trabalhadores comuns ga- rua South State, região conhecida como Stroll (Passeio). Esse número aumentou

86 87
para dezesseis na segunda metade dos anos 1910, passando para mais de vinte ore, Pauline Starke e Wallace Beery32. Half-Centry Magazine perguntou “Onde
até o final da terceira década.25 No entanto, para que os cinemas de cor exibis- será que está o garoto jovem e animado, chamado às galerias para ver o ‘meller-
sem filmes regularmente, era preciso recorrer à produção cinematográfica de drammer’33, quando ele pode ir ao cinema e se sentar, se quiser, perto da tela
brancos. Mesmo no ápice da realização afro-americana, no princípio dos anos para ver Noble Johnson atuar?”. Outro artigo do Half-Centry explicou: “aqueles
1920, nunca houve filmografia suficiente para sustentar programações integral- do nosso povo, que não compareceriam a uma sessão regular, iriam se soubessem
mente negras. Em 1923, o Norfolk Journal and Guide, em artigo que elogiava que ela é estrelada por um negro, ou se um filme de cor fosse mostrado. E como
as “salas que serviam a clientela da raça” por sua variedade e qualidade de as estrelas negras estão em ascensão, o número de amantes dos colored movies
programação, mencionava que os cinemas agendavam filmes dos estúdios “Me- também está aumentando rapidamente.” 34
tro, First National, Paramount, Fox, Vitagraph, Ince, e ocasionalmente filmes A disponibilidade de cinemas negros, juntamente com uma população de
realizados pelos produtores da raça”.26 O Broadway Theater, em Washington, espectadores com maior renda à disposição, certamente serviram de estímulo
contava com uma produção negra uma vez ao mês durante a temporada entre ao crescente número de produções negras. Estes fãs do cinema talvez tenham
1926 e 1927.27 Em 1925, o Dumbar Amusement Company de Peoria, Illinois, provocado o surgimento dos exibidores ambulantes negros. Era possível alugar,
informou, com entusiasmo, ao público que pretendia apresentar os race movies por exemplo, o Globe Theatre de Norfolk, Virgínia, com ou sem a orquestra da
durante uma noite a cada segunda semana.28 No início de 1924, o Attucks The- casa, tanto por uma taxa fixa quanto por uma comissão nas receitas da bilhete-
atre em Norfolk, Virginia, anunciou o ousado critério de colocar em cartaz um ria, e agendar uma programação de filmes temáticos.35
filme de Oscar Micheaux toda segunda e terça-feira.29 Divulgações subsequen- Filmes também aparecerem em cidades pequenas e áreas rurais, mesmo
tes, no entanto, indicam que essa decisão não foi levada a cabo. Entre 1922 e onde não havia cinemas destinados aos clientes negros. O estudo da região de
1924, de acordo com os registros de censores, somente sete filmes negros foram Lexington, Kentucky, realizado por Greg Waller, descreve um showman viajan-
exibidos em todo o estado da Virgínia (seis passaram pelo crivo do conselho de te, o professor J. V. Snow, visitando as igrejas de Lexington, em 1903, com uma
censura que notou que um título havia sido projetado em diversos locais sem Paixão de Cristo filmada, curtas-metragens cômicos, filmes de atualidades, e
aprovação). Porém, talvez outras produções tenham sido mostradas sem o co- acompanhamento musical. Os irmãos Wilson levaram produções religiosas, co-
nhecimento ou licença desse comitê. médias e filmes de truques para igrejas locais em 1909.36 A Lincoln Motion
Mesmo quando um filme hollywoodiano chegava às telas, ele era visto em Picture Company, de Los Angeles, possuía um operador, professor A. A. Mon-
circunstâncias familiares. As contínuas exibições, os programas mais curtos, a crieff, percorrendo o Sul com uma tela portátil especialmente construída em
substituição frequente de títulos e os preços mais baixos nos cinemas de bairro, 1917, apresentando-se em “igrejas, salas, escolas, e cidades menores que não
tornaram os filmes mais acessíveis aos trabalhadores, encorajando-os a compa- tinham cinemas”.37 Eddie Wilson também viajou ao Sul profundo. Em 1919
recer a múltiplas sessões. Quando atores negros interpretavam personagens co- (com 27 anos de idade), ele encomendou um projetor de uma empresa em Bir-
adjuvantes ou papéis pequenos em produções brancas, eles recebiam destaque mingham, e, com a cooperação de padres e fideicomissários das escolas, per-
na publicidade dirigida ao público afro-americano. Por exemplo, quando a série correu os caminhos secundários numa carruagem puxada a cavalo, oferecendo
western de Eddie Polo, The Bull’s Eye, foi exibida no Owl Theatre, em Chicago, espetáculos com interlúdios musicais em comunidades de pequenas cidades e
em 1918, uma imagem largamente estendida de Noble M. Johnson foi colocada fazendas no Alabama e no Mississippi.38
num anúncio de jornal: “Venha ver o intrépido astro cinematográfico da raça”.30 Em 1920, no Chicago Defender constava um pequeno anúncio de “Apare-
Quando, cinco anos depois, o Owl colocou Soft Boiled, da Fox, em cartaz, foi ro- lhagem completa para exibição de filme cinematográfico à venda... perfeito para
dado um anúncio de quatro colunas no Defender com recorte da Fox, à esquerda, salões e igrejas”. A DeVry Corporation anunciava um projetor portátil e sistema
apresentando uma foto de Tom Mix, “o rei dos dublês”, e Tony, “o cavalo notável”. gerador que poderiam caber sob a capota de qualquer automóvel ou caminhão,
Na metade à direita, o estabelecimento anunciou, apenas com texto escrito, que um completo espetáculo do cinema móvel para o ar livre. “Seja independente e
Tom Mix foi “assistido por” (em fonte grande e negritada) “Tom Wilson, numa obtenha dinheiro! ... Ideal para paradas de uma noite. Também nas casas das
explosão de risadas do festejado comediante do cinema de cor”.31 Em uma publi- escolas rurais; nas feiras agrícolas das comarcas; no mato ou nas celas de pri-
cidade para Adventure de Jack London, no Republic Theater de Chicago, Noble são”.39 Em 1922, D. Ireland Thomas escreveu a propósito da “bem-sucedida”
Johnson foi creditado como estrela, listado no topo do elenco, à frente de Tom Mo- viagem que levou os antigos race films para comunidades da Flórida, “onde um

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grande número de nossas pessoas... estão ansiosas para ver essas produções, mas despesas com diversão. Veja as grandes estrelas e os grandes filmes por 50% a
não têm salas ou qualquer outro meio de ver filmes”. Convidando aqueles que menos do que você pagaria nas salas do centro. Por que gastar de 16 a 64 centa-
cogitavam tentar empreendimentos similares a lhe escrever no Dunbar Theater, vos em passagens e de 30 centavos a US$ 1,2 em ingressos para ver os mesmos
em Savannah, Geórgia, Thomas ressaltou que este método de distribuição era um filmes no centro quando você pode vê-los no Loyal por 50% a menos? Venha
bom caminho para “conseguir mais dinheiro dos filmes que são deixados de lado para o Loyal e economize esse custo extra”. O Auditorium Theatre, em Atlanta,
por terem sido mostrados nas cidades que possuíam cinemas” 40. anunciou em um grande boxe de jornal43 a exibição do filme The Hart of Hu-
(...) manity44 por um quarto de dólar para qualquer assento e, em um boxe menor,
informava ao leitor: “Este filme está sendo exibido no Peachtree Theatre com
*** entradas a 50 centavos”. Em Washington, os cinemas de propriedade de negros
promoveram um concurso de ensaios nas páginas do Washington Tribune com
Os cinemas de segregação, com os balcões elevados41 e outras áreas sepa- o tema “Por que cinemas de propriedade e geridos por nossa gente devem ser
radas para negros, disputavam o público negro com os “cinemas de cor”. A apoiados”. O primeiro prêmio era US$ 20, e o segundo concedia um passe men-
concorrência poderia tornar-se intensa. Visando a atrair a clientela afro-ameri- sal para qualquer sala na cidade cujos donos fossem negros.45
cana, as salas frequentemente divulgavam as amenidades de suas instalações. Proprietários de cinemas negros, em bairros de negros localizados nas ci-
Em Baltimore, o Roosevelt, um cinema de proprietários brancos localizado no dades sulistas, eram forçados a fechar as portas devido à força da violência, ou
centro de uma comunidade negra, ostentava seu interior moderno e um órgão de motivados por regulamentos locais que privilegiavam os negócios dos brancos.
US$ 10 mil. O Regent, também em Baltimore, dedicou um terço de um anúncio Em Tyler, Texas, por exemplo, em 1925, um homem negro cogitava abandonar
para apresentar “o novo órgão de orquestra de US$ 18 mil” que “reproduz per- seu cinema de bairro e mudar-se para outra cidade porque pressentia que já
feitamente a voz humana”, incluindo sons de “chuva, pássaros, e outros efeitos não seria mais lucrativo manter o estabelecimento depois que um branco abriu
maravilhosos”. O New Grand Theatre, na rua South State, em Chicago, uma um cinema para negros no centro, região em que a propriedade era proibida
casa dedicada ao vaudeville e à projeção de filmes, proclamou a vocação para às pessoas de cor.46 No dia 2 de dezembro de 1921, o Afro-American relatou
“usufruto e deleite exclusivos” do freguês negro. “Este novo templo de diverti- que o Dream Theatre, em São Petesburgo, Flórida, estabelecimento que estava
mento... foi desenvolvido para dar aos homens de cor de Chicago as melhores equipado para realizar espetáculos ao vivo, porém vinha exibindo filmes cine-
acomodações de cinema que podem ser concebidas... Há oitocentos assentos matográficos, fora “bombardeado e destroçado”. “O motivo é desconhecido, mas
confortáveis e cada cliente, para se sentir em casa, será tratado com máxima é dito que a hostilidade contra Jack Lively, que era dono e mantinha o teatro
gentileza”. Uma semana depois que o Frolic Theater, uma race house em Lexin- exclusivamente para os negros, era enorme porque ele havia tomado o mercado
gton, Kentucky, divulgou que “os líderes da população de cor” haviam apoiado da seção Jim Crow dos cinemas de brancos”. Em Norfolk, Virginia, J. E. Reese
este novo empreendimento, um cinema de proprietários brancos colocou um abriu o Dozier Theater para clientela negra depois de passar muito tempo fe-
anúncio num jornal de Lexington assegurando aos leitores que o “Hippodrome chado. No entanto, “cidadãos brancos da localidade não aprovaram”. No dia de
admite pessoas de cor, possui um balcão e entrada separados para eles, com um inauguração, o local foi alvo de piquetes e a clientela foi “aconselhada a ir em-
elegante corrimão de latão para lhes indicar o caminho a seguir”. O Colonial bora”. Na sessão daquela noite, “um tiro foi disparado de uma arma e o público
Theatre, uma sala da segregação em Portsmouth, Virginia, anunciava para a debandou em pânico; no dia seguinte, uma ordem contra o funcionamento do
comunidade afro-americana no Norfolk Journal and Guide as suas políticas teatro para os negros foi obtida, mesmo esta sendo uma vizinhança de negros”.47
“inclusivas”: “Nosso objetivo é agradar ao público o tempo todo... Muito espaço Em 1932, o homem de espetáculos ambulantes, Eddie Wilson, construiu um
para todos... Preços ao alcance de todos”. Deve ter surgido alguma rivalidade salão no quarteirão Crattix de Headland, Alabama, mas foi rapidamente expul-
com o Attucks Theatre, um cinema de negros localizado nas proximidades, em so pelos brancos. 48
Norfolk, que se designava no mesmo jornal como “o cinema 100% negro”.42 Em regiões de grande população afro-americana, alguns cinemas destina-
A grande inauguração do Loyal Theatre em Omaha, sem aludir à raça ou à vam a galeria para os brancos e acomodavam os negros na plateia. O Afro-Ame-
lealdade de raça, deu ênfase ao conforto e ao preço mais baixo do cinema de rican notou essa prática no Belmont Theater em Pensacola, Florida, sugerindo
bairro para pessoas de cor: “Vença o alto custo de vida e poupe 50% em suas que ela poderia ser estendida para o Circuito Consolidado de Gerentes e Ar-

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tistas49, “desde que obviamente os humores locais não fossem definitivamente pergunta-se “por que então, em um estabelecimento administrado e controlado
contrários à inovação”50. O proprietário do Frolic Theter em Birmingham, Ala- como o Pekin, cenas tão infames precisam ocorrer? Estamos certos de que este
bama, reservou para seus amigos brancos diversas fileiras em frente à cabine não é um criadouro de porcos; por que não respeitá-lo? Pensamos, antes, que os
de projeção. “No Sul, a lei de Jim Crow funciona nos dois sentidos”, observaram nossos recém-chegados à cidade é que imaginam estar numa convenção caipira”.
Clarence Muse e David Arlen no livro Way Down South51, “e assim como o Cinemas negros estavam abertos a todos da comunidade, mas às vezes, em
pessoal de cor não se mistura com os brancos em locais de diversão, os brancos função da localização, do comportamento dos clientes, ou por conta da seleção
também eram proibidos com o mesmo rigor de qualquer relação social com os de filmes ou atos, alguns poderiam preferir os cinemas brancos de segregação.
irmãos mais escuros”.52 Os Jacksons, uma família de brancos, possuíam dois teatros em Ruleville, Mis-
Os cinemas de cor poderiam receber apresentações especiais para brancos sissippi. Eles mostravam bangue-bangues por preços baixos em seu “teatro de
ou, ocasionalmente, convidar pessoas brancas a comparecer em sessões especí- cor”. As pessoas que queriam ver os filmes inéditos de Hollywood precisavam
ficas. O 81 Theater em Atlanta era um vaudeville de negros e também um local ir ao balcão da maior de suas duas salas. Um artigo no New York Age acusou
de projeção de filmes, a não ser nas matinês da meia-noite às quartas-feiras, “certas classes de pessoas de cor” de preferirem os insultos do balcão no esta-
abertas somente aos brancos.53 Em 1922, o Attucks Theatre, em Norfolk, tentou belecimento dos brancos ao cinema dos negros, mesmo estes sendo de proprie-
sessões especiais às sextas-feiras, à meia-noite, exibindo produções estreladas dade de gente da raça.56 Uma mulher entrevistada no Harlem, a propósito da
por negros para oferecer “uma oportunidade aos brancos interessados em espe- política discriminatória do Lafayette Theatre na designação das poltronas, foi
táculos de negros para visitar o teatro. Nessas ocasiões, o público aumentava e dura quanto à injustiça cometida; ela também expressou seu desejo, no entanto,
era polvilhado de brancos”. As autoridades, no entanto, rapidamente emitiram de que “Uma solução deve ser encontrada para proteger da ralé as pessoas de
um decreto proibindo qualquer teatro ou cinema de realizar espetáculos depois cor respeitáveis e decentes. A melhor componente do nosso povo precisa sofrer
da meia-noite sem obter previamente a autorização do diretor de segurança pú- por e pela pior.”57. William H. Jones, um sociólogo na Universidade de Howard,
blica. “Os proponentes dessa medida referiram-se à prática que sancionavam viu a pequena sala do Mid City Theater, no bloco 1200 da Seventh Street em
como ‘uma insalubre mistura das raças’.”54 Washington, servindo uma clientela que “na maior parte era inculta e sentimen-
O surgimento de race movies em espaços específicos à raça, primeiramente tal”.58 Paul K. Edwards, um economista no Fisk, sugeriu que os pequenos tea-
no início da década de 1910 e, posteriormente, em maiores quantidades, na tros negros frequentemente exibiam entretenimento “inferior” e que falhavam
virada para a década de 1920, deve ser observado como uma experiência inclu- em atrair “o melhor componente da população”.59
siva. Ainda a visão ad hoc seja coletiva, mais do que de uma comunidade pre- Ao lado de filmes e conferencistas que elevavam espiritualmente a raça, a
determinada, o público, todavia, aparenta ter vivido a alegria e a comunhão que proposição de solidariedade e respeitabilidade incluía discussões acerca do
não eram vistas em casos de convivência racial mista. Membros do público res- comportamento apropriado nos cinemas de negros. Distinções sociais subscre-
pondiam como participantes, rindo, comentando, torcendo pelos personagens viam as normas e valores da classe média e seus padrões de aceitação. Esses
— talvez com mais similaridade à conduta cabível aos salões, clubes, eventos debates, além de representarem uma tentativa de seduzir a freguesia burgue-
esportivos e reuniões religiosas que aos cinemas de segregação em sessões de sa, constam ao lado de várias outras iniciativas que buscavam alcançar maior
filmes de Hollywood.55 respeitabilidade (como os folhetos da Liga Urbana de Chicago 60 com dicas de
Este jeito de ser, contudo, não foi bem recebido por todos. Em 23 de abril conduta endereçadas aos migrantes). Um clima de reserva e decoro entre o
de 1910, mesmo antes de Pekin Theater exibir filmes cinematográficos regular- público de classe média acabou por afastá-lo dos trabalhadores e operários —
mente, o Chicago Defender publicou um artigo não assinado intitulado “Fala- muitos destes eram também novos habitantes das cidades. Ou seja, não é que
ção ruidosa no Pekin”, queixando-se de “alguns concidadãos que pretendiam os frequentadores negros tenham ficado mais arruaceiros, mas a cultura negra
ser refinados e estar em dia, mas que certamente deixavam claro como haviam é que vinha tornando-se mais distinta (Lizabeth Cohen esclarece que gritaria
sido tutelados. Enquanto o grande Albini tentava explicar o seu trabalho, havia e escárnio caracterizavam a classe de trabalhadores e os cinemas étnicos em
tanta conversa e em volume tão alto que ele precisou pedir-lhes que parassem”. geral61). Edwards, economista do Fisk, escreveu que, nos cinemas brancos de
O artigo continua e sugere que “estas mesmas pessoas irão ao Illinois, Grand ou segregação, não apenas o “constrangimento” das entradas laterais separadas
Lyric, onde para abrir as suas bocas seria necessária uma alavanca”. O jornal desencorajava alguns pagantes negros, mas todas as classes sentadas juntas no

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restrito espaço da galeria também tinham algo de incômodo e perturbador.62 patriótico ao final da projeção é um momento que solicita uma proclamação
A coluna Motion Picture News, de D. Ireland Thomas, no Defender, também afirmativa da audiência, talvez o equivalente de 1920 para “É isso aí!”. O filme
discutia a conduta nos race theaters e comparava o “linguajar chulo” e os “ba- ofereceu uma oportunidade para vociferar abertamente tanto um sentimento de
rulhos altos” de lá ao “sossego” e à “ordem” nos estabelecimentos de brancos, raiva quanto um desejo de afirmação. A fala despudorada dos negros poderia
apontando que, na metade da década de 1920, as pessoas ainda não respondiam ser um ato de resistência e audácia, especialmente para aqueles que foram en-
aos filmes nos cinemas da raça como faziam nas galerias das salas de brancos. sinados a controlar suas línguas diante dos brancos ou das multidões mistas.66
Ele comentou que “a melhor gente da raça” pagava para ir às galerias de cine- Alguns eventos desvinculados da projeção de filmes e incluídos nas progra-
mas dos brancos porque “eles viam uma boa projeção, escutavam boa música, mações — conferências para a raça, números musicais, cantorias coletivas e
e, acima de tudo, havia ordem”.63 Seria isso uma agonia dos negros aculturados coros, participações de amadores — também podem ter estimulado as atitudes
em resposta ao comportamento conspícuo e berrante dos seus camaradas? Ou do público. As salas de cinema puderam tornar-se, assim, lugares públicos para
era algo mais pragmático? Thomas afirmou que, quando o boato se espalhou a reuniões, propiciando interações congeniais, onde as emoções eram menos re-
respeito de suas ambições de inaugurar um cinema no King Street (a principal traídas que na adversidade do mundo externo.
via de comércio e lazer de Charleston), uma tentativa de mudar o local da sala A localização do cinema e as características do bairro também podiam in-
fora ensaiada. “Mas assim que as pessoas souberam que eu pretendia abrir um fluenciar a plateia. Waller destaca que quando os proprietários do Frolic Thea-
negócio decente, todos me ajudaram.”64 Em salas sem espaço para a orquestra, ter buscavam um ponto para o seu novo nickelodeon, em 1907, eles evitaram a
os clientes providenciavam os diálogos e efeitos sonoros? As cartelas eram li- “principal rua de cor”,67 que era conhecida por seus saloons e outras casas de
das em voz alta para os vizinhos iletrados? Talvez com algum embelezamento? diversão, e estava localizada na fronteira do distrito comercial central, próximo
Eddie Wilson, enquanto ainda era um showman viajante, geralmente recitava ao prédio que abrigava o semanário negro de Lexington. D. Ireland Thomas,
os intertítulos para que todos na plateia pudessem entender. De acordo com sua respondendo à carta do gerente de um race theater em Baltimore, implorou:
filha, “Ele obteve grande habilidade e desenvolveu uma verve que aumentava “Manter tudo em ordem inclui tanto o saguão de seu estabelecimento quanto a
o deleite de seus clientes.”. Ela descreveu o público como fascinado e entusias- calçada que se encontra em frente”.68
mado, “com as risadas gritantes ricocheteando nas paredes da sala de confra- Ao contrário dos albergues e das competições de luta livre, os cinemas eram
ternização da escola”.65 lugares em que as famílias eram bem-vindas. A sala que buscasse cortejar mu-
Mesmo em cinemas maiores, porém, as atitudes das pessoas eram, às vezes, lheres e crianças, especialmente se estivesse localizada numa região atrelada a
muito chamativas. Maybelle Chew, colunista de vaudeville no Afro-American, outras formas de diversão como salões de sinuca ou bares (lugares que margi-
escreveu a respeito de alguns membros do público que falavam intensamente nalizaram as mulheres ou eram considerados impróprios à família pela igreja),
com a tela, “furiosamente e aos prantos”, e Lester Walton descreveu a reação a iria se promover como um ponto de negócio familiar “respeitável”. O Phoenix
uma cena de The Brute, de Oscar Micheaux, numa sessão no Lafayette Theatre, Theatre, no Stroll, em Chicago, anunciava que divertia senhoras e crianças
em que Sam Langford nocauteava Marty Cutler: “Caramba, quanto clamor da apresentando “seleções de filmes de mais alta classe, música instrumental e
plateia! Homens, mulheres e crianças se entusiasmaram como se estivessem vocal de maior categoria, e uma orquestra de negros de primeira qualidade”.69
comemorando uma luta real.”. De fato, certos aspectos de alguns filmes podem Um programa que incluísse música especial ou bilhetes com preços dife-
ter encorajado a ruidosa participação. Evelyn Preer divertiu seus leitores do renciados poderia atrair o comércio familiar. O símbolo do inconquistado (The
Pittsburgh Courier reportando que, quando Dentro de nossas portas (Within Our Symbol of the Unconquered, 1920), de Michaux, abriu no Lafayette Theatre em
Gates, 1920) abriu em Chicago, no Vendrome Theater, um homem ficou tão Nova York, no dia 27 de dezembro daquele ano com a música do Exposition
engajado durante a cena em que a personagem que ela interpretara era atacada Jubilee Four, peças para violino do solista Eugene Mars Martin com acompa-
por um homem branco, que saltou da cadeira gritando “Mate ele!” e proferindo nhamento do pianista Hazel Thomas, e a Lafayette Theater Orchestra. O New
algumas outras palavras fortes que Preer preferiu deixar para a imaginação York Age relatou: “A presença, no programa, de Eugene Mars Martin, o violinis-
do leitor. A certa altura deste mesmo filme, as manchetes de um jornal racista ta jovial, é digna de menção especial. À parte da constatação de que o público
diferiam tão grosseiramente daquilo que o público acabara de ver representado inequivocadamente mostra apreço pela música de primeira qualidade quando
que pareciam clamar por uma reação da plateia. Igualmente, o longo discurso ela é reproduzida com inteligência e destreza, a ocasião deve selar o início de

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um relacionamento mais próximo entre o Lafayette Theater e instituições como Em uma crítica mordaz na Half-Century Magazine, Jean Voltaire Smith es-
a escola Smith-Martin, onde talentosos musicistas jovens de ambos os sexos creveu que “sermões longos contra os filmes e admoestações para ficar longe
recebem instrução”.70 Quando o filme By Right of Birth (1921), da Lincoln Mo- deles parecem resultar em bancos de igreja vazios... enquanto o número de fãs
tion Picture Company, abriu no Trinity Auditorium de Los Angeles, os bilhetes de filmes aumenta. O fato de a cada noite a programação colocar em cartaz tí-
custavam de 50 centavos a um dólar; o espetáculo incluía uma banda de 60 tulos diferentes faz com que muitos clientes compareçam a mais de uma sessão
integrantes conduzida por John C. Spikes, afora de dois solos vocais e quatro por semana. Isso significa que uma enorme quantidade de dinheiro é gasta nos
números instrumentais. Spikes compusera a canção Juanita (nome da protago- cinemas, parte considerável da qual poderia chegar à igreja, se os filmes fossem
nista) para o filme, e ela foi cantada no Trinity Auditorium por Malcom Patton.71 menos populares.” Smith notou a função educativa dos filmes: “Produções de
Não importa o quão “repeitáveis” pudessem ser tais ocasiões especiais, al- temática histórica e bíblica, tão populares atualmente, estão proporcionando
guns americanos negros jamais compareciam aos cinemas. Seja por conta de às crianças da escola, e também aos adultos, uma compreensão mais clara da
motivações religiosas ou por códigos de “boa conduta” social menos bem defi- Bíblia e da História. Igualmente, as atualidades de maior interesse iluminam as
nidos, certo segmento da comunidade negra evitava o cinema totalmente, fosse telas a cada semana para manter informados aqueles que são ocupados demais
ele um “palácio de filmes” da segregação ou um modesto “teatro de cor”. D. para ler atentamente os jornais.”. O Freeman, também, discutiu os race films
Ireland Thomas aconselhou aos que pretendiam se tornar proprietários de salas considerando-os realizações com uma “missão... tão certeira e segura quanto
de cinema que, deduzidos os brancos, bebês e gente da igreja, em sua pequena aquelas da Igreja e da sala de aula”. 78 De fato, os primeiros race pictures eram
cidade, não sobraria público grande o bastante para sustentar um cinema de muitas vezes discutidos nos termos de seus valores edificantes.
cor.72 A própria nora de Thomas não ia aos cinemas, enquanto moça. Embora
ela não se lembre de qualquer proibição específica, sua diversão era, em vez dos
filmes, centrada no convívio social da igreja.73 1 Trechos selecionados do capítulo 6 Comissão de Chicago para 12 Atlanta Independent, 29/11/1919,
Algumas pessoas da igreja não viam os filmes com bons olhos. Em 1910, na “In Search of an Audience, Part Relações Raciais, The Negro in 6/12/1919, 13/12/1919.
1”, em Writing Himself into History: Chicago (University of Chicago
Conferência Ministerial Interclesial, o reverendo M. W. Clair, pastor da igreja Oscar Micheaux, His Silent Films, and Press, Chicago, 1922), p. 319. 13 De acordo com George C. Wright,
His Audiences (Brunswick: Rutgers em Life Behind a Veil: Blacks em
Asbry M. E., em Washington, expressou sua preocupação acerca dos efeitos University Press, 2000). Direitos 7 O artigo acerca do Apollo Louisville, Kentucky 1865 – 1930
dos cinemas na frequência às igrejas e na moral dos jovens, pedindo por uma cedidos pelas autoras e pela Theater foi publicado no New (Baton Rouge: Louisiana State
editora. Traduzido do inglês por York Age, 10/10/1925; o caso Tivoli University Press, 1985, p. 200),
cruzada contra os lugares de divertimento banal.74 Outros, porém, como o reve- Nikola Matevski. (N.E.) foi relatado na revista Variety em o cinema alterou as regras para
18/2/1925. permitir a entrada dos clientes
rendo Adam Layton Powell, pastor da Abyssinian Baptist Church, preferiram a 2 William Holman lembrou-se de sua de cor pela rua principal e
“campanha da purificação” e sentiram que as imagens em movimento poderiam mãe acompanhada de uma mulher
branca, vinda de uma fazenda
8 Referência às chamadas leis Jim
Crow: conjunto de leis decretadas
sua acomodação no primeiro
balcão. Citado em Main Street
ser usadas para atrair as pessoas aos templos.75 O Reverendo James M. Webb vizinha, cada uma sentando-se em nos estados do sul, vigentes entre Amusements: Movies and Commercial
lados diferentes da plateia quando 1876 e 1965, que impunham a Entertainment in a Southern City,
anunciou em 1920 a fundação da Liberty Studio Film Company, em Los Ange- entraram num pequeno cinema de segregação de brancos e negros 1896 – 1930 (Washington D.C.:
Arkansas. (Entrevista concedida às em diversos ambientes públicos, Smithsonian Institution Press, 1995,
les, que filmaria o seu livro e a sua preleção ilustrada, The Black Man’s Part in autoras em 22/6/1993). como escolas e transportes. (N.E.) p. 311) de Gregory A. Waller.
the Bible.76
3 Peanut gallery, locução que 9 Photoplay, palavra usada nos 14 A publicidade promocional que
Algumas congregações apresentavam filmes nas igrejas, ou promoviam reu- denomina os piores assentos impressos americanos da década de foi publicada no Lexington Reader,
de um teatro, usualmente no 1910 como sinônimo de filme. (N.T.) em 7/11/1907, é citada por Waller
niões especiais nas salas de cinema. O grupo intereclesial de padres de Nova último balcão. Historicamente, em Main Street Amusements, p. 166.
York, por exemplo, tentou conquistar as pessoas para o rebanho: o reverendo a ligação desta expressão com
os frequentadores negros
10 De acordo com o relato do Afro-
American Ledger em 5/2/1910.
O artigo do Indianapolis World foi
republicado no Chicago Defender,
Gilbert, pastor da Mount Olivet Baptist Church, disse uma vez que seu grupo provavelmente é derivada da 20/7/1912, e a citação da coluna de
associação dos imigrantes africanos 11 Referência ao Instituto Tuskegee, Thomas no Defender circulou no dia
pretendia “fazer com que a igreja busque os pecadores em vez de esperar que os com amendoim (peanut), pois eles fundado em 1881 por Booker 6/6/1925.
foram os primeiros a trazê-lo aos T. Washington e voltado para a
pecadores procurem a igreja”, e que havia sido decidido não ser mais necessário Estados Unidos. (N.T.) educação de negros. Uma das 15 New York Age, 11/7/12. Ver
“deter-se nos pormenores a respeito dos locais de tais reuniões”. Uma missa de principais lideranças negras do também o anúncio de um novo
4 (Baltimore) Afro American Ledger, período, Washington era defensor teatro em Norfolk, Va., 5/7/1919.
domingo foi realizada no Crescent Theatre, na rua 135, e incluía projeção de um 5/2/1910. da filosofia do uplift, segundo a qual
o racismo deveria ser combatido 16 Lexington Reader, 30/11/1907,
filme “tão divertido quanto instrutivo”, Star of East, juntamente com um sermão 5 Chicago Comission of Race por meio da elevação e ascensão citado em Weller, Main Street
intitulado The Wages of Sin. Trezentas pessoas compareceram.77 Relations (N.T.) dos negros. (N.E.) Amusements, p.169.

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17 Cracker, termo depreciativo usado semana para os filmes da raça, Lee Lawrence, Deep South 46 Chicago Defender, 13/6/1925. de repulsa, pois “ninguém as suas práticas de organização:
no inglês americano para designar mas lamentou que não houvesse Showman [Nova York: Carlton bateu os pés como faziam em Thomas tranquilizou os leitores
homens pobres do Sul dos produto em quantidade suficiente Press, 1962].). 47 Afro-American, 9/3/1923. teatros de negros quando eu afirmando que os filmes, antes
Estados Unidos. (N.T.) (Chicago Defender, 15/12/1917). termino um número. Ninguém de serem projetados no Lincoln
Em 1927, ele sugeriu ao cliente 39 Chicago Defender, 18/2/1920; 48 Lawrence, Deep South Showman, p. gritou ou se regozijou de cima Theatre, onde ele era gerente,
18 Minuta da 17ª Convenção que “exija os filmes da raça nos Billboard, 22/5/1920. 92. abaixo. Ninguém gritou de “eram ‘editados’ para assegurar que
Anual da Liga Nacional de cinemas em que você gasta o seu alegria.” (Ethel Waters [com não contivessem nada que pudesse
Empreendimentos Negros dinheiro”, propondo, porém, com 40 Chicago Defender, 6/5/1922. 49 Managers and Performers Charles Samuels], His Eye Is on acirrar as diferenças raciais.”
[Seventeenth Annual Convention menos otimismo, exibições “ao Thomas regularmente Consolidated Circuit (N.T.) the Sparrow: An Autobiography Clipagem, sem data (c. 1959),
of the National Negro Business menos uma vez ao mês” (Chicago desencorajava as pessoas de [Garden City, N.Y.: Doubleday, cortesia de Pearl W. Thomas. D.
League], 1916, p. 162. Defender, 9/7/1927). abrir um race theater numa 50 Afro-American, 25/8/1922. 1951], p. 174-175). Ireland Thomas disse ao jornalista
cidade com população negra que o seu refrão era “Trabalhe
19 Freeman (Indianapolis), 31/3/1917. 30 Chicago Defender, 19/1/1918; no pequena demais para sustentar tal 51 Descida ao sul profundo, em 56 New York Age, 13/15/1919. duramente, cuide dos seus próprios
anúncio constava que Johnson empreendimento. Ele esclareceu tradução adaptada. (N.T.) negócios, e trabalhe duramente”.
20 New York Age, 7/3/1912. era “apoiado por Eddie Polo”! ao remetente de um lugarejo do 57 Ibid., 14/11/1912.
No ano seguinte (11/10/1919), Mississippi que o cinema branco 52 Clarence Muse e David Arlen, 65 Lawrence, Deep South Showman, p.
21 Ver The Goals of Integration de Chicago Whip anunciou que daquela cidade, atendendo às Way Down South (Hollywood, 58 Jones, Recreation and Amusement 14.
Oscar Handlin, Daedalus 95 Johnson ainda estava “atuando duas raças, funcionava apenas Calif.: David Graham Fischer, 1932), Among Negroes in Washington,
(inverno de 1966): 284, citado por com Eddie Polo em seus grandes três dias por semana. Mesmo pp. 49-50. D.C., p. 116. 66 Afro-American, 11/9/1926; New York
David Gordon Nielson em Black seriados” e continuou explicando quando o homem de cor que Age, 18/9/1920; Pittsburgh Courier,
Ethos: Northern Urban Life and que “Johnson é um ator íntegro pretendia abrir o cinema afirmou 53 Ibid., p. 61. O cinema era de 59 Edwards, The Southern Urban 11/6/1927. Para uma argumentação
Thought, 1890—1930 (Westport, e que, mesmo recebendo papéis ter certeza de que receberia propriedade de Wiley Bailey Negro as a Consumer, p. 184. tocante a propósito das reações
Conn.: Greenwood Press, 1977), difíceis, jamais demonstrou estar apoio da clientela negra, que (branco), líder político e acionista aos filmes, conferir Talking Back de
p. 112–113. em desvantagem. O aspecto claro ansiava por acomodações e da companhia ferroviária L&N 60 Chicago Urban League bell hooks em Discourse 8 (outono-
da pele de Johnson engana muitas tratamento melhores, Thomas Railroad. Em ocasiões especiais, inverno 1986-1987): pp. 123-128.
22 YMCA, sigla que corresponde a pessoas que o acompanham pela insistiu que a população não era o cinema poderia mudar a sua 61 Ver Cohen em Encountering Mass
Young Men’s Christian Association luz das telas, mas ele certamente suficientemente grande para política de distribuição de assentos. Culture at the Grassroots (p. 14) a 67 Colores Main Street. (N.T.)
– Associação Cristã de Moços. tem cor, e nós acreditamos que apoiar um cinema separado. Por exemplo, em 1917, na exibição respeito do alarido e da zombaria
(N.T.) um dia ele terá a chance de (Chicago Defender, 6/6/1925). de Trooper of Troop K, da Lincoln em outros cinema étnicos de 68 Waller, Main Street Amusements,
interpretar um papel estelar.”. Motion Picture Company, em Nova Chicago durante ao anos de 1920. pp. 168-170; Chicago Defender,
23 A Divisão para Estatísticas de 41 O autor emprega crow’s nest Orleans, negros foram autorizados Roy Rosenzweig, escrevendo 30/8/1924.
Emprego [Bureau of Labour 31 O lado direito também apelava: (ninho de corvos em tradução a sentar em qualquer lugar “até acerca do comportamento da
Statistics] citado por Lizabeth “Maravilhosa orquestra de literal), expressão que designa uma hora determinada da noite” clientela de trabalhadores em 69 Chicago Defender, 15/6/1911.
Cohen em Encountering Mass Clarence Jones, a melhor música qualquer plataforma elevada; (clipagem não identificada, sem Worcester, Massachusetts,
Culture at the Grassroots: The do mundo.”, 20/10/1923. neste caso também alude data, Coleção Johnson, UCLA). Em sugere que ele nasceu a partir 70 New York Age, 1/1/1921.
Experience of Chicago Workers in indiretamente às leis raciais de Jim 1918, durante os dois dias em que da tradição do “comportamento
the 1920s; American Quarterly, 41:1 32 Chicago Defender, 6/6/1925. Crow. (N.T.) o filme esteve em cartaz no centro público e recreativo baseado na 71 Billboard, 16/7/1921; (Los Angeles)
(março, 1989): 13. de Denver, o Chicago Defender sociabilidade, na hospitalidade, na Examiner, 23/6/1921.
33 mellerdrammer – termo que 42 As fontes desses anúncios são noticiou “uma nova política” que comunhão, e na informalidade”.
24 Louisville News, 7/4/1917. alude à sátira cômica de teatro as seguintes: clipagem não permitia aos “integrantes da raça (Eight Hours for What We Will: 72 Chicago Defender, 27/12/1924.
dramático do século 19. (N.T.) identificada, sem data, Coleção comprar ingressos para qualquer Workers and Leisure in an Industrial
25 Mary Carbine em The Finest Johnson, UCLA; Afro-American, lugar da casa” (Chicago Defender, City, 1870-1920 [Nova York: 73 Pearl W. Thomas entrevistada
Outside the Loop‘ . . . Motion 34 Half-Century Magazine, junho de 26/5/1922; Chicago Defender; 20/4/1918). Cambridge University Press, 1983], por Louise Spence, 14/4/1995,
Picture Exhibition in Chicago’s Black 1919; Jean Voltaire Smith em Our 18/3/1911; Lexington Leader, p. 205). Charleston, S.C.
Metropolis, 1905–1928; Camera Need for More Films, Hag-Century 30/12/1907, e Lexington Herald, 54 Chicago Whip, 2/12/1922.
Obscura 23 (maio, 1990): 15. Magazine, abril de 1922. 11/12/1907, citado em Waller, 62 Edwards, The Southern Urban 74 New York Age, 15/12/1910.
Main Street Amusements, p. 169 55 Ethel Waters, que começou Negro as a Consumer, p. 184.
26 Norfolk Journal and Guide, 35 Ver o anúncio no New York Age, e 167, respectivamente; Norfolk a carreira de cantora em 1917, 75 Frase de Powell, ibid.
8/9/1923; ver Waller, Main Street 5/1/1911. Journal and Guide, 20/1/1923 e 14/ relata que não entendeu a reação 63 Ver, por exemplo, Chicago
Amusements, p. 161-175 para a 3/1925. A campanha publicitária contida do público quando Defender: 9/8/1924 e 11/4/1925; 76 Chicago Defender, 3/4/1920.
argumentação a respeito dos 36 Waller, Main Street Amusements, do Hippodrome parece não ter ela começou a se apresentar também 25/7/1927.
filmes de brancos serem exibidos p. 52, 166. funcionado; depois de seis meses, no nor te, nos “grandiosos 77 New York Age, 3/3/1910.
nos cinemas de cor em Lexington, apontando pouco apoio da teatros de vaudeville”, nos anos 64 Um artigo no News and Courier,
Ky, entre 1907 e 1916. 37 Chicago Defender, 14/3/1917; freguesia negra, o cinema instituiu 1920. Pensava que o aplauso um jornal branco de Charleston, 78 Smith, Our Need for More Films,
Some Facts Concerning the Lincoln a política de “somente brancos “. que recebia era uma forma também esclarece um pouco abril de 1922; Freeman, 1/4/1916.
27 William H. Jones, Recreation and Motion Picture Company, Inc. and
Amusement Among Negroes in Its Productions, Coleção de Filmes 43 No jargão editorial e jornalístico,
Washington, D.C.: A Sociological Negros de George P. Johnson, boxe refere-se a uma área da
Analysis of the Negro in an Urban Divisão de Coleções Especiais, página especialmente demarcada
Environment (1927; reimpressão, Biblioteca para Pesquisadores por fios e linhas. (N.T.)
Nova York: Negro Universities Charles E. Young, Universidade da
Press, 1970), p. 114. Califórnia, Los Angeles. 44 O coração da humanidade
(Direção de Allen Holubar, 1918).
28 Chicago Defender, 24/1/1925. 38 Wilson continuou durante o (N.T.)
princípio do cinema sonoro,
29 Norfolk Journal and Guide, viajando em um reboque 45 Para ver estes anúncios, consulte
19/1/1924. Já em 1917, S. H. com equipamento de som, a clipagem sem identificação, sem
Dudley pediu aos gerentes acrescentando a Geórgia e a data, Johnson Collection, UCLA;
que separassem uma noite por Flórida em seu itinerário. (Versie Atlanta

98 99
Uma breve
história
dos race movies 1

Jane Gaines

D
e muitas maneiras, William Foster, que possivelmente produziu, escre-
veu, e dirigiu o primeiro filme afro-americano em 1913, traçou o mesmo
caminho clássico de muitos atores e diretores pioneiros, brancos e ne-
gros, chegando ao cinema através do teatro após trabalhar como administrador do
Pekin Theatre de Chicago. Seu primeiro filme, The Railroad Porter (1913), uma
comédia em dois rolos no melhor estilo pastelão da série de filmes dos Keystone
Cops produzida por Mack Sennett, talvez tenha sido o treinamento inicial para sua
futura carreira como produtor de comédias negras para a Pathé em Los Angeles2.
Após sua estreia em Chicago nos cinemas States e Grand, o filme foi bem, e che-
gou a ser exibido junto com o primeiro cinejornal negro que apresentava imagens
de uma parada da YMCA [Associação Cristã de Moços]. Assim como os negros
pioneiros que o sucederam (mais notavelmente Oscar Micheaux), Foster entrou
na indústria com grandes expectativas, e chegou a viajar para Jacksonville, na
Flórida, em 1914, para pesquisar terrenos para a construção de um estúdio e
investigar as possibilidades de distribuição de seu filme com a Kalem, a Lubin e
a Pathé — empresas brancas na época localizadas naquela região. A colaboração
de Foster com o periódico Chicago Defender também ilustra a principal caracte-
rística que distinguia a indústria cinematográfica afro-americana em seu início
— ela divergia do mainstream branco por possuir fortes conexões com jornais
negros de grande circulação. Escrevendo para esses jornais sob o pseudônimo de

101
Juli Jones e depois trabalhando como negociante de vendas do Defender, Foster o fator singular que se interpõe no caminho do sucesso do negro na indús-
encontrava-se em meio às primeiras tentativas de estabelecer veículos de comu- tria cinematográfica — a competição dos brancos pelos mesmos lucros. Mis-
nicação em massa nos crescentes centros urbanos negros.3 teriosamente, Foster descreve o fracasso da iniciativa que ele mesmo defende,
A partir desse contexto, Foster resumiu em um longo artigo para o jornal confirmando a atratividade do mercado de filmes negros para um hipotético
Indianopolis Freeman, publicado em 1913, as aspirações dos negros durante os explorador branco da indústria do entretenimento: “No entanto, depois de um
primeiros anos da nova indústria americana. Os temas por ele abordados sinte- tempo, quando os lucros começarem a aparecer em dígitos mais do que razo-
tizavam os sonhos, bem como as armadilhas a serem enfrentadas pelos negros áveis, ele então perceberá que a cor negra não pega, mas abriga-se na pele
empreendedores que adentravam a ainda pouco explorada indústria cinemato- de uma fonte de lucro.” Apesar de uma aparente “experiência limitada, falta
gráfica. Além disso, Foster começava a esboçar um discurso público sobre a de conhecimento técnico, e deficiência de treinamento nos negócios,” Foster
representação dos negros em filmes de produção branca, um discurso que viria argumenta que indivíduos ou grupos precisam investir tudo o que tiverem em
a definir os termos deste debate durante o resto do século. Em 1913, o trem novos empreendimentos de forma ousada, pois se não o fizerem, os brancos ine-
deixava a estação. E ele indagava: “O que o homem negro está fazendo para vitavelmente “tomarão o lugar e abocanharão outro rico fruto comercial daquilo
estabelecer o seu lugar no mundo do cinema?” Foster já notava que o cinema que deveria ser uma de nossas desejadas árvores de lucro particular.”5 Foster
fazia mais do que qualquer outro meio para despertar a “consciência de raça”. provaria ser profético, e na época do lançamento do musical de King Vidor, Ale-
No entanto (e aqui está o ponto inicial), esse despertar, segundo ele, veio como luia (Hallelujah, 1929), com elenco inteiramente negro, os brancos já haviam
uma reação negativa à forma como o negro era “tradicionalmente retratado”. descoberto que a cultura negra poderia ser entretenimento mainstream.6 Como
Como exemplo desse despertar, Foster faz referência a vários casos de patronos inúmeros estudiosos apontam, havia uma correspondência direta e irrefutável
negros protestando contra imagens caricaturais, forçando exibidores a retirarem entre o desaparecimento dos race movies [na livre tradução filmes de raça] e
filmes de cartaz. Dois anos antes de O nascimento de uma nação (The Birth of a descoberta por parte de Hollywood do mercado afro-americano de cinema,
a Nation, 1915), vemos a crescente indignação em protestos públicos contra a cujo desenvolvimento produziu uma crise dentre os pioneiros dos próprios race
forma com que os brancos retratavam os negros, e vemos também a construção movies no final dos anos 1930.7
de um discurso que tem como ponto de partida a questão das representações Não foi surpreendente então que O nascimento de uma nação tenha confir-
que, como Foster coloca, não estavam “de acordo com a realidade.” mado as duas suposições de empreendedores negros como Foster — a certeza
Então, assim como agora, o antídoto mais popular para interpretações errô- de que a comunidade negra protestaria contra a imagem dos negros na tela dos
neas era substituir representações “falsas” por “verdadeiras”. Se os protestos brancos e de que existiam possibilidades de lucro na indústria cinematográfica,
eram um lado do despertar da consciência de raça, a necessidade dos negros se como ficou evidente pelos milhões de dólares que o filme fazia de bilheteria.
representarem era o outro, pois, como Foster explica: “Ele tem tido fome de ser Ao menos duas empresas imediatamente se beneficiaram do filme de Griffith
ver como ele é.” O homem branco, Foster continua, não o enxergará, e portanto em suas promoções, e significativamente ambas possuíam profissionais negros
não mostrará, a excepcionalidade do homem negro: “Nosso irmão branco nasce como acionistas das empresas. Na cidade de Jersey, no estado de Nova Jersey, a
cego e relutante a enxergar os melhores aspectos e qualidades da vida negra empresa Frederick Douglass Film Company produziu em 1917 o filme The Co-
americana.”4 E aqui o passo mais significativo para os negros foi assumir o desa- lored American Winning His Suit, que apresentava em seu release de imprensa
fio de se representarem da maneira como se enxergavam, de forma a aprofundar a seguinte frase: “O filme tem o objetivo de compensar os efeitos negativos de
ainda mais sua causa. Tão importante quanto a crítica que Foster faz à imagem certos filmes que difamaram o negro e criticaram seus amigos.”8 No entan-
do negro nos filmes brancos, é sua estimativa em relação às chances do negro to, talvez, o esforço mais publicamente visível de “compensar” os efeitos de O
na indústria cinematográfica. Baseado no primeiro instigante retorno de públi- nascimento de uma nação tenha sido a produção do filme The Birth of a Race
co que o filme The Railroad Porter, lançado cinco meses antes, obteve, Foster (1918) pela Photoplay Corporation, um esforço em massa organizado em 1917
prevê que o cinema poderia se tornar uma “grande e lucrativa indústria” para que demandou investimento branco e negro e angariou 7.000 acionistas.9 Mas
os negros. Na realidade, ele afirma que, mais do que qualquer outra indústria, esse esforço louvável foi um fracasso colossal.
o cinema iria produzir “os maiores retornos para vários investimentos negros.” A história do fiasco da produção mestiça Birth of a Race começou com as
Ao mesmo tempo em que prevê lucros, Foster também é preciso ao apontar tentativas de Emmet J. Scott, Chefe de Gabinete de Booker T. Washington, em

