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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

ANA PAULA TAGLIANETTI

A CONSTRUÇÃO DE UMA OBRA DE TEATRO MUSICAL:


O PROCESSO CRIATIVO DE 47 – O MUSICAL

CAMPINAS
2019
ANA PAULA TAGLIANETTI

A CONSTRUÇÃO DE UMA OBRA DE TEATRO MUSICAL:


O PROCESSO CRIATIVO DE 47 – O MUSICAL

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade


Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos
para a obtenção do título de Doutora em Música, na área
de Música: Teoria, Criação e Prática.

ORIENTADOR: CLAUDINEY RODRIGUES CARRASCO

(67( 75$%$/+2 CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA TESE
DEFENDIDA POR ANA PAULA
TAGLIANETTI E ORIENTADA PELO PROF. DR.
CLAUDINEY RODRIGUES CARRASCO

CAMPINAS
2019
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Taglianetti, Ana Paula, 1971-


T128c TagA construção de uma obra de teatro musical : o processo criativo de 47 - o
musical / Ana Paula Taglianetti. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

TagOrientador: Claudiney Rodrigues Carrasco.


TagTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Tag1. Teatro musical. 2. Down, Síndrome de. 3. Dramaturgia. I. Carrasco,


Claudiney Rodrigues, 1964-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto
de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The making of a musical theatre piece : the creative process of 47
-the musical
Palavras-chave em inglês:
Musical theater
Down syndrome
Dramaturgy
Área de concentração: 0~VLFD7HRULD&ULDomRH3UiWLFD
Titulação: Doutora em Música
Banca examinadora:
Claudiney Rodrigues Carrasco [Orientador]
Neyde de Castro Veneziano Monteiro
Ricardo Nogueira de Castro Monteiro
Fibio Cardozo de Mello Cintra
André Checchia Antonietti
Data de defesa: 30-08-2019
Programa de Pós-Graduação: Música

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-5202-2020
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/0270679897390050
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

ANA PAULA TAGLIANETTI

ORIENTADOR:CLAUDINEY RODRIGUES CARRASCO

MEMBROS:

 PROF. DR. CLAUDINEY RODRIGUES CARRASCO


 PROFA. DRA. NEYDE DE CASTRO VENEZIANO MONTEIRO
 PROF. DR. RICARDO NOGUEIRA DE CASTRO MONTEIRO
 PROF. DR. FÈBIO CARDOZO DE MELLO CINTRA
 PROF DR. ANDRÉ CHECCHIA ANTONIETTI

Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade


Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da FRPLVVmR


RUJDQL]Ddora encontra-se no 6,*$6LVWHPDGH)OX[RGH'LVVHUWDomR7HVHHQD
6HFUHWDULDGR3URJUDPDGD8QLGDGH

DATA DA DEFESA: 30.08.2019


Ao Miguel Taglianetti de Camargo, ser humano mais perfeito de
todos, meu filho e grande amor. Cada linha desse trabalho foi por
você.
AGRADECIMENTOS

Aos heróis Diogo Camargo e Miguel Taglianetti de Camargo, que me deram todo apoio
necessário para que esse projeto fosse realizado. Sem sua coragem, parceria, amor
e paciência nada disso teria sido possível. Vocês são os amores da minha vida.

Aos meus pais Francisco Luiz e Celsa Maria Taglianetti, responsáveis em


absolutamente tudo para que eu chegasse até aqui na vida. Em especial por toda a
paciência, ajuda e amor nas etapas finais. Ter chegado até aqui dependeu de vocês.

À minha irmã Silvia Cristina e sua família, por terem tido a paciência de permanecer,
durante os meses de finalização da pesquisa, sem a companhia de nossos pais e sem
a nossa presença, para que esse trabalho pudesse ser finalizado. Seu silêncio a
respeito foi mais do que um ato de amor.

A toda equipe de apoio que se fez presente na vida do meu filho Miguel, para que
minha ausência não parecesse tão forte. Equipe maravilhosa que deu ao Miguel todo
o suporte necessário. A começar por Maria José Marques, a Dudú; Ana Paula Trindade
Lima; Raysa Gomes; Flavia Buscarato; Amanda Marsariolli, Daniela Ostroschi e
Rafaela Batista.

Aos amigos pesquisadores André Checchia Antonietti e Gerson Steves, pela luz no
caminho.

Ao Danilo Demori, grande parceiro de trabalho. Compusemos um musical! Dá pra


acreditar? Só posso agradecer por tanta dedicação.

A toda equipe que permanentemente me guia na jornada de fazer o melhor possível


pelo Miguel: Dra. Sandra Matta; Dr. Alexsandro Ferreira; Dra. Angela Knapp; Dra.
Erica Peirson, Dra. Carla Pinto; Andi Durkin, Bonnie Brandes. Certamente esse
trabalho tem muito de todos vocês. Espero que através dele tudo aquilo em que vocês
acreditam reverbere em muitas pessoas nesse mundo.

A todos os parceiros e estudantes que estiveram em algum momento sob minha tutela.
Aprendi com vocês mais do que ensinei.

A todos os mestres que tive em minha jornada teatral, com destaque para Iacov Hillel
e o saudoso Silnei Siqueira. Trago vocês em mim no coração e no fazer teatral.

Ao maravilhoso time de colaboradores que deram vida e voz a cada personagem de


47 – O Musical, e a todos os que participaram de suas leituras como ouvintes: Angela
Azevedo; Gisele Vecchin; Victor Paranhos; Nelson Pelissari; João Paulo Nascimento;
Richardson Clara; Vitor Manzoli; Vinicius Pianca; Guilherme Bassan; Andressa
Estrela; Dani Calicchio; Marina Franco; Yasmim Rosa; Robson Lóddo; Juliana Hilal;
Renata Spis; Daniel Salve. Sua colaboração foi fundamental para a construção desse
trabalho.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo descrever o processo de criação de uma obra de
teatro musical, desde a concepção da ideia até sua finalização enquanto produto
dramatúrgico-musical. Como introdução ao trabalho de pesquisa, um breve histórico
do gênero foi descrito, desde a Antiguidade Clássica até os dias atuais. Em uma
segunda etapa, foram realizadas entrevistas com autores contemporâneos do gênero,
com o intuito de compreender seus processos criativos. Para a realização da obra a
qual se propõe essa pesquisa, intitulada 47 – O Musical, foram pesquisadas
ferramentas da dramaturgia e da música aplicadas ao gênero teatro musical. Para a
confecção da obra, estudou-se as estruturas pré-literárias de premissa, história e
enredo, e a estrutura dramática da Jornada do Herói, conhecida por monomito,
conforme descrita por Joseph Campbell e Christopher Vogler. A criação do arco
dramático das personagens foi pesquisada tendo como base o trabalho de K. M.
Weiland. As estruturas musicais que permeiam o universo do teatro musical foram
observadas e descritas, para a realização do processo de composição. O produto
final, 47 – O Musical, é então apresentado, assim como seus quatorze números
musicais, que contam a história da chegada de um bebê com síndrome de Down e a
revolução que esse acontecimento provoca na vida de dois casais: Cris e Pedro - seus
pais; e Rafael e Lucas - seus melhores amigos.

Palavras-chave: teatro musical; síndrome de Down; música dramática, dramaturgia


ABSTRACT

This research aims to describe the creative process of a musical theatre work, from
the conception of the idea until its final completion as a musical-dramatic product. As
an introduction to the research work, a brief history of the genre is described, from
Classical Antiquity to our days. Second, interwiews with contemporary brazilian
authors of the genre were made, in order to understand their creative processes. For
the making of the work aimed at this research, named 47 – O Musical, dramatic and
musical tools applied to musical theatre were researched. Also the pre-literary
structures of premise, story and plot, and the dramatic structure of the Hero’s Journey,
known as the Monomith, were studied, as described by Joseph Campbell and
Christopher Vogler. The dramatic arc of the charachters was researched based on the
Works of K. M. Weiland. Musical structures that permeate the universe of musical
theatre were observed and described, for the making of the composition process. The
final product, 47 – O Musical, is then presented, as well as its fourteen musical
numbers, which tell the story of the coming of a baby with Down Syndrome and the
revolution it provokes in the lives of two couples: Cris and Pedro - his parents; and
Rafael and Lucas – their best friends.

Keywords: musical theatre; Down Syndrome, dramatic music, dramaturgy


LISTA DE FIGURAS

1. Figura 1 – Linha do Tempo do Enredo................................................78


SUMÁRIO

1. Introdução................................................................................................ 13

2. O teatro musical: dos primórdios aos dias de hoje.................................. 16


2.1. Antiga Grécia e Era Medieval..................................................................... 17
2.2. Renascença e os primórdios da ópera....................................................... 20
2.3. O Barroco.................................................................................................. 22
2.4. Os períodos Clássico e Romântico: da metade do século XVIII até meados do
século XIX................................................................................................ 24
2.4.1. A Opera Seria.......................................................................................... 24
2.4.2. Caminhos abertos para o musical – os gêneros leves e o diálogo
falado........................................................................................................ 26
2.5. As Ballad Operas, operetas e as Savoy Operas.......................................... 30
2.5.1. O fenômeno Offenbach............................................................................ 31
2.5.2. Gilbert e Sullivan e as Savoy Operas....................................................... 33
2.6. O teatro musical nos Estados Unidos da América....................................... 34
2.7. Do século XX aos nossos dias.................................................................... 37

3. O Processo Criativo de 47 – O Musical...................................................... 49


3.1. Musical-conceito......................................................................................... 50
3.2. Técnicas para realização de uma obra de teatro musical............................ 54
3.2.1. Dramaturgia............................................................................................. 54
3.2.1.1. Pré-estruturas literárias: premissa, história e enredo............................ 56
3.2.1.2. As etapas do monomito – a Jornada do Herói........................................ 57
3.2.1.2.1. Análise de espetáculos de teatro musical a partir do monomito.......... 64
3..2.1.2.1.1. A Bela e a Fera................................................................................ 65
3.2.1.2.1.2. A Noviça Rebelde............................................................................ 69
3.2.1.3. Personagens e seus arcos.................................................................... 74
3.2.1.3.1. Análise dos arcos de personagem...................................................... 80
3.2.1.3.1.1. Arco de personagem em A Bela e a Fera – Bela............................... 80
3.2.1.3.1.2. Arco de personagem em A Noviça Rebelde – Maria Ranier............. 83
3.2.2. Música...................................................................................................... 89
3.2.2.1. Voz Musical da Obra.............................................................................. 90
3.2.2.2. Song Spotting........................................................................................ 89
3.2.2.3. A Canção............................................................................................... 90
3.2.2.3.1. Tipos de canção presentes no teatro musical..................................... 92
3.2.2.4. Voz Musical de Personagem................................................................. 98
3.2.2.5. Leitmotiv................................................................................................ 98
3.2.2.6. O Score................................................................................................ 99
3.2.2.6.1. Funções específicas do Score em teatro musical............................... 100
3.3. A criação do texto e letras de canções em 47 – O Musical.......................... 104
3.3.1. Premissa, história e enredo de 47 – O Musical........................................ 104
3.3.1.1. Premissa.............................................................................................. 104
3.3.1.2. História – o monomito e os arcos de personagem................................. 104
3.3.1.3. Enredo.................................................................................................. 111
3.3.2. Narrativa.................................................................................................. 206
3.3.2.1. A criação da música de 47 – O Musical................................................... 206
3.3.3. As partituras das canções......................................................................... 216

EPÍLOGO.......................................................................................................... 27
REFERÊNCIAS................................................................................................ 0
ANEXOS........................................................................................................... 5
13

1. Introdução

Este é um projeto que descreve a criação de um espetáculo de teatro musical, tendo


como ponto de partida a compreensão das perspectivas históricas da criação de obras
cênico-musicais, desde a Antiguidade Clássica até os dias atuais. Pesquisou-se a
perspectiva histórica em primeiro lugar, para em seguida investigar métodos
dramatúrgicos e musicais que pudessem servir ao propósito de elucidar possíveis
formas de criação.
Embora haja diversas manifestações integradoras da música na cena e da cena na
música, como é o caso da ópera e mesmo de alguns tipos de teatro musical feitos no
Brasil e no mundo, especifica-se que, para esta pesquisa, houve necessidade de
compreender o processo criativo dos musicais originados nos Estados Unidos, pois é
impossível negar que, nos dias atuais, o cenário do teatro musical no Brasil tem sido
profundamente influenciado por obras estadunidenses. Para tanto, investigou-se a
concepção do texto, letra e da música, com o objetivo final de criar um espetáculo
inédito, através de um processo criativo colaborativo.
O teatro musical que foi desenvolvido no eixo Broadway-West End1, construiu-se
através dos séculos por um caminho bastante sólido, tendo estado sempre presente
como manifestação cultural, desde os primórdios da colonização inglesa em terras
norte-americanas. Já no Brasil, também se encontram muito presentes as
manifestações cênico-musicais através dos tempos, mas os caminhos foram
construídos de outras maneiras, e os resultados tornaram-se bem diferentes. Porém,
a partir de um determinado momento, com a onda dos grandes musicais da Broadway
presentes no Brasil, mais especificamente no eixo Rio-São Paulo, modificou-se de tal
maneira o mercado teatral, que inclusive as obras de teatro musical de criação
brasileira passaram a estar muito influenciadas pelo novo mercado de entretenimento
formado pela chegada de tais Musicais. Um novo tipo de ator surgiu no mercado, um
novo tipo de público se formou. Outros tipos de escola de formação apareceram no
cenário e as escolas já existentes começaram a adequar seus currículos às novas
necessidades do mercado.

1
Broadway, West End - Parte da cidade de Nova Iorque, nas circunvizinhanças da avenida de mesmo
nome, entre as ruas 45 e 51, onde estão localizados os mais importantes teatros comerciais da cidade.
Em decorrência, o termo passou a ser usado, genericamente, para designar um tipo de produção
milionária que, a par de suas qualidades artísticas, possui sério comprometimento comercial.
(Vasconcellos, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. L&PM Editores. Edição do Kindle. Posição 570). O
West End é a contrapartida britânica da Broadway: Parte centro-ocidental de Londres, conhecida por
seus famosos teatros, música e cultura.
14

A trajetória do teatro musical de língua inglesa veio a estabelecer cada vez mais
maturidade estilística, tanto na música como no texto, com o passar do tempo, sendo
que inúmeras experimentações foram vivenciadas através desta linguagem teatral.
Está, hoje, longe de ser uma fórmula pronta, uma receita, seguida pelo time criativo,
em geral formado por compositor, letrista e dramaturgo. Ao contrário, ao invés da
fórmula, desenvolveu-se uma forma.
O teatro musical vem estabelecendo excelente qualidade criativa de composição
musical e dramaturgia que caracterizam-se não por serem alguma espécie de teatro
que ganhou músicas, teatro sonorizado, teatro onde existem eventos musicais, teatro
permeado por algumas canções acopladas à ação cênica, mas sim “música escrita
para ser encenada, para ser cantada durante uma representação teatral, partitura que
pressupõe e em diversos aspectos até determina uma concepção cênica que a
transfigura” (PEIXOTO, 1985 p. 15). É pura e simplesmente “composição musical-
dramatúrgica”, onde a obra é concebida em plena integração de texto e música.
Ressalta-se que nem todos os musicais são criados desta maneira, como é o caso
dos espetáculos que usam músicas pré-existentes, os chamados “juke-box musicals”,
mas esta pesquisa irá focar-se naqueles de composição e dramaturgia originais.
Pretende-se ainda, com este trabalho, investigar modos de criação de espetáculos de
teatro musical brasileiro da contemporaneidade através de entrevistas com artistas
criadores, com o objetivo de compreender as técnicas utilizadas por diversos
compositores e dramaturgos, a fim de que este levantamento proporcione
embasamento para a criação de um espetáculo inédito deste gênero. A proposta é
levar a pesquisa para o método de criação, de elaboração de uma obra, aprofundando
a compreensão do fenômeno musical-dramatúrgico e promovendo, dentro do espaço
criativo de um espetáculo, o entendimento cada vez maior da utilização dos elementos
musicais e dramáticos na criação de uma obra de teatro musical.
A justificativa para este trabalho baseou-se no fato de que ainda há poucas pesquisas
no Brasil que contemplem o estudo do teatro musical, principalmente no que diz
respeito à criação, o que reitera a relevância de pesquisas na área. Acredita-se na
importância de pesquisas no Brasil sobre o gênero teatro musical, principalmente por
se perceber uma grande proliferação de produções deste gênero neste momento, e
já algumas tentativas de criação de novos espetáculos inteiramente brasileiros,
contudo havendo ainda poucas pesquisas e escassas publicações em português a
respeito deste tema. O que se percebe é que, criativamente, o gênero esteve sempre
presente nos palcos brasileiros, desde os remotos tempos do teatro de revista, mas
15

que a composição musical-dramatúrgica precisa ser mais pesquisada no Brasil neste


momento, em especial após a onda Broadway-West End que vêm modificando o
cenário teatral, tanto para promoção de processos criativos de obras do gênero como
para que se desenvolvam métodos pedagógicos relevantes no assunto.
Para realizar este projeto de criação, este trabalho contemplou as seguintes etapas:
Após esta introdução, o primeiro capítulo apresenta uma revisão histórica do teatro
musical estadunidense, que teve como intuito situar este gênero artístico em seu
momento histórico atual, considerando a importância desta revisão para esclarecer o
contexto de criação de uma nova obra inédita.
No segundo capítulo encontra-se o levantamento das ferramentas criativas, feito
através de revisão bibliográfica: técnicas de dramaturgia e desenvolvimento de
personagem, técnicas musicais próprias do gênero, contemplando o trinômio texto,
letra e música, pilares do processo criativo no teatro musical.
O terceiro capítulo vem a descrever o processo criativo em si e seu resultado final:
criação da sinopse a partir de uma ideia conceitual, desenvolvimento de enredo e
libreto, song spotting e confecção de letra e música. Descreve, igualmente, o processo
de finalização da obra através de revisões e leituras dramáticas, para então
apresentar-se o produto final: texto, letras e score da obra 47 – O Musical.
O epílogo contempla o resultado das entrevistas com artistas criadores
contemporâneos de obras do gênero, para compreensão das aplicações técnicas
utilizadas por eles na feitura de suas obras. As falas desses artistas foram aqui
organizadas como um texto teatral onde dialogam entre si a respeito de seus
processos individuais.
16

2. O teatro musical: dos primórdios aos dias de hoje

A relação entre música e texto é elemento fundamental para a música cênica, no que
diz respeito à narrativa e à encenação.
Essa relação vem percorrendo um longo caminho por toda a história da música e do
teatro desde a Grécia Antiga, e entende-la ajuda a compreender melhor as origens do
teatro musical na atualidade.
Pesquisar os caminhos trilhados pelo teatro musical se faz necessário para perceber
o processo criativo de autores deste gênero artístico, buscando com isso enxergar de
que modo o teatro musical norte-americano e britânico vem influenciando a criação
de musicais nos dias de hoje, no Brasil.
Por que entender a evolução do teatro musical estadunidense e britânico? Porque não
se pode negar que o teatro musical no Brasil de hoje sofre influência do teatro musical
da Broadway e do West End. Nos tempos atuais, nota-se uma produção – com
práticas próprias – do musical original brasileiro, com texto e composição feitos por
brasileiros. Estas obras, ainda que poucas, recebem influência direta do modo como
são feitos os musicais nos Estados Unidos e na Inglaterra. Isso se dá porque um novo
tipo de artista criador tem aparecido no cenário da dramaturgia musical brasileira, a
partir da reentrada dos títulos importados que se iniciou no fim dos anos 1990, graças
à popularização da Lei Rouanet2.
Claro que também o Brasil possui uma história própria de dramaturgia e encenações
deste gênero. E, até um determinado momento, a linha histórica de influências foi a
mesma: tanto os Estados Unidos como o Brasil desfrutaram influências vindas da
Europa. A partir do fim do século XIX, começo do XX, cada país seguiu seu rumo.
Muita coisa significativa aconteceu nos palcos musicais brasileiros, desde as burletas
de Artur Azevedo e o teatro de revista, os poucos musicais de Chiquinha Gonzaga, as
montagens musicais do Teatro de Arena, a produção de Morte e Vida Severina,
dirigida por Silnei Siqueira, aplaudida por 15 minutos seguidos no Festival de Nancy,
na França. Não se pode esquecer tampouco que há por aqui registros de montagens
de musicais da Broadway, uma vez que nos anos 1960 e 1970 houve uma vinda
significativa de títulos – Desde de My Fair Lady até Chorus Line nos anos 1980.
Contudo, uma mudança importante acontece no fim da década de 1990. O cenário
teatral brasileiro passou a apresentar um momento peculiar, com a importação de

2
Lei Rouanet – Principal ferramenta de fomento à Cultura do Brasil (...) Criada em 1991 pela Lei 8.313,
o mecanismo do incentivo à cultura é um dos pilares do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac).
17

alguns grandes musicais da Broadway, e isso provocou tamanho impacto que mudou
o cenário criativo e performático deste gênero, no Brasil. Um outro tipo de ator
precisou surgir para comportar as novas necessidades desse mercado, o que gerou,
inclusive, a criação de cursos de formação específicos para o teatro musical.
As criações de novos musicais brasileiros passaram a ser influenciadas pelo estilo
Broadway de se fazer musicais. Artistas como Daniel Salve, Carlos Bauzys, Ricardo
de Castro Monteiro, Ricardo Severo, Nei Lopes e Fernanda Maia, são alguns dos
criadores brasileiros cujas obras demonstram esse fato. Compreender o musical
norte-americano é, portanto, necessário para entender esse fazer músico-teatral da
contemporaneidade no Brasil, presente principalmente no eixo Rio-São Paulo.
Embora não seja o único jeito de se fazer musicais brasileiros nos dias atuais, uma
vez que pelo Brasil afora são inúmeros os tipos de manifestação cênico-musicais que
aparecem, com forte carga de regionalismo, o que este estudo pretende observar é o
estilo de teatro musical brasileiro influenciado pelo anglo-americano.
O que se verá a seguir é um breve histórico do teatro musical, na busca de
compreender o passado do gênero para, a partir disso, estabelecer suas influências
na formação de um novo estilo de composição músico-dramática brasileira.

2.1. Antiga Grécia e Era Medieval

Qualquer um que pense que Oklahoma! foi o primeiro


musical a integrar música e diálogo está atrasado em
mais de dois mil anos. Nos primórdios do teatro, na
Antiga Grécia, os primeiros dramas eram musicais que
usavam diálogo, canção e dança como ferramentas
integradas de contação de histórias.
(John Kenrick)

Os antigos gregos consideravam que a música possuía a capacidade de exercer


grande poder sobre as pessoas, chegando até a influenciar suas emoções. Platão e
Aristóteles se preocupavam com a influência da música no espírito humano, chegando
inclusive a sugerir o uso de certos tipos de música baseados no ethos3 de modos
gregos específicos, para induzir determinados estados de espírito (BARTEL, 1997). A
música era parte integrante da encenação teatral na Antiga Grécia e é possível deduzir

3
Ethos- Palavra grega que significa ato, ação, escolha. O éthos atua sempre em combinação com a
dianoia, ou pensamento. Juntos, esses dois elementos constituem a ação da personagem
(Vasconcellos, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. L&PM Editores, Edição do Kindle. Posição 1662).
18

sua importância na tragédia grega pela definição de Aristóteles encontrada em sua


Poética, escrita um século depois dos trabalhos dos dramaturgos gregos Sófocles e
Eurípedes (GROUT,1965).
É sabido que os ritos gregos que deram origem ao teatro eram de natureza religiosa
e envolviam música. Isso porque o teatro grego se desenvolve a partir das cerimônias
de adoração ao deus Dioníso4 e traz delas os corais conhecidos por ditirambos5 e as
danças, também importantes nas tragédias. A finalidade, ou, talvez, a decorrência do
êxtase religioso desses ritos era a catarse, elemento que permanece como objetivo
da representação no teatro grego, levando o público à transformação e expurgação
emocional (GROUT, 1965). Em algum desses rituais, Téspis de Icária foi pioneiro ao
dar um passo para fora do coro, cantando e recitando sua linha musical, o que veio a
gerar uma nova configuração dos rituais, fazendo dele, Téspis, o primeiro ator da
história.
A partir disso, o que se conhece por tragédia grega vai tomando forma, dentro de uma
tradição de festivais e competições. Tragédias, comédias e dramas satíricos se
estabelecem como parte fundamental no desenvolvimento da sociedade ateniense.
Grandes dramaturgos-compositores surgem ao longo da história desses festivais,
como Ésquilo, Sófocles e Aristófanes. Nesses grandes eventos teatrais,

o público ouvia a música desenvolver-se desde o parodos 6, através de uma


série de odes, até a canção final. O design da música era revelado de formas
tão firmemente estabelecidas no parodos e modificadas em odes sucessivas
que a plateia podia ouvir a referência musical e apreciar os padrões de dança
que a acompanhava. Assim como Ésquilo e Sófocles aumentavam a
percepção da plateia sobre os temas com uma série de imagens verbais que
se desenvolviam através de cada peça, também sua música era desenhada
para guiar o entendimento da plateia sobre as cenas que estavam sendo
apresentadas a eles (SCOTT, 1995. Edição do Kindle Posição 63).

