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CIRCUITOS E CURTOS-CIRCUITOS

por Bernardo Oliveira

1. Desafio
Ao traçar um panorama histórico das experiências que marcaram as duas últimas décadas na
música de invenção carioca, deve-se levar em consideração o momento em que se inicia a
produção do Festival Novas Frequências. Não me parece menos verdadeira a perspectiva
segundo a qual esse Festival, hoje reconhecido nacional e internacionalmente, surge em meio a
um processo de construção em rede, simultaneamente errática e contínua, que se inicia no final
dos anos 1980 e culmina com intensas movimentações voltadas para a ideia de experimentação.
Abstenho-me de problematizar essa expressão para assumir, de saída, o seu caráter inespecífico:
a experimentação carioca pode ser percebida na gloriosa história do samba e na atualidade da
música eletrônica popular “Baile de favela”. Guardadas, porém, as devidas proporções, nos
interessa também a radicalização de um nicho associado à noção modesta e problemática de
“música experimental”, que corresponde, na maioria das vezes, a um contexto de produção
musical e pesquisa sonora que envolve a chamada “música de ruído” (noise music), música de
improviso (free improv), música calcada na pesquisa por métodos e procedimentos técnicos e
música eletrônica abstrata, voltada para a criação de outras experiências na pista de dança. Há
um arco histórico a ser descrito, tanto para visualizarmos esse período e suas confluências,
quanto buscarmos uma avaliação mais justa do momento pelo qual atravessamos.

Antes de prosseguir, um parêntese: não esperem desse escriba que lhes ofereça “perspectivas
para o futuro”. Como se pode escutar em h+, uma das performances mais enigmáticas do trio
carioca DEDO, “o futuro foi cancelado”. No olho do furacão da catastrófica conjuntura política
que atravessamos, não vejo qualquer possibilidade de projetar um futuro viável para a produção
cultural, sem a presença de um Estado minimamente preocupado com o assunto. Essa situação se
agrava em meio à algoritmocracia, na medida em que empresas como Netflix e Spotify
restringem a distribuição a um grupo seleto de “fanbases”, interditando o acesso a outras faixas
culturais, a outros circuitos da economia criativa.
Retomando: como seria possível que, em uma cidade como o Rio de Janeiro, atravessada por um
forte legado da cultura popular, especialmente egresso da música, a adesão a um Festival com a
natureza do NF?

Em suas características mais básicas, os cariocas vivem mergulhados em um mar de referências


centenárias ligadas à música: o samba e a roda do samba (o pagode), o carnaval, o futebol (com o
seu repertório de cantos de torcida e homenagens a times e jogadores), as festas de rua, como a
Festa da Penha, os blocos carnavalescos com seus repertórios amplamente disseminados, do qual
o Cacique de Ramos representa sua faceta mais popular. Outra referência mais recente,
igualmente importante na imaginação do carioca, pode ser percebida nas constantes mutações
sonoras do funk e suas festas, dentre as quais o Baile da Gaiola de Rennan da Penha, talvez a
mais frequentada. Essa aparente autossuficiência denota vigor e criatividade, mas pode também
introjetar certezas e embotar a imaginação, restringir a percepção, direcionar excessivamente as
políticas públicas e os mercados. Para qual público fala o festival em uma cidade detentora de
características tão enraizadas no comportamento geral?

Se, por um lado, podemos afirmar que o NF se manteve dentro de uma lógica específica, em que
se pode identificar um público-alvo, especializado e eminentemente universitário, podemos
também dizer que, mesmo dentro dessa faixa universitária, há, como uma segunda pele, um outro
público-alvo, composto pelos sedentos por uma seleção musical que, por uma série de motivos, a
cidade não oferecia – dentre os quais a rigorosa ausência de uma imprensa e um circuito de
produção cultural minimamente curiosos e desbravadores, além do silêncio parcial de jornalistas,
críticos, pesquisadores e produtores culturais que aqui trabalham. Definitivamente não foram
poucos os desafios para criar e manter um festival com as características do NF no Rio de
Janeiro.

A euforia que marcou o fim da década retrasada e o início da última década, se caracterizou pelo
investimento em políticas públicas voltadas para mitigação das desigualdades sociais, pelo
investimento na descentralização da distribuição de recursos, pela formação dos pontos de
cultura, além de uma série de movimentos que alavancaram a ampliação do raio de escuta e
experiências estéticas da população. Favorecida por pleno emprego, moeda valorizada e políticas
públicas voltadas não somente para a cultura, mas também para a saúde, educação, moradia, a
Cidade do Rio de Janeiro é beneficiada, pois é justamente nesse período histórico que eclodem
festivais, selos, casas de show e todo um aparato de circuitos, coletivos e aparelhos autônomos e
articulados. Essa situação vigorou, relativamente, até o Golpe de Estado, em 2016, que
delimitou, o que se pode caracterizar como uma queda vertiginosa do investimento público,
bloqueando quaisquer movimentos organizados voltados para atividades culturais. Nessa curva,
de um Estado que se fazia presente através de orçamentos e projetos até o Golpe de 2016, o NF
surgiu e se afirmou como o maior festival de música exploratória e singular da América Latina.

