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ASPECTOS DO SISTEMA DE MARCAGAO DE CASO DA LINGUA SUYA Ludoviko dos Santos UEL © Suyé, cujos falantes se auto-denominam Kisédjé, & uma lingua da familia Je falada por cerca de 300 individuos que vivem em duas aldeias localizadas no Parque Indigena do Xingu, Mato Grosso, Brasil. Essa lingua apresenta um sistema de marcagao de caso cindido. Ha uma primeira cisio mais abrangente, condicionada pela natureza semantica da LN (locugao nominal): as oraces simples com S (sujeito de verbo intransitive) ou A (ujeito de verbo transitive) nominais tém um padrio de marcacio de caso diferente do que ocorre fem oragoes com Se A pronominais. Nestas tltimas, por sua vez, ha uma outra cisio condicionada pelas categorias de empolaspecto e negacio. 1. Vnsos De Fora Lonca (FA) Versos be Fora Cura (FB) E necessario, antes de discorrermos sobre o sistema pronominal, apresentar brevemente © condicionamento que determina a ocorréncia do verbo em sua forma curta ou longa porque este fendmeno esta diretamente relacionado ao sistema de caso que se apresenta nas oragdes com sujeito pronominal. © Suyé apresenta uma variago morfofonol6gica de verbos condicionada, na maioria da veres, pela negacio, pelo aspecto progressivo e pelo aspecto futuro. Os exemplos seguintes ilustram tal distribuicao. ‘Signune Estad. Ling, Londtina, n. 7, 231-242, out, 99 BI 1. mendije ra -ngre mulheres ms dangar “As mulheres dancaram” 2. me'ndije ra -ngere “kere mulheres ms dangar neg “As mulheres néo dangaram” 3.-pa \n wa vtep ku Ips top. Ips peixe comer “Eu que comi peixe” 4cpa \n wa tep kum 19 “gt Ips top Ips peixe comer part v. pos. “Bu que estou comendo peixe” S. udu ra ctep ckura ma 1. prop. ms peixe comer fut “Ludo comer peixe” Em 1 temos uma oracdo neutra, sem marcas de tempo! aspecto, que indica sempre um fato passado. Em 2, condicionado pela negacio, o verbo “qgre “dancar” assume sua forma longa “ngere. O verbo “ku “comer” (cf. 3), condicionado pelo progressive (cf. 4) manifestado pela construgio particula + verbo posicional, toma sua forma longa: “kuru, Este mesmo verbo ocorre na forma longa, condicionado pela particula que expressa o futuro, no dado 5. 2.0 Sistema PRoNoMinat, Distinguem-se quatro séries de elementos pronominais em Suya: série I, Il, Ill e IV. De modo geral, todas incluem as seguintes distingdes de pessoa: 1 (falante), 2 (ouvinte), 1+2 (falante e ouvinte) e 3 (nao falante e nao ouvinte). As séries II Bm ‘Signum Esto Ling, Londra, n-2, 31-240, out. 99 ¢ IV tém formas distintas para o singular e o plural. As séries Te III incluem formas paucais. Os quadros a seguir retinem os pronomes das quatro séries. sésiet see Thala [Pasa | Phaad] [Singular [Paveat [Pal TP wa | way Lappe] ry a | hay Layla] [2 aye Teo] te [eave | [ eo = ae [ayia = 3 see Sigutar [Pavel [Pra] [Singular Pascal [ Poa Te [oes [age or 2 [tare [rey a aka Tez] ware [Roe [ ware 77 3 [howe | hore] [aa Jaya, Faye; sniva * Os pronomes da SI sio usados para assinalar o sujeito de verbos intransitivos ativos e transitivos em construcoes fem que estes aparecem na forma curta (a forma longa do verbo corre em oragdes negativas, no futuro e no progressivo; a forma curta nao ocorre nesses contextos). Esta série inclui formas para o singular, 0 paucal e o plural. Ha duas formas para a primeira pessoa do singular (ps): wa / pa. A segunda ocorre como elemento topicalizado em construgdes enfaticas e isoladamente, em resposta a perguntas do tipo: “Quem dangow”, cuja resposta deve ser "pa (cu) ¢ nao ‘wa (cu). A segunda pessoa do singular (2ps) realiza-se por ‘ka, A forma ‘ku, considerada também singular, referese a1 + 2. A terceira pessoa do singular