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“Remanescentes
das comunidades
dos quilombos”:
memória do
cativeiro e políticas
de reparação
no Brasil
HEBE MATTOS
é professora do
Departamento de História
da Universidade Federal
Fluminense.
O presente artigo propõe uma interpre-
tação, ainda que preliminar, para a
história da aprovação e dos desdobramentos
legais do Artigo 68 do Ato das Disposições Cons-
titucionais Transitórias (ADCT) da Constituição
Brasileira de 1988, que reconheceu direitos ter-
ritoriais aos “remanescentes das comunidades
dos quilombos”, garantindo-lhes a titulação
definitiva pelo Estado brasileiro1.
Para entender a redação do artigo e sua
inclusão nas disposições transitórias da Cons-
tituição é preciso levar em consideração, pri-
meiramente, o fortalecimento dos movimentos
negros no país, ao longo da década de 1980, e a
revisão por eles proposta em relação à memória
pública da escravidão e da Abolição. À imagem
da princesinha branca, libertando por decreto
escravos submissos e bem tratados, que du-
rante décadas se difundiu nos livros didáticos
brasileiros, passou-se a opor a imagem de um
sistema cruel e violento, ao qual o escravo negro
resistia, especialmente pela fuga e formação
de quilombos2.
A pesquisa acadêmica em história social da
escravidão foi também tocada por essa conjun-
tura. A partir de uma perspectiva que propunha
1 O texto integral do Art. 68 do
pensar o escravo como ator social relevante para Ato das Disposições Constitu-
cionais Transitórias estabelece
a compreensão histórica da sociedade brasileira, que: “Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos
que estejam ocupando suas
uma revisão historiográfica se produziu no país terras é reconhecida a pro-
priedade definitiva, devendo
em relação ao tema. A demografia, a cultura, o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”.
as relações familiares e a sociabilidade escrava 2 Cf. Mariza Soares, “Nos Ata-
lhos da Memória – Monumento
passaram a ser estudadas por inúmeros pesqui- a Zumbi”, in Paulo Knauss (org.),
Cidade Vaidosa. Imagens
sadores. Cada vez mais as ações e opções dos Urbanas do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 7 Letras, 1999, pp.
africanos escravizados no Brasil foram perce- 117-35.
OS NOVOS QUILOMBOS
do Passado e Perspectivas
Nas comunidades de quilombo do Alto Contemporâneas, São Paulo,
Anpocs/Hucitec, 1996; e, ain-
Trombetas, a memória dos antigos mocam- da, Eliane Cantarino O’Dwyer
Se não são necessariamente descenden- bos mostrou-se, desde o início, constitutiva (org.), Quilombos. Identidade
Étnica e Territorialidade, Rio de
tes de antigos acampamentos de escravos da identidade dos grupos, e os territórios Janeiro, Editora FGV, 2002.
fugidos, escondidos nas matas desde o hoje reivindicados correspondem, de modo 10 Cf. Sistema de Informações das
tempo do Brasil monárquico, de onde afinal geral, às antigas áreas mocambeiras14. Comunidades Afro-brasileiras
(Sicab) na página da Funda-
surgiram os novos quilombos? Como os As áreas geográficas reivindicadas pelas ção Cultural Palmares do
Ministério da Cultura (www.
mais críticos tendem a ressaltar, eles têm comunidades dos quilombos no Maranhão palmares.gov.br, acessado em
claramente uma origem recente nas deman- têm maior amplitude e se estendem por pra- 3/9/2005).
das por garantia de direitos à posse coletiva ticamente todo o estado. Antigas fazendas 11 Cf. Rafael Sanzio, “O Espaço
Geográfico dos Remanescentes
de terras, apresentadas por colonos e pos- escravistas e suas comunidades de senzala de Antigos Quilombos no Bra-
sil”, in Terra Livre, 17, 2001,
seiros negros tradicionais, a partir do apoio estão historicamente na base da formação pp. 139-54, e Território das
de novos aliados, entre os quais a Pastoral de muitas das chamadas “terras de preto” Comunidades Quilombolas, 2a
Configuração Espacial, Brasília,
da Terra da Igreja Católica, os movimentos maranhenses, mas o papel da fronteira Ciga-UnB, 2005. Ver também
negros, a Associação Brasileira de Antro- aberta na expansão dos mocambos tende Segundo Cadastro Municipal
dos Territórios Quilombolas do
pologia e alguns outros atores da sociedade hoje a predominar na memória pública Brasil (http://www.unb.br/acs/
unbagencia/ag0505-18.htm).
