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A TEORIA ECONOMICA DE CELSO FURTADO: FORMAGAO ECONOMICA DO BRASIL Mauricio C. Coutinho’ Introdugio Por qualquer critério, Celso Furtado (1920-2004) deve ser considerado o mais influente e renomado economista brasileiro de sua geragdo, Suas atividades diversificadas incluem uma experiéncia no front italiano durante a Segunda Guerra, a parceria com 0 famoso economista argentino Raul Prebisch nos estagios iniciais da Comissio Econdmica para a América Latina (CEPAL-ONU), importantes atribuigées no governo brasileiro no periodo anterior & ditadura militar e, ap6s 0 exitio, uma larga carreira académica em universidades curopéias ¢ norte-americanas de renome.' Embora na Europa e nos Estados Unidos © nome de Furtado esteja bastante associado as primeiras versdes da “toria da dependéncia”,? ou ao estabelecimento de uma “teoria do subdesenvolvimento”,’ no Brazil seu Iegado inclui a clevada estatura moral, uma atividade prolifica como escritor e polemista ¢, entre os economistas, sua contribuigao decisiva a difusto do pensamento econdmico no pats. Com relagdo a este tiltimo ponto, vale notar que um ntimero expressive de estudantes brasileiros decidiu-se pelos cursos de Economia nos anos 1960 ¢ 1970 como um resultado direto da leitura dos livros de Furtado. Formagao Econémica do Brasil, um ensaio de interpretagao da histéria econdmica brasileira publicado em 1959, logo tomou-se uma espécie de leitura essencial, um item obrigatrio na estante de todo cientista social, bem como o principal livro-texto na maior parte dos programas de Histéria Econémica do Brasil. Formacao Econémica tem o mérito adicional de haver proporcionado a muitos estudantes a primeira exposicaio a conceitos de economia, Este livro cumpriu na verdade dois papéis distintos. Em primeiro lugar, ao tornar- um uabalho de referencia em historia econdmica brasileira, estimulou as pesquisas na firea. Desde sua edigio, um grande ntimero de projetos de pesquisa em historia econdmica tem sido dedicado & comprovacio (ou rejeigdo) das teses nele contidas. Por outro lado, € como mencionado, despertou em muitos leitores o interesse pela tworia econémica, provavelmente porque nele transborda a visio de Furtado sobre a ciéncia econdmica — as téenicas cientificas vistas como um instrumento essencial para a al dos fendmenos sociais histéricos. lise Dado o impacto dos trabalhos de Furtado sobre os estudos de hist6ria econdmica e de economia no Brasil, o presente trabalho esté voltado & reconstrugdo da teoria econdmica subjacente & esquematizagZo histérica do autor, tal como apresentada na Formagio Econémica do Brasil, Esta reconstrugio sera feita através da revisiio da “UNICAMP. * Para uma biografia intelectual autorizada de Furtado, ver Malforquin (2005). As contribuigdes de Furtado 2 economia do desenvolvimento sio assinaladas por Szmréesanyi (2005), * Postesiormente pasta em sua forma candnica por Cardoso e Falleto (1970) » Em sua miais debatida versio, Frank (1967). Para a visio de Furtado sobre o subuesenvolvimento, Furtado (1975), formagIo de Celso Furtado como economista profissional, bem como de uma atengia a0 modo como ele concebia a andlise econdmica (na segio 1); de uma breve revisiio dos principais ciclos econémicos brasileiras, de acordo com o que ficou conhecida como a interpretagdio candnica de Furtado (na segao 2); da identificagao dos mecanismos € instrumentos de andlise econdmica mais atuantes na obra (na segdo 3). Finalmente, a conclusio (seeio 4) sintetiza os principais pontos de seu enfoque ao mesmo tempo hist6rico e tedrico da ciéncia econdmica, procurando estabelecer conexdes entre eles 1. A visio de teoria econémica de Furtado Furtado foi um dos tantos estudantes de Direito de sua geragdio que teve a atengio atraida pelos problemas econdmicos, No scu caso, o interesse em assunios relacionados organizagao conduziu-o a0 estudo do planejamento, por sua vez um canal de acesso 3 ciéncia econdmica. Em uma espécie de auto-retrato intelectual, tragado em 1973, Furtado esclareee que se tornou um economista autodidata, em virtude da limitagao das disciplinas de Economia oferecidas pelos cursos de Dircito.* Na universidade, atrairam- no muito mais os estudos sociolégicos (especialmente a sociologia alemi — Weber Tonnies, Freyer, Simmel) e a histéria econémica. Recebeu sobretudo o impacto dos tabalhos de Pirenne sobre a sociedade medieval, e do historiador portugués Antonio Sérgio sobre Portugal. Em resumo, os socidlogos ¢ historiadores conduziram Furtado ao campo da Economia, Nao o Ievaram diretamente a teoria econémica, porém, mostraram-Ihe “.. a importancia dos estudos de economia, para melhor compreender a Histéria.”* Os estudos de doutoramento em Paris, conclufdos em 1948, ofereceram-lhe a ‘oportunidade de obter um aprendizado mais sistemdtico em teoria econdmica. De fato, apesar de haver escolhido como objeto de tese um tema histérico, € de té-lo desenvolvido sob a supervisdo de um historiador, Maurice Byé, os cstudos doutorais envolveram a realizagao de uma revisao ampla da teoria econ6mica. A revisdo incluiu a economia politica classica, especialmente Smith e Ricardo, ¢ uma leitura de Marx surpreendentemente profunda, considerando-se_ a ¢poca. Desenvolvimento ¢ Subdesenvolyimento, livro que. embora publicado em uma fase posterior (1961), por ter sido composto de textos escritos nos anos 1950 reflete os estudos parisienses, apresenta as primeiras opiniGes de Furtado sobre os principais sistemas de ‘coria econémica. Percebe-se que Smith, Ricardo, Marx, entusiasmaram-no e foram mais profundamente estudados do que os economistas neoclssicos, Dentre estes, as principais referéncias sao os economistas succos: Wicksell, Cassel e Myrdal. As notas sobre Marshall causam certa decepgao, e, curiosamente, os comentarios sobre Keynes denotam um contato superficial com sua obra, Parece que Hansen e Harrod foram as grandes fontes de Furtado em economia keynesiana. Deve-se assinalar que os comentatios de Furtado a respeito da teoria econémica sio inteiramente orientados por seu