O teatro grego exercia grande impacto sobre a população de Atenas. Conta-se que
em uma apresentação de Eunêmides (Ésquilo, 458 a.C.), o coro de fúrias teria levado
o público a convulsões de terror. A sobrevivência dessa história mostra que a indução

4
Dioniso - De acordo com a mitologia grega, Dionisos (...) era o deus do vinho e da embriaguez, do
arrebatamento e do delírio místico, o espírito selvagem do contraste, da contradição, da bem-
aventurança e do horror. Fonte da sensualidade e da crueldade, da vida procriadora e da destruição
letal. (Vasconcellos, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. L&PM Editores. Edição do Kindle. Posição 1344
– 1349).
5
Ditirambos - Forma pré-dramática pertencente ao teatro grego. Consistia em poesia lírica escrita para
ser cantada por um coro de cinquenta membros em cerimônias em homenagem ao deus Dionisos.
(Vasconcellos, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro, L&PM Editores. Edição do Kindle. Posição 1410)
6
Parodos- Parte do drama grego que corresponde à entrada do coro. (Vasconcellos, Luiz Paulo.
Dicionário de Teatro; L&PM Editores. Edição do Kindle. Posição 2786).
19

ao medo certamente era reforçada por elementos cênicos e musicais, ou seja, uma
indicação de que a ação narrativa teatral grega se configurava como musical.
Música e som eram, sem dúvida, elementos importantes da produção teatral para
todos os dramaturgos do teatro grego. Ainda tomando Ésquilo como exemplo, em
suas obras remanescentes há um grande número de canções rítmicas para o coro. O
formato poético da escrita grega para o teatro, a forma de escansão das odes 7 , nos
levam a compreender que as partes que cabiam ao coro foram escritas para serem
cantadas, com acompanhamento musical.
Os grandes autores do teatro grego não se resumiam a simples dramaturgos. Eram
também músicos, compositores, muitas vezes atores em suas próprias obras, como
no caso de Sófocles. Isso aponta que os primórdios do teatro musical vêm de fato da
Grécia antiga.
Contudo, aprender a respeito da música dramática da Antiguidade é uma tarefa
frustrantemente difícil, uma vez que fontes bibliográficas fazem somente referências
casuais. As obras e interesses dos autores em música e dança tampouco trazem
informações precisas sobre seus usos em produções daquela época. Mas a
observação dos padrões rítmicos presentes na escansão das odes, conforme
analisados por Scott (1995), permite concluir que

O design musical das odes revela um padrão de métrica e forma que


corroboram com a identidade da persona do Coro Grego e se desenvolve em
resposta ao desenrolar da ação dramática. Através de da combinação de
palavras, métrica e forma, as odes fornecem mais uma das perspectivas que
a plateia precisa para incorporar a complexa mistura de julgamentos gerados
por cada peça (SCOTT 1995. Edição do Kindle posição 261 – 267).

É interessante lembrar que após o apogeu da civilização grega, no Império Romano


o teatro também teve sua importância. O pesquisador Timothy J. Moore, em seu livro
“Music in Roman Comedy” de 2012, relata que durante o período do Império Romano,
as comédias de Plautus e Terence eram profundamente musicais. Boa parte das
peças era cantada com acompanhamento musical, variações melódicas, rítmicas e
com a presença de danças.
Na Era Medieval surge o drama litúrgico, que se originou de ritos religiosos católicos.
Os dramas litúrgicos aparecem desde o século XII, por toda a Europa. Há evidências
de sua importância desde a Europa Oriental, Inglaterra, Escócia, França, Alemanha,

7
Escansão das odes, escandir – Decompor um verso em seus elementos métricos. Destacar bem na
pronúncia as sílabas de um verso ou uma palavra. (Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, p. 830)
20

Suíça, Escandinávia, Itália, Países Baixos, Espanha. Os mais antigos eram


inteiramente cantados. Quanto mais essas peças se afastavam das igrejas, mais falas
e menos música eram incluídas, o que acabou gerando uma outra forma de drama
medieval: os mistérios8.
Considerados predecessores do oratório, é possível perceber sua influência em
algumas óperas italianas do século XVII, o que não significa que tal tradição cênico-
musical esteja ligada diretamente à ópera; contudo, os mistérios são considerados
mais do que simplesmente precursores isolados do gênero. Seus predecessores
imediatos precisam ser buscados no teatro secular da Baixa Idade Média e
Renascença, em obras como Le Gieu de Robin Et Marion, de Adam de La Halle, por
exemplo.

2.2. Renascença e os primórdios da ópera

Na Renascença, o drama secular foi reavivado, e muitas novas peças foram escritas,
imitando os modelos gregos. Essas peças usavam música, de forma subordinada ou
decorativa. Palavras e música deveriam ser levadas a um equilíbrio balanceado,
através da declamação correta do texto e sua expressão sensibilizada.
No que diz respeito à música cênica da Renascença, Grout (1965, p. 23) afirma:

A música da Renascença não pode ser chamada propriamente de


“dramática”, uma vez que não servia ao propósito de conduzir uma ação
dramática; mesmo assim, sua conexão com a história da ópera é importante,
pois essas apresentações da corte da Renascença estabeleceram a prática
de unir muitas diferentes fontes artísticas – canto, representação, cenários,
figurinos, efeitos cênicos – num único espetáculo calculado para agradar
igualmente os olhos, ouvidos e a imaginação.

As principais formas de representação de música cênica da Renascença foram os


balés, as pastorais9 e os intermédios10. Nelas, as músicas se uniam a um espetáculo
visual, sendo que os balés tiveram forte influência na formação das óperas nacionais

8 Mistérios- - Nome dado na França (mystère), na Inglaterra (mystery plays) e na Alemanha


(Mysterienspiel) às peças religiosas do período medieval. (Vasconcellos, Luiz Paulo. Dicionário de
Teatro; L&PM Editores. Edição do Kindle. Posição 2478)

9 Pastorais - Gênero musical que caracteriza personagens e cenas da vida rural ou expressa sua
atmosfera. (The New Grove Dictionary of Music and Musicians, Seg Ed. Vol 19 p. 217).
10 Intermedios- Forma de entretenimento músico-dramático que aparece entre atos de espetáculos

teatrais nos períodos da Renascença e Barroco. (The New Grove Dictionary of Music and Musicians,
Seg Ed. Vol 12 p. 476).
21

da França e Inglaterra. O intermédio é também um importante predecessor da ópera


por ter mantido entre poetas e músicos italianos a ideia de colaboração entre música
e drama. Já as pastorais, poemas líricos em substância, mas dramáticos na forma,
trazem músicas, apresentando temas pastorais de amor, retratando ideais de
delicadeza e beleza. O formato da futura ópera estava se delineando: drama com
interlúdios musicais, dança, cenários e efeitos especiais.
Há ainda um fato importante a ser considerado sobre este momento histórico: o
aparecimento, em Florença, de um grupo conhecido como Camerata Fiorentina, que
teve o apogeu de sua influência cultural entre 1577 e 1582. Seus membros se
interessavam em pesquisar a música da Grécia antiga, procurando deduzir de seus
tratados como seria sua música, com a finalidade de compreender os efeitos que a
música grega exercia no público. Isso indica que a Camerata buscava ressuscitar a
tradição músico-teatral da época das grandes tragédias gregas, devido ao forte
impacto que causavam no espectador. Seus estudos levaram os membros da
Camerata a formularem um princípio básico de que o “segredo da música grega é a
perfeita união das palavras e melodia, uma união que deve ser alcançada fazendo
aquelas dominarem e controlarem esta” (GROUT, 1965, p.36). A partir deste princípio
determinado por eles, definiram mais três: o texto precisa ser claramente entendido,
as palavras precisam ser cantadas com declamação correta e natural, a melodia não
deve retratar meros detalhes gráficos do texto, mas sim interpretar o sentimento de
toda a passagem musical. Este novo estilo composicional, chamado de monodia,
buscava aumentar o impacto emocional das palavras importantes do texto. Assim,
Camerata abriu o caminho para o surgimento de um novo estilo musical, que,
associado à tradição dos balés e intermédios, logo viria a existir: a ópera, que surge
por volta de 1640 a partir do desenvolvimento da monodia. No caminho trilhado até
então por esse gênero, é fundamental citar a importância do compositor Monteverdi,
pois “em suas mãos a nova forma ultrapassou o estágio experimental” (GROUT, 1965,
p. 51). A ópera pós 1640 tornou-se a mais popular forma de música na Itália, na
Alemanha, na França e na Inglaterra.
Neste mesmo período, aparece Jean-Baptiste Lully, italiano radicado na França,
compositor de balés, óperas chamadas de tragédie lyrique e comédie-ballets11, que
estabelece importante papel na linha histórica que leva ao surgimento do teatro
musical dos dias atuais.

11
Comèdie-ballets- Peças teatrais faladas com inserções musicais. (The New Grove Dictionary of Music
and Musicians, Seg Ed. Vol 6 p. 166)
22

Lully criou um tipo (de ópera) que incorporava elementos de cada forma
musical e dramática que já havia feito sucesso na França. Essas formas eram
a Tragédia Clássica Francesa como exemplificada pelos trabalhos de
Corneille12 e Racine13, a pastorale, a ópera italiana e o ballet francês
(GROUT, 1965, p.123).

Para várias obras do dramaturgo-ator-diretor francês Molière, Lully compôs excertos


musicais. Para O Burguês Fidalgo, Lully compôs overture, danças e uma variedade
de árias com ritornellos (GROUT, 1965, p. 288), sinalizando uma forma embrionária
de teatro musical. A ópera na França também incluía trechos falados, estilo conhecido
por opera comique14. Os balés são muito presentes nas óperas de Lully, vindo a
influenciar a trajetória da dança no teatro musical.

2.3 . O Barroco

Os primórdios da ópera foram apontados na Renascença; no período Barroco, o


gênero é influenciado pela estética dos afetos. O equilíbrio entre texto e música foi
perturbado para dar lugar à intenção de mover o espírito humano a extremos
passionais. De acordo com Bartel (1984, p. 32):

Música deveria criar os afetos pretendidos, não apenas refleti-los.


Composições deveriam retratar e suscitar os afetos no ouvinte. O affectus
exprimere 15da Renascença se tornou affectus movere 16no Barroco. Não era
mais suficiente simplesmente apresentar os afetos objetivamente através da
música: o ouvinte deveria ser tragado para dentro do drama representado,
ser afetado emocionalmente. O compositor barroco queria mover o ouvinte a
um estado emocional aumentado. Agora o ouvinte, e não o texto, havia se
tornado o objeto da composição.

Os afetos são uma teoria da estética musical que propõe a capacidade da música de
suscitar uma variedade de emoções específicas em um ouvinte, ainda que esta ideia
não esteja limitada à época barroca, sendo encontrada no decorrer da história da

12 Corneille- Pierre Corneille, mais conhecido por Corneille (Rouen, 6 de junho de 1606 — Paris, 1 de
outubro de 1684) foi um dramaturgo de tragédias francês. (Picot, E. Bibliographie de Pierre Corneille,
2019)
13 Racine- Jean Baptiste Racine (La Ferté-Milon, Aisne, 22 de dezembro de 1639 – Paris, 21 de abril

de 1699) foi um dramaturgo e poeta francês considerado como um dos grandes autores de tragédias
do Período Clássico na França de Louis XIV (Oeuvres complètes et annexes - Nouvelle édition enrichie.
(French Edition). Arvensa Editions. Locais do Kindle 9735).
14 Opera Comique - Estilo de ópera entrecortada por diálogos falados. “Comique”, na França, refere-se

à encenação dramática, não à “comédia”.


15 Affectus exprimere- Expressão das emoções do compositor.
16 Affectus movere- Na linguagem dos manuais de retórica e tratados musicais do Barroco, o compositor

deveria “movimentar” as emoções do ouvinte (New Grove Dictionary of Music and Musicians, Seg Ed.
Vol.1 p. 181).
23

música. O poder da música sobre as emoções humanas nunca foi negado durante a
Era Medieval e a Renascença, mas os afetos tornaram-se o propósito e a essência
de toda a música barroca. Nesse cenário, o compositor de ópera procurava suscitar
emoções específicas no ouvinte através do texto e da música.
De acordo com Bartel (1997, p.33)

O afeto intencionado permanece como um estado mental objetivamente


conceitualizado. No cerne do conceito barroco dos afetos está uma quase-
Newtoniana premissa de lei e ordem, ação e reação, mutuamente aceita por
músico e público. Baseada nessas explicações racionais, o compositor barroco
podia contar com uma resposta emocional calculada do ouvinte, assim
controlando o estado emocional do ouvinte através do poder da música.

O público não mais assumia uma postura crítica distanciada. O afeto apresentado
envolvia o ouvinte, causando uma reação direta e espontânea. O público não estava
livre para controlar-se, ao invés disso era controlado pelo afeto percebido, deixando-
se levar ao riso ou ao choro, à tristeza ou à alegria, à raiva ou à felicidade. O fenômeno
da catarse se apresentava. Nesse acordo estético entre compositor e público, o
sentimento desejado poderia ser apresentado e suscitado através de um modo,
tonalidade, fórmula de compasso, cadência, adornos, dentre outros recursos estético-
musicais.
De acordo com Heinichen apud Bartel (1997), vários teóricos do Barroco negavam
que modos específicos causassem efeitos específicos no ouvinte. Defendiam que um
mesmo afeto poderia ser acessado por diferentes modos ou tonalidades, e
continuaram a recomendar que os compositores fizessem escolhas cuidadosas do
modo ou tonalidade ao musicar um texto, chegando a listar características expressivas
dos vários modos, mesmo que questionando a validade disso no mesmo tratado. Isso
permitiu que autores descrevessem modos, e mais tarde tonalidades, como dotados
de certo caráter, sem limitar seu uso a um afeto específico.
Harmonia, ritmo, métrica e tempo também eram examinados e explicados no período
Barroco de acordo com suas propriedades afetivas. Bartel (1997, p. 47), afirma que

Michael Praetorius17apoiava esse ponto de vista quando sugeriu que


designações de forte, piano, presto, adagio ou lento servem para expressar o

17
Michael Praetorius- Nome original Michael Schultheiss, (b 15 fev 1571, Kreuzberg, Silesia; d 15 fev
1621, Wolfenbuttel, Brunswick-Wolfenbuttel), compositor alemão e teórico da música. Disponível em
<https://www.britannica.com/biography/Michael-Praetorius>. Acesso em: 18/05/2019)
24

afeto e mexer com o ouvinte. (...) Mattheson18 também encorajava o compositor


a focar no afeto pretendido ao escolher uma indicação de tempo.

Outros teóricos barrocos sugeriram que certos afetos pudessem ser despertados por
gêneros específicos de danças, tipos de ritmo e formas literárias.
As árias de óperas, de cantatas e de oratórios eram o que havia de mais importante
na música Barroca para suscitar os afetos de um texto. As árias são momentos que
não dão sequência à ação, são suspensões da linha dramática, em que a personagem
reflete consigo mesmo. Esses solilóquios permanecem por toda a história da ópera,
dando origem, mais tarde, aos solilóquios do teatro musical, ainda que sua origem
esteja na Renascença shakespeariana.
Na transição para o Período Clássico, os compositores e o público sentiam que a
música do Período Barroco era muito opressiva, por ditar as emoções, e um caminho
musical diferenciado começou a ser trilhado, em que se deu preferência à
subjetividade e à expressão emocional do indivíduo.

2.4. Os Períodos Clássico e Romântico – da metade do século XVIII até meados


do século XIX

2.4.1. A Opera Seria

Uma importante característica adquirida pela ópera nesse período foi a estrutura
definida, trazida por Pietro Metastasio19 (1698-1792). Nas óperas desse libretista, uma
cena típica é composta de duas partes: primeiro, ação dramática através do recitativo;
segundo, expressão de sentimentos pelo ator/cantor, na ária.
É também nesse período que a ópera se estabeleceu como um espetáculo para
grandes públicos. As óperas passaram a tratar de temas mais populares e cotidianos,
e as situações sociais retratadas revelavam aspectos mais profundos da natureza
humana. Isso se dá juntamente com a presença, cada vez mais constante, de tramas
cômicas para as óperas. A ópera ainda ganha as importantes contribuições do

18
Johann Mattheson- (b Hamburgo, 28 setembro 1681; d Hamburgo 17 abril, 1764). Compositor
alemão, crítico, jornalista musical, lexicógrafo e teórico. (New Grove Dictionary of Music and Musicians,
Seg Ed. Vol.16 p. 139)
19 Metastasio- Metastasio [Trapassi], Pietro (Antonio Domenico Bonaventura) (b Roma, 3 janeiro 1698;

d Viena, 12 abril 1782). Poeta italiano, libretista e moralista. (The New Grove Dictionary of Music and
Musicians, Vol. 16 p. 510)
25

compositor Gluck20 (1714-1787), considerado um reformador da ópera por repensá-la


de modo a favorecer os aspectos dramáticos:

Gluck falou de purificar a ópera dos elementos musicais que impediam o


drama; ele enfatizava o “aquecimento da ação”. O que é significativo nessa
reforma (...) é puramente dramático, ligado a ideais literários, pedindo da
música apenas que saísse do caminho. O sucesso musical de Gluck, porém,
está em colocar efeitos musicais intensos para dar suporte à ação ao invés
de tirar a atenção dela. A grande ária deixou de ser o centro principal de
atenção, o recitativo orquestral (foi) explorado (CROCKER, 1966, p. 384).

Muitos compositores famosos renderam-se ao gênero nesse período. De todos,


Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) foi o que deixou um legado de óperas
extremamente populares que ainda são parte do repertório operístico tradicional dos
maiores teatros líricos do mundo. Para Hughes (1972, p.14):

Mozart foi o primeiro compositor a perceber claramente as vastas


possibilidades do gênero ópera no que diz respeito a criar personagens,
grandes e pequenos, que se moviam, pensavam e respiravam musicalmente
como humanos (...) [As personagens] apareciam como indivíduos com
personalidade reconhecível.

Giorgio Strehler, um dos maiores encenadores teatrais do século XX, reputa Mozart
como “um homem de teatro completo, não apenas um músico que faz teatro”
(STREHLER apud PEIXOTO, 1985, p. 30). Sua opinião baseia-se na percepção de
que palavras e música precisam estar integradas desde o início, e a partitura musical
acaba sendo o roteiro teatral.
Mozart não apenas compôs obras inteiramente cantadas (do início ao fim), mas
também uma ópera entrecortada por diálogos falados, A Flauta Mágica (1789-1791).
Esses exemplos são de particular interesse para compreender a influência exercida
pela ópera na linha histórica de desenvolvimento do teatro musical.
Nesse período desenvolve-se uma nítida separação entre a sinfonia e a ópera. A
Escola de Manheim 21 (segunda metade do século XVIII) muda os rumos da música
sinfônica, e a estrutura da ópera não permitia as modulações 22 exploradas nesse
repertório. Contudo, a música toma um rumo diferente com o aparecimento do
compositor Richard Wagner, que consegue o feito de unir as duas formas. Seu drama-

20 Gluck- Gluck, Christoph Willibald, Ritter von (b Erasbach, Upper Palatinate, 2 julho 1714; d Viena, 15
novembro 1787). Compositor Boêmio. (The New Grove Dictionary of Music and Musicians, Vol. 10 p.
24)
21
Escola de Manheim- Estabelece um estilo encontrado em composições instrumentais,
primordialmente sinfonias, por compositores ativos da corte eleitoral de Mannheim por volta de 1740 a
1778. (The New Grove Dictionary of Music and Musicians, Vol. 15 p. 776)
22
Modulação – Na música tonal, uma mudança de tonalidade firmemente estabelecida.
26

musical, considerado por Crocker (1966), nem ópera, nem sinfonia, mas um
casamento dos dois, é de particular interesse para todos os que desejam estudar o
fenômeno da encenação teatral. O compositor provocou uma revolução em todos os
aspectos ligados ao espetáculo teatral, influenciando as formas de concepção cênica
que se seguiram a ele.
Seu conceito revolucionário nomeado Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”) é
explicado pelo próprio Wagner em seu tratado Oper und Drama: “O erro na ópera, até
então, consistia no fato de que, de um veículo de expressão (a música), foi feito um
fim, enquanto do próprio fim (o drama) foi feito um meio” (WAGNER apud GROUT,
1965, p. 405).
Isso não significa, porém, que agora a poesia deveria estar em primeiro lugar
e a música em segundo, mas que ambos deveriam crescer organicamente
das necessidades da expressão dramática, não sendo levados de encontro
um ao outro, mas existindo como dois aspectos de uma mesma coisa. Outras
artes também (dança, arquitetura, pintura) devem ser incluídas nessa união,
fazendo do drama musical um Gesamtkunstwerk, isto é, um composto de
obra de arte total. Isto não é, na visão de Wagner, uma limitação de nenhuma
das artes; ao contrário, apenas nessa união podem as totais possibilidades
de cada uma serem percebidas (GROUT, 1965, p. 405).

Wagner também sustentava que a música em si era a expressão imediata do


sentimento, mas que ela não podia designar o objeto particular ao qual o sentimento
era direcionado. Para ele, a música ilustrava o subtexto23 do drama, enquanto a
função da palavra e do gesto era definir a ação externa.

2.4.2. Caminhos abertos para o musical – Os gêneros leves e o diálogo


falado

Paralelamente, nesse período, percebe-se uma quantidade crescente de


manifestações cênico-musicais, como por exemplo a opéra-comique e a opereta24,
gêneros forjados através dos séculos, e que serão de particular interesse para a
formação do teatro musical atual. Ainda que a ópera-comique tivesse um estilo
próximo da ópera regular, a distinção entre os dois gêneros se dá no aspecto técnico

23 Subtexto, ou monólogo interior - Recurso de interpretação do ator que consiste em determinar o


“pensamento da personagem antes, depois e durante as falas do texto” (Eugênio Kusnet, Ator e
método, p. 71). Trata-se de estabelecer a motivação de cada fala do texto, o que não está explícito no
diálogo, mas que pode ser inferido pela sugestividade desse mesmo diálogo. (Vasconcellos, L.P. L&PM
Editores. Dicionário de Teatro, p. 132)
24 Opereta- Ópera leve com diálogo falado, canções e danças. Enfatizando música rica em melodia e

baseadas no estilo de óperas do século XIX. (New Grove Dixtionary of Music and Musicians, Vol. 18
p.493)
27

do diálogo falado. Na opéra-comique o diálogo entrecorta os trechos cantados,


enquanto na ópera regular há música contínua, com recitativos25 no lugar de diálogos
falados.
Opéra-comique é um gênero que engloba, num extremo, peças bem leves, e num
outro, peças sentimentais e sérias, o que faz com que não seja tarefa simples traçar
uma linha divisória entre o tipo mais leve de opéra-comique e a opereta: ambas têm
diálogos falados, assuntos prazerosos, elementos cômicos, cultivam um estilo musical
simples. Porém, na opéra-comique espera-se do público um certo envolvimento
sentimental com a narrativa. Já na opereta, o objetivo é divertir, com inteligência, por
meio da paródia e da sátira.
De acordo com Grout (1965), ainda antes do século XVIII, duas tendências eram
encontradas no estilo opéra-comique. Uma delas assume postura mais séria quanto
aos temas, embora nunca perdendo seu toque popular. A outra continuou a produzir
uma espécie mais despretensiosa de opéra-comique que, crescendo em
popularidade, preparou o caminho para a opereta, com librettos baseados em intrigas
e situações farsescas, música simples e de apelo popular, no estilo dos romances e
vaudevilles.
Com o passar do tempo, chega uma nova fase da opéra-comique, marcada pela
sofisticação dos librettos, de romances ingênuos e fantasiosos, com influências
italianas nas melodias. Elementos estruturais que interessam ao estudo do teatro
musical (solos em estrofes, duetos e trios, ensembles, overtures com medley de temas
da ópera, entreatos, danças) já aparecem neste período, e ainda hoje permanecem
nos espetáculos desse gênero.
A influência da ópera-comique francesa se fez presente em outros países, como na
Alemanha e na Grã-Bretanha, abrindo caminho para as Savoy Operas 26 de Gilbert &
Sullivan (1875-1896) que viriam a influenciar toda a história do teatro musical nos
Estados Unidos.
Os gêneros mais leves e farsescos, como o vaudeville e a extravaganza27, tinham
como objetivo satirizar sem emocionar, divertir acima de tudo. Acabaram por se tornar

25 Recitativo – Tipo de escrita vocal, normalmente para voz única, com o intento de imitar o discurso
dramático na canção. (New Grove Dictionary of Music and Musicians, Vol.21 p. 1)
26
Savoy Operas- Operas apresentadas no Savoy Theatre, teatro construído em 1881 por Richard
D’Oyly Carte para as óperas de Gilbert & Sullivan. (New Groves Dictionary of Music and Musicians,
Vol.22 p. 345)
27 Extravaganza- Tipo de teatro musicado de aparência brilhante e guarda-roupa luxuoso que floresceu

na Inglaterra em meados do século XIX. Diferia do burlesco pela ausência de um ponto de vista satírico
e pela qualidade de humor sem grosseria (Vasconcellos, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. L&PM
Editores. Edição do Kindle. Posição 1701)
28

bastante populares também fora da Europa. Tanto as companhias de ópera quanto as


companhias de vaudevilles e de operetas viajavam o mundo, desde antes do século
XIX, trazendo, além de óperas, burlesques28 e extravaganzas. Sua presença nas
colônias portuguesas, espanholas e inglesas acabaram por influenciar as criações
teatrais desses lugares: óperas inglesas, burlesques e extravaganzas. Já os
spectacles29 procuravam atrair o público com um apelo mais arrojado para a época:
moças vestidas com collants cor da pele para imitar a nudez (LUBBOCK,1962).
É dito por Tilmouth e Wilson (2001), que o gênero extravaganza pode ter sido criado
por James Robinson Planché, que a descrevia como o “tratamento caprichoso de um
assunto poético”. Suas extravaganzas mais famosas foram suas fairy plays,
começando com Riquet With the Tuft, de 1836 (THE NEW GROVE DICTIONARY OF
MUSIC AND MUSICIANS, v.8 p. 447).
As companhias de Vaudeville Francesas traziam para as colônias americanas seus
espetáculos, que de acordo com Banham (1995, p. 1161), eram “farsas com músicas”.
O gênero de mesmo nome se desenvolveu nas colônias norte-americanas como um
show de variedades, diferente do vaudeville francês.
A partir de 1660, a música tornou-se inseparável das produções teatrais na Inglaterra.
Para manter uma produção em cartaz, em geral o espetáculo precisava ser anunciado
como “concerto”. Isso ocorreu porque o Rei Charles II mandou fechar todas as casas
de espetáculos, mantendo autorização de funcionamento apenas para dois lugares.
Seu intuito era “elevar as maneiras e a moral”, já que o teatro era considerado algo
muito popular. No Período da Restauração, onde muitas casas teatrais foram
fechadas, outras tantas continuaram funcionando às escondidas, até o Licencing Act
30de 1737. Como a censura era para o teatro, e não para a música, colocava-se no
espetáculo muita música para poder chama-lo de “concerto”. Quando a lei afrouxou,
em 1788, o repertório teatral inglês já havia se tornado muito musical. E as
companhias levaram esta tradição para os Estados Unidos, onde ocorreu algo
semelhante. A música era algo tão popular na vida colonial desse país, que muitas
vezes uma apresentação teatral se autointitulava “concerto”, para atrair o público, o

28 Burlesques, burlesco – Obra que satirize ou parodie outra, esta geralmente séria. (Vasconcellos, Luiz

Paulo. Dicionário de Teatro. L&PM Editores, p.33)


29 Spectacle - Forma músico-teatral muito próxima da ‘extravaganza’ (...) combinando burlesque,

música, balé, cenas de transformação, cenários e figurinos espetaculares. (EVERETT, LAIRD 2009 p.
14)
30 Licensing Act- (1737) Extinto Ato do Parlamento no reino da Grã-Bretanha, e momento crucial da

história do teatro. Seu propósito era controlar e censurar o que era dito a respeito do governo britânico
através do teatro (Disponível em: <https://www.revolvy.com/page/Licensing-Act-1737>. Acesso em
18/05/2019).
29

que também evitava censura e possíveis cancelamentos. Mates (1987) explica:

O repertório, da forma como chegava da Inglaterra, era composto de dez por


cento de musicais. No final do século, o repertório Americano era de mais de
cinquenta por cento musical. Este ponto é essencial. As primeiras peças vistas
nos EUA eram, ou musicais, ou fortemente dependentes de música (LOCAIS
DO KINDLE 212 – 216).