Não há dúvida de que o Festival se beneficiou do momento político no qual surgiu, atingindo seu
ponto alto entre 2011 e 2016, até iniciar um processo de busca interna e renovação que indicava
a preocupação em responder ao cenário de crise. A situação crítica se aprofunda pela
desintegração do tecido social, pelo escancaramento da luta de classes – evidenciada pela
pandemia – e que, obviamente, vem incidindo na renda e, portanto, na circulação e nas escolhas
individuais. Arrisco-me em uma estranha contradição: ao contrário da potência criativa, que
parece brotar dos terrenos mais danificados, o horizonte de fruição estética do povo, e
particularmente da classe média, parece se tornar mais reativo conforme a situação material se
precariza. Arrisca-se menos o dinheiro que se tem no bolso. Some-se a isso a deterioração da
própria escuta, o déficit de atenção gerado pelos efeitos narcísicos das redes sociais e a
hegemonia dos debates gerados pela fugacidade fragmentada dessas redes. Essa curva histórica,
que incidiu não somente sobre a vida material e o imaginário da população carioca, mas também
sobre toda a malha e estrutura social da Cultura, desemboca em 2021 a pleno vapor, causando
ainda mais estragos. A ausência de bom senso ao nomear a lei que, supostamente deveria
socorrer os artistas brasileiros, recorrendo a um compositor brasileiro que não merecia se atrelar
a esse show de horrores, revela o pouco apreço que se tem pela própria ideia de Cultura.

Em seus dez anos, o NF trouxe para o País uma curadoria comparável, talvez, apenas ao antigo
Free Jazz (que a partir de 2003 se tornou Tim Jazz Festival), que durou entre 1985 e 2008. Ou ao
Sónar, outro festival de “música avançada”, de origem espanhola, que teve duas edições no
Brasil. Em que consistiu essa curadoria? A uma seleção, cuidadosa e representativa de artistas do
eixo EUA-Europa-Japão, que representam a música criada por artistas e coletivos que, pelo
menos em suas intenções mais singelas, acreditam ampliar horizontes e desenvolver trabalhos
que desafiam a escuta. São artistas que propõem o que não se resume ao já sabido e amplamente
divulgado, mas que, ao mesmo tempo, participam de circuitos consolidados de produção e
distribuição, como o site Boomkat e a revista The Wire, ambas britânicas. A música, por vezes,
que necessariamente não busca perseguir rótulos de vanguarda ou experimental, mas que busca
se afirmar constantemente através de uma expressão própria e singular, em modos e maneiras –
como Bill Orcutt e Laraaji, por exemplo. Cada artista traz uma expressão única, tornando, no
mínimo injusta, a aplicação de qualquer “guarda-chuva categorial” como procedimento.

Nesses dez anos, o NF, através de seu curador, Chico Dub e o suporte financeiro de uma empresa
de telefonia celular, trouxe para a cidade uma curadoria importante, um arrebatamento de
estímulos e contribuições, capazes de revolver o campo de referências e, assim, conectar a
energia e o panorama criativo da cidade com outras fontes criativas. De resto, festivais são
festivais: servem para entreter e divertir – papel que o NF vem desempenhando com méritos e
sobras.

2. Contexto
Quando o NF tem seu início, em 2011, encontra uma cidade tomada por uma malha de
iniciativas e atividades, ainda que relativamente invisíveis a maioria da população, cujo marco
inicial, pelo menos de um ponto de vista histórico mais consequente, são as experimentações
protagonizadas pelo grupo Can do Garfo, formado entre colecionadores de discos, contava
inicialmente com Fernando S. Torres, Mauricio Albuquerque, Mister Hawk e Marquinhos. Sobre
o Can do Garfo, que durou entre 1985 e 1990, e gravou cerca de noventa fitas cassetes, se pode
afirmar que era, nas palavras do músico e professor Fábio Bola, “uma experiência sensorial
extrema, de aficcionados pelo radicalismo de uma música e cultura que quebram a tradição e
permitem a abertura para outro lado”.