envolvimento de toda a vida com os problemas do sileita € Furtado (1983) * Furtado (1983), p. 36. desenvolvimento. Tendo o desenvolvimento econémico como ponto de referencia, ele elogiou 0 foco dos economistas clissicos e de Marx na nogio de excedente, ¢ deplorou seu abandono pelos economistas neocléssicos. Objetou a fixacdo dos classicos no estado estacionério, bem como as dificuldades de Marx em admitir a tendéncia de crescimento dos salérios, a scu ver, uma tendéncia hist6rica confirmada. Dentre as contribuigdes dos neoclissicos, Furtado enaltece os esforcos de Schumpeter para_reconciliar a_teoria econémica com a inovacao, embora tenha considerado qualquer esquema de equilibrio geral incompatfvel com a temética do desenvolvimento econdmico. Em sua avaliacdo geral da teoria econémica, todos os grandes sistemas teéricos © classico, o neocléssico € marxista — fracassaram em deixar uma contribuicdo decisiva ao fendmeno do desenvolvimento econémico, na medida em que nao continham a devida / combinagao entre 0 raciocfnio abstrato e 0 embasamento na realidade hist6rica.De | acordo com Furtado, o principal problema metodoldgico nos estudos de economia é “... a definigao do nfvel de generalidade — ou de conere¢ao ~ a qual se aplica qualquer relagio com valor explanatério”.° No que diz respeito & teoria do desenvolvimento, os modelos abstratos foram considerados especialmente deficientes, jd que ndo levaram em. consideragio dois aspectos decisivos, a irreversibilidade dos processos histéricos & as diferengas estruturais entre as economias conforme seus distintos niveis de desenvolvimento. Em outras palavras, a visdo de teoria econdmica de Furtado leva em consideragao seu duplo cardter, histGrico e abstrato. A andlise econdmica niio pode deixar de lidar com este duplo carter, 0 que implica a necessidade de estabelecimento, pelos analistas, dos limites de validade de seus modelos abstratos. Com efeito, este foi 0 compromisso permanente de Furtado: a aplicagao de prinefpios gerais a realidades econémicas dotadas de historicidade. 2. Os ciclos histéricos da economia brasileira Formagio Econémica do Brasil 6 considerada por comentadores credenciados uma das mais importantes aplicagdes do método de andlise estrutural da CEPAL.” Mais ainda, a obra pode ser vista como o exemplo mais bem sucedido daquilo que o préprio Furtado entendia como o trabalho do economista: a aplicagdo de abstragdes racionais a uma determinada realidade econémica. Representa uma tentativa de reconstrugéo racional da histéria econémica brasileira ou, como 0 autor modestamente expressou, “... ‘um esbogo do processo histérico da economia brasileira”.* 2.1. Circunstancias em torno da redaciio de Formagio Econémica do Brasil Antes da apresentagio dos principais aspectos do “esbogo” de Furtado, vale a pena revisar as circunsténcias que acompanharam sua redacio. Em primeiro lugar, a visio da hist6ria econdmica brasileira como uma sucessdo de grandes ciclos econdmicos, adotada pelo livro, ndo foi inteiramente inovadora. A idéia de que a economia brasileira Furtado (1961). 20. 7 Ver Bielschowsky (1988) * Furtado (1959), Inuodugio, evoluira através de surtos econdmicos isolados, relacionados ao comércio exterior ~ cana- de-acticar, mineragao, café — era bem aceita pelos historiadores. Nesse aspecto, Furtado trilha um caminha ja desbravado.” Sua inovagao residiu na descrigao dos mecanismos econémicos inerentes a cada ciclo, bem como na interpretacdo, particularmente original, da transig&o da agricultura para a indtistria. Em segundo lugar, cabe situar Formagio Econémica no conjunto dos ensaios hist6ricos de Furtado, os quais constituem sem ditvida uma parcela importantissima de seu trabalho intelectual. A linha de ensaios hist6ricos inclui dois trabalhos anteriores & Formagao Econémica: a tese doutoral de 1948, A Economia Colonial Brasileira,'° um estudo da plantation agucareita colonial, ¢ A Economia Brasileira (Furtado, 1954), uma obra que abrange a hist6ria brasileira do periodo colonial ao pés 1930, tao importante quanto pouco lida. De certo modo, Formacao Econémica do Brasil representa uma seqiiéncia destes dois trabalhos. O proprio Furtado admite, na introdugo, que a obra foi concebida como um desenvolvimento de A Economia Brasileira. Apés a publicagao de Formagio Econémica do Brasil, Formacio Econémica da América Latina (Furtado, 1970) representaria a préxima adigao importante & linha de estudos hist6ricos. Enfim, Furtado teve um compromisso permanente com 03 estudos histéricos. Dedicow a eles atengzio mesmo nos anos 1950, perfodo em que seus compromissos com as atividades da CEPAL eram absorventes. A dedicacZo aos estudos histéricos em meio a to intensas atividades profissionais - consultoria em diversos paises, cnsino, planejamento, sustentago de polémicas - testemunha, além da imensa capacidade de trabalho do autor, a importancia que Furtado ¢ a equipe da CEPAL conferiam ao estudo das raizes hist6ricas dos paises latinoamericanos. Finalmente, as circunstincias pessoais adicionam um tltimo, mas ndo menos relevante, ponto circunstancial em torno da redago de Formagio Econémica. Sabe-se que no final de 1957 Furtado interrompeu suas atividades profissionais na CEPAL, iniciando um periodo de pesquisas na Universidade de Cambridge. Em Cambridge, cembora tenha dedicado a maior parte do tempo ao estudo das controvérsias sobre a teoria do crescimento econémico, optou por escrever um livro de histéria econ6mica brasileira, Entre um semindrio outro com os membros do circulo keynesiano ~ Kaldor, Sraffa, Joan Robinson ~ e em meio aos debates candentes em torno do recém publicado modelo de crescimento de Kaldor, Furtado decidiu transformar seu ensaio de 1954, A Economia Brasileira, em uma nova obra, concebida como um “vasto afresco” da historia econémica do Brasil.'' © afresco compartilhava o método usual de “... aproximar Historia e andlise econdmica”.!? Este o contexto especifico em que Formagio Econémica do Brasil foi concebida. Pode-se dizer que, a despeito de ter sido escrita no ambiente teérico extremamente provocative de Cambridge, Formacio Econdmica do Brasil é tributéria apenas da tradig&o latino-americana, em um duplo sentido: foi construfda a partir dos ensaios histéricos anteriores de Furtado e incorporou a experiéncia da CEPAL no tratamento das ° Para uma interpretagio cldssica da economia colonial brasileira, ver Prado Jr, (1996), cuja primeira edigto Ede 1942. Embora nio assinalado na Formagio Econdmiea, 0 enfoque de Furtado sobre a economia, colonial apdia-se na interpretagao de Prado Ir. " publicada apenas em 2000. Ver Furtado (2000). De acordo com o primeiro volume de memérias de Furtado. Ver Furtado (1985), p. 205, "= Furtado (1985), p. 205. restrigdes externas ¢ da taxa de cdmbio, Furtado transpés para o ensaismo histérico 0 conhecimento de politica cambial que havia adquirido no debate latino-americano dos nos 1950. 