Durante o Iluminismo31 (1715-89) aparecem manifestações de teatro musicado


popular na Inglaterra, Alemanha, Império Austro-Húngaro e França. Com o
crescimento das cidades, foi se formando um público cada vez mais sofisticado para
o entretenimento. O Iluminismo, como amplo movimento artístico, filosófico, literário e
científico, sintetiza um momento em que a burguesia não mais aceita as
características de submissão ao Antigo Regime. Esse cenário foi extremamente
propício para o florescimento das artes, e a burguesia se fortaleceu como público
consumidor de arte. A ópera era popular na elite e na recém-formada classe média.
As outras formas de entretenimento de palco tinham apelo tanto entre os ricos quanto
entre os pobres. Nos anos 1700, uma típica tarde no teatro em qualquer lugar da
Europa apresentava um programa bem variado, em que canções sempre estavam
incluídas. Assim, pelo menos três gêneros diferentes de teatro associado à música se
desenvolveram, paralelos à Grand Opera, ou Opera Seria32: A Comic Opera,
pantomimas e a Ballad Opera.
O gênero intitulado de Comic Opera, não é o mesmo que a Opéra Comique surgida
na França. Na Ópera Comique a música operística é entrecortada por diálogos
falados, mas a história não é necessariamente engraçada. Como exemplo temos a
ópera Carmen, do compositor G. Bizet, que conta uma história trágica, mas é
considerada uma Opéra Comique por apresentar músicas cantadas entrecortadas por
diálogos falados. Já a Comic Opera é um espetáculo que usa convenções da ópera e
de estilos musicais com efeito cômico, usualmente envolvendo boa dose de romance.
Pode ser considerado um predecessor da Opereta (KENRICK, 2010, LOCAIS DO
KINDLE 343).
Já a Pantomima inclui canções, dança, comédia física, acrobacias, efeitos especiais,

31 Iluminismo – Ideologia que foi sendo desenvolvida e incorporada pela burguesia da Europa, a partir
das lutas revolucionárias do final do século XVIII. As lutas sociais, o desenvolvimento da burguesia e
de seus negócios, e a crença na racionalidade chegaram ao auge na propagação dos ideais iluministas,
estes levados pela onda da Revolução Francesa (Disponível em: <https://www.significados.com.br>.
Acesso em 4/06/2019).
32 Opera Seria- Termo usado para designar Ópera Italiana dos séculos 18 e 19 de tema heroico ou

trágico. (The New Grove Dictionary of Music and Musicians, Vol. 18 p. 485)
30

e o menor uso possível de palavras. A tradição da Pantomima atingiu seu auge nos
Estados Unidos nos anos 1870, tendo se desenvolvido na Inglaterra com algumas
diferenças.
Há peças de teatro musicado antes de 1728, mas não se pode realmente falar em
produções do tipo teatro musical antes do aparecimento da Ballad opera: “uma história
encenada com alguma relação com nosso cotidiano, enaltecida por canções que
pertencem à história” (MORDDEN, 2010). A Ballad Opera tornou-se um gênero
extremamente popular, em que eram representadas, geralmente, as situações vividas
pela sociedade da época. Esse gênero faz uso de baladas populares e árias de
óperas, com as letras modificadas, parodiadas. A Ballad Opera é de especial interesse
para a compreensão do desenvolvimento do teatro musical, tanto na Inglaterra quanto
nos Estados Unidos.
A primeira Ballad Opera, considerada como a ancestral direta do teatro musical de
língua Inglesa foi The Beggar’s Opera. Escrita em 1728 por John Gay e com música
orquestrada por J. C. Pepusch, essa Ballad Opera conta com sessenta e nove árias e
canções para as quais Gay escreveu novas letras em que expressava os
pensamentos de seus personagens, desenvolvendo a atmosfera e avançando na
ação dramática. Registros mostram a primeira apresentação de The Beggar’s Opera
em Nova Iorque no ano de 1750.
Havia, uma forte intenção de John Gay de satirizar a Opera Seria, já que ela havia
monopolizado o interesse em entretenimento dos ingleses, assim como de satirizar a
política e a sociedade inglesas. As óperas do compositor G. F. Haendel (1685 - 1759)
eram o entretenimento mais popular daquele momento. Haendel era um imigrante
alemão que se estabeleceu na corte inglesa fazendo absoluto sucesso. John Gay se
declarava cansado do sucesso da ópera, um gênero estrangeiro, que acabava tirando
as chances dos artistas locais de desenvolverem uma arte nacional. Assim, como
resposta a este cenário, cria The Beggar’s Opera, que estreou em Londres fazendo
absoluto sucesso: “a sátira à sociedade, a novidade da forma, o realismo, a
interpretação excelente, o modo novo de uso da música, ou tudo isso junto – The
Beggar’s Opera foi um sucesso instantâneo” (MATES, 1987). Figuras políticas e
sociais, assim como eventos da época foram expostos ao ridículo. As convenções do
drama popular, como o sentimentalismo exacerbado, foram satirizadas. Além de se
deliciarem com as novas letras colocadas em melodias já familiares, o público se
entusiasmou de ter as cenas cantadas separadas por diálogos em vez de recitativos.
Nascia uma grande fórmula de sucesso, que imediatamente agradou ao público.
31

2.5. As Ballad Operas, operetas e as Savoy Operas

A partir de 1860, os palcos dos Estados Unidos foram inundados por operetas de
Offenbach, Strauss e Gilbert & Sullivan. Como essas obras influenciaram muitos
compositores e libretistas estadunidenses de operetas, faz-se necessário entender
Jaques Offenbach como uma importante figura do entretenimento.

2.5.1. O fenômeno Offenbach

O teatro e a ópera já faziam parte integrante da vida parisiense há muito tempo,


atraindo artistas não só da França, mas também de outros países europeus. Nesse
impulso, um jovem alemão, de quatorze anos, violoncelista talentoso, chegou a Paris
para estudar, porém entediado com as salas de aula, Jacob Erbest, conhecido
futuramente como Jacques Offenbach, desistiu do Conservatório de Música para se
unir à Orquestra do Opera Comique Theâtre e assim criar uma reputação como solista
e compositor. As composições de Offenbach exerceram grande influência no teatro
musical: o que se conhece hoje por teatro musical estadunidense teve sua primeira
aparição em Paris, em suas obras.
Tanto Walter Benjamin 33quanto Theodor Adorno 34 foram críticos do trabalho de
Offenbach. Para esses autores, a obra de Offenbach era o retrato da França do
Segundo Império, que dá origem à cultura industrial capitalista.
Por outro lado, embora Siegfried Kracauer35 também aposte na relação entre a obra
de Offenbach e o Segundo Império, ele demonstra a qualidade subversiva de sua
música, ainda que insista que ela seja um reflexo direto do mundo corrupto de
Napoleão III. Em Benjamin apud Senelick (2017), encontra-se:

Uma interpretação de Offenbach pode demonstrar de maneira bastante lógica

33 Walter Benjamin- O Crítico e filósofo Walter Benjamin, judeu alemão (1892–1940) é hoje geralmente
considerado como uma das mais importantes testemunhas da modernidade europeia (Eiland, Howard
-Walter Benjamin. Harvard University Press. Edição do Kindle.)
34 Theodor Adorno- (Adorno, Theodor Wiesengrund; b 11 setembro, 1903,Frankfurt am Maim, Ger – d

6 agosto 1969, Visp, Suíça),Filósofo Alemão que escreveu sobre sociologia, psicologia e musicologia
(Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Theodor-Wiesengrund-Adorno>. Acesso em:
20/05/19).
35 Siegfried Kracauer – (b 8 fevereiro, 1889–d 26 novembro, 1966) foi um escritor alemão, jornalista,

sociólogo, crítico cultural e teórico do cinema. Algumas vezes associado à Escola de Frankfurt, ainda
que não tenha sido membro dela.
32

este duplo significado: aquele do submundo e da Arcádia36 – ambos são


categorias explícitas de Offenbach e podem ser percebidos até mesmo em
detalhes de sua orquestração. (LOCAIS DO KINDLE 457 – 462).

Contudo, classificar Offenbach como um fenômeno exclusivamente francês e ligado a


um regime político específico é fazer-lhe injustiça. O golpe de estado de 1851 deu a
Offenbach a plateia perfeita, já que foi mantida no poder uma classe social
acostumada à riqueza e possuidora de consciência fraca, com gosto pela diversão. A
obra de Offenbach criticava exatamente aqueles que eram o seu público. Ele era o
compositor que retratava o boulevard37, a imprensa extraoficial, as últimas gírias, a
moda mais recente,satirizando a sociedade, o que torna sua obra subversiva.
Offenbach fundou seu próprio teatro, que ele chamou Thêatre des Bouffes-Parisiens,
em resposta direta à necessidade de um público sedento pelo tipo de entretenimento
oferecido pelo compositor. O teatro de Offenbach nasceu ”do inteligente casamento
das fórmulas da ópera de salão e comédias de boulevard, modelado nos teatros
menores, alimentado pelo espírito cético das ruas” (SENELICK, 1997, LOCAIS DO
KINDLE 614 – 624).
A crescente população de Paris já não aceitava tão bem o que a opéra comique e a
opera seria podiam oferecer. Com os teatros de cunho popular sendo empurrados
para as periferias, a classe trabalhadora podia desfrutar dos melodramas 38 e
vaudevilles cheios de músicas.

Para tirar vantagem de uma clientela já existente, o entretenimento mudou-


se para a periferia. Encabeçando este movimento estava o Cafè Chantant,
um music-hall aberto onde o público podia beber (...) As canções cantadas
no Cafè Chantant, com seus jogos de palavras e refrãos sem sentido, podiam
ser escutadas em todo lugar. Era dito que os franceses só gostavam de
música aliada às palavras (SENELICK, 2017, LOCAIS DO KINDLE 598 –
606).

Os compositores Hervé (Louis-Auguste-Florimond Ronger) e Charles Lecocq,

36 Arcádia- Província da Antiga Grécia. Com o tempo, se converteu no nome de um país imaginário,
criado e descrito por diversos poetas e artistas, sobretudo do Renascimento e do Romantismo. Neste
lugar imaginário reina a felicidade, a simplicidade e a paz em um ambiente idílico habitado por uma
população de pastores que vivem em comunhão com a natureza (...) Neste sentido possui quase as
mesmas conotações que o conceito de Utopia (Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Arc%C3%A1dia_(poesia)>. Acesso em: 20/05/19).
37
Boulevard- Termo usado na França em expressões como “teatro de boulevard”, “peças de boulevard”
ou simplesmente “boulevard”, designando um tipo de teatro de entretenimento predominantemente
comercial. O repertório desses teatros é geralmente formado por farsas e melodramas, e o objetivo
principal é a diversão. (Vasconcellos, L.P. Dicionário de Teatro. L&PM Editores, p. 31)
38 Melodramas- Gênero dramático que floresceu nos séculos XVIII e XIX, embora ainda hoje exerça

grande influência tanto no teatro como no cinema e na televisão. O termo deriva das experiências
renascentistas de recriação da tragédia através da fusão da música e do drama. (Vasconcellos, L.P.
Dicionário de Teatro. L&PM Editores, p. 124)
33

contemporâneos de Offenbach, não desfrutavam de tanto sucesso quanto ele.


Lecocq possui certa importância para o teatro brasileiro pois sua obra La Fille de
Madame Angot (1872), inspirou a burleta A Filha de Maria Angu, de Artur Azevedo.
A obra de Offenbach chega, então, à Inglaterra, vindo a influenciar a obra daqueles
que são considerados os precursores do teatro musical estadunidense: Gilbert &
Sullivan.

2.5.2. Gilbert & Sullivan e as Savoy Operas

A influência da ópera-comique francesa se fez presente em outros países, como na


Alemanha e na Grã-Bretanha, abrindo o caminho para as Savoy Operas de Gilbert &
Sullivan, cujas obras virão a influenciar toda a história do teatro musical nos Estados
Unidos. As obras de Gilbert & Sullivan são conhecidas como as Savoy Operas, pois
eram encenadas no Savoy Theatre, construído pelo empresário teatral Richard D'Oyly
Carte para abrigar as montagens da dupla.
O que Offenbach estava fazendo em Paris ia além das ballad operas inglesas, pois as
canções eram inteiramente inéditas, e não paródias. Isso despertou o interesse de
Gilbert, que traduziu para o inglês a obra Les Brigands, de Offenbach, em 1871, o
mesmo ano em que Gilbert & Sullivan lançaram seu trabalho em associação. O fato
de Gilbert ter feito a tradução dessa obra demonstra o interesse dele pela linguagem
de teatro musicado que estava sendo desenvolvida na França, e que havia ido um
passo além dos teatros de variedades, dos Minstrel Shows39, circos e outras
manifestações que associavam teatro e música.
Gilbert e Sullivan podem ser considerados como os principais engenheiros da cultura
teatral do século XX e seu mais característico ícone cultural: o musical. Bradley (2005),
diz que “mesmo que nenhuma nota de suas óperas tivesse soado novamente após
sua estreia, ainda teriam influência massiva na cultura inglesa e americana”. Foram
pioneiros na criação do tipo de show que ainda hoje lota as casas da Broadway e West
End, além de teatros ao redor do mundo que recebem montagens vindas destes
lugares e as realizam com elencos locais.
Gilbert e Sullivan são responsáveis pelo modelo do libretto, em que música e letra são
combinados de forma integrada, demonstrando que o musical pode ser

39
Minstrel Shows – Como único gênero estadunidense nativo de teatro, o minstrel show é o mais
importante antecedente dos Musicais do século XX. (Bauch, Marc A. (2011-12-19T23:58:59
“Gentlemen, Be Seated!” The Rise and Fall of the Minstrel Show. GRIN Verlag. Edição do Kindle posição
33)
34

entretenimento mesmo abordando assuntos políticos e sociais. Foram os que


tornaram o teatro musical norte-americano possível, pois escreveram os primeiros hits
de musicais, exclusivamente para o teatro, trazendo inovações radicais em vários
aspectos, como o papel importante que dão ao coro, por exemplo. Mas talvez a
conquista mais importante da dupla tenha sido transformar o teatro, um ambiente
obscuro frequentado por bêbados e trabalhadores, em local de entretenimento para
toda a família de classe média, agora livre para frequentar o teatro sem nada que
pudesse causar-lhes vergonha. Gilbert e Sullivan criaram uma nova forma de
entretenimento afinada entre o music hall e a sala de concerto, inteligente sem ser
pedante, e de bom gosto sem ser pretenciosa. Isso torna o teatro musical uma forma
perfeita de entretenimento familiar, primordialmente por estabelecer paridade entre
letra e música, o que é comprovado pelo fato de que seus nomes nunca estão
separados nos créditos. Inicia-se com eles a histórica parceria entre compositor e
libretista, seguida por Rodgers e Hammerstein, Lerner e Lowe, Rice e Lloyd Webber,
como herdeiros diretos. Cabe dizer que nessas parcerias a música está geralmente
subordinada à letra. Ainda que haja exceções, os musicais do século XX têm sido
guiados pela palavra, com as letras sendo escritas primeiro e depois arranjadas para
música (BRADLEY, 2005).
Até então, o musical norte-americano não passava de uma forma primitiva de pequeno
desenvolvimento artístico, como Minstrel Shows, tipo de entretenimento existente até
os primeiros anos do século XX. Foi quando Offenbach e Gilbert & Sullivan dominaram
os palcos estadunidenses, no século XIX, que sua influência no musical adquiriu a
importância que tem até hoje. Mordden (2013, p. 7-10), coloca que

Foi apenas após a exposição ao musical europeu que a forma do musical


americano começou a favorecer scores de histórias completas: a base do que
se conhece hoje. (...) O uso de pastiche feito por Offenbach foi especialmente
influente, trazendo ao musical americano uma variedade de texturas e riqueza
de “significados” não encontrados em gêneros comparáveis de outras culturas

2.6. O teatro musical nos Estados Unidos da América

Antes de sofrer influência significativa das companhias europeias de ballad operas e


operetas, a principal forma de entretenimento nos Estados Unidos eram Minstrel
35

Shows e pantomimas, forjados desde os tempos em que puritanos40 e quakers41


rejeitavam o teatro, aceitando apenas as formas musicadas de entretenimento. Estes
espetáculos encontrados nos teatros frequentados pelas classes trabalhadoras, eram
também oferecidos pelas companhias que desembarcavam nos Estados Unidos nos
anos da colonização, tendo várias delas desembarcado para ficar.
Desde muito antes do século XIX, espetáculos europeus já eram levados às colônias
americanas. Óperas inglesas, burlesques - paródias de peças ou pessoas famosas,
geralmente com números de dança e música e diálogos - eram importações bastante
populares, assim como as extravaganzas e spectacles.
Contrariando outros autores, Mates (1987), considera o teatro musical norte-mericano
uma forma nativa de arte. Para que o teatro fosse aceito pelas comunidades dos
Estados Unidos em formação, diz ele, era necessário que a encenação fosse contada
através de música, disfarçando a parte teatral, já que o teatro era considerado
demoníaco. Na maioria dos casos, além de entretenimento, a música era considerada
moral.
O início da vida teatral nos Estados Unidos se deu com performances amadoras, no
século XVII, e algumas tentativas de apresentações profissionais no início do XVIII.
Notícias de jornais da época anunciam número crescente de produções,
demonstrando o interesse em óperas e apresentações teatrais. Estas companhias
teatrais vinham da Europa, e começaram a exercer grande influência local,
mesclando-se com atores locais, tendo algumas, inclusive, permanecido nos Estados
Unidos.
Contudo, não havia uma tradição dramática nem herança cultural nas colônias
americanas. A cultura do entretenimento de palco foi sendo formada a cada
companhia estrangeira que chegava trazendo sua arte. E as primeiras peças vistas
nas colônias eram musicais, tanto tragédias quanto comédias, moldando o gosto e a
tradição dramática estadunidense pelo teatro musical.

Peças com música, provavelmente a forma mais persuasiva de música de


palco americana e popular, durante os anos 1860-1870, eram apresentadas
para plateias pobres e ricas, em teatros urbanos e palcos por todo os Estados
Unidos e seus territórios. Eram apresentadas por performers amadores em
casas ou pequenos teatros, por profissionais em circos, shows de menestréis
e shows de variedades, e produções dramáticas, em barcos, tendas, halls de

40 Puritanos-[ Do ingl. Puritan] Adj. Diz-se do membro de uma seita de presbiterianos mais rigorosa que
as demais, e que pretendia interpretar melhor do que ninguém o sentido literal das Escrituras.
(Webster’s New International Dictionary of the English Language, p. 2016)
41 Quakers- Alguém de seita religiosa fundada por George Fox, de Leicestershire, Inglaterra, por volta

de 1650, membros os quais chamam-se entre si de Amigos. (Webster’s New International Dictionary of
the English Language, p. 2031)
36

variedades, teatros dramáticos e feiras. Incluíam formas como sketches,


farsas, burlesques e peças inteiras. Os assuntos podiam variar de completa
comédia ao melodrama, a retratos étnicos (ROOT apud MATES, 1987,
LOCAIS DO KINDLE 331).

. Os Minstrel Shows representam a forma dominante de arte de palco musicada dos


Estados Unidos antes da invasão artística europeia: uma forma artística de formato
primitivo, mais um show de variedades do que teatro per se, formados a partir de
canções, danças e piadas. Os Minstrel Shows duraram aproximadamente até os anos
1920. Inicialmente as companhias de menestréis eram formadas apenas por homens
brancos, que representavam tantos papéis femininos quanto o de negros, dando início
a uma longa (e polêmica!) tradição do chamado blackface42. Eram shows formados
por três partes, como se verá a seguir.

A primeira constava da entrada de toda a companhia no palco, que se sentava em


semicírculo. Um interlocutor, espécie de apresentador, anunciava um a um os
números, sempre fazendo piada de cada um deles. As piadas eram sempre
tradicionais e repetidas. A segunda parte era conhecida como olio: uma sequência de
variedades que podiam ser de qualquer tipo – canção, dança, atos de comédia,
música tocada com copos de água, imitações, discursos cômicos de imitações de
políticos. A terceira parte trazia uma pequena peça com canções. Essa terceira parte
foi a que deu origem à comédia musical americana, ao receber influência de
Offenbach e Gilbert & Sullivan, por meio das companhias itinerantes europeias. O
Minstrel Show era a única forma genuinamente americana de teatro musical dessa
época, trazendo canto e teatro num único espetáculo (MORDDEN, 2013).

Existiu um grande número de musicais que contavam histórias com a forma


aristotélica de começo, meio e fim, a partir de meados dos anos 1700 como por
exemplo The Archers (1776), de Dunlap & Carr; e The Seven Sisters (1860), de T.B.
de Walden. Infelizmente restaram apenas breves trechos de suas músicas, não o
suficiente para que se possa concluir nada a respeito delas. Diz Mordden (2013, p.
12):

A maioria destes shows conhecidos como musicais, de meados do século XIX,


eram de fato peças com canção e dança que davam certo. Virtualmente todo
teatro tinha uma orquestra – e isso perdurou até os anos 1920 – pois uma das
razões pelas quais as pessoas iam ao teatro em primeiro lugar, era para ouvir
música.

42
Blackface- Nos Minstrel Shows, atores tinham seus rostos pintados com rolhas queimadas para se
caracterizarem como negros.
37

Antes que os pesquisadores começassem a levar em consideração as produções


citadas anteriormente, a extravaganza The Black Crook (1866), de Charles M. Barras
com música de Thomas Baker, Giuseppe Operti e George Brickwell, costumava ser
considerada como a primeira produção genuinamente estadunidense, escrita por
norte-americanos. De acordo com Lubbock (1962), The Black Crook vinha de uma
matriz importada, imitando as produções das companhias europeias. Ainda que não
tenha sido a primeira manifestação de teatro musical estadunidense, foi esse
espetáculo que introduziu o coro feminino, números ornamentados, figurinos
elaborados, canções provocativas, e grandes coreografias. Havia uma preocupação
de se chegar a um tipo de entretenimento musical que fosse estadunidense em estilo,
formato e espírito. Por isso, as comédias musicais passaram a abordar assuntos dos
Estados Unidos, exclusivamente.
O novo jeito de encenar trazido por The Black Crook ajudou a estabelecer a comédia
musical norte-americana como gênero, trazendo ao palco personagens tipicamente
norte-americanos, diálogos coloquiais e melodias locais. Porém, o foco não era a
trama teatral, mas sim qualquer coisa que pudesse levar a números de dança e
canções. A obra não era importante, mas sim os seus elementos e atores famosos.
Essa foi, por muito tempo, a fórmula da comédia musical norte-americana, talvez até
hoje.
Apesar de não mais ser considerada a primeira obra de teatro musical estadunidense,
The Black Crook marca, de acordo com Mordden (2013), o início da Primeira Era dos
Musicais, que vai de 1866 a 1899, quando gêneros primitivos eram elaborados a partir
dos shows importados da Europa, que maravilhavam o público com sua integração de
música e história.