O mesmo Fábio Bola esteve à frente de outro projeto importante, Círculo e a sua banda
magnética, criado em 1994, que contava em sua primeira formação com Cláudio Monjope e o
baterista Léo Monteiro. O Círculo era um projeto nômade, que envolvia a produção de cassetes
mensais, distribuídos em encontros, festas e shows. Nessas festas, rolava algo semelhante ao que
viria a rolar no Plano B (sobre o qual falaremos adiante), em termos de abertura para o novo e a
improvisação. Foi na época e no contexto do Círculo que até se comemorou um aniversário do
Can do Garfo, testemunhando como as duas atividades estavam de certa maneira
interconectadas.

Criada pelo escultor Barrão, pelo montador cinematográfico Sergio Mekler e pelo pintor Luiz
Zerbini, a arte sonora do Chelpa Ferro eclode em meados dos anos 1990, em relativo contato
com a cena acima descrita – o baterista Leo Monteiro, por exemplo, se torna parceiro do trio
carioca em discos e performances. Nessa trajetória, que envolve cinco discos e exposições
individuais e coletivas distribuídas em duas décadas, o Chelpa Ferro delimitou uma arte sonora
com forte apelo visual, expressa na elaboração de instalações, criação de instrumentos e
desenvolvimento de comunicação visual. O Chelpa também trouxe uma visada irônica que
implicava as técnicas e os procedimentos como elementos transparentes na fruição da obra,
extraindo às vezes um efeito de comicidade, como por exemplo em peças como Mesa de samba
e instrumentos como o Ruim. E, talvez pela própria utilização de ironia e até mesmo deboche, o
Chelpa tenha desenvolvido um trabalho singular no panorama do Rio, que, por sua vez, aos
poucos adquiriu uma representação estética mais afeita ao caráter sisudo e obscuro da arte sonora
europeia. Em tempos em que essas práticas ainda se restringiam a uma espécie de código secreto
de circulação restrita, vinculada essencialmente às limitações dos circuitos da arte
contemporânea, o Chelpa vem delimitando seu próprio campo de trabalho.

Pouco depois ao surgimento do Chelpa, já no Século XXI, vigoravam também iniciativas como o
evento Seres Operando Matéria, que envolvia nomes como Paula Dykstra, Bruno Tarin, Felipe
Giraknob e Djahdjah; capitaneado por Marcelo Mendes e Fernando STorres, o selo Fronha
Records, que inicia seus trabalhos em 2002, atuou como gravadora, distribuindo via internet
música experimental produzida, desde os anos 1980, por artistas residentes no Rio de Janeiro
como: Bedoze, Debussy Bach Restaurant, Mongha, (dell.tree), De Millus e Du Loren (que
contou com a participação de Tantão em uma de suas formações anos depois); KKFS, Orion e
outros. Nessa época começou a ser formada uma rede que unia grupos produzindo música
experimental em vários estados como, por exemplo: Coletivo Antena, organizada por Guilherme
Darisbo em Porto Alegre, Thelmo Cristovam de Pernambuco, com o selo V(g)erme e o COMBO
RECIFE DE IMPROVISO, entre outros.
Fernando STorres cria em seguida o selo Menthe de Chat, que inicia seus trabalhos em 2005,
com o primeiro disco de Liz Christine, além de parceria entre Fernando STorres e o artista
sonoro pernambucano Thelmo Christovam e o primeiro disco do projeto Muwei. É justamente
essa rede de colaborações em torno da ideia da música experimental que se consolida após o
surgimento do Plano B Lapa (2004-2013). Com ele, a cidade adquire um espaço único, central e
coletivo de trocas de experiências e parceria – e, talvez por isso, o Plano B sirva como um
segundo marco do que se pode caracterizar como uma intensificação das atividades que
descrevem a segunda década do século XXI e ainda reverbera em pleno 2021.

No caso do Plano B, vale observar que se tratava de uma loja de discos, convertida em espaço de
cursos e shows pelo artista sonoro e expert Fernando STorres e por Fátima Lopes, que, segundo
consta, era responsável pela produção e organização da casa, do cronograma e parte da
programação. Nessa casa, que oferecia, além das apresentações semanais, cursos e oficinas em
torno da experimentação técnica – como por exemplo circuit bending (a personalização criativa e
aleatória dos circuitos e dispositivos eletrônicos) e pure data (a operação técnica de conversão
dos dados digitais em som) – surgiu uma rede de trocas cariocas composta por artistas como Liz
Christine, Marcelo Mendes (com seu projeto solo (dell.tree)), Leandra Lambert (que desde 1992
mantinha o projeto Inhumanoids!), Clayton Fábio, que tinha o duo Frithlang com Marcelo
Mendes e com o próprio Torres, montou o projeto/coletivo Os Botânicos, Sandro Rodrigues com
o seu Digital Ameríndio, M. Hausen (Marquinhos do Can do Garfo que montou a banda A
TORRE), Jesus Coca, Chinese Cookie Poets, Lucía Santalices, Fátima Araújo, Arthur Lacerda e
Lucas Pires (que, com Rafael Meliga, viriam a formar o DEDO), Paulo Dantas, Rafael Sarpa e o
então jovem Abel Duarte, um d’Os Fita, que hoje acompanham Tantão, além de artistas mais
antigos, egressos dos contextos Can do Garfo e Círculo (como o próprio Torres), bem como
artistas internacionais, como o polonês Zbigniew Karkowski e o australiano Lawrence English.

