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4. 3) Aaramwe SariPaio Rudolf Steiner A ESSENCIA DA ANTROPOSOFIA Conferéncia proferida em Berlim no dia 03 de fevereiro de 1913 por ocasiao da primeira Assembléia Geral da Sociedade Antroposofica V ; Meus caros amigos tedsofos. Quando, em 1902, fundavamos a “Segao Alema da Sociedade Teosdfica”, nesta fundagtio estavam presentes, como certamente é do conhecimento da maioria dos amigos aqui presentes, a Sra. Annie Besant e também outras personalidades que jé ha mais tempo eram membros da Sociedade Teos6fica. Enquanto ocorriam as atividades relativas & constituigao e as conferéncias, tive que ausentar-me por pouco tempo para proferir unha conferéncia que fazia parte de um ciclo de conferéncias que na ocasiao — portanto ha mais de dez anos ~ tive que proferir diante de um circulo de pessoas que nfio pertenciam ao movimento teoséfico, e do qual a grande maioria também nfo chegou a afiliar-se 4 Sociedade Teos6fica. Portanto, além do que acontecia por ocasiio da fundag&o da Sociedade Teosdfica na Alemanha, justamente naqueles dias tive que proferir uma palestra, eu diria “a parte”, num circulo que em sua maioria permaneceu fora do movimento teosdfico. Como se tratava de uma espécie de inicio daquele ciclo de conferéncias, usei uma palavra para caracterizar o que eu pretenidia trazer durante aquele ciclo. De acordo com as circunstancias e com a configurac&o da vida atual, essa palavra parecia expressd-lo ainda melhor do que a palavra “Teosofia”. Enquanto fundévamos a Seo Alema, em minha conferéncia particular eu disse que gostaria de trazer algo que poderia, chamar-se “Antroposofia”. Isso'é-algo que me veio @ lemibranga neste. momento em que nds todos que aqui estamos reunidos prosseguimos separadamente ao lado do que se denomina ~ naturalmente com todo o direito — “Teosofia”, e nos vemos obrigados a escolher um novo nome para o nosso trabalho, inicialmente apenas como uma palavra exterior, mas que denomine precisamente o que queremos quando escolhemos justamente a palavra “Antroposofia”. Se nés, principalmente por meio da observagao espiritual, chegamos a conhecer algo sobre a conexo espiritual interior dos fatos, conex4o esta que muitas vezes contém uma necessidade mesmo que a observagdo exterior suponha apenas um “acaso”, entéo, sem construirmos alguma conexio ficticia, talvez , especialmente hoje, quando temos diante de nds a Sociedade Antropos6fica como movimento que se separa da Sociedade Teosdfica, possamos' voltar nosso seitimento para o caminko que-tive que percorrer naquela ocasiéo quando sai das atividades da fundagao da Segdo Alema para a minha conferéncia antroposéfica. Contudo nao ocorrerd nenhuma modificagao com relagao ao que desde aquela época constituiu o espirito do nosso trabalho. Este prosseguiré com o mesmo espirito, pois nfio esté ocorrendo uma alterago do assunto, apenas uma mudanga de nome que se faz necessaria. Mas talvez © nome sirva um pouco para a nossa causa, € o retomno ao sentimento de dez anos atrés possa chamar.a atengdo para o fato de que 0 novo.nome poderia realmente fazer parte de nés. O espirito do nosso trabalho permanecer4 o mesmo. Esse espirito de fato é 0 que, no fundo, devemos chamar de a esséncia da nossa causa. Ess¢ espirito do nosso trabalho também € 0 que ocupa nossas melhores forcas humanas na medida em que nos sentimos impelidos a pertencer a esse nosso movimento espiritual. Ele ocupa nossas. melhores forgas humanas porque a atualidade nfo tende com muita favilidade'a receber © que deve ser inserido na vida espiritual da humanidade em desenvolvimento — seja essa vida espiritual Teosofia ou Antroposofia. Podemos dizer “deve” porque aquele que.conhece-as-condiges: dessa: vida espiritual da humanidade em desenvolvimento, através do conhecimento dessas condigdes obtém uma idéia de quio nevessério € esse espirito teos6fico ou antroposéfico para a vida espiritual sadia. Mas podemos dizer que € dificil introduzir na indole da humanidade atual aquilo do que realmente se trata. E dificil e é compreensivel que seja dificil. Pois aqueles seres humanos