2.7. Do Século XX aos nossos dias

Uma nova tendência surge a partir da década de 1920, quando algumas produções
dispensam a grandiosidade dos cenários e figurinos e concentram-se num formato de
espetáculo com elencos menores e sem atores famosos. Esses espetáculos
buscavam sofisticação, diálogos inteligentes, belas canções, personagens e tramas
puramente norte-americanas. Foi a dupla de autores Rodgers e Hart introduziu o
psicologismo nos personagens (o que era algo recente naquela época), episódios
históricos e literários, afastando, cada vez mais, a comédia musical norte-americana
da tradição do vaudeville e trazendo-a cada vez mais para perto da teatral. Não
38

tiveram receio de abandonar a tradição, levando a comédia musical para uma fase
madura.
Em 1927, os autores Oscar Hammerstein II e Jerome Kern realizam a revolução final,
com o espetáculo Show Boat, levando ao teatro musical como é feito hoje. A trama
teatral passa a ser prioridade e todo o restante – figurinos, cenários, iluminação –
passa a servir ao texto. Uma completa integração entre canção e texto, uma história
consistente e personagens imbuídos de profundidade dramática.

Show Boat pegou o melhor dos musicais que vieram antes dele – o ritmo, as
garotas, as risadas, a forma das canções, o segundo casal cômico, um lugar
americano e personagens americanos, o diálogo com gírias, um par de
canções intercaladas, imitações de celebridades, e a essa mistura adicionou
assuntos de complexidade social; personagens reais, trágicas, com falhas;
relações complexas; um score dramático integrado; um som profundamente
americano, forte, e um escopo épico que nenhum outro musical jamais havia
conquistado. Show Boat misturou o melhor do drama americano com o
melhor da comédia musical e criou um novo espécime: o drama musical
americano, o tipo de show que eventualmente passaria a simplesmente ser
chamado de musical (MILLER, 2007, p.24).

Pode-se considerar que, pela primeira vez, a música estava sendo usada como
recurso dramático, como subtexto, no contexto do musical estadunidense. Pela
primeira vez a música entrava no lugar de palavras. Aquilo que os dramaturgos
colocavam nos textos teatrais como rubricas43 agora aparecia em forma de música,
nos underscores44. Esse fenômeno leva o teatro musical a evoluir através de
composições músico-dramatúrgicas, tornando-se, finalmente, um gênero individual.

Percebe-se que, a partir do aparecimento do drama musical, a comédia musical não


desaparece, mas se estabelece como um gênero paralelo, cujo objetivo é o puro
entretenimento. A comédia musical e o drama musical seguem, desde então, cada um
seu caminho próprio. Hoje são os maiores representantes do entretenimento de palco
estadunidense, cada um com suas diferentes aspirações artísticas e propósitos
comerciais. Portanto, o que hoje se chama de um “musical” é, na verdade, o “drama
musical”. É importante ressaltar este fato, uma vez que no Brasil não há o costume de
se usar esta denominação, tudo é chamado de “musical”, ou “teatro musical”.
Ressalta-se que o foco desta pesquisa é a criação de um drama musical, portanto a
partir deste ponto o texto será direcionado para descrever os caminhos trilhados pelo
drama musical.

43 Rubricas- Qualquer palavra escrita de um texto teatral que não faça parte do diálogo. (Vasconcellos,
L. P., Dicionário de teatro. L&PM Editores, p. 171)
44 Underscores – Vide item 3.2.2.6.1., pág. 119.
39

A revolução provocada por Show Boat aconteceu em um momento complexo: dois


anos após sua estreia acontece o grande crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque,
nos Estados Unidos45. E com o advento do cinema, os teatros esvaziaram, muitos
produtores teatrais foram à falência e muitos teatros foram fechados. A década de
1930 não apresenta nenhuma revolução estrutural para o drama musical, mas
aparecem obras importantes que equipararam o drama teatral musical com a
literatura: Of Thee I Sing, de autoria de George e Ira Gershwin, foi o primeiro drama
musical a ganhar o Prêmio Pulitzer 46e também a primeira obra da Broadway a ter seu
roteiro publicado e distribuído comercialmente.

Os anos 1930 ainda trouxeram uma outra contribuição: o teatro musical ganha um
estilo próprio de canto. Ethel Merman foi a atriz responsável por essa mudança.
Rejeitando o uso da voz no registro de cabeça47, como na ópera, e introduzindo o
estilo vocal do belting 48 no teatro musical, Ethel Merman mudou para sempre o estilo
vocal da Broadway, imortalizando vários musicais, como Anything Goes, de autoria de
seu íntimo amigo Cole Porter. Merman também trouxe, além de novas técnicas, um
novo estilo – muito em função do canto popular do rádio – um certo ‘canto-falado’.

A influência que Show Boat poderia ter exercido no drama musical da Broadway pelos
temas que abordava foi interrompida pelos anos da depressão americana 49. A última
coisa que o público desejava era drama em seus momentos de lazer. Somente após
dezessete anos houve uma nova evolução do teatro musical, com a obra intitulada
Oklahoma! (1943). A grande revolução desse musical acontece no âmbito da dança:
Agnes de Mille, a legendária coreógrafa desse musical, passou a integrar a dança de
forma narrativa, na história, tornando-a parte do drama, integrada, assim como a
música e o texto. Pela primeira vez na história um coreógrafo exigiu que a música

45 Crash da Bolsa de Valores dos EUA – Crise econômica resultante da quebra da Bolsa de Valores de
Nova Iorque em 1929.
46
Prêmio Pulitzer – www.pulitzer.org
47 Registro de cabeça- Nomenclatura dada a voz feminina na região aguda da tessitura vocal.
48 Belting- Podemos definir Belting tecnicamente como uma voz de laringe um pouco mais alta, de

espaço faríngeo mais restrito resultando acusticamente em um som muito brilhante. (Araújo, M. Belting
Contemporâneo: aspectos técnico-vocais para teatro musical e música pop. Gráfica Rettec, p.
45)
49 Depressão americana- A Grande Depressão foi a crise mais devastadora da história americana. Ela

teve início em 24 de outubro de 1929, com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, mas suas
raízes começaram a surgir muito antes, enquanto os EUA ainda viviam a euforia de ter superado o
Reino Unido como maior potência mundial (Disponível em: <http://opiniaoenoticia.com.br>. Acesso em:
07/06/2019).
40

fosse composta para sua coreografia, passando a existir aquilo que hoje se denomina
Broadway Dance. Miller (2007, p.50) diz:

Broadway dance seria uma forma única em si mesma, uma que existe para
comunicar a história, personagens, e ainda mais radicalmente, psicologia. (...)
Sem palavras, a coreografia de Agnes de Mille nos deu insights claros e
profundos dos sentimentos, esperanças e medos mais secretos de Laurey
[protagonista de Oklahoma!]

Oklahoma! transgrediu uma série de regras, trazendo inovações, experimentos e


surpresas que já haviam sido usados em vários musicais separados nos vinte anos
que o antecederam. Seu mérito é ter integrado todos esses aspectos da narrativa,
criando um único fenômeno teatral. De acordo com Jones (1998, p.65):
Se você olhar para alguns dos musicais dos anos pouco antes de Oklahoma!,
você verá que houve mudanças profundas na forma do musical, mudanças que
permitiram que as obras que o sucederam sobrevivessem e passassem a ser
parte da literatura dramática do nosso tempo, enquanto que as obras que [o]
antecederam são agora relíquias quase esquecidas.

Pelas três décadas seguintes o musical norte-americano continuou baseando-se


nesse modelo estabelecido por Rodgers e Hammerstein e seguido pelas novas duplas
de autores que se formaram, como Lerner e Loewe. Neste formato foram criados
grandes clássicos como Paint Your Wagon, My Fair lady, Gigi, Gypsy, Fiddler in the
Roof, The Music Man, Hello, Dolly!, entre tantas outras obras. Jones (1998, p. 60),
descreve esse modelo:
Você “compra a propriedade”, uma história com alguma cor e splash e
personagens envolventes. Poderia ser (...) o Pigmalião de Shaw50, (...)
possivelmente poderia ser um filme. Às vezes um original, mas não sempre.
Você resume o roteiro até os ossos.
Você encontra um lugar para inserir um coro de cantores e bailarinos.
Você escreveu canções.
Você levou o show para Boston (ou Philadelphia, ou qualquer lugar).
Você reescreveu e reencenou (e às vezes refez o elenco) em turnê.
Você trouxe para Nova Iorque.
Você teve uma estreia de verdade. Todos os críticos estavam lá de uma só
vez, assim como os formadores de opinião.
Você ou teve um grande sucesso ou um grande fracasso, ou às vezes (não
tão costumeiramente), você ficou entre as duas coisas.
Durante o processo, você foi guiado por alguns princípios claros, pelos quais
todo mundo – escritores, diretores, produtores, atores, plateias e até críticos
– concordavam. São eles:

50 Pigmalião de Shaw- A comédia Pigmaleão é uma das peças mais famosas de [George Bernard]
Shaw. Vem sendo encenada com estrondoso sucesso desde 1912 e em 1964 foi adaptada para o
cinema sob o título de My fair lady, sob direção de George Cukor, com Audrey Hepburn. (Disponível
em: <https://www.lpm.com.br>. Acesso em: 08/06/2019)
41

1. O musical tinha que preencher as necessidades da história e dos per-


sonagens. O libreto era a base fundamental;
2. Todos os elementos tinham que ser integrados num total unificado,
uma obra de arte coesa;
3. Deveria haver um senso de movimento, de mudança, de muitas cenas
e muito cenário (apesar de que o cenário não precisava ser espetacular; a
chave era a mudança mais do que ser espetacular);
4. Tinha que haver muito canto e dança e muita gente para cantar e dan-
çar;
5. Primordialmente, as canções deveriam ser fortemente melódicas, e
simples o suficiente para serem “pegas” na primeira escuta. E usualmente
havia reprises suficientes para garantir que você pudesse assobiar pelo me-
nos uma melodia quando você saísse do teatro;
6. A mensagem básica do show deveria ser positiva. Coisas ruins pode-
riam acontecer, mas no final tudo precisava se resolver;
7. Os personagens poderiam, ou deveriam ser interessantes, mas não
poderiam ser muito “complexos”. Não havia tempo;
8. Por último, não importa quão sério o show pudesse se tornar, não im-
porta quão elevado o tema, precisava haver entretenimento. Precisava haver
variedade, tanto nas cenas quanto nas canções, e melhor que você, por
Deus, tivesse algum humor. Se Shakesperare conseguiu colocar algo de hu-
mor em Hamlet, você poderia fazer disto uma comédia musical.

Esses foram os inquestionáveis princípios do teatro musical norte-americano, o guia


seguido por todos, o cerne do estilo Rodgers e Hammerstein. E, seguindo sua própria
fórmula, a dupla trouxe ao mundo Carousel, o próximo passo dado em direção ao que
se entende hoje por drama musical. O ano era 1945, e Rodgers e Hammerstein
novamente se uniram ao infalível time de Oklahoma!: de Mille na coreografia e Rouben
Mamoulian na direção. Pela primeira vez, Mamoulian rejeitou a maneira como os solos
eram encenados, com os atores vindo até o proscênio51 para cantar. Ele encenou os
52
solos como qualquer monólogo teatral não cantado, assim como duetos. A partir
disso, outros diretores de musicais da Broadway fizeram o mesmo, quebrando a
convenção herdada da ópera. Nessa obra os autores se distanciaram ainda mais da
comédia musical, passando do drama à tragédia. O tema de Carousel, a destruição
marital seguida de suicídio, traz à Broadway a coragem de ir um passo além e mais
fundo no drama humano, distanciando-se cada vez mais do estereótipo das garotas
de collant da comédia musical.

A década de 1950 traz novidades para o drama musical, em que aparece uma
variedade de assuntos abordados e jeitos diferentes de se fazer música. Os temas,
cada vez mais retratavam o mundo real, o drama humano nos seus limites.
Musicalmente, ainda se tem a presença do jazz, que já havia sido explorado nos

51
Proscênio- A parte do palco localizada entre a boca de cena e a plateia. (Vasconcellos, L. P. Dicionário
de Teatro. L&PM Editores, p.161)
52 Monólogo teatral- Tipo de peça de teatro estruturada em torno de um único personagem.

(Vasconcellos, L.P. Dicionário de teatro. L.P. L&PM Editores, p.132).


42

scores53 dos mais variados compositores, mas agora o rock surge nos palcos dos
musicais, em Expresso Bongo, que estreou no West End em 1958. Antes disso, em
1957, West Side Story estreou na Broadway explorando um tênue limite entre a ópera
e o musical, com um elaborado score do compositor Leonard Bernstein. Além de
abordar o delicado tema do preconceito contra a população latina, West Side Story é
um drama musical que fala de amor sem final feliz, em uma recontextualização de
Romeu e Julieta de Shakespeare para a realidade das gangues de Nova Iorque. O
Primeiro Ato termina com dois corpos mortos em cena, e o espetáculo ainda apresenta
o herói morto na cena final. Mas, além do aprofundamento do material dramático e da
complexidade musical incorporada pelo teatro musical dos anos 1950, alguns
importantes experimentos têm seu início no final desta década. Ainda em West Side
Story, o coreógrafo e diretor Jerome Robbins inaugura a era dos chamados dance
musicals, em que a importância do coreógrafo cresce ainda mais. Ocorre uma
reinterpretação da forma e surge a figura do diretor-coreógrafo. Essa figura se torna o
centro da produção, do roteiro e do score. A ele se seguiram diretores-coreógrafos
importantes, como Bob Fosse, Gower Champion e Michael Bennett.

Outro experimento importante desse período é a aparição dos chamados “musicais-


conceito”, em que o estilo é considerado tão importante quanto o conteúdo, sendo ele
o elemento unificador em vez do libreto. Pode-se entender o musical-conceito como
uma história baseada em uma ideia, e não num texto previamente existente. Ao
contrário de Rodgers e Hammerstein, que escolhiam uma boa história e davam a ela
libreto e música, agora o que se considerava apropriado era ter uma visão do
espetáculo como um todo, “um conceito estilo/metáfora que não apenas nortearia o
diretor e o designer, mas também o dramaturgo e o compositor” (JONES, 1998).

O mundo estava passando por mudanças sociais muito profundas. A revolução sexual,
o conflito entre o velho e o novo, a moda, as drogas, o embargo de Cuba, A guerra do
Vietnã, a crescente importância do Movimento Negro, a Guerra Fria. Não havia como
o rock deixar de aparecer nos palcos dos musicais. E assim, aparece o fenômeno
Hair.

Apesar de alguns autores considerarem que este período tenha sido de declínio para
a arte dos musicais, para Miller (2007), “Os anos 1960 foram um tempo de expansão,

53
Score – Forma de música manuscrita ou impressa em que as staves, conectadas por barras de
compasso, são escritas uma sobre as outras, para representar a coordenação musical visualmente;
página, volume, fascículo ou outro artefato contendo cópia completa de trabalho musical.
43

explosão e desconstrução, um tempo em que artistas de teatro musical começaram a


experimentar com a forma, encontrando novos jeitos de usar música no teatro” O
próprio público demandava musicais com mais conteúdo psicológico, o que acabou
alimentando as experiências que passaram a acontecer off-Broadway54.

O circuito teatral off Broadway começa a se tornar uma espécie de incubadora para
musicais considerados incomuns, que buscam experimentar novas linguagens.
Dessas práticas começam a surgir grandes títulos e os musicais-conceito, que vão
longe do realismo e do universo romântico, encontraram espaço nesse circuito. Sem
a aparição do conceito off-Broadway, estes títulos experimentais não teriam tido
chance. O teatro comercial ordenado, seguro, compartimentado não tinha nenhuma
relação significativa com o mundo real caótico dos anos 1960.
O musical americano vai derramar seu estado polido do presente e vai se
transformar em algo aventureiro e desordenado. Vai em breve trocar seu jeito
arrumadinho e penteado por algo menos polido, de perfil mais peculiar. Irá
adiante ou irá encolher, a partir da finesse que o regulamenta agora (...) Mais
do libreto estará no score. Muito mais. Vai haver menos competição dos
elementos colaboradores. (...) E isto pode não acontecer entre a rua 41 e a
54. (...) Nada mais excitante acontecerá no mundo teatral do que este novo
musical. (BOCK apud MILLER, 2007, p. 86)

The Fantastiks foi o primeiro grande fenômeno off-Broadway, marcando o início do fim
da revolução da obra de Rodgers e Hammerstein, antecipando os musicais-conceito
que viriam e rejeitando o modelo antigo, de O Rei e Eu ou A Noviça Rebelde. A
Broadway ainda relutava em manter alguma ligação com o status quo, produzindo
brilhantes obras, como Hello, Dolly!, mas que não traziam nada de novo ou condizente
com a revolução social e política pela qual o mundo vinha passando.

Em 1966 a dupla Kander e Ebb estreia Cabaret, que ganha versão cinematográfica
em 1972. Outro sucesso arrebatador da dupla foi Chicago, em 1975, que também
ganhou versão em filme, em 2002. A atriz-cantora Liza Minelli tornou-se um nome
frequentemente associado à dupla.

Em 1967 Hair estreia off Broadway, para depois estrear na Broadway em 1968. Hair
não apenas era revolucionário por assumir em cena o uso de drogas, o nu frontal e

54
Off Broadway - Na cidade de Nova York, diversos grupos e teatros situados em torno do Greenwich
Village, empenhados na produção de espetáculos que se oponham em custos e estilo aos realizados
na Broadway. As casas de espetáculo são geralmente pequenas, o repertório inclui peças estrangeiras,
novos autores e remontagens, além de uma linguagem cênica muito mais próxima do experimental ou,
pelo menos, não comprometida com o tradicional ou o comercial (Vasconcellos, Luiz Paulo. Dicionário
de Teatro. L&PM Editores. Edição do Kindle posição 2628).
44

todo um questionamento social, mas também ancorou o rock nos palcos da Broadway.
E não apenas isso: a obra não tinha exatamente algo que se pudesse chamar de
libreto, no senso usual da palavra. Diz Jones (1998, p. 76):
Diretor e autores (que também eram os protagonistas) jogaram fora o enredo
libreto linear e introduziram algo novo no lugar. Era mais um revue que um
musical com texto regular. Mas, na verdade, era algo mais: era a
apresentação de um estilo de vida, uma alternativa ao costumeiro score da
Broadway, e uma alternativa aos normais valores morais da Broadway (que
ainda estavam conectados ao otimismo dos velhos dias de Rodgers &
Hammerstein).

Hair preparou o terreno para outros musicais-conceito não lineares, inovação que
dominou o musical norte-americano nos anos 1970.
Pode-se considerar Company, de Stephen Sondheim e George Furth, como o grande
acontecimento de 1970. Nada como aquilo havia sido produzido na Broadway antes.
Um musical-conceito totalmente não-linear, em que a personagem central apresenta
para o público suas observações sobre os casamentos de seus amigos, para que ele
próprio possa tomar uma decisão a respeito de envolver-se romanticamente ou não.
As canções são comentários, cantadas por personagens que não estão envolvidos na
cena, direcionadas diretamente ao público. Levado a uma viagem junto com a
personagem central, o público participa de seus pensamentos, vendo todos os
personagens sob o ponto de vista do protagonista. Conforme amadurece em seus
sentimentos, os personagens vão sendo caracterizados de forma mais completa e
profunda. Como as canções são comentários, “o deslocamento da maioria das
canções nas cenas reforça o sentimento de fragmentação e separação trazido pelo
show” (JONES, 2003).
Nos anos 1970 vários títulos importantes ocuparam os teatros da Broadway. Musicais-
conceito e experimentações não-lineares continuaram a acontecer. Revues como
Godspell e A Chorus Line, que não necessariamente contam histórias com tradição
aristotélica (começo, meio e fim), tornaram-se populares. Os temas abordados
deixaram de ser romances com finais felizes para explorarem a decadência do sonho
americano, para retratarem a falta de esperança que havia tomado conta do espírito
nacional, escancarando no palco o sexo, as drogas e o questionamento das
instituições do casamento e das religiões. O clima de cinismo e sátira nas letras havia
chegado para ficar. Os black musicals 55ganharam maior força nos anos 1970. Os

55
Black musicals – Nos Estados Unidos, musicais escritos e apresentados nos últimos 200 anos por
afro-americanos com o intuito de representar a experiência afro-americana. (Disponível em:
<www.enotes.com>. Acesso em: 03/07/2019).
45

grandes coros foram enxugados. A Broadway estava finalmente mostrando em cena


o que era a verdadeira vida dos norte-americanos e os norte-americanos reais: latinos,
asiáticos, negros, gays, o Movimento Hippie. Enfim, todos retratados nos palcos que
antes apenas caracterizavam os Estados Unidos dos caucasianos.
Company, Godspell, Rocky Horror Show, A Chorus Line, Follies, Sweeney Todd,
Chicago, Jesus Christ Superstar, Pippin, entre tantos outros títulos imortais, fizeram
parte deste avanço no período.
As décadas de 1970 e 1980 ainda trouxeram para a Broadway o retorno de um formato
conhecido, para tentar salvar a crise criativa e econômica do período Tatcher56 que
provocou uma crise também nos Estados Unidos: o musical inteiramente cantado,
conhecido como sung-through musical, resgatando da ópera esta maneira de fazer
música cênica. O musical, até então, havia seguido como descendente da opéra
comique e das ballad operas, misturando o diálogo falado com canções. Diz Jones
(1998, p. 82):
De muitas maneiras este é o mais interessante dos desenvolvimentos recentes.
E certamente o mais popular. (...) O que são estes fenômenos? Serão
verdadeiramente uma nova forma? Sim, na verdade, sim. Ou, mais
acertadamente, são um amálgama de várias formas anteriores agora numa só.
Em primeiro lugar, estas obras têm um score orientado para o rock. Em
segundo, emprestaram do musical americano a sua perícia. Em terceiro, se
escoram pesadamente nas tradições da opera europeia. Misturam a
grandiosidade da ópera tradicional com sensibilidades do rock e o know-how
da Broadway. Não é de admirar que são um grande sucesso. Pela primeira vez
a opulência da ópera é misturada com um som contemporâneo e vendida com
a sofisticação do showbiz.

Um dos títulos mais significativos que exploraram essa forma de teatro musical foi Les
Misèrables, um musical francês adaptado para a Broadway pelo produtor teatral
britânico Cameron Mackintosh, estreando na Broadway em 1982. O compositor
Andrew Lloyd Webber já havia explorado esta forma nos anos 1970, com Jesus Christ
Superstar e Joseph and His Amazing Technicolor Dreamcoat. O libretista de Les
Misèrables, Alain Boublil havia sido convidado para assistir Jesus Christ Superstar,
em 1973, e contam que teria saído do teatro convencido de que queria fazer um
musical daquele jeito. Demorou dez anos. Les Miz apelido carinhoso do musical,
estreou na França, passando por Londres e finalmente desembarcando nos Estados
Unidos. Boublil uniu-se ao compositor Claude-Michel Schönberg para outro grande

56 Margareth Tatcher - (1925-2013) foi primeira-ministra britânica e a primeira mulher a ocupar este

posto. O governo de Thatcher durou onze anos, de 1979 a 1990, e se caracterizou pela implantação
do neoliberalismo no Reino Unido. (Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/margaret-
thatcher>. Acesso em: 08/06/2019).
46

sucesso: Miss Saigon, de 1989. Martin Guerre foi outro título da dupla, que não fez o
mesmo sucesso dos outros dois musicais, vindo a estrear bem mais tarde, em 1998,
apenas em Londres.
Lloyd Webber também explorou esse terreno. Além das duas obras supracitadas,
ainda compôs, neste estilo, Cats, Evita e Sunset Boulevard.
Alguns autores consideram os anos 1980 os menos interessantes da história da
Broadway. Apesar de esta década ter contribuído com obras que se tornaram
famosas, como Cats, Dreamgirls, Sunday in the Park With George, Phantom of the
Opera, a maioria das obras encenadas no período não tinham grande significado. Diz
Miller (2007, p. 156):
Os anos 80 trouxeram consigo alguns dos musicais mais medíocres a chegar
na Broadway em anos. (...). Alguns escritos por grandes talentos, outros
possuíam material forte mas saíram dos trilhos por serem mal produzidos
(como Chess, de Tim Rice), mas a maioria deles era simplesmente fraco.