102 103
negociar os direitos da autobiografia Up from Slavery, que originalmente deve- deveríamos somar ao nosso panorama histórico as empresas Hunter C. Haynes
ria servir como base para o filme.10 Mas ao longo de dois anos o roteiro sofreu e Peter P. Jones, assim como a Unique Film Company e a The Royal Garden
mudanças abruptas, tendo em diversos momentos pessoas tanto do Tuskegee (Chicago), de Virgil William; a The Leigh Whipper Film Company, Colored Fe-
Institute [Universidade tradicionalmente dirigida à comunidade negra] como da ature Photoplay Inc., e a The Downing Film Company (Nova York); The Booker
NAACP [Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor] trabalhando T. Film Company de Sidney P. Dones e a Rosebud Film Corporation (Los An-
em conjunto com roteiristas brancos. Embora W. E. B. Du Bois tenha eventual- geles); a Peacock Photoplay Company (Danville, Virginia), de Charles West; a
mente abandonado o projeto, ele esteve por algum tempo interessado em lançar o Monumental Pictures Corporation (Washington, D.C.) de William Clifford; e a
filme, tão interessado que chegou a conversar sobre esta possibilidade com Carl Maurice Film Company (Detroit).15
Laemmle, da Universal, junto com membros da NAACP.11 Como editor da revista Talvez o melhor exemplo da ascensão e queda do race cinema, sua promessa
The Crisis, da NAACP, Du Bois não apenas utilizou seus editorais para ajudar e seu declínio, tenha sido a empresa Lincoln Motion Picture Company, lendária
na formulação dos termos do protesto contra O nascimento de uma nação, mas por sua rede de distribuição nacional, bem como por sua estrela negra, Noble
também defendeu a criação de uma tradição de cinema negro.12 É tentador espe- Johnson, cujo sucesso em Hollywood contribuiu de forma direta primeiramente
cular sobre a contribuição de Du Bois para a história do cinema afro-americano, para o triunfo e posteriormente para a morte da jovem empresa. Aberta em Los
mas em retrospecto fica claro que intelecto apenas não bastava. Era necessário Angeles com capital inicial de $75.000 dólares e um pequeno conselho (Noble
capital. Sem financiamento, tanto a produtora de Birth of a Race quanto outras Johnson, diretor da empresa; Clarence Brooks e seu irmão Dudley, atores; Dr. J.
tiveram vida curta. Após a fanfarra da estreia no cinema Blackstone Theatre de Thomas Smith, um rico farmacêutico; e Harry A. Grant, o câmera, único mem-
Chicago em 1919, The Birth of a Race não contou com uma vasta distribuição. bro branco), a Lincoln concluiu em 1916 o filme The Realization of a Negro’s
Depois de The Colored American Winning His Suit, a Frederik Douglass Com- Ambition, estrelando Noble Johnson. A Lincoln Motion Picture Company teve
pany produziu dois outros filmes. The Scapegoat em 1917, e o documentário um frutífero início, quando um acidente afastou um ator de um filme da Lubin
Heroic Negro Soldiers of the World War em 1919, filme que recebeu elogios do Company dirigido por Romaine Fielding que estava sendo rodado no Colorado,
jornal New York Age: “A empresa é chefiada e controlada por negros, e seu prin- em 1914.16 Noble Johnson, um especialista em cavalos, foi contratado para con-
cipal objetivo é apresentar o que há de melhor na vida dos negros, utilizando a duzir uma carruagem em fuga, trabalho que imediatamente lhe rendeu papel
tela como meio de trazer à tona melhores sentimentos entre as raças.”13 como um índio em The Eagle’s Nest (1915) e em outros filmes da empresa, se-
Apesar desse louvor à Frederik Douglass Company, foi a produtora de Birth diada na Filadélfia. Lá ele trabalhou com Fielding, sobre quem escreveu para o
of a Race, mais do que qualquer outra das outras empresas menores, que rece- seu irmão relatando que o diretor “não sabia o que era preconceito racial.” Se
beu atenção histórica, talvez pela forma com que ilustrava a incompatibilidade tivesse permanecido com Fielding, Johnson teria a perspectiva de ser “empur-
entre Hollywood e a comunidade negra, mas possivelmente também pela quan- rado para o topo desta indústria”.
tidade de material de arquivo que permaneceu disponível — material de pro- Rapidamente o multitalentoso Johnson, que desenvolveu sua própria e enge-
moção, além dos próprios filmes.14 Mas essa diferença entre as empresas, além nhosa maquiagem, consolidou seu lugar como ator, com aparições em 34 filmes
da documentação, levanta uma questão sobre o que determina uma produtora entre 1915 e 1918. No entanto, de todos os grupos étnicos que ele interpretou
cinematográfica negra na era do cinema mudo, e, finalmente, uma questão sobre no início de sua carreira, de mexicanos a índios americanos, apenas em poucas
quantos filmes negros produzidos podem ser contabilizados. Os registros dão a oportunidades Johnson interpretou personagens negros, como em 1915 no filme
impressão de que a empresa de Birth of a Race produziu um dos três filmes da The Lion’s Ward, da Universal, e depois como o personagem Uncle Tom em Top-
Frederik Douglass Company. Muitas outras empresas produziram filmes que sy and Eva (1927). Dentre os muitos personagens secundários de Johnson em
podem ou não ter sido de fato lançados, pois era prática padrão de produtoras in- filmes mudos, houve o papel de um condutor de carruagem na parte babilônica
dependentes, tanto brancas quanto negras, anunciar filmes que poderiam nunca do filme Intolerância (Intolerance, 1916), de Griffith; o fato de ter escalado um
conseguir financiamento e consequentemente jamais serem rodados. No entan- ator negro no elenco aparentemente escapou ao diretor.17
to, apenas agora estudiosos estão começando a indagar sobre a dura questão da Nos primeiros anos da Lincoln Motion Pictures, os novos empreendedores
existência de cópias. Dada a dimensão da pesquisa existente, seria no mínimo aproveitaram a notoriedade de Johnson, que depois de estrelar The Realization
sensato contabilizar todas as empresas menores possíveis, o que significa que of a Negro’s Ambition também atuou em The Trooper of Troop K (1916) e The

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Law of Nature (1917), filmes nos quais ele trabalhou com o câmera Harry Gant, tária em um escritório montado em sua própria casa, e como funcionário dos
o único branco da empresa. A popularidade desses três filmes tem muito a ver correios no turno das 15h30 à meia-noite.21
com Johnson, um chamariz de bilheteria na comunidade negra. No entanto, O crescimento do braço de distribuição da Lincoln coincidiu com o surgimento
apesar de o público negro considerá-lo como um deles e inclusive assistir a seus de cinemas pertencentes e administrados por negros país afora, fenômeno que se
filmes feitos pela Lubin e pela Universal, essas empresas não promoviam nem iniciou paralelamente também ao nascimento de bancos e hotéis de propriedade
reconheciam a identidade racial de Johnson. A inexperiente empresa negra não negra. Conhecido no Sul como o “Rei do Cinema”, Frederik K. Watkins, que era
podia prever como essa grande popularidade produziria uma competição entre de Durham, na Carolina do Norte, construiu cinemas nas cidades de Durham,
seus filmes e aqueles dos estúdios brancos. High Point e no sul da Virginia, e foi organizador e presidente da associação Na-
Em 1918, a Universal Pictures colocou condições no contrato de Johnson. cional dos Exibidores Negros da América.22 Esse primeiro despertar do capital
Embora a Lincoln pudesse utilizar o nome ou imagem de Johnson “em material negro seria posteriormente entendido como um fruto ambíguo da segregação.23
publicitário já existente” para os três filmes nos quais ele aparecia, a Lincoln Embora alguns membros empreendedores da classe média negra viessem a lu-
não poderia produzir nova publicidade ou reutilizar publicidade de novas for- crar com a criação em paralelo de instituições brancas e negras, e a sociedade
mas, incluindo “qualquer parte dos negativos ou positivos dos filmes, slides, branca ainda estivesse indecisa sobre o que era mais importante, o lucro ou a
fotos, chapas fotográficas, cortes, anúncios, ou litografias.” Consistente com as segregação racial, no final o capital branco invadiria o mercado negro criado
práticas legais da época, o estúdio exercia poder contratual sobre a reprodução pelos produtores dos race movies.24 No entanto, durante o curto apogeu dos race
de imagem de seus empregados, embora Jesse Rhines argumente que esta ação movies, que atingiu seu pico de produção em 1921, produtoras e exibidores ne-
contra a Lincoln fora desumana, especialmente vinda da Universal, cujo diretor gros trabalhavam juntos com o intuito de organizar algo semelhante ao sistema
Carl Laemmle tinha a reputação de generoso na indústria.18 Efetivamente, era de integração vertical das empresas majors de Hollywood, no qual produtores
uma competição de produtos — Noble Johnson como a estrela dos filmes da tinham garantia automática de exibição nos cinemas do estúdio produtor.25
Lincoln e Noble Johnson como a coestrela do seriado da Universal, The Bull’s Uma pesquisa de marketing conduzida pela Lincoln, que circulou logo an-
Eye (1917). Embora o contrato previsse uma exceção para a promoção daquilo tes de Noble Johnson deixar a empresa, apresentou indicadores de como esse
que já havia sido produzido no âmbito dos três filmes da Lincoln, efetivamente sistema funcionava e confirmou o comprometimento de donos e administrado-
permitindo que a empresa continuasse a distribuir tais filmes, estava implícito res (muitos que na pesquisa se classificaram como sendo “de cor”) em exibir
no contrato que a Universal possuía direitos exclusivos. Noble Johnson demitiu- filmes com elenco inteiramente negro sempre que os encontrassem.26 Embora
se da Lincoln, e os últimos dois filmes de drama da empresa foram A Man’s Duty o cinema Savoy, de Birmingham, no Alabama, de propriedade e administrado
(1919) e By Right of Birth (1921), estrelados por Clarence Brooks.19 por brancos, assim como o Washington Theatre de Okmulgee, em Oklahoma,
Embora a fama e popularidade de Noble Johnson explicassem a atratividade pertencente e administrado por negros, exibissem para o público negro os fil-
dos filmes da Lincoln, sem a rede de distribuição montada pelo irmão mais mes de Noble Johnson produzidos pela Universal, existem relatos de que eles
novo de Noble, George, em Omaha, Nebraska, a Lincoln nunca teria se tornado não conseguiam exibir filmes da Lincoln. Muitos cinemas que exibiram filmes
um fenômeno nacional, pavimentando o caminho para outros, mais notavelmen- da Lincoln relataram que, dos três filmes, The Trooper of Troop K (1917) era o
te Oscar Micheaux. Começando com The Realization of a Negro’s Ambition, melhor, embora o cinema Alamo de Washington D.C., de administração branca,
que ele exibiu primeiro em dois cinemas de proprietários brancos em pequenos tenha listado The Law of Nature (1917) como “um grande chamariz de público”.
bairros negros de Omaha, George Johnson estabeleceu contato com Tony Lan- O cinema Booker Washington na cidade de St. Louis, de 700 lugares e admi-
gston, editor do jornal Chicago Defender, e Romeo Daughterty, editor da revista nistração negra, e o Palace na cidade de Louisville, no estado de Kentucky,
Amsterdam News, de Nova York, e ambos começaram a trabalhar como agentes, com 625 lugares, ficaram impressionados com Troop K, mas o gerente do Palace
negociando nessas grandes cidades.20 George havia se mudado para Omaha mais tarde escreveu para George Johnson dizendo que The Law of Nature “pro-
depois de sair da próspera e negra Muskogee, no estado de Oklahoma, onde pagou-se como incêndio na floresta”.27
comandava a Empresa Imobiliária Johnson, “The Hustling Real Estate Firm”, Esses relatos sobre a percepção dos filmes da Lincoln, progressivamente
vendendo terrenos por correio. Na cidade de Omaha ele dividia seus dias entre mais populares com o público negro e provavelmente com melhoras na qua-
dois trabalhos, distribuição de filmes pela manhã, com a ajuda de uma secre- lidade de produção a cada novo lançamento, sugerem que a empresa estava

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bem posicionada em lucrar, até o ponto em que Noble Johnson se demitiu. No Durante o mesmo período em que a Lincoln Motion Picture Company estava
entanto, a economia da distribuição na época era tal que o sucesso era sempre vivendo o sucesso capitalizado pelo crescimento do público negro urbano, pro-
apenas ilusório. O aluguel diário de sala girava em torno de $25 dólares e a dutores brancos entraram no mercado dos race movies para suprir a demanda de
empresa dividia os lucros de bilheteria em 60-40 com o cinema, e a Lincoln produção. Richard J. Norman começou a empresa Norman Film Manufacturing
estava sempre limitada ao número de cópias disponíveis para distribuição, Company na Flórida em 1921 produzindo The Crimson Skull, rodado em Boley,
aparentemente nunca tendo mais do que cinco. Depois, havia a questão do Oklahoma, outra cidade de negros.32 The Flying Ace (1926), seu filme de ação
número de cinemas que atendiam ao público negro e que de fato reserva- sobre um herói aviador negro, exemplifica a forma como gêneros tradicionais
vam os filmes da Lincoln, para que a empresa pudesse cobrir os custos de eram tomados ou, como costumava-se dizer, “reabitados” por elencos inteira-
produção. Finalmente, embora a criação da rede de distribuição certamente mente negros de tal forma a reescrever o gênero.33 Outra empresa branca sediada
dependesse de publicidade e boas críticas na imprensa negra, dependia in- em Nova York, a Reol Productions, comandada por Robert Levy, tinha ligações
tensamente também do trabalho arriscado daqueles que levavam os filmes de com a empresa negra Lafayette Players, fonte de talentos para produções como
cidade em cidade, mostrando-os para exibidores, que depois os reservariam The Burden of Race (1921) e The Call of His People (1922), ambos dramas sé-
para sessões futuras. 28 rios sobre amores inter-raciais e morte.34 Os filmes produzidos pelas empresas
A necessidade de maiores mercados, capital novo e mais produtos manteve brancas não tiveram sobrevida maior do que aqueles produzidos pelas empresas
George Johnson no negócio e, depois que seu irmão saiu da Lincoln em 1918, negras, com exceção, talvez, daqueles produzidos pela Colored Players, da Fi-
ele continuou a promover a empresa agressivamente e a buscar novos ângulos. ladélfia, e dois dos quatro filmes produzidos por eles entre 1926 e 1929 ainda
Em 1919 a empresa produziu o Lincoln News, uma composição jornalística de existem — Ten Nights in a Barroom (1926) e The Scar of Shame (1929).35
25 cenas incluindo imagens de Kelly Miller, reitor da Universidade de Howard, A Colored Players representa a típica divisão de trabalho entre artistas ne-
assim como trechos sobre a empresa de produtos de cabelo da Madame Walker, gros e brancos na produção dos race films daquele período. Seus filmes, produ-
em Denver. Três anos depois, Harry Gant filmou o 10º Regimento da Cavalaria zidos especificamente para o público negro, eram dirigidos e fotografados por
[regimento negro do exército americano], no Forte Huachuca, no estado do Ari- profissionais brancos e improvisados por atores negros a partir de uma história
zona; e Johnson adquiriu do governo Francês imagens de um cinejornal das tro- escrita pelo produtor branco, David Starkman. Embora o grupo de produção da
pas negras durante a Primeira Guerra Mundial. Com ajuda de Robert L. Vann, Filadélfia fosse comandado por Starkman, a ideia de criar a Colored Players
editor do jornal Pittsburgh Courier e amigo da Lincoln, Johnson publicou em veio originalmente do comediante negro de vaudeville, Sherman H. Dudley Jr.,
sua revista The Competitor uma versão romantizada do quarto longa-metragem que aparece nos créditos de The Scar of Shame como produtor e que foi pre-
da Lincoln, A Man’s Duty. Finalmente, George Johnson escreveu o roteiro de sidente da empresa.36 Starkman, dono de um cinema negro na Filadélfia, não
By Right of Birth (1921), o último filme produzido pela empresa. Nesta época, era mais bem sucedido financeiramente do que a Lincoln Company, e caiu em
Johnson já havia se mudado para Los Angeles, onde ajudou a assegurar apoio dívidas depois de The Scar of Shame.37
para um filme de um rico dentista e supervisionou sua estreia — aconteceram De acordo com os relatos, os race movies eram um negócio instável — um
sessões separadas, uma para negros e uma segunda para brancos, em um cine- novo empreendimento dentro de uma indústria selvagem e indomável já na era
ma em Riverside.29 Um sexto filme da Lincoln, The Heart of a Negro, foi pla- do cinema mudo. Mesmo depois de uma empresa conseguir recursos para co-
nejado para 1923, mas nunca chegou a ser produzido. 30 Contribuindo para as meçar a produção de um filme, através da venda de ações ou por qualquer outra
dificuldades da empresa vieram a epidemia de gripe e a crescente competição maneira mais criativa, e finalmente encontrar meios para pagar pela cópia, ain-
por parte dos produtores brancos. O sinal dos tempos: depois do fim da Lincoln da havia o desafio de conseguir retorno para o investimento através da distribui-
Motion Pictures Company, George Johnson começou a National News Service ção em um ambiente de exibição intensamente competitivo e um tanto obscuro.
(Serviço Nacional de Notícias) de sua própria garagem, mais uma vez sustentan- Richard J. Norman reclamava não apenas da dificuldade que tinha em receber
do dois empregos — na indústria cinematográfica de dia e nos correios à noite. a sua parte da receita da bilheteria dos cinemas, mas também da dificuldade
Até o fim de sua vida, ele fez da prática de colecionar e disseminar informações que teve uma vez em receber dinheiro do seu próprio empregado que negociava
sobre o status e o progresso dos afro-americanos na indústria do entretenimento em nome da Norman Films.38 Uma evidência dessa competitividade que marcou
o seu negócio e também um hobby.31 o mercado no início dos race movies foi o esforço de George P. Johnson em plan-

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tar seu cunhado como espião na organização de Micheaux em Chicago.39 Em re- o espetáculo de forma despretensiosa, pois é um “contar que também é um mos-
trospecto, é um milagre que tantas empresas tenham conseguido erguer capital trar.” 44 Os argumentos resumidos existentes nos revelam, se nada além, que os
inicial para existirem, e que os race movies tenham sido distribuídos e vistos por pioneiros dos race movies previram cenários de sucesso que foram ampliados
públicos negros, especialmente considerando a dimensão da indústria naquele com detalhes e significados na tela grande.
início. Em 1921, conhecido como o ano do ápice, Richard Norman estimou que Para os pioneiros do cinema afro-americano, a oportunidade de contar suas
houvesse apenas 121 cinemas considerados como possíveis exibidores para seus próprias histórias através de filmes, em público, para eles mesmos, mas tam-
race movies, em contraste aos 22.000 cinemas brancos espalhados pelo país.40 bém para um público branco sempre que possível, era a chance de retratarem
A evidência sobre a vitalidade do mercado dos race movies, baseada na impren- a si próprios da maneira como gostariam e enquanto parte de um grupo visível.
sa negra e na memória das empresas, é contraditória e deve ser suplementada Naquele momento e para aquelas pessoas, havia motivação em dobro — de um
por entrevistas com espectadores da época que recordem suas próprias experi- lado, a rejeição da versão branca para o negro americano, e do outro a conso-
ências cinematográficas. Outras pistas podem nos ajudar a avaliar o significado lidação e constituição de uma identidade de raça. Esse duplo deslocamento
desses filmes para os públicos segregados: alguns dos filmes sobreviveram, e da posição de minoria foi a estratégia mais produtiva da história da cultura
existe ainda um outro fragmento dessa indústria “perdida” prontamente dispo- afro-americana. Conceber a afirmação da cultura afro-americana como uma
nível — as sinopses dos argumentos.41 estratégia dupla é insistir na produtividade da negação, a qual jamais devemos
subestimar. “Nós só nos tornamos o que somos pela radical e profunda recusa
do que os outros fizeram de nós”, Jean-Paul Sartre escreveu.45 Com base na tese
Narrativas de elevação (Uplift) sobre a produtividade da recusa, os race movies tratavam da questão de como se
tornar uma “raça” pura e simplesmente por estarem muito conscientes do que
Tudo o que resta dos cinco filmes de drama produzidos pela Lincoln Com- o negro não era.
pany é um rolo de By Right of Birth, uma situação que nos leva a pensar nesses Esse entendimento da produtividade da negação sugere maiores nuances na
como filmes fantasmas, irreversivelmente perdidos.42 Mas apesar de as imagens abordagem de um dos temas mais recorrentes do protesto contra O nascimento
em movimento terem sido destruídas há muito tempo, vestígios das narrativas de uma nação — a acusação de que o homem branco não conhecia o homem
ainda existem, cifrados em argumentos resumidos [plot summary]. Nunca visto negro. Se o homem branco não conhecia ou não podia conhecer, então deveriam
como um formato respeitável, o argumento resumido é desenvolvido para nos fazê-lo conhecer: o ímpeto de narrar é o ímpeto de preencher as lacunas vazias.
oferecer substancialmente menos do que a narrativa da qual ele foi extraído, do Nas respostas negras a O nascimento de uma nação, a narração não oferecia
começo ao fim. O resumo é sempre pensado como uma redução ou diminuição apenas conhecimento; ela tentava corrigir e até retificar. Como Ed Branigan
do trabalho em si, por isso a baixa estima e total indiferença em relação a este escreveu sobre o desequilíbrio de conhecimento no cinema, “A narração vem
formato. No entanto, o argumento resumido possui elementos cruciais em co- a ser necessária quando o conhecimento é distribuído desigualmente. ”46 Nes-
mum com a narrativa da qual é extraído. Na realidade, é uma narrativa reduzida se exemplo histórico, as novas formas de se contar e recontar velhas histórias
de si mesma, com uma concentração “do que acontece,” observando as regras acabaram redistribuindo o conhecimento de maneira significativa, desafiando
de causalidade (acontece isso, depois aquilo) e identificando os agentes causais, aquilo “que era conhecido como verdade” e “do que se pensava como verdade”
bem como a ordem dos eventos. O argumento resumido também é uma pequena sobre a vida negra americana. As narrativas dos race movies se propuseram
aula do que a narrativa literária tanto tenta fazer sem a ajuda de símbolos icô- a constituir, acima de tudo, um mundo que era a antítese do que a América
nicos e apelo à “visão”. Roland Barthes, ao tratar da questão do que a narrativa branca pensava da América negra. Entretanto, consideremos por um momento
literária tenta atingir, argumenta que, ao contrário das suposições populares, o que estava além da cognição dos americanos brancos. O que os pioneiros dos
ela não demonstra nem imita. Pretende muito mais. “A função da narrativa,” race movies poderiam dizer que retificaria a situação? O mundo constituído
ele diz, “não é de ‘representar, ’ é de ‘constituir’ um espetáculo.” 43 Aqui, a pelos race movies era um mundo completamente classe média. O conhecimento
narrativa literária (seja um romance ou um tratado histórico) tenta “constituir” fornecido pelos race movies era o do negro tão bem educado, rico e respeitável
um mundo apenas com palavras, tenta produzir tanto com tão poucos símbolos. quanto o branco. Finalmente, não importava quantos negros eram ou não de
Em contraste, a dramatização altamente icônica do cinema facilmente constitui classe média, porque o importante era desafiar as suposições brancas de que os

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negros não poderiam, em hipótese alguma, ser isso ou aquilo. Enquanto o “progresso racial” sustentava e, de fato, nutria a elite negra,
Como grande parte da produção literária negra da época, os race movies impondo um sistema de classes na comunidade negra, esse mesmo “progresso
eram completamente imbuídos do espírito de elevação — modo como a cons- racial” não poderia representar, ao mesmo tempo, um avanço para todos. E foi
ciência de raça era publicamente articulada na primeira parte do século XX. precisamente quando a elite negra interferiu no caminho para a ascensão das
O conceito de elevação, uma confluência de engrandecimento social e moral, classes baixas que as questões surgiram, questões que produziram anseios e
transmitia a mensagem de que avanços morais significavam avanços sociais, medos administrados pelos race movies. Disfarçadamente, os race movies trata-
como se um fosse decorrência do outro. As narrativas da Lincoln, no melhor ram disso com constrangimento — o mesmo constrangimento que o grupo já em
espírito de elevação, eram contos morais sobre autoconfiança, engenhosidade e ascensão sentia em relação às classes baixas, o mesmo grupo que desesperava
excepcionalidade, nos quais as ambições do herói eram alcançadas pela mesma a classe média, mas do qual ela “precisava”, “necessitava” de forma ideológi-
via em que o preconceito racial era supostamente superado — demonstrando ca. Pois a ideologia da elevação conluiou-se ao racismo no chamado “problema
como o negro poderia ser como o herói branco, ou tão realizado quanto ele. Em negro”, um problema que se tornou concreto e visível a todos no maligno “es-
The Realization of a Negro’s Ambition (1916), o herói é um engenheiro civil, tereótipo” negro. Gaines explica a estereotipagem como uma consequência da
graduado pela Universidade de Tuskegee, que tem um emprego negado em um dupla função da elevação: “Enquanto a ideologia de uma ‘classe melhor’ para
campo de petróleo na Califórnia por conta da sua raça, e então deve provar que os negros desafiava os estereótipos desumanizados, ela também os explorava, e
é digno deste trabalho resgatando a filha branca do dono da empresa petrolífera. nunca conseguia escapar deles por completo — essa versão elitista da ideolo-
A gratidão do dono faz com que ele ganhe o emprego, oferecendo ao herói uma gia da elevação consentia a fórmula racista do ‘problema negro’, projetando em
chance de perfurar a fazenda do seu próprio pai à procura de petróleo. Oportu- outros negros imagens de uma patologia racializada.”48 O “melhoramento” [bet-
nidade que o leva a retornar diretamente a “seu povo,” uma técnica narrativa terment] era, naturalmente, uma das versões mais sedutoras da elevação, difícil
recorrente nos race movies que restringia as ações a um mundo negro, onde de ser criticada pela forma como parecia imaginar o melhoramento universal.
tudo era perdido ou ganho — uma miniatura circunscrita do mundo branco. Difícil era enxergar a maneira com que a classe média negra estava presa aos
Em Realization, o herói deve conquistar também seu espaço na elite negra que seus próprios desejos de melhoramento, um desejo que automaticamente (pelo
trama contra ele, assim como contra a heroína de pele clara, com quem ele, fi- seu alinhamento com as aspirações brancas) significava um distanciamento das
nalmente, se casa após encontrar petróleo na fazenda da família e tornar-se rico. classes baixas, com as quais ela era comparada. Para os nossos propósitos, será
As narrativas da Lincoln continham enigmas sobre a classe média: poderia importante sempre reconhecer esse duplo vínculo social, principalmente por
o herói conseguir um emprego à altura da sua educação? Conseguiria ele ad- encontrar-se por trás dos estereótipos pejorativos.49 Então, sem dispensar suas
ministrar, de forma bem sucedida, a descoberta de petróleo nas terras de sua aspirações, precisamos olhar para a maneira como a elevação se deu, e como
família? A moça aceitaria se casar depois de ele se tornar rico? Mas a quem levou uma classe a se voltar contra a outra durante os anos 1910 e 20.
essas eram perguntas dirigidas? Consistente com estes dilemas, a ideologia da Na narrativa de melhoramento dos race movies, o modelo de “melhora” era
elevação, embora específica da classe média, ressoaria através das classes. No o personagem de classe média que poderia até vir a se casar com alguém da
entanto, esses dilemas apenas ressoaram por conta da mensagem dividida da classe oprimida. Mas notem que a ascensão da elite (um) era sempre previsivel-
elevação. Com suas conotações contraditórias, a mensagem imbuída na ideolo- mente aos custos da classe problema (outro), e já que a medida do sucesso era
gia da elevação era, na realidade, duas, e cada uma delas poderia ser compre- sempre baseada na distância entre um e outro, a hierarquia racial era invaria-
endida como sendo dirigida a um segmento social diferente. Como Kevin Gaines velmente afirmada. Pelo menos um personagem, o infeliz, permanecia embaixo,
identifica, as conotações tinham a ver, por um lado, com as generosas e elevadas como forma de retratar uma baixa da elevação. O romance Birthright, de T.
aspirações sociais que advinham da emancipação, e, por outro, com uma aspi- S. Stribling, popular na comunidade negra, ilustra o princípio desta distância
ração consideravelmente menos generosa e genuína que limitava o sucesso a entre as classes que permite a ascensão do herói, neste caso um graduado de
poucos. O programa contraditório imaginado por esses poucos poderia ter sido Harvard que retorna para sua retrógrada cidade natal e é capaz de salvar ape-
articulado, segundo Gaines, como sendo apenas uma “melhora para o negro nas uma mulher da ignorância e da desordem da comunidade negra afogada
através da estratificação de classes como progresso racial.” 47 Infelizmente, a na lama da corrupção branca.50 Ele deve casar-se com uma mulher que está
estratégia de progresso de uma raça anularia a da outra. grávida de outro homem e levá-la para Boston com ele, admitindo neste ato que

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não foi capaz de salvar toda a cidade com sua educação. Na teoria de “uma para forçá-la a trabalhar de “isca” num bar. Pega no fogo cruzado entre Eddie
coisa de cada vez,” já que não foi possível para o herói salvar a cidade, ele pôde e Alvin, que tenta prevenir o rapto, Louise é feriada, e segundo a manchete de
ao menos salvar sua própria família com seu diploma de Harvard. Um diploma um jornal do filme “sua beleza é para sempre danificada.” Alvin, mesmo sendo
de Harvard é então colocado em contraponto à educação de toda uma cidade. inocente, é preso pelo crime, e Louise cai numa vida de prostituição e jogatina.
Birthright é uma narrativa sobre o arquétipo do orgulho racial, e agradou tanto Quando Alvin foge da prisão e os dois se reencontram, ele já está noivo da filha
Micheaux que ele a adaptou duas vezes para o cinema, produzindo uma versão do poderoso advogado negro Hathaway (Lawrence Chenault), que frequenta o
muda em 1924 e com som em 1938. bar de Eddie e acaba se tornando amante de Louise. Louise tenta reconquistar
Outro exemplo de narrativa de melhoramento, o altamente popular The Tro- Alvin, mas já quase no final do filme, ao perceber que falhou, ela se envenena,
oper of Troop K (1916), da Lincoln, coloca o personagem “Shiftless Joe”, in- morrendo sozinha no apartamento vizinho ao bar. A carta de suicídio de Loui-
terpretado por Noble Johnson, em contraste com dois personagens de classe se, na qual ela confessa que foi a arma de Eddie e não a de Alvin que a feriu,
média, a refinada Clara e seu pretendente. Representando duas abordagens ao simbolicamente liberta Alvin para casar-se com Alice Hathaway, que, embora
“problema negro” — rejeição e caridade —, o filme desmerece o pretendente não tenha a pele mais clara do que a já clara Louise, pertence à mesma classe
que rejeita Joe, ao contrário de Clara, que acredita nele. Clara é na realidade social que seu noivo.51
creditada pelo eventual sucesso de Joe, condecorado e promovido por um ato de Qual seria então a classe responsável pela trágica morte de Louise? Na ver-
bravura — o resgate de seu capitão. No entanto, haja vista o pano de fundo da são do conflito social proferida por The Scar of Shame, a classe mais alta e
vitória histórica do 10o Regimento negro contra as tropas mexicanas em Carri- a mais baixa da sociedade negra, como tenho argumentado, são responsáveis
zal, pode-se supor que a reforma de Joe tenha sido fruto da disciplina militar e pelas reputações mais baixas, maus tratos e degradação da mulher negra. Essa
não da crença de Clara. Mas a questão abordada pelo filme é o quanto a classe interpretação de uma dupla responsabilidade também estimula a descoberta de
média poderia fazer para ajudar a resolver o problema de todos os “Shiftless uma segunda vítima — Alvin (cuja senhoria, Sra. Lucretia Green, espera que
Joes.” A lição vem na forma da escolha de Clara, que recusa o pretendente que se torne “o mais importante compositor da nossa raça”). Alvin está preso como
não foi capaz de enxergar o potencial de Joe, e escolhe Joe, que é o “melhor” consequência direta da ação negativa do elemento negro mais desonrado — Ed-
entre os dois por ter se permitido “melhorar.” die, Spike, e até mesmo Louise (já que ela está com eles). A confissão de Louise
De muitas maneiras, The Scar of Shame (1929), da Colored Players da Fi- revela não apenas que foi o tiro da arma de Eddie que a feriu, mas que Eddie e
ladélfia, teve as mesmas dificuldades ao lidar com o “problema negro” que o Spike a proibiram de falar a verdade no momento do julgamento de Alvin.
Trooper of Troop K da Lincoln. O “problema negro” devia ser visto como redimí- A estrutura de The Scar of Shame apoia também a culpabilidade da classe alta,
vel, ou seja, digno de redenção por um negro respeitável, um personagem sin- assim como a da classe baixa. Tramando para separar Alvin e Louise, Eddie e Spike
gular na sua capacidade de enxergar o valor do outro. O “problema” então era enviam um telegrama falso a Alvin dizendo que sua mãe está seriamente doente,
emoldurado como uma dificuldade que deveria ser enfrentada por um indivíduo arrastando desta forma Louise de volta para a sarjeta. Se a classe baixa a força a
afetuoso e preocupado que sozinho resgata o negro classe baixa. No entanto, em se prostituir, a classe aristocrática contribui para a degradação da mulher negra de
The Scar of Shame, filme no qual a tentativa de elevação é representada numa outra maneira. A chegada do falso telegrama leva Alvin a confessar para Louise que
cativante cena de resgate, a classe alta entra em conflito direto com a classe sua mãe na realidade nunca soube do casamento. (Título da cartela: “Casta é uma
baixa, um conflito que não é resolvido, como veremos, por motivos ideológicos. das coisas que minha mãe leva mais a sério. Você não pertence ao nosso grupo.”) A
Mas que motivos são esses? aristocracia negra e as camadas mais pobres parecem trabalhar em conjunto. Essa
A vítima central da história, Louise Howard (interpretada por Lucia Lynn caracterização das duas classes nos extremos do espectro social corresponde a um
Moses), é molestada por seu imprestável pai, Spike, e resgatada por Alvin tipo de bode expiatório visto em comunidades negras da época. Enquanto as classes
Hillyard, um aspirante a pianista e compositor (Harry Henderson). Hillyard baixas eram vistas arrastando outros para baixo, as classes altas eram vistas erguen-
casa-se com Louise para protegê-la dos ataques de seu pai e com isso a resgata do barreiras impossíveis para outros negros, ao mesmo tempo que escalavam sobre
da condição de classe baixa. Mas a mãe classe alta de Alvin não é informada eles.52 Podemos presumir, a partir da visão sobre as classes alta e baixa, que o filme
sobre a união, e Louise sente uma fisgada de sua reprovação. Logo após o ca- está posicionando o público no grupo não implicado na história — a classe média.53
samento, o pai, Spike, e seu amigo, Eddie Black, planejam sequestrar Louise A classe alta ou aristocrática possuía um elaborado raciocínio para manter-

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se distinta dos níveis mais baixos, engendrando certa hostilidade. Para justifi- lado e todas as outras do lado oposto. Curiosamente, como veremos, os race
car esse separatismo, aqueles que se consideravam superiores acreditavam que movies tratavam simultaneamente de separação e assimilação, e os “homens da
inspirariam as camadas mais baixas a melhorarem servindo como exemplo. O raça” que os fizeram, os mais dedicados ao avanço, encontravam-se geralmente
autor de Skecthes of Higher Class of Colored Society in Philadelphia escreve: divididos em relação aos seus objetivos.
“se os membros virtuosos e exemplares da sociedade não se mantiverem dis- A hierarquia de classes na comunidade negra se torna relevante aqui, e não
tantes do depravado e do imprestável, não servirão de exemplo para o próximo apenas por ter servido de subtexto para vários filmes produzidos para o público
em seu esforço em ser considerado respeitável e igual. Ao nos associarmos com negro na era do cinema mudo. Esse distinto sistema de classes poderia ser com-
estas pessoas, não só consentimos seus atos, mas nos degradamos até o seu preendido como um sistema abaixo da linha da cor, porém dentro de um sistema
nível, e seremos julgados de acordo.”54 Portanto, a estratégia da classe alta maior que abrangia a linha da cor. Talvez a explicação de Adrienne Rich sobre
presumia que uma aceitação completa dependeria da comprovação de que os a relação entre raças e classes nos ajude a entender o funcionamento deste
negros poderiam ser iguais aos brancos em seus gostos culturais e conquistas, duplo sistema quando diz que as “classes se dividem pela cor, e se reconsti-
justificando sua existência em um círculo social tão fechado e intensamente tuem dentro de linhas de cor.”56 Com base nesse duplo sistema, as elites negras
dedicado a aspirar “coisas mais refinadas.” encontravam-se em dois lugares, que correspondiam a dois posicionamentos de
Algumas famílias da elite, embora sensíveis à possibilidade de serem con- classe concomitantes, um empilhado no outro. O privilégio de classe de que as
fundidas com a classe de seus serventes, não viam nada de inconsistente em elites usufruíam na comunidade negra era automaticamente revogado quando
empregar outro negro como servente, um fenômeno representado em The Scar de encontro com a sociedade branca que, alheia, jamais reconhecia tal circuns-
of Shame na cena em que o mordomo anuncia para Alvin que sua esnobe mãe tância. Então, como Kevin Gaines descreve, a elite encontrava-se na posição
não está em casa. Esse mordomo representava um fenômeno da Filadélfia — contraditória de ser ao mesmo tempo uma “classe social aspirante” e uma “casta
serventes negros contratados pelas elites, ou “elights”, como por vezes eram racialmente subordinada.”57
denominadas em referência à cor da pele daqueles que historicamente assegu- O sistema de classes da comunidade negra nos anos 1920 passava por um
raram seu status. Em seu estudo sobre a Filadélfia na virada do século, W. E. processo de reconstituição e realinhamento. O modelo do final do século XIX,
B. Du Bois descobriu que das 277 famílias de classe alta estudadas por ele, 52 que concentrava poucos no topo e 80 a 90% embaixo, dava lugar a uma con-
tinham empregados. Embora a convicção de Du Bois fosse de que a classe alta figuração que permitia uma maior camada do meio.58 E os race movies, que
deveria ajudar as classes mais baixas a ascenderem, ele entendia que este grupo se pronunciavam sobre, pelos e para os negros de classe média que viriam a
era economicamente muito instável e protecionista para assim fazê-lo. Como ele existir, contribuíram para esta reconfiguração ao retratar tal classe. Pode-se
explica, “a classe que deveria liderar recusou-se a liderar qualquer movimento dizer também que, à medida que ao levantar capital para produzirem seus pri-
racial, por isso traçou uma linha da mesma cor contra a qual protesta.”55 E meiros longas-metragens, os empreendedores negros estavam, ao mesmo tempo,
escolher uma posição contrária à discriminação racial seria um ato de distin- sustentando suas próprias posições como classe média. No entanto, a questão
guir-se ainda mais dos brancos, o que os afastaria da pequena, mas idealizada, da classe social não constitui por si só a sociologia do início da cinematografia
vantagem da qual gozavam. Esta parca vantagem imaginária era exatamente o negra, pois fatores regionais podem ter sido significantes, particularmente, pela
que hipoteticamente poderia erguer o todo. relação que possuíam com a oferta de oportunidades. Embora a Costa Leste
Du Bois nos ajuda a fazer uma distinção entre a elite negra, como retratada tenha produzido atividades importantes, mais notavelmente a empresa Frede-
em The Scar of Shame, e a classe negra autodidata que produzia os race movies, rick Douglass Company, em Nova Jersey, iniciada por profissionais negros, a
com o primeiro grupo hesitante em traçar a linha divisória da cor, e o segun- região Centro-Oeste foi o “berço” mais expressivo de pioneiros do cinema ne-
do anunciando esta linha através da produção dos race movies. O dilema dos gro. Chicago, por exemplo, pôde contabilizar, antes de 1927, um maior número
produtores dos race movies era que, enquanto tentavam sem sucesso agendar de negócios cinematográficos negros do que qualquer outra cidade americana.
sessões de seus filmes em cinemas brancos e convencer distribuidores brancos De William A. Foster em 1913 a Oscar Micheaux, cujo primeiro escritório de
a negociarem seus filmes, o produto que eles próprios apresentavam “traçava produção foi estabelecido lá por volta de 1918, Chicago era o centro urbano que
uma linha” entre brancos e negros. O elenco inteiramente negro era em si uma oferecia as condições adequadas — uma forte imprensa negra, capital negro, e
alegoria da regra separatista de enfileiramento de pessoas — uma raça de um um público negro crescente para o entretenimento de massa.59 Destacar Chica-

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go, no entanto, não significa ignorar a conexão que havia entre o Centro-Oeste Nova York, os pioneiros dos race movies eram em grande parte estranhos à
e o Oeste, conexão esta estabelecida por Micheaux quando saiu da cidade para nova classe média, e nós o interpretaríamos mal se tentássemos desassociá-los
adquirir propriedade em Dakota do Sul, onde escreveu os primeiros romances por completo do universo do comércio ambulante e da tradição do ballyhoo
que serviriam de base para o seu primeiro filme, The Homesteader (1919). Mi- [formato de propaganda sensacionalista]. Corremos o risco especialmente de
cheaux foi uma dramática exceção à teoria de Houston Baker de que “a história descaracterizar o paradoxal Micheaux, que George Johnson descreveu como
da América negra não é a história dos pioneiros que perseveraram frente às sendo “um grande malandro inescrupuloso” ao mesmo tempo em que o elogia-
dificuldades do Oeste movidos pela promessa de grande riqueza.”60 va como sendo “o homem que produziu mais e melhores filmes negros do que
A perspectiva do Oeste, como Micheaux caracterizou em seus romances, era qualquer outro.”64 Johnson acompanhou o máximo que pôde de Omaha, em
a de que não havia nada além de espaço aberto para a oportunidade — terra Nebraska, e depois de Los Angeles, as circunstâncias de Micheaux, tecendo
“livre” para o proprietário negro e poucos, ou nenhum, branco a se avistar por comentários críticos sobre seus filmes e notando sua volátil ascensão e queda,
milhas e milhas. A discriminação era diluída pela distância entre as proprieda- contabilizando seus muitos lançamentos cinematográficos (vinte entre 1918 e
des e, uma vez vencidos os elementos, tudo parecia possível.61 Noble e George 1927), tabulando suas finanças e registrando suas dificuldades para manter-se
Johnson, nascidos no Colorado e criados por um pai que ganhava a vida trei- de pé. Mas, embora George Johnson fosse agressivo na promoção da Lincoln
nando cavalos, poderiam facilmente ser compreendidos a partir da postura do Motion Pictures e em expandir seus mercados, ele não teve coragem de asso-
negro do Oeste, sobre a qual precisaríamos obter mais informações históricas.62 ciar-se ao persuasivo Micheaux quando este o convidou para trabalhar como seu
Havia algo de audacioso em começar uma empresa de cinema tal qual os irmãos gerente de distribuição, e aparentemente preferiu a segurança do seu trabalho
Johnson fizeram em 1916, em assumir os riscos contra as probabilidades, em nos correios dos Estados Unidos.65
imaginar a comunidade negra espalhada por toda a nação em uma rede conec- A partir dos escritos de Johnson, temos uma percepção da forma como os
tada por ferrovias, telegramas e correios. Era importante pensar numa escala pioneiros negros se misturaram, trapacearam e competiram ferozmente entre
de milhares de pessoas dispostas a pagar para assistir a produções negras de si. Mas não era apenas a forma como exerciam seu negócio que os distanciava
entretenimento na tela grande. Da perspectiva da indústria do entretenimento, da aristocracia negra, bem como de muitos outros da classe média negra —
este salto foi um pouco menos extraordinário. Dos sucessos de vaudeville de era o fato de produzirem um tipo de entretenimento popular desdenhado pelas
Bert Williams e de espetáculos itinerantes anteriores ao cinema a grupos tea- igrejas. Naturalmente, o tipo de entretenimento condenável pelos puristas foi
trais negros, como o lendário Lafayette Players, e ao Pekin Theatre de Chicago, abordado pelos pioneiros dos race movies com um tipo de zelo missionário, com
a transição para o cinema estava ao alcance.63 Para rodar um filme, era neces- a convicção de que os filmes de produção negra poderiam servir de exemplo
sário um roteiro, alguns atores, e capital o suficiente para alugar um pacote oferecendo um ótimo serviço moral. No caso de Micheaux não foram só os perso-
Kodak que incluía câmera, iluminação e um operador. Um estúdio nem sempre nagens de seus filmes que avançaram como exemplo, mas sua própria vida, que
era absolutamente necessário. Embora Oscar Micheaux viesse a utilizar depois ele dirigia como exemplo para um público de membros da raça que ficavam para
o velho estúdio Selig, em Chicago, nesta época os cineastas costumavam pegar trás. Em seu romance The Conquest, mais um de seus personagens autobio-
casas emprestadas ou rodar em locações externas. Mas dar um salto de um gráficos declara: “Uma das maiores tarefas da minha vida tem sido convencer
mundo alheio ao teatro para o mundo do cinema era muito maior. O que havia de certa classe pertencente à minha própria raça de que um homem de cor pode
novo em relação a Oscar Micheaux e George P. Johnson é que eles saíram de um ser qualquer coisa.”66
mundo nada teatral para pensarem além da concepção de um filme, na promo-
ção, distribuição e exibição de entretenimento negro de massa. Eles anteviram
um cinema de distribuição nacional que não apenas promoveria a consciência O “grande malandro inescrupuloso”
de raça para o bem dos negros americanos, mas que seria altamente popular e
bem recebido pelo público pretendido. Com base nos escritos de Johnson também colhemos algo sobre o homem
E é no que tange esta promoção e recepção que encontramos comparações que foi Micheaux, ainda que a versão apresentada deva ser compreendida à luz
entre os race movies e o movimento literário Harlem Renaissance [Renascen- da competição que acabo de mencionar e, portanto, através do filtro do desejo
ça do Harlem] do mesmo período. Em contraste com a elite negra cultural de descarado de George Johnson de marcar seu nome numa história da qual temia

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ser excluído. De certa forma, é irônico que Johnson tenha escrito no mínimo Conquest, publicado em 1913, e The Forged Note, publicado dois anos depois.71
cinco breves relatos sobre a vida de Micheaux insistindo nessas suas “bios” O livro a que Johnson se refere é o The Homesteader de 1917, romance se-
que a história do cineasta era digna de ser publicada como livro, apesar de até miautobiográfico que agora percebemos ser claramente uma nova versão de The
hoje nenhuma biografia definitiva de Micheaux ter sido feita.67 Estes pequenos Conquest.72 Enquanto Micheaux escrevia a história de sua própria vida na pra-
relatos, no entanto, também não nos aproximam de uma real biografia, espe- daria e a publicaria no mínimo três vezes, sendo a versão final The Wind from
cialmente porque as cinco versões da vida e carreira de Micheaux nos revelam Nowhere, George Johnson também tentaria escrever e reescrever a história de
muito mais sobre George Johnson, o funcionário dos correios que tanto desejava Micheaux, mas aparentemente sem utilizar os romances, confiando apenas nas
envolver-se nos negócios da emergente classe média e que terminou por ser não correspondências e na sua memória nebulosa.73 Ele declara, no mínimo duas
só um dos capitães da indústria dos race movies, mas virou também seu arqui- vezes, que Micheaux provavelmente substituiu pessoas brancas por persona-
vista. As biografias de Micheaux por Johnson revelam sua lembrança seletiva e gens negros em The Homesteader, uma observação reveladora que sugere que
que provavelmente ele trabalhou versões diferentes da história ao longo do tem- na realidade as recordações de Johnson vinham do filme, que possuía elenco
po, talvez depois de aposentado. Embora as biografias não possuam data, pelo inteiramente negro, e não do romance, que de fato possuía muitos personagens
menos uma faz referência à última produção conhecida de Micheaux, de 1948; brancos e no qual os personagens negros, com exceção da heroína de pele clara,
ao longo dos anos, embora a ênfase tenha mudado, parte da fraseologia perma- eram em sua maioria os heróis da família.
neceu a mesma, sugerindo que Johnson fixou aspectos específicos da história de A memória de George Johnson é ainda mais reveladora pela forma como
Micheaux em sua memória, mas que possivelmente também recorria sempre aos este escrevia o sobrenome de Oscar Micheaux. Nas correspondências do perí-
mesmos velhos manuscritos. Percebemos ainda nitidamente que Johnson volta odo de 1918, época em que mantinha maior contato com o cineasta, Johnson
às correspondências e telegramas trocados entre Micheaux e ele, não só porque geralmente escrevia seu nome incorretamente, utilizando “z” ao invés de “x”
os cita, mas porque as correspondências contradizem alguns dos próprios rela- no mínimo três vezes, e em outros momentos usando a versão “Mitcheaux.”
tos de Johnson, o que faz parecer que ele recorre a uma memória inundada por Anos depois Johnson não apenas somaria um “t”, mas por vezes suprimiria o
diferentes versões dos eventos ocorridos. “a,” num anglicismo do nome francês “Mitcheux,” outra indicação de que o
Por vezes, parece que Johnson está ensaiando uma história que ele anseia funcionário dos correios aposentado estava esquecendo alguns dos detalhes
contar a um jornalista, ou ouvinte, alguém que poderia escrever a história de originais. Acrescentar alguns detalhes à história e deixar outros de fora (como
vida do homem que ele evoca como “um dos personagens mais coloridos da a inclusão do “t” e a subtração do “a”) era uma forma de suavizar a dura
história do cinema negro,” mas “cuja história, embora não tão brilhante assim, memória de Johnson, que, ao mencionar estes eventos periodicamente, compa-
é no mínimo interessante e valiosa o suficiente para não ser ignorada.”68 Embora rava a curta vida da Lincoln Company com a grande empresa de Micheaux.74
em um relato Johnson se refira a Micheaux como o “melhor produtor do mundo Talvez o melhor indício de que Johnson não estava só tendo dificuldades em
e de todos os produtores do cinema negro,” em outro ele é meramente “um autor recordar, mas também em lidar com o relativo sucesso da Micheaux Company,
muito bom e um grande produtor de filmes negros,” e em outro ainda diz que tenha sido a sua dificuldade em relatar o número de filmes produzidos por seu
“produziu mais e melhores filmes negros do que qualquer outro e muitos a par- rival, estimativas que variavam tremendamente de “25 ou mais” a “por volta
tir de livros que ele próprio escreveu e publicou.”69 Os relatos são consistentes de 30”, e que em um mesmo relato chegam a “mais que 40” e “30 ou mais.”
apenas em afirmar que Micheaux nasceu em 1884 na cidade de Metropolis, Devemos atentar para o fato de que George Johnson era um cronista invetera-
em Illinois, e que aos vinte e cinco anos adquiriu uma fazenda expropriada na do, criador de listas e colecionador, que listava os filmes nos quais seu irmão
Dakota do Sul, e, de acordo com um dos relatos, o grande terreno tinha 800 Noble e outros atores negros apareciam, e que chegou até a fazer uma lista-
hectares e ficava na Reserva Rosebud.70 Embora Johnson não explique o porquê gem dos filmes de Micheaux com as datas de lançamento, o que confirma que
de Micheaux ter abandonado a lavoura, ele cita sua passagem pela cidade de ele continuou a acompanhar a carreira de Micheaux inclusive na era do som.
Sioux, em Iowa, em 1915, e repete a lenda de que o escritor caminhava pelos Johnson se aproxima da estimativa de outros estudiosos quando fala em “mais
estados de Dakota do Sul, Iowa e Nebraska vendendo seu livro para fazendeiros que 40”, mas o número exato de filmes produzidos por Micheaux continua uma
brancos. De acordo com Johnson, é como se houvesse apenas um livro, embora questão em aberto.75
nessa época Micheaux já estivesse vendendo seus dois primeiros romances, The Analisando em retrospecto a fascinante vida de Micheaux e a sua própria