que vém da vida moderna — uma vez que em todos os seus habitos relativos ao pensar estfio profundamente conectados com um modo mais materialista de ver as coisas ~ obviamente tém dificuldades de penetrar na maneira como os enigmas do universo séio. abordados pelo que podemos chamar de espirito teosdfico ow antroposdfico, Mas sempre ocorreu que a maioria dos seres humanos seguiu, num certo sentido, individuos que se tornam, de modo ‘muito especial, portadores da vida espiritual, E certo que podemos encontrar os mais diversos matizes dentre as cosmovisdes de hoje. Mas ha algo que certamente resultara da observagdo dessas cosmovis6es: que grande parte da humanidade moderna — também 1A onde néo o sabe ~ por um lado segue certas idéias produzidas pelo desenvolvimento cientifico dos ‘iltimos séculos, e por outro lado segue uma certa sedimentagao de conceitos filoséficos. De ambos os lados se é de opiniao de que naquilo que é trazido pelas ciéncias naturais ou, caso.a direpdo da crenga seja outra, pelo que é trazido por essa ou aquela diregao. filoséfica, esteja contido algo “seguro”, algo que parece alicergado sobre bases boas e sélidas — poderiamos chamar isso de orgulho, mas também poderia apresentar-se como outra coisa. Mas naquilo que prévém do espirito” antroposéfico ou. teosdfico’ facilmente encontramos algo relativamente inseguro, algo incerto, algo que nfo podemos * conferir. Neste caso € possfvel.passar pelas mais diversas experiéncias, por exemplo quando se profere uma conferéncia aqui ou acola sobre esse ou aquele tema. Suponhamos 0 caso mais favoravel — o que nem sempre é 0 caso - de que um docente com formagio..cientifica ou filoséfica estivesse entre os ouvintes. Deparamo-nos entio freqilentemente.com o fato de que, apds ter ouvido uma conferéncia dessas, ele faz um julgamento. Na maioria das vezes ele vai achar que esse julgamento é bem fundamentado, s6lido, e até um certo grau, dbvio. Em outros campos da vida espiritual nao é possivel que, depois de alguém ter ouvido uma conferéncia de uma hora sobre um assunto, ele ja se ache em condigdes de fazer um julgamento sobre o contetdo da conferéncia. Mas com relagdo ao que a Teosofia ou a Antroposofia tém a oferecer, as’ pessoas facilmente chegam a um julgamento que se afasta de todos os usos'e costumes: habituais. As pessoas'.sentem-se autorizadas ‘a esse julgamento sobretudo quando concluem num monélogo mantido ria’ alma: “Na verdade, voc’ é um. sujeito muito inteligente. Durante toda a vida vocé se empenhou em assimilar idéias filoséficas e cientificas, e por isso vocé esta habilitado a fazer um julgamento sobre essa ou aquela questo. E agora [nessa conferéncia] vocé ouviu 0 que aquele que éstava Id na frente sabe.” Agora esse ouvinte faz comparagées e chega conclustio (quem ¢ capaz de observar a vida sabe que isso € um fato que verificamos na vida da alma): “Na verdade é impressionante 0 que vocé sabe e 0 que esse ai nfo sabe!”. Sem hesitago, depois da conferéncia de. uma hora, ele faz um julgamento nao do que o conferencista sabe, mas muitas vezes de tudo aquilo que o conferencista ndo sabe, pois durante a conferéncia de uma hora ele nada ouviu a respeito, De outro modo inameras objegdes. cairiam por terra, se nfo houvesse essa formagao de juizo inconsciente., Visto abstratamente, teoricamente, poderia ser um disparate: dizer algo tao tolo —“tolo” nao'como julgamento, mas como fato. Contudo, sem que as pessoas 0 saibam, esse fato [0 de se dizer uma coisa dessas] acontece com freqiiéncia em relago ao que vem da Teosofia ou da Antroposofia. Nossa época ainda tem pouca inclinagdo para examinar realmente como o que se apresenta ao piblico como algo teoséfico ou antroposéfico — pelo menos na medida em que nos referimos ao assunto aqui — nada tem a temer diante de um exame exato e consciencioso por todo o cientismo atual mas, quando muito, pode temer uma ciénoia da qual, de fato; apenas um tergo é ciéncia ~ para nao dizer apenas um quarto, um oitavo, um décimo e talvez nem isso. Mas, para tanto, é preciso um tempo até que a humanidade aproveite © ensejo para julgar aquilo que € tao