Durante mais de dez anos, o Plano B foi um espaço de intensa circulação de artistas, de todos os
cantos, do Brasil e do Mundo, dentro do qual a noção de independência fez algum sentido real
(ora, se não é justamente esse artista – a que chamamos “independente” – o mais dependente de
todos na economia criativa…).
Em 2005, Torres e o coletivo de iniciativas que envolviam nomes já acima citados, como Seres
Operando Matéria, Fronha Records e Menthe de Chat. E são eles que produzem o evento Outro
Rio, cuja chamada anunciava a Primeira Mostra de Música Não Convencional do Rio de Janeiro.
O festival aconteceu no Espaço Constituição, no Centro do Rio de Janeiro, em setembro de 2005,
contando com a participação de quatro grupos: Tonguemische, Muwei, Frithlang e FST.

O Plano B se localizava no legendário bairro da Lapa no Rio, um bairro emblemático porque,


mesmo sendo um bairro bastante residencial, sempre foi uma espécie de passagem entre as
Zonas Sul e Norte, transformando-se na região mais boêmia da Cidade. Os altos volumes que
ecoavam da pequena loja, localizada na Rua Francisco Muratori, nº 2A, começaram a criar
problemas com a vizinhança, sobretudo por conta dos grupos que utilizavam bateria. De certa
maneira, pode-se dizer que foi esse um dos motivos de alguns artistas do Plano B migrarem para
a Audio Rebel, estúdio de gravação e loja de discos criada pelo produtor cultural Pedro Azevedo
em 2005, inicialmente voltada para shows da cena punk, hardcore e post-rock com shows de
Uzômi, Mukeka di Rato, Noção de Nada, Hurtmold, entre outros. Aos poucos, a Rebel ampliou
suas experiências sonoras, trazendo artistas internacionais que visitavam São Paulo, por conta da
programação do SESC, como, por exemplo: Joe Lally, Daniel Higgs e, mais tarde, Matana
Roberts, Hans Koch e Paal Nilssen-Love. É nesse contexto que surge o Quintavant (2010-2019),
linha de programação experimental idealizada pelo baterista Renato Godoy e pelo próprio Pedro
Azevedo, além de um grupo de artistas, produtoras e produtores egressos do Plano B e de outras
searas, como, por exemplo, Alexander Zhemchuzhnikov e Filipe Giraknob. Entre 2010 e 2013, o
Quintavant manteve uma programação relativamente regular, que ocorreram em edições na
Audio Rebel e na Comuna. Em 2013, com o ingresso de Mariana Mansur, Lucas Pires, Eduardo
Manso, Luan Correia e deste escriba que vos fala, o Quintavant ampliou suas atividades com a
realização de festivais como o Antimatéria (2013, 2016 e 2018) e ocupações como o Quintavant
na Cinemateca e a Ocupação Funarte de 2015, consolidando-se como um coletivo de produção
capitaneado por um grupo de artistas e produtores. Essas atividades desdobraram-se no selo
musical QTV Selo, que desde 2014 registra artistas que formam o que ficou conhecido – não
sem as habituais “bateções de cabeça” do jornalismo musical brasileiro – como a “cena
experimental carioca”. Nesse momento que surgem artistas como Negro Leo, Chinese Cookie
Poets, DEDO, Bemônio, Baby Hitler e Cadu Tenório, que irão se apresentar ostensivamente na
casa, ao lado de artistas locais e estrangeiros, tais como Jards Macalé, Moor Mother e Paal
Nilssen-Love. Posteriormente, o QTV Selo trouxe à tona artistas como Tantão e Os Fita, Saskia,
Bella e o projeto Anganga, reinterpretação de vissungos mineiros, pela cantora Juçara Marçal e o
artista sonoro carioca Cadu Tenório. Justamente nesse período, a cidade se afirmou no cenário
nacional e internacional, como um polo de produção importante, voltado para o cultivo de
práticas musicais associadas a uma ideia, um tanto quanto limitada, de “experimentação sonora”.
Em 2019, o Quintavant foi descontinuado e integrado ao trabalho do QTV Selo, agora convertido
em selo-produtora.