De qualquer forma, os anos 1980 inauguram a era dos chamados megamusicais, que
são peças inteiramente cantadas com cenários, coreografia e efeitos especiais pelo
menos tão importantes quanto a música, feitos para criar fortes reações emocionais
da plateia. O uso de tecnologia representa uma importante característica desse tipo
de espetáculo. Há também, a retomada dos grandes coros, massas vocais com
grande número de participantes no palco, reforçadas por cantores de fosso 57.
Outro fato significativo é que nos anos 1980 o aspecto mercadológico ligado à
produção destaca-se, passando para o primeiro plano, sobrepujando o talento do ator.
Não que haja menos talentos nos palcos, pelo contrário, os atores de musicais foram
se tornando cada vez mais especializados, porém os aspectos da produção tornaram-
se mais importantes. Miller (2007, p. 158) exemplifica:

O problema de Cats e shows deste tipo foi a nova mentalidade que trouxeram
consigo à Broadway. Na era do megamusical, produtores queriam que cada
público, durante toda a temporada daquele musical, assistisse exatamente à
mesma performance, mesmo que um show durasse vinte anos, rejeitando a
espontaneidade inerente e a imprevisibilidade do teatro feito ao vivo, em troca
da consistência e performances congeladas dos filmes. Nestes shows,
quando um ator entrava para substituir outro, ele ou ela eram obrigados a
interpretar exatamente como a pessoa antes dele ou dela, sem variações,
sem exceções. Atores nestes shows tornaram-se imitadores, peças numa
máquina que já estava funcionando, ao invés de artistas criadores. Esta
mudança ajudou a afundar a energia criativa da Broadway por um longo
tempo.

57
Cantores de fosso - São os cantores que ficam fora de cena, ou no fosso da orquestra ou em cabine
especial, para cantar as linhas mais complexas do coro ou complementar a massa sonora vocal do
espetáculo.
47

A importância do produtor e do marketing pode ser exemplificada pela figura do


produtor teatral Cameron Mackintosh:

A pura teatralidade da visão de Mackintosh (...) criando algo maior do que a


mera soma das partes e então fazendo marketing de tudo com eficiência
memorável – define muito do que faz do megamusical uma parte crítica do
teatro musical de hoje em dia. (PRECE, EVERETT apud EVERETT, LAIRD,
2009, p. 251)

A década de 1990 é conhecida como a era da disneyficação dos musicais, e a


continuação maciça das montagens tecnológicas, iniciada com a estreia de Beauty
and the Beast, em 1993. A linguagem simplista, focada no talento artístico, as
explorações e os temas de discussão político-social encontrariam mais espaço no
circuito off Broadway. Isso pode ser representado pelo fato de que foi exatamente em
1990 que o musical A Chorus Line encerrou sua longa temporada. Algo como esse
musical não teria mais espaço na Broadway dos megamusicais.
Mas nem só de Disney viveu a Broadway dos anos 1990. Vários títulos apareceram
como resposta à esta massificação do entretenimento. The Kiss of the Spider Woman
colocava em cena dois personagens latinos, numa Argentina ditadorial, presos, um
por ser militante político, outro por ser gay. O musical Once on This Island também
chega trazendo total simplicidade de figurinos e cenários, sendo considerado uma
resposta ao imenso glamour de Litlle Mermaid.
Contudo, a revolução da década de 1990 foi Rent. Não pelo rock and roll, não pelo
tema, mas por ter representado um fenômeno social jamais visto, nem mesmo em
Hair. Um fenômeno que traz a juventude de volta aos teatros, por se sentir
representada. Os jovens assistiam dezenas de vezes. Pela primeira vez um musical
colocou as duas primeiras fileiras de cadeiras à venda por vinte dólares apenas para
que as pessoas sobre quem o musical falava pudessem vir ao show. A venda desses
lugares fazia toda uma geração enfrentar grandes e demoradas filas, que se tornaram
tão longas que acabou sendo instituída uma espécie de loteria para sorteio dos
ingressos. Rent teve um sucesso tão estrondoso que a Broadway não teve como
resistir: abriu suas portas para esse espetáculo originado no circuito off Broadway e
trouxe jovens artistas de pouca ou nenhuma técnica, mas que representavam com
total sinceridade o retrato de sua geração.
Desde os anos 1980 muitas tem sido as experiências nos palcos da Broadway. Muita
coisa surgiu questionando o modelo Rodgers e Hammerstein que perdurou por tanto
tempo. O novo tem sido recebido, ainda que não perdure ou emplaque. A não-
48

linearidade do roteiro, até mesmo com a história sendo contada de trás para a frente,
como em The Last Five Years, de J. R. Brown, tem sido bastante experimentada.
Arranjos mais arrojados vêm saindo do som das orquestras.
Uma grande crise se abateu sobre o teatro musical americano logo após o 11 de
setembro. O início do novo século trouxe tempos bastante obscuros para a Broadway.
Muitos shows se tornaram comercialmente inviáveis e fecharam suas portas. Outros
precisaram dispensar toda sua orquestra e passaram a usar playback para não
encerrarem a temporada. Aos poucos, e com a ajuda de verbas públicas, a Broadway
conseguiu manter-se funcionando.
No momento atual, com a Broadway financeiramente recuperada, os megamusicais
continuam a ter sucesso, com grande uso de tecnologia, mas sem trazer nada de
inovador. Há quem diga que este momento seria de abertura para que algo de novo
acontecesse e mudasse mais uma vez a história da Broadway.
49

3. O Processo Criativo de
e 47 – O Musical
A partir do histórico traçado e de conclusões obtidas nas conversas com outros
autores, o processo criativo começou a se concretizar. Ficou clara a necessidade de
estabelecimento de etapas para que a ideia inicial pudesse ganhar forma; portanto,
foi necessário encontrar apoio em técnicas estabelecidas de construção dramatúrgica.
Seguem descritas as pesquisas e técnicas utilizadas para contemplar o processo
criativo de
e 47 – O Musical
al. Serão discutidos o tipo de musical, as técnicas auxiliares
de escrita e composição, as estruturas de texto e música que serviram como
ferramentas para a criação.

O primeiro passo do processo criativo foram as seguintes indagações:


a) Sobre o que escrever/compor?
b) Que tipo de musical desenvolver?
c) Como elaborar o trinômio texto-música-letra a partir de um processo coletivo?
d) Como autores têm solucionado essa elaboração criativa na atualidade? Suas
ideias podem esclarecer dúvidas a respeito do processo criativo?
e) Como transpor essas respostas para dentro de um processo criativo de obra
inédita?

A partir dessas indagações foi possível estabelecer parâmetros para o trabalho criativo
na concepção de
e 47 – O Musical
al: como seriam respondidas as perguntas acima?
50

3.1
1 . Um Musical-Conceito
O mercado de teatro musical da atualidade classifica as obras que vêm sendo trazidas
a público em algumas categorias básicas:: book musicals
ls;
s; sung-through musicals
ls; as
novas operetas; os musicais-conceito, ou
u concept musicals
ls; musicais de dança, os
dance musicals;
s; e as chamadas
as revues.
Essas classificações ajudam a criar uma tipologia para as obras mas podem ser
confusas e nem sempre servem a um bom propósito. São meramente uma bússola
para guiar autores e estudiosos do teatro musical. Se observadas rigidamente, são
confinadoras e muitos musicais as extrapolam (FRANKEL, 1977).
Os
s book musicals
ls são obras adaptadas de uma fonte preexistente, como um livro,
filme ou peça teatral não musical. Neles, alternam-se partes cantadas e diálogo falado.
Como exemplo pode-se citarr Ragtime
me (MCNALLY e AHRENS, 1996) e Oklahoma!
(RODGERS e HAMMERSTEIN, 1943
43).
Os musicais conhecidos como sung-through musicals
ls são aqueles inteiramente
cantados – ou quase –, em que os diálogos seguem os padrões da opera seria
ia.
Esse tipo de musical apareceu mais recentemente na história da Broadway, com o
advento dos megamusicais de grandes produções e de investimentos multimilionários.
Eles podem ou não ser adaptações de obras preexistentes.
s. Les Misèrables
es (BOUBLIL
e SCHOENBERG,1980) é um exemplo típico desse tipo de musical.
É difícil traçar uma linha divisória entre um
m sung-through musical
al e uma Broadway
ópera. Sobre isso, diz Frankel (1997, p. 3):
51

“Broadwayy opera”
p (para
(p cunhar um termo)) foi o passo
p seguinte
g a partir
p do
Drama Musical. Opera,
p , nem tradicional nem contemporânea,
p , é teatro musical,,
falando estritamente,, porque
p q [[opera]
p ] tende a ser estática ao invés de mover-
se,, muito menos dançar,ç ,epporque
q emprega
p g música de fontes eruditas como
elemento dominante. “Broadway y Opera”
p também coloca a música em um
patamar mais importante
p p do q
que em q
qualquer
q outro tipo
p de teatro musical,, mas
a música vem de fontes populares
p p e se mantém em equilíbrio
q com todos os
outros elementos do musical. Tanto Opera
p quanto
q Broadwayy Opera
p tendem ao
espetacular,
p , mas em conteúdo e tratamento, “Broadway opera” é vernácula, e
não literária
ia.

Nessa categoria, são encontradas obras que vão desde as óperas-rockk Jesus Cristo
Superstar
ar (ANDREW LLOYD WEBBER E TIM RICE, 1971) e Tommy
my (TOWNSEND E
MCANUFF, 1969) até obras como
o The Most Happy Fella
la (FRANK LOESSER, 1956) e
Sweeney Todd
dd (STEPHEN SONDHEIM, 1979).
Já as novas operetas são os novos espetáculos escritos à maneira da antiga opereta,
porém com um tratamento tipicamente norte-americano. Em geral, possuem cunho
lírico, com abordagem romântica e fantasiosa, porém refletindo o mundo real.
Carousel
el (RODGERS E HAMMERSTEIN, 1945) e The King and I (RODGERS e
HAMMERSTEIN, 1951) são duas obras que podem ser apresentadas aqui como
exemplos.
Os
s dance musicals
ls são obras diferenciadas que, apesar de serem consideradas
musicais, são espetáculos em que a dança tem maior importância. A história não é
contada por meio de canções, mas sim da dança. Em musicais comuns, se um número
de dança for eliminado, provavelmente a linha do enredo não se perderá, pois o que
move a história adiante é a canção. Neste caso, a dança fará o enredo se mover. Um
exemplo desta categoria é Contact
ct (JOHN WEIDMAN E SUSAN STROMAN, 1999).
Ass revues
es são musicais que não necessariamente contam uma história de forma
linear. Seus números musicais não fazem o enredo seguir adiante. Em uma
a revue
ue, os
números musicais são mais ilustrativos do tema abordado pelo espetáculo ou do
personagem que canta.. Revues
es famosos são
o Godspell
elll e Hair
air, por exemplo. Seus
números musicais dão a conhecer algo a respeito dos personagens que os cantam,
ou apresentam fatos que pontuam e dão vida a determinados momentos do
o show
w.
52

Mas não há uma história linear e as canções não constroem um fio condutor para o
enredo, pois este é ausente.
Já os musicais-conceito trouxeram à Broadway a possibilidade de que histórias
fossem criadas a partir de uma ideia original, ao invés de serem alguma adaptação de
obra preconcebida.. Company
ny, do de Stephen Sondheim, por exemplo, foi criado a
partir da ideia de escrever a respeito do casamento, para explorar um conceito do qual
ele, o autor, não sabia nada, por nunca ter sido casado até aquela ocasião.
Esse projeto descreve o processo criativo de um musical cuja narrativa se
desenvolveu a partir de inquietações e questionamentos em torno do nascimento de
uma criança com síndrome de Down
n58. De como esse acontecimento pode tocar a
vida das pessoas envolvidas com esse bebê. E mais: De que forma isso modifica suas
jornadas pessoais? Como se remoldam as relações entre aqueles que estarão
envolvidos com esse bebê após seu nascimento? O que esse evento pode causar em
termos psicológicos e emocionais nas pessoas envolvidas por tal realidade? Não
havia nada além de uma ideia – narrar esse acontecimento a partir de dois casais de
amigos. Quatro atores, quatro vozes cantando. E que o espetáculo dialogasse
bastante com a tecnologia, como se a internet fosse um quinto personagem.
O segundo passo foi buscar técnicas dramatúrgicas que apoiassem o
desenvolvimento de um enredo a partir de uma ideia. Não havia uma história, apenas
um questionamento. A estrutura facilitaria o desenvolvimento de uma linha dramática
com começo, meio e fim.
Estava claro para a equipe criativa que este espetáculo deveria abordar o fato de que
existe hoje um tratamento possível para pessoas com síndrome de Down. Este fato
ainda é desconhecido da maioria das pessoas, e essa informação será apresentada
pelo heróii 59da narrativa, através de seu diálogo pessoal com a internet.
Assim, o que existe é uma inquietação, uma informação e um herói – que se
estabelece como tal, pois tem a informação que os outros não têm. A partir desse

58Síndrome de Down- A síndrome de Down é causada pela presença de três cromossomos 21 em


todas ou na maior parte das células de um indivíduo. Isso ocorre na hora da concepção de uma criança.
As pessoas com síndrome de Down, ou trissomia do cromossomo 21, têm 47 cromossomos em suas
células em vez de 46, como a maior parte da população. (Disponível em:
<http://www.movimentodown.org.br/sindrome-de-down/o-que-e/>. Acesso em: 08/06/2019)
Herói – pág 77
53

trinômio – inquietação, informação, herói –, pareceu importante pesquisar a Jornada


do Herói
ói60, com o intuito de embasar a construção de um personagem central.
Foi, então, preciso dar forma ao que era inicialmente uma inquietação disforme.
Assim, o estudo da Jornada do Herói acabou por introduzir a ideia do monomito
o 61 como
estrutura necessária ao processo criativo.
O estudo do monomito levou a pesquisa ao encontro de autores que descrevem esta
estrutura narrativa como algo bastante usado na Broadway. O dramaturgo Julian
Woolford
d62, por exemplo, costuma usar a estrutura do monomito como bússola para
orientar seus processos criativos. Diz esse autor:

Estudo acadêmico a respeito


p do monomito é um campo p considerável e,, como
uma boa história,, todos se apropriam
p p dele. (...)
( ) O monomito é uma ferramenta
de análise,, não uma receita. Você não pode
p simplesmente
p mover-se de um
ponto a outro e chegar
p g ao fim com uma história perfeitamente
p estruturada. (...)
( )
O que
q [o[ monomito]] lhe ppermite fazer é analisar sua pprópria
p história para
p decidir
se determinados estágios
g têm peso
p suficiente ou se as jornadas
j de seus
personagens estão fortes o suficiente a cada ponto [da história]a] (p. 88-89).

Explorar a técnica dramatúrgica do monomito acabou por se tornar o caminho


escolhido, a partir da leitura das obras de Woolford, Campbell e Vogler.

60Jornada do Herói – Vide 3.2.1., pág. 90


61Monomito- A palavra monomito foi cunhada por James Joyce em Finnegan’s Wake (new York: Viking
Press, Inc, 1939), p.581
65 Julian Woolford – Diretor teatral e escritor, (...) chefe do programa de pós-graduação em teatro
musical na Guilford School of Acting.
(Disponível em: <http://www.julianwoolford.net/Biography.html>. Acesso em: 23/06/2019)
54

3.2. Técnicas para realização de uma obra de teatro musical

3.2.1. Dramaturgia

A forma em si nos diz que estamos vivenciando uma


história – e não apenas vivenciando uma série de
eventos quaisquer costurados juntos sem nenhuma
razão aparente.
(Steve Cuden)

A escolha de uma estrutura formal não prejudica, de maneira alguma, o processo


criativo do autor. O estudo e a aplicação da forma não implicam o uso de fórmulas
prontas. Ao contrário, seu estudo vem a colaborar com a construção de uma história
coesa, tanto na estrutura como em fatos dramáticos e suas relações.
A estrutura usada para contar a história da jornada de um herói está sedimentada há
tempos na dramaturgia. Desde os gregos63 encontramos essa estrutura muito bem
definida. E não apenas a forma de construir, mas também as etapas seguidas pelo
herói em sua jornada.
Já se conhece a importância disso há tempos, na História do Teatro. O filósofo grego
Aristóteles (384-322 a.C.), em sua Poética64, descreve a linha dramática como algo
que deve possuir princípio, meio e fim. Diz Aristóteles:

“Todo” é aquilo que tem princípio, meio e fim. “Princípio” é o que não contém

63 Gregos – Referente à Civilização Grega da Antiguidade.


64
Poética – Obra de Aristóteles escrita entre 335 a.C. e 323 a.C.
55

em si mesmo o que quer que siga necessariamente outra coisa, e que, pelo
contrário, tem depois de si algo com que está ou estará necessariamente unido.
“Fim”, ao invés, é o que naturalmente sucede a outra coisa, por necessidade
ou porque assim acontece na maioria dos casos, e que, depois de si, nada tem.
Meio é o que está depois de alguma coisa e tem outra coisa depois de si.
(LOCAIS DO KINDLE 140-144)

No que diz respeito a dramaturgia do teatro musical, o “Todo” Aristotélico não é


diferente. Musicais tem uma forma comum, singular, de discorrer pela linha do tempo,
e essa maneira peculiar de contar-se uma história possui uma forma narrativa, mas
não uma fórmula, o que seria limitante para processo criativo. Vários autores já
expressaram suas opiniões a esse respeito. No que concerne ao roteiro de teatro
musical, diz Cuden (2013):

Uma peça precisa de uma estrutura reconhecível: estrutura de frase, estrutura


de ritmo, estrutura de atos65, estrutura de enredo66, estrutura de história.
Estrutura significa ordem. Forma significa ordem. Contação de histórias requer
ordem reconhecível (LOCAIS DO KINDLE 591-595).

Sabe-se o quanto qualquer forma pode ser rejeitada por aqueles que vivem processos
criativos, porém a forma deve existir para ser transcendida no próprio processo. Sobre
a forma de um roteiro, diz Vogler (2007):

Alguns escritores profissionais não gostam da ideia de analisar o processo


criativo e pedem que os alunos ignorem todos os livros e professores e
“simplesmente ponham a mão na massa”. Alguns artistas decidem evitar o
pensamento sistemático, rejeitando todos os princípios, ideais, escolas de
pensamento, teorias, modelos e esquemas. Para eles, a arte é um processo
totalmente intuitivo que jamais pode ser dominado por meio de regras práticas
e que não deve ser reduzido a fórmulas. E não estão errados. No íntimo de
cada artista existe um lugar sagrado onde todas as regras são deixadas de
lado ou esquecidas deliberadamente, e nada mais importa senão as escolhas
instintivas do coração e da alma do artista. (LOCAIS DO KINDLE 192-193)

Ainda a respeito da aplicação da técnica de escrita para o teatro musical, Cuden


(2013) completa:

Se você é um escritor desconhecido querendo uma chance, o caminho mais


direto e sábio para o sucesso talvez seja primeiro provar que você é capaz
de dominar a forma conhecida. Se você obtiver grande sucesso – digamos

65 Ato - A maior subdivisão de uma peça de teatro. Trata-se de uma convenção destinada a organizar a
narrativa por partes. (Vasconcellos, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. L&PM Editores. Edição do Kindle.
Posição 379)
66 Enredo - Segundo Aristóteles (384-322 a.C.), a mais importante das seis partes da tragédia – as

outras são a personagem, a dicção, a dianoia, a melopeia e o espetáculo. Trata-se da sequência dos
acontecimentos ou da “organização dos fatos”, segundo a Poética (cap. VI). (Vasconcellos, Luiz Paulo.
Dicionário de Teatro. L&PM Editores. Edição do Kindle. Posição 1158)
56

que você seja Stephen Sondheim 67, por exemplo – talvez você possa se dar
ao luxo de arriscar brincando com a forma geral (LOCAIS DO KINDLE 541-
543);

É necessário, portanto, entender as regras desse jogo, para que possam ser,
inclusive, transcendidas ao longo do processo criativo. Para tanto, foi importante
analisar obras de três autores – Steve Cuden (How to Create Stories for Musicals That
Get Standing Ovations), Christopher Vogler (A Jornada do Escritor), e Julian Woolford
(How Musicals Work: And How To Write Your Own). Essas leituras esclareceram que
a estrutura oferecida pelo monomito seria um caminho criativo bastante promissor.
Ainda foram estudadas obras de K. M. Weiland (Creating Character Arcs: The
Masterful Author’s Guide to Uniting Story Structure, Plot, and Character Development),
e do próprio Joseph Campbell (The Power of Myth e The Hero With a Thousand Faces)
para embasamento do uso do monomito no teatro musical.
Além disso, para que a história seja contada, existe uma estrutura por detrás da
história em si, por onde viajam as personagens em suas jornadas: pode-se chamá-la
de “estrutura do enredo”. Dois itens básicos devem estar em jogo para que a história
seja contada: uma estrutura que torne possível o entendimento da história e a jornada
do protagonista em si, que navega pela história. Não são coisas possíveis de serem
separadas: uma depende da outra. Não há história sem personagem, nem
personagem sem uma história para chamar de sua. Weiland (2016) diz:

Muitas vezes, personagem e enredo são vistos como entidades separadas –


ao ponto de constantemente os colocarmos um contra o outro, tentando
determinar qual é o mais importante. Mas nada poderia estar mais longe da
verdade. Enredo e personagem se integram. Tire um dos dois da equação (ou
tente se aproximar deles como se fossem independentes um do outro) e você
corre o risco de criar uma história que pode até ter algumas partes incríveis,
mas que não será incrível como um todo (EDIÇÃO DO KINDLE p. 15-16).

Isso cabe ao teatro musical, em que a estrutura do enredo costuma ser levada
extremamente à sério, uma vez que o tempo do espetáculo é muito compacto, em
relação ao tempo da literatura, por exemplo. Uma canção precisa compactar uma ideia
que num livro um autor poderia explorar por muitas páginas. E a estrutura costuma
cooperar muito para o sucesso dessa tarefa complexa: contar uma história que tenha,
no máximo, duas horas e meia de duração.
Em um primeiro momento, as pré-estruturas literárias conhecidas por premissa,

67Stephen Sondheim –Compositor norte-americano nascido em 22 de março de 1930, na cidade de


Nova Iorque. (Disponível em: <https://www.biography.com/musician/stephen-sondheim>. Acesso em:
23/06/2019)
57

história e enredo foram acessadas, para obtenção de maior clareza para as etapas de
criação.

3.2.1.1. Pré-estruturas literárias: premissa, história e enredo

x Premissa

A premissa é a semente, aquilo que motiva a construção de uma história. Algo que
surge da intuição do autor. Um ponto de partida. Qualquer motivação que inspire um
autor a construir algo a partir dela. Conforme dito na seção anterior, no caso de um
musical-conceito a premissa é aquela inquietação primordial que dá início a todo o
processo criativo.

Uma premissa original não define necessariamente a qualidade de uma história, pois
esse é o momento mais neutro do processo criativo. O importante é como a premissa
é explorada durante o processo.

x História

O próximo passo para além da premissa é a história. Até esse ponto, as ideias-
semente foram intuídas. Agora precisam ser executadas, levando-se em consideração
que uma importante função da história é de trazer consenso, no processo criativo de
um musical, para que os colaboradores trabalhem na mesma direção, já que a criação
se dá em frentes múltiplas.

A história é formada pela sequência de acontecimentos mais importantes, mostrando


os objetivos dos protagonistas e principais conflitos, sem se ater a detalhes. É a
estrutura básica. Diferente da premissa, na história já existe interligamento de ações
e personagens mais bem definidos. Aqui se determina quem são os personagens,
seus conflitos e principais acontecimentos.
A história é como a fundação de uma construção. Quanto mais forte e definida, melhor
se desenvolve o enredo e mais claro tudo se torna para toda a equipe de
colaboradores. Ao elaborar a história, é interessante condensá-la em uma única
sentença, para ainda melhor se entender onde se quer chegar. E, acima de tudo,
58

entender onde está o conflito entre pessoas, não entre ideias. Quem faz o que a
quem?
Na história já aparece o esboço da jornada heroica dos personagens, em suas doze
etapas, e os arcos de personagens estão definidos.

x Enredo, também conhecido como trama, ou plot

O Rei morreu e depois a Rainha morreu é uma história.


O Rei morreu e depois a Rainha morreu de tristeza é
um enredo.
(E. M. Forster).

A citação acima é costumeiramente usada para exemplificar o significado de enredo. “O


Rei morreu e depois a Rainha morreu” é uma história, pois ilustra dois eventos diferentes
sendo narrados. “O Rei morreu e depois a Rainha morreu de tristeza” é um enredo, pois
mostra que a morte da Rainha é consequência do acontecimento anterior, a morte do
Rei. A diferença entre história e enredo, portanto, é que o enredo apresenta as razões
da sequência de eventos da história.
Frankel (1977, p. 8-9) diz:

História é fundamental, e não significa enredo. Romeu e Julieta e West Side


Story contam a mesma história, mas seus enredos são muito diferentes. A
história é o que dá coesão ao enredo – é sua linha completa; o enredo é o
desenvolvimento da história em detalhe. Histórias podem ser resumidas –
como em chamados de jornais, ou anúncios de livros, filmes, shows de TV.
Enredos têm partes componentes – situações, tempo e lugar, ações,
personagens, diálogo, e em teatro musical, dança e canto. É verdade que boas
histórias dizem mais que uma coisa. Mas fazem aparecer apenas uma coisa,
um evento principal.

Já em www.tertulianarrativa.com, Marcos Hinke coloca:

A trama (enredo) é uma série de eventos selecionados que se relacionam entre


si dentro da história, é o encadeamento dos fatos que levam uma situação do
Ponto A para o Ponto B para o Ponto C, ou seja, todo o recheio e minúcias da
história, o conteúdo onde se constrói a narrativa (Disponível em:
<https://medium.com/tert%C3%BAlia-narrativa/vamos-discutir-as-
diferen%C3%A7as-entre-narrativa-hist%C3%B3ria-e-trama-9d9b3058e4ca>.
Acesso em: 12/09/2018).