abrangente quanto o préprio univetso realmente baseada no conhecimento que’pode ser conseguido exteriormente no plano fisico. Com o decorrer do tempo ver-se-a: quanto mais se examinar com todos os meios da ciéncia, e com cada uma das ciéncias, tanto mais a verdadeira Teosofia, a verdadeira Antroposofia encontraré a sua inteira confirmagao. Do mesmo modo, o fato de a Antroposofia querer entrar no mundo agora — nao por motivos arbitrarios, mas pela necessidade da prépria consciéncia histérica - também encontraré sua confirmagao. Aquele que quiser servir ao desenvolvimento gradual da humanidade, devera buscar nas fontes das quais jorra a propria vida da humanidade em desenvolvimento aquilo que quer doar. Ele ndo pode seguir um ideal estabelecido arbitrariamente, que ele segue porque lhe agrada; porém, em sua épova ele deve seguir aquilo de que pode dizer: “Isso pertence justamente a esta época.” A esséncia da: Antroposofid esté intimamente ligada a esséncia dos nossos tempos; naturalmente néo apenas com 0 nosso pequeno presente imediato, mas com toda a época na qual nos encontramos, Na verdade, as préximas quatro conferéncias — e todas as conferéncias que deverei proferir nos proximos dias — trataréo da esséncia da Antroposofia. Tudo que. deverei falar sobre a. esséncia_dos Mistérios orientais e ocidentais sera um aperfeigoamento da esséncia da Antroposofia. Nesse momento, eu gostaria de me referir a esta esséncia para caracterizé-la, falando da necessidade por meio da qual.a Antroposofia deve inserir-se na atualidade. Mas novamente nao quero partir de definigdes ou abstragdes, mas de fatos e, pata comesar, de um fato muito especial. Quero partir-de um poema, um poema que uma vez (gostaria de comegar dizendo “uma vez”) foi concebido por um poeta. Vou ler ‘uma parte desse poema; inicialmente sé alguns trechos, para depois poder ressaltar 0 que importa. Nos recénditos do coragéo, 0 Deus do Amor Fala-me suavemente de coisas maravilhosas Com palavras profundas, saudosas. Que Jevam os pensamentos a se confundir; Tudo 0 que fala € tao lisonjeiro. E como ouvindo eu mesmo me engano, Procuro repetir 0 que ougo. ‘ao esforgo! Nao consigo. Depois de o poeta ter dito mais alguma coisa sobre a dificuldade de expressar 0 que o deus do amor lhe diz, ele deScteve 0. ser amado com as seguintes palavras: G Ao contemplé-la, uma respirago paradistaca Parece alentar-me suavemente; O proprio amor the concede este sorriso, E 0 que seus olhos dizem nio é inverdade. Ao que parece ~ alias, é bem evidente — um poeta escreveu isso em forma de poema de amor. E, sem divida, se esse poema fosse publicado hoje sem’ mengiio do nome do autor — pois também poderia ser um poema de um poeta contemporaneo — , dirfamos: “Que belos versos ele encontrou para descrever de modo tio maravilhoso a sua bem-amada”, pois de fato a bem-amada poderia parabenizar-se por ter sido agraciada com as palavras: ‘Ao contemplé-la, uma respiragdo paradisiaca Parece alentar-mé suavemente; O proprio amor Ihe concede este sorriso, E o que seus olhos dizem nfo ¢ inverdade. Esse poema nio foi escrito em nossa época, e se aparecesse algum critico, ele talvez diria: “Que sentimento profundo! Uma relagdo amorosa imediata, concreta! Finalmente uma pessoa que sabe escrever quando vai buscar as idéias nas profundezas de sua alma. Como esse poeta consegue dizer algo que nao contém nenhuma abstragiio, onde uma opinido imediata, concreta sobre 0 ente querido chega até nés com toda a evidéncia.” Talvez fosse isto que um critico modemo diria. Mas 0 poema nfo surgiu nos nossos dias: esse poema foi escrito por Dante. Nesse caso um critico modemo, ao-se deparar com o poema talvez dissesse: “Dante provavelmente escreveu este poema quando ainda estava tocado por profunda paixfo por Beatriz, e temos ai mais uma vez a expresstio de como uma grande personalidade:se coloca na vida a partir de um sentimento imediato, longe de‘ todos os conceitos e idéias.” Talvez até pudéssemos encontrar um critico de hoje que dissesse: “As pessoas deveriam aprender com Dante como é possivel elevar-se as mais altas esferas celestes — como