Nesse arco histórico, nesse panorama de atividades e iniciativas – em sua maioria desacopladas de
qualquer apoio do Poder Público ou privado, é fundamental destacar, também, espaços para shows,
como Escritório, Aparelho e, mais recentemente, o Fosso e o Desvio, que convergem Arte e Cultura
Gastronômica, como a Comuna e a VOID; programas de crowdfunding, como o Queremos; publicações
virtuais, como Camarilha dos Quatro, Polivox, Sax Pax, Fita Bruta, Banda Desenhada e Matéria;
coletivos, como o Norte Comum, o Leão Etíope do Méier e Chama; selos de música, como Fronha
Records, Transfusão Noise Records, QTV Selo, Seminal Records, e, finalmente, festivais patrocinados
por empresas privadas, como o NF e o Multiplicidade.

Há também que se detectar movimentos e iniciativas de ampliação do horizonte da escuta e referências,


através de um festival como o MIMO, um dos pouquíssimos preocupados em trazer ao Brasil artistas do
Continente Africano; e a festa Wobble, responsável por um recorte de música eletrônica de pista, que só
encontrou curadoria à altura no próprio NF. A profunda crise econômica que estamos atravessando,
desde o Golpe, inviabilizou boa parte das iniciativas que compunham esse cenário, desenhado de forma
auspiciosa, a partir do início da década passada.

3. Frequências
Do seu surgimento até a comemoração de dez anos, o NF promoveu um exercício de atualização
estética, trazendo para o país artistas que jamais entrariam em qualquer uma das programações habituais
dos festivais da cidade, mas também se caracterizou por promover encontros entre o público e os
artistas. Contudo, à essa altura, a relevância do Festival não se restringia apenas a uma amostragem
pedagógica, mas, sobretudo, atendia à consolidação de um interesse. Havia, naquela época, a sensação
de que, para um número interessante de pessoas, a música não se limitava ao poder inebriante da canção.
Mas que poderia ser elaborada a partir de muitas técnicas e procedimentos, soando de várias maneiras, a
partir de interferências diretas na forma como é gravada, executada e reproduzida. E que a música,
enfim, poderia se constituir uma ferramenta de exploração da percepção, ainda que, eventualmente,
incorporada a gêneros popularmente reconhecidos, como o synthpop, o rock e suas variantes, a música
para dançar.

E se essa seria sua carta de intenções, em sua primeira edição, o Festival não fez por menos:
trouxe o dub híbrido de Cameron Stallones, mais conhecido como Sun Araw; o dubtechno
esfumaçado de Andy Stott; a frieza do balanço sci-fi de Com Truise; as intrincadas texturas
eletrônicas criadas pelo mexicano Fernando Corona, mais conhecido como Murcof; e o
ambient/drone turbinado de Mark McGuire, prolífico guitarrista americano, apaixonado pelos
sintetizadores alemães dos anos 1970. Eram artistas que dialogavam abertamente com o passado;
porém, para eles, esse passado não era um grilhão, mas lenha para queimar, transfigurar e
ampliar o horizonte de experiências sonoras.

Dentre os grandes momentos do festival, que realmente marcaram a década passada, creio que
foram destaque aqueles em que houve um efetivo encontro entre a cidade e os artistas escalados.
E não foram poucos esses momentos. Por exemplo, o encontro da dupla Hype Williams com
Cadu Tenório e Renato Godoy, em que se atendeu ao polêmico recurso, elaborado por Dean
Blunt, de posicionar no palco, ao lado da banda, uma motocicleta de corridas montada por uma
modelo de biquíni.

Anos depois, foi a vez de David Toop, o suposto responsável pela sistematização da arte sonora
no final do século XX, e o Chelpa Ferro, a pedra de toque da arte sonora carioca, somarem
improvisos em momentos de contemplação. Submerso em absoluto silêncio, Toop se movimenta
pelo palco. Encontra seu assento e saca o violão. Dedilha uns acordes e interage com os sons que
são emitidos por seu laptop. Arranha a pele de uma caixa de bateria com gravetos, quebra-os,
esmaga-os, minúcias sonoras captadas por um microfone ultrassensível. O computador prossegue
emitindo uma gama sonora indistinta, que tanto pode ser resultado de síntese digital, gravações
de campo, sons naturais ou library music. Duas flautas, uma guitarra preparada tocada com
gravetos e baqueta de feltro, miuçalhada (moedas, pequenos sinos) completam seu aparato
instrumental. Texturas, diálogos improváveis entre ruído e silêncio, silêncio e ruído
embaralhados, reavaliados em um horizonte que já não pode ser reduzido ao âmbito “sonoro”,
mas extrapola a arte e se traduz no corpo, nos afetos, nas imagens, até mesmo no paladar. Com
seus instrumentos “inventados”, o Chelpa contribuiu para aumentar a densidade sonora e o
sentido abrangente da experiência de improvisação proposta por Toop. Zerbini com sua guitarra
tocada à moda de uma cítara; Sergio utilizando primeiro o ebow, e depois um instrumento
indiano apelidado como “bina”; Barrão tocando o Ruim, uma lata de lixo com cordas de cello
amplificadas executada com o arco. Uma intervenção suave e perspicaz de um trio capaz de criar
espessas camadas de ruídos, mas que embarcaram na onda de Toop, optando pelo diálogo com a
fluidez acidentada da “toopografia”. Uma apresentação memorável e, ao mesmo tempo,
“esquecível”, como ressaltou o próprio Toop, logo ao sair do palco.