2.2. Os grandes ciclos da economia brasileira ‘A reconstrugdo racional da hist6ria econdmica brasileira feita por Furtado ergueu- se sobre os alicerces de um esquema dos fluxos de renda. © ponto de referéncia de Formacio Econdmica é o desenho basico dos fluxos de renda, adaptado a cada um dos grandes ciclos da economia brasileira. Na visdo de Furtado, a descoberta do Brasil, em 1500, representa um episédio da expansio mercantilista portuguesa. Apés algumas tentativas frustradas de estabelecer uma exploragdo Iucrativa da nova colénia, os portugueses finalmente introduziram um. negécio promissor no tetritério, a plantation canavieira. O negécio do agdcar sempre foi baseado na escravidao e, fracassados os esforgos de converter os amerindios em uma méo-de-obra escrava produtiva, o tréfico africano impés-se como a alternativa légica & escassez e/ou inadequacio da forga de trabalho. ‘Alé este ponto, Furtado seguiu as interpretagdes histéricas disponiveis em seu tempo. Sua contribuigio inicia-se com a incorporagio ao enfoque cfclico de uma nova explicagio econdmica, baseada em poucas varidveis e instrumentos de anélise, que incluem, além do fluxo de renda, © contraste entre recursos abundantes ¢ escassos, e um arcabouco dos mecanismos de ajustamento entre oferta e demanda. No caso do ciclo agueareiro, a mecanica do ciclo é vista do seguinte modo: 1. Os proprietérios de terra tomam empréstimos aos comerciantes de agticar importam parte do equipamento ea totalidade dos escravos. O ressarcimento destes empréstimos e a aquisic¢ao de escravos € equipamentos ir4 absorver parte das receitas de exportagao de agiicar. 2. Outra parte das receitas constitui o lucro liquide do negécio. Os proprietirios aplicam o lucro no consumo de mercadorias européias ou na expansiio dos negécios (0 que significa aquisigao de escravos e equipamentos ~ a terra é um bem livre). Assim, todos 0s lucros, bem como o investimento, transformam-se em gastos no exterior. 3. Como nao existe trabalho assalariada na economia, os lucros representam a inica renda monetéria. Circula pouco dinheito no interior do territério colonial. 0 modelo simplificado pressupde que os escravos produzem seus préprios meios de subsisténcia, no tempo que sobra da atividade principal. Outras atividades importantes, ‘como 0 transporte e a provisio de combustivel, sao também ndo-monetirias, vale dizer, baseadas no trabalho dos escravos. Todos os custos internos de produgdo de aglicar sao “virtuais”, ou néio-monetirios, no sistema de Furtado. Eles podem exercer impacto sobre os lucros, na medida em que @ aquisigio de escravos representa um desembolso de capital, tendo que ser contabilizado 0 tempo despendido por eles nas diversas atividades. De todo modo, a auséncia de fluxos ‘monetérios na diregao das atividades intemas desenvolvidas fora dos limites da firma canavieira implica sua letargia. O sistema de Furtado ¢ dual: produgo agueareira (setor dinamico, alto nivel de produtividade) versus setor de subsisténcia (letargico, baixo nivel de produtividade, auséncia de excedente). ‘A expansiio da economia depende do dinamismo da demanda por agticar ¢ da emergéncia de competidores coloniais. Enquanto a producto brasileira for competitiva e ‘0s precos internacionais sancionarem luctos elevados, as lavouras serio estendidas por ‘novas terras. Terra é 0 fator abundante, o que leva Furtado a ignorar a renda da terra. Capital, o que inclui os escravos, € 0 fator escasso. O progresso técnico é desconsiderado. O sistema expande-se “horizontalmente”, pela adigio de unidades produtivas similares. Os limites desta expansio so: a) a elevagao dos custos (ja que a terra livre é distante ¢ sua utilizagao implica custos crescentes)'*; b) a exaustio de terras em boa localizagdo ou de combustivel, devida & devastagio das florestas; c) a queda de precos do agticar, em decorréncia de oferta excessiva ou nio-regulada. Todos estes fatores estimulam a competic&o internacional, e no devido tempo a concorréncia das coldnias holandesas afetaria a producdo brasileira. A plantation acucareira brasileira torna-se entéio um sistema decadente. Na visio de Furtado, a crise da plantation canavieira nfo leva a diversificago da economia, nem tampouco & uma substituicdo relevante de atividades. Mesmo na fase expansiva, a auséncia de pagamentos em dinheiro e 0 baixo nivel de produtividade na “economia de subsisténcia” bloqueiam os estimulos de demanda a todas as atividades fora do micleo agucareiro. Na fase de decadéncia, os plantadores de agticar naio podem custear_a aquisiggo de novos escravos e/ou a ocupagio de nova terra. O sistema agucareiro ndo desapareceu, mas entrou em um estégio letérgico, com conseqiiéncias sociais profundas. Apés 0 deelinio da economia agucareira, a descoberta de ouro no Brasil central, no século XVIII, ensejou um novo ciclo expansive. A economia mineira representa também um sistema movido pela demanda externa, mas seu fluxo de renda tipico diferiu do que caracterizou o ciclo agucareiro, devido aos seguintes fatores i. O ciclo do ouro foi de curta duragdo (as minas esgotaram-se em menos de um, século) e permaneceu confinado a uma regidio bem restrita. O confinamento facilitou o controle por parte da coroa portuguesa, levando a uma elevagao dos fluxos