Este documento discute o impacto da gravação e reprodução técnica na música. A escrita musical permitiu a sobrevivência da música erudita européia ao longo dos séculos, enquanto as tradições orais evoluíram mais lentamente. A partir do século XX, a gravação tornou-se o principal veículo de transmissão musical, criando novos tipos de ouvintes e relações com a música.
Este documento discute o impacto da gravação e reprodução técnica na música. A escrita musical permitiu a sobrevivência da música erudita européia ao longo dos séculos, enquanto as tradições orais evoluíram mais lentamente. A partir do século XX, a gravação tornou-se o principal veículo de transmissão musical, criando novos tipos de ouvintes e relações com a música.
Este documento discute o impacto da gravação e reprodução técnica na música. A escrita musical permitiu a sobrevivência da música erudita européia ao longo dos séculos, enquanto as tradições orais evoluíram mais lentamente. A partir do século XX, a gravação tornou-se o principal veículo de transmissão musical, criando novos tipos de ouvintes e relações com a música.
As
profundas
transformações
que
ocorreram
no
século
XX,
obrigam-‐nos
a
revisitar
alguns
textos
da
primeira
metade
do
século
XX
e
usar
alguns
conceitos
que
nos
permitem
medir
o
alcance
profundo
das
alterações.
No
seu
agora
celebrado
ensaio
A
arte
da
era
da
sua
reprodutibilidade
técnica,
Walter
Benjamin
não
trata
a
música.
Concentra-‐se
nas
artes
que
mais
notoriamente
eram,
na
época,
devedoras
da
produção
e
reprodutibilidade
técnicas:
a
fotografia
e
o
cinema.
O
facto
de
não
incluir
a
música
nas
suas
reflexões
não
foi
uma
lacuna
da
análise,
mas
um
sintoma
de
que
o
impacto
dos
meios
reprodução
técnica
da
música
estava
ainda
nos
seus
primórdios.
É
hoje
claro
que
esse
impacto
ganhou
gradualmente
importância
ao
ponto
de
o
musicólogo
Philip
Bohlman
poder
afirmar,
nos
anos
90,
que
a
gravação
"alterou
todas
as
ontologias
da
música".
O
primeiro
factor
de
mudança,
que
se
revelou
de
grande
importância
pode
ser
designado,
tal
como
o
fiz
num
ensaio
publicado
em
2002
como
alterando
os
suportes
históricos
de
sobrevivência.
O
facto
de
hoje
podermos
ouvir
música
da
tradição
erudita
europeia
de
1200
deriva,
acima
de
tudo,
da
invenção
da
escrita
musical,
cerca
do
ano
1000,
que
evoluiu
gradualmente
e
permitiu
especialmente
no
século
XIX
a
criação
da
prática
nascente
de
repetição
do
repertório
do
passado.
Foi
a
escrita
musical
que
serviu
à
música
dessa
tradição
escrita
de
suporte
histórico
ao
longo
do
tempo.
Há
outras
civilizações
do
mundo
que
possuiram
modos
de
notação
diversos
mas
em
nenhum
outro
lugar
a
escrita
musical
teve
um
tal
desenvolvimento.
Ao
mesmo
tempo
as
músicas
das
muitas
tradições
orais,
não
tendo
esse
suporte
e
transmitindo-‐se
de
pais
para
filhos
por
esse
meio
-‐
semelhante
ao
do
"contador
de
histórias"
-‐
tiveram
uma
evolução
muito
mais
lenta,
que
apenas
podemos
imaginar,
uma
vez
ausente
na
maior
parte
dos
casos
qualquer
suporte
histórico
de
sobrevivência
que
não
descrições
ou
representações
pictóricas.
Nesse
sentido
podemos
dizer
que
enquanto
a
música
europeia
da
tradição
erudita,
ou
literata,
como
a
designa
Richard
Taruskin,
sublinhando
a
existencia
crucial
da
leitura
do
escrito
como
veículo.
tem
história
e
documentos,
as
práticas
musicais
populares
de
tradição
oral
na
Europa
e
as
de
outras
culturas
do
mundo,
algumas
dotadas
de
sistemas
de
notação
menos
desenvolvidos,
não
tiveram
história
nesse
sentido.
Não
é
este
no
entanto
o
objecto
principal
deste
escrito.
Pelo
contrário
é
justamente
o
impacto
do
novo
suporte
gravado
na
própria
vida
musical
que
se
reclama
da
escrita,
o
seu
impacto
transformador
que
produziu
hierarquias
de
um
novo
tipo.
A
definição
clássica
de
melómano
seria
a
de
um
frequentador
de
concertos.
Como
saberemos
até
c.a.
1900
não
haveria
música
se
não
houvesse
músicos
a
tocar.
Era
uma
condição
necessária
e
insubstituível,
fosse
qual
fosse
o
seu
meio
de
transmissão
oral
ou
escrito.