na “Divina Comédia” — e como, apesar disso, se pode sentir uina relagdo tio viva e imediata de ser humano para ser humano.” Mas é uma pena que 0 proprio Dante. tenha dado a explicagdo desse poema, e tenha dito expressamente quem é a entidade feminina a respeito da qual ele escreve as elas palavras: Ao contemplé-la, uma respiragdo paradisiaca Parece-alentar-me suavemente; O préprio amor lie concede este sorriso, E 0 que seus olhos dizem nao é inverdade. O préprio Dante nos disse ~ e creio que nenhum critico moderno podera negar que Dante sabia 0 que queria dizer ~ que a “amada” com a qual estava imediata e pessoalmente ligado nfio era outra dama senfo a Filosofia. E o proprio Dante disse, que quando fala que o que os olhos dizem nao é ilusao, que com “olhos” ele estava se referindo 4 demonstragao da verdade, com “sorriso” a arte de apresentar o que a verdade transmite a alma, e com “amor” estava se referindo ao estudo cientifico, ao amor pela verdade. Ele diz expressamente: Quando Ihe foi amebatada a amada pessoal, Beatriz, e ele sentiu a falta de uma relago pessoal, aproximou-se de sua alma, compassiva e mais humana do que tudo o mais que é humano, a mulher “Filosofja”. Assim, ‘ao falar da mulher Filosofia, ele-péde aplicar justamente essas palavras sentindo-as nas profundezas de sua alma, de modo que apresenta como olhos as demonstragdes da verdade, como sorriso 0 que a verdade transniite.a alma, e como amor 0 estudo cientifico, podendo entAo dizer: Ao contempla-la, uma respiragdo paradisiaca Parece alentar-me suavemente; O proprio amor lhe concede este sorriso, E 0 que seus olhos dizem nfo é inverdade. Hi uma coisa que hoje em dia nao é possivel sem mais nem menos. Néo é possivel que um poeta. moderno, com toda a franqueza e verdade, simplesmente se dirjja 4 Filosofia com estas palavras~humanas tao espont&neas. Pois se o fizesse, logo apareceria um oritico que o pegaria pelo colarinho e diria: “Vocé traz alegorias rigidas”. Até Goethe teve que suporiar que certos circulos levaram a mal suas alegorias na ségunda parte do “Fausto”. As pessoas que nao sabem como mudam os tempos nos quais nos inserimos com nossas almas sémpre ‘com nova vida, ndo tém idéia que Dante foi um daqueles seres humanos: que ainda podia sentir uma ligago animica to concreta, apaixonada, pessoal e-imediata com a dama Filosofia como o homem moderno ‘sé pode sentir por uma mulher de came e osso. Nesse sentido, a época de Dante ja passou. Pois assim como Dante se aproximava da dama Filosofia, a alma moderna no se aproxima mais dessa mulher Filosofia como se fossé tm ser igual a eld, um ser carnal, Ou seré que em algum lugar ainda estaria sendo expressa honestamente a verdade — salvo certas excegdes ~ » Se hoje alguém dissesse expressamente que a Filosofia seria algo que anda por af,como um ser carnal cori ¢ qual poderiamos nos relacioriar de modo que a expresso para isso realmente nao se diferenciasse das palavras de amor intimas que usamos diante de um ser carnal? Quem se aprofundar na relagao. de Dante com a Filosofia saberA que essa relagéio era téo concreta como a humanidade de hoje so consegue imaginar uma relagdo entre um homem e uma mulher. Na época de Dante’a Filosofia aparece como uma entidade da qual ele diz que a ama. Se colhermos algumas informagSes, vamos encontrar a palavra “Filosofia”, que surge na vida espiritual grega, mas ndo encontraremos nessa vida espiritual o que hoje chamamos de definigdes ou caracterizagées da Filosofia. Quando os gregos caracterizam algo, eles apresentam a “Sofia”, nao a “Filosofia”, e eles a apresentam da forma como também a sentem: como um ser diretamente vivo, tao vivo como Dante sente.a‘“Filosofia” como ser vivo. Sim, nés sentimos essa “Sofia”, essa Sofia grega como um ser diretamente vivo, téo vivo como Dante sente a Filosofia como um ser vivo. Mas nés a sentimos por toda a ‘parte — pego que passem pelas caracterizagdes que encontrarem a respeito — de modo a senti-la, por assim dizer, como uma forga elementar, como um ser atuante, como um ser que interfere atuando na existéncia, Depois, mais ou menos a partir do séc. V