Outro encontro particularmente interessante se deu entre experimentador anglo-saxão Philip Jeck
e o quarteto carioca Rádio Lixo, ambos explorando a regularidade acidentada da superfície do
disco de vinil, produzindo uma profusão de estáticas, sons miúdos e irregulares, que rugem
através de uma série de processos de manipulação. A materialidade do suporte ressoa, as fissuras
e arranhões concomitantes a determinados sons, testemunhando não somente a passagem do
tempo, mas a sua multiplicação. Multiplicando essas sonoridades-tempo, Philip Jeck
desenvolveu um trabalho, ao mesmo tempo, influente e exclusive, impondo uma ética da
invenção. Jeck, no entanto, compartilhou todos os seus segredos com o público dos Talking
Sounds, e também na oficina que ministrou no extinto espaço Reduto. O quarteto Rádio Lixo,
com quem Jeck dividiu a noite que encerrou o Festival em 2014, demonstrou sintonia fina com o
espírito exploratório e generoso de Jeck, numa apresentação que se pode qualificar como “ombro
a ombro”.

Outro destaque de interação com a cidade foi a presença de Aki Onda, produtor japonês radicado
em Nova Iorque. Onda foi particularmente especial nesse contexto, pois falou diretamente a uma
série de artistas da cidade que se preocupavam com performance, espaço, objetos, entre outros
elementos que perfazem seu trabalho. Sua performance proporcionou associar o Zen não ao
esvaziamento da mente, através da meditação, mas ao controle do movimento. Nessa concepção,
que assumo como imaginária, o Zen corresponderia a uma arte do cálculo: cada gesto, cada ideia,
cada dispositivo, opera dentro de um plano rigorosamente traçado. A apresentação de Aki Onda
foi uma demonstração de como precisão e imaginação podem se associar, de muitas formas, na
música contemporânea. Com movimentos e gestos precisos, ele nos proporcionou uma
experiência de relativização e espacialização da percepção. A escuta não é auricular; mas
também tátil, olfativa, visual: escutamos com o corpo e a memória. Os cães latem, os bêbados
gritam, seus espectros se atualizam impressos na materialidade da fita cassete. Onda se
apresentou como um artista errante, colecionador de campos e espaços, um verdadeiro walkman.
Dificilmente, se poderá negar que essa experiência não tenha influído diretamente nos trabalhos
de coletivos como DEDO e Chelpa Ferro, como também na própria ideia de arte sonora no Rio
de Janeiro.

Por duas noites, na Audio Rebel, uma das mais intrigantes de todas as edições do Festival, o
britânico Mark Fell e o norte-americano Keith Fullerton Whitman, se apresentaram com seus
trabalhos solo e em parceria. Uma música elaborada em tempo real, improvisada a partir de
plataformas e sistemas analógicos (Whitman) e digitais (Fell). Cada um lidando, de maneira
singular, com a expressão rítmica e timbrística dos sons produzidos pelas máquinas. Mesmo
quando assinalavam alguma regularidade, Fell e Whitman desafiavam nossa percepção ordinária
do ritmo, enquanto marcação contínua, e abriam para modulações imprevisíveis. Com os sons
orgânicos de seus modulares, Whitman construiu um set narrativo, conduzindo cada momento
como quem conta uma história, do grave ao agudo, do elemento estático aos sons mais cerebrais.
Com sua “música gerativa”, isto é, improvisada com softwares especialmente desenvolvidos para
a performance em tempo real, Fell ateve-se à métrica, ainda que, para criar fraturas e gerar um
tipo de desconforto que seria supostamente inadequado para a dança. E, no entanto, o que se viu,
no espaço da Audio Rebel, foi uma plateia que aceitou dançar conforme a música, soltando-se ao
som de um ritmo em decomposição, composto por células, fragmentos de ritmo multiplicados,
desdobrados, interrompidos, granulados, picotados. A apresentação conjunta revelou uma
poderosa convergência entre sons digitais e analógicos, fortalecida pelo sistema de som robusto
que foi instalado na Rebel. O ritmo fora de controle, fora da grade, os andamentos regulares e
previsíveis. O ritmo não pulsado, determinado por equações, algoritmos e sistemas matemáticos,
por “máquinas de ritmo”, atravessadas pela imprevisibilidade da ação humana.