3.2.1.2. As Etapas do monomito – A Jornada do Herói

Os dois mundos, divino e humano, podem ser


59

representados apenas como diferentes um do outro –


diferentes como vida e morte, dia e noite. O herói se
aventura fora da terra conhecida para dentro da
escuridão; lá ele realiza sua aventura, ou
simplesmente se perde para nós, aprisionado, ou em
perigo; e seu retorno é descrito como um retorno do
mundo do além. Porém – e aqui está uma grande
chave para compreensão do mito e do símbolo – os
dois reinos na verdade são um. O mundo dos deuses
é uma dimensão esquecida do mundo que
conhecemos. E a exploração daquela dimensão, seja
por vontade própria ou não, é todo o sentido da
obrigação do herói (Joseph Campbell).

Após essa etapa, que buscou construir as fundações para a escrita dramatúrgica, deu-
se a pesquisa sobre a Jornada do Herói. Sua aplicação para a escrita dramático-
narrativa, foi descrita por Vogler (2007), a partir dos aprendizados obtidos com Joseph
Campbell68. Tanto Campbell quanto Vogler referem-se a essa jornada arquetípica
usando o termo “Jornada do Herói”, e Campbell, inclusive, empresta de James Joyce
69 o termo “monomito” para descrever esta saga única. Diz Vogler (2007):

Em princípio, apesar de sua variedade infinita, a história de um herói é sempre


uma jornada. Um herói abandona seu ambiente confortável e comum para se
aventurar em um mundo desafiador e desconhecido. Pode ser uma jornada ao
exterior, a um lugar de verdade: um labirinto, uma floresta ou caverna, uma
cidade ou país estrangeiro, um novo local que se converte em arena para seu
conflito com forças antagônicas, contestadoras. No entanto, existem muitas
histórias que conduzem o herói a uma jornada interior, que acontece na mente,
no coração, no espírito. Em qualquer boa história, o herói cresce e se
transforma, empreendendo uma jornada de um modo de ser para outro: do
desespero à esperança, da fraqueza à força, da tolice à sabedoria, do amor ao
ódio e vice-versa. São essas jornadas emocionais que prendem o público e
fazem valer a pena acompanhar a história (LOCAIS DO KINDLE 575-579).

A Jornada do Herói é o típico caminho da mitológica aventura do herói e a


magnificação da fórmula representada nos ritos de passagem: separação – iniciação
– retorno. A isso pode-se chamar unidade nuclear do monomito (CAMPBELL,1944).
No monomito é possível identificar estágios bastante claros e que podem ser

68 Campbell, Joseph – (1904 – 1987) foi um mitólogo norte-americano, escritor e palestrante, conhecido
por seu trabalho em mitologia comparada e religião comparada. Seu trabalho cobre vários aspectos da
experiência humana. (Disponível em: <https://www.jcf.org/>. Acesso em: 08/06/2019)
69 Joyce, James – (1882 – 1941) é um dos mais influentes e celebrados escritores irlandeses. Seu

trabalho mais famoso é “Ulysses” (1922). (Disponível em: <https://jamesjoyce.ie/about/james-joyces-


life/>. Acesso em: 08/06/2019)
60

percebidos em qualquer tipo de história. Campbell (1944, p. 36) exemplifica:

Seja o herói ridículo ou sublime, grego ou bárbaro, gentio ou judeu, sua jornada
varia muito pouco em plano essencial. Contos populares apresentam a ação
heroica como física; religiões importantes mostram o feito como moral; porém,
encontrar-se-á impressionantemente pouca variação na morfologia da
aventura, nas vitórias obtidas. Se um ou outro elemento básico do padrão
arquetípico é omitido de algum conto de fadas, lenda, ritual, ou mito, deve estar
de alguma maneira implícito – e a omissão em si pode falar muito pela história
e patologia do exemplo, como pode-se ver.

Vogler (2007), ainda esclarece:

Os estágios da Jornada do Herói podem ser identificados em todos os tipos de


história, não apenas naquelas que apresentam ação física “heroica” e
aventuras. O protagonista de toda história é o herói de uma jornada, mesmo
que o caminho leve apenas à sua mente ou ao reino dos relacionamentos
pessoais. As escalas da Jornada do Herói surgem naturalmente, mesmo
quando o escritor não tem consciência delas. (LOCAIS DO KINDLE 575-579)

A Jornada do Herói é um guia de narrativas, descrito por Joseph Campbell em 17


etapas, e resumido por Christopher Vogler em 12, que serão descritas a seguir. Vogler
(2007), coloca que tal estrutura é uma das muitas maneiras de partir de um ponto para
outro em uma narrativa, mas uma das mais flexíveis, duradouras e confiáveis.

A Jornada do Herói é uma estrutura que deve ser preenchida com detalhes e
surpresas da história individual. A estrutura não deve chamar atenção,
tampouco ser seguida com tanta precisão. A ordem dos estágios dada aqui é
apenas uma das muitas possíveis variações. Os estágios podem ser
excluídos, acrescentados e drasticamente embaralhados sem perder em
nada sua força (LOCAIS DO KINDLE 777-779).

Essas 12 etapas estão contidas em “três atos”. Aqui, a palavra “atos” não é
apresentada em sentido teatral, de atos separados por cortina, intervalo, interrupção.
É apenas uma convenção literária. Mas essa convenção existe para estrutura de
enredos gerais, seja para literatura, cinema, ou qualquer forma narrativa, e descreve
os acontecimentos do início, meio e fim da história, como já descritos por Aristóteles.
Em Vogler (2007), encontra-se que nessa forma de estruturação os três atos podem
ser resumidos como:
1) Primeiro Ato: A Partida, ou Separação

Neste ato acontece a decisão do herói de agir. O herói é apresentado em seu Mundo
Comum, aquele do qual ele será forçado a afastar-se. Algo será imposto ao herói,
algo que o tirará deste Mundo Comum e o levará a um Mundo Especial, diferente do
61

primeiro. Ele terá que entrar em ação como consequência.

2) Segundo Ato: A Iniciação, ou Descida

Neste ato acontece a ação em si. O herói terá contato com provas, aliados e inimigos.
Será impedido de cumprir sua missão e terá que lutar para conseguir o que precisa.

3) Terceiro Ato: O Retorno

Neste ato aparecem as consequências da ação. O que o herói realizou gera


consequências. O herói terá que lidar com elas até resolvê-las, ainda que perca algo
nesse caminho. Ao final, ele se torna o mestre tanto de seu Mundo Comum quanto
do Mundo Especial no qual adentrou para viver a jornada.
Através destes três atos literários, as doze etapas da Jornada do Herói se distribuem
da seguinte forma:

Primeiro ato: A Partida, ou Separação

x Mundo Comum

O Mundo Comum mostra ao público o ponto de partida do herói, contextualizando a


história. A importância da apresentação do Mundo Comum é que revela o mundo do
qual o protagonista terá que sair para viver sua jornada, seja este um lugar físico, seja
um estado psicológico/emocional, ou ambos. A maioria das histórias tira o herói de um
mundo comum e trivial e o leva a um Mundo Especial, que é novo e estranho.

É a famigerada ideia do “peixe fora d’água” (...) Se quisermos mostrar um peixe


fora do ambiente habitual, primeiro teremos de mostrá-lo no Mundo Comum,
para que se crie um contraste nítido com o estranho mundo novo no qual ele
está prestes a entrar (VOGLER, 2007,LOCAIS DO KINDLE 588-590).

x Chamado à Aventura

Neste ponto, é apresentada ao protagonista uma situação, em geral um desafio ou


problema, que precisará ser resolvido. Não é possível que que o herói permaneça
neutro em relação ao acontecido, principal característica deste estágio, o “Chamado
à Aventura”. Campbell (1944, p. 46) esclarece:
62

Um erro – aparentemente por puro acaso – revela um mundo insuspeitado, e


o indivíduo é arrastado para uma relação com forças que não são
corretamente compreendidas. Como mostra Freud 70, erros não são apenas
uma mera coincidência. São o resultado de desejos e conflitos suprimidos.
São as ondulações na superfície da vida, produzidas por molas
insuspeitadas. E podem ser muito profundas – tão profundas quanto a própria
alma. O erro pode tornar-se a abertura de um destino.

Geralmente, a esta etapa pertence a figura do arauto ou anunciador: uma personagem


secundária, mas que trará a notícia do evento que representa o Chamado à Aventura.
A figura do arauto pode aparecer em qualquer momento do Primeiro Ato. Mas, em
geral, aparece no Chamado à Aventura. São os arautos que colocam a história em
movimento, pois apresentam ao herói um desafio. Alertam o herói e o público de que
a mudança e a aventura estão prestes a começar.

x Recusa ao Chamado

Nesse estágio o herói se mostra relutante ao Chamado para a Aventura. Há hesitação.


O protagonista demonstra medo e, como ainda não está totalmente comprometido
com a jornada, pensa em desistir. Aqui ele enfrenta o maior de todos os medos: o
terror frente ao desconhecido (VOGLER, 2007).

x Encontro com o Mentor

Como ainda não existe um total comprometimento por parte do protagonista com sua
jornada, ele ainda pensa em desistir. Aparece, neste estágio, uma influência externa,
uma mudança de circunstâncias ou aparecimento de um Mentor. Isso fará o
protagonista deixar o medo para trás e seguir adiante. Para aqueles que não recusam
o chamado, o primeiro encontro da Jornada do Herói é com uma figura protetora, em
geral de idade mais avançada que o protagonista, podendo ser a figura de um sábio,
que poderá trazer amuletos para auxílio na jornada que o herói está prestes a
empreender.
O que essa figura representa é a força benigna e protetora do destino. A
fantasia é a reafirmação – a promessa de que a paz do Paraíso, conhecida a
princípio no ventre da mãe, não está perdida; ela sustenta o presente e está
no futuro assim como no passado (CAMPBELL, 1944, p.66).

x Travessia do Primeiro Limiar

70
Freud, Siegmund – Psichopathology of Every Day Life. (Standard Edn, VI; orig.1901)
63

Neste estágio da narrativa, o protagonista finalmente se compromete com a jornada,


e deixa o Mundo Comum para adentrar no mundo desconhecido. Ao decidir atravessar
o Primeiro Limiar ele se compromete a enfrentar o desafio que apareceu no Chamado
à Aventura.
O que em geral acontece nessa etapa é o encontro com uma personagem secundária
que representa o “Guardião do Limiar”. Essa personagem não representa o principal
desafio nem o maior inimigo. Representa os obstáculos comuns da jornada. O
Guardião do Limiar está lá para testar a disposição do protagonista em dar sequência
à jornada, para testar sua determinação de encarar os desafios que se apresentam.
Com isso, o herói aprende a reconhecer a resistência como fonte de força. Explica
Campbell (1944, p. 72):

Com as personificações do destino para guiá-lo e ajudá-lo, o herói vai em


frente em sua aventura até que se depara com o “guardião do limiar” na
entrada da zona de força(...) para além dele reside a escuridão, o
desconhecido e o perigo; assim como para além da guarda parental há perigo
para a criança.

Atravessar o Primeiro Limiar é mergulhar no desconhecido, descrito pelo autor como


“a barriga da baleia71” o ambiente escuro e misterioso.

Segundo Ato: A Iniciação, ou Descida: a etapa das provações e vitórias da iniciação.

x Provas, Aliados e Inimigos

Uma vez cruzado o Primeiro Limiar, o herói encontra novos desafios e provas, faz
aliados e inimigos e começa a aprender as regras do Mundo Especial. Neste estágio
o protagonista passa por um desenvolvimento de caráter e reage à pressão das
situações encontradas.
O protagonista fez a escolha de deixar para trás o Mundo Comum e agora encontra-
se num terreno completamente novo, onde terá que aprender novas regras e lidar com

71 Jonas e a Baleia- O Livro de Jonas do Antigo Testamento é, em efeito, uma parábola do profeta
relutante, um bom exemplo da Recusa ao Chamado do arquétipo do herói. Contém outro arquétipo
também, no motivo de estar na barriga da baleia – metáfora das profundezas da escuridão e ignorância
– a noite escura da alma. Deus (Yahweh) pede a Jonas que vá a Nineveh, a capital Assíria, para pregar
a palavra de Deus. Mas Jonas, com medo da missão, viajou para a Espaha. Quando uma terrível
tempestade se abateu sobre o mar, os marinheiros relutantemente jogam Jonas, a causa da
tempestade, no mar, e ele é engolido por uma baleia. (...) Jonas reza por um milagre e é cuspido pela
baleia. (Leeming, D. – The Oxford Companion to World Mythology. Oxford University Press, 2005, p.
219).
64

novas situações e pessoas. Campbell (1944), lembra que “uma vez tendo atravessado
o Primeiro Limiar, o herói se encontra numa paisagem onírica de formas ambíguas e
fluidas, onde ele precisa passar por uma série de provações”.

x Aproximação da Caverna Secreta

Neste estágio, após ultrapassar o Primeiro Limiar, o herói chega ao mundo


desconhecido, (Caverna Secreta). Ali, o objeto da missão está escondido e deverá ser
encontrado. Ao entrar nesse lugar, o herói cruza o segundo limiar principal e deve
parar por um momento para se preparar e planejar os próximos passos. Essa é a fase
da Aproximação, preparatória para o que o herói deverá enfrentar: a morte ou um
grande perigo. A Caverna Secreta representa o local mais perigoso do Mundo Especial
e, provavelmente ao adentrá-la, o herói perceberá que ela representa o quartel-
general do “inimigo”.

x Provação

Após adentrar a Caverna Secreta, é no estágio da Provação em que o herói atinge


aquilo que se conhece por “fundo do poço”. Ele enfrentará o maior de todos os seus
medos, inclusive a possibilidade da morte. Nesse estágio, não se sabe se o
protagonista viverá ou morrerá. Vogler (2007) diz:

As experiências dos estágios anteriores levam-nos, o público, a nos identificar


com o herói e seu destino. O que acontece com o herói acontece também
conosco. Somos incentivados a vivenciar o instante à beira da morte com ele.
Nossas emoções são temporariamente oprimidas para que elas possam ser
revividas quando o herói voltar da morte. O resultado dessa ressurreição é,
para nós, a sensação de alegria e euforia (LOCAIS DO KINDLE 702-707).

O compromisso de enfrentar o desafio que vem sendo encarado desde o Primeiro


Limiar se aprofunda. Lá, a jornada estava apenas no começo, e o herói ainda não
havia enfrentado desafios. Aqui, ele reafirma seu comprometimento. Campbell (1944,
p. 100) aponta:
A provação é um aprofundamento do problema do primeiro limiar e a pergunta
ainda está ainda em questão: Pode o ego oferecer-se para a morte? (...) A
partida original para a terra das provações representava apenas o começo da
longa e arriscada trilha de conquistas iniciatórias e momentos de iluminação.

x Recompensa (empunhando a espada)


65

Após passar pelo estágio de provação e ter encarado de frente a possibilidade de


morte, agora o herói comemora a recompensa que obtém, seu “Elixir”, que pode ser
o conhecimento e a experiência que o levarão a uma maior compreensão e uma
reconciliação com as forças antagônicas.

Terceiro Ato: O Retorno

x O Caminho de Volta

Ainda no Mundo Especial, o herói terá que enfrentar as consequências de ter


empunhado a espada e ter conseguido a recompensa. Seu esforço terá um preço:
depois de ter conquistado o Elixir, o herói precisa retornar com ele de volta ao Mundo
Comum. E pode haver novamente hesitação de sua parte. Nesse ponto da história ele
começa a lidar com as consequências do enfrentamento das forças obscuras da
Provação. Seus inimigos, se enfrentados e não vencidos, virão enfurecidos atrás dele.
Esse estágio marca a decisão de voltar ao Mundo Comum. O herói percebe que o
Mundo Especial deve ser deixado para trás, e que ainda há perigos, tentações e testes
pela frente.
Haverá aqui, portanto, a travessia do retorno. O herói deve atravessar esse limiar e o
retorno não é tarefa simples. A respeito da travessia diz Campbell (1944, p. 201):

Isso nos traz à crise final deste round, para o qual toda a miraculosa excursão
não passou de um prelúdio – aquela, exatamente, da paradoxal,
supremamente difícil travessia do retorno do herói, do mundo místico para o
mundo comum. Tendo sido resgatado por algo externo, empurrado por algo
interno ou gentilmente carregado por divindades, ele ainda tem que reentrar
com sua recompensa na atmosfera esquecida onde homens que são
pedaços se imaginam como completos. Ele ainda tem que enfrentar a
sociedade com seu elixir despedaçador de egos e libertador de vidas,
enfrentando com isso brigas razoáveis, ressentimentos duros e boas pessoas
incapazes de compreender.

x Ressurreição

O protagonista enfrentará a última Provação de Morte e Ressurreição, para que


depois possa finalmente voltar ao Mundo Comum de forma diferente, ou poder
simplesmente seguir adiante sem jamais voltar. Essa Ressureição é a consequência
dos enfrentamentos do retorno do herói, perseguido na volta pelas forças opostas.
Vogler (2007) esclarece:
66

A morte e a escuridão empenham-se numa última tentativa desesperada antes


de serem finalmente derrotadas. Essa é uma espécie de exame final do herói,
que precisa ser testado mais uma vez para garantir que tenha realmente
aprendido as lições da Provação. O herói, então, é transformado por esses
ensejos de morte e renascimento e consegue voltar à vida comum renascido,
como um novo ser e com novas perspectivas (LOCAIS DO KINDLE 741-747).

x Retorno com o Elixir

O herói chega ao fim de sua jornada, retornando ao Mundo Comum e trazendo


consigo seu Elixir – a experiência do que viveu e que proporciona sabedoria para si e
para todos. Pode também não haver o retorno físico ao Mundo Comum, seguindo o
herói sua jornada no Mundo Especial. Mas trará sempre consigo este aprendizado
que o modificou.
Seu retorno representa um novo contexto, em que agora o herói é mestre dos dois
Mundos. Mas o herói não se sente especial: sua jornada verdadeiramente o humaniza
e ele conquista a humildade de sua própria integridade. E esse é o único sentido do
caminho percorrido: o encontro consigo mesmo. Assim, o herói termina sua Jornada
conquistando sua verdadeira liberdade interna. Diz Campbell (1944, p. 221):

O campo de batalha simboliza o campo da vida, onde cada criatura vive da


morte de outrem. A percepção da inevitável culpa da vida pode de tal forma
adoecer o coração que, como Hamlet ou Arjuna, se pode recusar continuar.
Por outro lado, como a maioria de nós, se pode inventar uma falsa,
injustificada imagem de si mesmo como um fenômeno excepcional no mundo,
não tão culpado como os outros, mas justificado nos próprios pecados porque
se representa o Bem. Tal sentimento de benevolência leva à distorção, não
apenas de si próprio, mas da natureza do homem e do cosmos. O objetivo do
mito é o de dissipar a necessidade de tanta ignorância de vida causando
efeito na reconciliação da consciência individual com a vontade universal. E
isso se dá pela percepção da verdadeira relação do fenômeno passageiro do
tempo com a vida imperecível que vive e morre em tudo.

3.2.1.2.1. Análise de espetáculos de teatro musical a partir do


monomito

Com o intuito de verificar a aplicabilidade do monomito no teatro musical, foram


analisados dois espetáculos desse gênero, escritos em épocas diferentes e por
autores diversos. As análises descrevem cada musical através das doze etapas do
monomito, apontando as canções que representam cada uma dessas fases.

3.2.1.2.1.1. A Bela e a Fera


67

O espetáculo aqui analisado é o musical da Broadway dirigido por Robert Jess Roth,
libreto de Linda Woolverton e música de Alan Menken para as letras de Howard
Ashman, de 1994.
A Bela e a Fera são ambos heróis da mesma história. Representam os aspectos do
inconsciente, animus e anima72. Através desse conto, a Jornada do Herói se distribui
entre os dois personagens. Aspectos de cada etapa da Jornada serão vividos ora por
Bela, ora por Fera, ou por ambos ao mesmo tempo.

Primeiro ato: Mundo Comum

x Chamado à Aventura

O prólogo do espetáculo estabelece o Mundo Comum da Fera: o castelo do qual ele


é o príncipe. Um encanto se abate sobre ele, que é transformado em Fera, e sobre
todos os habitantes de seu castelo, que são transformados em objetos. O encanto só
poderá ser quebrado por um beijo de amor. Esse é o Chamado à Aventura dessa
personagem. Ela é colocada no Mundo Especial pelo feitiço, mostrado no prólogo
musical “The Enchantress”.
A abertura do espetáculo, o número “Belle”, estabelece o Mundo Comum de Bela: a
aldeia onde vive com seu pai. Aqui, Bela declara seu desejo: ela quer mais do que a
vida do interior. A relação de Bela com Maurice, seu Pai, também reforça o
estabelecimento do Mundo Comum. No dueto “No Matter What”, Maurice se apresenta
como o primeiro mentor de Bela. Ela pergunta ao pai: “o senhor acha que eu sou
esquisita”? E Maurice a ensina: “os outros são iguais, você é mais, bem mais” (Versão
de Cláudio Botelho para o espetáculo brasileiro de 2002). O enredo então leva o pai
de Bela para fora da cidade e ele é atacado por lobos na floresta (“No Matter What” –
reprise/Wolf Chase”).
O Mundo Comum continua a ser apresentado ao público, no dueto “Me”, que
estabelece a figura do antagonista, Gaston, e de seu parceiro Le Fou. Gaston deseja
se casar com Bela. Porém Bela não corresponde a seu afeto e reafirma seu desejo
de partir do Mundo Comum, em “Belle – reprise”.

72
Animus e anima - [“Animus” é o elemento masculino no inconsciente feminino, enquanto que] “anima”
é o elemento feminino no inconsciente masculino (Jung, Carl Gustav (2012-01-31T23:58:59). (Man and
His Symbols. Random House Publishing Group. Edição do Kindle. Posição 369)
68

O pai de Bela, após ser perseguido pelos lobos na floresta, busca refúgio indo parar
no castelo da Fera, onde acaba aprisionado. Seu cachecol cai na floresta e é
encontrado por LeFou.
Bela vê LeFou usando o cachecol de seu pai e pergunta onde achou aquilo.
Representando a figura do Arauto, LeFou diz tê-lo achado na floresta. Bela percebe
que algo aconteceu com seu pai e sai em busca dele. Na floresta encontra um castelo
misterioso, no qual entra, procurando pelo pai, deixando para trás o Mundo Comum e
adentrando o Mundo Especial.

x Recusa ao Chamado

Ao encontrar o pai nas masmorras, Bela é confrontada pela Fera, que declara que só
o libertará se ela permanecer em seu lugar. Bela aceita e seu pai é levado do castelo.
A Fera não a prende nas masmorras, mas em vez disso lhe oferece um quarto no
castelo e lhe diz que é livre para ir a qualquer lugar desse novo lar, menos à Ala Oeste.
A Recusa ao Chamado para a Aventura começa quando aceita a proposta da Fera, e
declara, em sua canção-solilóquio intitulada “Home”, que “eu sei que voltar é um sonho
e nada mais. Eis aqui o lugar onde tudo é pra sempre... sempre só... é assim que o
futuro me espera, ou vai chegar o fim” (Versão de Cláudio Botelho, como a anterior).
Ela sabe que agora o castelo terá que ser sua casa, onde “tudo é solidão”, e diz que
melhor seria “voltar pro lugar de onde eu vim”, na recusa ao Chamado à Aventura.

x Encontro com o Mentor

Nesse momento aparece para Bela uma personagem mais velha, que representa a
figura do Mentor do mundo mágico: a Senhora Potts, a governanta do castelo
transformada pelo feitiço em bule de chá. Potts a aconselha em relação à sua nova
vida na canção “Home-Reprise”. Bela aceita seu conselho de tentar fazer do castelo
seu novo lar. Bela é então recebida por outros habitantes do castelo, que lhe oferecem
um jantar especial para que se sinta acolhida, no número “Be Our Guest”.

x Travessia do Primeiro Limiar


69

Ao término do banquete, Bela sai para explorar o castelo, e se direciona ao lugar


proibido: a Ala Oeste. Bela adentra a zona obscura e proibida, apesar da tentativa de
desviá-la feita pelo mordomo Lumière e o secretário Din Don, habitantes do castelo
transformados em candelabro e relógio, respectivamente. Aqui, esses personagens
representam os Guardiões do Limiar. Ao cruzar o Limiar e encontrar a rosa secreta,
símbolo do feitiço, Bela é surpreendida pela Fera que violentamente a expulsa da Ala
Oeste. Este ato faz com que Bela decida fugir do castelo. A Fera, percebendo que a
fuga de Bela representa o fim de suas esperanças de quebra do feitiço, se recolhe em
tristeza, cantando seu solilóquio “If I Can’t Love Her”. O Primeiro Limiar está cruzado.