de tributo para o exterior do territério. ii, Os escravos eram autorizados a trabalhar apenas nas minas, e nao nas atividades de subsisténcia paralelas. Ao contrério da firma agucareira, a firma mineradora no era auto-suficiente. Dependia de outros setores, especialmente para a provisio de alimentos. Na verdade, 0 ciclo do ouro estimulou a urbanizago ¢ a economia urbana. Admite-se, portanto, a existéncia de atividades econémicas relevantes fora do nucleo minerador. iii, Os lucros liquidos da atividade mineradora nao foram muito elevados, devido a0 peso dos tributos. Por todas essas razGes, ¢ A diferenca do que ocorreu no ciclo agucareiro, 0 ciclo minerador estimulou a diversificagfo de atividades ¢ intensificou as transagdes monetitias, O efeito multiplicador expandiu a renda. Ja que a existéncia de um contingente significativo de uabalhadores livres em tomo da firma mineradora é reconhecida, a questo passa a ser: por que 0 desenvolvimento do mercado interno nao levou a economia brasileira a um desenvolvimento auto-sustentado? A resposta de Furtado introduz, como uma espécie de recurso ad hoc, © argumento de que a baixa capacitagdo tecnol6gica da populagio imigrante teria restringido 0 desenvolvimento do mercado interno. © que, no entanto, nfo leva Furtado a considerar a existéncia de renda diferencial. Desse modo, a curta duragao do ciclo aurifero e a falta de capacitag&io técnica teriam inibido o desenvolvimento de um mercado interno, a despeito da presenga de transagées monetérias e de trabalho assalariado (ou remunerado monetariamente). Passando ao largo da acuidade hist6rica das conclu é jes de Furtado,'* & importante assinalar que, de acordo com sua visio, a economia agucareira, diferentemente da economia mineira, jamais poderia ter-se desenvolvido na diregao de uma economia auto- sustentada. Em contraste, 0 ciclo minerador continha proptiedades auto-estimulantes. Condigdes circunstanciais bloquearam a transigdo para uma economia auto-expansiva, O fim do ciclo minerador fez com que a populagdo se dispersasse na “economia de subsisténcia”. 0 terceiro grande ciclo exportador ~ 0 ciclo do café — representa um ponto de inflexio na economia brasileira. Este ciclo iniciou por volta de 1830, apés a independéncia, envolvendo capital nacional. As plantagdes de café logo transbordaram de sua locagdo original, nos arredores do Rio de Janeiro, para os platés de So Paulo. O término progressivo do tréfico de escravos levou a economia a uma virada decisiva, na ‘medida em que a expansio do negécio implicou a transigdo para um regime de trabalho livre. Com efeito, a plantation cafecira representou a primeira atividade econdmica dependente de um uso massivo de trabalho livre no Brasil. A constituigio de um mereado de trabalho baseado no trabalho assalariado ou semi-assalariado'® demandou uma politica de imigragio massiva, patrocinada pelo governo. No esquema de Furtado, o importante é que o trabalho assalariado, uma vez. estabelecido, impés novas caracteristicas ao fluxo de renda, que assume os seguintes tagos: i As exportagdes de café garantem a disponibilidade de divisas intemacionai Parte destas divisas ¢ destinada ao pagamento dos bens de consumo dos fazendeiros, que sido importados. ii, Outra parte dos rendimentos € convertida em moeda nacional ¢ gasta em salarios ou em outros insumos para a lavoura cafecira. iii. Os salérios e outras despesas em dinheito no mercado interno ativam o mecanismo multiplicador, dinamizando a economia interna. O ciclo do café estimulou a urbanizago e a expanso das atividades econdmicas urbanas em geral. ‘A expansio da lavoura cafeeira dependia, como nos outros ciclos exportadores, da demanda externa, Enquanto os pregos fossem sustentados em niveis elevados, novos capitais acorreriam para a atividade. O modelo de economia cafeeira de Furtado é uma ‘variagio de um modelo de crescimento com oferta ilimitada de trabalho: 0 trabalho e a tetra s2o 0s fatores abundantes, e © capital o fator escasso. No ciclo cafeeiro, a oferta de ‘mio-de-obra foi garantida por uma dotagdo inicial de imigrantes, seguida pelo influxo de trabalhadores brasileiros dispersos no “setor de subsisténcia”, os quais viam na nova ocupagdo uma oportunidade de elevagdo do padrio de vida, A permanente disponibilidade de mao-de-obra nos setores de baixa produtividade estabelecia um teto '4-Tem sido contestada pelos historiadores a tese de Furtado sobre a decadéncia das atividades no territ6rio mineiro, em decorréncia da exaustéo das minas. "8 Qs trabalhadores do café recebiam um pagamento em dinheiro e eram autorizados a cultivar milho ou ‘outros produtos bisicos nos intersticios das linhas do cafezal. Estes produtos eram consumidos ou vendides, para os niveis salariais, deste modo conectando os saldrios nos setores dindmicos aos rendimentos do trabalho na “economia de subsisténcia”. E importante assinalar que a andlise da expansio cafeeira de Furtado abre um amplo espago para a politica econdmica. Na verdade, s6 se pode entender a vertiginosa expansio da lavoura cafeeira brasileira no final do século XIX € décadas iniciais do século XX como um resultado de circunstincias particulares, que inclufam a influéncia da burguesia cafeeira sobre a politica econémica da nascente reptiblica e 0 fato de o Brasil ter-se convertido em um produtor quase monopolista. Ambas as circunstancias favoreceram a implementagao de uma politica de protegao, que garantiu por longo tempo a rentabilidade dos cultivos e afastou a ameaga de super-produgdo para horizontes remotos. Esta politica consistiu, principalmente, na formagao de estoques reguladores financiados por empréstimos extemos, associada a um manejo adequado da liberagao dos estoques no mercado, de modo a evitar-se uma queda de pregos dristica. Naturalmente, a politica de protegao da lavoura levou a expansao desmedida dos cultivos. A Grande Depressiio dos anos 1930 pés um termo & expansio dos cultivos ¢ antecipou uma crise que seria de todo modo inevitével. Com a queda da demanda, ¢ diante dos ntimeros extraordinarios alcangados pelos estoques de café