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como um funcionário dos correios que teve um breve encontro com algo impor- entre Micheaux, a Lincoln e o editor do Pittsburgh Courier, Robert L. Vann, que
tante, George Johnson finalmente descobre um momento que pertence a ele, Vann não confiava em George Johnson e que ele, mais do que todos, precisava
colocando-se no lançamento da carreira de Micheaux, o que o permite afirmar que Micheaux fosse bem nos negócios.84 Mas quaisquer que tenham sido os mo-
“Eu fui responsável por isso.”76 E ele reescreve tanto sobre esse momento, mais tivos, o fato é que essa segunda tentativa de uma colaboração Lincoln-Micheaux
do que qualquer outro, e com tanta frequência que, talvez, tenha se tornado nunca se materializou.85
cada vez mais difícil para Johnson entender claramente o que de fato aconteceu, Dada a importância dessas negociações e considerando que George Johnson
como Micheaux chegou a negociar com a Lincoln Company a produção de seu documentou e até escreveu sobre esse episódio (“A Million Dollar Negro Film
terceiro livro, e como o romance The Homesteader chegou a Omaha.77 Deal Fell Through”) como um capítulo à parte na história do cinema negro inde-
Relatos da negociação entre Micheaux e a Lincoln Company se tornaram pendente, é curioso que isso não tenha sido incluído em seus relatos biográficos.
lendas, e todos focam na suposta insistência de Micheaux em ser ele próprio Ao contrário, em suas histórias Johnson enfatiza as vicissitudes financeiras da
o diretor de The Homesteader.78 No entanto, nem as correspondências nem as operação de Micheaux. Relata como Micheaux decidiu levantar capital para
várias “memórias” que George Johnson escreveu sobre Micheaux apoiam esta produzir sozinho, depois que não havia mais possibilidade de negociação para
versão, uma vez que indicam que um encontro cordial aconteceu entre os dois que a Lincoln filmasse seu romance, recorrendo a fazendeiros brancos que ha-
em Omaha no final do mês de maio de 1918. Embora Micheaux tenha sugerido viam comprado seu livro e vendendo-lhes cotas de $100 dólares em ações da
em uma carta, após a reunião de Omaha, que ele poderia ser útil na produção sua empresa de produção. Mais tarde, Johnson recordaria suas próprias tenta-
do filme e inclusive atuar no papel de N. Justine McCarthy, o vilão, a carta é tivas de localizar esses acionistas, que ele diz nunca terem conseguido nenhum
em grande parte focada na sua preocupação com a adaptação do romance.79 dividendo, mas cujos investimentos fizeram com que Micheaux conseguisse boa
Inclusive, na carta que supostamente contém a tal “oferta” de Micheaux à Lin- parte do seu orçamento de $15.000 dólares para dar início às filmagens.86
coln, ele escreve quase que exclusivamente sobre suas preocupações acerca dos É extraordinário que, menos de um ano depois de suas primeiras conversas
royalties do livro, o que fazia sentido dada a experiência de Micheaux com o com Johnson, Micheaux já tivesse produzido e dirigido sua própria versão de
mercado editorial e o fato de ele ainda ser, naquela época, um completo novato The Homesteader, e Johnson, conhecendo as dificuldades do mercado, parecia
na indústria cinematográfica.80 Nas “memórias” que possuem o maior relato de certa forma incrédulo perante a sorte do iniciante. O que também impres-
sobre as negociações, George Johnson é vago sobre o que ficou acordado, e não sionou Johnson foi a rapidez com que a empresa de Micheaux cresceu, inicial-
é claro se foi a Lincoln ou Micheaux que por fim desistiu: “como ele não sabia mente como a editora Western Book Supply Company na cidade de Sioux, Iowa,
nada sobre a produção de filmes e não possuía nenhum contato em Los Angeles mudando-se para Chicago em 1920, onde seu irmão, Swam Micheaux, juntou-se
ou nenhum dinheiro, não conseguimos chegar a um acordo. Oferecemos que a ele já como gerente da nova empresa, a Micheaux Film Corporation. John-
ele viesse a Los Angeles para ajudar como consultor.”81 George Johnson talvez son depois escreveria animadas crônicas sobre o término da empresa. Quatro
tenha chegado mais perto de compreender o que de fato aconteceu quando, em das cinco versões de Johnson sobre a carreira de Micheaux fazem referência
retrospecto, começa a pensar que o mais importante das negociações foram à declaração de falência de fevereiro de 1928, e três relatam que na época a
as ideias transmitidas para Micheaux, mais do que qualquer outra coisa. Ele empresa tinha dívidas de $7.837 dólares, enquanto seus bens valiam apenas
conclui: “Mas tudo isso fez com que Micheaux fosse mordido pelo bichinho do $1.400 dólares.
cinema, e então ele decidiu que não precisava da Lincoln.”82 Mas ao se ater tanto à sua própria versão de Micheaux (“um falador,”“um
Oscar Micheaux e George Johnson tentariam outra negociação depois da grande malando inescrupuloso,” e “um manipulador esperto”), Johnson tal-
produção de The Homesteader. Mais especificamente por volta de 1920, quan- vez tenha deixado de notar sua complexidade, relatando apenas uma primei-
do Micheaux já estava produzindo seu terceiro e quarto longas-metragens, The ra fração de uma carreira de impressionantes três décadas, em comparação
Brute (1920) e O símbolo do inconquistado (The Symbol of the, 1921), e lhe aos curtos cinco anos durante os quais a Lincoln Company atuou produzindo e
ofereceu o cargo de gerente de distribuição, com um salário anual de $1.800 distribuindo filmes. Outros eram contrários à visão de Johnson, em particular
dólares, mas Johnson recusou, como mencionado anteriormente, embora ainda Lorenzo Tucker, que achava que Micheaux era generoso e justo, especialmente
defendesse uma fusão entre a Lincoln e Micheaux, convencido de que este pre- com os seus atores.87 A própria versão de Micheaux para a falência de 1928 foi
cisava da expertise da Lincoln.83 Thomas Cripps conclui, a partir das discussões utilizada como base para Wages of Sin (1929), filme no qual ele conta a história

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da traição e corrupção de um irmão, geralmente compreendida como a sua visão Um dos dons de Micheaux era que ele não tinha só uma boa lábia, mas tam-
sobre a parceria com Swan Micheaux em seus primeiros anos em Chicago. O bém tinha poder de convencimento através da escrita, provando, como ele mes-
fato de Johnson nunca ter feito menção às versões de Micheaux sobre si próprio mo dizia, que “um negro poderia ser qualquer coisa.” E no folheto para coletar
existentes nas personas dos heróis de quatro dos seus sete romances é, no mí- fundos para The Homesteader, ele transmite confiança a respeito de seu em-
nimo, bastante revelador.88 preendimento, prevendo um padrão de lançamento nos moldes de Hollywood,
Existe ainda outro ângulo na caracterização de Micheaux como um “grande à maneira de filmes como Quo Vadis (1913) e O nascimento de uma nação,
malandro inescrupuloso” que George Johnson não enxerga. Ele nos permite nos “maiores cinemas” das “maiores cidades” e “sob a direção pessoal de Mr.
entender Micheaux como um showman, e é preciso que se diga que o novato Micheaux.”92 Depois da estreia de The Homesteader no cinema Vendome em
adentrava uma tradição e aprendia sobre a indústria do cinema de forma tão Chicago para um grande e entusiasmado público, ele criou uma carta para exi-
hábil quanto provavelmente aprendera a ser fazendeiro. A tradição na qual ele bidores citando O. C. Hammond, o dono do cinema, sobre as longas filas, os
entrava era aquela que recompensava a fala rápida e o exagero, e na qual a ma- 5.700 ingressos pagos, o aumento de 10% nos valores, os cinco dias de sessões
nipulação sagaz era um inegável requisito para o sucesso. Localizar Micheaux extras, e o engajamento do Cinema Pickford, também de Hammond. Desejan-
nesta tradição nos ajuda a apreciar não apenas a particularidade do seu legado, do que exibidores reservassem seu “robusto especial de 8.200 pés”, Micheaux
mas suas especificidades históricas. Para Micheaux, seu papel como exibidor de descreve o interesse no filme como sendo “tão intenso que mantém as pessoas
filmes e assessor de imprensa tinha a ver com a venerável tradição do Showman presas de uma forma que não é possível escapar até a palavra ‘fim’.” Traçando
americano, que descendia do promotor de espetáculos de circo P. T. Barnum.89 sua intenção de reservar o filme em todas as cidades importantes de todos os
Seu talento para exageros, espetáculos públicos, e para criar discursos popula- territórios e de promovê-lo “conspicuamente” na imprensa local, ele chegou a se
res floreados é evidente desde a publicidade de The Homesteader, que George voluntariar para enviar anúncios por correio para os residentes das comunida-
Johnson narra que foi anunciado como “um poderoso drama sobre o grande des, contanto que recebesse uma cópia da listagem telefônica de cada cidade.93
Noroeste Americano no qual encontra-se entranhada a mais sutil questão ame- A eficácia da circular de The Homesteader enviada a exibidores em março
ricana — a questão racial.”90 de 1919 entrou nas crônicas de George Johnson, que na época monitorava Mi-
cheaux como seu competidor, já que a Lincoln Company ainda permaneceria
O próprio material de promoção de Micheaux, da nos negócios por mais ou menos um ano. Que outra razão haveria para Johnson
nova Micheaux Book and Film Company, já apresen- registrar a “rota de cinemas” de The Homesteader? A primeira data listada por
tava suas credenciais como publicitário, como fica evi- Johnson foi a de 12 de maio de 1919, no Cinema Ruby na cidade de Louisvil-
dente no folheto feito para investidores em potencial le, Kentucky, onde os ingressos custavam trinta centavos incluindo a taxa de
em que ele destacava sua experiência vendendo seus guerra, e onde também incluíram “música extra”. Em junho de 1919, Micheaux
romances para livrarias, bibliotecas e indivíduos. Até somou à lista o cinema Pike, na cidade de Mobile, no Alabama, e o Pekin de
os seus “pitchings” para grandes investidores brancos Montgomery, além de outros cinemas nas cidades de Alexandria, Mobile, Shre-
eram desenvolvidos de maneira a capturar e garantir, veport e Baton Rouge, bem como o cinema Temple, em Nova Orleans, e uma
um poder de persuasão que possibilitava a todos ima- única sessão em Pensacola, na Flórida. The Homesteader passou dois dias no
ginarem de forma grandiosa o projeto, sempre utilizan- cinema Globe Theatre, em Cleveland, no mês de setembro, com cartões e slides
do sua retórica expansiva do “nunca antes”: nas portas, mas sem pôsteres ou fotos como era costume das publicidades mais
avançadas, observa Johnson. Ele também recorda que o aluguel da sala nesta
Outra vantagem de THE HOMESTEADER é que, além de falar com o públi- época era de $50 dólares por dia e o ingresso custava quinze centavos para a
co em geral, que nunca antes viu um filme em que a raça negra e o herói negro matinê e vinte centavos para as sessões noturnas. Em Washington D.C., o filme
é retratado assim, e poderá, portanto, apreciar o filme como uma diversão e um foi exibido no Foraker, onde a entrada custava vinte e cinco centavos mais a
novo interesse, é o fato de que doze milhões de negros terão pela primeira vez a taxa de guerra, e também no cinema Hiawatha no outono de 1919, retornando
oportunidade de ver sua própria raça no papel da estrela. A frequência do público, à cidade em 1o de março de 1920 para uma sessão no Howard Theatre. Reser-
que pode ser esperado em grandes números, significará por si só uma fortuna.91 vado para mais uma exibição no Cinema Lafayette, em Nova York, pelo gerente

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e crítico de cinema Lester Walton, a cópia já apresentava rasgos de acordo com tancia a produção de significado da noção autoritária de autoria e a aproxima do
algumas anotações de Johnson, informação que ele provavelmente colheu de público, que por sua vez vai de encontro ao texto, utilizando seus próprios me-
algum de seus espiões. De maio a julho de 1920 The Homesteader fez outra tur- canismos e interpretando-o em seus próprios termos.95 De certa forma, este foco
nê pelo sul, passando pelo Tennessee no cinema Bijou de Nashville, no cinema no público é uma tentativa de democratizar o significado, destituindo o autor.96
Metropolis de Memphis, no Grand de Chattanooga, e no Estado do Alabama O desafio para o autorismo, seja ele através da afirmação de um gênero ou de
passou no cinema Star de Florence, no Fields de Sheffield, no Sykes de Decatur, uma ideologia, é geralmente o retorno do texto para o público. Isso se torna ex-
e retornou aos cinemas Pike em Mobile e Pekin em Montgomery.94 tremamente importante para as nossas discussões sobre os race movies, que se
A primeira iniciativa cinematográfica de Oscar Micheaux foi um sólido su- não um gênero, foram, no mínimo, um ciclo de filmes em grande parte definidos
cesso em grande parte por conta de um empreendedorismo genial que era evi- pelo próprio público e para o qual foram criados e exclusivamente distribuídos.
dente desde as primeiras estratégias de promoção de seus livros, e que já eram O caso de Oscar Micheaux representa uma oportunidade para se desafiar não só
na realidade uma brilhante maneira de fazer um uso produtivo do seu fracasso o elitismo da teoria do autor ao focar a atenção no público dos race movies, mas
como fazendeiro. Os romances contavam a dramática luta do autor contra as uma chance de redefinir o produtor cinematográfico enquanto um instigador e
dificuldades ambientais, que finalmente o levaram a perder sua fazenda. Mas, um realizador, alguém que não apenas planeja o trabalho, mas orquestra a sua
como discutirei mais à frente, outras forças também intervieram para afetar a recepção. E nesse modo de intervir na cultura popular, Micheaux tem tanto em
bilheteria socialmente sensível com a qual Micheaux se deparou ao tentar exibir comum com P. T. Barnum quanto com D. W. Griffith, e por isso minha ênfase
seu segundo filme, o controverso Dentro de nossas portas (Within Our Gates, em seu papel como showman.97
1920), cujo lançamento ele começou a preparar no final de 1919, seguindo o Micheaux irrefutavelmente ultrapassou Griffith nas áreas de distribuição
triunfo de The Homesteader. Se aqui enfatizo mais as habilidades de Micheaux e exploração publicitária. Embora Griffith tenha feito aparições públicas com
como showman e produtor do que como diretor, é porque uma grande parcela seus filmes, não há evidências de que ele tenha carregado pessoalmente as
do seu talento foi investido nestes aspectos da indústria que entendemos como cópias dos filmes de cinema em cinema, como Micheaux fez com seu primeiro
o trabalho de produção. Embora na história do cinema a função de autor tenha filme, fazendo a rota de cinemas literalmente a pé, assegurando assim a fa-
sido atribuída àqueles diretores que podiam se responsabilizar por muitos as- mosa rede de distribuição dos race movies também em casas segregadas do
pectos de um filme finalizado, de forma análoga a uma obra de arte, também Leste, do Sul e do Meio-Oeste. Enquanto Griffith escrevia artigos pensados
existe uma noção já bem estabelecida dos problemas inerentes a esta analogia para a imprensa e talvez até tenha sido responsável por certos aspectos das
entre um diretor de cinema e um artista ou autor no sentido tradicional, pelo campanhas publicitárias de seus filmes na época da Biograph, a divisão de
fato de o cinema ser produzido industrialmente e não criado individualmente. trabalho em Hollywood era tamanha que a assessoria de imprensa e a área
Já que há sempre uma questão sobre o nível de envolvimento dos diretores que de publicidade estavam cada vez mais distantes da produção. Ao que tudo
trabalham com outras equipes criativas dentro do sistema de estúdios, a de- indica, Micheaux era o seu próprio assessor de imprensa, utilizando o termo
signação inadequada de autor era historicamente atribuída a poucos diretores “exploração” [exploitation] de forma inteligente na sua campanha de promoção
como D. W. Griffith, Charles Chaplin e Buster Keaton que, por trabalharem de The Homesteader para investidores em potencial, e especialmente com seus
nos primeiros anos do cinema, eram de fato responsáveis por mais aspectos da primeiros filmes ao escrever anúncios de “alarde” que geravam comoção acer-
produção, incluindo a própria produção, roteiro, atuação e edição, além da di- ca dos novos lançamentos.98
reção. O autor, como nas belas artes e na literatura, também era compreendido A publicidade do filme The Brute que aparecia na imprensa negra, por
em termos da consistência temática de sua obra, bem como por seus signos ou exemplo, o vendia como sendo “A Maior Realização da Raça no Cinema!” E
assinaturas estilísticas. Baseado nesse entendimento geral do que é um autor, esta era “A HISTÓRIA DE UMA LINDA E DOCE MENINA NAS GARRAS
não há dúvidas de que Oscar Micheaux se qualifica, e provavelmente estudos DO ARDILOSO APOSTADOR E CHEFE DO SUBMUNDO BULL M’GEE,
futuros irão designá-lo como um grande autor e ainda identificarão os requisitos CUJO CREDO É: ‘PARA FAZER UMA MULHER TE AMAR, É PRECISO
estilísticos e padrões temáticos de sua obra. DERRUBÁ-LA.’” E em negrito e letras maiúsculas, como num discurso ensaia-
Mas a teoria do autor é tida por alguns como sendo politicamente falida, e do de picadeiro de circo, o anúncio profere: “VEJAM A GRANDE LUTA DO
um dos mais importantes questionamentos vem da teoria da recepção, que dis- CAMPEONATO EM DEZESSETE ROUNDS ENTRE DOIS DOS MAIORES

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PESOS-PESADOS DO MUNDO.” Como se essa propaganda fosse insuficien- livre tradução “Quando entra-se em contato com o negro, nunca se volta atrás.”)
te, a próxima frase gritava: “Suspense, Intriga, Romance, Emoção,” seguida que “é seguro dizer que depois de assistir a um filme de Micheaux, a ‘perfei-
de “8.000 PÉS DE INTENSO E CATIVANTE INTERESSE, COM EVELYN ção’ de Hollywood nunca parecerá mais a mesma.”104 Mas a discussão crítica
PREER, SAM LANGFORD, A. B. DECOMATHIERRE & UM ELENCO DE contemporânea tem sido mal-assombrada ainda pela afiada crítica da primeira
ESTRELAS.” A retórica de Micheaux o localiza na tradição do ballyhoo, um imprensa negra, na qual Theophilus Lewis condenou o filme de Micheaux A
marcante estilo americano de comunicação que cresceu com o surgimento do Daughter of the Congo (1930), um de seus últimos da fase muda: “De fato, o
público em massa e desenvolveu-se nas possibilidades de maior atração de es- filme é ruim do ponto de vista de qualquer análise, da continuidade ininteligível
pectadores na busca por maiores lucros, uma enormidade nos lucros que era às legendas das cartelas, o que é um crime.”105
sinônimo de uma enormidade de espectadores. Por um tempo, parecia que a primeira onda de reavaliação, com exceção de
Dispensada como sendo ainda mais óbvia e rude do que as formas populares Hoberman, era deferida da imprensa negra, o que pode explicar a reticência em
que promove, essa retórica da exploração publicitária é historicamente derru- relação ao talento de Micheaux que Ron Green encontra em Thomas Cripps.106
bada em virtude do teatro popular, da literatura e do cinema. A exploração é ge- Como um exemplo ainda melhor desse fenômeno, Daniel Leab, escrevendo an-
ralmente considerada apenas propaganda, uma abordagem que falha em com- tes da redescoberta de dois dos três filmes mudos ainda existentes de Micheaux,
preendê-la historicamente ou a enxergar sua amplitude e maiores aspirações, conclui que seus “filmes mudos não podem ser considerados excepcionais.”107
porque a exploração publicitária não se limitava apenas às formas impressas Seria difícil também ignorar a “Carta Aberta a Oscar Micheaux” dos afro-a-
de promoção, utilizava truques de publicidade, aparições públicas, tie-ups99, mericanos de Baltimore em 1933 que, embora reconhecessem suas conquistas,
assim como os panfletos e pôsteres. Como já defini em outro texto, a exploração foram duros em relação a sua “maneira desajeitada e confusa de dirigir” e o
“ultrapassa a forma unilateral de transmissão da propaganda e da publicidade, aconselharam a “esquecer por um tempo que senhores de cor podem ir para o
pois incita uma recepção inflada ao mesmo tempo em que transmite uma men- Oeste, ou Norte... tornarem-se milionários... e retornarem a Chicago e ao Har-
sagem.”100 Etimologicamente, a exploração pode ser compreendida como tendo lem para gastar dinheiro e fazer baderna.”108 Charlene Regester, no entanto, nos
dois polos que correspondem à conquista do objetivo que sempre parece ser aconselha a considerar a recepção de Micheaux na imprensa negra americana
anulado frente à falta de recursos e ao descuido do oportunismo. Em resumo, em duas fases, 1918-1929 e 1930-1948, que correspondem aproximadamente
esta é a dualidade de Micheaux, o prolixo e astuto promoter cuja imaginação aos períodos dos filmes mudos e sonoros.109 Isso significa, entre outras coisas,
gigante do que ele poderia ser provou ser uma conquista para toda uma raça. que a economia da captação de som precisaria ser considerada na avaliação da
E quando comparado ao cauteloso e literal George Johnson, Micheaux, com estética de Micheaux, já que o seus baixos orçamentos para a utilização desta
seu estilo exibicionista e hiperbólico, pode ser colocado do lado dos duvidosos. nova tecnologia comprometeram sua mensagem na era do som.
Assim como o seu modo por vezes melodramático de trabalho, a hipérbole de Mas talvez o ângulo mais importante a ser considerado em relação à recep-
Micheaux era plena e vazia, profunda e rasa, características que identifico na ção crítica de Micheaux, junto com o seu trabalho, seja o ângulo político. Um
sua retórica visual e no seu “hype” linguístico.101 Este é o modo no qual operam público negro cada vez mais politizado pode ter achado seus filmes um tanto
a grande mentira e a farsa, o modo de funcionamento que encontra seu ideal de problemáticos pela maneira como estes retravam os negros, uma maneira que
expressão no risco e no exagero. não podia mais ser tolerada. O auge do descontentamento com Micheaux foi o
A avaliação de Oscar Micheaux e sua obra assemelha-se a uma montanha boicote da Liga Jovem Comunista (Young Communist Leage) de 1938 ao filme
-russa crítica. No auge, seu contemporâneo Richard J. Norman o chamou de Os filhos adotivos de Deus (God’s Step Children), que envolveu um piquete no
“gênio” numa carta ao mesmo tempo em que dizia que seu “gênio o levou para Cinema RKO durante sua estreia no Harlem. Embora seja importante notar que
o mau caminho.”102 Anos depois, ele foi saudado pelo popular crítico James o boicote foi organizado como parte dos esforços do partido em recrutar mem-
Hoberman, que durante sua redescoberta, entre 1975 e 1994, inteligentemente bros negros, o boicote também atingiu outro acorde quando a porta-voz Beatrice
escreveu sobre o problema de localizar Micheaux em relação a Hollywood.103 Goodjoe reproduziu a crítica da imprensa negra declarando que o filme “cria
Mais recentemente, depois de descobrir The Veiled Aristrocrats (1932), uma uma falsa separação dos negros em grupos mais claros e mais escuros.” Para os
refilmagem do filme mudo The House Behind the Cedars (1924/25), Hoberman comunistas, essa segregação reproduzia a tática discriminatória dos emprega-
comentou (ecoando o ditado “Once you’ve had a Black you never go back” — na dores brancos, que estavam comprometendo a campanha trabalhista do Harlem

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12 Cripps, Slow Fade to Black, p. coestrelando filmes da Universal para o capital negro. Ver Robert H.
dividindo os trabalhadores e os colocando uns contra os outros com base na cor 68-69; Crisis (novembro de 1915), como The Lure of the circus (1919) e Kinzer e Edward Sagarin, The Negro
p. 36; Crisis (dezembro de 1915), p. The Adventures of Robinson Crusoe in American Business: The Conflict
de suas peles.110 O boicote do partido comunista, originalmente uma tentativa de 76-77. (1922, no qual ele interpretou between Separation and Integration
Sexta-Feira), bem como a popular (New York: Greenberg, 1950);
utilizar os filmes de Micheaux para avançar um posicionamento político na luta 13 Sampson, Blacks in Black and série The Bull’s Eye (1918). Passados John Sibley Butler, Entrepreneurship
trabalhista, tornou-se parte importante da lenda de Micheaux, surgindo a cada White, p. 182. os anos, após o advento do som and Self-Help among Black
e até 1950, Johnson apareceu Americans (New York: State
reavaliação e colorindo a reputação do diretor em partes da comunidade negra, 14 A Library of Congress possui em cerca de 150 filmes. “Noble University of New York Press,
cópias incompletas de The Birth Johnson’s Entrance into Films,” 1991). Manning Marable, How
tornando extremamente difícil de se construir, em vários momentos, uma real of a Race em 16mm e 35mm. Seis manuscrito em GPJC; Cripps, Capitalism Underdeveloped Black
avaliação dos race movies, que eram tudo menos um lamento sobre o retrato de dos doze rolos originais podem
ser vistos na Motion Picture,
Slow Fade to Black, p. 130-131;
Sampson, Blacks in Black and
America (Cambridge, Mass.: South
End Press, 1983). Dan Streible, em
uma raça. São muitas as maneiras de se contornar essa crítica, e enquanto um Broadcasting, and Record Sound White, p. 529-533. Sobre o casting “The Harlem Theater: Black Film
Division Archive em Washington, de D. W. Griffith, Clyde Taylor, Exhibition in Austin, Texas: 1920-
crítico argumenta que os retratos de Micheaux são na realidade críticas, outro D.C. Para mais informações sobre em In the Mask of Art: Breaking 1973,” em Black American Cinema,
o acervo da Library of Congress, the Aesthetic Contract – Film and ed. Manthia Diawara (New York:
afirma que ele reagia contra o “Negro Vitoriano” que precisava de imagens ver The African American Mosaic Literature (Bloomington: Indiana Routledge, 1993), p. 232, discute
positivas de si como “propaganda” para a raça.111 Eu acrescentaria a observa- (Washington D.C.: The Library of University Press, 1998), p. 114, nos de que maneira o Harlem Theater
Congress, 1993), p. 205-211. Ver lembra que a desculpa do diretor foi uma “criação da segregação”.
ção de que Micheaux não gostaria de ter suas mãos atadas a nenhuma linha também Phyllis R. Klotman, Frame ao usar brancos no papel de negros
by Frame, p. 48. em O nascimento de uma nação 24 Para um relato sobre as
partidária positivista de raça. Mas, finalmente, é momento de entendermos o era que ele não conseguia achar dificuldades desses primeiros
movimento dos race movies desde o seu início, já que ele foi por tanto tempo 15 Ver Sampson, Blacks in Black
and White, capítulo 5, para um
“atores negros qualificados” nas
redondezas de Los Angeles.
cinemas de se manterem
em atividade em Lexington,
obscurecido pelos acontecimentos do final da carreira de Michaeux. Vinte anos olhar mais compreensível e bem- Kentucky, entre 1907 e 1916, e,
organizado dessas produtoras, 18 Jesse Rhines, Black Film/White especialmente, sobre a maneira
antes do boicote do partido comunista, os pioneiros dos race movies definitiva- embora os pequenos esboços aqui Money (New Brunswick, N.J.: como eram atormentados
devam ser considerados como um Rutgers University Press, 1996), pela competição branca, ver
mente já estavam reagindo aos insultos das primeiras comédias negras, mas convite a pesquisas futuras. p. 23. Para uma breve história da Gregory A. Waller, Main Street
também faziam parte de uma ampla tentativa cultural de dar uma nova “cara à Lincoln Motion Picture Company, Amusements: Moviesand Commercial
16 “Noble Johnson”, manuscrito ver Sampson, Blacks in Black and Entertainment in a Southern City,
raça,” e por isso suas aspirações possuíam motivações políticas surpreendente- datilografado (disponível em White, capítulo 3, especialmente 1896-1930 (Washington, D.C.:
microfilm) na George P. Jonhson sobre a saída de Noble, p. 132-138; Smithsonian Institution Press,
mente diferentes. Collection, Department of Special Cripps, Slow Fade to Black, p. 1995), capítulo 7.
Collections, Young Research 75-89. James Snead, em White
Library, University of California, Screens, Black images (New York: 25 Sobre integração vertical, ver
Los Angeles, doravante GPJC. O Routledge, 1994), p. 111, nota que Tino Balio, ed., The American Film
manuscrito escrito pelo irmão tanto William Foster como Noble Industry (Madison: University of
1 Trecho selecionado do capítulo de The Railroad Porter como sendo em “Crossed Over and Can’t Get de Noble, George, refere-se Johnson deixaram suas produtoras Wisconsin Press, 1985).
“Race Movies: All-Black Everthing”, de 1913. Cripps confirma que Foster Black: The Crisis of 1937–39,” Black à contusão de um dos atores para Hollywood, um exemplo
em Fire and Desire: Mixed Race era um jornalista esportivo para o Film Review 7, nº 4 (1993): p. 22–27 durante as filmagens de The precoce de “transição” de carreira 26 Mary Carbine, em “The Finest
Movies in the Silent Era (Chicago: Chicago Defender e diz que Juli Jones e 18. Eagle’s Nest (1914). Noble Johnson antes que o fenômeno se tornasse outside the Loop’: Motion Picture
University of Chicago Press, 2001). era o nome que ele utilizava como se candidatou ao papel e foi generalizado como é hoje. Exhibition in Chicago’s Black
Direitos cedidos pela autora e pela ator. A certa altura, ele entrou 8 Sampson, Blacks in Black and contratado para interpretar um Metropolis, 1905-1928,” em Silent
editora. Traduzido do inglês por no negócio musical e chegou até White, p. 181. índio. Mais recentemente, Cecilia 19 “Minutes,” Lincoln Motion Picture Film, ed. Richard Abel (New
Rasmussen, em “Brothers Became Company, Inc., 22 de abril de 1919, Brunswick, N. J.: Rutgers University
Fabiana Comparato. (N.E.) mesmo a vender café haitiano. Slow
Film Pioneers,” Los Angeles Times, e um fragmento do contrato de Press, 1996), p. 242, diz que
Fade to Black, p. 79-80. 9 Ibid., p. 208.
13 de setembro de 1998, explica Noble Johnson, ambos na GPJC. “apesar do suporte a proprietários
2 Cripps, Slow Fade to Black, p.
o estouro da carreira de Johnson Ver meu Contested Culture: The de cinema negros pela imprensa,
79-80. Cripps também diz que 4 The Indianapolis Freeman, 20 de 10 Cripps, Slow Fade to Black, p.
como consequência da ajuda de Image, the Voice, and the Law a maior parte dos cinemas das
Foster “começou em 1912” e que dezembro de 1913, como citado 72–75; Thomas Cripps, “The Birth
Lon Chaney, seu antigo colega (Chapel Hill: University of North comunidades pertenciam e eram
tentou levantar fundos junto ao por Sampson em Blacks in Black of a Race Company: An Early Stride
de classe em Colorado Springs. Carolina Press, 1991), capítulo 5, operados por brancos — o que
NAACP em 1929, depois de se and White, p. 174-175. toward a Black Cinema,” Journal of
Ainda que o manuscrito biográfico sobre os contratos das estrelas de não necessariamente valia para
mudar para Los Angeles (p. 179). Negro History (janeiro de 1934), p.
mencione que Lon Chaney e Noble cinema. os empregados.” Ver Cripps, Slow
Henry T. Sampson, em Blacks 5 Sampson, ibid., p. 174-175. 28-37. Thomas Cripps, “The Birth of
Johnson frequentaram a mesma Fade to Black, p. 80, para a pesquisa
in Black and White, afirma que a Race: A Lost Film Rediscovered
Stepin Fetchit estrelou os curtas 6 Ver Cripps, capítulo 10, “Black in Texas,” Texas Humanist (março/ escola, Romaine Fielding e a Lubin 20 Sampson, Blacks in Black and feita pela Lincoln, que ele chama
Company são creditadas pelo início White, p. 138, 140. de “uma tática imaginativa” que
musicais que Foster produziu lá Music, White Movies”, em Slow Fade abril de 1983), p. 10-11.
de Noble na atividade. A Lubin “ultrapassava a Hollywood branca
(p. 176). De acordo com Cripps, to Black, e Arthur Knight, capítulo 4,
a Pathé contratou Foster para “Black Folk sold Hollywood’s Black 11 Cripps, Slow Fade to Black, p. 71; Company, fundada na Filadélfia 21 Muskogee, Oklahoma flyer na em sua busca por um perfil de
em 1897, possuía uma companhia GPJC. audiência.”
produzir uma série com os artistas Cast Musicals”, em Dis-integrating Thomas Cripps, “The Making of
de vaudeville Buck e Bubbles (p. the Musical Performance and The Birth of a Race: The Emerging de atores que eram empregados
em produções de elenco negro, 22 Sampson, Blacks in Black and 27 Palace Theatre para George P.
224). Ver Mark A. Reid, Redefining American Musical Film, 1927-1959 Politics of Identity in Silent Movies,”
mas essas produções eram White, p. 172. Johnson, 31 de maio de 1919, em
Black Film (Berkeley: University of (Durham: Duke University Press, em In The Birth of Whiteness:
extremamente insultantes para GPJC.
California Press, 1993), p. 7-9. ainda a ser lançado). Race and the Emergence of U.S.
Cinema, ed. Daniel Bernardi (New os negros. Ver Sampson, Blacks in 23 Ironicamente, durante o
Black and White, p. 28. breve período de tempo da 28 Cripps, Slow Fade to Black, p. 80,
3 Sampson, em Blacks in Black and 7 Um dos mais fortes depoimentos Brunswick, N. J.: Rutgers University
Reconstrução até os anos 1920, a 87. Thomas Cripps, em “Movies in
White, p. 172-176, data a produção sobre isso é o de Clyde Taylor Press, 1996).
17 Noble continuou sua carreira segregação criou oportunidades the Ghetto, B.P. (Before Poitier),”

130 131
Negro Digest (Fevereiro de 1969), que produzia comédias que o apêndice em Bowser, Gaines, e Hill and Wang, 1977), p. 123, 124 Hiatus — A Great Negro Middle anos atrás, esse ensaio era solitário
p. 24, afirma que no final dos anos ofendiam tanto as audiências que Musser, eds., Oscar Micheaux and (ênfase minha). Class,” Southern Workman 58 na época de sua publicação por
1920 se estimava que havia 700 os cinemas negros frequentemente His Circle. (Dezembro de 1929), p. 53, sobre seu foco na separação histórica
teatros de gueto nos Estados se recusavam a agendar seus filmes. 44 Ver Tom Gunning, D. W. Griffith este fenômeno. entre mulheres brancas e negras e
Unidos. Cripps acrescenta que o Sampson, Blacks in Black and White, 37 Tanto Oscar Micheaux quanto and the Origins of American no silêncio que rondava a vida das
crescimento foi tal que, em 1927, p. 200, 204. Cripps, em Slow Fade Richard J. Norman partilhavam de Narrative Film (Urbana: University 53 Thomas Cripps, “Response,” mulheres negras e das lésbicas.
a chegada de três novos cinemas to Black, chama Pollard de “o um olhar cético sobre a empresa of Illinois Press, 1991), p. 17. Cinema Journal 27, nº 2 (inverno
em Chicago adicionaram um total patrão negro” e contrasta-o com o de Starkman, com Micheaux de 1988), p. 58, sugere que a 57 Kevin Gaines, Uplifting the Race, p.
de 8.000 lugares. Contrastar “empreendedor honesto” William escrevendo a Norman que os 45 Jean-Paul Sartre, “Introduction” estratégia de David Starkman xiv.
esse painel com as estimativas de Foster. Sobre a Reol, ver Sampson, investidores esperavam lucrar para Frantz Fanon, The Wretched ao produzir The Scar of Shame
Richard J. Norman em 1921 e 1922. Blacks in Black and White, 214-215. irreais $175.000 a $200.000 of the Earth, trans. Constance era atrair um novo público de 58 Nielson, Black Ethos, p. 51, 53, 61,
Ele escreve em 1922 que “há cerca dólares por filme. Bernstein e Farrington (New York: Grove classe média para seu cinema. 76.
de 354 cinemas negros nos Estados 35 Os dois outros filmes listados por White, “Scratching Around,” p. Weidenfeld, 1963), p. 17. Na realidade reformulando-o
Unidos (muitos agora fechados) Sampson como sendo produzidos 123, nota 48. Anos mais tarde, para alcançar um novo grupo. O 59 Ver Carbine, “The Finest Outside
espalhados em 28 estados. 85% pela Colored Players da Filadélfia Leonora Starkman jogou alguma 46 Ed Branigan, Narrative argumento de Cripps depende de the Loop,” p. 9-41. Charlene
desses cinemas [exibindo race films] são A Prince of His Race (1926) e luz sobre as motivações de seu Comprehension and Film (New vermos o público negro do cinema Regester, em “Stepin Fetchit: The
tinham, porém, uma capacidade Children of Fate (1928). pai em uma entrevista ao dizer o York: Routledge, 1992), p. 66. desta época principalmente como Man, the Image, and the African
média de 250. Nós conseguimos seguinte: “Meu pai era um homem a “ralé”, ao invés dos “respeitáveis” American Press,” Film History 6, nº
fazer negócios com 86 desses 354 36 Cripps, Slow Fade to Black, p. em cruzada. Ninguém interpretava 47 Kevin K. Gaines, Uplifting the Race negros cuja religião e senso 4 (inverno de 1994), p. 504, nos
cinemas, isso devido à oposição 195-198; Thomas Cripps, Black pessoas negras como heróis ou (Chapel Hill: University of North de propriedade estavam em conta que nos anos 1920, Fetchit,
e à pequena ciumeira existente Film as a Genre (Bloomington: heroínas. Isso era adequado à sua Carolina Press, 1996), p. xv. desacordo com a baixa reputação cujo nome real era Lincoln Perry,
entre os cinemas negros.” Indiana University Press, 1978), ética. Ele achava que os negros dos filmes. Nessa análise, The trabalhava como repórter de
Matthew Bernstein e Dana F. p. 67; Stephen Zito, “The Black não deveriam ser pisados, e que 48 Ibid., p. 74-75. Scar of Shame era um esforço de entretenimento para o Chicago
White, “‘Scratching Around’ in Film Experience,” American Film enquanto ele ganhasse dinheiro converter para o cinema os negros Defender.
a ‘Fit of Insanity’: The Norman Heritage: Impressions from the ele poderia glorificar sua posição. 49 Paul Gilroy, Black Atlantic: respeitáveis que se mudavam
Film Manufacturing Company American Film Institute Archives, ed. “Sampson, Blacks in Black and Modernity and Double Consciousness para a vizinhança de um dos 60 Houston Baker, Long Black Song:
and The Race Movies Business Tom Shales e Kevin Brownlow et White, p. 218. (Cambridge: Harvard University teatros brancos de Starkman. Essays in Black American Literature
in the 1920s,” Griffithiana 62/63 al. (Washington D.C.: Acropolis Press, 1993), p. 236, nota 26, De certa forma, esse esforço é and Culture (Charlottesville:
(1998), p. 103. Um ano antes, Books, 1972), p. 65. Em “‘Race 38 Bernstein e White, “Scratching atualiza esse dilema da classe reminiscente de uma estratégia University Press of Virginia, 1972),
Norman escreveu para a atriz Movies’ as Voices of Black Around,” p. 107. média negra fazendo referência maior por parte dos operadores p. 4.
negra Anita Bush que “há apenas Bourgeoisie: The Scar of Shame,” a Trey Ellis, “The New Black de nickelodeons no período entre
121 salas que podem usar produto em Representing Blackness: Issues 39 Homer Goins para George P. Aesthetic,” Callaloo (1989): p. 1907 e 1909 para atrair clientes de 61 M. K. Johnson, “‘Stranger in
exclusivamente negro, e 84% in Black Film and Video, ed. Valerie Johnson, em 21 de julho de 1920, 233-243, que escreve sobre a classe média. Já foi argumentado a Strange Land’: An African
dessas salas têm uma pequena Smith (New Brunswick, N.J.: dá sua opinião sobre The Brute frieza da “NBA” (the new black que isso efetuou a transição American Response to the Frontier
[250] capacidade e muitas estão Rutgers University Press, 1997), e termina com “temo que eles aesthetic). É, como diz Gilroy, um dos filmes de uma diversão da Tradition in Oscar Micheaux’s
fechadas no momento.” Bernstein p. 54, Cripps descreve Starkman possam ler esta carta”; Telegrama caso de interdependência não classe trabalhadora e imigrantes The Conquest: The Story of a
e White, ibid., p. 123, nota 57. como um “pequeno Napoleão” de Homer Goins para George apenas econômica, mas também para um entretenimento de Negro Pioneer,” Western American
que financiou as produções da P. Johnson afirmando que ele cultural naquela época, um caso de classe média, ainda que alguns Literature 33, nº 3 (outono de
29 Sampson, Blacks in Black and Colored Players com a venda estava deixando a Micheaux “um pequeno e isolado segmento pesquisadores coloquem em 1998), p. 237, comenta sobre a
White, p. 141. de seu próprio cinema e com a Company e citando a “falta de da classe média negra que lutou dúvida essa afirmação. Para uma forma como o Oeste é livre da
herança de sua esposa, bem como profissionalismo” de Micheaux, com sua dependência da cultural síntese desses debates, ver Janet discriminação racial do Leste para
30 Ibid. com capital levantado junto a s.d.; Manuscrito datilografado, essencial dos negros pobres.” Staiger, Interpreting Films: Studies Micheaux, mas simultaneamente
advogados da South Philadelphia “Correspondência de dois agentes in Historical Reception of American argumenta que a própria
31 Ibid., biografia de George P. e comerciantes de equipamentos. da Lincoln Film plantados em 50 T. S. Stribling, Birthright (1922; Cinema (Princeton: Princeton caracterização que este faz dos
Johnson, datilografada em GPJC. Cripps acrescenta que Starkman Mitcheaux” [sic], lista Ira McGowan, reimpressão, Delmar, N.Y.: Scholar University Press, 1992), p. 103. índios Sioux reproduzia o Oeste
escrevia os roteiros e ia para cunhado de George Johnson, Facsimiles & Reprints, 1987). Ver Thomas Cripps, Hollywood’s como um território baseado em
32 Cripps, Slow Fade to Black, p. 178. a estrada entregar as cópias e Homer Goins, de St. Paul, High Noon (Baltimore: Johns tais distinções.
programadas fora da cidade. A Minnesota. Todos os documentos 51 Tanto Pearl Bowser como Charles Hopkins University Press, 1997),
33 Para mais informações sobre a questão da data de The Scar of estão na GPJC. Regester me incitaram a tomar p. 133-135, para mais informações 62 John W. Ravage, em Black
Norman Company, ver Gloria Shame é ilustrativa do desafio de nota dessa semelhança entre sobre a composição de classe do Pioneers: Images of the Black
Gibson-Hudson, “The Norman se realizar uma pesquisa histórica 40 Bernstein e White, “Scratching Alice e Louise. Ver meu “The Scar público cinematográfico negro. Ver Experience on the North American
Film Manufacturing Company,” precisa sobre esses filmes, que Around,” p. 123, nota 57. of Shame: Skin Color and Cast in também capítulo 4, nota 19. Frontier (Salt Lake City: University
Black Film Review 7, nº 4 (1992), via de regra não possuíam a data Black Silent Melodrama,” Cinema of Utah Press, 1997), oferece uma
p. 16-20; Phyllis Klotman, “Planes, de lançamento nas cópias. Filmes 41 A melhor fonte para sinopses Journal 26, nº 4 (verão de 1987), 54 Joseph Wilson, Sketches of evidência fotográfica da variedade
Trains, and Automobiles: The Flying sem data têm sido “datados” por publicadas está em Sampson, p. 7, para uma discussão sobre Higher Class of Colored Society de papéis que os negros possuíam
Ace, the Norman Company and meio de uma árdua checagem de capítulo 7, “Synopses of Black Films Louise Howard tendo o que a in Philadelphia (Philadelphia: na experiência do Oeste. Ver
the Micheaux Connection,” em periódicos ou, no caso dos race Produced between 1910 e 1950,” comunidade negra chamava de Merrihew and Thompson, 1841), p. também William Loren Katz, The
Bowser, Gaines e Musser, eds., movies, dos anúncios das exibições Blacks in Black and White. “waste of color”, em referência 66-67. Black West (New York: Doubleday,
Oscar Micheaux and His Circle; nos jornais negros. Por muitos aos benefícios da pele mais clara 1971)
Bernstein e White, “Scratching anos, The Scar of Shame foi listado 42 Um rolo dos seis originais de By que não podiam se concretizar por 55 W. E. B. Du Bois, The Philadelphia
Around,” p. 81-127; Sampson, como sendo de 1926. No entanto, Right of Birth está localizado na conta da posição social de uma Negro: A Social Study (1899; 63 Sobre os Lafayette Players,
Blacks in Black and White, p. 215- pesquisas recentes indicam que, Library of Congress. Klotman, mulher. Reimpresso em Smith, ed., reimpressão, New York: Schocken, ver Alex Albright, “Micheaux,
217. apesar de a produção do filme ter Frame by Frame, p. 88, lista ele Representing Blackness. 1967), p. 317, 177. Vaudeville, and Black Cast Film,”
durado vários anos, sua primeira como um curta dramático, e não Black Film Review 7, nº 4 (1992),
34 A exceção a esse padrão era a exibição foi em abril de 1929 no como um longa, como haviam sido 52 David Gordon Nielson, Black 56 Adrienne Rich, “Disloyal to p. 6-9, 36; Sister Francesca
Ebony Pictures, onde Luther J. Odeon Theatre, em Nova York, os outros filmes da Lincoln. Ethos: Northern Negro Urban Civilization: Feminism, Racism, Thompson, “The Lafayette Players
Pollard era tanto agente quanto daí a data corrigida de 1929. Life and Thought (New York: Gynephobia,” em On Lies, Secret, (1915-1932),” em Bowser, Gaines,
diretor de filmes, sendo o único Obrigado a Charles Musser por 43 Roland Barthes, Image/Music/Text, Greenwood Press, 1977), p. and Silence (New York: W. M. and Musser, eds., Oscar Micheaux
negro numa companhia branca suas pesquisas extraordinárias. Ver trans. Stephen Heath (New York: 76, cita Rayford Logan, “The Norton, 1979), p. 293. Escrito vinte and His Circle.