Segundo Ato: Iniciação

x Provas, aliados, inimigos

Ao fugir do castelo, Bela é surpreendida por lobos que tentam devorá-la ("Wolf
Chase"). A Fera salva a vida de Bela, mas acaba saindo ferida da batalha. Bela, que
poderia deixá-la ali, ferida, e fugir para a aldeia, decide levá-la de volta ao castelo,
pois está muito machucada. Bela e a Fera começam, então, a se tornar amigos. Os
objetos do castelo atuam aqui como aliados para que o romance entre os dois se torne
possível. A Fera presenteia Bela com a biblioteca do castelo e Bela ensina a Fera a
ler, demonstrando sua amizade no dueto “Something There”.
Em seguida, no número “Maison des Lunes”, Gaston desponta como o inimigo,
conspirando para prender o pai de Bela em um manicômio para forçar Bela a se casar
com ele.

x Aproximação da Caverna Secreta

A Aproximação da Caverna Secreta aqui é representada pelo mistério do coração


humano. É a aproximação dos amantes, entrando na zona de perigo da entrega um
para o outro. A Fera convida Bela para um jantar romântico. Após o jantar acontece a
cena da valsa, “Beauty and the Beast”. A Fera dá a Bela um espelho mágico para que
ela possa ver seu pai: o objeto mágico é dado a Bela pela própria Fera.

x Provação

O estágio da Provação começa quando Fera permite que Bela vá embora e retorne
70

ao Mundo Comum para salvar seu pai das mãos de Gaston. Em “If I Can’t Love Her-
reprise”, Fera diz a Senhora Potts, Lumière e Din Don que deixou Bela ir embora por
amor. Para Bela, a provação é deixar o Mundo Especial e seu carinho pela Fera, para
reencontrar seu amado pai. Sua provação será encarar as consequências de seu
retorno. Para Fera, a Provação é perder o amor de Bela e a chance de que o feitiço
seja quebrado.

x Recompensa

A recompensa obtida neste ponto da jornada para ambos é a certeza do amor. É o


amor que Bela leva de volta para a aldeia em seu retorno, e é com esse amor que
Fera permanece no castelo, o amor que moverá suas ações no enredo daqui para
frente.

Terceiro Ato: Retorno

x O Caminho de Volta
Levando consigo o espelho mágico, Bela retorna à aldeia. Nesse momento, seu pai
está pedindo ajuda aos aldeões, pois a filha está presa no castelo da Fera. A entrada
de Bela na taberna surpreende a todos. Gaston convence as pessoas de que o pai de
Bela está louco. Bela diz que seu pai tem razão, que a Fera existe e que é uma criatura
boa. Mostra a todos a Fera através do espelho mágico. Gaston se aproveita da
situação convencendo os aldeões de que a Fera é perigosa e precisa ser exterminada.
Convoca a todos para irem com ele numa empreitada para destruir a Fera. Bela,
então, deverá voltar ao castelo, para impedir que isso aconteça. Os aldeões, liderados
por Gaston, saem para destruir o castelo e matar a Fera, no número “Mob Song”.

x Ressurreição

Gaston e a Fera lutam até que Gaston caia do precipício para a morte e a Fera fique
fatalmente ferida. Bela vê a Fera agonizante, caída no chão, e vai até ela. Fera está
agonizando e Bela lhe dá o beijo de amor que quebra o encanto. A Fera revive,
voltando a ser o príncipe, no número “Home reprise II”/A Transformação”.

x Retorno com o Elixir


71

O amor vence: é esse o elixir. Bela e o Príncipe agora estabelecem sua vida juntos
num castelo totalmente reestabelecido em sua ordem. A Jornada nessa história não
traz a Heroína de volta ao Mundo Comum, mas a estabelece no Mundo Especial. Já
o herói, a Fera, volta ao seu Mundo Comum - o próprio castelo -, completamente
modificado como pessoa, já que o Mundo Especial da Fera foi a jornada decorrente
do feitiço que se abateu sobre ela.

3.2.1.2.1.2. A Noviça Rebelde

O espetáculo aqui analisado é o musical da Broadway, libreto de Howard Lindsay e


Russel Crouse, letra e música de Rogers e Hammerstein, de 1959, em que Maria
Ranier é a heroína. A personagem do Capitão Von Trapp também segue os passos de
uma Jornada do Herói através dessa narrativa.

Primeiro ato: Mundo Comum

x Chamado à Aventura

O Mundo Comum é estabelecido: as montanhas da Áustria. A protagonista, Maria, é


noviça da Abadia de Nonnberg, e recebeu permissão para passar a tarde fora da
Abadia, nas colinas, onde canta seu solilóquio, sua I Want Song, “The Sound of
Music”, em que expressa seus desejos:

“My heart wants to beat like the wings of the birds


That rise from the lake to the trees
My heart wants to sigh like a chime that flies
From a church on a breeze
To laugh like a brook when it trips and falls over
Stones on its way
To sing through the night like a lark who is learning to pray”

Versos que se traduzem como:


“Meu coração quer bater como asas dos pássaros
Que sobem do lago para as árvores
Meu coração quer suspirar como um badalo, que voa
Desde a igreja, na brisa.
Quer rir como riacho que rola e cai sobre
Pedras, em seu caminho.
Cantar pela noite como cotovia aprendendo a rezar”.
72

x Recusa ao Chamado

A Madre Superiora da Abadia vem duvidando se Maria realmente teria condições de


receber os votos73, preocupação demonstrada na canção “Maria”. Pede a ela para
assumir o posto de babá das crianças na casa da família Von Trapp, representando
aqui a figura do Arauto, que anuncia a aventura. Maria se recusa a sair da Abadia,
dizendo que está certa de querer receber os votos.

x Encontro com o Mentor

Representando o Mentor, a Madre Superiora insiste que ela vá. Ela e Maria cantam
juntas a canção “My Favorite Things”. A Madre Superiora a aconselha, dizendo a Maria
que ir para a casa dos Von Trapp por alguns meses fará com que ela saiba se receber
os votos é realmente o que ela quer. Maria aceita.

x Travessia do Primeiro Limiar

Nesse estágio, Maria adentra o Mundo Especial, a casa dos Von Trapp, com uma
única roupa e seu violão. Conhece os habitantes da casa: a governanta Frau Schmidt
e o mordomo, Franz. Conhece o Capitão Von Trapp, que, militarmente, chama a todos
na casa com um som diferente de seu apito naval. Dessa forma ele chama os filhos
para virem conhecer Maria, sua nova babá. As crianças vêm e se apresentam de
forma militar. Maria logo percebe quantos obstáculos terá que transpor.

Segundo Ato: Iniciação

x Provas, aliados, inimigos

Logo na primeira noite de Maria na casa dos Von Trapp, Liesl, a filha mais velha do
Capitão Von Trapp, escapa para o jardim, para um encontro romântico com Rolf
("Sixteen, Seventeen"). Rolf é o símbolo do que está acontecendo na Áustria naquele
momento: um jovem austríaco iludido pelo Terceiro Reich74, acreditando na promessa
do nazismo, a favor da invasão da Áustria pela Alemanha. Nessa cena, pelas falas de

73
Votos- Na religião católica, os votos são os compromissos assumidos pela postulante para que se
torne freira. São eles: votos de castidade, obediência e pobreza.
74
Terceiro Reich – A Alemanha nazista, também chamada de Terceiro Reich, foi o regime que se
instalou após a República de Weimar, com a nomeação de Adolf Hitler como chanceler.
73

Rolf, o Terceiro Reich começa a ser revelado como o grande inimigo dos Von Trapp.
A governanta Frau Schmidt, representando o Guardião do Limiar, tem uma conversa
com Maria sobre as regras da casa, apresentando mais obstáculos: as crianças não
podem se sujar ao brincar, devem marchar para exercitar-se ao invés de brincar, não
pode haver música na casa, pois tudo isso faz com que o Capitão se lembre de sua
falecida esposa. Maria pede ajuda a Deus e diz em oração que sabe que foi mandada
para lá numa missão para resgatar a alegria das crianças.
Durante a tempestade no meio da noite, uma a uma as crianças aparecem no quarto
de Maria, cada uma com uma desculpa. Juntos, para espantar o medo da tempestade,
cantam “The Lonely Goetherd”. As crianças se apresentam como os grandes aliados
de Maria, que, de certa forma, assume a posição de mentora.

x Aproximação da Caverna Secreta

Nesse estágio, as cenas determinam a aproximação do Terceiro Reich, prenunciando


a chegada do nazismo na Áustria. Essa é a primeira caverna.
O Capitão Von Trapp está hospedando amigos em sua casa: Elsa e Max. Ela é
candidata a ser sua nova esposa, ele é Secretário de Cultura, em busca de organizar
um Festival de música, o Kaltzberg Festival. Ambos vêm de Viena, e são muito
cosmopolitas, ao contrário dos Von Trapp. Nessa cena Max deixa claro que o Terceiro
Reich inevitavelmente tomará a Áustria, e que é importante ser flexível para que as
coisas não acabem mal.
Ainda demonstrando a Aproximação da Caverna Secreta, Maria cruza os limites
impostos pelo Capitão Von Trapp em relação às crianças, adentrando a segunda
caverna. Ela decide fazer tudo aquilo que lhe foi dito para não fazer. Von Trapp fica
chocado em ver seus filhos vestidos com roupas para brincar, feitas por Maria das
cortinas velhas da casa. Ela tenta conversar com o Capitão a respeito do assunto,
mas ele se recusa a ouvir. Von Trapp manda a noviça embora. De repente, da outra
sala, ouve-se as crianças cantando “The Sound of Music – Reprise”. O pai das
crianças volta atrás e pede à jovem que fique, pois ela trouxe a música de volta para
aquela casa. É o início da aproximação amorosa entre os dois, a terceira caverna
secreta.

x Provação
74

No estágio da Provação, o Terceiro Reich se instaura na Áustria. O amor ainda não


revelado entre Maria e o Capitão também encontrará obstáculos.
Chega a noite do baile na casa da família. As crianças estão na festa, sua primeira.
Kurt, filho do Capitão, está tentando ensinar Maria a dançar. O Capitão os interrompe
e toma o lugar de Kurt, mostrando a ele como ensinar a jovem a dançar. Ela fica muito
envergonhada ao dançar com o Capitão, e o casal ainda é surpreendido pela chegada
de Elsa. O Capitão decide que Maria deverá sentar-se à mesa com os outros
convidados, e ela recusa o convite. Brigitta, filha de Von Trapp, diz a Maria que sabe
que ela e seu pai estão apaixonados, e Maria nega terminantemente. A Provação da
heroína será admitir seu amor por Von Trapp.
Enquanto as crianças dizem boa noite aos convidados antes de irem dormir, na canção
“So Long, Farewell”, Maria pega suas coisas e, às escondidas, deixa a casa dos Von
Trapp, fugindo de volta para a Abadia.
.
x Recompensa

Nesse estágio, Maria terá que vencer sua provação para obter a recompensa, o amor
do Capitão. Ela está de volta na Abadia, em oração. A Madre Superiora vai até ela,
em um outro momento de Encontro com o Mentor. Maria está muito confusa. A Madre
Superiora percebe que Maria e o Capitão se apaixonaram. Maria diz que quer ficar
para sempre na Abadia. A Madre Superiora lhe diz que aquele não é um lugar para se
fugir do mundo. Que ela deverá voltar à Villa Von Trapp e encarar a realidade. Na
canção “Climb Every Mountain”, garante a ela que encontrará toda força que precisa.
Maria retira seu véu de postulante da cabeça, representando sua decisão de deixar o
noviciado, decidida a voltar e buscar o amor de Von Trapp, sua recompensa.

Terceiro Ato: Retorno

x O Caminho de Volta

Nesse estágio, Maria retorna ao lar dos Von Trapp e reencontra as crianças. Agora ela
sabe que ama o Capitão. As crianças contam a ela que o casamento de seu pai com
Elsa está acertado e foi anunciado ao fim do baile. Maria fica perplexa e percebe que
seu retorno será um desafio.
75

Max e Elsa vão ao encontro do Capitão. Max acaba de receber um telefonema de


Berlim e isso incomoda Von Trapp. Max deixa claro que não tem convicções políticas
e que é melhor estar ao lado de quem estiver no poder. Elsa concorda. Sua
concordância choca o Capitão, pois ele não esperava por isso. Elsa e Max cantam
“No Way to Stop It”, a respeito de como esse é o momento de ceder para não se dar
mal. Elsa e o Capitão se dão conta de que veem as coisas de modos totalmente
diferentes e percebem que não podem ficar juntos. Maria parabeniza Elsa pelo
noivado com o Capitão, mas Elsa diz que não haverá mais casamento, e se vai. Maria
e o Capitão confessam seu amor um pelo outro no dueto “An Ordinary Couple”, e se
casam na Abadia de Nonnberg ao som de “Maria”, numa cena muito representativa: é
no Mundo Comum físico que Maria se entrega ao Mundo Especial emocional.
Ainda no estágio do Caminho de Volta, Maria e Von Trapp retornam de sua lua de mel
e encontram Max, que lhes diz que as crianças participarão do Festival Kaltzberg de
Música, mas o Capitão não gosta da ideia. Max insiste, dizendo que, se as crianças
não cantarem no Festival, isso pode ser interpretado pelo Terceiro Reich como uma
mensagem negativa.
Nesse retorno do Caminho de Volta, o Capitão Von Trapp é intimado a assumir um
posto na nova marinha naval daquele país, submisso ao Terceiro Reich, o que ele não
quer. O Capitão sabe que eles terão que fugir da Áustria.
A participação da família Von Trapp no Festival Kaltzberg se torna a saída ideal para
que o Capitão não precise assumir imediatamente o posto, e para que eles possam
fugir da Áustria durante o Festival.

x Ressurreição

Após sua fuga durante o Festival de Música, a família está escondida na Abadia. Os
soldados estão lá, procurando por eles. Quando a busca está quase terminando, Rolf,
o namorado nazista de Liesl, aparece e encontra a família escondida na penumbra.
Ele ilumina o rosto do Capitão com sua lanterna, depois o rosto de Maria. Por fim,
ilumina o rosto de Liesl. Ele hesita. Aqui a família enfrenta o risco de sua prisão e
consequente morte por traição. Rolf chama seu superior, mas antes que ele chegue,
Rolf diz que não há ninguém escondido ali. E se vai com os soldados, promovendo a
“ressurreição” dos Von Trapp, dando-lhes uma nova chance.

x Retorno com o Elixir


76

A família está livre para a fuga. Mas sabem que as estradas estão todas bloqueadas.
Maria lembra o Capitão de que do outro lado das montanhas está a Suíça. E que eles
podem ajudar as crianças na travessia. Ela conduz sua nova família para um Mundo
Especial desconhecido, atravessando suas tão amadas montanhas, seu Mundo
Comum. A família parte ao som de “Climb Every Mountain” rumo a um novo Mundo
Especial, jamais retornando ao Mundo Comum, portando o Elixir da liberdade.

3.2.1.3. Personagens e seus arcos

As etapas da Jornada do Herói são intrínsecas ao enredo. Ao desenvolvimento vivido


pelas personagens no conjunto dessas etapas dá-se o nome de Arco de Personagem.
A estrutura desses arcos está conectada com a estrutura do enredo.
Novamente vê-se presente aqui a estrutura em três atos literários. Mais uma vez, é
apenas uma maneira de dizer “três partes”. Os três atos da história correspondem aos
três estágios da motivação externa do herói. Cada mudança na motivação do herói
assinala a chegada do próximo ato (WEILAND, 2016).
Existem três tipos de arcos de personagem: o arco de mudança positiva, arco de
mudança negativa e arco neutro75.
O arco de mudança positiva descreve uma jornada em que o protagonista apresenta
uma mudança que conduz o enredo para um desfecho positivo. Ainda que haja
sofrimento pelo caminho, o que será modificado no protagonista ao longo da história
produzirá um final satisfatório para ele. A mudança o leva a tornar-se alguém mais
integrado consigo mesmo.
No arco negativo se encontram aqueles personagens que serão conduzidos pelo
enredo para um desfecho trágico. Os eventos descritos pelo enredo conduzem o
protagonista para seu próprio abismo pessoal.
Já no arco neutro de personagem, o protagonista é alguém resolvido. Ele já está em
contato íntimo com sua própria verdade. Esse protagonista não precisa passar por
uma jornada de mudança pessoal. No arco neutro o que precisa mudar é o que está
em volta desse protagonista. É o mundo à sua volta e as pessoas contidas nele que
sofrerão mudanças a partir de sua presença.

75
Arco Neutro de Personagem – O termo original em inglês é Flat Arc, cuja tradução literal seria ‘arco
plano’. Tal denominação parece contraditória em língua portuguesa, uma vez que um arco não é plano.
Preferiu-se o uso da terminologia ‘arco neutro’ para designar esse tipo de arco dramático.
77

Nos arcos positivo e negativo da personagem encontramos praticamente a mesma


estrutura. Apenas as escolhas que o protagonista faz diante dos acontecimentos que
se desenrolam é que levarão a um desfecho feliz ou trágico. A interseção entre arco
de personagem e enredo se dá logo de início, quando se dá a conhecer o objetivo
inicial do protagonista, o que ele quer. Esse objetivo inicial é quase sempre algo
externo, físico que ele acredita ser a solução de seus problemas.
Aquilo que se apresenta como o que o protagonista quer, porém, não é o que ele
precisa. É justamente nisso que reside o gatilho da Jornada do Herói. O que o
protagonista precisa representa a verdade, enquanto o que ele quer representa a
mentira que ele conta para si mesmo todos os dias. Weiland (2016) explica:

O protagonista vai passar a maior parte da história perseguindo um objetivo


externo relacionado àquilo que ele quer. Mas a história, na verdade é, num
nível mais profundo, seu crescimento a um lugar onde ele, primeiramente de
forma subconsciente, depois conscientemente, reconhece e busca por seu
objetivo interno – aquilo que ele precisa (EDIÇÃO DO KINDLE p. 35).

Aquilo de que o protagonista precisa, ao contrário do que aquilo que ele quer, em geral
não é nada físico, embora possa ser materializado de alguma forma no fim da história.
Em geral, esta necessidade é uma percepção. E que vai transformar sua perspectiva
de vida, de si próprio e do mundo à sua volta. O protagonista chegará a um ponto em
que terá que sacrificar aquilo que quer para obter aquilo que precisa.
Apresenta-se a seguir a estrutura do Arco de Personagem, lembrando que tal arco
existe intrinsicamente ligado ao enredo. As partes que compõem o Arco de
Personagem também são divididas em três atos literários. Segundo K.M.Weiland 76,
suas etapas de desenvolvimento costumam seguir uma ordem e se distribuir pela linha
do tempo do enredo conforme a figura abaixo:

Figura 1 – Linha do Tempo de Enredo

76
K.M. Weiland – (1985 -) Escritora norte-americana especialista em estruturas de roteiro.
78

Fonte: Elaborado pelo autor, 2019.

Descreve-se a seguir cada uma dessas partes que formam os três atos do Arco de
Personagem:

Primeiro Ato

x Gancho

O protagonista é apresentado em seu mundo inicial, conhecido como Mundo


Comum77. Neste cenário, tudo parece estar estável. A apresentação do Mundo
Comum é fundamental, pois a partir dele se pode entender a medida das mudanças
que acontecerão no enredo e com o protagonista. O Mundo Comum revela para o
espectador de onde o protagonista parte, seu estado inicial.
Neste momento do enredo, o gancho da história é apresentado. Aqui fisga-se o público
mostrando que história estão prestes a assistir. Personagens principais são
introduzidas e nos é dado a conhecer seus nomes e principais características, como,
por exemplo, onde vivem, sua idade, se estão num relacionamento, seus gostos, entre
outras informações.
Ainda nessa etapa destaca-se o que se conhece por Momento Característico – é
apresentada a primeira inquietação da personagem. Ele diz o que quer, ou seja, qual
seu objetivo inicial. No teatro musical esse momento é geralmente um solilóquio
conhecido como I Wish Song (“Canção sobre o que Eu Desejo”), mas esse desejo
inicial pode ser revelado ainda no número de abertura. “Para que este objetivo se

77
Mundo Comum - Vide Item 3.2.1.1. p. 78 – 79.
79

entrelace com o Arco de Personagem, é necessário que seja uma extensão ou reflexo
de algo que tem significado para o personagem num nível mais profundo”, diz Weiland
(2007).
Preferencialmente, neste Momento Característico é dado a conhecer qual é a
inverdade que o personagem conta para si mesmo, mas também o seu potencial para
vencê-la. A plateia precisa entender qual é o ponto fraco que o protagonista precisará
vencer e que, em geral, está conectado com aquilo que ele quer, e não com o que
precisa. Weiland (2007), exemplifica, afirmando que o Momento Característico é a
metade de uma boa abertura de arco de personagem. Ele nos dá a personagem, mas
ainda é necessário o contexto, o que é provido pelo Mundo Comum.

x Evento Mobilizador

Uma vez apresentado o Mundo Comum e seus habitantes, agora a história pode ser
desenvolvida. É o Evento Mobilizador que faz com que o enredo comece a se
movimentar, é seu primeiro acontecimento. É o evento ou decisão que dá início ao
problema da história. Aqui se apresenta o que deverá ser resolvido. O Evento
Mobilizador pode ou não corresponder ao Evento-chave (próximo item), mas na
maioria das vezes aparecem separados. O Evento Mobilizador de qualquer história
de assassinato é o crime. O Evento-chave é quando o policial decide investigar o caso.
Em um musical, esse pode também ser um bom lugar para a I Wish Song.
Em geral o Evento Mobilizador aparece por volta do marco 12% da história. Mas é
possível que apareça no prólogo78, se houver um.

x Evento-chave

O protagonista está bem estabelecido em seu Mundo Comum e acredita estar


firmemente apoiado por aquilo que ele quer. Mas então algo acontece. O gatilho do
enredo aparece. O Evento-chave do Arco de Personagem corresponde ao Chamado
à Aventura da Jornada do Herói.

78 Prólogo - Em termos gerais, a parte introdutória de qualquer obra literária. No drama grego, a parte
que antecede à entrada do coro. A finalidade do prólogo é informar o público sobre a ação anterior ao
início da peça, além de criar um clima propício ao desenrolar do drama (Vasconcellos, Luiz Paulo.
Dicionário de Teatro. L&PM Editores. Edição do Kindle. Posição 3010-3016)
80

Em geral há uma recusa desse Evento por parte do protagonista, em um primeiro


momento e é isso que interessa à narrativa, pois desta resistência aparece o conflito,
que é responsável pela existência do enredo. Este é o primeiro momento em que o
protagonista se encontrará em conflito, de forma ainda não completa, mas que já
ameaça a segurança oferecida pelo Mundo Comum. O Evento-chave aparece
geralmente logo após o marco 12% da história, se não coincidir com o Evento
Mobilizador.
O Mundo Comum é um reflexo daquilo que o protagonista deseja acreditar ser verdade
e quando deixa esse Mundo Comum ele começa a perceber a possibilidade de que
estivesse enganado. Explica Weiland (2007):

O Mundo Comum dramatiza a Mentira na qual o protagonista acredita e


empodera o personagem nesta Mentira, não dando a ele nenhuma razão para
olhar além dele (Mundo Comum). Apenas quando o Mundo Comum é
desafiado ou abandonado (...) é que a crença na Mentira do protagonista é
balançada (EDIÇÃO DO KINDLE p.61).

x Ponto Inicial da Trama - First Plot Point

Do Evento-chave (Chamado à Aventura) até o ponto conhecido como Ponto Inicial da


Trama, o protagonista recusará o Chamado, tentará não se envolver com o
acontecido, mas chegará um momento inevitável em que o fato se tornará pessoal.
Esse é o Ponto Inicial da Trama, que colocará o herói em uma posição sem escolha e
ele estará envolvido no conflito de forma intensa, ainda que não queira. Em geral,
esse evento será imposto ao protagonista. Não é uma escolha dele, mas sim um
acontecimento surpreendente que desnorteia o herói. Esse ponto é a divisa entre o
Primeiro Ato Literário e o Segundo, e acontece por volta do marco 25% da história.
O mais importante a respeito do Ponto Inicial da Trama é a reação do protagonista a
esse evento. Se ele apenas observar e não agir, não há enredo.

Segundo Ato

x Reação

Sendo o Ponto Inicial da Trama a linha divisória entre o Primeiro e o Segundo Ato, o
81

que marca o início do Segundo Ato é a reação do protagonista ao evento do Ponto


Inicial da Trama. Essa reação se estende por toda a primeira metade do Segundo Ato.
Do marco 25% até o Ponto do Meio, o marco 50%, o protagonista agirá reativamente,
apenas em resposta ao ocorrido.

x Primeira Dificuldade

Por volta do marco 37% da história, aparece o que se conhece por First Pinch Point,
ou Primeira Dificuldade, ou seja, um obstáculo. Esse é o ponto em que o antagonista
se revela com força. A partir daí o protagonista passa a ter percepção do que
realmente está acontecendo, e percebe que o que quer é diferente do que precisa.
Mas ainda acredita que pode ter as duas coisas. Desse ponto até o Ponto do Meio,
deverá ganhar ferramentas pessoais para o combate final, que acontecerá no Terceiro
Ato.

x Ponto do Meio – Second Plot Point

É o marco 50% da história. A partir deste ponto, o protagonista finalmente começa a


agir de modo a tomar o controle em suas mãos, combatendo verdadeiramente a força
antagônica. O Ponto do Meio marca o início das ações concretas em direção a obter
o que se precisa e sua maneira de encarar os fatos começa a mudar. A partir desse
marco a história entra na segunda metade do Segundo Ato. Se na primeira metade o
Herói teve que reagir ao acontecimento do Ponto inicial da Trama, a partir da segunda
metade vai resolver a maioria dos problemas, mas o problema final será deixado para
ser resolvido apenas no clímax.

x Segunda Dificuldade

Por volta do marco 67% da história acontece uma ênfase na habilidade do antagonista
de derrotar o protagonista, que já possui, contudo, as ferramentas para não se deixar
combater.

x Terceiro Ponto da Trama - Third Plot Point


82

Encontra-se por volta do marco 75% da história e determina a divisa entre o Segundo
e Terceiro Atos Literários. Nesse momento acontece uma reversão da força
antagônica, provocando um evento inesperado, levando a uma mudança brusca dos
ganhos obtidos pelo protagonista. Poderá haver um encontro inesperado entre
protagonista e antagonista. Alguma revelação acidental acontece, colocando em risco
os objetivos do protagonista.