existentes ¢ pela produgéo prospectiva, os pregos pagos aos produtores despencaram. De acordo com Furtado, 0 governo viu-se diante de duas opcOes: ou admitia a quebra natural dos produtores, com todas suas conseqiléncias, ou procurava estender uma rede de seguranca, na forma de um programa sustentado de aquisigdes do café, acompanhado de certa garantia de pregos. Adotou-se a iltima opeiio, que foi ainda suplementada pela queima de parte dos estoques de café Embora concebida como uma medida de protegdo dos cafeicultores, ¢ no como 0 resultado de ponderagdes das vantagens gerais para a economia brasileira, a politica governamental acabou por evitar um declinio mais dristico da renda. Financiada por expansio monetiria, j4 que o mercado internacional de empréstimos encontrava-se fechado e as finangas publicas estavam em colapso, acabou por favorecer a expanso econémica, ao invés de pura inflacdo, uma vez que havia abundancia de recursos ociosos. Na visdo de Furtado, a politica cafeeira pés-30 desempenhou o papel da construgiio de pirdmides, do célebre exemplo de Keynes. 0 inicio do processo de industrializagdo no Brasil foi uma conseqiiéncia direta do desenvolvimento do mercado interno produzido pela expansio do café, bem como pelas politicas de protecao adotadas, Em uma perspectiva mais ampla, a industrializagio deve ser vista como a resposta as restrigGes as importagbes, as quais levaram ao “proceso de substituigdio de importagdes” — um processo de ajustamento da estrutura de oferta sob severas restrigdes na capacidade de importar. Nao se pretende aqui discutir as caracteristicas da industrializagao brasileira, conforme a interpretagio de Furtado e dos economistas da CEPAL. Porém, breves notas podem auxiliar a compreenséo dos mecanismos econémicos que estio por detrés da reconstrugdo racional do processo de industrializagio efetuada por Furtado. Para comecar, a industrializagao e 0 ciclo cafeeiro compartilham a caracteristica de serem baseados em um fluxo de renda inteiramente monetério. Todas as principais transagdes na economia — inclusive o pagamento de fatores - envolvem dinheiro. Embora © ciclo do café seja ativado pela demanda externa e a industrializagdo pela demanda intema, ambos 0s processos acionam 0 mecanismo multiplicador, por envolverem transagdes monetatias. Em segundo lugar, cabe destacar que o dinamismo do processo de industrializacio depende tanto da existéncia de demanda interna quanto da capacidade de a economia adaptar sua estrutura de oferta e superar os diversos obstéculos com que se depara. Os mais importantes obstéculos so as descontinuidades na estrutura industrial interna, as deficigncias de infraestrutura e o pequeno tamanho do mercado, diante das economias de escala prevalecentes no setor industrial. De todo modo, o crescimento da produgao industrial interna deve ser visto como uma resposta ds mudangas de pregos relativos, que por sua ver foram subprodutos dos movimentos dristicos da taxa de cambio que sucederam 0 colapso das exportagies. ‘A imposigéo de tarifas protecionistas e de outros controles administrativos &s importagdes proporcionaram mudancas suplementares nos pregos relativos, estimulando ‘a produgao local. Finalmente, a continua expansio do mercado interno ¢ da produgao industrial colocou a capacidade de importacdo sob permanente pressio, levando & continuidade do processo de substituigao de importagcs. No caso do Brasil, as dimensdes considerdveis do mercado impeliram 0 processo de substituigao de importagao a fases superiores, vele dizer, 2 producdo interna de bens de consumo durdveis, de bens intermedidrios e até mesmo de alguns equipamentos. Na visio de Furtado, em tais condigdes a estrutura industrial tende a tornar-se “completa”, € as relagdes interindustriais menos dependentes das importagdes. Isso nilo significa o fim da condigdo subdesenvolvida, a qual, em tiltima andlise, esta relacionada & existéncia de ‘uma estrutura econémica dual: um mercado de trabalho dual (gragas & permanéncia de largos contingentes de trabalhadores no “setor de subsisténcia”), ¢ heterogeneidade estrutural entre os setores de atividade. No entanto, o fato de o dinamismo econdmico passar a depender da demanda interna, ao invés da extema, significa que se encerrou 0 velho padrio de crescimento ativado por exportagdes. Algumas caracteristicas da andlise econdmica de Furtado Esta segdo concentra-se nos quatro elementos nucleares da andilise econdmica de Furtado: relago entre produtividade e absorgdo/liberagio de recursos; transagdes monetétias versus transagdes em espécie; economia de subsisténcia versus economia excedentéria; pregos relativos. Vale notar que a utilizagio de conceitos econémicos por Furtado é bastante peculiar, e nem sempre coincidente com o sentido geral aceito pelos economistas. A atengio aos significados atribufdos a alguns dos conceitos pode contribuir para estabelecer 0 aleance, e também os limites, da andlise econémica de Furtado. Na visio de Furtado, as economias coloniais so depésitos de fatores de produgio ociosos ou sub-utilizados: terra, recursos naturais, trabalho (quando existe populacdo espalhada pelo “‘setor de subsisténcia”). A descoberta de minas de ouro e prata, ou 0 cultivo de produtos de elevada demanda — café, agticar, cacau, borracha ~ conecta estes recursos 4 economia mundial. Em outras palavras, 0 comércio internacional cumpre 0 papel de mobilizar os recursos antes ociosos e de despertar uma economia adormecida, elevando sua produtividade. ‘Quando os surtos de exportagio extinguem-se antes da adogio de um substituto, ou anteriormente & obtengio de diversificagao econdmica e ao desenvolvimento de um mercado interno, a economia retroage € 0s recursos retornam a ociosidade. O estado retroativo nfo leva a economia a uma situaco idéntica & que antecedeu o surto expansivo; de todo mode, os recursos retornam a condigdes de sub-utilizacao. ‘A descri¢o acima traz & tona dois elementos importantes do sistema de Furtado: © papel do comércio internacional e os mecanismos que determinam uma elevagiio/queda de produtividade. © comércio