132 133
64 “Oscar Mitcheaux,” rascunho prefixo “Mis”, em inglês, empresta Picture Company, 25 de junho de 89 Ver P. T. Barnum, Struggles and 97 Ver Neil Harris, Humbug: The 104 James Hoberman, “Race to
datilografado, versão 5, GPJC. uma conotação negativa às 1918, em GPJC. Triumphs: Forty Years of Recollections Art of P. T. Barnum (Boston: Little, Race Movies,” Village Voice, 22
palavras, normalmente significando of P. T. Barnum (1869; reimpressão, Brown and Co., 1973). de fevereiro de 1994 ; Richard
65 Telegrama, Oscar Micheaux para “errôneo” ou “incorreto”, ou 81 “Oscar Mitcheux”, versão 4, em Harmondsworth: Penguin, 1981) Grupenhoff, “Veiled Aristocrats
George P. Johnson, 30 de março de simplesmente funcionando como GPJC. 98 Circular da Micheaux Book and Uncovered in Tennessee,” Oscar
1920, convidando-o a aceitar um uma negativa - N.E.]. 90 “Oscar Mitcheux”, versão 3, em Film Company para exibidores, Micheaux Society Newsletter 1
cargo em sua empresa; George P. 82 “Oscar Mitcheux”, versão 5, em GPJC. em GPJC. Ver Charles Musser, (Fevereiro de 1993), p. 2.
Johnson para Oscar Micheaux, 22 75 A mais corrente filmografia GPJC. “To Dream the Dreams of White
de setembro de 1920, declinando a publicada é em Bernard L. 91 “Regarding a Screen Version of Playrights: Reappropriation and 105 Theophilus Lewis, “The Harlem
oferta, afirmando estar “um pouco Peterson, “A Filmography of Oscar 83 Cópia datilografada de uma carta ‘The homesteader’,” s.d., em GPJC. Resistence in Oscar Micheaux’s Sketch Book,” The New York
relutante em abandonar meu Micheaux: America’s Legendary de Johnson para Micheaux, s.d. Body and Soul,” em Bowser, Gaines, Amsterdam News, 16 de abril de
emprego no Governo.” Ambos em Black Filmmaker,” em Celuloid (porém, faz referência a The Brute, 92 Ibid. and Musser, eds., Oscar Micheaux 1930, p. 10.
GPJC. Power: Social Film Criticism from que foi lançado em 1920), em and His Circle, para a evidência de
The Birth of a Nation to Judgment GPJC. 93 Circular da Micheaux Book and que Micheaux também utilizava 106 Ron Green, “Twoness’ in the
66 Oscar Micheaux, The Conquest: at Nuremberg, ed. David Platt Film Company para os exibidores, publicidade de rua, incluindo Style of Oscar Micheaux,” em
The Story of a Negro Pioneer (1913; (Metuchen, N.J.: Scarecrow 84 Cripps, Slow Fade to Black, p. 83. março de 1919, em GPJC. um fac-símile da cadeira elétrica Diawara, ed., Black American
reimpressão, Lincoln: University of Press, 1992), p. 113-141. No Ver também “A Million Dollar de Sing Sing [prisão em Nova Cinema, p. 26-39. Ver a resposta
Nebraska Press, 1994). entanto, outros pesquisadores Negro Film Deal Fell Through”, 94 “Booking Route,” em GPJC. York onde condenados eram de Cripps a Green, “Oscar
não consideram essa filmografia datilografado, em GPJC. Somando-se a estes, The executados] como um chamariz Micheaux: The Story Continues,”
67 Atualmente, está disponível a precisa. Sobre o problema Homesteader foi exibido em por ocasião das exibições de Corpo em Diawara, Ibid.
biografia Oscar Micheaux: The de compilar a filmografia de 85 Bernstein e White, em “Scratching Birmingham, Bessemer, Shreveport, e alma em Nova York. Musser cita
Great and Only: The Life of America’s Micheaux, ver J. Ronald Green, Around,” p. 113, citam mais uma e Nova Orleans. Foi agendado o New York Age: “É dito que painéis 107 Daniel J. Leab, From Lambo to
First Black Filmmaker (New York: “Toward a Definitive Listing of tentativa de George Johnson em para três dias em junho, com uma chocantes e sensacionalistas são Superspade: The Black Experience
HarperCollins Publishers, 2007), Oscar Micheaux’s Films,” Oscar unir os interesses dos produtores promessa de retorno em julho, estendidos todos os domingos in Motion Pictures (Boston:
de Patrick McGilligan. (N.E.) Micheaux Society Newsletter 3 de race films em março de 1922, em Atlanta e no famoso Douglas em frente ao cinema, mostrando Houghton Mifflin, 1975), p. 81.
(verão de 1994), p. 2-3, e o livro nessa ocasião escrevendo para Theatre, em Macon, Georgia. Na cenas em prisões, cadeiras
68 “Oscar Mitcheux”, rascunho de Green, Straight Lick: The Cinema Richard J. Norman com essa Carolina do Sul, foi exibido no elétricas, prisioneiros escapando, 108 Como citado em Leab, Ibid., p.
datilografado, s.d., of Oscar Micheaux (Bloomington: sugestão. Os autores mencionam Atlas, em Spartansburg, no New armas atirando, e outras imagens 191.
Indiana University Press, 2000). o ceticismo de Norman sobre o Lincoln, em Columbia, e no New calculadas para excitar e atiçar os
69 “Oscar Mitcheux”, rascunhos Ver também Corey Creekmur, “esquema de acionistas” utilizado Liberty, em Greenville. Na Carolina passantes.” 109 Charlene Regester, “The
datilografados, s.d.; “Mitcheaux, Charles Musser, Pearl Bowser, e por Micheaux e pela Lincoln para do Norte, o filme completou seu Misreading and Rereading of
Oscar and Mitcheaux Film Corp.,” Charles Regester, “Oscar Micheaux levantar capital, sendo esta a tour no Sul no Gem, em Reidsville, 99 Tie-up, ou Tie in. Estratégia African American Filmmaker
rascunho datilografado, s.d. Ambos Filmography,” em Bowser, Gaines, maior razão de sua relutância em e no Rex, em Durham. publicitária também conhecida Oscar Micheaux: A Critical
em GPJC. e Musser, eds., Oscar Micheaux and consolidar a parceria. como product placement. (N.T.) Review of Micheaux
His Circle. 95 Martin Jay, em Downcast Eyes: The Scholarship,” Film History 7
70 “Oscar Mitcheaux”, versão 3, 86 George Johnson conseguiu Denigration of Vision in Twentieth- 100 Ver meu “From Elephants to (1995), p. 426-449.
em GPJC. Ver também Sampson, 76 “Oscar Mitcheaux”, versão 5, em informações sobre os acionistas Century French Thought (Berkeley: Lux Soap: The Programming and
capítulo 4, “Micheaux Film GPJC. de Micheaux se passando por University of Carolina Press, 1993), ‘Flow’ of Early Motion Picture 110 John Harding, “Motion Picture
Corporation: Oscar Micheaux,” em R. R. Dale & Co., um acionista p. 463, é sucinto ao apontar que Exploitation,” The Velvet Light Withdrawn after Protest in New
Blacks in Black and White. 77 George P. Johnson para a Western de Omaha. Ele escreveu para o desenvolvimento da morte do Trap 25 (primavera de 1990), p. York,” New York Age, 10 de maio
Book Supply Company, 7 de maio Micheaux de Chicago, simulando autor propagandeada por Barthes 31. de 1938, p. 4. Para mais, ver
71 Oscar Micheaux, The Forged Note de 1918, pergunta sobre os direitos interesse na compra de ações e Foucault em termos literários capítulo 5, nota 46.
(Lincoln: Western Book Supply do livro que ele viu anunciado no para conseguir informações sobre e filosóficos teve sua contraparte 101 Ibid., p. 35.
Company, 1914). Chicago Defender; Oscar Micheaux os negócios de Micheaux; Swan na morte do auteur nos estudos 111 Ron Green, “Oscar Micheaux’s
para Lincoln Picture Company, Micheaux respondeu a R. R. Dale de cinema.” Ver também John 102 Como citado em Bernstein e Interrogation of Caricatures as
72 Oscar Micheaux, The Homesteader 13 de maio de 1918, responde em 19 de agosto de 1920, listando Caughie, Theories of Authorship White, “Scratching Around,” p. Entertainment,” Film Quarterly
(1917; reimpressão, Lincoln: confirmando que está mandando sete acionistas, todos residentes (London: British Film Institute, 99. 51, nº 3 (primavera de 1998), p.
University of Nebraska Press, uma cópia de The Homesteader de Sioux City (Nebraska) ou 1981). 16-30; Jeffrey C. Stewart, “Paul
1994). para Johnson. Ambos em GPJC. Sioux City (Iowa), e preenchendo 103 Ver James Hoberman, “A Robeson and the Problem of
Ver Sampson, Blacks in Black and um formulário com informações 96 Ver Steiger, Interpreting Films, Forgotten Black Cinema Modernism,” em Rhapsodies in
73 Oscar Micheaux, The Wind from White, p. 149, para um relato sobre permissão para capitalizar, capítulo 3, para uma visão geral Surfaces,” Village Voice, 17 Black, ed. David A. Bailey and
Nowhere (New York: Book Supply das primeiras negociações entre dividendos, e a divisão de valores. da importância dos estudos de de novembro de 1975, p. Richard J. Powell (Berkeley:
Co., 1944). Johnson e Micheaux. Em GPJC. recepção no desenvolvimento da 86 ; James Hoberman, “Bad University of California Press,
teoria e história cinematográfica. Movies,” Film Comment 14, nº 4 1997), p. 93.
74 George Johnson não era o único 78 Learthen Dorsey, em 87 Richard Grupenhoff, The (1980), p. 11.
a errar o nome de Micheaux. “Introduction,” The Homesteader Black Valentino: The Stage and
Charles Musser, em “Troubled (1917; reimpressão, Lincoln: Screen Career of Lorenzo Tucker
Relations: Paul Robeson, Eugene University of Nebraska Press, (Metuchen, N.J.: Scarecrow Press,
O’Neill, and Oscar Micheaux,” em 1994), p. 3, afirma que o contato 1988).
Paul Robeson: Artist and Citzen, ed. entre Micheaux e a Lincoln
Jeffrey C. Stewart (New Brunswick, Company foi cancelado quando, 88 Os outros três são The case of
N.J.: Rutgers University Press, após chegar em Los Angeles, Mrs. Wingate (New York: Book
1998), p. 89, escreve que quando Micheaux queria dirigir o filme. Supply Co., 1945); The Story of
Corpo e alma (Body and Soul, 1925) Dorothy Stanfield, Based on a Great
teve problemas de bilheteria em 79 Oscar Micheaux para George Insurance Swindle, and a Woman!
Nova York, ofendendo membros Johnson, 3 de junho de 1918, em A Novel! (New York: Book Supply
da comunidade negra, a New York GPJC. Co., 1946); The Masquerade, an
Amsterdam News referiu-se a ele Historical Novel (New York: Book
satiricamente como “Mischeaux” [o 80 Oscar Micheaux para Lincoln Supply Co., 1947)

134 135
A dualidade
e o estilo
de Micheaux 1

J. Ronald Green

O
arqui-inimigo implícito da ascenção afro-americana foi sempre o ra-
cismo. Um dos campos de força por meio dos quais Micheaux teve de
negociar uma trajetória em direção a seu objetivo, isto é, o status de
classe média, caracterizou-se pelos extremos polarizados do africanismo e do
americanismo. W.E.B. Du Bois apresentou a noção paradigmática de “duali-
dade”, agora familiar, nas primeiras páginas de The Souls of Black Folks [As
almas das pessoas negras]:

É uma sensação peculiar, essa dupla consciência,


essa percepção de estar sempre olhando para a alma
de alguém tendo como medida um mundo que a tudo
observa com pena e desprezo deliciados. Uma pessoa
sempre sente sua dualidade: um norte-americano, um
negro; duas almas, duas mentes, dois esforços irrecon-
ciliáveis; dois ideais que batalham entre si num corpo
escuro, cuja força insistente basta para impedir que
ele se rompa.2

Afro-americanos têm enfrentado individualmente a possibilidade simultânea


de duas identidades, cujas relações entre si são bipolares e tensas, o que cria um

137
dilema que cada indivíduo deve sanar de algum modo. As facetas desse dilema ça para o cinema negro. Do acordo por escrito celebrado por “representantes da
residem: (1) na cultura branca dominante, que não pode ser ignorada e que tem NAACP, a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor, e por che-
tanto demandado quanto rejeitado a assimilação de pessoas negras; e (2) na cultu- fões de vários estúdios de Hollywood”, que “se encontraram e codificaram algu-
ra étnico-racial da comunidade afro-americana. O conceito de dualidade reconhe- mas mudanças e procedimentos sociais” em 1942, Cripps relata: “Os estúdios
ceu a resistência dos negros no que tange à sua assimilação pela cultura branca, concordaram em abandonar papéis raciais pejorativos, em escalar negros como
uma vontade de reter uma identidade negra. Por mais que a assimilação parecesse figurantes em posições consonantes com as ocupadas por eles na sociedade, e
necessária para a sobrevivência dos negros nos Estados Unidos, ela também ame- em dar início à demorada tarefa de integrar negros aos quadros de técnicos dos
açou a autoestima negra e a integridade de suas identidades africanas. estúdios.”5 Cripps concluiu a afirmação inicial de sua tese observando que “o
Thomas Cripps identificou um dilema debilitante para os filmes afro- acordo de 1942 proporcionou muito mais do que a escalação de poucos negros
americanos que ele havia associado ao conceito de dualidade proposto por Du para papéis que não eram abertamente racistas. O acordo mudou por completo
Bois. O livro de Cripps, Slow Fade to Black [Lenta fusão para a tela preta], foi o a resposta de Hollywood ao papel do afro-americano no cinema e, por extensão,
trabalho revolucionário sobre a história dos race movies, fitas antigas feitas por na vida norte-americana também.”6 No entanto, o otimismo em relação a tal de-
negros e para plateias negras.3 O esforço monumental de Cripps para localizar senlace parece inapropriado, já que o acordo de 1942 abordou apenas o proble-
e para interpretar fontes primárias e secundárias do cinema negro, e isso sob ma da assimilação — somente uma das facetas do dilema. Talvez fosse esperado
condições difíceis de pesquisa, delineou um cinema étnico que até então era que a assimilação de negros pudesse etnicizar Hollywood de certa forma, mas
invisível — descontados os esforços pioneiros de Donald Bole e de Daniel J. havia pouca evidência histórica nas telas de Hollywood — tanto em relação a
Leab.4 A tese de Cripps é fundada no mito histórico do multiculturalismo norte negros quanto a outros grupos étnicos — de que tal expectativa se cumpriu. Os
-americano e no fenômeno da assimilação, abordando o cinema negro como um sucessos recentes do cinema negro nas telas hollywoodianas são resultado da
problema de não assimilação. investida bem-sucedida de Spike Lee em Hollywood como um independente —
Cripps propôs que o futuro do cinema, da crítica e da plateia negra depende ele abriu seu caminho ao ganhar dinheiro fora de Hollywood antes. Qualquer
propriamente da assimilação e, assim, de Hollywood. Apesar de ele tentar en- sucesso derivado do acordo de 1942 para integrar negros na indústria cultural
contrar, em Slow Fade to Black, trabalhos de valor artístico que foram criados hollywoodiana pareceria tratar-se de um ganho primordialmente para a assimi-
pelo “submundo negro” fora de Hollywood, o que inclui Micheaux e a produtora lação, para um lado do dilema da dualidade, mas não para o outro. Por mais que
de cinema Colored Players, Cripps concluiu que nenhum produtor negro tinha hoje vejamos mais personagens negros “favoráveis” na televisão e no cinema
capital o bastante para produzir bons filmes (Cripps reconsiderou tal opinião norte-americanos, suas características afro-americanas são muitas vezes ou re-
em seu livro seguinte, Black Film as a Genre [Filme negro como um gênero]). duzidas (Bill Cosby), ou caricaturadas (Eddie Murphy). E quando característi-
Ele também concluiu que Hollywood era suficientemente capitalizada para se cas afro-americanas são apresentadas sem concessões, como ocorre no seriado
apropriar de qualquer ideia bem-sucedida levada adiante por produtores negros de televisão Frank’s Palace, em Não durma nervoso (To Sleep with Anger, 1990),
de race movies. Daí o trocadilho no título do livro, Slow Fade to Black — o lento de Charles Burnett, e em Daughters of the Dust (1991), de Julie Dash, tais obras
fade out do produtor negro independente (o “blecaute” da negritude) e o demo- são frequentemente tratadas de forma canhestra pela indústria. Ainda assim,
rado fade in do produtor negro hollywoodiano (a morosidade da emergência da Cripps está seguramente correto quando enfatiza que Hollywood deveria ser
negritude assimilada). responsabilizada pela representação errônea, extremista e peculiar de negros.
A tese contida em Slow Fade to Black, porém, subvaloriza a perda repre- De todo modo, mesmo que os esforços de Du Bois e da NAACP que resultaram
sentada pelo desaparecimento gradativo dos race movies independentes, culpa- no acordo de 1942 tenham sido necessários e admiráveis, eles não foram e não
bilizando as inadequações dos filmes independentes por tal perda. Slow Fade são suficientes. Como resposta a uma primeira versão deste capítulo publicada
também supervaloriza o ganho, tanto o efetivo quanto o potencial, representado anteriormente, Cripps apontou fatos e números que sinalizam o progresso da
pelo aparecimento gradual do afro-americanismo nos filmes comerciais. representação negra em Hollywood; Jesse Rhines recentemente argumentou, no
Após propor o dilema da dualidade, e depois de críticas consideravelmente entanto, que fatos e números similares representam uma sociedade ainda asso-
detalhadas de determinados filmes e cineastas, incluindo Micheaux, Cripps fi- lada por desequilíbrios e por injustiças de raça, gênero e classe fundamentais, o
naliza seu estudo celebrando as reformas em Hollywood como a melhor esperan- que indicaria uma necessidade contínua de filmes independentes.7

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Os efeitos previsíveis do acordo de 1942 são análogos aos efeitos da decisão, [ou numa tela de cinema — adendo do autor] — é o
em 1947, de contratar Jackie Robinson como jogador do Brooklyn Dodgers, uma meio mais seguro de ultrapassar barreiras raciais. Mas
decisão que abriu a grande liga de beisebol à assimilação de jogadores negros. sem acesso ao poder, os negros, economicamente, per-
Como Nelson George salienta em The Death of Rhythm and Blues [A morte do deram mais do que ganharam ao se integrar à grande
rhythm and blues], isso foi “um grande evento para a integração dos Estados liga de beisebol.8
Unidos” e “agora reside no coração da cultura popular desta nação”. Contudo,
ele também aponta que Talvez a maior contribuição de Micheaux, a que todos os críticos reconhe-
ceram, foi o estabelecimento e a operação bem-sucedida de uma instituição de
infelizmente, poucas pessoas se importaram que isso cinema negro por um período extenso de tempo, uma preocupação atual análoga
significasse o fim do beisebol negro e a extinção de uma à do beisebol anterior à integração racial. E não importa o que se pense dos fil-
instituição negra “naturalmente integrada”. Pergunte a mes de Micheaux, o que é indiscutível é que eles não poderiam ter sido feitos de
um negro mais velho a respeito e ele dirá a você sabia- nenhuma outra maneira — certamente não por meio de arranjo algum aproxi-
mente: “Este é o preço que você tem que pagar para mando o acordo de 1942 entre a NAACP e os estúdios. A façanha institucional
entrar no jogo. Veja o número de jogadores negros que de Micheaux — sua habilidade de entregar um filme atrás do outro e de abordar
dominam a grande liga de beisebol, ganhando milhões diretamente as necessidades de uma plateia totalmente negra — não se repetiu
e se tornando modelos de conduta para a nação.” No até hoje, mais de meio século depois dos acordos de 1942.9
entanto, se nós seguirmos o dinheiro, imitando o con-
selho do Garganta Profunda [Carl Bernstein], veremos
que esta troca, por mais que à superfície pareça ótima Um conhecimento que vale a pena ter
para os negros, foi na verdade de grande rentabilidade
para os donos dos times de beisebol. A questão da dualidade é importante para que se entenda Micheaux, os race
movies, e a tese de Cripps sobre ambos. Como Du Bois notou, a dualidade não
George se utilizou da analogia do beisebol negro como apoio à sua tese de que é um estado invejável, e o valor do conhecimento da dualidade de modo algum
a música negra foi apropriada por donos brancos de grandes instituições, mas a justifica a segregação racial. O conhecimento, no entanto, talvez ainda seja va-
mesma analogia se aplica ainda mais fielmente à apropriação de talentos do cine- lioso, e seu provável valor justifica não apenas o estudo de Micheaux, como
ma negro a partir do acordo de 1942 entre a NAACP e os estúdios de Hollywood. também do lugar dos race movies em qualquer cânone que se diz represen-
Assim como o beisebol, Hollywood foi muito pressionada por negros que queriam tar o cinema norte-americano, ou o cinema da sociedade norte-americana. bell
abri-la para eles, mas músicos negros não precisaram pressionar a indústria da hooks,10 teórica e crítica cultural, faz uma ponderação semelhante ao discutir
música para ter seus talentos cooptados (e isso foi feito de forma mais sub-reptí- a branquidade na imaginação negra, e Carol Clover faz uma reflexão análoga
cia). George deixa claro que o tipo de apropriação institucional que unificou os quanto à ambiguidade de gênero nas plateias dos filmes de terror modernos.11
três exemplos históricos citados e esta tripla analogia tem consequências em duas Um cânone de um cinema tal demandaria a inclusão da representação de as-
dimensões relacionadas — a imaginação representacional e a classe econômica: pectos dialéticos da hegemonia norte-americana, incluindo não apenas o papel
de Hollywood em tal hegemonia, como também o efeito da hegemonia holly-
Desde a estreia de Robinson, os negros têm feito na -woodiana na identidade afro-americana. Robert Stam considera esse tipo de
grande liga de beisebol o mesmo que fazem na música “dualidade”, que ele chama de “visão relacional”, como um aspecto vantajoso
popular: entreter, ganhar salários vultosos e gerar di- de uma abordagem bakthiniana dos estudos étnicos:
nheiro para negócios que repassam muito pouco disso
tudo às comunidades negras. Eles alimentam a máqui- Uma abordagem bakthiniana pensa “a partir das
na de sonhos que diz à juventude negra que o entrete- margens”, vendo os povos nativos, os afro-americanos
nimento — seja num palco ou num campo de beisebol e os hispânicos, por exemplo, não como grupos de inte-

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resse para serem adicionados a um pluralismo preexis- “a favor” da separação sem ser “aquiescente” em relação à segregação. Os
tente, mas como sendo o âmago real da experiência nor- race movies “não excluíram por completo o tema da cobiça branca”; ela foi
te-americana desde o princípio, cada um oferecendo um apartada pela censura branca. Micheaux lutou contra a comissão de censura
valioso “ângulo dialógico” sobre a experiência nacional. por anos e ainda assim conseguiu, de alguma forma, ameaçar a opressão
(...) Uma abordagem bakthiniana reconhece uma van- branca tanto direta quanto indiretamente em filmes como Dentro de nossas
tagem epistemológica por parte daqueles que são opri- portas (Within Our Gates, 1920), O símbolo do inconquistado (The Symbol of
midos e, assim, biculturais. Os oprimidos, por serem the Unconquered, 1921), A garota de Chicago (The Girl from Chicago, 1932),
obrigados pela circunstância e pelos imperativos da so- Birthright (1924), entre outros. Alguns race movies podem até ter “reciclado”
brevivência a conhecer tanto a cultura dominante como estereótipos de Hollywood para negros, mas outros não se caracterizaram por
a marginal, são idealmente alocados para desconstruir isso, e outros, ainda, como é o caso dos filmes de Micheaux, desenvolveram
mistificações do grupo dominante.12 [Grifo meu.] uma crítica complexa a isso. Se os race movies às vezes “colocavam negros
contra negros”, então esses filmes refletiam a realidade da comunidade negra
Cripps, em Slow Fade to Black, resolveu o dilema da dualidade apenas no que em geral, que, como qualquer comunidade, não se harmonizava em pratica-
tangia a Hollywood, optando, assim, pela assimilação. Entretanto, não há evidên- mente nenhuma questão. Se alguns race movies “imitavam filmes brancos”,
cia até agora de que Hollywood consiga lidar com diferenças de identidade con- eles o fizeram na medida em que os filmes brancos eram os únicos que exis-
troversas e significantes, como a barreira da cor, da condição social, do sexismo tiam, de modo que, se havia um padrão no cinema, era o padrão branco. Até
patriarcal ou do tabu sexual. Os estudos de Robin Wood e de Carol Clover sobre mesmo os cineastas que trabalhavam contra esse padrão tinham de negociar
sexualidade, ambiguidade e repressão de gênero em filmes de terror parecem com um legado que era tanto inevitável como basicamente — porque histo-
talvez sugerir que Hollywood pode lidar e efetivamente lida de modo saudável ricamente — branco. Rejeitar os filmes feitos fora de Hollywood que usavam
com a diferença e com a negação. Mas, na verdade, a tese deles acaba por revelar ou se referiam a alguns aspectos das contribuições hollywoodianas ao esti-
que o tratamento hollywoodiano da “maleabilidade” de gênero deixa as relações lo cinematográfico a partir do raciocínio da “imitação branca” seria ignorar
prevalecentes de gênero intactas, e que filmes não hollywoodianos, independen- a questão da hegemonia e compreender de forma errônea alguns processos
tes e baratos tratam de material reprimido de forma mais direta.13 Hollywood básicos da cultura, como os discutidos por Harold Bloom em The Anxiety of
certamente não tomou a liderança em debater as diferenças significativas na so- Influence [A ansiedade da influência].16
ciedade, que dirá celebrá-las. Esse tipo de liderança no cinema deve vir de filmes
de baixo orçamento, não assimilados, independentes e alternativos, como os race
movies, documentários e cinema de vanguarda. A resposta de Cripps ao dilema Dualidade e estilo
— afastar-se dos filmes “clandestinos” — parece, desse modo, inadequada.14
Se Cripps conseguiu, em Slow Fade to Black (e novamente em Making Nenhum dos filmes existentes de Micheaux se parece muito como um filme
Movies Black), dispensar race movies independentes — dizendo que o cinema hollywoodiano bem-feito, e a intolerância inicial de Cripps, em Slow Fade to
produzido por negros aquiescia à segregação, que jamais abordava o tema Black, aos desvios em relação ao estilo de Hollywood em seus filmes, mesmo
da cobiça branca, que reciclava sem grandes novidades os estereótipos pelos nas décadas de 1970, 1980 e 1990, representa uma atitude geral negativa ou
quais Hollywood fora culpada, que colocava negro contra negro, que imitava incerta sobre as conquistas de Micheaux.
filmes brancos — é porque ele havia aceitado a retórica e a estética de assi- Cripps descreveu os erros típicos que permeiam o estilo de Micheaux e mos-
milação de Hollywood.15 Todas as críticas específicas de Cripps em relação trou que a produtora do cineasta era ciente deles, mas incapaz de corrigi-los
aos race movies independentes (acima listadas) podem ser respondidas. Por por conta dos custos proibitivos das latas de negativo, de se refazer tomadas,
exemplo, não é justo dizer que o cinema produzido por negros “aquiesceu” à dos planos-sequência e da montagem profissional. O aparato crítico de Cripps,
segregação quando a necessidade de evitar tópicos de integração foi imposta no entanto, ignora a contradição inerente à dualidade. No início de suas con-
pela censura branca e quando até mesmo as plateias negras estavam dividi- siderações sobre Micheaux, Cripps descreveu o dilema central para o cineasta
das em relação aos benefícios da integração — afinal, alguém poderia ser (e para os race movies produzidos por negros) como a “tentação de espelhar

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filmes brancos [e em tal caso] (...) seu sucesso poderia ser um deus falso para os
negros”.17 Durante boa parte de suas observações sobre Micheaux, Cripps usa o Ottley (aqui) e Matthews (alhures) insistiram que, não importando os proble-
termo “espelhar” para simbolizar tal dilema. mas técnicos e de estilo, o único futuro para a produção da cultura negra estava
nas mãos dos cineastas negros. O que até então era visto como problemas técnicos
e de produção em filmes raciais poderia ser encarado como elementos de estilo
Uma faceta de um dilema e textura, como, por exemplo, as técnicas do escultor Elijah Pierce e o estilo de
atuação, dublagem e direção de muitos dos filmes de Rainer Werner Fassbinder,
O dilema do espelhamento sem vencedores nos race movies e no trabalho de que são compreendidos como elementos integrais ao sucesso artístico de ambos.
Micheaux permanece não resolvido na abordagem de Cripps. Em vez de apre-
sentar esse dilema como uma contradição estrutural (o sucesso negro em imitar Sem dúvida, [Fassbinder] era incapaz de trabalhar
filmes brancos constitui um fracasso; sucesso equivale a fracasso) que ilumina de outra forma, por uma questão de temperamento, e
as agruras de cineastas e de críticos negros, Cripps foi leal a ambos os polos isso significa dizer que ele era incapaz de fazer qual-
desse dilema. Ainda é difícil discutir Micheaux ou o fenômeno dos race movies quer outra coisa a não ser filmes imperfeitos (...)
até que algo seja dito a respeito dos resultados cinematográficos possíveis ad- A vantagem de instaurar um ritmo furioso era que
vindos do dilema da dualidade. seria impossível que qualquer pessoa se entediasse, e
O ponto de vista crítico de Cripps exorta a assimilação em vez da confron- todos estavam sob tensão, especialmente os atores. A
tação do dilema da produção negra, dilema este em que a assimilação constitui desvantagem era que haveria muito descuido em todas
apenas metade do problema. Ele lamenta a oportunidade perdida de uma filmo- as etapas da filmagem, do roteiro à pós-sincronização.19
grafia negra bem-sucedida em Hollywood sem sugerir o que tal sucesso poderia
significar e como ele poderia acomodar o dilema da dualidade previamente in- O critério para sucessos e fracassos teria então de proceder de uma cultura
troduzido. Ademais, em seu argumento, Cripps censura severamente as críticas da dualidade, da cultura do cineasta (seja rural ou urbana, da classe operária
de Matthews e de Ottley na imprensa negra, que agora parecem ter sugerido a ou média, homossexual ou heterossexual), e não da segregação e da indústria
abordagem mais responsável para este dilema: hollywoodiana da assimilação.

Roi Ottley, grande figura entre os jornalistas ne-


gros, evocou menos objeções precisas, contentando-se Julgando os filmes
com um ufanismo racial óbvio e retórico:
Não é necessário pressupor que as convenções do cinema hollywoodiano
The Green Pastures vai, sem dúvida, receber constituem a única base válida para o cinema narrativo. Se assim fosse, o que
comentários magníficos e fulgurantes na im- um cinema negro “bom” seria, se ele não imitasse o clássico cinema branco?
prensa negra (...) e infelizmente, para o públi- Na verdade, apesar de estudiosos como Pearl Bowser, Mark Reid, bell hooks,
co negro (...) Jornais negros, no geral, têm falso Ed Guerrero, Jessie Rhines e Clyde Taylor terem providenciado respostas para
sentido de valor (...) Eles parecem funcionar a esta questão, não deveria ser necessário definir qualidades do bom cinema ne-
partir da seguinte premissa: toda vez que um gro; entusiastas do cinema mundial estão familiarizados com muitos estilos de
negro aparecer numa peça de teatro ou num fil- cinema narrativo que não os dos filmes clássicos de Hollywood. Muitos desses
me produzido por brancos, ele deve ser aplau- filmes foram bem-sucedidos em amealhar plateias entusiasmadas, pequenas
dido, não importando os méritos da produção. ou não, como aquelas que reagiram positivamente ao filme Sweet Sweetback’s
(...) Este departamento conjectura publicamente Baadasssss Song (1971), de Melvin Van Peebles. Tal filme lucrou como uma pro-
que Oscar Micheaux, com seu equipamento in- dução negra independente, mas o movimento que ele originou, chamado “blax-
ferior, teria produzido um filme melhor.18 ploitation”, consistiu primordialmente em filmes produzidos por Hollywood. Tal

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assimilação sugere que o problema para produtores independentes negros re- -Oeste”, a partir dos ideais e da estética dos filmes de Hollywood.23 O fato de
sidia não em seus filmes e nas plateias, mas nas engrenagens de distribuição e que imigrantes judeus criaram o cinema “branco, anglo-saxão, protestante” por
de exibição, uma questão que Roy Armes enfatiza em seu livro sobre o cinema excelência pode dar a impressão de contradizer qualquer tese sobre a importân-
terceiro-mundista.20 Cineastas independentes negros poderiam fazer e faziam cia do cinema etnicamente produzido. No entanto, isso prova muito pouco por
filmes de diversas formas, assim como músicos, pintores, escultores e escritores si só. Sugere a tendência de um grupo hegemônico — como os brancos, anglo-
negros criaram diversas formas de improvisação na música e nas artes visuais saxões, protestantes dos Estados Unidos — de ser imitado e lisonjeado; sugere
e narrativas, as quais puderam ser compreendidas por suas próprias plateias, e o poder de tal grupo dominante em atrair serviços de grupos subdominantes
que depois foram celebradas também por plateias eurocêntricas. A contribuição ambiciosos — como judeus imigrantes. Além disso, exemplifica uma base sóli-
dessas formas de arte, prazer e entendimento é frequentemente considerada da para os receios daqueles críticos que salientam que até o cinema afro-ameri-
mais notável por sua autenticidade étnica, sendo percebida como algo menor em cano busca parecer-se branco com frequência. No entanto, a construção de um
caso de qualquer concessão forçada ao classicismo. estilo assimilacionista hollywoodiano por imigrantes judeus em nada refuta a
Já que Micheaux não assumiu necessariamente os parâmetros de Hollywood, diversidade cultural e a necessidade de encorajá-la.
seus filmes talvez se baseiem em sintagmáticas presumidas ou inventadas, desco- A assimilação teve um forte impulso econômico, devido à fragmentação radical
nhecidas pela indústria cinematográfica. O cinema branco é importante para o tra- do mercado consumidor e da mão de obra norte-americanos durante o desenvolvi-
balho de Micheaux, tanto positiva como negativamente, mas não é determinante. O mento da produção em massa. As fábricas e os centros urbanos estavam atraindo
estilo dos filmes de baixo-orçamento de Micheaux era apropriado às suas circuns- novos grupos étnicos a todo tempo, incluindo negros do sul, que estavam imer-
tâncias e pode ser visto como limitado artisticamente apenas se permitirmos que sos em sua maior migração rumo ao norte. D.W. Griffith e Micheaux davam seus
o estilo super-requintado e os altos custos de produção de ...E o vento levou (Gone primeiros passos na arte cinematográfica nesta época (por volta de 1908-1918).
with the Wind, 1939) sejam considerados artisticamente restritivos à sua maneira. Hollywood, que procurava um mercado de massa confiável para seus filmes, come-
çou a tentar assimilar a nova diversidade urbana. De modo a maquiar a quase im-
possibilidade de tal tarefa, Hollywood desenvolveu um estilo formal cintilante, ilu-
A questão da assimilação sionista e fechado, que aparentou ser um sistema comum de valores partilhado por
todos os norte-americanos. Tal aparência de unidade sem dúvida teve seu papel
O tratamento de Micheaux dispensado a questões étnicas ou raciais foi tão na ampliação da exclusão, esta refletindo intolerância à diferença e à dualidade.
condenado quanto suas habilidades artística e estilística. Quando Cripps con- O estilo de Micheaux, às vezes, é melhor entendido como retentor de carac-
cluiu que os “race movies tendem a aquiescer à segregação, a jamais abordar o terísticas de filmes antigos, anteriores ao advento do ilusionismo cintilante, em
tema da cobiça branca, a reciclar muitos estereótipos (...), a colocar negro contra vez de uma imitação fracassada dos filmes assimilacionistas brancos. Seu estilo
negro, e a imitar filmes brancos”, 21 ele caracterizou esses atributos como fra- tem maior afinidade com a valorização de um texto (como a vida afro-americana)
cassos, ao menos nos filmes de Micheaux. Como bell brooks apontou, contudo, do que com o enfoque superficial de temáticas sérias (como as diferenças de va-
seus filmes questionavam esses assuntos, dentre muitos outros.22 Certamente lor dentre os brancos). Pode-se esperar que um estilo não assimilativo, que enfo-
não se podia confiar nos filmes hollywoodianos para lidar com essas questões ca a luta vívida com a dualidade — que, como Du Bois disse, ameaça dilacerar
ou com a maioria das outras que Micheaux explorou; é igualmente improvável o corpo negro —, reflita em si mesmo, enquanto estilo, o tumulto dessa luta.
que a temática e estilo hollywoodianos refletissem tal sensibilidade em relação
à dualidade e à contradição presente na temática e no estilo de Micheaux.
De acordo com a tese de Neal Gabler em An Empire of Their Own [Um im- O caso de A garota de Chicago
pério só deles], Hollywood foi construída quase que inteiramente por imigrantes
que queriam desesperadamente assimilar características dos grupos fundado- A garota de Chicago serve bem como exemplo do estilo não assimilativo,
res da Europa e da Nova Inglaterra. Hollywood criou um império de ilusão que “incompetente”, de Micheaux, em parte porque não se trata de um de seus
fazia exatamente isto: transformava imigrantes na imagem do poder da elite, no melhores filmes, do ponto de vista convencional do estilo hollywoodiano. Já que
norte-americano “endinheirado da Nova Inglaterra, de Wall Street e do Meio- é um caso extremo, não desdenhar do filme, ou, ainda, nele apontar valores aos

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quais não se prestou a atenção devida, pode fortalecer as conquistas de Mi- e no “grão” do aparato por meio do qual a voz se apresenta. O “grão” do estilo
cheaux com este filme. Em A garota de Chicago, Mary Austin é uma sulista de Micheaux é, de certa forma, análogo ao “grão” da voz de Panzera, e o estilo
negra de meia-idade que dirige um pensionato na cidadezinha de Batesburg, perfeito e refinado de Hollywood é análogo à voz de Fischer-Dieskau, como foram
no Mississippi (reminiscente da cidade de Patesville, do romance The Conjure caracterizadas no famoso ensaio de Roland Barthes, “O grão da voz”.24
Woman, lançado em 1899 por um dos escritores negros favoritos de Micheaux, Há integridade na unidade de tempo, lugar e ação que aparta esta canção
Charles Chestnutt), e que quer mandar sua irmã ao norte para tentar a sorte como uma vinheta que merece apreciação especial, um refúgio estilístico diante
como cantora; todas as economias de Mary Austin estão reservadas para este da “confusão” reinante. O título (“Blue Lagoon”) e o tema da canção reforçam
propósito. Quando Norma Shepard, a protagonista do filme, chega à cidade para a efeito estilístico de esconderijo. As esperanças e os receios desta cena são
assumir seu posto como professora, ela se aloja no estabelecimento de Mary representados por contrastes: a confusão da montagem anterior versus a unidade
Austin. O pensionato é o cenário de grande parte da ação da primeira metade do do plano longo; a má qualidade da gravação de áudio e da voz amadora versus a
filme, já que ele também abriga temporariamente o protagonista, Alonzo White, suavidade do talento vocal e a autoconfiança da cantora. Essas representações
que eventualmente captura o vilão por lá e, assim, salva Norma. estilísticas são apropriadas, quer sejam conscientes, quer não.
Os primeiros cinco minutos do filme são compostos por aproximadamente Mesmo repleta de páthos e de esperança, esta cena não é patética. O páthos
trinta planos de curta ou média duração — uma média de dez segundos cada, não domina, já que a plateia de Micheaux saberia que cantoras negras, como a
sendo que um dos planos dura aproximadamente sessenta segundos — de con- irmã de Mary Austin (assim como escritores, dançarinos, músicos e composito-
teúdo perturbador (servidão e estupro em potencial) e estilo idem (uma edição res), estavam “se dando bem” em Chicago e no Harlem, à época. Jazz, blues, jazz
flagrantemente descontínua, um estilo expressionista, certos posicionamentos dançante e a Harlem Renaissance25 eram de conhecimento comum em 1932. Na
de atores e atuações constrangedoras, algumas falhas quase cômicas no áudio, segunda metade de A garota de Chicago, a maioria dos personagens principais
destruindo o clima de ilusão). Depois, temos um plano-sequência (um plano que e coadjuvantes se muda para o Harlem de fato. A fala “Home to Harlem!”,
registra a ação de uma sequência inteira, sem cortes) de mais de três minutos, dita por Alonzo em celebração de sua mudança de Batesburg ao Harlem, faz
em que Mary Austin, em plano médio, está de pé ao lado de sua irmã, que canta referência ao famoso romance com este título, escrito por um dos pilares deste
uma canção por inteiro sentada diante do piano, ao fundo. A transição para este movimento, Claude McKay. Muitos dos que foram bem-sucedidos durante este
plano-sequência é acentuada por uma nota forte no piano que soa uma fração período não eram “New Negroes” [novos negros] ou artistas pomposos educados
de segundo depois do corte que o inicia. Assim, o espectador entra de maneira na costa leste, e mesmo os que eram ao menos em parte esnobes eram também
sincópica nesta sequência, vindo de uma cena anterior que era particular e leais às suas origens no sul, como Zora Neale Hurston, por exemplo. A canção
perturbadoramente fragmentada pela montagem. A irmã de Mary Austin en- da irmã de Mary Austin sobre uma lagoa azul é, decerto, mais refinada do que
tão canta “Blue Lagoon” com uma voz notável, porém imperfeita e levemente as canções de Bessie Smith ou de Billie Holiday, mas não mais que algumas de
operática. Sua voz parece se quebrar em determinados momentos, mas isso se Marion Anderson ou de Ethel Waters — e o sucesso de pessoas como Smith,
deve, em parte, à má qualidade da gravação de áudio. O piano também soa de Holiday, Anderson e Waters teria emprestado credibilidade às expectativas da
forma modesta, sem ressonância. A iluminação fraca, com apenas um ponto família de Mary Austin. A cena de Micheaux representa as esperanças e os
de luz, e a acústica ao vivo, pesada, parecem consistentes com a produção de medos da migração de forma realista, algo inédito em Hollywood.
baixo orçamento, e também com as descontinuidades na montagem e com o Há diversas objeções possíveis a esta cena. É possível objetar que a voz da
estilo de atuação amador e declamatório da cena anterior. O efeito produzido irmã não é boa, que ela quebra em determinados instantes — mas as vozes de
é provavelmente insuportável ou inapropriadamente cômico para qualquer um Louis Armstrong e de Bob Dylan são assim também, apesar do estilo de ambos
acostumado apenas ao padrão de qualidade hollywoodiano. ser mais irônico. Armstrong e Dylan nem sempre foram irônicos, mas, à medida
No entanto, para o espectador empático, ciente da situação financeira dos per- que o foram, isso era parte do que os tornou grandiosos. A irmã de Mary Austin,
sonagens (aos quais o espectador está destinado a se importar, ainda mais porque no entanto, não está ali para representar grandeza — ela representa a esperança
não há razão narrativa alguma para que isso não ocorra), esse plano-sequência e o páthos, e ela pode se frustrar o suficiente para aprender ironia também.
parece realista e agradável. Há tanto esperança quanto páthos nos anseios das É possível objetar que a cena é muito escura. Mas o propósito estético disso é
duas irmãs, emoções que são articuladas no “grão” da voz amadora, porém bela, representar uma cena na era da Depressão passada numa casa vitoriana de clas-

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se média baixa, de origem gótica e sulista, uma casa que seria tipicamente escu- “Waltzing the Blues” e “Jingle Bells”, de Carter, soam, em relação ao jazz mais
ra, antiquada, dividida em pequenos cômodos. A iluminação lembra um pouco a antigo, como os movimentos de Gustav Leonhardt e de Nikolaus Harnoncourt,
de pinturas dos contemporâneos de Micheaux, como Thomas Hart Benton, Grant que se dedicavam a recriar as técnicas da época de Bach na música clássica
Wood, Edward Hopper e Charles Burchfield. Se Micheaux tivesse iluminado for- de hoje. Uma avaliação de um dos grandes projetos musicais nesse estilo é
temente essa cena, com a iluminação clássica de três pontos, isso teria dado um pontuada por críticas gerais a esta técnica, e são reminiscentes das críticas ao
efeito inapropriadamente ostentatório. Se Micheaux tivesse capital para filmar amadorismo e ao baixo custo da música e do cinema negros:
“corretamente”, a cena poderia ter se transformado de realisticamente opressiva
em reconfortante, medíocre, de um realismo convencional. Ao evitar tal con- até estudiosos simpáticos à causa acham a aborda-
venção, o trabalho de Micheaux é um significativo porém ignorado precursor gem de Leonhardt-Harnoncourt desconcertante, com
do neorrealismo italiano, que mudou o curso do cinema no fim dos anos 1940. suas articulações, deslocamentos e alterações rítmicas;
É possível objetar que o filme de Micheaux é granulado. No entanto, filmes os recitativos bruscamente pontuados; os tempos irre-
do cinema-verdade, do cinema direto, do neorrealismo e da nouvelle vague são verentes; isso sem mencionar as solistas (soprano), que
geralmente granulados. Todos esses estilos são aceitos (apesar de não terem soam como menininhos doentes, por cima dos desobe-
sido originalmente aceitos) como maduros, propositados e eficientes. Eles se dientes e às vezes desafinados “instrumentos originais”.
tornaram aceitos estilisticamente ao serem entendidos como apropriados às cir- Alguns se indignaram diante da perda da escala
cunstâncias dos sistemas de produção e de representação, quando tais sistemas tradicional. O venerável musicólogo Paul Henry Lang
foram compreendidos. O granulado nos planos de Micheaux reflete o despo- vociferou a respeito das “atuações frágeis” e da “ina-
jamento material da classe média baixa, aproximando o status econômico do dequação do conjunto”.
pensionato (diegético) com o do produtor do filme (da vida real). Os interiores
de Micheaux são reminiscentes das fotografias da Farm Security Administra- Em defesa deste movimento, a mesma crítica diz o seguinte:
tion (FSA, ou Administração de Segurança da Fazenda) dos pobres sulistas,
especialmente de arrendatários, tiradas por fotógrafos como Walker Evans e O estilo do senhor Harnoncourt adquiriu atributos
Russell Lee. O enfoque de Micheaux reside na classe média baixa em vez de que a “prática performática” sozinha jamais poderia
nos paupérrimos — a pensão de Mary Austin é simples e antiquada, mas não é garantir. Eles só poderiam vir daqueles textos lutera-
suja, tampouco está caindo aos pedaços. O estilo de Micheaux se aproxima do nos “desprezíveis” e de suas polêmicas desconfortá-
estilo e da estética de seus retratados em maior grau do que se evidencia nas veis. Sua maneira hortativa e desabonadora de tocar
fotos de Evans e de Lee; assim, os retratados pelo cineasta são menos destaca- Bach atingiu seu pico no meio da série, e a década
dos, relevados ou colocados em primeiro plano pelo estilo que os representa. que passou não fez nada para diminuir seu poder de
As cenas escuras e granuladas de Micheaux se parecem com jornais e revistas chocar — ou de repelir. Se você quer entrar em con-
de arte desbotados que decoram as casas dos arrendatários nas fotografias de tato com a obra essencial de Bach em toda a sua força
Evans e de Lee. Eles reproduziram esses interiores, geralmente desorganizados horrenda, as performances do senhor Harnoncourt se-
e paupérrimos, em fotografias frequentemente elegantes e ricamente produzi- guem incontornáveis.26
das. Micheaux, como produtor, no entanto, estava muito mais próximo do status
econômico e do estilo de seus retratados do que dos respeitáveis (cf. refinados) De forma análoga, se você quer entrar em contato com o que o afro-ame-
valores dos ideais de classe média de Evans e de Lee, que norteavam a visão ricano tem de essencial em toda a sua força “horrenda” (sem ser tingida de
que tinham de seus retratados. branco), o estilo de jazz de Benny Carter e os race movies de Micheaux “seguem
É possível objetar que o piano, nessa sequência, está fora de ritmo ou não incontornáveis”.
tem ressonância, e que não há ironia alguma nisto, o que deixa a cena ridícula. Não há dúvidas quanto à habilidade de Benny Carter de produzir música
No entanto, o piano de um dos grupos de jazz de Benny Carter, Benny Carter mais bem-acabada, já que ele passou grande parte de sua carreira escreven-
and His Swing Quintet, é exatamente assim. A instrumentação nas músicas do músicas e arranjos destinados a orquestras muito suaves para filmes holly-

150 151
woodianos, programas de televisão convencionais e comerciais. A escolha dele gressivamente mais sofisticado e também mais fragmentado. A montagem
por instrumentos originais em algumas de suas gravações foi consciente, consi- alternada fica mais confusa, com jogos de olhares complexos e heterodoxos.
derada por ele como esteticamente legítima, e resultou em um de seus trabalhos
mais cativantes. Os atores e instrumentos de Micheaux também foram legíti- 2) Em diversos pontos da narrativa, os personagens olham para a câmera, re-
mos, apesar do fato de as escolhas do cineasta talvez terem sido menos intencio- curso usado com sensibilidade. Quando Alonzo e Norma declaram os sen-
nalmente estéticas, porque estavam mais restritas a entraves culturais e econô- timentos que nutrem um pelo outro e juram manter seu relacionamento em
micos. Nesse sentido, seus filmes são comparáveis, em estilo, às pinturas e às segredo, eles olham para a câmera. Quando eles discutem sobre o amante de
esculturas de artistas “outsiders” ou “autodidatas” de sua era, como Grandma Liza Hatfield na segunda metade do filme (um magnata da jogatina chamado
Moses (1860-1961), William Edmundson (c. 1870-1951), Horace Pippin (1888- Gomez), durante a “ruptura” da canção de Liza (esta cena é discutida abai-
1946), Elijah Pierce (1892-1984), William Hawkins (1895-1990), Gertrude xo), referem-se a ele como “furtivo”. Ao enfatizarem o termo “furtivo”, falam
Morgan (1900-1980), Nellie Mae Rowe (1900-1982), e muitos outros.27 Se Mi- diretamente para a câmera. Isso pode parecer representação do discurso di-
cheaux tinha ou não o talento de um Benny Carter ou de um Elijah Pierce é uma reto, de integridade e de boa-fé, por meio de um simples, pseudoteatralizado
questão que permanece aberta, mas ela não é relevante a esse estilo específico. gesto de manifestar-se à plateia. Tal recurso também pode ser visto como
A avaliação das conquistas de Micheaux mal começou, e critérios valorativos parte de um estilo que é menos ilusionista e cintilante que o de Hollywood.
fundamentais para isso ainda são obscuros. Mesmo que esses olhares para a câmera ou para a “plateia” sejam incons-
Depois que a canção da irmã de Mary Austin acaba, o plano-sequência conti- cientes ou indesejados pelo cineasta, mesmo que sejam “erros”, eles têm
nua com esta parabenizando a irmã pela perfeição de seu desempenho e lamen- uma consistência de padrão que constitui uma quebra no ilusionismo, uma
tando a falta de recursos financeiros que a impede de mandar a irmã a Chicago improvisação que tende a avançar os temas de Micheaux e a representar sua
para fazer carreira. Mary Austin bate com o punho na mão espalmada e diz: “Se franqueza enunciativa. Eles representam uma atitude diante do fazer cinema
eu tivesse mais inquilinos, poderia mandá-la em breve.” A referência de Mary que é mais não ilusionista do que anti-ilusionista, além de fundamentalmen-
Austin à sua falta de recursos pode ser entendida como uma forma de expressar a te diferente da atitude clássica.
angústia de qualquer “produtor” ou agente de talento — como ocorre com Mary
Austin em relação à sua irmã, ou com Micheaux, ele próprio um produtor de fil- 3) Toda a produção, de certa forma, muda-se para o Harlem no meio do filme.
mes. A produção e o estilo de filmagem dessa cena podem ser lidos como partes Isso pode ser considerado uma falha séria, porque o deslocamento para o norte
da representação do desejo por recursos financeiros; ou seja, Micheaux apresen- parece quebrar a narrativa em duas, e porque a seção passada no Harlem se
tou Mary Austin como detentora de um problema de produção similar ao dele, e, torna uma história aparentemente gratuita de segundas chances para todos os
assim, o estilo do filme se transforma num tema que contribui para a narrativa. O personagens. Algumas das histórias são simplesmente cortadas, outras são
estilo duro de Micheaux se tornou um tema tratado pelo filme, assim como a luta retomadas posteriormente. No entanto, essa quebra extrema e atabalhoada
com a dualidade, que é inerente ao estilo de todos os race movies, porém ausente não é infundada, mas sim íntegra no que se refere tanto ao tema da dualidade
nos filmes hollywoodianos produzidos para plateias negras. quanto ao tema do financiamento da produção. John Russell Taylor, de modo
Os temas do financiamento da produção e da representação da luta com a semelhante, defende a unidade de O invencível (Aparajito, 1957), de Satyajit
dualidade podem ser notados nos seguintes pontos do filme: Ray, cujo título, por curiosidade, remete ao do primeiro romance de Micheaux,
The Conquest [A conquista], e cujos sofrimentos narrados se assemelham aos
1) Há diversas outras cenas em que pessoas cantam no filme, duas das quais dos personagens de Micheaux e seu estilo “incompetente”:
na pensão durante a primeira metade do filme, e as outras numa casa notur-
na no Harlem na segunda metade. Cada uma dessas sequências na pensão Muitos dos críticos que admiram o filme sentem que
é apresentada num estilo distinto. Essas três cenas podem ser entendidas ele é disjunto e que lhe falta unidade (...) e que, no me-
como uma progressão, em que as mudanças de estilo e de significados nar- lhor dos casos, ele faz sentido formal como uma espécie
rativos constituem um desenvolvimento dos temas subjacentes da luta com de dobradiça entre os dois filmes da ponta [da trilogia
a dualidade na ascenção afro-americana. Nelas, o estilo vai ficando pro- de Apu]. Não consigo concordar com isso (...) O que dá

152 153
unidade ao filme, apesar de sua aparente quebra no Austin — é um plano longo de uma performance vocal feminina —, eles se dis-
meio, quando Apu e sua mãe voltam de Varanasi para o tinguem claramente. Já que Liza acaba sendo o problema central, para não dizer
campo (...) é o tema contínuo do relacionamento de Apu epônimo, do filme, sua relação com a ostentação no que concerne seus números
com Sarbojaya, e o conflito entre suas novas experiên- — aqueles de Paris e do Radium Club, onde ela canta no Harlem — sugere uma
cias e os modos tradicionais de vida.28 [Grifo meu.] atitude definitiva em relação às questões de financiamento de produção para
afro-americanos lutando com a dualidade. O número musical mais rebuscado,
No caso de A garota de Chicago, a quebra no meio representa a Grande apesar de agradar ao protagonista, Alonzo, e de se destinar a agradar às plateias
Migração, que dividiu famílias negras e sociedades para sempre. Tal migração de Micheaux, é ainda assim alocado de modo explícito no campo da vilania, do
perdurou durante a depressão (período em que A garota de Chicago foi feito), fugidio e da sedução.
quando milhares de afro-americanos ambiciosos se mudaram do sul rural e
pobre para o norte industrializado, urbano e capitalizado. Como os camponeses Conclusão
de Ray, os sulistas de Micheaux foram para as cidades do norte a fim de conse-
guir emprego. Tais migrações podem ser vistas como relacionadas ao discurso Micheaux certamente não teve por objetivo que todos os aspectos mais ás-
de Micheaux sobre produção. A procura de emprego foi literalmente um ato de peros de seu estilo transparecessem da forma aqui sugerida, mas seu estilo é
financiamento pessoal e doméstico, e a procura de enriquecimento por artistas e ainda assim apropriado e merecedor de sua situação, seus temas e suas ques-
empreendedores eram buscas por oportunidades de produção e financiamentos tões. Isso indica que seus feitos podem ter sido maiores do que se reconhece
corporativos. Mary Austin e sua irmã, assim como Alonzo e Norma, são alguns hoje. O estilo de Micheaux serviu a temas importantes, como o financiamento
dos personagens de A garota de Chicago que vão ao norte para refinanciar suas da cultura afro-americana, e forneceu uma abordagem complexa e digna ao di-
vidas pessoal e produtiva. lema da dualidade. Micheaux representou a esperança, e também os perigos, da
Há várias cenas com números musicais na segunda metade do filme. A mais assimilação. Ele comparou os anseios de uma cantora amadora e as conquistas
importante delas apresenta a garota de Chicago do título, Liza Hatfield, como de uma cantora profissional, e incorporou ideias a respeito dos valores de pro-
a cantora que lidera uma banda de jazz. Liza representa a abordagem “errada” dução e de estilo de cada uma. Os valores elevados de financiamento e de estilo
à problemática da dualidade e dos valores e estilo de produção, em compa- são associados a Liza Hatfield, que é praticamente uma prostituta; os valores
ração com a abordagem “correta”, que é representada pelo número anterior, mais baixos são associados aos anseios de uma personagem com um talento
mais amador, na pensão (já discutido). A antecipação narrativa é construída que ainda não foi plenamente desenvolvido, mas que tem integridade pessoal.
em torno da apresentação de Liza quando o protagonista masculino do filme, Micheaux, esperançoso e receoso, agregou seu próprio estilo subdesenvolvido
Alonzo White, faz um comentário para Norma em que chama Liza de exótica e e sua integridade pessoal a ambos os casos. Ele, que talvez apreciasse a ideia
estranha, em parte porque Liza é vista como regressando de sua carreira bem- de ser assimilado aos aspectos mais “elevados” da cultura norte-americana,
-sucedida em Paris e é de origem afro-americana desconhecida. O número de representou tal assimilação como perigosa, e também como atrativa, para afro-
Liza é interrompido por um corte da música para outra longa discussão a respei- -americanos. A ideia de uma atração perigosa é um dilema. Trata-se de uma
to dela entre Alonzo e Norma (na mesa deles na casa noturna). O corte atua no reflexão sobre a luta com a dualidade na ascenção afro-americana, uma luta que
sentido de expandir o tempo e de desprezar a continuidade, um estilo ingênuo toma forma num estilo “cuja força insistente basta para impedir que se rompa”.29
encontrado em filmes antigos, como em A vida de um bombeiro americano (The
Life of an American Fireman, 1903) e no estilo (não ingênuo) de vanguarda de
Sergei Eisenstein dos anos 1920. Quando a discussão entre Alonzo e Norma 1 No original, “Twoness and Traduzido do inglês por Guilherme (Londres, Oxford University Press,
termina e retornamos ao número musical, a música continua do mesmo ponto Micheaux’s Style”. Originalmente Semionato. (N.E.) 1977).
publicado como um capítulo de
que a ouvimos pela última vez; sua linha do tempo fora suspendida. A cena, Straight Lick: The Cinema of Oscar 2 W.E.B. Du Bois, The Souls of Black 4 Donald Bogle, Toms, Coons,
Micheaux (Bloomington: Indiana Folks. In: Three Negro Classics (Nova Mulattoes, Mammies, and Bucks
então, continua deste ponto como um longo plano, sem outra interrupção. A University Press, 2000). Material York: Avon, 1965), pp. 214-15. (Nova York: Viking, 1973); Daniel
música “Love is a Rhapsody” intenta ser sedutora e sofisticada. Apesar de o cedido como cortesia pela editora. J. Leab, From Sambo to Superspade:
Todos os direitos reservados. 3 Thomas Cripps, Slow Fade to Black The Black Experience in Motion
número musical de Liza lembrar de certa forma a performance da irmã de Mary

154 155
Pictures (Boston: Houghton Mifflin, Black. Ver Green, “Reemergence”, 17 Cripps, Slow Fade, p. 172.
1975). para mais discussões acerca de
Black Film as Genre. 18 Cripps, Slow Fade, p. 260-61.
5 Cripps, Slow Fade, p. 3.
15 O termo “retórica” se refere 19 Ronald Hayman, Fassbinder: Film
6 Cripps, Slow Fade, p. 7. à tendência dos discursos Maker (Nova York: Simon and
dominantes (como o de Schuster, 1984, p. 138.
7 Cripps, “Oscar Micheaux: The Hollywood) ou dos discursos
Story Continues”. In: Diawara, de oposição (como o dos filmes 20 Roy Armes, Third World Film
Black American Cinema, pp. 74-75; raciais em relação a Hollywood) Making and the West (Berkeley:
Jesse Algernon Rhines, Black Film/ para construir argumentos, University of California Press,
White Money (New Brunswick, N.J.: seja direta ou indiretamente. 1987).
1996), pp. 83, 86 e passim.