realiza-se por zero, Ocorre ainda 0 pronome de terceira pessoa ‘ta, porém, ‘Signum Esto, Ling Londeina, a. 2, 231-242, out. 99 Bs raramente, tendo sido registrado somente na funcdo de sujeito. AAs primeira e segunda pessoas tém formas que interpretamos como paucais (pc). Os pronomes "wa ¢ ‘ka sio acrescidos do sufixo ay, que por assimilagdo total da vogal resulta nas formas “way (wa + -ay), primeira pessoa do paucal e “kay (ka + ay), segunda pessoa paucal, que nao estéo condicionadas pela forma do verbo. O elemento 1+2 nao tem uma forma que corresponda, exclusivamente, ao paucal. Hé, no entanto, 0 pronome kurpa “inclusivo” que ocorre referindo-se a duas, quatro, oito ou muitas pessoas. A terceira pessoa nao singular € realizada por ay- (ay- + 0), ou ay'ta. Pronomes de terceira pessoa nao apresentam oposicao entre paucal e plural. As formas do plural sto: ay'pa “primeira pessoa do plural exclusiva”; ay'ka “segunda pessoa do plural”; kurpa ou ‘wa, ambas, aparentemente, “primeira pessoa do plural inclusiva”; ay'ta “cerceira pessoa do plural. Com excecéo das primeiras pessoas do plural inclusivas, as outras sdo formadas pelo acréscimo de prefixo de plural as pessoas do singular, [prefixo de plural + pronomel. Os pronomes da SII ocorrem (i) como objeto de verbos transitivos em forma longa (FA), ou curta (FB); (il) como sujeito de verbos intransitivos atives em FA (em concordancia) e de intransitivos estativos. Esses pronomes sio também usados para codificar o possuidor junto a nomes € 0 objeto de posposigdes. Hé formas para o singular e 0 nao singular. O pronome da série SII marca a_concordancia com sujeito expresso por pronome da SI fora do verbo. As formas do plural resultam da prefixacao da marca de plural ay- as formas do singular, com excecio da 1.* pessoa inclusiva: ay + i > adgi: ay +> aya; ay +0>ay. Os pronomes da SIII incluem distintas formas para singular e nao singular, com uma forma paucal somente para a I* pessoa. Estes pronomes sio formados pelo acréscimo do morfema re a formas da SII e da SI, com formas especificas, kore, ‘kot para a 3.* pessoa. As formas nao singulares resultam Be ‘Signum: Estud. Ling, Londrina 0.2, 231-242, out. 99 da sufixacdo de -ay “plural”, as formas correspondences do singular: ire + ay > itey; kare + ay > kay. Os pronomes da SIII sao usados, basicamente, para codificar 0 sujeito de verbos transitivos em construgao com a FA. Também nestas construgées 0s pronomes da SIlI aparecem em contexto de futuro, progressivo e negagao. Nao consideramos 0 formativo re como um elemento separado porque o mesmo no foi registrado com nomes em oragoes simples da lingua. Os pronomes da série IV distinguem-se dos demais porque participam em construgées enfaticas como elemento topicalizado e ocorrem isoladamente. Como tratado anteriormente, os pronomes da SI cocortem com verbos de FB, em oragdes ndo negativas, no marcadas para futuro ou para o progressivo, assinalando S, no caso de verbo intransitivo, ¢ A, no caso de verbos transitivos. O objeto € sempre expresso por nominal ou por pronome da SII. Vejamos os exemplos: 6.wa -ygre Ips dancar “Eu dancei” Twa mitfi pi Ips jacaré—-matar “Eu matei_ —_jacaré" 8-ka i mi 2ps Ips ver “Voce me viu" 9.pa-n wa a mi Ips top Ips 2ps_ ver “Bu vi voce” ud. Ling., Londrina,n.2, 231-242, out. 99 Bs A comparacao de 6 e 7 demonstra que Se A sio tratados da mesma forma e, na funcio de objeto, a 1.* e 2.