A
partir
sobretudo
de
1950
a
importância
da
gravação
não
parou
de
aumentar.
Para
além
das
músicas
populares
de
todos
os
matizes,
das
músicas
de
todas
as
civilizações
não
ocidentais,
também
músicas
novas
que
se
iniciaram
quase
em
paralelo
com
o
início
da
gravação
como
o
jazz,
no
início
do
século,
até
ao
pop/rock.
Neste
processo
global,
detecta-‐se
uma
progressiva
importância
da
gravação
como
registo
fundamental
na
próprio
interior
da
música
erudita.
Este
modo
de
produção
obrigou
a
uma
inversão
das
prioridades
neste
campo.
Em
meados
do
século
a
gravação
de
uma
nova
versão
de
sinfonias
de
Beethoven,
por
hipótese,
tinha
lugar
no
final
de
uma
tournée
de
concertos.
Actualmente,
segundo
Antoine
Hennion,
as
gravações
e
a
edição
dos
discos
têm
lugar
antes
das
tournées
e
servem-‐lhe
de
ponto
de
partida,
adoptando
por
isso
as
mesmas
práticas
de
divulgação
correntes
no
jazz
e
no
rock/pop
já
em
plena
hegemonia
global.
Surge
deste
modo
um
novo
tipo
de
melómano,
o
colecccionador
de
discos
-‐
que
todos
seremos
em
maior
ou
menor
grau
-‐
que
nem
sempre
é
totalmente
concomitante
com
o
frequentador
de
concertos,
o
melómano
original
digamos.
Criou-‐se
assim
um
novo
tipo
de
relação
com
a
música
que
hoje
será
amplamente
dominante.
Hennion
realça
o
facto
deste
novo
tipo
de
ouvinte
poder
criar,
na
casa
de
cada
um,
um
mundo
sonoro
particular,
derivado
das
escolhas
privadas
do
sujeito,
que
pode
até
não
corresponder
às
categorias
tradicionais
nas
quais
se
dividem
as
práticas
musicais
(e
os
lugares)
no
quadro
das
instituições
culturais.
Importa
no
entanto
dar
um
passo
atrás
e
tratar
a
ontologia
com
que
Ramon
Ingarten,
discípulo
de
Husserl,
procurou
responder
à
pergunta
"O
que
é
uma
obra
musical?,
título
do
seu
livro
de
1933.
Resumindo
em
extremo
o
complexo
livro
tomarei
apenas
as
quatro
condições
essenciais
para
que,
na
perspectiva
de
Ingarten,
exista
uma
obra
musical:
o
criador,
a
partitura,
a
interpretação
e
a
recepção.
O
tempo
obriga
a
alterar
estas
categorias
em
certos
géneros
musicais.
Na
música
electrónica,
de
um
modo
geral,
não
há
nem
partitura
tradicional,
nem
interpretação,
se
não
considerarmos
o
difusor
sonoro
um
intérprete.
Mas
na
música
da
tradição
escrita,
tanto
histórica
como
do
nosso
tempo,
estes
quatro
factores
continuam
válidos.
Que
diferenças
encontramos
face
à
nova
situação
tecnológica
actual?
A
supremacia
quantitativa
indiscutível
dos
coleccionadores
de
discos,
a
presença
no
quotidiano
da
música
gravada
e
uma
série
de
consequências
derivadas
alteraram
os
hábitos
sociais
de
escuta.
Gostaria
no
entanto
de
referir
alguns
pontos
de
diferença
que
talvez
não
sejam
totalmente
evidentes.
Em
primeiro
lugar,
parto
de
um
exemplo
particular
para
chegar
ao
equívoco
que
interessa
interrogar
e
contestar.
Há
alguns
anos
um
escritor
e
filósofo,
ligado
ao
estudo
da
antiga
Grécia,
declarou
a
propósito
de
uma
das
Festas
da
Música
do
CCB
o
seguinte,
que
cito
de
memória:
"Porque
é
que
hei-‐de
ir
assistir
a
um
concerto
ao
CCB
se
tenho
em
casa
as
Variações
Golberg
pelo
Glenn
Gould?".
Deste
tipo
de
frase,
de
que
todos
já
teremos
ouvido
inúmeras
vezes,
julgo
poder
retirar
várias
conclusões.
A
música
é
uma
arte
viva,
performativa
e
a
partitura,
estando
disponível,
permite
à
obra
ter
a
possibilidade
de
eterno
devir
sempre
em
aberto.
Mesmo
no
caso
de
uma
gravação,
no
momento
em
que
é
ou
foi
feita,
independentemente
das
metodologias
de
gravação
empregues,
implicou
necessáriamente
que
a
obra
fosse
tocada
no
todo
ou
em
partes.
Ou
seja,
para
resumir,
uma
"interpretação
de
referência",
uma
expressão
típica
dos
críticos
de
discos,
por
genial
que
tenha
sido,
não
esgota
o
potencial
de
devir
futuro
que
está
contido
na
obra
musical.