8 Nelson George, The Death of


Por exemplo, se os “mocinhos”
nos filmes hollywoodianos
são quase sempre brancos e
21 Cripps, Slow Fade, p. 6. Cinema
Rhythm and Blues (Nova York: os “vilões” incluem brancos, 22 bell hooks, “Micheaux: Celebrating
Pantheon, 1988), pp. 57-58.

9 Quando este artigo estava prestes


mas também negros, então a
retórica do discurso dos filmes de
Hollywood pode ser entendida
Blackness”, Black American
Literature Forum, vol. 25, nº 2, verão
de 1991, pp. 351-60.
de classe
a ser concluído, Robert L. Johnson, como “pró-branca”. Ao distinguir
o presidente e fundador da Black
Entertainment Television, anunciou
um plano para “dar início a um
retórica do “fato natural” ou
da “realidade”, entende-se
que, na verdade, nem todas
23 Neal Gabler, An Empire of Their
Own: How the Jews Invented
Hollywood (Nova York, Crown
média 1

empreendimento destinado a
fazer filmes de baixo orçamento
as pessoas negras são “más” e
que algumas pessoas negras são
Publishers, 1988), p. 5. J. Ronald Green
com atores negros, financiados e “boas”, então a escolha de não 24 In: Roland Barthes, Image-Music-
produzidos por afro-americanos incluir tais aspectos da realidade Text, transcrição e edição de
e direcionados primordialmente num discurso é retórica, Stephen Heath (Nova York: Hill
ao mercado urbano negro (ver intencionalmente ou não. Se, and Wang, 1977).
Geraldine Fabrikant, “BET to no cinema hollywoodiano, as
Establish a Film Unit Aimed at Black características de “retidão” ou 25 Movimento cultural que
Urban Market”, New York Times, 10 de “competência” são reservadas atravessou a década de 1920
de julho de 1998). quase sempre aos homens, nos Estados Unidos. Também
enquanto a incompetência ou conhecido como “New Negro

A
10 Propositadamente grafado em o erro são reservados para as Movement”, fez florescer a arte e a
caixa-baixa. (N.T.) mulheres, então a retórica do
discurso dos filmes de Hollywood
literatura afro-americana no bairro
do Harlem, na cidade de Nova
meta de ascensão da raça foi comumente retratada como a conquista
11 bell hooks, “Representations pode ser considerada como York. (N.T.) do status de classe média pelos afro-americanos. O termo (e a ideia)
of Whiteness in the Black “patriarcal”.
Imagination”. In: hooks, Black O termo “estética” se refere aos 26 Richard Taruskin, “Facing Up, de uma classe média é empregado aqui, e preservado ao longo deste
Looks: Race and Representation padrões de beleza ou de prazer Finally, to Bach’s Dark Vision”. New
(Boston: South End, 1992); Carol sensual exibidos ou implicados York Times, 27 de janeiro de 1991,
estudo, apesar de sua vagueza semântica. As dificuldades de sua aplicação
J. Clover, Men, Women, and Chain no discurso, evidenciados por pp. H25, H28. aos afro-americanos são notórias. Kevin Gaines diz: “A consequência d[a]...
Saws: Gender in the Modern Horror seu estilo em relação à sua
Film (Princeton, N.J.: Princeton retórica. Por exemplo, se os 27 Ver Museum of American Folk interpretação da história da opressão e da liberação negra com foco no es-
University Press, 1992). “mocinhos” são sempre brancos, Art, Self-Taught Artists of the 20th
altos e filmados de baixo, para Century: An American Anthology paço privado e despolitizado da família, e a ênfase em explicações culturais
12 Robert Stam, “Bakhtin, Polyphony,
and Ethnic/Racial Representation”.
que pareçam maiores e mais
dominantes, e se são associados à
(São Francisco: Chronicle Books,
1998).
e comportamentais para a pobreza dos negros, foi uma ideologia de classe
In: Unspeakable Images: Ethnicity beleza plástica, então a associação média autorrecriminatória que frequentemente situou homens e mulheres
and the American Cinema, ed. de tais escolhas de estilo com a 28 John Russell Taylor. In: Cinema: A
Lester D. Friedman (Urbana: retórica da “bondade” implica Critical Dictionary, ed. Richard Roud negros em oposição, internalizando atitudes predominantemente antinegras
University of Illinois Press, 1991), num padrão de beleza associado (Nova York: Viking, 1980), vol. 2, p.
pp. 259-60. positivamente não apenas com 817.
e misóginas.” E: “à luz de seu desdobramento trágico dentro de uma for-
a altura (e a dominância), mas mação social racista, é mais acurado dizer que muitos negros, ou brancos,
13 Clover, Chain Saws; Robin Wood, também com a branquidade. 29 Du Bois, Souls, p. 215.
Hollywood from Vietnam to Reagan “Beleza” e branquidade, ao sempre quanto a isso, não pertenciam à classe média em nenhum sentido material
(Nova York: Columbia University aparecerem juntas, sugerem uma
Press, 1986). à outra. Escolhas estilísticas na ou econômico, mas se autorrepresentavam enquanto tal.”2 Um termo outro
14 Este argumento se refere a Slow
produção dos filmes são feitas,
consciente ou inconscientemente,
que “classe média” poderia ter sido escolhido, mas, apesar dos problemas
Fade. Cripps revisou sua avaliação no contexto dos campos retórico filosóficos e semânticos, nenhum parece mais apropriado. O termo “classe
sobre filmes independentes em seu e estético; esses campos podem
livro seguinte, Black Film as Genre, ser complexos ou simples, mas são média” precisa ser recuperado no atual estágio da era burguesa, uma era
que reconhece valores especiais sempre operativos.
em alguns dos “malogrados” filmes
em que “burguês” significa classe superior, e não classe média. No mundo
negros clandestinos. Cripps, no 16 Harold Bloom, The Anxiety of desenvolvido, muitos cidadãos, mesmo cineastas e escritores de oposição,
entanto, retorna substancialmente Influence (Nova York: Oxford
ao argumento de Slow Fade em sua University Press, 1973). pertencem à classe média.
obra mais recente, Making Movies

156 157
O cinema de Micheaux é possivelmente o único cinema filosófica e financeira- política, ele também considerava os altos valores de produção como o traço
mente de classe média na história do cinema americano. Já que grande parte do ci- estilístico que mais limitava seu acesso aos valores estéticos clássicos, devido à
nema de arte de baixo orçamento é antiburguês e anticlasse média, e já que grande sua conexão direta ao dinheiro.
parte do Terceiro Cinema é de esquerda, trata-se de cinemas financeiramente de Micheaux via os altos valores de produção como atrativos, mas também como
classe média, mas não filosoficamente. Contrariamente, E.T. de Steven Spielberg perigosos. Sendo eles tão perigosos quanto os valores de produção muito baixos,
(1982) e O Reencontro (The Big Chill, 1983) de Lawrence Kasdan são filosofi- Micheaux recomendava, e tentava seguir, um caminho intermediário. Assim
camente de classe média (seus valores são, respectivamente, representativos da como os personagens bons em seus filmes sempre escolhiam um caminho inter-
mentalidade do subúrbio e da mentalidade yuppie), mas não são financeiramente mediário entre a ascensão e a degradação, a moderação fora também o caminho
de classe média — seus valores de produção são bastante elevados e, consequen- que Micheaux acreditava permiti-lo, na vida real, prosseguir em direção a seu
temente, muito caros. A combinação atípica de Micheaux entre os valores filosófi- objetivo de mobilidade social através do negócio e da arte do cinema.
cos da classe média (“a ascensão”) com a produção de classe média tem sido uma Micheaux abordava a ética, bem como a pragmática dos valores de produção.
vasta, porém injustamente depreciada, receita para a realização de filmes. Em seus retratos cinematográficos de relações sociais exploratórias, a fasci-
nação de um personagem por status extremamente elevados representava um
Um padrão de moderação desejo por relações desiguais e exploratórias com outras pessoas. Micheaux re-
comendava a moderação. Sua filosofia de relações sociais igualitárias estava
Os primeiros capítulos desse estudo demonstraram que os baixos valores de diretamente ligada aos padrões de produção que repousavam em algum lugar
produção foram a principal razão para as avaliações críticas negativas da obra entre os do blues e os do “Great White Way”4
de Micheaux desde a era do cinema silencioso. O próprio Micheaux tratava o A crítica de Micheaux aos estereótipos e caricaturas dos negros produzidos
problema do subfinanciamento em seu discurso cinematográfico, argumentando pelos brancos é coerente à sua compreensão dos valores de produção. Preocupado
que os baixos orçamentos são uma questão estética, porque os valores de pro- que alguns afro-americanos se identificassem com os papéis de classe baixa e
dução altos e dispendiosos são inerentemente exclusivos. O conflito desigual com a degradação imposta a pelo processo material e esteticamente exclusivo do
entre os valores de produção altos e baixos no plano estético reflete o conflito cinema de grande orçamento, Micheaux apontou não apenas para o perigo dos
desigual entre ricos e pobres na sociedade americana, um conflito bem ilustra- altos valores de produção em si (a fragilidade do status falsamente elevado), mas
do na crítica de Micheaux aos filmes de Griffith. As causas do “problema” dos também para o perigo concomitantemente inverso, dos papéis degradados defini-
baixos valores de produção são as seguintes: o estabelecimento bem sucedido, dos para os excluídos do padrão esteticamente custoso (status falsamente degra-
por D. W. Griffith e Hollywood, dos altos valores de produção como o principal dado). Sua crítica, em A casa atrás dos cedros (Veiled Aristocrats, 1932), à falsa
modelo de beleza cinematográfica através de todas as classes da sociedade oci- aristocracia como uma resposta a tal degradação ilustra os perigos da assimilação
dental; a reivindicação, por parte de produtores bem sucedidos, da necessidade excessiva dos padrões sociais dos brancos, padrões fundados em um princípio de
de um padrão mínimo (alto) dos meios de produção; e o corolário implícito na exclusão que não era do interesse dos afro-americanos. Micheaux defendia uma
reivindicação, por parte dos produtores bem sucedidos, de representar com ex- classe média negra fundada na meritocracia, ao invés de um classe alta negra
clusividade não apenas a classe que possui a riqueza necessária para os altos fundada em valores extrameritocráticos, como a cor da pele e a origem familiar.
valores de produção, mas todos os estados materiais. Novamente — face aos perigos sucessivos das posições de classe artificialmente
A crítica de Micheaux a Griffith pode ser entendida como um debate en- baixas (caricatura) e artificialmente altas (imitando aristocracias) — Micheaux
tre a política social exclusiva vs. inclusiva — a “unicidade” de Griffith vs. a recomendava um caminho intermediário entre os extremos.
“dualidade” de Micheaux. Micheaux era mais moderado, mais aberto politica Seu filme Assassinato no Harlem (Murder in Harlem, 1935) demonstra por-
e formalmente, e mais dialético em sua abordagem da arte, que são caracterís- que a moderação nos valores de produção e nos bens materiais possui integrida-
ticas da dualidade; Griffith era mais extremo, mais fechado formalmente (por de estrutural frente a um sistema de classes e uma estética clássica; buscar uma
exemplo, o resgate de último minuto mostrado através de uma montagem parale- posição de classe superior seria assegurar a perpetuação da posição de classe
la de “pontos únicos”) e menos dialético, que são características da unicidade.3 inferior, o que é, no contexto de ações de classe agregadas por todos os afro-
Apesar de Micheaux, assim como Griffith, ter tido de lutar contra a censura -americanos participativos, contraprodutivo. E uma vez que o conflito de classes

158 159
era impraticável para os afro-americanos,5 Micheaux julgava que a classe média uma floresta de questões vigorosamente contestatórias e crucialmente importan-
constituía uma meta estruturalmente alcançável não apenas por qualquer um tes. Neste estudo, esse caminho complexo e por vezes contraditório será, a partir
como por todos, sendo, portanto, uma meta com integridade estrutural. de agora, acompanhado por questões de classes superiores e inferiores, da ética
A branquidade fora frequentemente considerada inerente aos ideais de clas- mestre/escravo, da caricatura de entretenimento falsamente degradada ou falsa-
se média de Micheaux. Por outro lado, artistas vanguardistas brancos em todos mente elevada, das políticas raciais assimilativas ou separatistas, das filosofias de
os meios, incluindo o cinema, exibiram tendências abertamente anticlasse mé- educação intelectual vs. vocacional de Du Bois e Booker T. Washington, e dos es-
dia enquanto permaneciam, como apontam os teóricos do Terceiro Cinema, eco- tilos estéticos clássico e alternativo. Os valores de produção moderados exibidos
nômica e ideologicamente articulados às relações de produção burguesas. O ci- em seus filmes manifestam e representam a dureza de sua luta, assim como da
nema de arte produzido por brancos varia entre o modelo popular de Hollywood, eficácia de sua decisão por seguir um caminho intermediário. Ao continuar a fa-
em que as visões das classes baixa, média e alta foram criadas por produtores zer filmes dessa forma durante três décadas, Micheaux revisou a ideia de cinema
materialmente pertencentes às classes altas; e as visões antiburguesa e anti- de classe média; também alcançou uma vida de classe média e criou uma visão
classe média (cinema de arte), criadas por produtores materialmente perten- dinamicamente equilibrada da cidadania afro-americana, tratando diretamente
centes à classe média. Visões de classe média criadas por produtores de classe algumas questões perturbadoras da ideologia da classe média negra.
média, como é o caso de Micheaux, são sub-representadas entre os cinemas A ampla crítica de Micheaux aos padrões dos valores de produção como um
brancos. Na verdade, Micheaux propõe, em Os filhos adotivos de Deus (God’s elemento estilístico e análogo às bases materiais de um estilo de vida é possivel-
Step Children, 1938), excluir o elemento da branquidade de sua visão de uma mente sua contribuição mais original. Através de um discurso sobre os valores
classe média explicitamente negra (ver Green, Visions of Uplift, publicação em de produção (uma práxis), Micheaux ilustrou o quanto a beleza e a verdade
breve). Micheaux proferia uma filosofia de lealdade racial e de autossuficiência estão ligadas às relações econômicas e sociais inerentes à produção cultural.
parcial para os afro-americanos face à supremacia branca. Não é fácil citar outro cineasta da era de Micheaux que tenha edificado uma tal
Micheaux foi capaz de criar uma nova espécie de cinema, que hoje seria reco- crítica, nem mesmo nas vanguardas soviética e europeia do fim dos anos 1920
nhecida como pós-moderna, pelo cruzamento de espécies diferentes. Análises dos e no movimento relacionado de documentário social dos anos 1930. A criação
filmes de Micheaux evidenciam a sua habilidade de improvisar através do uso de de Micheaux de um cinema consistente feito com meios de produção precários
materiais da cultura popular americana híbrida. Sua utilização da música em O — como aquele de cineastas soviéticos, italianos, franceses e britânicos - é
Exílio (The Exile, 1931), por exemplo, mostra que a sua posição de classe média inventiva, adaptativa e transformadora. Nas mãos certas, tais “bastões tortos”
permite a reunião, de forma equitativa, de vários estilos musicais, tanto negros podem gerar uma “escritura reta”. E, como a discussão seguinte tenta apontar,
quanto brancos. A falta de comprometimento exclusivo a algum gênero musical o discurso de Micheaux sobre esses valores de produção precários transcende a
produziu um estilo de colagem, improvisação, significação e posicionamento ide- obra de seu tempo — e transforma esse bastão torto no cajado de Aarão.
ológico comparável de certa forma à race music de seu tempo, mas também sur-
preendentemente comparável ao estilo dramatúrgico de Brecht e aos estilos cine-
matográficos de Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet e Yvonne A lógica dos valores
Rainer. A importância nos interesses cinematográficas atuais (tanto no domínio de produção — uma ética entre
da representação quanto da estética) quanto a um estilo que encoraje o hibridismo Mantenedor e Mantido
ajuda a explicar o ressurgimento do interesse pelos filmes de Oscar Micheaux.
Os valores de produção moderados evidentes dos filmes de Micheaux foram As histórias de Micheaux não apenas sugerem por que baixos valores de
frequentemente vistos com lamento ou como desculpa. O próprio Micheaux pro- produção eram (e são) necessários frente à tarefa da elevação, mas também,
vavelmente se entregava a esses dois sentimentos; no entanto, ele os tratava como mais filosoficamente, elas sugerem que os baixos valores de produção são mais
a matéria da vida e da arte que exigia uma atitude equilibrada e progressista. éticos que os altos valores de produção. Micheaux demonstrou de que maneira
Sua luta otimista, porém inflexível com os padrões e realidades dos altos e baixos diferenças econômicas extremas, como numa das configurações características
valores de produção fazia parte de uma práxis dialética que se estendia a ou- do blues do “mantenedor” e do “mantido”6, eram antiéticos, e sugeria que tais
tros aspectos de sua obra. Micheaux abriu um caminho intermediário através de relações econômicas eram análogas às relações de produção na indústria de

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entretenimento. O enredo de Micheaux sobre produtores negros na Broadway, Claramente para Micheaux, a ética Protestante e os fundadores da nação pro-
Swing! (1938), trata dessas questões utilizando os personagens principais como viam um exemplo a se emular. Se, como dizia Weber, o capitalismo “moderno”
alter-egos do próprio diretor e de sua esposa, Alice B. Russel, que atuava como era caracterizado pela restrição e não pela ganância, ele também “identificava-
sua produtora sob o nome de A. Burton Russel. Dessa forma, Micheaux anali- se à busca por lucro, e o lucro sempre renovado através do empreendedorismo
sará as relações de produção nos race movies. Apesar do comprometimento de capitalista contínuo e racional.”9 Weber precedeu Micheaux em uma geração,
Micheaux com o capitalismo empreendedor, sua análise de sua própria situação florescendo enquanto Micheaux se desenvolvia; Micheaux respiraria a atmosfera
socioeconômica pode ser entendida como uma crítica sobre os efeitos prejudi- das ideias influentes de Weber sobre o capitalismo, apesar de provavelmente não
ciais do capitalismo monopolista ao caráter, e, portanto, à ascensão. o ter lido. Micheaux, em outras palavras, desenvolveu seu tema da elevação den-
Naturalmente, dada a atitude de Micheaux em relação aos altos custos de tro da atmosfera filosófica de um capitalismo restritivo e racional. Apesar de ter
produção, a ética protestante era central em seus valores, como também era vivido na época dos magnatas e da supressão brutal do movimento trabalhista,
nos valores das famílias fundadoras dos EUA e nos valores da Europa ascen- sua formação ocorrera antes das guerras mundiais, antes da revolução Soviética
dente, tal como discutido por Max Weber em A ética protestante e o espírito do e antes da dialética negativa anticapitalista da Escola de Frankfurt.
capitalismo. Weber indicava que “a [i]limitada ganância por lucro não é em Embora inegavelmente capitalista, o próprio discurso de Micheaux sobre a
nenhuma medida idêntica ao capitalismo, e menos ainda ao seu espírito” e que ética de produção reflete o dilema da dualidade dos afro-americanos. Ao fundar
“o capitalismo pode ser idêntico à dosagem restritiva ou no mínimo racional as possibilidades de mobilidade social dos negros na ética de trabalho Calvinis-
desse impulso irracional.”7 Weber se referia ao capitalismo tal como propagado ta e capitalista, Micheaux advogava um estilo de vida que a supremacia branca
pelos fundadores calvinistas da América, colorido pela significância histórica reivindicava como exclusivo à sua própria raça. Nesse sentido, embora estivesse
profunda que Weber atribuía àquele mesmo momento na Europa. a tornar-se “mais branco”, Micheaux estava ao mesmo tempo tornando-se trans-
Micheaux, em seu primeiro romance, The Conquest, descrevera sua reação gressivo ao apossar-se dos métodos brancos de ascensão que já haviam sido
às famílias fundadoras da América através da reação de seu protagonista, De- provados e eram mantidos fechados.
vereaux, à cidade de Boston: Ao conservar os valores dessa transgressão e dessa ascensão, Micheaux
criticou a estrutura socioeconômica e as implicações éticas do blues. Ele ca-
Nesse tempo eu já havia visto praticamente todas racterizou as figuras do “mantenedor” e do “mantido”, por exemplo, como um
as cidades importantes dos Estados Unidos e nenhuma aspecto negativo da cultura do blues, análogo à lógica mestre e escravo, respec-
delas me interessava tanto quanto Boston. tivamente. Ao estender a ideia do mantenedor e do mantido às circunstâncias
...os transatlânticos estacionavam bem na porta do financeiras produção cultural negra — como o musical negro na Broadway e
elegante distrito de Back Bay... Nem mesmo três quar- os próprios race movies financiados por brancos — Micheaux apontava para as
teirões de distância dali, o ponto em que a interseção contradições éticas na ascensão afro-americana no contexto do capitalismo pe-
da Avenida Huntington e a Rua Boylton [sic] forma um queno-burguês. Como Charles Burnett viria a fazer bem mais tarde em um filme
ângulo agudo sobre o qual se ergue a Biblioteca Pú- sobre a classe média negra, Não durma nervoso (To Sleep with Anger, 1990),
blica, e no ângulo oposto encontra-se Igreja da Trin- Micheaux examinava essas questões no contexto do blues.
dade, tão espessamente adornada de aristocracia e a
memória preenchida pela tradição de Philip Brooks, o
último daquele grupo de poderosos oradores de púlpito O Blues
americanos, sobre quem eu havia tanto lido....
Passava as manhãs vagando em torno da cidade, vi- A forma do blues é potencialmente atrativa aos proponentes de uma arte
sitando Faneuil Hall, a velha Assembleia Legislativa, alternativa e antiburguesa, em parte devido ao seu conteúdo transgressivo, mas
Boston commons [sic], Bunker Hill e mil outros símbo- também devido ao fato de seus valores de produção caseiros desafiarem as for-
los do heroísmo jovem, da coragem brutal e da grandeza mas de arte mainstream. Uma das qualidades que os altos valores de produção
visível de longe dos primeiros cidadãos de Boston.8 dissimulam é o trabalho necessário para produzir valor. A perfeição impecável

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da música altamente produzida, seja popular ou clássica, sugere uma graça na- meio ao trabalho pesado e precoce na fazenda, na fábrica e na estrada de ferro,
tural e sem esforço. Essa graça, e sua relação com o trabalho que a produz, é também estava destinado a realizar a transição do trabalho manual pesado para
análoga aos estilos de vida da classe alta ociosa e sua relação com o “trabalho os setores de serviço e de profissionais liberais da classe média. Como produtor
morto”, invisível, do próprio capital. O mesmo tipo de invisibilidade do trabalho de filmes, Micheaux competia com corporações altamente capitalizadas. Seria
define o estilo de montagem contínuo e a superfície reluzente do cinema de interessante estudar a própria posição social de Micheaux e os consequentes
Hollywood. As teorias cinematográficas pós-estruturalistas dos anos 1970 de enredos de seus filmes no contexto das análises de Weber e Theodor Adorno so-
Metz, Dayan, Oudart, Commoli, Baudry, Burch e Heath afirmam que o “traba- bre classe em relação à ruptura básica entre trabalho manual e mental. Para os
lho cinematográfico” oculto subjacente ao estilo impecável do cinema mains- últimos dois autores, essa ruptura fora fundamental para o desenvolvimento do
tream e de alto orçamento — análogo ao “trabalho do sonho” na explicação de Iluminismo, do capitalismo, da reificação, e de todas as relações de classe mo-
Freud sobre o efeito realístico dos sonhos — produz o famoso “efeito de reali- dernas. Possivelmente nesses termos, a ascensão, sempre que ocorre nos tempos
dade” do cinema denominado também, notoriamente, de ilusionista. A ausência modernos, é uma recapitulação filogenética da ontogenia do “pecado original”,
da evidência dissimulada do trabalho de produção é necessária ao sucesso do a divisão básica do trabalho entre manual e mental. Em todo caso, sendo Mi-
estado de sonho em Freud e do estado de ilusionismo no cinema mainstream na cheaux um novato na classe média e um produtor independente self-made, seria
teoria pós-estruturalista. provável que não criasse nem um estilo rural (camponês) nem de classe operária
Segundo a teoria cinematográfica dos anos 1970, a ausência de qualquer (proletária), tampouco um estilo refinado (burguês, de classe alta), mas sim um
evidência do trabalho, da luta e da política é central ao funcionamento do ci- estilo de “classe média” ou mesmo pequeno-burguês, um estilo coerente com
nema clássico hollywoodiano. O célebre ensaio sobre A mocidade de Lincoln os valores da elevação que são, na verdade, refletidos na ética Protestante e nos
(Young Mr. Lincoln, 1939), de John Ford, pelos editores da Cahiers du Cinéma, temas à la Booker T. Washington dos filmes de Micheaux.
clarifica como o trabalho cinematográfico se relaciona ao trabalho do sonho, Seu filme Swing! (1938) analisa efetivamente as origens da classe trabalhado-
como o trabalho cinematográfico cria analogamente um efeito de realidade com ra do entretenimento negro, representado pelo blues, em relação aos objetivos da
o objetivo de produzir uma ideologia artificial que parece natural.10 O blues, classe média alta representados pela invasão histórica da Broadway pelo teatro
contudo, é uma forma inteiramente diferente, com relações essencialmente di- musical negro. O próprio título Swing! sugere o dilema central da cultura de
ferentes em sua produção e na representação de sua produção. O blues tem sua entretenimento negra, já que o swing era uma apropriação da classe média bran-
origem, entre outras fontes, nas canções rurais de trabalho afro-americanas ca das formas musicais da classe trabalhadora negra e, consequentemente, uma
criadas por trabalhadores em meio ao serviço. Os sons do trabalho podem ser exploração dissimulada do trabalho cultural negro artisticamente bem sucedido.
ouvidos no estilo do labored blues (especialmente no chamado blues primiti- Swing! se foca em produtores negros do teatro musical, mas representa o dilema
vo); nas vozes tensas, porém fortes dos cantores com seus grunhidos, gemidos dos produtores negros em geral, incluindo produtores de race movies como Swing!
e articulações violentas do poder furioso da língua (ver, por exemplo, Robert
Johnson11); nas “falhas”, “quedas” e interrupções de fôlego dos cantores (ver
a análise de Gunther Schuller sobre o estilo de Bessie Smith12); na poderosa Swing!
batida de seu acompanhamento instrumental, correspondendo a uma foice ou
martelo (o violão de Robert Johnson); na repetição de duas linhas no início de Ted e Lena, protagonistas masculino e feminino de Swing! são, como Miche-
cada verso de três linhas, sugerindo o trabalho manual no moinho; e as répli- aux e sua esposa, produtores nova-iorquinos de entretenimento negro. O filme
cas não cantadas, abertas à resposta vocal ou instrumental, reminiscentes dos começa, porém, com a história de Mandy, uma mulher trabalhadora de Birmin-
gritos de chamado-resposta usados por bandos de trabalho e nos exercícios de gham, Alabama, que cozinha para uma família branca (não retratada no filme)
marcha do exército. Sobre um estilo semelhante ao do blues no cinema, poderí- e sustenta o “seu homem”, um dândi “bom-pra-nada”. Os personagens secun-
amos esperar efeitos análogos, dando evidência ao trabalho duro e às condições dários significativos das sequências de Birmingham incluem um funcionário da
pesadas de sua gênese. ferrovia que sustenta uma mulher preguiçosa, que por sua vez o trai com o ho-
O estilo de Micheaux pode ser examinado pela evidência de sua proximidade mem “bom-pra-nada” de Mandy. Depois que Mandy descobre a traição e flagra
com o trabalho pesado. Micheaux, no entanto, apesar de ter sido formado em seu homem com outra mulher, ela inicia um briga que marca o fim da sequência

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de Birmingham, e a história então move-se abruptamente para Nova York. Essa Quanto ao lado positivo, Lewis retrata a euforia da migração:
migração é anunciada por uma cartela que acompanha uma cena de ensaio de
um espetáculo de variedades no Harlem. Os protagonistas das sequências no King Solomon Gillis, protagonista de “City of Refu-
Harlem, Ted e Lena, tornam-se um casal, sendo também, respectivamente, o ge”, conto escrito por um dos romancistas mais promis-
produtor do espetáculo e sua assistente de produção. Consequentemente, são sores do Harlem, Rudolph Fisher, era um camponês
associados profissionais — parceiros em uma pequena companhia —, como sulista nascido para comprar duas vezes a Brooklin
Micheaux e sua esposa, Alice B. Russel. Depois que esses personagens e suas Bridge. Ao sair da estação de metrô Lenox Avenue, na
atividades são estabelecidos, cada um dos personagens principais das sequên- 135th Street, Gillis exclamara, “Acabo de ter morrido
cias de Birmingham é reinserido gradualmente na história nesse novo cenário e acordado no céu.”15
do Harlem. Assim como em A garota de Chicago (The Girl from Chicago, 1932),
o efeito desorientador da grande migração negra para o Norte urbano é aborda- Micheaux faz uso do Harlem como a meca da migração. Como no caso de A
do por uma transição brusca no meio do filme. Garota de Chicago, um motivo aparente para a migração do Sul rural ao Norte
urbano em Swing! é a necessidade de realizar um entretenimento vivamente
produzido durante o pico da depressão e à luz enfraquecida da Renascença do
As migrações em Swing! Harlem. Um certo número de pessoas vistas nas sequências de Birmingham
aparece novamente nas sequências do Harlem. A orquestra no espetáculo de
As migrações foram bruscas em mais sentidos do que aqueles sugeridos Ted no Harlem é a mesma que se apresenta na estalagem em Birmingham,
pelas inconveniências relacionadas ao desenraizamento e à mudança para um onde Mandy descobrira a traição de seu marido. A mulher que executa o solo
novo território, um novo clima, um novo sistema econômico e um novo ambiente de trompete na estalagem no Alabama mais tarde participa do casting do es-
urbano. David Levering Lewis enfatizou que as consequências eram também petáculo de Ted no Harlem. A própria Lena, que, enquanto assistente de Ted,
potencialmente mortais: produz uma cultura ao estilo da Renascença do Harlem, vem do “Beco C “ no
bairro de Birmingham que Mandy conhece tão bem. Quando a mulher do fun-
Du Bois felizmente compartilhava a confiança [dos cionário da ferrovia do Alabama aparece nas cenas do Harlem, é sob o nome
trabalhadores migrantes negros], escrevendo na The de Cora Smith, estrela do espetáculo de Ted. Tanto ela quanto o funcionário da
Crisis que o trabalhador afro-americano “estará breve- ferrovia desempenham seus papéis na produção da Renascença — quando o
mente em posição para iniciar qualquer greve, quan- funcionário da ferrovia aparece nas cenas do Harlem, aparece como dono de
do obtiver para si alguma vantagem econômica” Com um clube noturno chamado Autumn Leaf Social Club. Ele também permanece
250.000 trabalhadores presos do lado de fora ou em sendo o mantenedor de Cora, como havia sido no Sul, mas agora é também seu
greve em Chicago no fim de Julho de 1919, a cidade empresário em um sentido público; ambos fazem parte de um movimento e de
abriu espaço para a guerra racial que teve seu fim com um predicamento mais amplo e mais urbano.
o rapaz afogado no Lago Michigan...
...
Aqueles que alimentavam dúvidas sobre o genocí- As migrações como
dio destemido [ênfase adicionada] em 1919 já estavam um aprimoramento
buscando um papel menos heroico a ser interpretado da produção cultural
pelo Novo Negro em relação à defesa dos direitos de seu
povo... O Red Summer13 havia mostrado que a maioria É importante reconhecer que as migrações não são uma digressão ou rup-
dos americanos brancos, do Norte ou do Sul, não estava tura na narrativa (e nem neste capítulo sobre a ética de produção na visão da
disposta à generosidade, e que o conflito imediato era elevação). Em meio à dialética exorbitante das migrações, Micheaux fez uso da
um caminho quase certo em direção à desgraça.14 ideia do Harlem e da Renascença do Harlem para o seu enredo sobre mobili-

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dade social e sua relação com o entretenimento negro. A Renascença foi, como Blues urbano —
sugere o nome, um renascimento para os migrantes bem como para os literatos Capital e trabalho
do Harlem, uma prova de que a ascensão era possível.
Se o Harlem e a Renascença eram a Meca da ascensão, eles eram também, A ética sulista do blues do mantenedor e mantido poderia, com o finan-
por outro lado, distantes geográfica e socialmente da maioria dos afro-ameri- ciamento do Norte, transformar-se em uma ética de capital e trabalho. Em
canos. Reconhecendo a cisão profunda que o Norte e o Sul representavam para Swing!, o homem de Cora, funcionário da linha férrea que a mantinha finan-
todos os afro-americanos — cisão que corporificava a dialética múltipla da ceira e domesticamente em Birmingham, torna-se um pequeno-burguês no
dualidade — Micheaux representava o blues como sulista e a ascensão como Harlem, proprietário de um clube noturno chamado Autumn Leaf Social Club.
nortista. Lena, a jovem assistente de produção em Swing!, é de Birmingham, Mais do que isso, ele é o empresário da carreira de Cora. Quando Cora, a
assim como quase todos os personagens do Harlem retratados nessa história. “mammy lead”, se comporta como uma prima donna e compromete o espetá-
Quando ela reconhece Mandy, que veio para o Norte após o rompimento de culo, o ex-funcionário da ferrovia descobre seu comportamento e a disciplina,
sua relação entre mantenedor e mantido típica do blues, Lena tenta ajudá-la ao precisamente, à maneira de um empresário. Consequentemente, o funcionário
arranjar-lhe um emprego na produção do espetáculo como costureira e figuri- da ferrovia, com seu clube social e sua “agência de talentos”, e Ted e Lena com
nista. Cora Smith, a mulher infiel e “mantida” das sequências de Birmingham, seu espetáculo, são agora produtores no sentido do capitalismo moderno de
aparece no Harlem como a estrela da produção de Ted e Lena; eles a chamam Weber; suas relações de produção produzem capital de uma maneira sugerida
de sua “cantora de blues e mammy lead. 16” O produtor Ted, que representa pela seguinte afirmação de Karl Marx: “Uma cantora que vende sua música
vagamente o próprio Micheaux, refere-se à Cora como a melhor cantora de blues por conta própria é uma trabalhadora improdutiva, mas a mesma cantora agen-
da raça negra. Historicamente, houve várias cantoras de blues importantes com ciada por um empreendedor para cantar e lhe gerar dinheiro é uma trabalha-
o sobrenome Smith a quem Micheaux poderia estar aludindo, incluindo Clara, dora produtiva; porque produz capital.”22
Mamie e Trixie. Também havia, correspondendo à Cora Smith de Micheaux
pelo primeiro nome, Cora Green, uma das primeiras cantoras de blues comer-
cial, a quem Alberta Hunter descrevia como tendo “uma voz em algum lugar Produtor e Produzido
entre o suave e o jazz”17. A Cora Smith, de Micheaux, porém, era provavelmente
uma referência direta à figura mais óbvia, Bessie Smith, conhecida como a im- A imagem que Micheaux fazia de si como um produtor empreendedor
peratriz do blues. Bessie Smith era do Sul e, em certa medida, havia associado deve ter crescido para ele em importância enquanto sua carreira durável
suas qualificações de imperatriz do blues à sua origem sulista — ao depreciar continuava, década após década. O capítulo precedente indicava que o tema
a falta de talento de Ethel Water para o blues, Smith se referia a esta como da produção de entretenimento é importante para um filme como A garota
“piranha nortista18.”19 de Chicago, apesar de seus protagonistas não serem nem produtores nem
A dialética do Norte e do Sul não era apenas a dialética do blues vs. artistas. A preocupação em Swing! em relação ao campo da produção é tão
swing nos contextos estéticos de talento e autenticidade cultural, ou raízes. penetrante que a ideia de produção se estende ao ethos da vida em geral.
Era também a dialética do capital vs. trabalho. O Norte era historicamente Todos os personagens principais e secundários no filme ou são produtores ou
mais capitalizado que o Sul e, portanto, as migrações eram (embora extre- são “produzidos” em sua vida privada ou profissional. Os casais secundários
mamente complexas em suas motivações, como explicado por James Gross- mais importantes são Mandy e seu homem “bom-pra-nada” e Cora, a mammy
man em Land of Hope 20) em parte uma busca pelo capital para alimentar as lead inicial do espetáculo, e seu funcionário da ferrovia. Essas são relações
aspirações de mobilidade social. King Solomon Gillis, o “camponês sulista” complementares e pervertidas da “manutenção”. Mandy mantém seu homem,
no conto de Rudolf Fisher “City of Refuge”, é suficientemente alusivo: “’No fornecendo a ele dinheiro, roupas finas, uma casa modesta e comida por meio
Harlem,’, refletia, ao observar a cena na Avenida Lenox, ‘o negro era branco. de seu trabalho cozinhando para brancos. O funcionário da ferrovia mantém
Você tinha direitos que não lhe poderiam ser negados; você tinha privilé- sua mulher, fornecendo a ela dinheiro, roupas finas, joias, casa e comida,
gios protegidos pela lei. E você tinha dinheiro. Todo mundo no Harlem tinha um carro, por meio de seu emprego na ferrovia. Dado o contexto do tema
dinheiro.’” 21 principal do filme — a produção de um espetáculo em Nova York — e dada

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a mensagem do filme — que o sucesso do espetáculo depende da autentici- Estereótipos como negação do trabalho
dade da relação de sua vedete com o blues, uma autenticidade que irrompe
diretamente das relações domésticas — então o fenômeno da manutenção Como Micheaux ambicionava o financiamento superior que a ascensão exi-
pode ser entendido como uma relação de produção. Manter alguém é produ- gia, ele certamente teve de encarar as potenciais contradições da produção de
zi-lo(a) enquanto um objeto de amor e desejo, até mesmo enquanto um objeto estereótipos que o entretenimento mainstream exigia, estereótipos que Miche-
de entretenimento (sexual), analogamente a um ator ou cantor na indústria aux fora acusado de ter produzido por conta própria. Tais estereótipos domina-
de entretenimento. ram boa parte das discussões precedentes sobre o tratamento dos race movies
Embora a conexão não seja feita explicitamente, uma razão pela qual e de Hollywood a personagens negros, e são parte do aparato de mascaramento
Mandy pode ser promovida e “produzida” por Lena (posteriormente no fil- do trabalho por trás de todo estilo clássico, como apontou Ed Guerrero.23 Como
me) como costureira e figurinista para o espetáculo é o fato de ela já possuir de costume, Micheaux escolheu um caminho intermediário, mas também cons-
experiência, através de seu passado na vida real ligado ao blues, como uma truiu um discurso suficientemente complexo para incluir a dialética e a ironia.
figurinista para o seu homem. Seu homem é um dândi, um almofadinha, um Swing! esforça-se para qualificar o estereótipo caricatural da “mammy” não
exibicionista, e por tal motivo Mandy há muito tempo o “produz” como um apenas sustentando a evidência da luta, que é normalmente ocultada pela cari-
manequim ambulante. Quando Lena enumera as qualificações de Mandy catura, mas também tratando-a especificamente como um papel, mas um papel
como costureira para o produtor do espetáculo, Mandy receia a mentira de que possui uma base compreensível e mesmo honrável no amor e no desejo
Lena sobre sua experiência profissional efetiva. Mais tarde, Lena sente-se recorrentes na vida cotidiana do blues. O uso de Micheaux do estereótipo da
impelida a explicar que seu amor por Mandy, sua sensação de dívida pela mammy é autorreflexivo; uma vez que o papel da mammy é um papel no espe-
bondade com que este lhe tratara no passado (em Birmingham), e sua leal- táculo do clube noturno dentro do filme, ele é explicitamente tratado como um
dade racial (todos motivos poderosos) justificam sua mentira. A lógica mais tipo de “significante” (demonstrando uma compreensão contextual superior ao
profunda do filme, no entanto, diz ao espectador atento que Lena não está papel) em uma maneira que difere dos papéis da mammy discutidos por Donald
mentindo. Mandy é qualificada. O mesmo amor e desejo que a motivaram a Bogle. Bogle demonstrou de que forma as atrizes nos papéis de mammy eram
manter seu homem também demonstram a sua competência para a confecção “significantes” apesar dos produtores dos filmes em questão. Os produtores
de figurinos. O mesmo amor e desejo também demonstram a autoridade de hollywoodianos discutidos por Bogle não eram negros e tinham a intenção de
Mandy como uma cantora de blues posteriormente na história. Mais tarde, produzir estereótipos absolutos; tais estereótipos, indica Bogle, foram minados
quando Cora, bêbada, tropeça em um lance de escadas e quebra a perna, o pelas capacidades engenhosas de significação das atrizes.24 Micheaux, no en-
espetáculo é salvo quando Lena se dá conta de que a trabalhadora e apaixo- tanto, encontrou um modo de significação enquanto cineasta análogo ao modo
nada Mandy será uma substituta perfeita, no papel principal, de Cora Smith. de significação dos atores e atrizes de Bogle. Consequentemente, Micheaux,
Mandy “só ama aquele cara”, “aquele cara” sendo o dândi de Birmingham como os artistas significantes de Bogle, ajudou a transformar os estereótipos no-
que veio para o Norte para continuar explorando Mandy. A lógica implícita da civos da cultura mainstream. Mais à frente demonstrarei o quanto a significação
narrativa é de que, se Mandy é tão apaixonada a ponto de aguentar um homem autorreflexiva dos estereótipos em Micheaux conectava o entretenimento à vida
tão “bom-pra-nada”, então ela obviamente compreende o blues. O espetáculo cotidiana. Em todos esses sentidos, Micheaux fez uma precoce e sofisticada,
então recebe uma dádiva dos céus na forma de apoio financeiro por parte de embora não amplamente reconhecida, contribuição à cultura cinematográfica,
um investidor branco, mas esse investidor faz duas exigências: que Mandy que necessitava gravemente de táticas e estratégias de oposição.
estrele o espetáculo e que o título seja modificado para “Eu amo aquele cara!” A contribuição de Micheaux foi tão importante para a política cultural afro
A qualidade de estrela de Mandy, e consequentemente seu (modestamente) -americana quanto foi para a arte do cinema. Sua concepção de papel principal,
elevado status como vedete — e seu valor de troca — deriva diretamente de mesmo de uma “mammy lead”, é moldada, entre outras coisas, por uma ética do
sua vida marginal e de sua luta diária, que nesse filme não é mascarada por trabalho, e essa ética fundamenta a ética de produção na história de Micheaux.
valores de produção refinados e é identificada como a posição correspon- Seu produtor “herói” toma a decisão de substituir uma protagonista falsa — a
dente, na vida real, ao estereótipo da “mammyhood”, posição diretamente imponente, porém preguiçosa Cora Smith, que está vivendo sob os holofotes
relacionada ao blues. Broadway — por uma protagonista verdadeira — a modesta, porém trabalhado-

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ra Mandy, que vive a vida do blues que tem de retratar no espetáculo. Segundo é comparável à de um produtor de cinema, como Micheaux, que produza filmes
Marx, todo valor, não importa o quão alto e remunerativo ele seja, precisa no com orçamentos radicalmente excedentes em relação ao que esse produtor e o
final repousar sobre uma base de trabalho cotidiano. Micheaux parece ter acre- seu público poderiam bancar. A consequência possível em ambos os casos é in-
ditado que tal trabalho deve ser parte de qualquer visão efetiva e transforma- versa às metas evidentes do produtor; ao invés da posse, lealdade, satisfação,
dora da ascensão. O trabalho não deve ser escondido pela representação, pelo respeito, orgulho, gratidão e liberdade, o retorno provável ao investimento seria a
espetáculo e pelos valores de produção, tudo isso sendo compreendido compa- alienação, traição, negação, desdém, vergonha, ingratidão e escravidão. Miche-
rativamente como frágeis acessórios à elevação de classe. aux pressentia que esses mesmos retornos de investimento aguardariam qualquer
produtor negro potencial ou hipotético de um cinema no estilo hollywoodiano.