extermo tem o papel virtuoso de despertar os fatores intemos que, no fora por isso, permaneceriam adormecidos. Razes hist6ricas diversas Ievaram alguns paises (Estados Unidos, Austrélia) a obter sucesso na transigio do primeiro estigio ~ desenvolvimento voltado para fora — a0 segundo — desenvolvimento do mercado interno. Outros pafses, como o Brasil, efetuaram esta transigao tardiamente ou, 0 que € mais importante, sob condigdes diferentes ¢ com conseqiiéncias diferentes. Deixando de lado qualquer discussdo suplementar sobre desenvolvimento ¢ subdesenvolvimento, o importante aqui é salientar a importéncia que Furtado concede & dindmica de absorga0/liberagao de recursos sub-utilizados, bem como suas implicagdes. ‘As concepgées especificas de produtividade utilizadas por Furtado em diferentes partes de sua obra também merecem ateng3o. De acordo com Furtado, ocore uma elevagio de produtividade em trés situagdes: i. absoredo de recursos sub-utilizados; ii. elevagio de pregos internacionais, um fenémeno tipico das exportagdes primérias; iii. um crescimento de produtividade “smitheano”, tipico da manufatura e da industria. A primeira e a segunda situagdes sfio as mais relevantes, 4 medida que se moldam a0 que ocorreu no desenvolvimento econdmico da América Latina. O simples estabelecimento de um front exportador, a expansio de um comércio de exportagao ja conhecido (caso do café), ou um mero crescimento nos pregos de exportagao, podem ser considerados fatores que elevam a produtividade geral do sistema. A elevagio deve-se a duas razdes. Em primeiro lugar, os recursos sto transferidos de utilizagées menos produtivas para outras mais produtivas. Em segundo lugar, € no caso de uma alta de precos, © mesmo montante de recursos passa a proporcionar acesso a uma maior quantidade de mercadorias no mercado internacional. Em outras palavras, uma mudanga positiva nos termos de troca e/ou a simples transferéncia de recursos jé existentes para 1usos mais produtivos ~ ja que conectados a alta demanda e a pregos elevados ~ aumenta a produtividade da economia como um todo. Por outro lado, existem aumentos de produtividade relacionados & organizagao das atividades produtivas, ou ao progresso técnico. Estes aumentos tém uma tradugio fisica: maior produgao por unidade de insumos. Na visio de Furtado, a agricultura é pouco relacionada ao progresso técnico, ao menos na América Latina. Por exemplo, a produtividade foi maior na plantation agucareira do que na “economia de subsisténcia”, no periodo de auge, basicamente gracas aos pregos favordveis do acticar. Como a terrae 0 trabalho eram fatores sempre disponiveis, nao existiu competicdo entre os produtores &, portanto, inducao ao progresso técnico. Furtado ndo reconhece a existéncia de progress téenico na planration acucareira, e d4 pouco destaque a ele no caso do café. Como regra geral, 0 progresso técnico desempenha um papel secundério nas economias de 10 exportago. A chave dos aumentos de produtividade nas economias coloniais residia nos precos dos produtos de exportacio. A conclusio a que se chega & de que 0 processo de substituigiio de importagdes desperta duas fontes de elevagio de produtividade. De um lado, ocorre a transferéncia continua de trabalho do “setor de subsisténcia” para as ocupagGes industriais e urbanas, ou seja, de atividades de baixa produtividade para atividades de alta produtividade. Do outro, a atividade industrial em si envolve um progresso técnico © um aumento de produtividade fisica continuos. A vistio de Furtado € de que os padrdes tecnolégicos na industria sdo inteiramente determinados pelos pafses desenvolvidos, que dispdem de outra dotagao de fatores produtivos e outra estrutura de precos relativos. Esse mimetisino tecnolégico da inddstria atenua a capacidade de eliminacdo dos bolsGes de trabalho disponiveis nos “setores de subsisténcia”, 0 que representa mais um fator a retardar a superagao do subdesenvolvimento. Como vimos, @ constituigo de um mercado de trabalho assalariado é um ponto central no esquema de Furtado. Em relagdo a esse t6pico, a leitura de A Economia Brasileira resulta particularmente esclarecedora. Furtado examina nesta obra as consequéncias da dissolugao do mundo feudal pela economia mercantil, enfatizando os contrastes entre sistema mercantile economia manufatureira. Os contrastes proporcionam uma chave para o entendimento da visio particular do autor a respeito dos impactos da emergéneia de um mercado de trabalho assalariado em uma economia colonial (ow subdesenvolvida). Conforme A Economia Brasileira, 0 modelo clissico de dissolugio da economia feudal pelo comércio teria aumentado a demanda pelos produtos dos artesios tradicionais, estimulando assim a reorganizago da produg3o pelos capitalistas (os comerciantes). Nesse proceso gerou-se 0 que Furtado denomina de “lucro industrial”, Ao contrério do luero comercial tradicional, o Iucto industrial tem que ser incorporado 0s pregos de venda das mercadorias, jd que representa a retribuigao de um fator da produgio, Estabelece-se uma necessidade premente de desembolso, ¢ a impossibilidade de reter 0 lucro na forma de tesouro. Na imagem utilizada por Furtado, os luctos industriais ~ & semelhanga dos salétios e dos outros rendimentos pagos — s6 adquirem existéncia real quando o produto é vendido, 0 que explica a urgéncia de liquidagio das operagdes, Na medida em que os ciclos produtivos baseiam-se no crédito e em que a auséncia de liquidacZo significaria o descumprimento de obrigagSes, gera-se um impulso suplementar as vendas. Ora, na visio de Furtado, € a necessidade de pronta liquidagtio que abarrota os mercados, eleva a competigdo entre os vendedores € induz & redugdo dos custos de produgo. Enfim, 0 pagamento de fatores leva a uma reorganizacio dos processos produtivos, sob a presséo da concorréncia. Os dois pontos a merecerem destaque neste relato so a pressiio de vendas (¢ a decorrente indugao & modemizagio), € a relagdo entre tal pressdo e a existéncia de um fluxo de desembolsos no interior da comunidade, mesmo quando o produto é destinado a0 