Por
isso,
por
maior
que
seja
a
admiração
que
eu
próprio
tenho
pela
figura
de
Glenn
Gould
e
pelas
gravações
de
1980
(ou
de
1951)
em
questão,
julgo
que
se
verifica
uma
total
incompreensão
do
que
é
o
próprio
ser
no
tempo
na
música.
Quem
pode
garantir
que
depois
de
um
determinada
gravação,
considerada
"genial"
num
certo
espaço-‐tempo,
não
lhe
venha
a
suceder
uma
outra
nova
gravação
ou,
para
colocar
uma
hipótese
mais
radical,
que
um
determinado
grande
artista
ainda
não
nascido,
não
possa
vir
a
fazer
um
concerto
tão
ou
mais
genial
do
que
aquele
que
ficou
fixo
para
todo
o
sempre
no
objecto
CD?
Sendo
uma
captação,
uma
captura
de
um
momento
ou
de
uma
certa
concepção
de
como
gravar
uma
obra,
esse
facto
não
altera
em
nada
-‐
nada
-‐
o
carácter
de
eterno
devir
que
a
música
desta
tradição
possuiu.
A
partitura
é
uma
condição
de
possibilidade
para
que
a
música
possa
existir
e
mantém-‐se
sempre
em
aberto,
para
novas
interpretações
e
realizações.
Nenhuma
gravação
pode
fechar
esse
futuro.
Um
gravação,
por
melhor
que
seja,
nunca
deixará
de
ser
um
objecto
fixo,
imutável,
igual
a
si
mesmo,
nem
quando
se
trata
de
uma
gravação
de
um
concerto
ao
vivo.
Tornou-‐se
fixo.
Confundir
uma
qualquer
gravação
com
a
obra
é
um
erro.
É
tomar
um
objecto
certamente
digno
de
apreço
-‐
a
gravação
-‐
não
apenas
como
uma
realização
notável
da
obra,
como
o
seu
próprio
ser.
Aquilo
que
o
CD
de
Gould
pode
ser
é
apenas
ele
próprio.
É
um
objecto
fixo
para
todo
o
sempre.
Aquilo
que
as
Variações
Goldberg
de
Bach
podem
ser
continua
tão
aberto
para
o
devir,
para
o
futuro,
para
a
possibilidade
de
ser
outra
vez,
com
o
eram
antes
de
Gould
ou
Leonardt
a
terem
gravado.
Quem
não
perceber
isto,
lamento,
mas
não
sabe
o
que
é
a
música
ou
passou
a
tomar
o
seu
mundo
privado
de
colecccionador
requintado
-‐
tenho
igualmente
um
desses
mundos
em
casa
-‐
como
sendo
"o
fim
da
história"
daquela
peça.
A
9º
Sinfonia
de
Mahler
não
é
a
Ilíada
de
Homero,
a
minha
ópera
Outro
Fim,
não
é
Os
Lusíadas,
o
Vatek
de
Luís
de
Freitas
Branco
não
é
Os
Maias.
Todas
estas
obras
literárias
permitem
leituras
diversas,
certamente,
mas
o
seu
texto,
aberto
à
exegese,
fica
no
entanto
idêntico
ao
que
sempre
foi.
A
diferença
maior
é
que
a
música
só
se
torna
completa
enquanto
obra
de
arte
na
sua
realização
sonora
no
tempo
através
da
interpretação
de
músicos.
Deste
modo
as
leituras
de
obras
musicais
transformam
o
seu
próprio
ser-‐no-‐tempo,
criam
uma
realidade
nova,
um
momento
único
e
irrepetível.
Argumentar
que
não
se
vai
ouvir
música
porque
se
tem
em
casa
melhor
revela
a
mais
crassa
incompreensão
do
que
a
música
é
no
seu
pleno
sentido
ontológico
de
sempre
em
aberto.
Nem
nunca
é
o
mesmo
e
melhor
será
aquilo
que
logo
se
verá,
se
lá
se
for,
ver
e
ouvir.
Acresce
essa
visão
de
seres
humanos
em
performance
que
nenhuma
gravação
capta,
para
não
falar
da
enorme
diferença
entre
o
som
real
de
um
piano
ou
uma
orquestra
num
disco
e
o
som
real
de
um
piano
e
de
uma
orquestra
numa
sala
de
concertos.
Daí
que
muitas
vezes
pessoas
que
admiram
A
Sagração
da
Primavera
de
Stravinsky
e
a
julgam
conhecer
bem,
chegam
ao
primeiro
concerto
em
que
a
vão
ouvir
realmente
num
concerto
e
passados
alguns
minutos
poderem
dizer:
mas
isto
não
dá
mais
alto?
Pois
é.
É
que
nas
salas
de
concertos
não
existe
o
botão
de
volume
que
permite
em
casa
ouvir
o
Sacre
com
a
potência
sonora
dos
Iron
Maiden.