Valores de produção exagerados


Relações de produção (cultural)
Micheaux produziu uma demonstração da fragilidade de tal elevação ao mos-
trar o homem de Mandy e a mulher do funcionário da ferrovia — protótipos mas- O casal mantido é um epifenômeno de seus mantenedores em sentidos que
culino e feminino do exibicionismo, da falsidade e da exploração — cometendo antecipam a descrição de base e superestrutura de Louis Althusser: “por um
juntos uma traição. Os dois luxuriosamente produzidos, objetos de amor manti- lado, a determinação da última instância pelo modo de produção (econômico)
dos atraem-se um pelo outro, indo, portanto contra os desejos expressos de seus [base; mantenedores]; por outro lado, a autonomia relativa das superestruturas
mantenedores, mas seguindo ironicamente a lógica dos “padrões de produção” e sua efetividade específica [superestrutura; mantidos].”25 Segundo essa analogia
domésticos exagerados de seus mantenedores. Os mantenedores/produtores dos do mantenedor/mantido de Micheaux e da base/superestrutura de Althusser,
dois objetos de desejo mantidos/produzidos não são capazes de se adaptar direta- a autonomia do casal mantido é ilusória assim como a autonomia da superes-
mente ao estilo que criam para seus objetos mantidos/produzidos. A divisão eco- trutura. Uma dependência essencial dos mantenedores como base econômica
nômica e estilística entre mantenedor e mantido cria uma relação que é inevita- contradiz estruturalmente a aparente liberdade dos mantidos da superestrtura.
velmente instável, um estado de coisas análogo à relação entre a classe média e os Micheaux demonstra tais contradições estruturais. Quando o homem de Mandy
filmes de Hollywood, ou entre os atletas e os fãs de esporte. É compreensível que está lhe explicando sua percepção do contrato que possuem, ele corrige o seu
os dois personagens “mantidos” de Micheaux sintam-se repelidos pelos modos de inglês, ensinando-a a não dizer “Porque eu faz,” pois, ele diz, esse linguajar
falar e de se vestir de seus mantenedores, e inversamente sintam-se atraídos um “soa tão burro.” Ele está atuando aqui, como a mulher mantida discutida acima,
pelo outro, considerando o estilo altamente produzido e refinado mais apropriado em uma inversão de sua relação de mantido. Está tentando inutilmente fazer o
e mais desejável do que os estilos de seus mantenedores, trabalhadores da classe que fazem os verdadeiros capitalistas, reverter relações de produção, adminis-
operária. O mesmo pode ser dito sobre os atores e produtores em relação ao seu trar (ou “produzir”) sua mantenedora, sua fonte de capital: isto é, administrar
público de classe média e sobre aos atletas e proprietários em relação aos seus a mão de obra a fim de extrair “mais-valia”. Está agindo com uma liberdade
fãs — estrelas e cineastas, atletas e proprietários são refinados; fãs são brutos, “esnobe” que é artificial, incompetente e, finalmente, insustentável, uma vez
ordinários. (Então quem são os mantenedores e quem são os mantidos?) que ele depende de sua trabalhadora. Ele é tão ruim como produtor nessa si-
Como em A garota de Chicago, Micheaux construiu em Swing! um sistema tuação quanto a mulher do funcionário da ferrovia ao testar os limites da con-
de suporte vertical de valores altos e baixos. Dessa vez, uma classe trabalhado- fiança de seu mantenedor iludindo-o. Por um lado, é óbvio que o homem de
ra, representada pelo funcionário da ferrovia e pela cozinheira, desperdiça uma Mandy não pode esperar mudá-la; por outro, seria incompetente ao fazê-lo, já
posição potencial de classe média ao financiar um estilo de classe alta para os que ele próprio, pouco depois, utiliza um exemplo equivalente do linguajar que
seus objetos de desejo. O estilo com altos valores de produção — denotados pelo havia corrigido. Ele é também um mau produtor segundo a lógica da versão
carro, a roupa e o ócio dos amantes mantidos em Swing! — é inapropriado para de Micheaux da indústria do entretenimento, uma vez que o desfecho mostra-
qualquer produtor de classe média, segundo a lógica do filme. Essa mesma lógica rá que qualquer tentativa de correção do linguajar de Mandy é uma tentativa
sugere que a característica inegavelmente instável no ato de manter um objeto de equivocada de reformatar um estilo de fala que tem relações históricas com o
amor por um preço mais elevado do que aquele que se pode pagar a si próprio blues. Ele está portanto tentando corrigir exatamente o estilo que torna Mandy

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adequada para o “mammy lead” no grande show. Mais ainda, está danificando assume uma posição física que marca a sua reivindicação, quase estrangulan-
um estilo diretamente relacionado ao seu próprio talento como pianista, talento do-a no processo de dar-lhe um beijo de despedida. Uma cena análoga ocorre
que eventualmente o garantirá também um papel no espetáculo, apesar de suas entre Mandy e seu namorado, embora as ameaças de Mandy sejam mais solíci-
intervenções contraprodutivas. tas e mais financeiras que físicas. Cada um desses parceiros mantenedores está
Em oposição ao namorado de Mandy, Lena, a assistente do produtor, terá tentando produzir no respectivo parceiro mantido um tipo de caráter no qual
percebido o valor do dialeto de Mandy, e Ted terá o bom-senso enquanto exe- ele ou ela possa confiar, com o mantenedor finalmente exibindo o seu domínio
cutivo do show business de acreditar em Lena e incorporar o seu insight ao através da aquisição econômica ou da força bruta.
espetáculo. Lena e Ted são os produtores mais perspicazes no filme; o mau juízo Apesar dessa relação de poder aparentemente unilateral e de competência
dos personagens secundários ajuda a desencadear a sabedoria das ideias pro- relativa do mantenedor sobre o mantido, o homem “bom-pra-nada” de Mandy
dutivas de Lena e das decisões produtivas de Ted. O “bom juízo” que Micheaux e a mulher “boa-pra-nada” do funcionário da ferrovia tiram proveito de suas
retrata em Ted e Lena baseia-se em uma posição intermediária entre o blues autonomias individuais. Cora, por exemplo, se vangloria para o seu homem da
e o swing, posição que reflete precisamente a fundação econômica (base) para porta-do-fundos por sua relativa competência durante o desentendimento discu-
o seu espetáculo (superestrutura). O reconhecimento de Ted da competência tido acima, que, do ponto de vista do espectador, fora aparentemente resolvido
de Lena como, literalmente, assistente de produção é também claramente uma em favor do funcionário da ferrovia, não de Cora. O homem de Mandy, de forma
homenagem autobiográfica de Micheaux à sua mulher, creditada como produ- semelhante, afirma ser melhor que Cora em persuadir sua mantenedora, Mandy,
tora de Swing! e de outros filmes de Micheaux (“A. [Alice] Burton [B.] Russel a fazer o que ele quer.
apresenta”). Swing! é, portanto, um filme proprioceptivo sobre a pragmática e a A cena em que o funcionário da ferrovia recita o contrato, e uma cena pos-
ética da produção de entretenimento negro e, de maneira mais ampla, da cultura terior em que o homem sustentado por Mandy explica como entende a relação
negra; tal pragmática e tal ética resultam no cinema de classe média. que tem com ela, demonstram que os quatro personagens estão atuando como
produtores de estados ficcionais de suas relações. Os mantenedores, embora
sejam melhores na produção dos resultados que desejam do que os mantidos,
“Produzindo” o casal ideal estão também produzindo incompetentemente, de uma outra maneira. Os man-
tenedores são melhores ao produzirem por possuírem os meios financeiros que
A autonomia ilusória da superestrutura é melhor dramatizada nas cenas em emprestam substância material à sua produção; eles constituem a “base” na
que os objetos de amor mantidos de ambos os casais aparecem juntos como um analogia base/superestrutura. A ficção (superestrutura) produzida pelos manti-
“epicasal”. Uma comparação implícita é feita então entre os dois mantenedores dos é essencialmente um jogo de confiança sem substância material. As ficções
e seus respectivos amantes mantidos, uma comparação que enfatiza a própria produzidas pelos mantenedores são mais do que jogos de confiança; ele podem
competência produtiva. Essa comparação é preparada por cenas envolvendo adquirir “bens” em uma relação de mercado que é equivalente às solicitações
cada um dos casais mantenedor/mantido separadamente. Quando o funcionário dos cafetões às prostitutas. Suas ficções são apoiadas pelo dinheiro produzido
da ferrovia está para deixar seu apartamento por um período de três dias, ele através de seu próprio trabalho. Os jogos de confiança do casal “ideal” mantido,
senta-se à cama ao lado de sua amante impassível, que afirma estar doente, no entanto, (a manipulação de Cora em torno da dor de cabeça) são inadequados
mas está visivelmente fingindo. Ele propõe buscar um médico, mas ela recusa; frente à substância material dos mantenedores (a reiteração do funcionário da
é apenas uma dor de cabeça. Ele parece desconfiado, o que quer dizer que ela ferrovia quanto ao seu apoio financeiro e, portanto, seu poder sobre Cora). Nova-
está produzindo uma ficção na qual o funcionário da ferrovia não acredita; o mente, a substância material dos mantenedores é equivalente à base econômica
que faz dela uma produtora incompetente. Ele recita o contrato entre os dois, de Althusser, e os jogos de confiança equivalentes à superestrutura.
dizendo-lhe que está “fazendo por ela” e que se algum dia pegar algum malan- Micheaux revela a natureza idealizada e irreal do epicasal ao construir o
dro olhando para ela, irá matá-lo. Mostrando-se verdadeiramente preocupada, que, à luz da teoria pós-estruturalista dos anos 1970, resulta em uma inversão.
ela diz que apesar de desejar que ele a ame, não deseja que mate ninguém por Em Althusser, a figura da base/superestrutura representa o capital apoiando a
sua causa. O espectador sabe que ela está pensando no homem “da porta dos cultura; na figura mantenedor/mantido de Micheaux, o trabalho suporta uma
fundos”. O funcionário da ferrovia reitera sua posição ao mesmo tempo em que cultura que se pretende suportada pelo capital e não pelo trabalho — é o casal

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ideal. Isto é, o funcionário da ferrovia e Mandy possuem empregos, o que no podem usar seus materiais “enganosos”, seus valores de produção e seu senso
sistema capitalista deveria colocá-los em uma relação dialética e dependente de estilo refinado, de maneira autônoma. Assim como o trabalho no sistema
com o capital. Ao invés disso, eles estão levantando uma máscara de valores capitalista (e assim como a cultura superestrutural “acima” do capital bási-
de produção, financiando Cora e o homem bom-para-nada, respectivamente, o co), os mantidos permanecem no fim das contas um epifenômeno do jogo dos
que dissimula o trabalho enquanto capital. Esse é um aspecto da ficção deles mantenedores.
que não funciona. O estilo de vida de classe alta do epicasal é uma farsa. Tal Uma vez que a construção de uma representação adequada do casal de
mascaramento das relações econômicas não conduz à ascensão nos filmes de classe média negro é uma preocupação primordial de Micheaux, a condição
Micheaux, e não é difícil perceber por quê. As figuras “mantidas” representam de epifenômeno do casal mantido é um problema. De acordo com os valores
uma ilusão do capital e da ascensão, não a coisa em si. Verdadeiros capita- éticos de Micheaux, o casal idealmente “bom” (o produtor e a assistente de
listas são sustentados por capital acumulado, o “trabalho morto” de Marx. O produção unidos pela Broadway, Ted e Lena) serve como um instrumento para
funcionário da ferrovia e Mandy estão financiando uma visão de classe ociosa a produção e talvez para a acumulação de riqueza e cultura; o casal idealmen-
através de seu próprio trabalho vivo. Eles não são capitalistas, e estão investin- te “ruim” (o falsamente elevado casal de mantidos em Swing!) serve como uma
do suas vidas, amor e desejo em uma construção frágil que não serão capazes imagem da acumulação não merecida e “prematura” e da exploração direta e
de controlar. dissimulada da classe inferior de trabalhadores. Micheaux torna a exploração
dissimulada visível. Nesse sentido, a relação de pirâmide dos casais — o casal
Uma ética dos valores de produção mantido sobre os ombros do casal mantenedor — é um modelo ético das rela-
ções de classe estruturalmente exploratórias. É uma imagem quase literal da
A relação que é frágil é também antiética, uma vez que mascara relações ascensão falsa e instável.
pessoais que reproduzem os desequilíbrios entre mestre e escravo discutidos (3) A própria ética de moderação de Micheaux é narrativamente corroborada
em Hegel, Marx e Althusser; mantenedor e mantido são pessoas que são “pro- pelo fato de nenhum dos pares de produtores — mantenedores ou mantidos —
dutor” e “produzido” um para o outro, uma síndrome de Pigmaleão. Há muitas ter escolhido um solo ou caminho intermediário para a partir dele negociar,
outras instâncias da preocupação desse filme em relação a tais éticas de produ- no nível apropriado, as coisas mais valiosas da vida, sejam elas materiais ou
ção, incluindo as seguintes: espirituais. Valores de produção inadequadamente altos são um aspecto do de-
(1) Os intercâmbios entre os mantenedores e os mantidos não são apenas sequilíbrio e da incompreensão dos mantenedores, que refletem um equilíbrio
discussões envolvendo dar e tomar, ouvir e responder, casos de disputa, de- subjacente nas relações de produção.
senvolvimento de pontos em comum, etc. Mais do que isso, a retórica de cada
pessoa é uma tentativa de dirigir o estilo e a ação da outra. Esses intercâmbios
domésticos representam atos de produção que mimetizam muitas das funções Conclusão
da produção cinematográfica: financiamento, contatos orais, negociação, bar-
ganhas, queixas e ordens diretas. A condição geral do mantenedor e do man- O dilema dos valores de produção em relação à elevação está implícito histo-
tido domesticamente também mimetizam atos de direção, como em um filme, ricamente no título do filme Swing!. A exploração do blues e do jazz na criação
tais como a criação de figurinos, o treinamento de diálogos, o agenciamento e desenvolvimento do swing — adaptação branca frequentemente superprodu-
de “talentos” e as interdições. Consequentemente, os personagens no filme de zida do blues e do jazz — alimentava confusas questões de raça e de classe, de
Micheaux performam atos flagrantes de mise en scène e escritura em cima das status e comunidade; o swing criara um dilema ético para os produtores negros.
pessoas de cada um. O aspecto self-made do sucesso de Micheaux sem dúvida afetou sua atitude
(2) Os mantenedores, como produtores com meros valores materiais, não diante desse dilema. O status superior era uma das metas da elevação. O status
são capazes de produzir confiança verdadeira — amor, lealdade e estabili- superior era desejável no sistema ético de Micheaux, mas apenas quando mere-
dade — não importa o quão forte seja a sua disposição para trabalhar, lu- cido, sendo perigoso e instável quando não merecido. Além disso, as histórias
tar e mesmo para matar. Os mantidos, como produtores de meros valores de de Micheaux sobre o caminho do meio e a mensagem do filme Swing! afirmam
confiança, não são capazes de estender seu jogo para além do contrato e não que a autonomia pessoal, racial e artística pode ser mantida e fortalecida pela

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obtenção merecida de status, ou da verdadeira mobilidade social, mas seria 1 No original, “Middle-Class 10 “John Ford’s Young Mr. Lincoln”, Hope: Chicago, Black Southerners,
arruinada pelo status não merecido ou pela falsa mobilidade social. Cinema”. Originalmente texto coletivo assinado pelos and the Great Migration (Chicago:
publicado como um capítulo editores da Cahiers du Cinéma, University of Chicago Press, 1989).
Aplicando histórias como as de Swing! às circunstâncias da vida profis- em Straight Lick: The Cinema of publicado pela primeira vez em
Oscar Micheaux (Bloomington: Cahiers, Nº 223 (1970), republicado 21 Citado em Lewis, When Harlem
sional de Micheaux, é evidente que o estilo elevado de Hollywood, com suas Indiana University Press, 2000). em Bill Nichols, Movies and Was in Vogue, p. 32.
corporações altamente capitalizadas, pode ter sido adequado para os seus Material cedido como cortesia Methods: An Anthology (Berkeley:
pela editora. Todos os direitos University of California Press, 22 De Karl Marx, Theories of Surplus
produtores ricos, mas era inadequado, ilusório e ameaçador para a autonomia reservados. Traduzido do inglês 1976), pp. 493-529. Capital, citado em Nancy Condee e
por Alice Furtado. (N.E.) Vadimir Padunov, “’Makulakul’tura’:
de um produtor independente como Micheaux, assim como para a maioria dos 11 Robert Johnson, The Complete Reprocessing Culture,” October, Nº.
afro-americanos, tal como demonstrava Micheaux frequentemente às suas pla- 2 Gaines, Uplifting the Race, pp. 13,15 Recordings, Columbia Records
C2T 46222.
37, Verão 1991, p. 79.

teias. Diferentemente do estilo de Hollywood — incluindo o estilo dos filmes 3 Uma visão semelhante de Griffith 23 Guerrero, Framing Blackness, pp.
fora apontada por Clyde Taylor em 12 Gunther Schuller, Early Jazz: Its Roots 21-26.
de Hollywood produzidos para as plateias negras como Aleluia (Hallelujah!, “The Re-Birth of the Aesthetic in and Musical Development (Nova York:
Cinema,” Wide Angle, Vol. 13, nºs. 3 Oxford, 1968), pp .229-33 24 Bogle, Toms, pp. 82-94.
1929) e Mais Próximo do Céu (The Green Pastures, 1936) —, o estilo de Mi- e 4, Julho-Agosto de 1991, pp. 12-
cheaux, com seus valores de produção de classe média, era apropriado à classe 30, que aparece de forma revisada 13 O termo refere-se aos conflitos 25 Louis Althusser, For Marx (Nova
em Mask of Art, também de Taylor. raciais ocorridos no verão de 1919 York: Vintage, 1970), p. 111.
econômica e ao status de seus filmes e de seu público-alvo. Seu estilo refletia em diversas cidades dos Estados
4 Distrito teatral da Broadway. Unidos. (N.T.) 26 Para discussão sobre a crítica de
o trabalho — tanto manual quanto mental, tanto da classe média quanto baixa (N.T.) Micheaux e suas campanhas contra
— em contraste aos estilos mainstream, que tendiam a apagar o trabalho que 5 Ver Wilson Record, The Negro
14 David Levering Lewis, When
Harlem Was in Vogue (Nova York:
a obstrução racial, ver Jane Gaines,
“Fire and Desire: Race, Melodrama
os produzia. Micheaux sentia que o apagamento do trabalho na representação and the Communist Party (1951; Alfred A. Knopf, 1981), pp. 22, 24. and Oscar Micheaux,” em Black
republicação, Nova York: American Cinema, ed. Manthia
da elevação deturparia a realidade da superação de classe, criando percepções Atheneum, 1971); Harold Cruse, The 15 Lewis, When Harlem Was in Vogue, Diawara (Nova York: Routledge,
Crisis of the Negro Intellectual (Nova p. 32. 1993); Pearl Bowser e Louise
falsas que tenderiam a manter as plateias em seus lugares, e Micheaux realizou York: William Morrow and Co., Spence, “Identity and Betrayal: The
histórias sobre o que sentia. Suas histórias e seu estilo refletem a elevação ao 1967) e The Negro and the American 16 Mammy referindo-se ao arquétipo Symbol of the Unconquered and
Labor Movement ed. Julius Jacobson da mulher negra do sul do Estados Oscar Micheaux’s ‘Biographical
mesmo tempo em que refletem o trabalho, em parte por representar, de maneira (Garden City, N.Y.: Anchor, 1968). Unidos que trabalhava para famílias Legend,’” em The Birth of
Ver também o apêndice 1 deste brancas como ama de leite; lead Whiteness: Race and the Emergence
bastante interessante, uma realidade afro-americana que não é definida exclu- volume [The Straight Lick: The indicando sua posição como estrela of U.S. Cinema, ed. Daniel Bernardi
sivamente pelo trabalho manual. Nesse sentido também, essa realidade é de Cinema of Oscar Micheaux]. principal do espetáculo. (N.T.) (New Brunswick, N.J..: Rutgers
University Press, 1996); Charlene
classe média. 6 No original, keeper e kept, 17 Frank C. Taylor, Alberta Hunter: A Regester, “Black Films, White
respectivamente. (N.E.) Celebration in Blues (Nova York: Censors: Oscar Micheux Confronts
Qualquer tendência dos críticos a ver a ênfase de Micheaux na conquista McGraw Hill, 1987), p. 32. Censorship in New York, Virginia
7 Max Weber, The Protestant Ethic and Chicago,” em Movie Censorship
merecida de um status como exageradamente conservadora e conformista em and the Spirit of Capitalism, trans. 18 No original, northern bitch. (N.T.) and American Culture, ed. Francis
relação às questões colocadas no fim do século XX — como o bem-estar social Talcott Parsons (Nova York: G. Couvares (Washington, D.C.:
Scribners, 1958, 1976), p. 17. 19 Ver próximo capítulo para uma Smithsonian, 1996); e J. Ronald
ou a ação afirmativa —, deveria talvez ser atenuada não apenas pelo contexto discussão mais profunda sobre Green, “Oscar Micheaux’s
8 Micheaux, The Conquest, pp. 70-71. Bessie Smith e Ethel Waters. Interrogation of Caricature as
histórico, mas também pela crítica paralela realizada por Micheaux ao longo de Entertainment,” Film Quarterly, Vol.
toda a sua vida à obstrução racista a um status que foi de fato conquistado pelos 9 Weber, Protestant Ethic, p. 17 20 James R. Grossman, Land of 51, Nº. 3, Primavera 1998.

afro-americanos, bem como por uma reflexão sobre a tendência consistente de


Micheaux, de interesse verdadeiramente político, em tomar — como muitos de
nós da classe média (amplamente definida) temos feito — um caminho inter-
mediário, porém progressista entre posições extremas.26 A crítica de Micheaux
e sua tendência a tomar um caminho intermediário porém progressista entre
posições extremas resultou em um raro exemplo de cinema de oposição que é
de classe média tanto em seus valores filosóficos quanto econômicos, provendo
assim um modelo de classe média como uma posição a partir da qual o progres-
so social — no caso de Micheaux, a emancipação de raça, classe e gênero —
pode ser perseguida com integridade no contexto da produção cultural, o que é
estruturalmente impossível na indústria cinematográfica.

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Uma jornada
tortuosa rumo
à cidadania: Dentro
de nossas portas 1

Jacqueline Stewart

O
scar Micheaux pode ter privilegiado espaços do Oeste em detrimento
do Norte e do Sul quanto ao progresso material e moral negro, porém
sempre reconheceu que a maioria dos afro-americanos vivia no Sul
ou migrara para centros industrias urbanos. Dentro de nossas portas (Within
Our Gates; lançado em janeiro de 1920 no Hammond’s Vendome Theater, em
Chicago), segundo longa-metragem do diretor, ocupa-se do deslocamento da he-
roína afro-americana entre o Sul e o Norte urbano. Nele, Micheaux se atém ao
padrão dominante da Grande Migração a fim de abordar questões de racismo,
conflito intrarracial, políticas de gênero e patriotismo conforme vivenciadas e
reconhecidas pela maior parte do público. O filme ilustra de maneira dramática
a importância da migração e do patriotismo para a produção cinematográfica
negra não apenas como temas, mas também como influências formais funda-
mentais, desenvolvidas em estreita relação com os esforços negros de construir
identidades afro-americanas modernas. À luz de acontecimentos da época, tais
como as revoltas de 1919, o fracasso da Primeira Guerra Mundial em levar
a “democracia” racial aos Estados Unidos e a popularidade extraordinária da
visão racista de Griffith sobre a história norte-americana em O nascimento de
uma nação (The Birth of a Nation, 1915), Micheaux pinta o retrato de um país
profundamente fragmentado — regional e racialmente —, sem qualquer possi-
bilidade de reparação política ou estética.

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Dentro de nossas portas representa a tentativa mais ambiciosa de Micheaux vê-se forçada a fugir quando Larry Pritchard, o meio-irmão criminoso da prima
no sentido de criar um discurso sobre o significado da identidade norte-ameri- Alma, ameaça revelar informações pouco lisonjeiras sobre ela caso não consinta
cana negra. O filme possui um grande elenco de tipos negros, mostrando que em ter relações sexuais com ele. Nesse meio-tempo, o Dr. Vivian procura Sylvia
a população negra é composta de indivíduos de origens extremamente diversas no Norte, onde se encontra com Alma. Esta conta a história do passado de Syl-
e com objetivos e estilos de vida muito distintos. A heroína do filme, Sylvia via, que provavelmente ajuda a explicar por que ela não se envolveu nem com
Landry (Evelyn Preer), é uma típica moça sulista de boa educação, que acredita ele nem com nenhum homem depois de terminar com Conrad.
em fazer o possível para elevar os membros menos afortunados de sua raça; A dolorosa história sulista de Sylvia envolve a falsa acusação lançada a
Alma Pritchard (Flo Clements), prima de Sylvia, e seu meio-irmão, Larry (Jack seu pai adotivo, Jasper Landry, de assassinar Philip Gridlestone, um senhor de
Chernault), são moradores da cidade desonestos que distorcem o passado de terras branco tirânico. Os Landry se escondem na mata enquanto uma multidão
Sylvia para manipulá-la; Conrad, o noivo da heroína (James D. Ruddin), é um de linchadores brancos reúne-se para procurá-los e vingar-se. Ao mesmo tempo
homem instruído cujo posto de prestígio o leva a regiões remotas do Canadá e do em que os pais de Sylvia são capturados, enforcados e queimados, Armand
Brasil; o Reverendo Wilson Jacobs (Sam T. Jacks) e sua irmã, Constance (Jim- (Grant Gorman), irmão de Philip Gridlestone, a encurrala numa casa vazia e
mie Cook), são professores negros sulistas honrados que administram a Piney tenta estuprá-la. No último minuto, Armand interrompe o ataque ao descobrir
Woods School, uma escola humilde; o Dr. V. Vivian (Charles D. Lucas) é um uma marca de nascença no seio de Sylvia que indica que ela é sua filha, fruto
médico intelectual que se debruça sobre questões raciais; Ned é um sacerdote das suas relações sexuais com uma negra.
negro sulista traidor; os pais adotivos de Sylvia, o Sr. e a Sra. Jasper Landry A revelação das origens inter-raciais de Sylvia ajuda a explicar por que ela é
(William Starks, Mattie Edwards), são meeiros sulistas que lutam para sobrevi- repetidamente sujeitada a perigos sociais, psicológicos e morais que a impedem
ver mas se mantêm íntegros; Efrem (E. G. Tatum) é um criado sulista ignorante de manter uma família, um lar e uma identidade estáveis. Essa caracterização
e fofoqueiro que se volta contra membros da própria raça. Micheaux deixa claro de Sylvia remete à longa tradição de “mulatos trágicos” da produção cultu-
que os ambientes dos quais esses personagens despontam e aos quais migram ral negra, bem como à tradição da narrativa de migração afro-americana, com
revelam muito sobre o tipo de gente que são e o impacto que seu tipo terá no pro- temas como exílio, isolamento e reinvenção.3 Em muitos aspectos, Dentro de
gresso (ou fracasso) da Raça como um todo. No entanto, o diretor não apresenta nossas portas se assemelha a três romances negros mais ou menos da mesma
dicotomias simples entre nortista e sulista, positivo e negativo ou Novo Negro época que combinam os temas do mulato e da migração. As muitas viagens de
e Velho Negro. Em lugar disso, ao estruturar Dentro de nossas portas segundo Sylvia ao Norte e ao Sul refletem os deslocamentos da personagem homônima de
uma topografia complexa de relações narrativas e de personagens, ele cria um Iola LeRoy, or Shadows Uplifted (1892), de Frances Ellen Watkins Harper; do
filme que reflete as experiências distintas porém interconectadas dos públicos e protagonista de Autobiografia de um Ex-negro (1912), de James Weldon John-
personagens afro-americanos.2 son; e da Helga Crane de Quicksand (1928), escrito por Nella Larsen.4 Todas
A trama melodramática e sinuosa de Dentro de nossas portas detalha as ex- essas personagens travam uma luta semelhante com a sua herança inter-racial,
periências da sulista Sylvia Landry enquanto ela se desloca entre o Norte e o indo de um lugar a outro conforme tentam se encaixar em diferentes tipos de
Sul rural numa tentativa de descobrir seu devido lugar na sociedade (negra) comunidades. Suas experiências servem de casos-limite à posição política e psi-
norte-americana. O filme começa em uma cidade do Norte aonde ela viaja com cológica da Raça como um todo. Sylvia, Iola, o Ex-negro e Helga partilham uma
a prima Alma. Após ser rejeitada por Conrad, o noivo, Sylvia volta ao Sul devi- sensação de alheamento no Norte urbano, além de uma relação complexa com o
do a uma demanda por professores na Piney Woods School. Ao descobrir que Sul, que é tanto “lar” quanto palco de opressão e desmoralização dos negros.5
Wilson e Constance Jacobs precisam de $5.000 para manter a escola, retorna Micheaux claramente marca o Sul como a fonte de um racismo branco e um
a Boston, no Norte, a fim de tentar conseguir fundos com os ricos da cidade. trauma norte-americano negro de grande alcance, que continuam a ter efeitos
Durante a estada, conhece o Dr. Vivian, um “homem da raça” de quem se apro- profundos nos negros, a despeito dos esforços de tocar a vida adiante por meio
xima bastante. Um dia, é atropelada por um carro enquanto tenta salvar a vida da educação e da migração. Na cópia restaurada de Dentro de nossas portas da
de uma criança. Por acaso, o carro é propriedade de uma branca rica, a Sra. Library of Congress, o diretor parece reter de maneira deliberada informações
Elena Warwick, que, depois de muita consideração, resolve doar não $5.000, pertinentes sobre as experiências de Sylvia no Sul até os instantes finais; o longo
mas $50.000 a Piney Woods. Sylvia volta para o Sul com a arrecadação, mas flashback só surge aos 53 minutos de um filme de 65. Se essa cópia reflete a

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estrutura pretendida por Micheaux, ele prolonga de forma proposital a curiosida- e a paranoia branca nortista diante da transformação do “problema da raça” de
de do espectador acerca do passado e do “verdadeiro” caráter da heroína negra uma preocupação regional numa nacional. Ele aborda tanto o tipo de sentimen-
aparentemente ideal e como eles se formaram no Sul. Com efeito, quando Larry to anti-Reconstrução representado pelo romance The Clansman, de Thomas
adverte Sylvia de que contará aos seus amigos da Piney Woods School “que tipo Dixon, quanto o apelo nacional da adaptação cinematográfica de Griffith, que
de pessoa você é de verdade”, não fica claro para o espectador o que ele quer combina nostalgia do período anterior à Guerra de Secessão e estilo visual e
dizer com isso. A ameaça remete a uma cena breve logo no início do filme na narrativo inovador. “Responder” a O nascimento não é o único objetivo de Mi-
qual Alma, prima da heroína, leva seu noivo, Conrad, ao cômodo onde Sylvia está cheaux, mas o filme realmente mobiliza cosmopolitismo e patriotismo afro-ame-
envolvida numa reunião sentimental com um branco, que mais tarde descobrimos ricanos para refutar os discursos racistas (e os poderosos meios estilísticos para
ser seu pai, Armand Gridlestone. Nesse momento do filme, nós, como o Conrad exprimi-los) que o marco de Griffith representa.
enfurecido, somos levados a crer que ela tem um caso com o branco não identi- Veja-se, por exemplo, o modo com que Micheaux constrói a aproximação en-
ficado. Micheaux não esclarece a relação entre os dois até a cena do “estupro” tre Sylvia e o Dr. Vivian como uma união entre Sul e Norte, um casamento que
no clímax do filme e nunca chega a explicar totalmente as circunstâncias da in- remete à união branca de Cameron e Stoneman no desfecho de O nascimento e a
teração deles no Norte.6 O “tipo de pessoa” que é Sylvia, conforme representado desafia. Sylvia tem uma quantidade razoável de pretendentes, que representam
no eixo principal do filme (uma mulher honrada que se dedica à elevação racial), diversos tipos de homens negros, cada qual com seu contexto geográfico par-
assume significados diversos se compreendido no contexto do flashback para o ticular. Larry obviamente não é o parceiro certo para ela, pois é manipulador
passado dela, no qual perde os pais, fica sem teto, é agredida sexualmente e é e desonesto. Seja trapaceando em partidas de pôquer no Norte, seja vendendo
mostrada como birracial. Ela é produto e vítima de relações inter-raciais ilíci- bijuterias aos trabalhadores negros no Sul, ele explora os membros da Raça e,
tas, um legado sulista do qual nunca poderá fugir. Encaixada no final do filme, portanto, é descartado. Conrad não é um marido viável porque seu emprego
essa representação da vida no Sul — caracterizada pela parceria agrícola (uma o mantém fora dos Estados Unidos. Se fosse morar com ele no Canadá ou no
tentativa de preservar as hierarquias sociais e econômicas da escravatura), pelo Brasil, Sylvia não estaria em posição de reclamar sua herança norte-americana
linchamento e pelo estupro de negras por brancos — demonstra que esses even- e lutar pela igualdade de raças em sua terra natal. Por fim, o Reverendo Jacobs,
tos permeiam de maneira poderosa e recorrente a vida negra “moderna”, o que diretor da Piney Woods School, aparentemente é eliminado da competição por
torna mais difícil para muitos negros (inclusive para os migrantes instruídos e em ser do Sul. Embora Jacobs seja um homem inteligente com intenções honradas,
ascensão) se sentirem “em casa” em qualquer parte dos Estados Unidos. o diretor escolhe não casar Sylvia, do Sul, com um marido do Sul. Ela leva capi-
O flashback para o passado sulista de Sylvia contém muitas das críticas mais tal branco do Norte a Piney Woods (um método semelhante ao usado por Booker
penetrantes de Micheaux ao racismo norte-americano, em especial à versão exer- T. Washington para financiar o Tuskegee Institute), o que basta para cumprir
cida e racionalizada (ou ignorada) na leva de filmes românticos da década de 1910 seu dever com o Reverendo.
com temática pré-Guerra de Secessão, que culmina em O nascimento de uma Quem ganha a mão de Sylvia é o Dr. Vivian, médico de Boston que nunca é
nação. Para citar um exemplo, diversos estudiosos salientaram que a cena de visto examinando pacientes, mas sim se debruçando sobre questões raciais em
“estupro” envolvendo Sylvia e Armand Gridlestone é filmada como uma resposta diversas publicações renomadas. Já em sua primeira aparição, quando recupe-
direta à cena de “estupro” de Gus e Little Sister em O nascimento. Como observa ra a bolsa roubada de Sylvia, ele se mostra um raro exemplo de negro urbano
Toni Cada Bambara, Micheaux procurou “deixar bem claro quem estupra quem”.7 respeitável.8 Micheaux une Sylvia e o Dr. Vivian deliberadamente, porque eles
Era comum acusarem negros de estuprar mulheres brancas para justificar seu representam o encontro entre as elites instruídas negras do Norte e do Sul para
linchamento, quando, na verdade, os brancos constantemente estupravam mu- estudar e trabalhar em busca de uma ascensão. Talvez um dos motivos para o
lheres negras, fazendo disso uma forma de terrorismo político e social diante da Reverendo Jacobs não poder casar com Sylvia seja o fato de que sua educação
crescente autodeterminação política e econômica dos afro-americanos. religiosa sulista e sua posição social de educador da raça não permitiriam que
Não há dúvidas de que o filme de Micheaux tem objetivos e importância que ele aceitasse total e/ou publicamente o relacionamento dela com o pai branco/
ultrapassam sua função de crítica ou emenda a O nascimento de uma nação. quase estuprador. Embora o noivo de óculos, Conrad, tenha uma vida profissio-
Entre suas intervenções, Dentro de nossas portas fornece uma visão afro-ameri- nal aventureira que poderia sugerir uma condição progressista de Novo Negro,
cana da migração e da cidadania negra que desafia os alertas brancos sulistas somos testemunhas de sua reação violenta ao ver Sylvia a uma proximidade

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“comprometedora” de um branco: após vê-la com Armand Gridlestone, ele tenta Reconstrução”, artistas brancos e negros a usaram para refletir sobre as impli-
sufocá-la e a atira no chão. O Dr. Vivian, por sua vez, é representado como um cações perturbadoras da intimidade inter-racial e da identidade birracial, tanto
homem da raça moderno, sofisticado, sensível, capaz de compreender as contra- no Sul do passado quanto no presente/futuro moderno.11 Micheaux procura
dições da posição de Sylvia. Quando sabe de toda a verdade sobre a moça, fica redimir Sylvia, a mulata, não apenas ao apresentá-la como o tipo de heroína ins-
mais convencido do que nunca de que deseja passar o resto da vida com ela. truída e ambiciosa que parece ter saído das páginas da ficção negra do século
À luz da atenção de Micheaux a questões de elevação racial, formação de XIX, mas também ao fragmentar a narração do filme de maneiras que tentam
comunidade e cidadania negra norte-americana, a representação do casamento representar as complexas dimensões políticas, psicológicas e sociais das suas
iminente de Sylvia olha tanto para a frente quanto para trás em sua constru- origens mestiças. Na representação do diretor, o casamento de Sylvia é preci-
ção política e estilística. Assim como Griffith, Micheaux tenta relacionar modos pitado por uma descontinuidade temporal longa e desconcertante: o flashback
discursivos e valores tradicionais a modernas possibilidades sociais e estéticas. sulista. Green defende que a visão de Micheaux do casamento, ao contrário da
J. Ronald Green defendeu que a formulação do “ícone do casamento burguês” “antiga visão de pureza racial e supremacia branca” de Griffith, é uma afirma-
negro em Dentro de nossas portas rejeita a política conservadora de união bran- ção do “eu social”, da “mutualidade” e dos direitos da mulher à “livre atuação”
ca heterossexual presente em Griffith, para a qual o casamento era “uma rea- e à “igualdade e hibridez racial”.12 No nível da história, essas oposições são
firmação do liberalismo clássico (o indivíduo [homem] enquanto agente livre) e encenadas de forma clara no flashback sulista. Todavia, no nível da narração,
do patriarcado” baseada em “uma antiga visão de pureza racial e supremacia Micheaux se aproveita de algumas das técnicas inovadoras de narrativa cinema-
branca”.9 Porém, embora a representação que Micheaux faz da ascensão pelo tográfica que Griffith desenvolve em O nascimento.
casamento possa aparentar mais “progressista”, comunitária, feminista e inclu- Por exemplo, Griffith expande usos anteriores de montagem paralela, que,
siva que os casais ideais de Griffith, sob diversos aspectos ela é definitivamente de duas ações simultâneas, passa a combinar três ações na infame sequência
mais tradicional (e otimista) que as representações de união heterossexual entre do “estupro”: Little Sister correndo, o brutamontes negro Gus numa perseguição
personagens “mulatas” na literatura afro-americana da época. Ao contrário do desenfreada e o irmão dela, o “Little Colonel”, seguindo os dois. Aqui, assim
Ex-negro, que escolhe se passar por branco e casa com uma branca, o casamen- como em algumas de suas obras anteriores na Biograph (p. ex. The Girls and
to de Sylvia confirma sua altiva identidade negra. E, diferentemente de Helga Daddy, 1909), o resgate é retardado para criar um efeito de suspense: o sal-
Crane, que casa com um pastor negro sulista, a heroína de Micheaux não perece vador branco é mantido afastado por uma série de cortes entre ele, o agressor
com as limitações tradicionais e opressoras de esposa e mãe. O tratamento que negro e as vítimas, mulheres brancas. Em Dentro de nossas portas, Micheaux
o diretor lhe dá não exibe o tipo de ceticismo moderno presente em Johnson não apenas interpõe o estupro de Sylvia ao linchamento e à queima dos Landry,
e Larsen no que concerne à posição impossível de personagens birraciais em como também interpola a voz narrativa de Alma para prolongar a provação da
uma sociedade polarizada pela raça. Em vez disso, Micheaux se volta para as heroína à maneira de Griffith. O “estupro” é “interrompido” (para usar o termo
convenções melodramáticas do romance sentimental de ascensão, como Iola de Gaines) repetidas vezes por tomadas da fogueira da multidão e, no clímax da
LeRoy, de Harper. A união entre Sylvia e o Dr. Vivian como um “casal da raça” sequência, por uma tomada na qual Alma conta a história ao Dr. Vivian e uma
guarda uma semelhança marcante com a união entre Iola e o médico intelectual cartela correspondente explicando que Sylvia é filha de Armand. O uso de um
Dr. Latimer, personagens de Harper. Hazel Carby afirma que a autora apre- terceiro termo aqui — uma voz do Norte/presente — para resgatar e redimir
senta esse casamento como um casamento igualitário, “baseado em interesses a vítima mulata sugere que a resposta estilística de Micheaux a Griffith está
intelectuais comuns e em um compromisso com o ‘povo’ e a ‘raça’”.10 Micheaux longe de se basear na estética deste como em uma mera “antiga visão”. Em
dá a entender que, com o Dr. Vivian, homem da raça, ao seu lado, Sylvia enfim lugar disso, Micheaux rebate representações fabricadas pela hegemonia branca
consegue se estabelecer em um único local e cumprir seu papel enquanto membro de personagens negras e relações raciais ao reconhecer e adaptar algumas das
da elite instruída afro-americana. técnicas narrativas do cinema dominado por Griffith.
Micheaux mistura abordagens modernistas e sentimentais em sua tentativa Micheaux combina suas intervenções no estilo da narrativa cinematográfica
de redimir a figura do mulato, que havia sido difamada no discurso dominante dominante a temas em circulação no discurso afro-americano da época. Ao unir
branco (Dixon, Griffith etc.). Já que, como nos lembra Michele Wallace, a figura o Sul negro e o Norte negro em matrimônio, ele produz uma nova narrativa so-
do mulato “da vida real desempenhara um papel fundamental na política da bre identidade nacional e pertencimento que toca a expressão patriótica negra.

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As personagens brancas nortistas e sulistas que se casam em O nascimento — pedindo a Sylvia que se torne esposa e patriota ao mesmo tempo — parece
o fazem quando conseguem derrotar os negros que anseiam por poder (e por uma tentativa desajeitada de obter uma conclusão, uma união heterossexual e
mulheres brancas), restaurando, assim, a supremacia branca. As únicas perso- a harmonia inter-racial, tudo de uma só vez. Porém, mais importante, procura
nagens negras do épico de Griffith que poderiam vir a ser consideradas cidadãs criar para a heroína uma função positiva e útil à raça na interseção precária de
norte-americanas de segunda classe são os criados negros leais e submissos (ou suas identidades racial e de gênero, de forma a contrabalançar o histórico de
“almas fiéis”). Micheaux, entretanto, encerra Dentro de nossas portas com um estupro e terrorismo que ela vivenciou e representa. Se Micheaux pode defender
discurso do Dr. Vivian afirmando que os afro-americanos mais do que pagaram que ela abrace sua identidade norte-americana, então, por extensão, qualquer
suas dívidas e, em nome de toda a raça, merecem seus direitos de cidadãos afro-americano (independentemente de gênero, localização, histórico familiar,
norte-americanos. Como prova, o médico menciona alguns exemplos específicos experiência de racismo) pode fazer a mesma reivindicação. Parafraseando Anna
de serviço militar negro, entre os quais batalhas em Cuba e no México e campa- Julia Cooper, o diretor sugere que, quando Sylvia Lander puder se tornar cidadã
nhas na França durante a Primeira Guerra Mundial.13 “Você precisa ter orgulho norte-americana, toda a Raça se tornará com ela.15
do nosso país, Sylvia”, exorta ele, ao explicar porque os afro-americanos devem O discurso sugere que Sylvia, como os afro-americanos em geral, conquistou
tomar o lugar que lhes cabe na sociedade norte-americana. de forma honrada o direito ao seu patriotismo por meio da violência e da viti-
O discurso final do Dr. Vivian é notável pelo modo como tenta encobrir ra- mação. Jane Gaines argumenta que a expressão culminante de “nacionalismo
chaduras profundas na lógica da retórica patriótica negra. Em um dado momen- otimista” de Dentro de nossas portas depende da representação, no flashback
to, ele diz a Sylvia: “Nós nunca fomos imigrantes.” Com isso, faz uma distinção sulista, da “injustiça racial como algo relegado ao passado, inconcebível no pre-
entre afro-americanos e imigrantes europeus que chegaram mais tarde aos Es- sente da história contemporânea do filme”.16 Pode-se argumentar, no entanto,
tados Unidos e, portanto, teriam menos direito à identidade norte-americana. que a revelação do histórico familiar de Sylvia perto do fim na verdade enfatiza
Ao mesmo tempo, o médico (como porta-voz de Micheaux) parece minimizar as o poder que o passado sulista continua a exercer sobre os migrantes, influen-
contradições de ser um negro norte-americano orgulhoso, haja vista as circuns- ciando seus atos e suas crenças enquanto tentam se transformar em Novos Ne-
tâncias radicalmente distintas que levaram os negros ao país: o tráfico de es- gros. Lançado não muito depois das revoltas sangrentas de 1919, o filme tenta
cravos. Bowser e Spence defendem de maneira persuasiva que, embora possam demonstrar que afro-americanos não são uma ameaça à segurança da nação, a
parecer míopes do nosso ponto de vista atual, tais expressões de patriotismo ne- despeito de (e talvez por causa de) toda a dor que sofreram individual e coletiva-
gro tiveram um papel fundamental na luta contra a supressão do negro da mídia mente em sua busca pela cidadania norte-americana. A condição de ex-escravos
comercial dominante de então. Ao expressarem seu patriotismo, os afro-ameri- e seu legado de opressão suplantam as reivindicações ao norte-americanismo
canos estavam “declarando sua própria identidade” e, portanto, “escrevendo e que qualquer imigrante étnico branco poderia fazer. E, enquanto mulher birra-
criando o seu mundo”.14 Como em boa parte dos filmes patrióticos produzidos cial, Sylvia vivenciou e representa formas de discriminação racial as mais abje-
e exibidos por afro-americanos durante o período, a conclusão de Dentro de tas, o que a candidata à expressão mais sublime da identidade norte-americana.
nossas portas estrategicamente deixa de abordar as óbvias contradições (ou se- Talvez Micheaux inclua o discurso patriótico em parte para conter o poten-
melhanças) que surgem da comparação entre as reivindicações dos negros e dos cial explosivo das cenas de linchamento presentes mais no início do filme. Com
imigrantes europeus à identidade norte-americana. efeito, Dentro de nossas portas provocou muita controvérsia e foi questionado (e
Em vez disso, o discurso do Dr. Vivian procura caracterizar uma forma de editado) por numerosos quadros de censores regionais que temiam que as repre-
expressão patriótica viável para mulheres negras — ele o profere ao fim do sentações de linchamento e estupro inter-racial reanimassem os antagonismos
filme, enquanto pede a mão de Sylvia em casamento. Sentado ao seu lado na raciais exibidos durante as revoltas de 1919.17 Mas, quando Micheaux usa o
sala, Vivian fala das dificuldades que a heroína terá de enfrentar para conseguir patriotismo para tentar enterrar de volta os traumas desenterrados no flashback
sentir orgulho de sua nacionalidade norte-americana, dadas as experiências sulista, sugerindo que os negros podem e devem ser cidadãos patriotas com-
com violência racial pelas quais passou: “Você... tem pensado a fundo sobre portados, a retórica é muito pouco convincente. A expressão de dor da heroína
isso, eu sei... mas, infelizmente, seus pensamentos foram deturpados.” Ainda durante o discurso de Vivian acentua a incongruência do momento; as experi-
assim, ele conclui o pedido com: “Apesar dos seus infortúnios, você sempre ências dela no Norte e no Sul não corroboram a falsa promessa de cidadania
será uma patriota... e uma esposa gentil. Eu amo você!” Essa dupla proposta norte-americana total para negros.