apés a fundago do cristianismo, deparamo-nos com o fato de que se comega-a apresentar a “Filosofia” — inicialmente descrita por poetas ~ com o$ mais diversos envoltérios: como ama, como benfeitora; como guia e outros. Um pouco mais tarde também comega a representagéo pelos pintores. Depois podemos prosseguir até 0 periodo da escoléstica, oude de fato alguns filésofos da Idade Média tinham a impressdo de uma relagao humana imediata ao sentirem a bela e sublime senhora Filosofia aproximando-se deles sobre nuvens. E muitos fildsofos da Idade Média teriam podido enviar.os mesmos sentimentos profundamente fervorosos e intimos a senhora Filosofia que. flutuaya na diregao deles; sentimentos como os de Dante, Quem consegue sentir essas coisas chega mesmo a encontrar uma relagdo direta da Madona Sixtina, que paira nas nuvens, com a sublime dama Filosofia. Muitas vezes mencionei que em épocas remotas do desenvolvimento da humanidade as condigdes espirituais do universo ainda eram perceptiveis & capacidade cognitiva humana normal. Procurei descrever como, por assim dizer, existia uma clarividéncia antiquissima, como, em tempos remotos, todos os seres humanos normalmente desenvolvidos conseguiam ver o mundo espiritual devido as . circunst4ncias _naturais. .O desenvolvimento da humanidade foi perdendo lenta e gradualmente essa clarividéncia original e surgiram as circunstdncias cognitivas atuais — lenta e gradualmente. O estado no qual vivemos hoje, que, por assim dizer, representa’ um profundo “ envolvimento provisério com a maneira material de perceber, chegou lenta e gradualmente. Um espirito como o de Dante ainda tinha a possibilidade de vivenciar realmente, de maneira natural, os tltimos resquicios de uma relagao imediata com os mundos espirituais — também podemos deduzir isso da sua forma de apresentar a “Divina Comédia”. E uma folice querer pretender que 0 homem modemo pudesse acreditar que ele, como Dante, pudesse apaixonar-se primeiramente por Beatriz e depois envolver-se com a Filosofia como um segundo amor, ¢ que ambas — Beatriz em carne e osso, ¢ a Filosofia — fossem seres da. mesma espécie. Ora, eu ouvi dizer que se falou que Kant uma vez esteve apaixonado e que alguém ficou com citime porque ele amava a “Metafisica” ¢ perguntou: “Que Meta?” Mas certamente é muito dificil desenvolver tanta compreensio na vida espiritual moderna a ponto de sentir como igualmente reais a Beatriz de Dante e a Filosofia. Por que? Justamente porque a relacao imediata da:alma do homem com o mundo espiritual passou gradualmente para o nosso estado atual. Aqueles que me ouvem ‘com freqiiéncia sabem o quanto valorizei a Filosofia lo séc. XIX. Mas nem quero falar da possibilidade de que. alguém-pudesse- verter seus sentimentos sobre a “Logica? de Hegel nas palavras: Ao contemplé-la, uma respiragdo paradistaca Parece alentar-me suavemente; O prdprio amor concede-lhe este sorriso, Eo que seus olhios dizem nao ¢ inverdade. Acho que isso seria dificil com a “Légica” de Hegel. Seria dificil até - se ‘bem que um pouco mais possivel — no caso da maneira espiriosa como Schopenhauer observa o mundo. Com certeza mais possivel, mas também nesse caso ainda seria dificil ter alguma idéia concreta, alguma sensagao concreta no sentido. de’a Filosofia acercar-se do ser humano como um ser tao concreto como-aquele do qual fala-Danté. Os tempos sao outros. Para Dante, a vida dentro do elemento filoséfico, a vida dentro do mundo espiritual era uma telag&io pessoal imediata, tao pessoal quanto qualquer outra relago que se refere a algo que hoje denominamos real, materialmente real. To estranho quanto possa parecer — pois o século de Dante nfo est4 tao distante de nés -, é verdade que para quem é capaz de observar a vida espiritual da humanidade, ¢ dbvio que diga: Hoje os seres humanos procuram conhecer o mundo, mas se nesse caso pressupuserem que tudo o que o homem é manteve-se igual no“decérrer do tempo entfo, no fundo, eles tém uma visaio que néo vai muito além dos seus narizes. Pois ja na época de Dante toda a vida, toda a relagao da alma humana com 0 mundo espiritual era diferente