civil brasileira pós-redemocratização, que das comunidades dos quilombos, sobre
12 Cf. Hebe Mattos, Marcas da
ocuparam papel especial12. as narrativas de viés paternalista, que en- Escravidão. Biografia, Racia-
Por outro lado, há claramente também fatizavam heranças, compras ou doações lização e Memória do Cativeiro
na História do Brasil, tese
uma origem remota, fortemente ancorada de terra por parte dos antigos senhores, apresentada como requisito
na formação de um campesinato constituído antes predominantes15. De fato, a pesquisa para concurso de professor
titular em História do Brasil,
por escravos libertos e seus descendentes no histórica tende a comprovar que ambos os Niterói, Universidade Federal
Fluminense, 2004, parte 1.
contexto da desagregação da escravidão e fenômenos se entrecruzaram no processo
13 Cf. Flávio S. Gomes, Experiências
de sua abolição no Brasil, que permite tais de desagregação da sociedade escravista Atlânticas. Ensaios e Pesquisas
grupos reivindicarem-se como comunida- maranhense e continuaram a se misturar sobre a Escravidão e o Pós-
emancipação no Brasil, Passo
des tradicionais e como quilombolas. como opções para o campesinato negro Fundo, FPF, 2003, p. 89.
No Maranhão e no Pará encontra-se depois da Abolição16. 14 Cf. Eurípedes Funes, Comu-
proporção expressiva das comunidades dos Também no sertão do Nordeste, en- nidades Remanescentes dos
Mocambos do Alto Trombetas,
quilombos. São 34 no Pará e 35 no Maranhão contra-se uma expressiva concentração Comissão Pro-Índio de São
Paulo, dezembro de 2000
registrados no Sicab da Fundação Palmares e das comunidades dos quilombos referidas (www.quilombo.org.br/quilom-
642 e 294, respectivamente, segundo o mapa à provisão constitucional, e pelo menos a bo/doc/ComunidadesRema-
nescentes.doc); e Eurípedes
dos territórios quilombolas da Universidade primeira delas assim identificada, o Qui- Funes, Nasci nas Matas, Nunca
Tive Senhor: História e Memória
de Brasília. A proliferação de acampamentos lombo do Rio das Rãs, na Bahia, já foi alvo dos Mocambos do Baixo Ama-
de escravos fugidos, chamados mocambos, de pesquisas históricas e antropológicas zonas, tese de doutorado, São
Paulo, FFLCH/USP, 1995.
na fronteira entre Maranhão e Pará, bem aprofundadas17. O mapa dos territórios das
15 Cf. Luiz Eduardo Soares,
como nas cachoeiras do alto do Rio Trom- comunidades dos quilombos produzido pela Campesinato: Ideologia e
betas, tornou tais áreas alvos preferenciais Universidade de Brasília refere-se a 396 Política…, op. cit.; e “Os
Quilombos e as Novas Et-
da preocupação repressiva das autoridades comunidades no estado, a maioria delas nias”, in Eliane C. O’Dwyer,
Quilombos Identidade Étnica
provinciais do Pará, na segunda metade do no sertão. Vinte e seis delas encontram-se e Territorialidade…, op. cit.
século XIX, no contexto de desagregação da referidas no Sistema de Informações das 16 Cf., especialmente: Flávio S.
ordem escravista na região. Segundo Flávio Comunidades Afro-brasileiras (Sicab) da Gomes, Experiências Atlânti-
cas…, op. cit., caps. 3 e 4.
Gomes, “quilombolas, grupos indígenas e Fundação Palmares. De fato, a pesquisa
17 Por ângulos diferentes, o pro-
depois colonos e camponeses fizeram ali sobre o Quilombo do Rio das Rãs aponta cesso de mobilização política
suas próprias fronteiras, as quais foram para um campesinato negro, formado por e de construção da identidade
quilombola em Rio das Rãs
marcadas por inúmeras experiências de lutas, libertos e seus descendentes desde o final aparece estudado em duas