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Ver e crer se argumentar que a cópia que temos exibe tensões enormes em relação à con-
fiabilidade da representação midiática negra, tanto em termos visuais quanto
O desfecho insatisfatório de Dentro de nossas portas acaba servindo para textuais. Ao desafiar a ideia de que é possível crer no que se vê, em especial
enfatizar o que considero ser a qualidade estilística mais atraente do filme: sua no que concerne às ações e personagens negras, o filme de Micheaux aponta as
repetida demonstração de que discursos contraditórios sobre afro-americanos limitações da própria mídia que está usando, a despeito das alegações que ele
(como indivíduos e como grupo) tornam representações negras — inclusive as (e outros cineastas) possa fazer de que o cinema representa um meio moderno
de Micheaux — demasiado incoerentes e pouco confiáveis. Embora apresente poderoso de contar a verdade com clareza.
uma sólida mensagem dialética contra o racismo branco e em favor da elevação Dentro de nossas portas contém diversos elementos suspeitos e contraditórios
afro-americana e da igualdade, o filme também exibe numerosas ambiguidades nos níveis visual e textual. Corey Creekmur apontou que Micheaux, baseando-
e representações equivocadas, pondo em xeque os modos de se retratar a condi- se nos escritos de Charles Chesnutt, enche o filme de “mentiras brancas” — isto
ção negra — inclusive o realismo fílmico. é, versões brancas de acontecimentos e perspectivas sobre afro-americanos que
Algumas das qualidades estilísticas que tenho em mente podem não ser distorcem deliberadamente a “verdade”.20 Em alguns casos, o diretor demonstra
intencionais da parte de Micheaux; não é possível saber ao certo qual o grau o grau em que tais “mentiras brancas”, contadas para manter a submissão dos
de semelhança entre a cópia disponível para análise hoje em dia e as versões negros, circulam na imprensa. Logo após uma cena em que vemos o Dr. Vivian
do filme em circulação à época das projeções originais. Isso é sempre um pro- ler um artigo sobre um reverendo proeminente que busca financiamento federal
blema quando se trata da obra do diretor, pois seus filmes eram censurados para escolas negras, Micheaux corta para uma sulista branca preconceituosa,
e reorganizados rotineiramente. Ele costumava fazer edições, restaurar cenas Geraldine Stratton, lendo o relato de um jornal racista sobre a ignorância ine-
e mudar a ordem das sequências, o que torna mais difícil saber que versão rente do negro e sua inaptidão para o voto. Mais tarde, vemos a multidão branca
ou versões o público original viu. Dentro de nossas portas sofreu uma censura sulista inquieta cercar Efrem (o criado fofoqueiro de Philip Gridlestone) com a
pesada, e as notícias saídas nos jornais sobre as primeiras projeções do filme intenção de linchá-lo, apenas por ser a vítima negra mais próxima. Mas, depois,
sugerem diferenças significativas do que vemos na cópia em circulação hoje. ao anunciar a morte de Efrem, o jornal da cidade descreve o assassinato como
Por exemplo, Bowser e Spence citam uma carta de George P. Johnson endere- “uma morte acidental em mãos desconhecidas”. Embora as duas cenas ilustrem
çada a Micheaux que descreve um linchamento no segundo rolo, o que as leva o papel histórico e poderoso que a mídia impressa branca desempenhou no
a questionar a intencionalidade da ordem em que aparecem as cenas sulistas.18 sustento de violência e políticas racistas, o segundo é digno de nota porque o
Além disso, as cartelas incluídas na cópia sobrevivente são reconstruções: ela relato jornalístico contradiz de forma clara a representação visual da morte de
foi encontrada em um arquivo na Espanha, e as cartelas em espanhol tiveram Eph encenada anteriormente. Na verdade, há vários momentos em Dentro de
de ser retraduzidas para o inglês por pesquisadores que se apoiaram muito nos nossas portas nos quais a imagem apresentada na tela é contrariada depois ou
romances de Micheaux para compreender os detalhes da narrativa e das per- já é distorcida por si só, fornecendo uma imagem falsa de determinadas perso-
sonagens. Ademais, a cópia atual está repleta de texto. As cartelas incluem a nagens ou eventos.
descrição das personagens e da trama, diálogos, cartas e histórias tiradas da Creekmur descreve a repetição de eventos em Micheaux como um retrato das
mídia impressa. Devemos nos perguntar se Micheaux tencionava exigir tanta exigências discursivas de uma sociedade segregada, que “reforçava a construção
leitura (dada a taxa de analfabetismo entre o seu público primário) ou se mais rotineira de narrativas públicas alternativas, exigindo pelo menos duas versões
cartelas explicativas não foram acrescentadas na Espanha para um público eu- de cada história” (ênfase do original).21 O que particularmente salta aos olhos no
ropeu que desconhecia muitos detalhes próprios da cultura do diretor. Gaines, filme é a forma com que o diretor estrutura a relação entre o modo como a verdade
Bowser e Spence discutem uma das dificuldades mais flagrantes apresentadas e as mentiras são contadas (verbal ou visualmente) e o local onde são encenadas
pelo texto traduzido: Sylvia é descrita nas cartelas espanholas como fruto de um e/ou narradas (no Norte ou no Sul). O passado de Sylvia, em especial, contém
casamento “legítimo” entre Armand Gridlestone e uma negra, mas evidências diversos momentos de distorção dos fatos e falso reconhecimento. Já apontei que
de espectadores e anúncios (inclusive referências a “concubinato” que não são a história do passado sulista da heroína, construída por meio do flashback, cria
evidentes na cópia disponível) indicam que ela seria produto e também vítima momentos extremamente confusos no filme, tais como a relação entre ela e Ar-
de relações sexuais forçadas.19 Levando em conta essas incongruências, pode- mand Gridlestone, que de início não é explicada. A confusão a respeito do que

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realmente aconteceu no passado de Sylvia e o que as diversas personagens acham e comendo frango empanado enquanto revogam leis contrárias ao casamento in-
que sabem torna a história dela (mesmo se o flashback de última hora não for ter-racial —, Griffith aumentou as preocupações dos negros quanto ao potencial
intencional) uma afirmação persuasiva do caráter não confiável da representação danoso do cinema (como sugerido por protestos da NAAPC e pela reação de Ida
cinematográfica do negro em geral, em particular de que o Sul (sua história e seus B. Well ao filme, discutida em outro lugar). Mais que os espetáculos negros nos
representantes contemporâneos) obscurece a representação de verdades negras. primórdios do cinema e a circulação de figuras dos espetáculos de menestréis
Por exemplo, ocorre um caso gritante de distorção dos fatos quando o pai em comédias curtas, representações negras no cinema dramático com narrativa
adotivo de Sylvia, Jasper Landry, é acusado de assassinato. Os Landry são lin- integrada (boa parte da qual obra de Griffith) eram vistas como politicamente
chados porque o criado Efrem acusa equivocadamente Jasper Landry de ati- perigosas, pois tinham como alicerce uma estrutura estética que conferia à mí-
rar no proprietário de terras branco, Philip Gridlestone. Na primeira vez que dia uma nova legitimidade artística e cultural. Micheaux leva o poder traiçoeiro
o assassinato é exibido, ele é visto de uma perspectiva de narrador onisciente (e não “fiel”) de representação do cinema para o primeiro plano, apontando
que mostra o que de fato acontece dentro e fora do escritório de Gridlestone: repetidas vezes que a mídia dominante pode mentir (e mente), e mostrando que
um fazendeiro branco irritado atira em Gridlestone da janela; Gridlestone pega tais mentiras resultam na desmoralização, na privação de direitos civis e na
sua arma para tentar se defender; Landry tira a arma da mão do cadáver de morte de negros inocentes.
Gridlestone. No instante em que o assassinato é cometido, a cabeça de Efrem Mas Micheaux não limita sua crítica a personagens brancas e práticas
não está voltada para a cena, e, quando ele torna a dirigir o olhar ao cômodo, só da mídia. De forma significativa, ele também envolve afro-americanos nas
vê Landry segurar uma arma exalando fumaça. Este, então, foge amedrontado. distorções da verdade “negra”. Jane Gaines observa que a ideia de traição — de
Portanto, quando Efrem narra o assassinato aos habitantes brancos da cidade, fazer mal aos seus — é um tema recorrente no cinema negro silencioso e que,
sua versão se baseia em evidência circunstancial. É o relato de Efrem sobre o “para Micheaux, os crimes cometidos contra sua própria gente explicam por que
assassinato que é impresso no jornal local. Micheaux ilustra de forma vívida ela não consegue subir e ir além”.23 Quando decide tornar visíveis as histórias
a penetração e o poder da representação distorcida dos negros não apenas ao contadas por negros pouco confiáveis sobre aqueles que ascenderam, ele salien-
mostrar a versão falsa em cartelas retratando o texto do jornal local, mas tam- ta que os obstáculos ao progresso e à mobilidade dos negros devem ser inter-
bém ao intercalar esse texto com uma reencenação visual do assassinato. Nessa pretados como construções inter-raciais. Numa cena fundamental, por exemplo,
reconstrução branca (baseada na evidência falsa do negro Efrem), vemos um Philip Gridlestone imagina que seus locatários negros, os Landry, estão ficando
Landry embriagado apertar o gatilho. Nesse caso, como no da imagem fugaz muito de nariz em pé por sua filha Sylvia ter recebido alguma educação. Ele
de Sylvia com Aramand Gridlestone, o filme apresenta uma “evidência” visual os visualiza discutindo seu orçamento anual, a Sra. Landry recomendando ao
que ilustra as manipulações de personagens que levantam falso testemunho e marido: “[Sylvia] já é tão instruída quanto as garotas brancas. Então, quando
precipitam consequências violentas. você for pagar o chefe, diga isso a ele.” No entanto, outra cartela introduz “o
Ao reencenar visualmente versões falsas de ações negras, Dentro de nos- que eles realmente disseram”: mais uma vez, vemos os Landry à mesa, e Sylvia
sas portas desafia a retórica enunciada por D. W. Griffith em O nascimento de recomenda aos pais que “anotem todas as compras, vendas e dívidas, para que
uma nação, segundo a qual o aparato cinematográfico está imbuído do poder (...) quando vocês forem até a casa dos Gridlestone, possam levar os registros e
de representar a vida de forma precisa e objetiva, inclusive eventos e vultos resolver as coisas sem discussão”. Aqui, Micheaux mostra mais duas encena-
históricos. Ao contrário do teatro, alegou Griffith, “o cinema é a verdadeira ções visuais — uma branca e outra negra — do mesmo acontecimento. E, como
técnica, uma imagem fiel da vida”.22 Claro, seu senso de realismo não era na- a versão jornalística errônea do assassinato de Gridlestone, a falsa impressão
turalista nem jornalístico: havia espaço para a alegoria, a fantasia e a hipérbole da audácia dos Landry é incutida nele pelo criado negro, Efrem. O criado o
em sua prática cinematográfica. Mas as alegações de que o cinema podia levar provoca, dizendo: “Aquela garota dos Landry foi para a escola e agora cuida dos
às verdades emocionais da vida estavam atreladas aos seus muitos flertes com livros do papai... para você não conseguir mais enganar ele.” Assim, o diretor
a acuidade histórica, especialmente em O nascimento de uma nação, que está ilustra repetidamente a margem que Efrem dá a distorções brancas da verdade
repleto de “fac-símiles” históricos — do assassinato de Lincoln às atividades ao pôr lenha na fogueira do antagonismo racial — primeiro, quando sugere que
de representantes de Estado negros recém-eleitos. Ao inserir uma imagística os meeiros negros conseguiriam deixar sua posição de subserviência social e
racista em seus fac-símiles — por exemplo, legisladores negros bebendo álcool econômica graças à educação e, em seguida, quando acusa um negro de assas-

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sinato de forma equivocada, incitando a retaliação de uma multidão branca en- Quando Dentro de nossas portas foi lançado, estava claro que a situação
furecida. Ao mostrar Eph imaginando a própria morte por linchamento antes de racial nos Estados Unidos chegara a um estado hostil e que, por todo o país,
ela acontecer e encenar temores brancos de negros violentos e instruídos, Mi- afro-americanos de todas as classes ainda eram alvo de ataques brancos viru-
cheaux chama atenção para o poder do visual de tornar até mentiras e fantasias lentos. A tentativa de Micheaux no desfecho do filme de construir personagens
“realidade”, apoiadas pela mídia impressa e facilitadas por negros mentirosos. norte-americanas negras orgulhosas, unidas no patriotismo, sem dúvida, é uma
Micheaux implica outra personagem negra na política de verdade e invenção resposta persuasiva à imagem excludente e racista dos Estados Unidos exposta
do filme quando insere todo o flashback para o passado sulista de Sylvia dentro em O nascimento de uma nação. Mas o uso que o filme faz da retórica patriótica
da voz narrativa de Alma, a prima desonesta da heroína. O diretor investe uma também evidencia os conflitos internos e externos com frequência em aberto
autoridade narrativa considerável nessa personagem não confiável; começado nos indivíduos e nas comunidades afro-americanas, que eram exacerbados pela
o flashback, em nenhum momento há alguma razão diegética para duvidarmos migração e persistiam mesmo quando esses negros pareciam encarar um amigo
dos acontecimentos retratados. Em certos aspectos, sua função de manter Sylvia comum. Ao fim e ao cabo, o filme não consegue conciliar por completo a exposi-
correndo entre o Norte e o Sul relaciona os abusos dela à revelação daqueles ção controversa de crimes brancos inomináveis (estupro, linchamento, distorção
perpetrados por brancos nas longas cenas sulistas situadas dentro da sua voz da mídia) e traições negras escandalosas (parentes desonestos, criminosos ur-
narrativa. Embora, de início, tenha atrapalhado o final feliz de Sylvia (orques- banos, falsos líderes religiosos). Ao mobilizar os múltiplos apelos da narrativa
trando o término do seu relacionamento com Conrad), Alma introduz o passado de migração, do patriotismo, do melodrama e do conto de ascensão, o desfecho
da prima ao Dr. Vivian (e ao espectador) quando confessa seus enganos anterio- desajeitado do filme aguça a nossa consciência dos seus discursos contraditórios
res, de forma que sua narração lhe serve de oportunidade para se redimir. Old acerca da ideia de progresso negro e da natureza cambiante da representação
Ned, o reverendo negro desonesto que serve aos brancos, ganha um momento de cinematográfica negra.
redenção semelhante ao admitir para si (e para o espectador) seus agravos, em- As vozes narrativas incoerentes e fragmentadas contidas em Dentro de nos-
bora seja mostrado dentro da estrutura da narração míope de Geraldine Strat- sas portas têm uma relação significativa com os ambientes negros dissonantes e
ton, racista. Nesses momentos marcantes e desajeitados e na visão de Eph do os “heróis” pastelões inquietos presentes nas comédias produzidas pela Ebony
próprio linchamento, Micheaux põe seu papel de narrador em primeiro plano, Film Corporation. Ambas as produções refletem as novas possibilidades sociais
fazendo juízos de valor e atribuindo destinos de maneiras que exigem algum que a migração urbana abriu para comunidades e indivíduos negros. Porém
desvio das regras da lógica narrativa clássica. também ilustram os riscos de dispersão e instabilidade subjetiva na vida negra
Nesses sentidos, Dentro de nossas portas vai além de criticar as tendências e na produção cultural afro-americana. Micheaux, Luther J. Pollard na Ebony
racistas da cinematografia norte-americana branca e da sociedade dominante e outros cineastas afro-americanos da época tentaram tirar proveito do poten-
em geral. O filme também demonstra estilisticamente que há modos numerosos cial comercial e de elevação do cinema. Todavia, a diversidade negra da qual
e contraditórios disponíveis de se representar afro-americanos — modos textu- dependiam — isto é, públicos em diversas regiões, gosto dos espectadores por
ais e novos modos cinematográficos poderosos, a serviço de brancos e negros diferentes gêneros, modelos para numerosos tipos de personagens — também
—, complicando qualquer alegação de que essa população móvel e diversa pos- ameaçava seus esforços no sentido de usar o cinema para produzir um consenso
sa algum dia ser representada de forma de todo “realística”. Micheaux sugere político ou um público negro nacional e estável. Graças à sua sensibilidade
que, apesar de nunca terem sido imigrantes, os negros também não são comple- a questões urgentes da vida negra moderna, como a migração e o sentimento
tamente inocentes. Ele envolve os afro-americanos nos rumos positivos e nega- patriótico, os primeiros cineastas negros atingiam muitos segmentos do públi-
tivos que a vida negra moderna e suas representações estão tomando. Desafia co afro-americano, mas também discutiam os mesmos tópicos que os críticos
os espectadores a falar e encarar as muitas verdades sobre afro-americanos a usavam contra seus filmes, entre os quais o colapso dos valores tradicionais, as
despeito das tentações nortistas e sulistas de pôr a autopreservação na frente tentações imorais da cidade e a representação midiática falsa da Raça.
do avanço da Raça como um todo. Além disso, o próprio estilo narrativo trai as Desde seus primeiros esforços no cinema e durante toda a era do cinema
dificuldades de falar a, falar de, e, principalmente, de falar em nome de uma mudo, os produtores afro-americanos combateram uma série de problemas fi-
população negra no meio de transformações geográficas, psicológicas e sociais nanceiros e de representação. Embora muitas vezes se sentissem despreparados
dramáticas. para competir com a grande indústria, as comédias, os westerns, os filmes de

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9 J. Ronald Green, Straight Lick: 13 Entre suas muitas contradições, organizado em ordem cronológica”
não ficção e os melodramas que produziram de meados da década de 1910 até The Cinema of Oscar Micheaux o discurso patriótico de Vivian ou “se havia outros linchamentos
(Bloomington: Indiana UP, 2000) 29. não aborda o problema de no segundo rolo”. Bowser e Spence,
o período da Primeira Guerra Mundial e da Grande Migração revelam a com- se advogarem ações militares Writing Himself 146.
10 Carby aponta que Harper imperialistas dos Estados Unidos
plexidade de se definir, reivindicar e representar a identidade afro-americana apresenta a atração de Iola pelo contra pessoas de cor no exterior 19 Jane Gaines, “Within Our Gates:
nesse momento histórico. Com o lançamento de Dentro de nossas portas, dotado Dr. Latimer não em termos físicos à luz das suas práticas e políticas From Race Melodrama to
e sexuais “baixos”, mas em termos racistas na terra natal. Opportunity Narrative,” Oscar
de discursos multifacetados sobre migração e patriotismo negro, identidade afro “espirituais”. Pode-se argumentar 14 Bowser and Spence, Writing Micheaux and His Circle 75; Bowser
que o tratamento desengonçado Himself 109. and Spence, Writing Himself 134.
-americana e representação fílmica, vemos uma incisiva prática cinematográ- dado por Micheaux ao pedido
fica negra pós-revoltas, pós-guerra, pós-Nascimento. Por extensão, esse filme de casamento de Vivian (como
será discutido mais adiante)
15 Anna Julia Cooper, A Voice from the
South (1892; Oxford: Oxford UP,
20 A análise aguda de Creekmur
sobre a política da adaptação na
anunciou o surgimento de uma cultura fílmica afro-americana não mais em sua serve para contornar de maneira 1988) 31. obra de Micheaux descreve a
parecida questões complicadas de 16 Gaines, “Fire and Desire” 52. relação de Dentro de nossas portas
“infância”, mas sim com a autoconsciência aguda da adolescência. sexualidade negra. Assim como (nos níveis de forma e conteúdo)
Harper, Micheaux “começa se 17 Gaines, “Fire and Desire” 50; ao romance de Charles Chesnutt
valendo da convenção romântica e Bowser and Spence, Writing The Marrow of Tradition (1901).
em seguida descarta o romance”. Himself 15–16. Corey Creekmur, “Telling White
Hazel Carby, Reconstructing Lies: Oscar Micheaux and Charles
1 Originalmente publicado em Sobre a narrativa de migração 6 O fim da cena em que Conrad vê Womanhood: The Emergence of 18 Antes de providenciar uma segunda W. Chesnutt,” Oscar Micheaux and
Migrating to the movies: Cinema and afro-americana, ver Farah Jasmine Sylvia com Armand Gridlestone the Afro-American Woman Novelist temporada de exibição do filme em His Circle 147–58.
Black Urban Modernity (Berkeley/ Griffin, “Who Set You Flowin’?”: The não está presente na cópia (Oxford: Oxford UP, 1987) 79–80. Omaha, Johnson pede a Micheaux
Los Angeles: University of African American Migration Narrative restaurada. Talvez houvesse que “tenha a gentileza de eliminar 21 Creekmur 156.
California Press, 2005). © 2005, (New York: Oxford UP, 1995); sequências (e mais cartelas 11 Michele Wallace, “Oscar do segundo rolo todas as cenas
The Regents of the University of e Lawrence R. Rodgers, Canaan explicativas) nas versões originais Micheaux’s Within Our Gates: The ofensivas de linchamento, como as 22 Griffith citado em Michael Rogin,
California. Direitos cedidos pela Bound: The African-American Great do filme que fornecessem um Possibilities for Alternative visions,” que causaram problemas em outras “‘The Sword Became a Flashing
autora e pela editora. Traduzido do Migration Novel (Urbana: U of relato mais detalhado do que Oscar Micheaux and His Circle comunidades”. Carta de George P. Vision’: D. W. Griffith’s The Birth
inglês por Mariana Barros. (N.E.) Illinois P, 1997). aconteceu entre Armand, Sylvia, 58–59. Johnson para Oscar Micheaux, 4 de of a Nation,” Representations 9
Conrad e Alma nesse ponto da outubro de 1920, GPJC. Bowser e (1985): 157.
2 Em filmes posteriores, Micheaux 4 Como Sylvia, todas as três narrativa. Mesmo assim, a nota 12 Green 29. Spence se perguntam “se, em dado
continuaria a usar um contraste personagens fogem do padrão de da Biblioteca do Congresso momento, o filme chegou a ser 23 Gaines, Within Our Gates 80.
Norte/Sul para explicar as mão única de muitas narrativas Norte-americano explicando que
motivações das personagens — The de migração (o deslocamento do Conrad deixa o cômodo sem
Notorious Elinor Lee (1940) — ou Sul para o Norte) por fazerem ouvir o esclarecimento de Sylvia
para evitar mal-entendidos que diversas viagens entre Sul e sugere que o diretor ainda não
ameaçariam o desfecho da narrativa Norte. O Ex-negro e Helga Crane queria revelar os “segredos” da
(Lying Lips, 1939). Entre os outros também migram para a Europa e personagem ao espectador.
filmes que apresentam narrativas retornam. Frances Ellen Watkins
de migração estão O Exílio (The Harper, Iola LeRoy (1892; Oxford: 7 A citação de Toni Cade Bambara
Exile, 1931; refilmagem falada Oxford UP, 1988); James Weldon foi tirada do documentário
de The Homesteader, sobre um Johnson, Autobiografia de um Midnight Ramble: Oscar Micheaux
homem que se muda de Chicago Ex-negro (Porto Alegre: Editora and the Race Film, dir. Bestor
para se assentar na Dakota do Sul); 8Inverso, 2010); Nella Larsen, Cram e Pearl Bowser, The
Birthright (1924; um ex-aluno da Quicksand (1928; New Brunswick: American Experience, 1994.
Universidade de Harvard tenta criar Rutgers UP, 1986). Para uma discussão de Dentro de
uma escola para crianças negras nossas portas enquanto resposta
no Sul Profundo; refilmado com 5 Apesar de Iola ter sido criada a O nascimento de uma nação
som em 1939); The Spider’s Web confortavelmente no Sul (especialmente no que concerne
(1926; uma mulher do Harlem faz acreditando ser branca, o retorno às representações de estupro e
uma viagem de ida e volta a uma dela após a revelação da sua linchamento), ver Jane Gaines, “Fire
cidadezinha do Mississippi; refeito herança negra é carregado de and Desire: Race, Melodrama, and
com som e chamado de A garota eventos traumáticos — chega até Oscar Micheaux,” Black American
de Chicago [The Girl from Chicago], a ser escravizada. O Ex-negro Cinema, ed. Manthia Diawara (New
1932); Swing! (Swing!,1938; um casal testemunha um linchamento no York: Routledge, 1993) 49–70.
viaja de Birmingham para o Harlem). Sul que o impele a renunciar às
origens negras e se passar por 8 Representações de criminosos
3 A respeito da miscigenação e branco. Helga Crane se sente fora são comuns nas cenas de
da figura do mulato na literatura do lugar na atmosfera repressora encontros urbanos das narrativas
norte-americana, ver Werner e de ascensão social de uma de migração. Vale ressaltar, no
Sollors, Neither Black nor White faculdade sulista negra no início entanto, que a escalação de um
yet Both: Thematic Explorations do romance. Quando retorna ao ator escuro para o papel do
of Interracial Literature (New Sul no desfecho — na esperança assaltante, que é apreendido pelo
York: Oxford UP, 1997); e de “elevar” uma população negra Dr. Vivian, de pele mais clara,
James Kinney, Amalgamation! rural e pobre —, ela volta a se revela a mobilização de tipos
Race, Sex, and Rhetoric in the sentir deploravelmente deslocada, e hierarquias com base na cor
Nineteenth-Century American Novel mas, dessa vez, fica exausta demais, frequente (mas longe de universal)
(Westport: Greenwood, 1985). física e psicologicamente, para fugir. nos filmes de Micheaux.

196 197
Onde o
Negro
fracassa 1

Oscar Micheaux

“Vá para o Oeste, jovem, e cresça junto com o país”


— Horace Greely, 40 anos atrás

Não há sequer 300 fazendeiros negros nos dez esta-


dos do Noroeste — Mais oportunidades do que jovens
para agarrá-las

Gregory, Dakota do Sul, 18 de março

C
onheci há pouco tempo atrás um jovem empregado da Rodovia St. Paul
que, no decorrer da conversa, afirmou que tinha obtido um número na
reserva indígena de Cheyenne River e Standing Rock, na Dakota do
Sul, durante a abertura de terras em outubro passado. Como sou residente, pio-
neiro e proprietário de terras deste estado, ele me perguntou o que eu pensava
disso. Eu disse que preferia ouvir o que ele pensava sobre o assunto primeiro.
“Bem”, ele me disse, “eu não sei. Conversei com muitos negros por aqui e eles
não parecem aderir à ideia; era muito longe de Chicago etc.” Ele estava compro-
metido com uma jovem da cidade e ela nem cogitaria ir para o deserto assim,
e por aí vai, mas ele me pediu para falar com ela, ao que eu respondi: “Não;
apenas isso, acho que é melhor você ficar em Chicago. Pois ninguém sem força

199
nunca fez negócios na Dakota do Sul ou em nenhuma outra parte do Noroeste, desenvolver-se ou crescer com o país. Os jovens homens negros estão indo para
mas”, eu continuei, “a chance que você tem é ótima. Eu não aconselharia você a o Oeste para São Francisco, Los Angeles, Denver, Salt Lake, Portland e Seattle
falar com os homens negros comuns de Chicago ou com os seus irmãos porteiros para “crescer no país.”2 O problema com as pessoas da nossa raça é que eles
ou garçons, mas com os oficiais. Pergunte ao presidente do First National Bank querem tudo por nada. [...] Há vagas em abundância para advogados, médicos,
ou a algum outro grande homem e veja o que eles te dizem.” trabalhadores, mecânicos e, o maior de todos, o produtor, e é desejável que a
Eu acabara de ler o “Panorama de Negócios para 1910. Uma Palavra de Âni- nossa raça perceba isso antes que seja tarde, pois o Oeste, se não é chique, ao
mo de Cada Estado da União”, na Munsey’s Magazine de março, e é a mesma menos é rápido. Escrevendo isso, não estou negligenciando o que o Negro está
coisa do Maine a Washington, de Duluth a Nova Orleans e San Antonio. Cada fazendo no Sul, nem os empreendedores do Norte, mas o tempo está em nossas
governador, em sua carta, tratava extensivamente da perspectiva agrícola de seu mãos — o Negro precisa tornar-se mais autossuficiente. Propriedades rurais são
estado. Enquanto fazendeiro, percebi que era necessário buscar audiência entre os patrões da prosperidade. A terra está subindo a passos largos atualmente.
os homens brancos de sucesso para ter alguma satisfação discutindo agricultura. Qualquer jovem enérgico com tão pouco quanto $ 1.000, pronto e desejoso em
Eu retorno de Chicago a cada viagem que faço mais desencorajado, a cada dar todo o seu tempo e atenção à construção do futuro, pode ir para Wyoming,
ano, com a falta de esperança nas suas perspectivas (as deste jovem negro). Sua Montana, Idaho pegar uma propriedade sobre o canal [de irrigação] que custa
inabilidade em usar o senso comum para prever o futuro é realmente desen- entre $ 25 e $ 45 por acre, com dez ou doze anos para pagá-la, e no tempo de
corajadora quando se examina o alto custo de vida. O Negro lidera o consumo dez anos será independente. Eu não estou tentando oferecer uma solução do
de produtos, especialmente a carne, e depois suas roupas finas — ele sequer problema do Negro, pois não sinto que haja problema algum para além do futuro
pensa onde cresce a lã que usa e descreve a si mesmo como sendo “chique”. Ele de nada, seja uma cidade, um estado ou uma raça. Depende-se primeiro da rea-
pode oferecer-lhe uma extensa teoria sobre como o problema do Negro deveria lização individual, e eu não consigo ver um futuro brilhante para o jovem negro
ser resolvido, mas o final é sempre que (na cabeça dele) não há oportunidade a menos que primeiro ele faça alguma coisa para si mesmo.
para o Negro. O que o Negro do Norte está fazendo para se auto sustentar? Iowa,
o mais rico estado da União próximo a Illinois, tem 210.00 fazendas avaliadas
em $ 7,000,000,000. Desse total, 37 pertencem e são operadas por Negros. 1 No original, Where the Negro Fails. 2 Trecho apagado no original. É (“with the country”), como dito
Minnesota, com [...] milhões de acres de terras ricas, não tem quase nenhum Publicado originalmente no jornal possível que Micheaux tenha anteriormente. Ele faz referência
Chicago Defender, 19 de março escrito que o jovem negro vai ao fato de que o negro migra para
fazendeiro negro. A Dakota do Sul, com as suas inúmeras vantagens, possui 11 de 1910. Os sinais de [...] indicam para o país para “crescer dentro grandes centros urbanos (Los
trechos apagados no material do país” (“grow up within the Angeles, São Francisco, Denver) e
fazendeiros Negros. Na região onde vivo, com quatro grandes condados agríco- original. Traduzido do inglês por country”), diferentemente dos não para o interior. (N.T.)
las, não há nenhum fazendeiro Negro. [...] Wyoming [...] não possui uma dúzia Calac Nogueira. (N.E.) outros, que crescem “com o país”

de fazendeiros e pioneiros Negros. O mesmo acontece com o estado de Idaho,


com seus grandes projetos de irrigação, e Oregon, Washington, Montana e com
praticamente todos os estados do Oeste, e ainda assim você precisa ouvir aquele
velho choro — que está ficando velho — “Sem chance.”
Não é suficiente fazer sentirmo-nos desgostosos de ver e ler sobre milhares
de brancos pobres indo para o Oeste todos os dias, e no tempo de dez ou quinze
anos tornando-se prósperos e felizes, bem como tornando o Oeste o maior e mais
feliz lugar do mundo. Sim, eles estão recuperando o deserto, e o governador do
Colorado diz que seus produtos agrícolas valem quatro vezes mais do que os
produtos minerais, e o Colorado é denominado um estado de mineração. Não, o
futuro inteiro do Oeste do país reside em sua possibilidade agrícola, bem como
no seu orgulho. Tudo o que o Negro produz no Noroeste não alimentaria a po-
pulação negra de Chicago por três dias, e ele ainda se vangloria do que a raça
está conquistando. Ir para o Oeste geralmente significa ir para o interior para

200 201
Três capítulos de
The Homesteader 1

Segunda época
Capítulo I

Sobre o casamento inter-racial


Era inverno, e a neve branca estava em todos os lugares; pingentes pendurados
nos beirais. Todo o trabalho nas fazendas foi concluído. As pessoas estavam viajan-
do para uma cidade a meio caminho entre Bonesteel e Gregory, a fim de apanhar o
comboio para suas antigas casas; outras, para visitar seus parentes. Jean Baptiste
rumava para Chicago e para Nova York, aonde ele sempre ia a cada final de ano.
Ele ia com um aparente ar de satisfação, pois, na verdade, tinha tudo para se
sentir assim — quer dizer, quase tudo. Ele se saíra bem no oeste. O país havia
experimentado uma época mais próspera, e a cultura colhida e vendida por ele
lhe rendeu a soma exata de 7.500 dólares. Ele havia pagado os oitenta hectares
de terra que tinha comprado; ele havia semeado mais trigo de inverno neste
outono, e parecia que a safra seria ótima; sua saúde estava excepcional. O que
mais ele poderia desejar?
Não obstante, ninguém estava mais preocupado do que ele quando ele saiu
da diligência para a plataforma da estação onde devia embarcar para o leste. É
quase impossível que algum homem pudesse estar mais triste do que ele. Para

202 203
explicar isso, somos impelidos a retroceder alguns meses, de volta à época da paço a sentimentos que estavam dentro deles, nomeando-os. Até então, ficaram
colheita, à sua fazenda, ao momento em que ele se sentou com alguém próximo, convencionalmente separados um do outro, cada um absorvido na calma per-
muito próximo, e ao que se seguiu a isto. cepção de suas posições em nossa grande sociedade americana. Eles estavam
“Não consegui resistir. Eu amei você, amei de verdade. Eu sempre amei obviamente perturbados; mas aquilo que lhes havia tirado das posições que
você”, disse ele apaixonadamente a ela. ocupavam e que declaravam para si ainda restava, e isso era o amor.
Em resposta, ela havia concedido a ele novamente seus lábios, e todo o amor Assim, o tempo passou da maneira que o tempo passa; nunca parando para
de seu jovem, caloroso coração. nada, jamais hesitando ou atrasando. O dia se passou, e então a semana, o mês,
“Eu não entendo você sempre, querida”, sussurrou ele. “Às vezes, há algo em o mês seguinte, até que as férias se aproximaram, e Jean Baptiste estava indo
você que me intriga. Acho que está em seus olhos. Mas estou certo de que é algo embora, para esquecer o que era mais importante para ele do que todo o mundo:
bom, seja lá o que for. Não poderia ser de outra forma, poderia?” o amor de Agnes Stewart.
“Não, Jean”, disse ela, hesitando. Ele havia considerado isso antes, quando segurara a pessoa que amava em
“Você se pergunta por que chamei seu nome àquela noite?” seus braços e dissera a verdade que estava nele. Mas havia um outro lado que
“Até agora eu nunca entendi aquilo”, respondeu ela. vai ter muito espaço em nossa história.
“Você apareceu como uma visão, e deve ter sido algo divino. Fez dois anos Algumas estações de trem abaixo da qual ele estava agora, vivia um exem-
agora”, ela o ouviu dizer. “E desde então o seu rosto não me deixou mais, queri- plo. Um homem havia chegado anos atrás no país, um homem forte e corpulento.
da. Eu a amei, e, claro, sabia que iria amar você quando você veio.” Ele era saudável, corajoso e, de fato, negro. E assim foi até que, com o tempo, o
“Que estranho”, sussurrou ela. coração deste homem se enamorou de uma moça branca. Por conta de sua raça,
“Mas é bonito.” sucedera a ele o mesmo que a Jean Baptiste. Perto dele, não havia nenhum outro
“Muito bonito.” negro. Então, acabou por se casar com uma mulher branca. Ele a amava e ela o
“Foi a providência ou foi Deus que trouxe você àquela noite e me salvou da amava; e, porque era assim, tiveram filhos. Quando as crianças nasceram, ela
morte lenta que se encaminhava para mim, Agnes?” morreu. Após alguns anos, ele tomou para si outra mulher da mesma raça, e
“Por favor, Jean, não mencione de novo aquela noite terrível! Certamente deve desta união vieram outros filhos.
ter sido alguma providência divina que me trouxera a este lugar, mas eu nunca me Então, os anos se passaram, e esses filhos atingiram sua maioridade, e tam-
recordo disto sem sentir medo. Só de pensar que você poderia ter morrido lá! Por bém eles arranjaram esposas, que eram de sangue caucasiano. Mas quando
favor, nunca mais me fale disso, querido”, disse ela, tremendo e se aconchegando esse homem negro se estabelecera em terras mais abaixo, as quais, naquela
perto dele, enquanto seu coraçãozinho deixava uma marca contra suas costelas. época, faziam parte de um novo país, ele se decidiu por apresentar a si mesmo
Olharam para a frente, então, pois os irmãos dela, tolos que só, estavam se de outro modo. Ele disse e repetiu que tinha ascendência mexicana, mestiça,
aproximando pelo campo. Foi só então que eles pareceram perceber o que havia em verdade. Mas todas as pessoas e seus vizinhos sabiam que era mentira, que
acontecido logo antes, e, assim que isto ficou claro, eles se desvencilharam em ele era etíope, o que transparecia em seus olhos. Mas até mesmo afirmar ser ou-
silêncio. O que aconteceu foi a coisa mais natural do mundo, de verdade, e isso tra coisa era uma espécie de compromisso. Assim, seus filhos viraram homens
lhes sobreveio porque era natural a eles se afirmarem assim. Mas agora, diante e mulheres, que, por sua vez, trouxeram mais crianças ao mundo. E todos eles
dele, surgia os costumes do país, suas leis. Tão vital é este costume, tanto é par- alegavam pertencer a uma raça distinta da verdadeira.
te do corpo político que alguns estados já se manifestaram oficialmente contra Há tempos, viveu um homem reconhecido publicamente como notável. Ele
ele. Não porque algo bom ou ruim, tampouco rico ou pobre, estava envolvido. era negro, mas o ponto mais alto de sua extraordinária vida foi ter se casado com
Tinha sido por causa do sentimento, o sentimento da facção mais forte... uma mulher caucasiana, uma raça superior à sua em matéria de vida, de riqueza
E, assim, ele prevaleceu. e de realizações. E assim foi.
Na vida dos dois personagens de nossa história, pensamento algum que não Jean Baptiste nunca sentiu que poderia agir da mesma forma. Mesmo que
fosse viver de acordo com a lei de Deus e a lei da terra jamais passou por suas ele ignorasse o costume e a lei de seu país, e se casasse com Agnes, ele sentia
cabeças. Mas agora, enquanto trabalhavam sob a tensão da emoção reprimida e que jamais poderia tentar isso. Mas, casar-se com uma mulher de raça distinta
anulada, duas raças se esqueceram da lei que antes obedeciam, e cederam es- à sua, especialmente à raça que ela pertencia, seria a atitude mais impopular

204 205
que ele poderia fazer. Ele veio a esta nova terra para obter sucesso, e havia tra- que ele entrou, segurando-o e olhando-o com afeição. “Como você está, afinal?”
balhado exaustivamente para este fim. Ele gostava de seu povo, queria ajudá-lo. “Ah, bem”, respondeu ele, olhando-a com satisfação.
Eles precisavam de exemplos, e ele estava feliz de ter se tornado um; mas, se ele “Você certamente está muito bonito”, disse ela, encarando-o com olhos de-
se casasse agora com a mulher que amava, o exemplo seria perdido; ele seria liciados. “Sente-se, sente-se e sinta-se em casa”, disse ela, convidando-o e pu-
condenado, desprezado por sua raça. Ademais, tal união talvez trouxesse muita xando uma cadeira.
infelicidade à vida dela, e ele a amava muito para deixar isso acontecer. “Bem, como está a vida em Chicago?”, perguntou ele, jogando conversa fora.
Jean Baptiste tinha decidido. Ele amava Agnes, e tinha todos os motivos para “É a cidade de sempre”, respondeu ela, puxando uma cadeira para perto.
isso, mas iria se abster. Ele iria se mudar, voltaria para o lugar de onde veio. “E como está seu marido?”
Seria um homem como convinha que fosse. Encontraria uma garota de sua raça “Bem!”
e se casaria com ela. Eles tinham educação; eles eram refinados. Bem, ele iria “E o restante da família?”
se casar com uma delas de qualquer maneira! “Estão todos ótimos. Pearl inclusive.”
Assim, Jean Baptiste estava partindo. Ele iria esquecer Agnes. Cortejaria “Ah, Pearl... Como ela está?”
uma mulher de sua própria raça. Então, apressava-se para chegar a Chicago. “Ainda solteira...”
Ele viveu em Chicago antes de ir para o oeste, e estava muito familiarizado “Mas ela não estava prestes a se casar quando eu estava aqui ano passado?”
com a seção da zona sul da cidade que é o centro da vida dos negros daquela “Ah, aquele sujeito não prestava!”
grande metrópole. Assim, ele se encaminhou a uma estação no bairro Loop, “Qual era o problema?”
entrou num dos vagões amarelos e se sentou. Ele olhou para baixo, para o tu- “Qual é o problema desses negros de Chicago? Eles não aceitam que as
multo da vida cotidiana, e, em seguida, seus olhos passaram a esquadrinhar as mulheres fiquem zanzando pela State Street.”
pessoas do vagão. Estava vazio, exceto pela presença de uma outra pessoa, uma “Sei...”
moça, uma moça de sua raça! A primeira que tinha visto desde a última vez em “É a mais pura verdade!”
que ele esteve na cidade. Ela nem poderia adivinhar, quando se sentou em fren- “E quanto às mulheres? Elas parecem gostar de ficar posando na rua.”
te a ele, que era a primeira mulher de sua raça que os olhos dele tinham visto no “Ah, não seja malvado”, disse, fazendo beicinho. “Você ainda é casado?”
último ano. Ele a olhou com curiosidade. Ela era do tipo mestiço, tão numeroso; “Ah, meu Deus! Como eu poderia me casar? Não faz nem trinta minutos que
pessoas totalmente negras agora eram raras naquela região. Ela tinha uma tez vi a primeira garota de cor que vejo em um ano!”
morena, castanha clara, e aparentava ter cerca de 22 anos. Ademais, parecia “Ah, você é um mentiroso!”
totalmente inconsciente dos olhos curiosos postos sobre ela, e então ela final- “É verdade!”
mente saltou do trem numa estação que ele bem conhecia e desapareceu. “É mesmo, Jean? Você realmente não viu uma menina de cor durante um
Na Thirty-First Street, ele saiu do trem, rodeado pela multidão dispersa, e ano inteiro?”
aquela sensação de viver numa grande cidade voltou a ele num piscar de olhos. Ele “Eu nunca menti para você, não é?”
encontrou seu caminho para a State Street, a grande via pública de seu povo. A no- “Bem, não. Claro que não. Eu só não sei o que faria em tais circunstâncias.
vidade em ver membros de sua raça agora o tinha deixado, pois só havia negros ali. Sem ver um negro por um ano.”
Mesmo se ele fosse cego, ele saberia que estava entre seus pares, pois não se fazia “Mas agora eu já vi o suficiente para compensar.”
presente o ruído habitual, as velhas risadas, tudo aquilo que geralmente acontecia. “Meu Deus. Você já viu tanto negro lá na State Street antes?”, disse ela,
Ele cruzou apressadamente a Thirty-First em direção à Dearborn Street, uma rindo. Então fez uma pausa e seu rosto ficou um pouco sério por um momento.
verdadeira Cidade Negra. Mesmo quando ele alcançou a Federal Street, até então “Aliás, Jean, por que você não se casa com a minha irmã?”
chamada Armour Street, ele não vira nada além de negros. Ele tinha amigos, ao “Você devia ter vergonha! Sua irmã não me aceitaria. Sou um fazendeiro.”
menos conhecidos, nas redondezas, e caminhava a passos largos para visitá-los. “Ah, sim, ela aceitaria. Pearl está ficando cansada de ficar noiva desses ne-
“E se não é Jean Baptiste, minha nossa!”, gritou a mulher, quando abriu a porta gros daqui de Chicago. Ela gosta de você, de todo modo.”
em resposta à sua batida. Sem cerimônia, rodeou o pescoço dele com os braços, e “Pearl me daria um trabalho enorme lá na fazenda!”, disse ele, rindo des-
beijou seus lábios uma vez, e então uma segunda. “Meu querido!”, exclamou assim denhosamente.

206 207
“Não, ela não daria trabalho algum, tenho certeza. Pearl é bonita e está para ser franco com você, eu não me importaria tanto com um negro qualquer se
cansada de trabalhar”, disse ela, rindo também. casando com uma mulher branca velha, porque esse não é o tipo de homem que
“Ela é bonita, concordo, e talvez esteja cansada de trabalhar, mas ela não uma mulher branca procura quando ela se rebaixa a ponto de se casar com um
iria aceitar morar na fazenda.” negro. Não, senhor! Nananinanão. Ela não vai querer se engraçar com um negro
“Ah, você não quer mesmo. Aposto que você já está casado.” qualquer. Ela deixa esse tipo livre para partir o coração de alguma pobre mulher
“Ah, sra. White!” de cor. Ela se casa com alguém como você, com muito dinheiro e juízo, entende?”
“Mas você está noivo?” Ele riu, deliciado.
“Não!” “Não ria. Você sabe que eu estou dizendo a verdade. Portanto, tome cuidado!
“Jean, aposto que você vai se casar com uma mulher branca, e não vai nem Não se case com alguma mulher branca lá em cima e chegue aqui de mansinho
querer mais saber dos negros.” esperando que eu lhe dê minha bênção. Porque se você fizer isso, tão certo
“Não seja má.” quanto meu nome é Ida White, você vai ver só uma coisa!”
“E, quando você se casar com uma mulher branca, eu quero ser a primeira “Mas uma mulher branca pode ajudar um sujeito a se levantar no mundo”,
a dar um tiro em você. Na perna.” argumentou ele.
Ele riu longa e ruidosamente. “Sim, eu reconheço isso também. Mas nosso fardo é nosso fardo, e temos que
“Você pode rir o quanto quiser, mas você não vai passar pela vida sem amar suportá-lo. Além disso, você pode arranjar uma moça para ajudá-lo se o que você
alguém. Tem uma menina reservada para você em algum lugar. Mas faça como tem em mente é uma esposa. Esta não é a questão. Claro que eu gostaria de ver
quiser, desde que não chegue a esse ponto.” Pearl casada. Mas você não vai se engraçar com ela, e eu sei disso. Pearl acha que
“Que ponto?” seria melhor se ela se casasse com alguém de fora de Chicago, mas depois de um
“Casar com uma mulher branca.” mês ou coisa parecida as coisas terminariam da mesma forma com qualquer um.”
“Qual o problema disso?” “Bem”, disse ele, “é melhor eu ir para Keystone. Hoje foi interessante.
Ela cravou os olhos nele. Ele sorriu, deleitado. Aprendi algo sobre a união de raças...”
“Não ria aqui de um assunto como esse! Meu Deus! Eu gosto muito de você, “Eu espero que sim, se você tiver juízo. Qualquer outra coisa pode ser per-
mas, se eu souber que você se casou com uma mulher branca, eu vou roubar doada, mas se casar com uma mulher branca, nunca!”
dinheiro suficiente para ir à sua fazenda e matar você!” Eles se separaram em seguida. Ela para a costura, e Jean Baptiste para seus
“Por que você iria querer fazer isso?” pensamentos...
“Por que eu iria querer fazer isso? Ora! Por que você está me perguntando
isso? Que coisa!”
“Mas você não respondeu minha pergunta.” ***
Ela o fitou de novo, e todo o humor deixou o rosto dela. Àquele instante, mor-
dendo o fio de alguma costura que estava fazendo, ela disse: “Em primeiro lu-
gar, brancos e negros não têm por que se casar. Em segundo lugar, um negro só Quarta época
consegue uma mulher branca pobre. E, em terceiro lugar, brancos e negros não Capítulo II
se misturam bem na sociedade. Agora, faz de conta que você se casou com uma
mulher branca e a trouxe aqui para Chicago, quem vão ser seus amigos? Nós,
negros, vamos ignorá-la. Já os brancos... É melhor você nem olhar para eles.” O embargo
Ele ficou em silêncio.
“Esquematizei direitinho, né?” No início de julho, quando a seca queimou as lavouras e nada poderia redi-
“Você revelou alguns pontos muito delicados no que diz respeito ao assunto”, mir a vida vegetal, os bancos, trustes e seguradoras que possuíam notas promis-
reconheceu ele. sórias com garantia hipotecária contra a terra e o estoque de Jean Baptiste ini-
“Claro que sim, e você não pode esquecê-los. Mas isso não é tudo. Agora, ciaram os procedimentos para um embargo. Ele leu, com o suor frio a empapar a

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testa, os avisos que apareceram nos jornais. Tudo o que ele possuía em Gregory mil. Nos dois dias seguintes, ele reescreveu as vinte mil; e no quinto dia rasgou
County, bem como em Tripp County, seria penhorado. O fato de que não tinha as folhas e as jogou ao vento.
a fazenda de sua irmã transferida para o nome dele era um alívio agora, e, com Ele tinha colhido um pouco de trigo e, quando os embargos haviam sido
um suspiro, ele baixou os jornais que continham os avisos. concluídos e o trigo, debulhado, semeou uma grande quantidade de sementes
Não foi surpresa alguma, já que ele havia sido ameaçado disso por muitos em 120 hectares de terreno, onde a colheita àquele ano havia sido ruim. De
meses, e, assim, considerou tal evento como inevitável. Mas quando a dura rea- acordo com a lei do estado, quando um embargo está concluído, a terra pode ser
lidade da situação amanheceu sobre ele, ela o enfraqueceu. Nunca tinha sonha- resgatada dentro de um ano a partir da data do embargo. Ou, ainda melhor, ele
do que o desfecho seria aquele. Ele fez um inventário mental de suas posses e pode pagar os juros e os impostos no final de um ano a partir dessa mesma data,
do que ele poderia reivindicar, e passou a pensar na fazenda de sua esposa. Ele e ainda contar com mais um ano para reaver a terra. Portanto, se Jean Baptiste
havia construído sua casa nas terras da mulher desde que ela partiu, e nenhum conseguisse fazer isso, ele teria um total de dois anos para resgatar suas for-
problema surgiu disso. Enquanto o departamento agrário local tinha tomado tunas perdidas. Ao semear trigo numa grande área, ele esperava o melhor. No
uma decisão a seu favor, o contestante tinha feito um apelo ao comissário do entanto, os últimos anos haviam sido adversos o bastante para que agora ele
departamento agrário nacional e, ao ser representado por um advogado, a deci- esperasse qualquer retorno de uma safra recém-semeada. De toda forma, ele
são do departamento agrário local havia sido revertida. Agora dependia de Jean teve sorte em ter os meios para que pudesse semear novamente, pois poucas
Baptiste levar aquilo à frente, e foi exatamente o que ele fez, apelando à maior pessoas conseguiam crédito agora.
autoridade no departamento agrário, o secretário do Interior. Para fazer isso, ele Quando a semeadura foi concluída, não havia nada a fazer a não ser ouvir o
havia concordado em pagar ao advogado trezentos dólares caso ganhasse, e cem vento que ainda soprava seco, embora a seca prolongada tivesse sido quebrada
dólares se perdesse; então ele pagou os cem dólares e as coisas por ora ficaram por leves chuvas de outono. Então, ele pegou o lápis e voltou para a tarefa de
assim. Agora que era um fato estabelecido em sua mente que ele e a esposa escrever novamente. Em dias bonitos, marcados pelos ventos de outono, ele tra-
haviam se separado para sempre, ele percebeu que não havia formulado outros balhou em sua difícil tarefa, a de contar uma história. A maior dificuldade que
planos para não perder a posse das terras da mulher. encontrou foi que ele pensava mais rápido do que poderia escrever. Por isso,
Mas a pobreza, acompanhada por péssimas safras durante três anos, era algo interrompeu muitas vezes uma frase para relatar outro incidente que ocorreu
geral e aceito agora. E ele nada falava sobre o fato de que embargariam suas com ele próprio. Mas, finalmente, havia escrito algo que poderia ser chamado
posses, assim, ele ao menos poderia prosseguir com a vida sem sentir intensa- de uma história. Ele levou o que lhe parecia ser de fato um livro a um amigo que
mente a desgraça presente. havia expressado interesse em sua empreitada. Na verdade, embora ele não ti-
Foi neste momento da vida de Jean Baptiste que um novo pensamento lhe vesse dito coisa alguma sobre o assunto, a notícia se espalhou de que ele estava
veio. Em toda a sua vida ele havia sido um pensador, um pensador prático — um escrevendo a história do país, e todo mundo ficou curioso.
pensador prolífico. Além disso, um grande leitor, para completar. Assim, o pen- É claro que eles não estavam cientes de seu limitado conhecimento da arte
samento que o atingiu agora era: escrever. Talvez ele pudesse escrever. Se sim, da escrita. Para eles, pessoas patrióticas e encorajadoras, apesar dos estragos
então o que ele escreveria? Nos dias que se seguiram, uma trama foi se formando da seca que varreu os Estados Unidos, este foi um novo tipo de ímpeto, um mé-
aos poucos em sua mente, e, quando ele tomou sua decisão, optou por escrever sua todo sutil de publicidade para o país. Então todo mundo começou a folhear as
própria história — sua vida infernal, o trabalho de um poder maligno! principais revistas à procura de sua história, o que ajudou os jornaleiros consi-
De escrever ele sabia pouco, e a arte da composição lhe pareceu muito difí- deravelmente. Mas voltemos a Jean Baptiste e à história que estava escrevendo.
cil. Mas pensamentos ele tinha em abundância. Afinal de contas, isso é o mais O amigo ficou surpreso quando viu tantos blocos redigidos. Ele fingiu estar
importante. Se uma pessoa tem pensamentos para expressar, é possível apren- muito ocupado àquele momento para ler tudo aquilo, e o mandou para outra pes-
der muito rapidamente algum método de composição. Então, depois de algumas soa. Mas muito tempo se passou até que ele encontrasse alguém disposto a ten-
semanas de especulação, ele comprou um bloco e alguns lápis, e assumiu a arte tar reorganizar seus pensamentos rabiscados. Até que um advogado necessitado
da escrita. de recursos finalmente consentiu em se aventurar naquela tarefa, dedicando-se
Ele não encontrou dificuldade alguma em se expressar. No primeiro dia, es- a ela. Ele, com muita dificuldade, conseguiu chegar à metade antes do Natal. O
creveu dez mil palavras. No dia seguinte, inverteu o bloco e escreveu outras dez restante foi revisado por uma mulher que se mostrou ainda mais eficiente do que

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o advogado, apesar de ela não ser tão bem treinada. Além disso, Jean Baptiste quando um manuscrito era aceito, a resposta vinha num envelope fino e comprido.
tinha um raciocínio rápido, e ele logo notou seus pontos fracos, sendo, assim, Bem, eram os envelopes desse tipo que ele ficava procurando — mas, natural-
muito útil na reconstrução da trama. No início do ano seguinte, ele já tinha mente, estimou ele, era possível que a resposta positiva viesse em outro tipo de
algum tipo de história para enviar às editoras. envelope, então ele não levou aquilo muito a sério. Ainda assim, se um envelope
E aqui residia o próximo grande problema. Ele tinha, durante a escrita e fino e comprido fosse entregue a ele, ele ficaria mais tranquilo até que o abrisse.
mesmo antes, lido sobre as dificuldades de se ter um manuscrito aceito para E então um dia a carta chegou. O carteiro, que sabia dos assuntos de todo
publicação. Mas, como a maioria dos escritores que tentam levar à frente seus mundo, olhou para o nome da editora no canto superior esquerdo e disse:
primeiros esforços literários, ele era da opinião de que o que tinha escrito era “Aí está a carta! Agora leia em voz alta!”
tão diferente da literatura mais convencional oferecida às editoras que ele deve- Jean Baptiste murmurou algo sobre aquela não ser a tal carta, e saiu do
ria, portanto, ter preferência sobre tudo. estabelecimento. Seu coração estava batendo como um martelo, pois, apesar de
Assim, terminado o manuscrito, ele o empacotou com cuidado e o enviou ter concluído que um envelope fino e comprido não significaria necessariamente
para uma editora em Chicago, enquanto suspirou de alívio. uma aceitação, o seu era deste tipo, e ele estava muito animado.
Apesar de ter parecido um longo tempo para ele, em poucos dias ele recebeu Ele saiu pela rua desvairadamente, virou uma esquina e procurou um lugar
uma carta, informando que o manuscrito havia sido recebido e que seria cuidado- calmo, um celeiro. Ali, encontrou um compartimento vazio escuro o suficiente
samente examinado; além disso, a editora lhe agradeceu por ter enviado o original. para que não fosse visto, mas com luz o bastante para que conseguisse ler. Ele
Bem, isso pareceu muito encorajador, pensou. Então ele voltou a nutrir a segurou a carta por alguns minutos, nervoso, com medo de abri-la e de ler o
esperança de que seria aceito. que ela continha, e tentou acalmar o bater violento de seu coração. Por fim, com
Nesse meio-tempo, ele foi questionado diariamente a respeito de quando e coragem forçada, ele rompeu o selo, posicionou a carta à sua frente e leu:
onde seria publicado. Ele foi mencionado nos jornais locais, e muita especu-
lação se seguiu. Muitos perguntaram se ele os havia colocado na história, e “Prezado senhor Jean Baptiste,
ficaram felizes quando recebiam uma resposta afirmativa, enquanto outros mos-
traram sua decepção quando ele lhes dizia que não haviam sido mencionados. Conforme o prometido, sobre o manuscrito que o
Mas cada um dispensou a ele profunda apreciação de seu esforço literário. senhor gentilmente nos enviou e que foi cuidadosa-
Tão ansioso ele havia ficado à espera da “decisão” deles que, depois de es- mente examinado, lamentamos informar que o mesmo
perar pacientemente por dias, ele finalmente foi para a cidade e lá esperaria a não foi considerado apto às nossas necessidades. Es-
resposta. À medida que o tempo passava, ele ia ficando mais nervoso. Por fim, tamos, portanto, retornando-o ao senhor por correio.
a ansiedade chegou a um ponto em que ele tinha certeza de que, se recebesse Lamentamos não poder lhe redigir um parecer
uma recusa, aquilo certamente iria matá-lo. Portanto, ele nem consideraria a mais favorável, mas agradecemos ao senhor por trazer
ideia de ser rejeitado. O manuscrito devia ser aceito, estava decidido. Somado a esse manuscrito à nossa atenção.
isso, ele tomou conhecimento de toda a publicidade que havia sido dispensada
a ele e ao livro. Como ele seria capaz de encarar seus amigos se a editora não Com os sinceros cumprimentos de
aceitasse o livro? Diria a eles que seu livro tinha sido rejeitado? Esse fato o A.C. McGraw & Co.”
preocupava bastante, e o fez persistir em acreditar que a editora iria aceitar seu
manuscrito. Ele olhou fixo à sua frente por alguns minutos. Estava tentando acreditar que
Alguns de seus credores menos práticos estenderam seu prazo, antecipando não havia lido aquilo. Assim, ele leu a carta novamente. Não, era aquilo de antes
que seu livro renderia a ele os fundos necessários para a liquidação da dívida — mesmo. Acabou, sua última oportunidade de redenção parecia ter ido embora. Ele
já quanto à questão da aceitação, eles não sabiam o suficiente sobre ela para ao se virou e saiu do celeiro cambaleando em direção à rua. Na esquina, viu o xerife,
menos considerá-la. E assim foi, o tempo passou, e ele mal podia esperar até que que se aproximou dele jovialmente, e, em seguida, deu-lhe outro susto quando disse:
a diligência chegasse à cidadezinha onde ele agora recebia sua correspondência. “Eu tenho um mandado aqui, Baptiste, e ficarei feliz se você me disser onde
Ele ia sempre aos correios. Havia lido em Martin Eden, de Jack London, que, ficam essas suas coisas, para que eu possa ir lá apanhá-las.”