da de hoje. E se hoje algum filésofo julgar, segundo a relag&io que ele pode ter com o mundo espiritual a partir da filosofia de Hegel ou de Schopenhauer, que esta € a unica ligacao (possivel), isso nao significa outra coisa sendo 0 quao ignorante ele é na realidade, ‘Vejamos como pudemos descrever que na transigao da cultura greco-latina para a nossa quinta época, aquilo que da entidade global do ser humano ~denominamos, a alma do intelecto ou da indole - que foi formada especialmente na época greco-latina — desenvolveu-se em diregao da alma da -10- consciéncia enquanto nosso desenvolvimento entrava na atualidade. Como deve configurar-se essa transigéo da época greco-latina para a nossa época moderna — ou seja, da época da alma da razdo para a época da alma da consciéncia ~ em se tratando concretamente da Filosofia? Ela deve configurar- se de modo a captarmos nitidamente que durante o desenvolvimento da alma da razio ou da indole, o ser humano evidentemente ainda esté diante dos seres espirituais relacionados com a sua origem, de modo que ha uma certa linha diviséria entre ele ¢ esse seres espirituais. Assim, 0 grego estava diante da sua Sofia, da sabedoria em si, como diante de um ser que, por assim dizer, estava l4, e ele estava em frente dele: dois seres; a Sofia em pé diante do grego como uma entidade bem objetiva para a qual ele ola, olha com toda a objetividade do olhar grego. Mas como ainda vivia na alma do intelecto ou da indole, ele nfo tinha nenhum motivo para expressar a relago pessoal imediata de sua consciéncia ‘com essa entidade objetiva. E isso tinha que acontecer enquanto a transigo para uma nova época, a época da alma da conscigncia estava sendo gradativamente preparada. Como é que a “Sofia” se confrontard com a alma da consciéncia? Ela o fara levando o Eu para uma relagao imediata com a Sofia, e expressando a relagdo do Eu, a relagdo da alma da consciéncia com essa Sofia. “Eu amo a Sofia” — essa era a sensagdo natural da época que ainda podia defrontar-se [diretamente] com‘a entidade designada “Filosofia”. A época que preparava a alma da consciéncia tinha que procurar conseguir apresentar também a “Sofia” da mesma maneira como apresentava todas as outras coisas. No antigo periodo grego, na época da alma do intelecto ou da indole, era natural expressar-se desse modo sobre a relag&o [da alma] com a Filosofia. Mas também vemos essa relagdo do ser humano com a Filosofia desenvolver-se até certa altura, quando temos diante de nds determinadas representagdes pictoricas antigas que mostram a Filosofia - mesmo que sob outro nome - aproximando-se pairando nas nuvens, mostrando um olhar benevolente. Realmente, a relagio do ser humano com a Filosofia na época em que esta atingiu diretamente toda a vida espiritual do desenvolvimento da humanidade que progredia, partiu de uma relagdo bem bumana e pessoal, como a relag’io do homem com ‘uma mulher; Se.os senhores derem a devida importancia 4 palavra e procurarem um pouco entre as palavras, poderiamos dizer que a relagdo esfriou; ela realmente esfriou, chegando as vezes a congelar. Pois hoje, ao termos em mos certas. obras filoséficas, realmente poderemos. dizer que a relagdo, que foi torrida na época em que as pessoas se posicionavam diante da Filosofia como diante de um ser, passou a ser bastante fria. A Filosofia nao é mais a mulher que foi para Dante e para inimeros outros que viveram na época dele. Hoje poderiamos dizer sobre a Filosofia que justamente na figura sob a qual “ue ela se nos apresenta no séc. XIX, no auge do seu desenvolvimento, como Filosofia de Idéias, como Filosofia de Conceitos, como Filosofia dos Objetos, justamente nessa imagem ela nos mostra que perdeu o papel que desempenhava na histéria espiritual da humanidade. E profundamente simbélico quando pegamos a Filosofia. de Hegel, especialmente a “Enciclopédia das Ciéncias: Filosdficas,.’.¢ nésse livro do séc. XIX vamos encontrar registrado em tltimo lugar como a propria Filosofia se’entende. Ela entendeu tudo, finalmente ela entendeja si mesma. O que mais ela deve entender depois. disso? Essq-.