Uma das festas mais interessantes da história do Festival se deu quando o recorte curatorial se
voltou para os múltiplos desenvolvimentos da música eletrônica quebrada, especialmente
direcionada para a pista de dança. Fosse somente uma pista, esse panorama tornaria mais
evidente o enfoque na presença africana: o Bahia Bass, de Som Peba e Mauro Telefunksoul; a
afrobatucada digital e os gravões acachapantes, de William Bennett e seu projeto Cut Hands; o
kuduro turbinado, do contagiante DJ Marfox, que definitivamente, como afirma seu EP de
estreia, “sabe quem é”; e o encontro de forças entre um dos principais remodeladores do funk
carioca e um dos produtores que mais sacam de percussão brasileira e ritmos nordestinos: Omulu
e Maga Bo. Vistos em forma de panorama, favorecem a percepção de que a África está em nós,
reconstruída, reinventada a cada passinho de dança, a cada brincadeira, a cada festa em que nos
entregamos ao transe e à dança.

Na edição de 2016, que ocorreu num espaço no bairro da Gamboa, os artistas brasileiros se
destacam em relação aos artistas estrangeiros, entre os quais vale mencionar a apresentação de
Thiago Miazzo intitulada Destruction Derby, Projeto Mujique, Abdala apresentando ZUUUM,
Luisa Puterman com a instalação Moto perpetuo e o trio Tantão, Lê Almeida e God Pussy; na
Audio Rebel, foi histórico o encontro entre Carla Boregas, Leandra Lambert, Natacha Maurer,
Paula Rebelato e Renata Roman. Em 2017, o festival abre com outro encontro importante com a
cidade: o experimentador japonês Otomo Yoshihide e a dupla de baixo e bateria Felipe Zenícola
e Renato Godoy, cuja apresentação rendeu gravação e possível lançamento de disco. Outros dois
momentos interessantes de encontro entre o festival e a cidade ocorreram no evento com o
Quintavant Ensemble na extinta Casa Daros, e as instalações performáticas realizadas no âmbito
do projeto Tunga: Delivered in Voices, que tomou parte no Laboratório Agnut, na Barra da
Tijuca, envolvendo Ava Rocha, Eduardo Manso, DEDO, Meteoro, Dissonâmbulos, Lilian
Zaremba, entre outros.

Por fim, destaco a forte carga emocional que emanou da apresentação de Bill Orcutt, capaz de
atualizar frases e momentos que desempenhavam um papel fundamental na minha forma de
perceber as coisas. Lembrei-me de Fernando Torres, o frontman do Plano B, quando ele afirmou:
“Não faço música experimental, porque sei exatamente o que estou fazendo.” Lembrei da paixão
e do orgulho com que Panda Gianfratti, após acompanhar Jorge Ben Jor e Wilson Simonal,
descreveu sua transição para o improviso livre: “Cansei de ser escravo.” Me emocionei ao
perceber, em cada palhetada, que Orcutt aplicava sobre o violão, a máxima proferida por Morton
Feldman, citada por Alasdair Campbell, curador do Festival Counterflows, em um debate: “Na
música, quando você faz algo novo, algo original, você é um amador. Seus imitadores, esses são
os profissionais.” Pude, então, reparar, assombrado, que, na minha modesta opinião, a
apresentação mais contundente de todas as edições do NF, um festival associado às muitas
vertentes da música de vanguarda, tenha sido realizada por um bluesman, empunhando seu
violão de quatro cordas. A questão talvez não se resuma a uma competição pela ponta da música
“avançada”, “experimental” ou qualquer outro “guarda-chuva conceitual” com o qual venhamos
a classificar tudo aquilo que não é excessivamente disseminado, comum e corriqueiro. Aliás,
todas essas definições se encontram estritamente vinculadas a dinâmicas progressistas e
cientificistas com as quais se procura interpretar tudo no mundo contemporâneo, assombrado por
uma concepção cronológica do tempo, pela objetividade e pelas muitas mitologias da finitude.
Ao encerrar as atividades do Harry Pussy, Orcutt passou anos longe da cena, trabalhando com
softwares e levando uma vida pacata e familiar. Enquanto isso, desenvolvia seu modo peculiar de
tocar violão, independente de quaisquer concepções de progresso, vanguarda ou inovação. Como
quando escutamos (ou lembramos) a música de Stockhausen, Cartola ou Jimi Hendrix, o violão
de Bill Orcutt evoca uma memória, um tempo múltiplo e, ao mesmo tempo, singular e subjetivo.
Através da sua apresentação, foi possível entrever, num átimo, um violão especial, ressoando na
cidade para a qual o violão sempre foi tudo e mais um pouco. Os sons não despertam
lembranças, a memória não é um baú desativado. Assim como o desejo, a memória é uma força
criativa, apta não somente a reinventar-se, mas também a reinventar o mundo, a cada instante.