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Ele ergueu a mão à testa, e então começou a pensar. Ele tinha que fazer para que ele encontrasse as pessoas adequadas a levar isso à frente. Um dia,
alguma coisa, porque, apesar de toda a sua terra ter sido embargada, ele tinha ele finalmente conseguiu o endereço de uma gráfica que imprimiria um livro
dois anos para recuperá-la. Mas esse mandado... Bem, o homem estava lá para de mais de trezentas páginas por cinquenta centavos a unidade. Embora isso
tomar seu estoque, então! constituísse o orçamento mais em conta que havia encontrado em seu esforço,
o preço parecia muito alto em comparação com o que lhe disseram que custa-
ria. Ele havia planejado pagar muito menos do que aquilo. No entanto, decidiu
*** considerar a proposta.
Agora, Jean Baptiste dispunha de menos recursos do que já teve em sua vida.
Nem um dólar ele tinha — tampouco roupas mais formais ele possuía, e usava
Quarta época todos os dias as mesmas calças de sempre. Ele devia aos promotores da cidade
Capítulo III de Dallas mais do que era provável que conseguisse pagar em breve, mas eles
ainda eram seus amigos. Mas, mesmo chegar a Dallas, a oitenta quilômetros de
distância, já era outro problema. Ele foi a um banco na cidadezinha, onde tinha
Irene Grey outros amigos a quem nunca pediu empréstimo. Eles lhe emprestaram o que ele
requisitou, cinco dólares. Com esse dinheiro, ele rumou para Dallas. O executi-
Homens do tipo de Jean Baptiste não vacilam e não se desesperam, indepen- vo sênior da empresa estava na cidade, quer dizer, sênior em idade, mas não em
dentemente de quão desanimados estejam às vezes, quando em circunstâncias posição. Jean Baptiste possuía uma grande personalidade, que contagiava quem
adversas. Ao ser confrontado pela lei com os papéis que tirariam dele o estoque quer que estivesse perto dele.
com o qual semearia sua futura colheita, ele passou a se preocupar em encon- “Eu acredito que você pode ter sucesso com esse livro, Baptiste”, disse ele,
trar uma solução. E, no curso de duas horas, havia sido concedida a ele uma quando Baptiste lhe havia falado sobre a gráfica que iria produzi-lo.
prorrogação, e o xerife havia retornado a Winner de mãos abanando. “Sim, eu também estou confiante, Graydon”, respondeu Baptiste. “Mas estou
Mas o que ele poderia fazer! Ele não tinha dinheiro, tampouco crédito. Tinha duro, não tenho um centavo. Não tenho dinheiro para ir lá.”
a terra em Tripp County, semeada com trigo de inverno, enquanto sua outra O outro ficou em silêncio por um momento, absorto em seus pensamentos. E
terra, mais ao leste, estava alugada. Ele poderia, é claro, alugar mais terras e então ele disse:
prepará-las para a colheita, mas àquele momento havia desistido de grandes “De quanto você precisa para a viagem?”
safras até que as estações do ano se normalizassem. Então, ele estava perdido a “Ah, 35 ou 40 dólares.”
respeito de como iria agir nos meses vindouros. Ele ainda morava na fazenda de “Então vou lhe dar 50.”
sua esposa, e não tinha planos de viver em nenhum outro local. Àqueles dias, “Que maravilha”, disse Baptiste. Ele, então, dirigiu-se a uma loja do outro
ele encontrou na leitura uma grande fonte de distração. Ele simplesmente devo- lado da rua onde tinha amigos, e lá ele foi vestido da cabeça aos pés, usando
rou livros,
​​ estudando cada detalhe da construção e aprendendo muito a respeito parte do empréstimo para pagar pelas roupas. Dois dias depois, entrou no escri-
de estilo e de efeito literário. tório da gráfica com a qual havia se correspondido. Eles ficaram muito surpre-
Em seguida, ele tentou escrever contos, mas, assim como o livro enviado para sos quando viram que ele era um etíope, mas Jean Baptiste logo os tranquilizou.
avaliação anteriormente, eles sempre voltavam. Ele concluiu, após um tempo, Depois de vários dias de negociação, finalmente chegaram a um acordo pelo
que era um desperdício de dinheiro enviá-los a editoras, que na verdade eles qual eles imprimiriam mil cópias por 75 centavos cada. Ele pagaria um terço
não eram lidos e que, de todo modo, não havia grande fortuna nos royalties do valor total por ora, e o restante seria pago num prazo razoável. Uma quantia
pagos aos escritores. exorbitante, sabia — pelo menos sentia. Mas ele teria todas as edições subse-
Agora, ele estava absorto nos negócios, até que um dia conheceu um homem quentes à metade do preço da primeira, o que era um consolo ao qual ansiar.
que lhe disse ser possível que ele tivesse seu livro impresso e que fosse seu pró- Outro entrave: quem iria fornecer os 250 dólares e afiançá-lo para os outros
prio editor. Isso soava ótimo — qualquer coisa soava bem nesses dias sombrios 500? Além disso, o que ele faria com os livros, quando os recebesse? Publicar
na vida de Jean Baptiste. Esta foi uma excelente ideia. Mas levou algum tempo um livro envolvia também distribuí-lo. Mas o que ele sabia disso? Pensou em tudo

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isso com cuidado e, finalmente, decidiu que iria vendê-los ele mesmo, e então empreitada foi difícil, pela razão de que a ambiência do homem negro não é
comunicou o fato à gráfica. Talvez fosse bastante incomum para um autor vender propícia à arte de vender seja lá o que for, exceto produtos que exigem pouco
suas próprias obras. Jean Baptiste nunca tinha vendido nada desde que havia ou nenhum conhecimento especial. Eles lidavam em grande parte com produtos
crescido, mas, quando era jovem, tinha sido um grande vendedor de hortaliças. de cabelo, para aumentar o volume ou a força dos fios crespos, ou com cremes
Ele iria vender seu próprio livro, e pareceu convencê-los de que poderia. para clarear e embranquecer a pele. No entanto, ele conseguiu alistar muitos
Eles prepararam alguns prospectos para ele, que, então, voltou para casa. deles, aos quais foram dadas ordens e exemplares de livros. Ele tinha aprendido
Ele disse, em resposta aos diversos interrogatórios, que estava tudo bem, e que que era um costume entre as empresas de livros por assinatura permitir que
o livro seria lançado em breve. Não disse nada, no entanto, para os amigos os representantes ficassem com os livros e recebessem um prazo de trinta dias
que tinha em mente para lhe emprestar os 250 dólares e também para prestar para remeter o dinheiro. Seus representantes apreciaram tal método. Contudo, a
fiança. Ele acreditava que iria provar algo, e que tudo o mais viria a seguir. Ele maior parte deles não levou trinta dias para retornar o dinheiro, mas a vida toda,
sairia e garantiria encomendas para seu livro entre seus amigos e conhecidos. e ele não viu a cor do dinheiro mesmo quando morriam.
Mas o dia em que ele planejou para começar a fazer isso foi um de muito frio, o Jean Baptiste foi confrontado, então, com a tarefa de aprender como poderia
termômetro marcava -32oC. entregar os livros a eles e ter a certeza de que seu dinheiro voltaria. Para isso,
Em Dallas, 142 cópias foram encomendadas no primeiro dia. Uma ótima ele pegou a estrada e nomeou pessoalmente os representantes, além de vender
quantidade para um principiante. Ele foi para Winner no dia seguinte. A seca não os livros para livrarias. E foi nesta jornada que ele encontrou aquela que, anos
fez nada de bom para as pessoas daquela comunidade, mas todos eles estavam antes, mudou a vida dele, numa época em que suas condições de vida eram
familiarizados com Jean Baptiste e admiravam-no. Além disso, eles não queriam completamente diferentes das atuais.
que Dallas os vencesse. E 153 exemplares foram encomendados por eles. Foi em Kansas City que ele se recordou dela. Ele lembrou que, a apenas
Jean Baptiste podia provar o que quer que quisesse numa luta justa, bastava vinte quilômetros da cidade, o pai dela possuía e morava em uma das maiores
que lhe dessem uma chance. Ele garantiu encomendas de 1.500 exemplares fazendas do país. Pensou na última carta que havia recebido dela, a carta que
de seu livro em duas semanas. Ele obteve o empréstimo de que precisava, e, havia chegado tarde demais. E pensou no que tinha se passado desde então.
vitorioso, voltou para o escritório da gráfica. Garotas em circunstâncias como as dela não perderiam tempo sentindo com-
Os funcionários da gráfica mostraram confiança nele, pois tinham ficado tão paixão de um homem separado de sua esposa, mas ele desejou poder vê-la e
impressionados com sua personalidade que tinham começado a trabalhar no olhar apenas uma vez nos olhos que poderiam ter sido seus. Mas sua coragem
livro assim que ele saíra de lá. Em trinta dias o livro ficou pronto, e, em sessenta o desertou. Ele ainda tinha espírito e orgulho, então desistiu daquilo apenas
dias, ele havia depositado 2.500 dólares no banco como dedução do pagamento momentaneamente.
para o livro. No final da tarde daquele dia, ele estava com alguns conhecidos no bar de
Antes disso, enquanto ele finalizava os preparativos para entrevistar as grá- um clube. Todos estavam bastante alegres, com os coquetéis e o uísque fluin-
ficas, estabelecia um escritório e fazia do negócio do livro seu ganha-pão, ele do e vibrando em suas veias. Ele pensou novamente em Irene Grey, e aquela
recebeu um telegrama de Washington informando que o digníssimo secretário lembrança foi animadora. Os coquetéis lhe deram a coragem necessária, e ele
do Interior havia revertido a decisão do comissário, que fora adversa à sua mu- finalmente ousou ir ao telefone e fazer uma chamada de longa distância para ela.
lher, no que dizia respeito às alegações. Ele tinha vencido, mas desconhecia a “É da casa dos Grey?”, disse ele.
forma como provaria isso, e nem deixaria que tal coisa o preocupasse. Ele havia “Sim”, veio a resposta, e ele estava empolgado com a suavidade da voz na
obtido muito sucesso em seu novo campo de atuação. As alegações ainda valiam outra extremidade.
para ele, mas seria sua esposa que deveria oferecer uma prova para tal, e de sua “A senhorita Irene está em casa?”
esposa ele nada sabia havia mais de um ano. “Sim”, disse. “É ela quem fala.”
Seu novo campo de atuação não se revelou tão rentável quando ele começou Ele estava sóbrio. Todo o efeito dos coquetéis lhe deixou àquele instante. Ele
a trabalhar entre estranhos. De fato, enquanto ele fazia negócios, o dinheiro procurava com dificuldade as palavras, até que finalmente disse:
não parecia entrar como deveria. Ele concebeu a ideia de alistar representantes “Ora... Hmm... Quem fala é um amigo seu. Um velho amigo. Talvez você
entre pessoas de cor, e, desta forma, aumentar as vendas. Para começar, essa tenha se esquecido de mim.”

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“Eu não saberia dizer”, disse ela de volta. “Quem é você?”
Ele ainda não tinha a coragem de dizer a ela, mas procurou se fazer conhe-
cido ao dar alguns detalhes. Então, mencionou o estado de onde veio, mas não
conseguiu ir além disso. Acontece que ela tinha ouvido tudo sobre os proble-
mas do casamento dele, e, como todas as mulheres, ao sentir-se de certa forma
substituída pela outra mulher, ela queria ansiosamente encontrá-lo e saber dele.
“Ah”, gritou ela, e o eco de sua voz soou no ouvido dele por alguns momentos.
“É você mesmo?”, berrou, sua voz demonstrando a emoção que sentia.
“Sim”, admitiu ele, um pouco sem jeito, sem saber se isso havia causado
emoção e alegria nela, ou se ele logo seria repreendido por telefoná-la. Mas ele
foi rapidamente tranquilizado.
“Então por que você não vem para cá?”, disse ela.
“Eu... Eu não sei se seria bem-vindo”, respondeu ele, feliz de uma maneira nova.
“Ah, para com isso! Por que você não seria bem-vindo? Mas, então”, disse, e
agora seu tom de voz parecia alterado, “onde você está?”.
“Em Kansas City.”
“Deixe-me ver”, disse ela, e ele sabia que ela estava pensando. “Agora são
quatro e meia da tarde, e um trem que sai daí passa por aqui em quarenta mi-
nutos. Ele não para aqui, mas você pode pegá-lo e descer na estação seguinte,
entendeu?”
“Sim, sim”, respondeu, ansioso.
“Bem, agora ouça! A estação a que me refiro fica a apenas seis quilômetros
daqui, e, quando você chegar lá, você deve pegar outro trem, que partirá poucos
minutos depois, e então você desce aqui, viu?”
“Sim, sim.”
“Bem, esse trem para aqui nessa estação, e eu vou lá encontrar você.”
“Ah, perfeito”, gritou ele. “Eu estarei lá.”
“Agora, certifique-se de que você vai pegá-lo”, advertiu ela.
“Com toda a certeza!”
“Eu vou contar com isso.”
“Estarei lá!”
“Eu quero tanto falar com você. Vou falar a noite toda.”
“Adeus.”

1 The Homesteader [O fazendeiro] é Conquest: The Story of a Negro vida do próprio autor, o romance
um romance de Oscar Micheaux Pioneer e The Forged Note. The tem como protagonista Jean
publicado em 1917. Foi o terceiro Homesteader deu origem ao Baptiste, um fazendeiro negro de
livro escrito por ele, que já havia primeiro filme dirigido por Dakota do Sul. Traduzido do inglês
publicado anteriormente The Micheaux, lançado em 1919 e por Guilherme Semionato. (N.E.)
atualmente perdido. Inspirado na

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caderno de fotos

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Filmografia
Oscar Micheaux

A filmografia selecionada a seguir reúne 37 títulos dirigidos por Oscar Mi-


cheaux, listados em ordem cronológica. O ano considerado é o ano de lançamen-
to dos filmes nos cinemas. Apenas quinze dentre esses títulos possuem cópias
ou fragmentos de cópias disponíveis hoje, sendo todos os outros considerados
perdidos. Há ainda uma série de filmes comumente atribuídos a Micheaux cuja
existência é sugerida por materiais de divulgação, anúncios de filmagens da
época e outros documentos, porém sem comprovação de que tenham chegado
de fato às telas. São os chamados “filmes-fantasmas”:: The Shadow (1921), Jas-
per Landy’s Will (1923), A Fool’s Errand (1923), Marcus Garland (1928), Dark
Princess (1928), The Phantom of Kenwood (1933), entre outros.

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FILMES SILENCIOSOS

1919

The Homesteader [filme perdido]

Duração: 8 rolos
Elenco: Charles D. Lucas, Iris Hall, Charles S. Moore,
Evelyn Preer
Locações: Dakota do Sul; Chicago
Sinopse: Jean Baptiste, fazendeiro da Dakota do Sul e
único negro da região, se apaixona pela branca
Agnes. Diante do amor proibido, ele acaba
casando-se com Orlean, a filha de um pastor
negro. Baseado no romance autobiográfico
homônimo de Micheaux..

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1920 O Símbolo do Inconquistado
(The Symbol of the Unconquered)

Dentro de Nossas Portas Duração: 8/7 rolos


(Within Our Gates) Elenco: Iris Hall, Walker Thompson, Lawrence Chenault
Locações: Nova York
Duração: 8/7 rolos Sinopse: E  von Mason, uma jovem negra de pele muito
Elenco: Evelyn Preer, William Starks, E. G. Tatum, Flo clara, chega ao Noroeste do país para assumir
Clements, Charles D. Lucas uma propriedade rural herdada de seu avô.
Locações: Chicago Ela é ajudada por Hugh Van Allen, um jovem
Sinopse: Abandonada pelo noivo, Sylvia Landry, jovem fazendeiro negro e seu vizinho. No entanto,
negra e bem educada, ajuda a levantar fundos racistas descobrem que sob a terra de Van
para uma escola para crianças negras pobres no Allen há vastos campos de petróleo, e passam a
Sul, onde se esconde terrível acontecimento de ameaçá-lo caso ele se recuse a vendê-la.
seu passado. Cópias existentes: 35mm, Museum of Modern Art (MoMA), filme
Cópias existentes: 35mm, Library of Congress, filme restaurado a restaurado a partir da cópia 35mm encontrada na
partir da cópia 35mm, intitulada “La Negra”, Cinemathèque Royale, Bélgica. Faltam trechos da
encontrada na Filmoteca Española. parte final do filme.

The Brute 1921


[filme perdido]

The Gunsaulus Mystery [filme perdido]


Duração: 8 rolos
Elenco: Evelyn Preer, A. B. DeComathiere, Susie Sutton, Duração: 7 rolos
Lawrence Chenault Elenco: Evelyn Preer, Lawrence Chenault, Ed Dick
Locações: Chicago Abrams, Louis DeBulger
Sinopse: Depois que seu noivo parte em uma viagem de Locações: Nova York
navio e as notícias dão conta de um acidente, a w: Quando uma moça é encontrada morta em uma
jovem Mildred é arrastada para as garras do chefe fábrica, o zelador negro do local é acusado. Um
do submundo local, “Bull” Magee, o bruto. jovem advogado negro tenta provar sua inocência
e incriminar o verdadeiro culpado.

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1922 1923

The Dungeon Deceit


[filme perdido] [filme perdido]

Duração: 7 rolos Duração: 6 rolos


Elenco: William E. Fountaine, Shingzie Howard, Blanche Elenco: Evelyn Preer, Norman Johnstone, A B.
Thompson, W. B. F. Crowell DeComathiere, Cleo Desmond
Locações: Roanoke (Virginia) Locações: -
Sinopse: A jovem Myrtile Dowing está noiva do advogado Sinopse: O produtor cinematográfico Alfred DuBois luta
Stephen Cameron. No dia seguinte após eles contra a censura de seu filme “The Hypocrite”,
decidirem se casar, Myrtile lê no jornal uma liderada pelo pastor Christian P. Bentley, seu
notícia de que ela casara com o mau-caráter Gyp- arqui-inimigo de juventude.
Lassiter. Ela não se lembra de nada, mas passa a
ser coagida por ele.
1924

The Virgin of Seminole


[film perdido] Birthright
[filme perdido]
Duração: 7 rolos
Elenco: William E. Fountaine, Shingzie Howard Duração: 10 rolos
Locações: Roanoke (Virginia); Nova York Elenco: J. Homer Tutt, Evelyn Preer, Salem Tutt Whitney,
Sinopse: As aventuras de um jovem negro que, depois de Ed Elkins
ajudar a guarda montada canadense, recebe uma Locações: Roanoke (Virginia)
recompensa e torna-se um rancheiro. Sinopse: Peter Siner, um negro graduado em Harvard,
retorna para sua pequena cidade no Sul com
planos de abrir uma escola para negros. Sua
tentativa de melhorar a vida de seu povo, porém,
esbarra no racismo e na corrupção branca.
Baseado no romance homônimo de T. S. Stribling.

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A Son of Satan miseravelmente. “Este filme é realmente a
[filme perdido] primeira história da vida noturna negra no
Harlem trazida para as telas. Cada cena é filmada
Duração 8/6 rolos em sua localidade e todos reconhecerão os cento
Elenco: Andrew S. Bishop, Lawrence Chenault, Edna e um marcos tão familiares para nós “ (“The
Morton, Shingzie Howard Douglas Theatre”, New York Amstedam News, 14
Locações: Nova York; Roanoke (Virginia) de outubro de 1925).
Sinopse: Também chamado de The Ghost of Tolston’s
Manor anteriormente a seu lançamento, o filme
tem como personagem principal um mulato vil e
manipulador. O filme foi amplamente rejeitado
pela censura da época por suas referências à
miscigenação racial e por apresentar cenas de
crimes e mau comportamento.

The House Behind the Cedars


[filme perdido]

Duração: 9 rolos
Locações: Roanoke (Virgínia)
Elenco: Andrew S. Bishop, Lawrence Chenault, Shingzie
Howard
Sinopse: Um aristocrata se apaixona perdidamente por
uma mulata que se “passa” por branca. Adaptado
do romance homônimo de Charles W. Chesnutt. Corpo e Alma
(Body and Soul)

1925 Duração: 9 rolos


Elenco: Paul Robeson, Mercedes Gilbert, Julia Theresa
Russell, Lawrence Chenault
The Devil’s Disciple Locações: Nova York; Nova Jersey; Atlanta
[filme perdido] Sinopse: Pastor hipócrita e malévolo abusa da fé de
pequena comunidade, sobretudo da irmã Martha
Duração: 6/5 rolos Jane, cuja filha ela sonha ver casada com o
Elenco: Evelyn Preer, Edward Thompson, Lawrence ministro. Ele, porém, estupra a jovem inocente e a
Chenault, Percy Verwayen força a roubar as economias da mãe.
Locações: Nova York Cópias existentes: 35mm, George Eastman House. 16mm,
Sinopse: Uma jovem se apaixona por um crápula do Universidade de Iowa, New York Public Library,
submundo e tenta regenerá-lo, porém falha Museum of Modern Art (MoMA).

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1926 Celia. Porém, todo o dinheiro que ele investe em
sua amada vai para as mãos de Lizard, um notório
vigarista do Harlem.
The Conjure Woman [filme perdido]

Duração: - 1928
Locações: -
Elenco: Evelyn Preer, Lawrence Chenault, Percy
Verwayen, Alma Sewell Thirty Years Later [filme perdido]
Sinopse: Baseado no livro de contos homônimo de Charles
W. Chesnutt. Duração: 6 rolos
Elenco: William Edmundson, A. B. DeComathiere, Adelle
Dabney
The Spider’s Web [filme perdido] Locações: -
Sinopse: “A envolvente trama se articula sobre a mistura
Duração: 7 rolos de raças. George Eldrige Van Paul, um rico
Elenco: Evelyn Preer, Lorenzo McLane, Edward “Eddie” membro da elite, se apaixona por uma garota
Thompson, Henrietta Loveless negra e se passa por um homem de cor para ficar
Locações: Nova York; Baltimore próximo a ela. Mais tarde, ele descobre que é
Sinopse: Uma jovem chega a uma pequena cidade do filho de sua governanta, a quem ele desprezava
sul para visitar sua tia viúva, Mary Austin. por causa de sua cor.” (“Royal”, African-American
Na chegada, ela é abordada pelo mau-caráter de Baltimore, 14 de abril de 1928)
Ballinger, que acaba preso acusado de peonagem.
Temendo retaliações, a jovem e sua tia mudam-se
para Nova York, onde Mary Austin acaba viciada The Broken Violin [filme perdido]
em jogos de azar e acusada de assassinato.
Duração: 7 rolos
Elenco: William A. Clayton, Jr., Ethel Smith, Homer Tutt
1927 Whitney, Aderlle Daboney
Locações: -
Sinopse: Baseado na história “House of Mystery”,
The Millionaire [filme perdido] escrita pelo próprio Micheaux e sem publicação
conhecida. Lelia Cooper é filha de uma família
Duração: 9 rolos humilde e possui um incrível dom para o violino,
Elenco: Grace Smythe, Lionel Monagas, J. Lawrence porém o instrumento é quebrado por seu pai
Criner bêbado em meio a uma tragédia familiar.
Locações: Chicago; Nova York
Sinopse: Depois de quinze anos acumulando fortuna na
América do Sul, Pelham Guitry retorna a Nova
York e se apaixona pela dançarina de cabaré

258 259
1929 1930

The Wages of Sin [filme perdido] A Daughter of the Congo [filme perdido]

Duração: 7 rolos Duração: 7 rolos


Elenco: Lorenzo Tucker, Katherine Noisette, William A. Elenco: Katherine Noisette, Salem Tutt Whitney, Daisy
Clayton, Jr. Harding, Lorenzo Tucker
Locações: Nova York Locações:
Sinopse: Depois da morte de sua mãe, Winston tenta Sinopse: Lupelta é uma mulata que cresceu numa tribo
ajudar seu irmão mais novo, J. Lee, colocando-o de selvagens negros na floresta. Depois de ser
para trabalhar em sua produtora de cinema. sequestrada por árabes caçadores de escravos, ela
Porém, o caçula trai sua confiança e bota a é resgatada pelo Capitão Paul Dale, do Exército
empresa à beira da falência. Henry T. Sampson Americano. Apesar de silencioso, o filme já
sugere que a história é baseada no relacionamento apresentava alguns elementos sonoros, entre eles
entre Micheaux e seu irmão, Swan Micheaux. uma canção interpretada por Daisy Harding.

When Men Betray [filme perdido] Easy Street [filme perdido]

Duração: 6 rolos Duração: 5 rolos


Elenco: Katherine Noisette, William A. Clayton, Jr., Elenco: Richard B. Harrison, Wiliam A. Clayton, Jr.,
Bessie Gibbens, Lorenzo “Alonzo” Tucker Alice B. Russel, Willor Lee Guilford
Locações: Nova York Locações: -
Sinopse: “Brevemente, é a história de uma linda garota Sinopse: “A trama lida com uma história sensacional de
que era insensível ao amor de um jovem bom e amor, finanças e gangues. Mostra por dentro as
ambicioso. Acreditando nas promessas róseas ações dos vigaristas da cidade em sua tentativa
de um estranho bom de papo, ela foge e o segue de barganhar o dinheiro honesto de um velho
para a cidade. A infelicidade e o desastre que homem.” (Pittsburgh Courier, 11 de outubro de
se seguem podem facilmente ser imaginados. 1930)
Desertada na noite de seu casamento, sozinha,
sem um tostão, numa cidade estrangeira,
abandonada à misericórdia não muito afável de
estranhos.” (“At the New Douglas”, New York
Amsterdam News, 25 de setembro de 1929)

260 261
1932

FILMES SONOROS Veiled Aristocrats

Duração: 48 minutos
Locações: Nova Jersey
1931 Sinopse: Jovem mulata se “passa” por branca para se casar
com o amigo de seu irmão. No entanto, ela se
apaixona por empreendedor negro, que a traz de
O Exílio volta para sua comunidade. Refilmagem de The
(The Exile) House Behind the Cedars (1925).
Cópias existentes: 35mm, George Eastman House, cópia incompleta.
Duração: 9/7 rolos (93/75 min) Library of Congress possui trailer e excertos do
Elenco: Eunice Brooks, Stanley Morrell, Nora Newsome, filme.
Katherine Noisette
Locações: Nova Jersey; Nova York
Sinopse: Em Chicago, Jean se apaixona por Edith e a propõe Dez Minutos para Viver
em casamento, mas, ao perceber que ela não largará (Ten Minutes to Live)
a jogatina, ele volta para a Dakota do Sul, onde
se torna um fazendeiro de sucesso. Lá, Jean se Duração: 58 minutos
envolve com uma mulher branca, porém, consumido Elenco: Lawrence Chenault, A. B. Comathiere, Laura
pela culpa, ele retorna a Chicago, onde procura Bowman, Willor Lee Guilford
novamente Edith e eles concordam em se casar. Locações: -
Cópias existentes: 16mm, Library of Congress, Coleção do Mayne E. Sinopse: Duas histórias se entrelaçam. Em um clube
Clayton Library & Museum, sob guarda da UCLA, noturno, uma cliente recebe uma mensagem de
African Diaspora Images (ADI / CEFS). A Library que ela morrerá dez minutos depois. Ao mesmo
of Congress também possui fragmentos em 35mm. tempo, produtor de cinema oferece a cantora
papel em seu último filme.
Cópias existentes: 16mm, Library of Congress, Coleção do Mayne
The Darktown Revue E. Clayton Library & Museum, sob guarda da
UCLA, Universidade de Iowa, African Diaspora
Duração: 2 rolos Images (ADI / CEFS).
Elenco: Andrew Tribble, Tim Moore, Amon Davis,
Celeste Cole
Locações: Nova Jersey
Sinopse: Filme produzido junto com O Exílio e apresentado
como um prólogo deste em suas primeiras
exibições.
Cópias existentes: 35mm, Library of Congress.

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A Garota de Chicago produtos químicos encontra o corpo de uma
(The Girl from Chicago) mulher branca assassinada. Depois de denunciar
o crime à polícia, ele mesmo se vê acusado
Duração: 70 minutos pelo estupro e pelo homicídio. Filme também
Elenco: Carl Mahon, Star Calloway, Alice B. Russel, conhecido pelo título de Lem Hawkins’ Confession.
Eunice Brooks Refilmagem de The Gunw saulus Mystery (1921).
Locações: Nova Jersey; Nova York; Batesville (Indiana) Cópias existentes: 35mm, Tyler Black Film Collection, Southern
Sinopse: Alonzo White, agente secreto do governo, Methodist University. 16mm, Universidade de
apaixona-se por garota ameaçada por chefe do Indiana, Library of Congress.
crime no Mississippi. Ele a resgata e o casal parte
para o Harlem, mas os problemas os seguem:
eles se envolvem com o assassinato de um líder 1936
da gangue do local. Refilmagem do mudo The
Spider’s Web (1926).
Cópias existentes: 16mm, Library of Congress. Temptation [filme perdido]

Duração: -
1934 Elenco: Ethel Moses, Andrew Bishop, Lorenzo Tucker
Locações: Nova Jersey
Sinopse: Em um clube noturno, uma bela e sensual
Harlem after Midnight [filme perdido] dançarina se envolve na fuga de um perigoso
gângster do Harlem. Posteriormente, ela é
Duração: - resgatada por um agente do governo.
Elenco: Lorenzo Tucker, Lawrence Chenault, A. B.
DeComathiere, Bee Freeman
Locações: ? 1937
Sinopse: -
Cópias existentes: Library of Congress possui o trailer do filme.
Submundo (Underworld)

1935 Duração: 95 minutos


Elenco: Bee Freeman, Sol Johnson, Alfred “Slick”
Chester, Ethel Moses
Assassinato no Harlem (Murder in Harlem) Locações: -
Sinopse: Um jovem estudante universitário cai sob
Duração: 98 minutos a influência de um jogador do submundo e
Elenco: Clarence Brooks, Dorothy Van Engle, Andrew assassino.
Bishop, Alec Lovejoy Cópias existentes: 16mm, Library of Congress, Coleção do Mayne
Locações: Nova Jersey E. Clayton Library & Museum, sob guarda da
Sinopse: Um vigia noturno negro em uma fábrica de UCLA, African Diaspora Images (ADI / CEFS).

264 265
1938 Swing!
(Swing!)

Os Filhos Adotivos de Deus Duração: 70 minutos


(God’s Step children) Elenco: Cora Green, Larry Seymour, Hazel Diaz, Alec
Lovejoy, Carman Newsome
Duração: 75 minutos Sinopse: Ted Gregory tenta ser o primeiro produtor negro a
Elenco: Alice B. Russel, Trixie Smith, Jacqueline Lewis montar um espetáculo na Broadway, mas enfrenta
Locações: Nova York; Nova Jersey problemas com sua estrela.
Sinopse: A jovem mulata Naomi luta para encontrar seu Locações: -
lugar entre o mundo dos negros e dos brancos. Cópias existentes: 16mm, Library of Congress, Coleção do Mayne
Enquanto ama seu irmão adotivo Jimmy, ela E. Clayton Library & Museum, sob guarda da
despreza a cultura negra em que foi criada e tenta UCLA, African Diaspora Images (ADI / CEFS).
se “passar” por branca.
Cópias existentes: 16mm, Universidade de Iowa, Universidade
de Indiana. 1939

Birthright Lying Lips

Duração: - Duração: 68 minutos


Elenco: Carman Newsome, Alex Lovejoy, Trixie Smith, Elenco: Edna Mae Harris, Carman Newsome, Robert Earl
Ethel Moses Jones
Locações: Nova York Sinopse: Uma cantora de um clube noturno se recusa a sair
Sinopse: Refilmagem sonora do filme homônimo de 1924, com os clientes da casa, mesmo pressionada por
adaptado do romance de T. S. Stribling. seu chefe. Posteriormente, ela acaba sendo presa,
Cópias existentes: 35mm, Library of Congress, cópia incompleta, acusada do assassinato de sua própria tia.
faltam os dois primeiros rolos. Locações: Nova York
Cópias existentes: 16mm, Library of Congress.

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1940

The Notorious Elinor Lee


Filmes complementares
Duração: 104 minutos O Nascimento de Uma Nação
Elenco: Gladys Williams, Robert Earl Jones, Carman (The Birth of a Nation)
Newsome, Edna Mae Harris
Locações: Nova York EUA, 1915, P&B, 195 min
Sinopse: O boxeador Benny Blue assina um contrato com Direção: D. W. Griffith
Elinor Lee, um gângster do submundo do Harlem. Elenco: Lillian Gish, Mae Marsh, Henry B. Walthall,
Cópias existentes: 16mm, Library of Congress, Coleção do Mayne Ralph Lewis
E. Clayton Library & Museum, sob guarda da Sinopse: As famílias Stoneman, do Norte, e Cameron, do
UCLA. Sul, separam-se com o início da Guerra Civil
americana. A vitória do Norte e o assassinato
de Lincoln dão poder aos negros e subjugam
1947 os brancos nos antigos estados Confederados,
porém eles decidem retomar a supremacia com a
formação da Ku Klux Klan.
The Betrayal
[filme perdido]
O Cantor de Jazz
Duração: 183 minutos (The Jazz Singer)
Elenco: Leroy Collins, Myra Stanton, Verlie Cowan,
Harris Gaines EUA, 1927, P&B, 88 min
Locações: Chicago; Wisconsin; Michigan Direção: Alan Crosland
Sinopse: O último dos filmes autobiográficos de Micheaux, Elenco: Warner Oland, Al Jolson, May McAvoy
adaptado de seu próprio livro, The Wind from Sinopse: O filho de um rabino precisa desafiar seu pai a
Nowhere. Martin é um fazendeiro na Dakota do fim de perseguir seu sonho e se tornar um cantor
Sul apaixonado por uma mulher branca. Temendo de jazz.
que ela não se interessasse por ele devido a sua
cor, ele decide se casar com Linda, a filha de
um pastor.

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Aleluia! Magnólia – O Barco das Ilusões
(Hallelujah) (Show Boat)

EUA, 1929, P&B, 109 min EUA, 1936, P&B, 113 min
Direção: King Vidor Direção: James Whale
Elenco: Daniel L. Haynes, Nina Mae McKinney, William Elenco: Irene Dunne, Allan Jones, Charles Winninger,
Fountaine Paul Robeson
Sinopse: Em uma “juke joint”, o fazendeiro Zeke se Sinopse: Um barco-teatro itinerante desce o rio Mississipi
apaixona pela dançarina Chick, mas ela apenas fazendo apresentações. Depois que a atriz
quer enganá-lo no jogo. Ele perde 100 dólares, principal da companhia é obrigada a abandonar
o dinheiro que conseguiu com venda da colheita o grupo por conta de sua origem negra, a jovem
de algodão da família. Seu irmão Spunk é e inocente filha do capitão do barco é levada aos
assassinado em um tiroteio logo em seguida. palcos, apesar das objeções de sua mãe.
Zeke vai embora e retorna como Irmão Zekiel, o
pastor.
Lua Sobre o Harlem
Imitação da Vida (Moon Over Harlem)
(Imitation of Life)
EUA, 1939, P&B, 69 min
EUA, 1934, P&B, 111 min Direção: Edgar G. Ulmer
Direção: John M. Stahl Elenco: Buddy Harris, Cora Green, Izinetta Wilcox,
Elenco: Claudette Colbert, Warren William, Earl Gough
Rochelle Hudson Sinopse: Gângster se casa com a mulher mais gentil e
Sinopse: Bea Pullman e sua filha Jessie têm um período caridosa do Harlem para lhe roubar o dinheiro.
difícil após a morte do marido de Bea. A Quando a esposa o flagra tentando estuprar a
ajuda chega na forma de Delilah Johnson, que filha, ele mente e culpa a garota. Expulsa pela
concorda em trabalhar como governanta em troca mãe de casa, a menina entra no show business
de um quarto para ela e sua filha Peola. Bea para ganhar a vida.
tem um plano de vender a receita de panqueca
de Delilah. As duas logo se tornam ricas e a
amizade se aprofunda. A relação com suas filhas,
entretanto, tornam-se tensas.

270 271
Sombra da Meia-Noite Marchando!
(Midnight Shadow) (Where’s My Man To-Nite? / Marching On!)

EUA, 1939, P&B, 54 min EUA, 1943, P&B, 83 min


Direção: George Randol Direção: Spencer Williams
Elenco: Frances Redd, Buck Woods, Richard Bates Elenco: Emmet Jackson, George T. Sutton, L. K. Smith,
Sinopse: Numa tranquila comunidade do Oklahoma vivem Myra J. Hemming
os Wilsons, cuja filha Margaret é cortejada por Sinopse: D
 urante a Segunda Guerra Mundial, neto de
Buster e pelo Príncipe Alihabad. Em uma noite soldado condecorado se recusa servir ao exército.
movimentada, o Sr. Wilson mostra seus objetos Tudo muda quando ele é convocado e se vê em
de valor para Alihabad, um campo
que planeja fugir com Margaret. Mais tarde, o Sr. de treinamento.
Wilson é assassinado:
será o criminoso pego pela polícia, ou pelo
detetive por correspondência Desce, Morte!
Junior Lingley? (Go Down, Death!)

EUA, 1944, P&B, 65 min


O Sangue de Jesus Direção: Spencer Williams
(The Blood of Jesus) Elenco: Myra D. Hemmings, Samuel H. James,
Eddye L. Houston
EUA, 1941, P&B, 65 min Sinopse: O dono de uma “juke joint” tenta chantagear
Direção: Spencer Williams um pregador inocente com uma fotografia
Elenco: Juanita Riley, Reather Hardeman, escandalosa, mas seu plano dá errado quando
Rogenia Goldthwaite, Jas. B. Jones sua própria mãe adotiva interfere.
Sinopse: Marido ateu acidentalmente atira em sua esposa
batista. Ela morre e vai para uma encruzilhada,
onde o diabo tenta levá-la para a perdição. A Garota no Quarto 20
|(The Girl in Room 20)

Uma Cabana no Céu EUA, 1946, P&B, 63 min


(The Cabin in the Sky) Direção: Spencer Williams
Elenco: July Jones, Spencer Williams, Geraldine Brock
EUA, 1943, P&B, 98 min Sinopse: Garota do campo vem para a cidade grande
Direção: Vincente Minnelli perseguir carreira de cantora e
Elenco: Ethel Waters, Eddie ‘Rochester’ Anderson, faz amizade com os motoristas de táxi, enquanto
Lena Horne é perseguida por
Sinopse: Um jogador compulsivo morre durante tiroteio, cafetão adúltero.
mas recebe uma segunda chance para se retratar
com sua esposa preocupada.

272 273
Gertie Indecente do Harlem, EUA Almas do Pecado
(Dirty Gertie from Harlem U.S.A.) (Souls of Sin)

EUA, 1946, EUA, P&B, 65 min EUA, 1949, P&B, 65 min


Direção: Spencer Williams Direção: Powell Lindsay
Elenco: Francine Everette, Don Wilson, Katherine Moore, Elenco: Savannah Churchill, Jimmy Wright, Billie Allen
Alfred Hawkins Sinopse: “Dollar Bill” Burton vive em um porão sujo de
Sinopse: A sexy e sedutora dançarina do Harlem Gertie Nova York com o velho amigo Bob e o cantor
La Rue se apresenta em uma sonolenta ilha do “Alabama” Lee. Cansado de estar sem dinheiro,
Caribe. Enquanto provoca os homens do lugar, “Dollar Bill” faz pequenos serviços ilegais para
foge do marido violento e é perseguida por pastor o gângster Bad Boy George. O agora próspero
que tenta lhe salvar a alma. Bill ignora a adorável Etta e se envolve com a
sensual cantora Regina. O novo estilo de vida de
Bill acabará com ele?
Juke Joint
(Juke Joint)
.Na Sombra de Hollywood
EUA, 1947, P&B, 60 min (In The Shadow of Hollywood:
Direção: Spencer Williams Race Movies and the Birth of Black Cinema)
Elenco: Spencer Williams, July Jones, Inez Newell,
Leonard Duncan EUA, 2007, Cor/P&B, 59 min
Sinopse: Dois vigaristas se envolvem em um concurso de Direção: Brad Osborne
beleza de uma pequena cidade. Sinopse: Documentário sobre os “race movies”, filmes
independentes realizados para plateias negras
na época em que Hollywood se recusava a
Milagre no Harlem colocar negros em filmes, exceto nos papéis de
(Miracle in Harlem) empregados e bufões.

EUA, 1948, P&B, 71 min


Direção: Jack Kemp
Elenco: Sheila Guyse, Stepin Fetchit, Hilda Offley,
Kenneth Freeman
Sinopse: Um magnata corrupto do mercado imobiliário
engana uma jovem mulher, que perde sua loja de
doces. Quando ele é encontrado morto, a moça se
torna suspeita do crime.

274 275
Sobre os
autores

Pearl Bowser

Fundou o acervo African Diaspora Images, dedicado à pesquisa e preserva-


ção de cinema afro-americano. Foi curadora de diversos programas em institui-
ções nos Estados Unidos e na Europa, Ásia e África. É autora, ao lado de Louise
Spence, do livro Writing Himself into History: Oscar Micheaux, His Silent Fims,
and His Audiences (2000). Co-dirigiu o documentário Midnight Ramble: Oscar
Micheaux and the Story of Race Movies (1994).

Jane Gaines

Professora do curso de Cinema da Universidade de Columbia. Publicou os


livros Contested Culture: The Image, the Voice, and the Law (1991) e Fire and
Desire: Mixed Race Movies in the Silent Era (2001). Finaliza atualmente Fictio-
ning Histories: Women Film Pioneers.

J. Ronald Green

Professor de cinema no Departamento de História da Arte da Universidade


do Estado de Ohio. Publicou os livros Straight Lick: The Cinema of Oscar Mi-
cheaux (2000) e With a Crooked Stick — The Films of Oscar Micheaux (2004).
Atualmente, finaliza o livro Poor Cinema: The Case for Inexpensive Films.

277
Cedric J. Robinson

Professor dos departamentos de Ciência Política e de Estudos Negros da


Universidade da Califórnia em Santa Bárbara (UCSB). É autor dos livros Black
Marxism: The Making of the Black Radical Tradition (1999) e Forgeries of Créditos
Memory & Meaning: Blacks & the Regimes of Race in American Theater &
Film Before World War II (2007), entre outros.

Patrocínio Banco do Brasil


Louise Spence
Realização Centro Cultural Banco do Brasil
Professora de Cinema, Rádio e TV da Universidade Kadir Has, em Istambul,
na Turquia. Escreveu, junto com Pearl Bowser, Writing Himself into History: Produção VOA! – Comunicação e Cultura
Oscar Micheaux, His Silent Fims, and His Audiences (2000). É também autora
de Watching Daytime Soap Operas: The Power of Pleasure (2000) e co-autora Curadoria Paulo Ricardo G. de Almeida
de Crafting Truth: Documentary Form and Meaning (2011).
Coordenação de Produção Joice Scavone

Jacqueline Stewart Produção Executiva José de Aguiar


Marina Pessanha
Professora do Departamento de Cinema e Estudos de Mídia da Universidade
de Chicago. É autora de Migrating to the Movies: Cinema and Black Urban Produção de Cópias Fábio Savino
Modernity (2005). Christiane Igreja

Assistente de Produção Mariana Saramago


Sobre o curador Rafael Bezerra

Paulo Ricardo G. de Almeida Produção Local de São Paulo Renata da Costa


[a acrescentar]
Produção Local do Rio de Janeiro Eduardo Cantarino

Produção Local de Brasília Daniela Marinho

Identidade Visual PANTALONES:


Igor Moreira
Jandê Saavedra Farias
Ricardo J. Souza

Projeto Gráfico-Editorial PANTALONES:


Ricardo J. Souza
Park Circus
Legendagem Eletrônica 4Estações AMS Pictures
Acervo Richard Peña
Legendagem e Vinheta: Rita Isadora Pessoa
Transporte internacional Fedex

Revisão e Cuidado de Cópias Alexandre Vasques Transporte nacional TPK Express

Assessoria de Imprensa Agradecimentos Ana Alice de Morais


de São Paulo Thiago Stivaletti Alessandra Castañeda
Camila Val
Assessoria de Imprensa Charles Musser
do Rio de Janairo Claudia Oliveria Claudia Lucia do Amaral Daiha e Rocha
Corey Creekmur
Assessoria de Imprensa Gillian Bowser
de Brasília Cristiano Bastos Thais Corral
Henri Koncz
CATÁLOGO Hernani Heffner
Jacqueline Stewart
Idealização Paulo Ricardo G. de Almeida Jane Gaines
J. Ronald Green
Organização Editorial Paulo Ricardo G. de Almeida John Kisch
Calac Nogueira Juliana Siqueira
Kleber de Mello
Produção Editorial Calac Nogueira Leila Santos
José de Aguiar Louise Spence
Marcela Monteiro
Tradução de Textos Alice Furtado Maria Estela Segatto Corrêa
Calac Nogueira Monike Mar Ferreira
Fabiana Comparato Natália Mendonça
Guilherme Semionato Pearl Bowser
Mariana Barros Ricardo Freire Torres
Nikola Matevski Robinson Borges
Pedro Henrique Ferreira Sidnei Pereira
Viviane da Rosa Tavares
Revisão Ana Vitor
Manuela Medeiros Apoio CTAv

Cópias dos acervos Southern Methodist University Dedicado a Kenya Regina de Almeida de Andrade
(SMU) Maria da Glória Moreira Gonçalves
University of Iowa Regina Célia Moreira Gonçalves
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