mercado externo. © pagamento aos fatores origina um fluxo permanente de renda no mercado interno, o qual acaba por abranger todas as cadeias produtivas. Diferentemente do que ocorria na produgio artesanal tradicional, “... a atividade do homem de negécios nao mais se restringe a criagdo de renda para ele proprio, mas tem, como efeito lateral, o aumento da demanda por um grande ntimero de pessoas no interior da comunidade”'® ~ e af o efeito multiplicador. FE evidente a analogia com a economia de plantation escravista. Nela, os desembolsos no mercado intemos so inexistentes. A situagdo € ainda agravada pelo fato de os lucros dirigirem-se para fora, para a compra de escravos ¢ equipamentos, 0 pagamento de dividas, a aquisicao de bens de luxo, O efeito multiplicador nao opera € 0 restante da economia permanece em um estégio de subsisténcia, Mais ainda, como o progresso técnico, na visio de Furtado, surge e é impelido pela concorréncia inerente a0 processo de “Jucro industrial”, ele no representa uma caracteristica intrinseca ao sistema pré-mercantil. Mutatis mutandis, 0 progresso técnico nao constitui um elemento inerente 4 economia colonial. O que vem a ser uma “economia de subsisténcia"? A pergunta é cabida, porque Furtado aplica a expressiio a muitas situagdes diversas. Em uma economia colonial, todas as atividades fora dos nicleos exportadores fazem parte do “setor de subsisténcia”. Por exemplo, as manadas de gado que povoaram o hinterland nordestino © que proporcionavam carne para 0 consumo das cidades ou dos engenhos agucareiros, faziam parte da “economia de subsisténcia”. A proviso de alimentos para os escravos nas minas de ouro também fazia parte das atividades “de subsisténcia”. Mesmo apés o estabelecimento do processo de industrializacdo, uma parcela significativa da agricultura € mantida em condig6es “de subsisténcia”, O curioso é que o “setor de subsisténcia’, além de manter as pessoas nele envolvidas, proporciona alimentos para os setores exportadores Iideres ¢ para as populagses das cidades, Chega-se a um paradoxo: 0 “setor de subsisténcia”” produz excedente. Furtado recorre sempre & presenga de uma estrutura dual, a qual compreende 98 setores lideres (produtores de excedente) e a “economia de subsisténcia”. Na verdade, “subsisténcia” aparece aqui como sindnimo de baixa produtividade. Deixando de lado a aparente inconsisténcia na utilizacio do termo, a questo que emerge é a seguinte: se o “setor de subsisténcia” é capaz de produzir excedentes, a que pregos cles so vendidos? Quais as relagdes de troca entre os bens de exportagiio ¢ os produtos de mercado interno? Ou ainda, como determinar os pregos relativos? A questo € relevante, ji que, sendo 0 modelo de Furtado bi-setorial — o setor exportador e setor de subsisténcia efetuam trocas monetérias -, 0 simples estabelecimento dos pregos de exportagio pelo mercado nao é suficiente para determinar o quadro econdmico como um todo. Adicionalmente - e para complicar ainda mais — embora Furtado admita que os bens so trocados em uma ambiente monetério, ndo admite fluxos de moeda entre o “setor de subsisténcia” e o resto da economia. Formagio Econdmica do Brasil no oferece uma resposta satisfatsria a estas interrogagGes. Possivelmente, Furtado considerava residuais as transagdes monetirias com o “setor de subsisténcia”. Desse modo, péde prescindir de um olhar mais atento & dificil questo dos pregos relativos. ‘A discussio anterior conduz ao tratamento dado por Furtado aos pregos relativos. Conforme foi dito, na andlise dos ciclos exportadores nenhuma atengao foi conferida aos precos dos produtos basicos de mercado interno, mesmo quando admitida sua produgio "6 Furtado (1954), p. 38, 12 fora das unidades exportadoras. No entanto, a remuneragiio do trabalho (nas situagdes em que se admite a existéncia de trabalho livre) foi fixada a um nivel imediatamente superior ao que prevalecia no “setor de subsisténcia”. Quanto custam as mercadorias que compéem a cesta de subsisténcia, ou qual a relagio de pregos entre os produtos exportados ¢ 05 de mercado interno? A questio € decisiva para a determinagio da dindmica da relag3o entre mercado intemo e mercado de exportagdes, no ambit de um. modelo a dois setores. Se considerarmos que os pregos dos produtos de exportacio sio dados pelo mercado externo, pode-se admitir que a distribuicdo de renda e os lucros sio determinados pelos pregos intemacionais e pelo nfvel de subsisténcia. Para que o modelo seja completo, no entanto, terfamos que fixar os precos dos bens de subsisténcia, o que implica adotar a hipétese de auséncia de restrigdes A expansdio da produgio de bens bisicos, a custos fixos. Em outras palavras, uma hipétese de oferta perfeitamente elistica de bens basicos, a qual nao é explicitada por Furtado e nem mesmo parece corresponder a0 espfrito do modelo. Jé na andlise do processo de substitui¢ao de importagdes, os pregos relativos desempenham um papel crucial. O esquema de Furtado incorpora tanto 0s termos de troca quanto os impactos das mudangas da taxa de cambio sobte os precos internos. Como vimos, a indistria nacional tornou-se vidvel exatamente porque a taxa de cambio & ‘a proteco adicional colocaram os produtos domésticos em condigdes competitivas face aos fornecedores internacionais. Vale dizer, o processo de substituigdo de importagées envolve um ajustamento entre as estruturas de oferta e demanda, comandado pelas mudangas de pregos relativos. Cabe a ressalva, contudo, de que as relagdes de pregos dos produtos produzidos intermamente continuam a nao fazer parte do esquema bisico de Furtado mesmo ao longo do pracesso de industrializagzo. A rigor, a0 longo do texto Furtado adota outras hipéteses que se referem & formagio de pregos. Por exemplo, considera que a oferta de produtos agricolas € inelistica a pregos (¢ daf a tendéncia inflaciondria produzida pela urbanizaciio); menciona as condigées de monopélio e monopsénio presentes em alguns ramos da indtistria. Trata- se, porém, de hipéteses voltadas & explanagio da tendéncia inflacionaria supostamente inerente ao processo de