Com uma curadoria atenta ao que há de mais diverso e consistente que se produziu no cenário da
música experimental norte-americana, europeia e, eventualmente, japonesa do séculos XX e
XXI, o NF viabilizou uma série de ações que serviram de inspiração e complemento à
experiência da cidade com os sons ditos “avançados”, arrolando todo tipo de caracterização
contraditória (sons não convencionais, insólitos, estranhos, experimentais…), mas possibilitando
situações que de alguma forma ficaram marcadas na memória cultural da cidade.

4. Conclusão
Tenho a impressão de que a crise – política, econômica, ética etc. – se impôs como um cerco aos
projetos culturais patrocinados e apoiados pela iniciativa pública e privada. Para os eventos e
selos que dependem tanto de políticas voltadas para experimentação ou da própria bilheteria, o
cenário atual não traz bons auspícios. O que era circuito, mudou à força dos curtos-circuitos.
Nesse cenário, que também é marcado por um ataque frontal à cultura, promovido pelo próprio
Governo Federal, só resiste quem pode e quem consegue, quem tem acesso aos setores de
marketing das empresas, quem possui renda e bens, quem está empregado e pode contar com
uma aventura estética no seu horizonte de possibilidades… Se já era complicado em condições
mais amenas, pode-se dizer que a situação azedou de vez graças ao (des)governo, à pandemia e
ao conservadorismo generalizado que tomou de assalto inclusive os setores da cultura.

É nesse sentido que percebo uma sucessão de movimentos que marcam o período de dez anos do
festival, no qual o NF, em resposta muitas vezes ao contexto externos às políticas culturais, se
viu obrigado a criar movimentos capazes de aumentar a adesão da população que habita a cidade
que escolheu como residência. Entre se afirmar como uma sucursal do circuito The Wire/Shape
Platform e buscar um outro tipo de relação com a cidade, o NF oscilou em busca não somente de
um formato fixo, mas levou a própria ideia de experimentação para a expressão curatorial. Até o
Golpe de Estado de 2016, o Festival se integrava a um panorama de atividades submerso em uma
atmosfera de interesse e procura. Após o Golpe, como tantas outras iniciativas, o NF precisou
arrumar a casa. Em resposta à crise, o festival foi se aproximando e se afastando da cidade num
sentido muito particular, pois buscava criar dinâmicas de experimentação em sua própria forma
de acontecer. A edição de 2019, por exemplo, foi realizada inteiramente nas ruas da cidade, em
uma proposta curatorial deliberadamente “fora do palco”. Essa opção desempenhou o importante
papel de indicar algo para além do formato-festival, assinalando que algo do pensamento
subjacente à sua concepção se mantinha atento à necessidade de uma ampliação de sua
participação, tanto na economia cultural da cidade como na imaginação do público. Por outro
lado, a ausência do funk de vanguarda na programação e a escolha por se localizar mais no
Centro e na Zona Sul da Cidade, pode ter contribuído também para uma sorte de afastamento
intermitente.

Não se trata, contudo, somente de buscar a descentralização geográfica ou atentar para os


movimentos de vanguarda, como o Baile da Gaiola – que, nos últimos tempos, em minha
modesta opinião, vem fazendo mais pela música nova e avançada do que os últimos lançamentos
dos célebres William Basinski e Christian Fennesz. Hoje, seria necessário que não só o NF, mas
todas as iniciativas que prezam pela diferença na produção cultural, se articulassem no sentido de
formar parcerias, redes e movimentos paralelos ao massacre dos movimentos hegemônicos. Que
em sua última edição o festival tenha se voltado para a produção nacional, isso me parece
indicativo não somente da crise financeira, mas de uma nova atitude perante a cidade. Na linha
da navalha dos confrontos culturais que marcam a contemporaneidade, essa renovação de atitude
pode abrir outras perspectivas para o festival, como também para uma intervenção mais concreta
sobre a realidade da cidade.

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