* pessoas assumem uma forma diferente (um pronome da SII) exemplificada nos dados 8 e 9. Assim, os pronomes da SI ‘ocorrem como formas nominativas, e os da SIl como formas acusativas, isto é, pronomes da SI ¢ os da SII configuram um sistema nominativo-acusativo cujo condicionamento esti restrito a oragoes nao futuras, nao progressivas € no negativas. Viu-se que verbos intransitivos em FA ocorrem em coracdes no futuro, no progressive e na forma negativa, e tém © sujeito marcado por pronome da SII. Sob 0 mesmo condicionamento oracées transitivas com verbos em FA marcam a funcéo A com elemento pronominal da SIIl, que inclui 0 formativo rE, e marcam a funga0 de O com nominal ou pronome da SIL. 10. i+ ngere ma Ips dangar fue “Eu dangarei” Ia ngere ‘kere 2ps dangar_negagao “Vocé nao dangou” IQ ire a kaken kere Ips 2ps covar _negagdo “Eu no cocei voce” 13. kate i- kaken ‘kere 2ps Ips cogar —_negacéo “Vocé nao me cocou” Os pronomes da SIII somente sao usados para assinalar A, ou seja, sto formas ergativas contrapondo-se as formas absolutivas da SII, usadas nessas construcoes para marcar tanto Be ‘Signin Estod, Ling,, Londkina,n.2, 231-242, out. 99 S quanto ©. Tem-se, portanto, em oragdes no futuro, no progressivo ¢ no negative um padrio de marcagao de caso ergativo-absolutivo. 14i- cygere ma Ips dancar fut “Eu nao dangarei” 15.a- -pgere ‘kere 2ps dangar — negacao “Vocé no dangou” 16.ka te ie kaken ‘kere 2ps erg Ips arranhar _negacio “Vocé no me arranhou” Iie re a kaken ‘kere Ips erg 2ps arranhar negagio “Eu nao arranhei voce” Note-se que se estas oracdes nao estiverem condicionadas por tempolaspecto elow negacao, as formas pronominais em funcio S devem ser aguelas da SI (ef: dado 11), € nao os da SII como acima ilustrado. Ainda, comparem- se os dados 10 ¢ 13, 11 e 12 que demonstram que S e O esto sendo tratados do mesmo modo, 0 que caracteriza o sistema ergativo-absolutivo que envolve os pronomes da SII. Correndo 0 risco de sermos redundantes, note-se que no sistema nominativo-acusativo ha o envolvimento de pronomes da SI ¢ da SII. Os da SI, ocorrem no nominativo; 6s da SI] ocorrem como acusativo. Os pronomes da SII, com © formativo re, marcam o ergativo, a0 passo que o absolutivo € marcado por pronomes da SII. Ou seja, os pronomes da SIL participam de dois subsistemas: no sistema ergativorabsolutivo ‘como formas absolutivas, e no sistema nominativo-acusativo, ‘Signum: Exead, Ling, Londrina, n.2, 231-242, out. 99 Bi como formas acusativas. H4 um imbricamento entre os pronomes das trés séries. Tentamos demonstrat tal sistema, resumidamente, através do quadro que segue: ‘Série 1: formas nominativas ce a 2 ta [ tay [ayn sistema [Te2[ ku] kup ou Nowmarivo [3] a] Faye, | ayta Netsanve on See Forma aevnivas Tow ahsolaivas T [ads ai aya aa Tea wa wae 7D ° sisreMA See: forma egaivas rroaTivo | TL [iy [aig we] ansourvo 7 [awe ia rey 12 | waste wary 3 [Rove | Konvey | konvay 3. As Oragoes SiMPLes As oracées simples marcam o sujeito em funcao S ou ‘A por particula que se liga a locucao formada por nominal. objeto, quando se manifesta por pronome, é da SII e pode também ser um nominal ndo marcado. Tal sistema nao esté condicionado por tempo/aspecto ou pela negacdo. Vejam-se 0 exemplos: 18.rotfi ra miitfi pi sucuri ms jacaré—-matar “A sucuri matou o jacaré” Be ‘Sigoumm Esto. Ling, Lond, n- 2, 291-242, out, 99 19. kaya ra akndo cobra ms fugir “A cobra fugiu” 20. roti ra mibtfi piri “kere sucuri ms jacaré- matar neg “A sucuri no matou o jacaré” 21-mé ra ngere mal pessoal _ms dangar fut 0 pessoal vai dancar” Em 18 e 19, Ae S estdo marcados pela mesma parttcula, Estes dois dados, comparados a 20 e 21, demonstram que 0 condicionamento que ocorre para o sistema de pronomes nao condiciona as oragées simples com sujeito constituido por nominal. Nem sempre a locugao nominal em funcao A ou S ocorre com a particula. No entanto, quando esta nfo ocorre, a particula de topico ocupa seu lugar e acumula as fungdes de topico e marca de sujeito. Confiram-se os dados abaixo. 