substituigio de importages, as quais nao chegam a compor 0 modelo de pregos subjacente & estrutura bisica do proceso substitutivo. Pode-se dizer que, exceciio feita aos impactos sobre os pregos relalivos produzidos pelos ajustamentos da taxa de cAmbio ou por outros movimentos relacionados ao balango de pagamentos, Furtado mantém os pregos relativos fora de seus esquemas, 4, Conclusies Os principais instrumentos de andlise econémica presentes na reconstrugio racional da hist6ria econdmica brasileira efetuada por Furtado sZo: i. os ajustamentos entre as estruturas de demanda e oferta; ii, 0 fluxo de renda; iii. 0 mecanismo multiplicador. O ajustamento entre as estruturas de oferta e demanda, em trajetorias de crescimento instaveis e afastadas do equilfbrio, € a pedra de toque da dinémica de 1B Furtado. A decomposicao dos elementos da demanda e da oferta agregada, levando em consideragio a estrutura de classes ¢ um esquema sumiétio que abrange distribuigio de renda, produgao interna, importagdes exportagdes, além da distingao entre bens de consumo e de investimento, & parte do esquema analitico de Formagao Econémica do Brasil. No proceso de substituigio de importagdes, as mudangas de pregos relativos desempenham um papel no ajustamento de oferta e demanda, No entanto, 0 uso dos precos relativos € limitado — restringe-se aos termos de troca e ao contraste entre tradeables e non-tradeables. 0 fluxo circular de renda pode ser considerado o horizonte de anélise permanente de Furtado. Sua versio do fluxo de renda admite dois tragos peculiares: a distingdio entre renda monetatia € na a, e a énfase no comércio internacional. Com efeito, as transagdes ¢ os pagamentos de fatores de natureza nio-monetiria sio mantidos & parte do fluxo circular, simplesmente porque eles ndo ativam o mecanismo multiplicador, na versio de Furtado. As despesas ndo-monetérias podem até mesmo ser contabilizadas como custos, como no caso da subsisténcia dos escravos — 0 que significa que elas tém valor, podem ser expressadas em dinheiro e afetam a rentabilidade dos negécios. Ainda assim, escapam do fluxo de renda. Por sua vez, as importagdes e 0 pagamento de fatores no exterior representam vazamentos no fluxo de renda. Nao se trata da distingao tradicional entre Renda Interna e Renda Nacional, mas de vazamentos no fluxo de renda, Do mesmo modo, as exportagées acrescem de modo limitado 2 renda interna, porque a auséncia de pagamentos em dinheiro inibe a atuagao do multiplicador. Finalmente, 0 mecanismo multiplicador figura como uma pega importante da caixa de ferramentas de Furtado. Neste caso, 0 trago peculiar reside na distingaio entre rendas monetérias e n’o-monetérias. A bem da verdade, as rendas ndo-monetérias nao contam como renda, para efeitos macroeconémicos. Elas no ativam © mecanismo multiplicador, que representa 0 motor dos modelos de crescimento presentes na Formagdo Econdmica do Brasil. Afora os instrumentos de anilise assinalados, as abstragdes de Furtado constroem- se sobre uma série de fatos estilizados. Os mais importantes afloram nos contrastes entre transagdes monetiias e em espécie, economia excedentéria e de subsisténcia, setores de atividade econdmica Iideres e atrasados. ‘Aparentemente — as vezes, explicitamente -, as transagdes em espécie pressupdem um padrio de valor, ou a existéncia de pregos estimados em moeda. Ora, nao sendo a escassez, de moeda uma questo relevante nos modelos de Furtado, conclui-se que a economia nfio-monetiria significa uma espécie de economia residual, ou pouco relevante para a definigao das tendéncias econdmicas dominantes. ‘A “economia de subsisténcia” € uma mera designagio de setores de baixa produtividade. Ela pode, na verdade, produzit excedente. Como vimos, trata-se de um. fato estilizado que poupou Furtado de consideragdes suplementares sobre pregos relativos. Os precos relativos, excegio feita & taxa de cdmbio, sio um ponto cego nos esquemas de Furtado. Finalmente, a distingdo entre setores Iideres ¢ atrasados esté definitivamente associada a capacidade de gerar crescimento econdmico, ¢ nao & tecnologia dominante, a0 tipo de forga de trabalho utilizada, ou a outras caracteristicas dos setores de atividade 14 econémica. No seu auge, as plantations de cana-de-agiicar ¢ de café representaram setores de alta produtividade, a despeito da irrelevncia do progresso ténico na explicagdo de seus desempenhos. Constitufam setores de alta produtividade porque os pregos internacionais cram elevados ¢ o territério detinha vantagens comparativas nessas lavouras. Ao transitar para a economia industrial, Furtado mostrou-se mais propenso a levar em consideragdo a produtividade fisica 0 progresso técnico. ‘A detecgo dos instrumentos de analise e dos fatos estilizados teve 0 objetivo de auxiliar a compreensdo dos usos da andlise econdmica, nessa original abstragio da histéria econdmica brasileira que € Formacio Econémica do Brasil. De todo modo, ¢ como critério geral, nunca se deve perder de vista 0 fato de que a teoria econdmica de Furtado € instrumental. Esta voltada & compreensio do desenvolvimento econémico e, particularmente, do desenvolvimento econémico brasileiro, em sua ambiéncia histérica. ‘Além disso, a anélise de Furtado esti influenciada pelos destinos imediatos do processo de industrializacio. Na Formagiio Econdmica do Brasil, 0 tom dominante é de certo modo olimista, conduzido pela idéia de que 0 proceso de substituigio de importagdes tenderia a finalmente “completar” a estrutura industrial brasileira, J4 os textos do final dos anos 60 ¢ dos anos 70 so marcadamente pessimistas, em fungo da derrocada dos regimes de representago nos pafses da América Latina e de uma suposta estagnaciio econdmica.'” Na quadra pessimista, Furtado modifica em diversos aspectos seus pontos de vista e suas referéncias tedricas. Ocorrem transformagdes em sua “teoria ‘econdmica”, as quais ainda estdo a espera de estudos especificos. " Particularmente Furtado (1968). 15 REFERENCIAS, Biclschowsky, R. (1988). Pensamento Econdmico Brasileiro. 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