é-a expresstiosimbélica para o fato de que a Filosofia esta no seu final! Esse pensamento foi registrado por uth pensador radical, Richard Wahle, em seu livro “O Todo da Filosofia ¢ 0 seu Final”, que de modo muito espirituoso expés como tudo o que a Filosofia realizou pode ser distribuido por diversas areas individuais, a Fisiologia, a Biologia, a Estética,“e assim por diante, e como na.verdade nfo sobra mais nada da Filosofia. £ certo que livros dessa espécie ultrapassam 0 limite, mas contém a profunda verdade de que certas correntes espirituais tém seu tempo, sua época que, assim como o dia comum tem a sua manh4 e o seu anoitecer, elas também tém sua aurora ¢ seu entardecer na historia do desenvolvimento da humanidade. Sabemos que hoje estamos na época em que est se preparando o si-mesmo espiritual; € verdade’ que ainda estamos _profundamente dentro do desenvolvimento da’ alma da consciéncia, mas o desenvolvimento do si- mesmo espiritual j4 vem sendo preparado. Nés estamos hoje na época da alma da consciéncia, e olhamos para os preparativos da época do si-mesmo espiritual de modo muito semelhante ao grego que estava na época da alma do intelecto ou da indole, e olhava para a alma da consciéncia emergente. E assim como naquela época os gregos fundamentaram a Filosofia — que na verdade s6 veio a existir na Grécia, apesar de Deussen e outros — durante 0 desabrochar da alma do intelecto ou da indole, onde eles ainda se encontravam diretamente sob.a reminiscéncia da Sofia objetiva; como depois a Filosofia se desenvolveu de modo que Dante ainda podia colocar-se diante dessa Filosofia como uma entidade real, concreta, que Ihe trazia consolo depois de Beatriz lhe ter sidd arrancada pela morte; assim encontramo-nos hoje bem no meio da época da alma da consciéncia, olhamos para o nascer da época do si-mesmo espiritual sabemos que novamente se.separa do-ser humano-algo que ele conquistou pela passagem pela época da alma da.consciéncia e que leva como fruto para a proxima época, Oqueé gue deve desenvolver-se? O que deve se desenvolver € que uma nova“Sofia” esteja obviamente presente, mas 0 homem deve relacionar essa Sofia com sua alma da consciéneia, deve trazé-la-diretamente para.o ser humano. Isso ocorre durante a época da alma da consciéncia. Por isso essa Sofia veio a ser a entidade que explica o homem. Depois de ter ingressado na entidade do ser humano, ela deve levar consigo a entidade do homem com o qual esta tao intimamente ligada que lhe péde ser dedicado um poema de amor t4o belo como é o de Dante..Ela se desprendera novamente, mas levaré o que é © set Humano. Bla se apresentara objetivamente ~ agora’ no -apenas’como “Sofia,” mas como “Antroposofia”, como aquela Sofia que, depois de ter passadg pela alma humana, acolheu essa esséncia do homem ¢ daqui para a frente a leva em si e se coloca diante do homem consciente como antigamente a Sofia, esse ser objetivo que viveu com os gregos. Este € 0 progrgsso na historia do desenvolvimento da humanidade, o progresso relativo aos assuntos espirituais aqui abordados. Deixo a critério de todos aqueles que quiserem analisé-lo exatamente, de novamente comprovar detalhadamente, a partir do destino da “Sofia”, da “Filosofia”, da “Antroposofia,” como a humanidade se desenvolve para a frente por meio dos membros da alma que denominamos alma do intelecto ou da indole, alma da consciéncia, ¢ si-mesmo espiritual. Os seres humanos aprender. quao profundamente esta fundamentado na entidade total do ser humano o que. apresentamos através da nossa Antroposofia, O que_assimilamos pela Antroposofia é a nossa_piopria. idddo seu ser, colocd-la-A diante de si como resultado do verdadeiro auto-conhecimento dentro da Antroposofia. Podemos esperar calmamente até que o-mundo queira comprovar qudo profundamente esté fundamentado, até os minimos detalhes, aquilo que tios cabe dizer. Pois 2 _esséncia do sé “na Teosofia owna Antroposofia o que ele mesmo 6, & tem. que coloca-lo diante de si por ter que exercitar 0 auto-conhecimento. iva. ESSA ele pora para fora de si saveente ~ -13-

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