22. karwpi ra "qga ma + n. prop ms C. H. posp ir “Karupi foi a Casa dos Homens” 23. karwpi -n -qgh matt n. prop top C.H. posp ir ““Karupi foi para a Casa dos Homens” 24.twre -n churu mate pai top roca posp ir “O pai foi para a roca” ‘Signum: Estad. Ling,, Londtina,n. 2, 231-242, out. 99 29 25.-huru mi -n ture ra te roca posp top pai ms ir “Foi o pai que foi para a roca” Em 23 e 24, a particula que marca S ou A esta substituida pela particula de t6pico, acumulando estas duas funcoes. Em 25, entretanto, quando o elemento topicalizado € a locucio posposicional, a particula de sujeito torna a ocorrer fem sua posicdo candnica, apos 0 sujeito. Hi, ainda, a possibilidade, embora nao freqaente, da no ocorréncia das particulas que marcam sujeito € t6pico, se nao houver possibilidades de ambighidade de interpretacao do sujeito e objeto da oragao. 26.liana—kafe pe Hhwere rn proprio café “rel fazer “Liana fez café (cesposta a: quem fer café!)” Nao parece haver, no dado acima, possibilidade de ambigiidade de interpretacao da oracao porque i) os argumentos estio em sua ordem estrutural comum ¢; ii) 0 relacional ' estabelece o vinculo entre o objeto ¢ 0 verbo. Em oracoes com verbos descritivos, a mesma particula marca 0 sujeito So. Meme sn ra omberi pessoal doente ms bem “O pessoal doente sarou” "Ha varios elementos relacionats que estabelecem um vinculo entreo verbo e seu objeto, Orelacional,naoracio 26, ocore come | porque o objeto ests contiguo ao verbo. Quando o objeto nao est contiquo a0 verbo, o elemento relacional ¢ J, como como pode se observado nos exemplos eguintes: Pe ee ‘agora top Ips fecha tel fazer fecha top Ip eel fer "Bu i lech aca" “Fo lecha que converte wo ‘Sigoure:Eseud. Ling, Londrina, n, 2, 231-242, out. 99 A exemplificacao aduzida deixa claro que 0 nominativo, e€ no 0 acusativo, € o elemento marcado. Quando em oragdes descritivas a locugio nominal € constituida por pronominal o sujeito em fungéo So é manifestado por um pronome da SII, estabelecendo uma relacio com © sujeito pronominal em funcéo So de oracées ativas que também é marcado por pronomes da SII na forma longa do verbo. 28.0 sire 2ps_ pequeno “Vocé € pequeno” 29. i- -mbetfi Ips bem “Bu estou bem” 4. ConcLusdo Os pronomes tém um sistema parcialmente Ergativo! Absolutivo e parcialmente Nominativo/Acusativo, diferentemente dos nomes que manifestam um subsistema NominativolAcusativo. Assim, os fatos do Suya constituem uma excecio a colocacao de Dixon (1994, p. 84): “If pronouns and nouns have different systems of case inflecttion, then the pronoun system will be accusative, and the noun system engative, never the other way around”. Ainda em telagao a consideracoes tipol6gicas, conforme Dixon (1994, p. 56-57) “there isa clear, overall generalisation: that case which covers S (i. e. absolutive or nominative) is generally the unmarked term — both formally. and functionally — in its system”. Como visto, em Suyé, a LN nominal em fungio de S ou de A ocorre com a particula ra, ou seja, ¢ o constituinte marcado. A LN em funcio de objeto ¢ nao marcada. Suyé, portanto, é uma lingua de “nominativo marcado”. “Signum: Excad, Ling., Londrina, n.2, 231-242, out. 99 7a Referéncias bibliograficas DIXON, R. M. W. Exgativity. Cambridge : University Press, SANTOS, Ludoviko dos. Deser 1994, ao de aspectos morfossintaticos da Lingua Suys (Kisédjé) Familia Jé. Tese de Doutoramento. UFSC. 1997. Verbos de forma larga y de forma corta en Suys. ‘Actas-I, VI Simposio Internacional de Comunicacién ma Social, Santiago de Cuba, 1999. ‘Signum Estud. Ling, Londrina, a. 2, 231-242, out. 99

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