Terceiro Ato

x Reação Objetiva

O início do Terceiro Ato se dá com a reação do protagonista ao evento do Terceiro


Ponto da Trama. Nessa reação, porém, o herói se recupera e já está forte o suficiente
para finalmente escolher entre o que quer e o que precisa.
Esse ponto da história está por volta do marco 75% do enredo e se estende
aproximadamente até o marco 82%. Aqui, o protagonista se prepara para o confronto
final.

x Clímax

Por volta do marco 82% tem-se o início do confronto final. O protagonista está
firmemente seguro de que não há como ter as duas coisas - o que quer e o que precisa
– e passa a lutar pelo que precisa, ainda que isso represente a perda do seu desejo
inicial. Aproximadamente do marco 90% - conhecido como Meio do Clímax – em
diante, acontece a resolução final do conflito e a história pode, finalmente, chegar ao
fim.

x Fim

O protagonista é mostrado como alguém completamente modificado, em paz com sua


escolha, apesar de talvez haver um tom agridoce, nostálgico, pela perda do desejo
inicial. Ele está de volta ao Mundo Comum, que não é o mesmo aos seus olhos, ou
pode ter permanecido no Mundo Especial por escolha própria, se não houver mais
razão para retornar ao Mundo Comum.
83

3.2.1.3.1. Análise de Arcos de Personagem

3.2.1.3.1.1. Arco de Personagem em A Bela e a Fera – Bela

Primeiro Ato

x Evento Mobilizador

Em A Bela e a Fera o Evento Mobilizador aparece ainda no prólogo. Antes da cena de


abertura é mostrado como o feitiço se abateu sobre o Príncipe e o castelo,
estabelecendo o Mundo Comum do Príncipe-Fera.

x Gancho

O espectador é então fisgado pela cena de abertura. Nela se apresenta o Mundo


Comum de Bela, a aldeia onde vive com seu pai. Durante o número, Bela declara seu
desejo dizendo: “Eu quero mais que a vida do interior”, na versão em Português de
Cláudio Botelho para a montagem do Teatro Abril79. A tradução literal do inglês é “Eu
quero mais do que a vida desta aldeia provinciana”. Ainda na apresentação do Mundo
Comum nos é mostrado o antagonista Gaston, como parte desse cenário inicial. Na
sequência do número de abertura, Bela ainda declara: “Quero viver num mundo bem
mais amplo, com coisas lindas para ver. E o que mais desejo ter é alguém pra me
entender...”

x Evento-chave

O pai de Bela se perde na floresta e Bela imagina que isso pode ter acontecido pois
vê seu cachecol no pescoço de LeFou, compincha de Gaston. Bela é movida a sair
em busca de seu pai na floresta.

x Entre o Evento-chave e o Ponto Inicial da Trama

79
Teatro Abril – Atual Teatro Renault, localizado na cidade de São Paulo, é a casa de muitos Musicais
“importados” pela produtora T4F.
84

Bela encontra o castelo da Fera na floresta, adentra o castelo e é surpreendida pela


Fera. Bela implora que seu pai seja libertado. O pai de Bela pede a ela que fuja dali.

x Ponto Inicial da Trama

A Fera diz a Bela que só libertará seu pai se ela tomar o seu lugar como prisioneira.

Segundo Ato

x Reação

Bela toma a decisão de ficar no castelo para que o pai seja libertado. Essa situação é
imposta a ela: a Fera oferece essa troca, para que o pai de Bela seja libertado. E Bela
escolhe ficar no lugar do pai.

x Entre a Reação e a Primeira Dificuldade

A Fera concede a Bela um dormitório no castelo em vez de prendê-la nas masmorras.


Bela é conduzida a seus aposentos e canta seu solo, em que declara exatamente a
Recusa ao Chamado, demonstrando estar presa ao seu desejo inicial, à sua “mentira
pessoal”, dizendo “vou voltar pro lugar de onde eu vim, coração e um lar só pra mim”
(versão de Cláudio Botelho). A partir do Encontro com o Mentor, a Senhora Potts, Bela
decide seguir seus conselhos e aceita descer para jantar.

x Primeira Dificuldade

Bela escapa do jantar e entra na proibida Ala Oeste. A Fera a expulsa de lá


violentamente, e Bela decide fugir do castelo. É atacada por lobos na floresta e a Fera
a resgata, ficando, porém, muito ferida.

x Entre o Primeiro Obstáculo e o Ponto do Meio

Bela se sente grata por ter sido salva e escolhe cuidar das feridas da Fera. Aparecem
os primeiros indícios de carinho mútuo entre eles. A partir daí se tornam amigos. Fera
lhe dá a biblioteca do castelo de presente e a convida para um jantar romântico.
85

x Ponto do Meio, ou Second Plot Point

Após o jantar romântico, Bela se monstra saudosa de seu pai. A Fera lhe oferece o
espelho mágico para que veja o pai, e a cena mostrada pelo espelho é Maurice sendo
considerado louco pelos aldeões. Bela tem o impulso de tomar uma atitude e a Fera
a liberta para que vá proteger o pai. Aqui Bela demonstra que ainda não conseguiu se
desligar do Mundo Comum. Ainda acha que a aldeia é seu verdadeiro mundo. Nesse
ponto fica bem claro que a jovem sente que pode ter as duas coisas, sua aldeia e o
amor da Fera.

x Segunda Dificuldade

Ao retornar, Gaston deixa bem claro que só vai proteger o pai de Bela, impedindo-o
de ser mandado para o manicômio, se Bela se casar com ele. Bela reage fortemente
recusando e Gaston ameaça bater nela.

x Terceiro Ponto da Trama

Liderados por Gaston, os aldeões invadem o castelo. Aqui Bela percebe que não se
identifica mais com seu Mundo Comum. Percebe que o que precisa é do verdadeiro
amor. Retorna ao castelo com o pai para tentar avisar Fera dos planos de Gaston, que
encontra Fera antes de Bela, e os dois lutam. Gaston cai da torre do castelo e morre
e a Fera é ferida mortalmente.

Terceiro Ato

x Reação

Fera está morrendo e Bela corre para pegá-la em seus braços. Bela lhe dá o beijo de
amor.

x Clímax

A cena da transformação da fera em Príncipe representa a Ressurreição. Todo o


castelo se transforma e seus habitantes-objetos voltam a ser humanos.
86

x Fim

Bela está agora estabelecida no Mundo Especial, não retornando ao Mundo Comum.

3.2.1.3.1.2. Arco de personagem em A Noviça Rebelde – Maria Ranier

Primeiro Ato

x Gancho

A heroína Maria Ranier é apresentada em seu Mundo Inicial, na estabilidade de sua


vida como noviça na Abadia de Nonnberg, nas montanhas onde cresceu. Ela canta
“The Sound of Music”, sua I Want Song, na qual afirma o desejo de seu coração em
cantar, voar, suspirar e rir.

x Evento Mobilizador

O fato de Maria perder a hora nas montanhas voltando tarde demais para a Abadia
faz com que a Madre Superiora questione se Maria realmente serve para a vida de
freira.

x Evento-chave

A Madre Superiora pede a Maria que passe alguns meses fora da Abadia para sentir
em seu coração se realmente há um chamado para a vida de freira. Maria é
encaminhada para trabalhar como babá na casa da família Von Trapp. Isso representa
o Chamado à Aventura. Maria se recusa, a princípio. Ela não deseja ir. Aqui Maria
mostra seu desejo, sua mentira pessoal: permanecer no convento. A conversa com a
Madre Superiora, que acaba por convencer Maria a ir, representa o Encontro com o
Mentor.

x Ponto Inicial da Trama

Ao final de seu primeiro dia com as crianças, Maria é surpreendida por Frau Schmidt,
a governanta, que vem dizer a Maria as regras da casa: as crianças não podem se
87

sujar ao brincar, devem marchar para exercitar-se ao invés de brincar, não pode haver
música na casa.
Maria leva a maneira como as crianças são tratadas para o lado pessoal. Não se
conforma com o que viu e esse sentimento culmina na cena da oração, em que Maria
reza a Deus dizendo que sabe que foi mandada para lá numa missão para resgatar a
alegria das crianças.

Segundo Ato

x Primeira Dificuldade

São três os obstáculos apresentados neste ponto da história. Primeiro, o Capitão Von
Trapp percebe que Maria está levando as crianças para brincadeiras e piqueniques e
vê as crianças vestidas com roupas de brincar feitas das antigas cortinas da casa.
Imediatamente ele manda Maria embora. Contudo, ao ouvir as crianças cantando
lindamente, volta atrás.
Elsa, a pretendente a esposa de Von Trapp, sente Maria como um possível obstáculo,
mas vem agradecer a Maria por tudo que ela tem feito pelas crianças. Maria,
inconscientemente, também sente Elsa como um obstáculo, mas lhe assegura que só
vai ficar na casa dos Von Trapp por um breve período, pois deverá retornar para a
abadia e receber seus votos. Isso é um alívio para Elsa.
Em terceiro lugar, a partir desse ponto da história se percebe a aproximação real do
Terceiro Reich, que ameaça o mundo estável dos Von Trapp.

x Ponto do Meio

É a noite da festa na casa dos Von Trapp. Kurt, filho do Capitão, está tentando ensinar
Maria a dançar. O Capitão interrompe e toma o lugar de Kurt, mostrando-lhe como
ensinar uma dama a dançar. Maria fica muito envergonhada. São surpreendidos pela
chegada de Elsa.
Brigitta, filha de Von Trapp, conversa com Maria e diz que sabe que seu pai não vai
casar com Elsa pois está apaixonado por ela, e que ela também está apaixonada pelo
Capitão. Maria nega terminantemente. Nesse momento entra Von Trapp, que diz a
Maria que ela vai jantar na festa. Ela se recusa. Está muito confusa. Maria decide
fugir e voltar para a Abadia.
88

x Terceiro Ponto da Trama

Maria está de volta na Abadia, em oração. A Madre Superiora percebe que Maria e o
Capitão se apaixonaram. A noviça pede para ficar para sempre na Abadia, mas a
Madre Superiora lhe diz que aquele não é um lugar para se fugir do mundo, que deve
voltar à Villa Von Trapp e encarar a realidade, forçando-a a retornar.

Terceiro Ato

x Segunda Dificuldade

Há um deslocamento da Segunda Dificuldade para este ponto do início do Terceiro


Ato literário.
Ao chegar de volta na casa dos Von Trapp, as crianças contam a Maria que o
casamento de seu pai com Elsa está confirmado e foi anunciado ao final da festa.
Maria fica perplexa e percebe que seu retorno será um desafio. Mas o imprevisto logo
se resolve, pois Elsa desfaz o noivado e o Capitão e Maria se declaram um para o
outro e se casam.
A outra dificuldade que se apresenta neste ponto é trazida pela personagem Rolf, que
aparece para entregar um telegrama para o Capitão, que não está em casa. Ele diz a
Maria, muito secamente, que todos estão do mesmo lado, menos o Capitão, e que, se
ele se preocupasse com ele mesmo e com sua família, deveria passar para o lado
correto. Caso contrário, seria melhor sair do país. Rolf adverte Maria, agora já esposa
de Von Trapp, que se lembre muito bem do aviso dele.
E há uma terceira dificuldade: o Capitão recebe um “convite” para conduzir a nova
marinha naval daquele país, submisso ao Terceiro Reich. Maria e o Capitão sabem,
neste momento, que terão que fugir da Áustria.

x Terceiro Ponto da Trama

Durante o Festival, os planos da fuga se antecipam, pois, é anunciado que soldados


do Terceiro Reich estão lá, presentes, para pessoalmente levarem o Capitão para
assumir seu novo posto assim que acabar a apresentação. A família foge enquanto
são anunciados como os vencedores do Festival.
89

x Clímax

Maria e a família estão escondidos nos jardins da Abadia. Os soldados estão lá,
procurando por eles. Quando a busca está quase terminando, Rolf encontra a família
escondida na penumbra. Ele ilumina o rosto do Capitão com sua lanterna, depois o
rosto de Maria. Por fim, ilumina o rosto de Liesl. Aqui a família está frente à sua prisão
e consequente morte por traição. Rolf chama seu superior, mas antes que ele chegue,
Rolf diz que não há ninguém escondido ali. Os Von Trapp sobrevivem.

x Fim

A família está livre para a fuga. Decidem atravessar as montanhas rumo à Suíça,
onde estarão livres do nazismo. A família parte rumo a um novo Mundo Especial.

3.2.2. Música

A música integra de várias formas diferentes a construção de uma obra de teatro


musical. Aqui se apresentam as principais formas de uso da música nesse gênero
artístico.

3.2.2.1 Voz Musical da Obra

Aquilo que costuma ser analisado em primeiro lugar pelo time criativo é qual a
linguagem musical que traduz a obra. A isso dá-se o nome de “voz musical da obra”.
De que maneira a sonoridade geral do espetáculo traduzirá a ideia defendida pelo
texto? Qual a linguagem musical desejada? Em que época histórica a obra se passa
e qual a sonoridade que a caracteriza? A equipe criativa pode utilizar uma sonoridade
histórica para retratar o espetáculo, ou inspirar a composição em sonoridades
específicas para lembrar o espectador da época e local em que a narrativa se passa,
por exemplo. Tudo isso influência a voz musical final da obra e será de grande
importância na construção do score.

3.2.2.2. Song spotting


90

É o nome do processo de escolha dos lugares exatos em que devem aparecer as


canções em um musical. Essa escolha deve ser feita pelos autores após a finalização
do libreto, quando então entram em acordo a respeito de quais os melhores momentos
da obra para serem musicados. A equipe criativa precisa escolher não apenas que
lugares do libreto são os melhores para os números cantados, mas também quais as
personagens que irão cantá-los, se o número associa ou não alguma coreografia, qual
tipo de música reflete a sensação esperada para aquele número musical específico.
Cohen e Rosenhaus (2006, p. 65-70) explicam:

O primeiro passo do song spotting para os autores é determinar quais


lugares do libreto que devem ser musicados. (...) Bons autores,
conscientemente ou não, seguem o princípio de musicar os picos emocionais
da história. (...) Estes são usualmente os pontos essenciais da linha do
enredo central: as canções, nestes lugares, se apropriadas e bem escritas
(...) [são] as canções essenciais. Dentre os locais mais comuns para estes
pontos altos estão a abertura do show, o fim do primeiro ato e o clímax do
show no segundo ato, apesar dos dois últimos locais em geral usarem
reprises de canções que apareceram antes ao invés de novas canções.

Dessa forma, uma peça teatral não se torna um musical simplesmente quando se
escolhe lugares para números musicais, recortando o diálogo, abrindo, assim, espaço
para uma canção. Criar um musical envolve construir a espinha dorsal do espetáculo
musicalmente. Os números musicais que serão criados para a obra deverão ser essa
espinha dorsal. A ordem em que aparecem dão o formato do arco do enredo. Portanto,
os autores devem também compreender de que maneira os números musicais
construirão esse caminho da história, conduzindo o início ao meio, e o meio ao fim.
Isso irá certamente mudar, a cada revisão da obra e a cada try-out80. Canções serão
descartadas e outras podem aparecer, durante esse processo. Mas, de início, existem
lugares que são ideais para a música, como por exemplo os Pontos da Trama (Plot
Points), que, em geral, são musicados.
Obviamente que seria difícil para a construção de qualquer espetáculo ter 15 ou 16
pontos importantes de mudança, portanto, qualquer score de musical terá que ter
números opcionais.

3.2.2.3 A canção

80 Try-out – Teste para verificação de quão efetivo algo ou alguém é. (Disponível em:

<https://dictionary.cambridge.org>. Acesso em: 07/06/2019) Chama-se de try-out o período em que um


espetáculo musical está sendo testado, em geral em uma cidade que não seja Nova Iorque.
91

A música aparece de várias formas no teatro musical, mas a canção representa o


núcleo musical central porque nele a canção tem função dramática. Ela não serve
para ilustrar um momento da peça: sua função é mover a personagem adiante e por
consequência mover o enredo adiante. Quando a canção termina, algo mudou. A
personagem vai de um lugar psicológico/emocional a outro, do início ao fim da canção.
Para entender a função dramática da canção no teatro musical, é preciso analisar sua
diferença em relação ao texto falado, não cantado. Em um musical, a canção funciona
de forma diferente do que o texto falado do teatro não musical, uma vez que a música
expande momentos dramáticos, enquanto o diálogo condensa os mesmos momentos.
Cenas cantadas são expansões da linha do tempo. Portanto, diálogo, solilóquio e
canção não devem tentar servir ao mesmo propósito. Se um texto é apresentado e
depois a canção apenas repete o que o texto disse, ilustrando-o, então não há ação,
e essa canção interromperá a linha de desenvolvimento do espetáculo, promovendo
aquilo que as equipes criativas mais temem: a interrupção do show. Existe uma
expressão em língua inglesa para isto, “The show stops”, ou seja, “o show para”. Em
Engel apud Cohen e Rosenhaus (2006, p. 65), encontra-se que “bons autores não
querem uma canção que “para o show” – querem uma canção que o mova adiante.
Às vezes isto se faz transformando toda ou parte de uma cena em música”.
A mesma expansão representa também o momento de quebra da quarta parede 81.
Por isso, em geral, os momentos em que aparece uma canção são os ápices
dramáticos da história, onde há decisões a serem tomadas pelos personagens, onde
há reflexão acontecendo, momentos em que há ação, interna ou externa. Ou em que
algo precisa ser apresentado, mostrado, revelado.
Em um musical o enredo está frisado dramaticamente com canções, e os momentos
decisivos, os marcos do enredo são os momentos cantados. E o núcleo musical de
um espetáculo desse gênero é a canção.
Canções costumam ser posicionadas nos momentos-chave do enredo, lugares de
mudança de rumo interno ou externo da personagem. Momentos que demonstram
necessidade de serem colocados numa lupa, de serem “aumentados”. Diz Frankel
(1977, p. 7):

81 Quarta parede - Termo cunhado por André Antoine (1858-1943) para designar a parede imaginária
situada na altura do arco do proscênio que separa o palco da plateia. A quarta parede constitui uma
convenção do naturalismo no teatro, e sua prática exigiu o desenvolvimento de uma técnica de
interpretação em que o ator simula, através de seu comportamento, a continuidade do cenário através
dos quatro lados do palco. Em consequência, o ator representa ignorando a presença do espectador
diante dele. (Vasconcellos, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. L&PM Editores. Edição do Kindle. Posição
3056).
92

Canções dominam a maioria dos pontos principais do enredo, e os tornam


pontos altos. Outras ferramentas únicas – estabelecer números, reprises,
segues, underscoring 82– mais adiante integrarão estes elementos. Como
conflito gera drama, será a música que elevará a pressão, ou a aliviará. Teatro
musical adéqua [sic] a ação à música, e a música à ação.

A canção pode aparecer no musical como um solo, um dueto, trio, quarteto, um


número de grupo. Pode ser uma declaração feita por uma única personagem ou por
mais de uma. Mas a função permanece a mesma: mover o enredo adiante. Canções
são desenvolvimentos dramáticos de personagens.
É interessante frisar que há grande diferença entre uma canção regular e uma canção
de musical. Esta última é um momento de ação, e a primeira não. A canção de musical
acontece impulsionada por um contexto dramático, revela algo novo e leva o enredo
a outro lugar. Ela é a razão da cena onde em que aparece. Um momento-pivô. Se, no
processo criativo, a canção não se revelar como tal, se for desnecessária para contar
a história, é melhor que seja descartada.
A canção pode também aparecer entrecortada por diálogo ou falas, em pequenos
trechos, mas precisa logo voltar a ser cantada, deixando o entrecorte de falas apenas
para um breve momento. Através da canção a ação se move com mais força, e a
essência do musical é a canção. Portanto, quando esse recurso é utilizado, a parte
cantada acaba sendo predominante
Outra maneira de usar a canção como ferramenta dramática é o uso da não
linearidade para construção de uma elipse temporal ou espacial. Essa é uma técnica
bastante utilizada em teatro musical, pois a própria convenção de aceitar que a fala
dos personagens seja cantada já possibilita uma abertura para que a não linearidade
seja aceita sem problemas. Cohen e Rosenhaus (2006, p. 65-66) explicam:

Uma outra maneira de usar a canção para fazer a história avançar é


aproveitar-se das técnicas de apresentação e de não-linearidade que são
possíveis no teatro musical, como montagem, combinação ou superposição
de cenas curtas para criar o efeito de passagem do tempo ou espaço.
Montagem é onipresente no cinema. É difícil de fazer em teatro não musical,
mas muito facilmente em teatro musical, por causa da força não realista e
mágica da música. Assim como a música pode ajudar a preencher os espaços
entre cenas, pode também ajudar a preencher espaços de tempo; uma
música pode promover uma continuidade que unifica cenas díspares,
fazendo-as parecer como parte de algo maior.

3.2.2.3.1. Tipos de canção presentes no teatro musical

82 Números, reprises, segues, underscoring – Vide item 3.2.2.6.1, pgs 118-122.


93

Ao longo da história do teatro musical, determinados tipos de canção foram sendo


convencionados. Apresenta-se a seguir categorias de canções comumente usadas
em obras do gênero.

x Número de Abertura

O número de abertura costuma mostrar o “Mundo Comum” do protagonista, para


armar o cenário do qual ele deverá sair. Em geral, é um número de toda a companhia,
apesar de que em certos musicais o número de abertura é um solo. Pode ou não estar
conectado a dois tipos de canção descritas adiante, I Am Song e I Want Song.
Costumam dizer que esse é o último número a ser escrito, pois sua função é dar o
tom de toda a obra.

x Canção Solo (Solilóquio)

A canção solo, conhecida como solilóquio, vem a ser a mais tradicional forma de
canção de musical, o que é uma herança da ópera e da opereta, em que o uso desse
recurso é clássico (antes disso, dos solilóquios gregos e shakespearianos). Em geral,
sua aparição se dá num destaque da ação dramática. É um momento recortado, em
que a personagem reflete sobre sua circunstância, promovendo a quebra da quarta
parede. A personagem demonstra ao público o que está se passando internamente
consigo, podendo ou não indicar o público como interlocutor direto. É considerado um
bom solilóquio aquele em que a personagem está buscando um modo de resolver seu
conflito.
Em geral os solilóquios podem ser usados para descrever momentos de transição
emocional, psicológica ou física; de percepção por parte da personagem a respeito de
algo; ou de alguma tomada de decisão. A Canção de Transição descreve um momento
de mudança ou conversão do protagonista. A Canção de Percepção, quando o
personagem chega a algum importante insight, ou um novo nível de percepção de sua
situação. A Canção de Decisão se dá quando, após um período de relutância, o
personagem finalmente toma uma decisão sem volta.

x I Am Song
94

“ I Am” significa “Eu Sou”. Nesse tipo de canção, portanto, a personagem revela quem
é. Ela explica uma personagem ou um grupo de personagens. I Am Songs revelam o
mais rapidamente possível a personagem. (COHEN e ROSENHAUS, 2006, p.66). Tais
números apresentam personagens não apenas pela letra, mas também pelas
qualidades da música: o ritmo da canção, o jeito de cantar, a maneira de pronunciar
as palavras. Estes são fatores que trazem informações sobre a personagem.

x I Want Song (Também conhecida como I Wish Song)

Trata-se da canção que revela o desejo motivador responsável por fazer o enredo se
desenrolar. Mostra qual a motivação para uma ação que está prestes a acontecer. As
I want songs vêm cedo durante o show, movimentando a história para a frente melhor
do que as canções “I Am”. “Quando personagens dizem o que querem eles também
dizem que tipo de pessoas são” (COHEN e ROSENHAUS, 2006, p. 66).

x Baladas

Esta é a categoria mais familiar de canções para o teatro musical. Baladas são
canções de ritmo moderado ou lento, que traduzem emoções fortes através de música
expressiva e poética” (COHEN e ROSENHAUS, 2006, p. 94). As baladas fizeram a
história do teatro musical norte-americano, porém, nas últimas décadas esse tipo de
canção vem se tornando cada vez mais incomum. “Teatro musical requer a presença
de baladas, mas boas canções românticas vêm se tornando cada vez mais raras”, de
acordo com os mesmos autores supracitados, que ainda dizem que as baladas são
canções compostas para se tornarem os hits de um espetáculo. Aquelas que as
pessoas costumam sair dos teatros assobiando seu tema. As baladas passaram a ser
usadas não apenas para falar de amor romântico, podendo ser usadas para falar
sobre o amor familiar ou amor pela pátria, por exemplo.
Em seu blog <composingmythoughts.wordpress.com> o autor Steven Rosenhaus
ainda comenta que “baladas têm foco em um ponto emocional”, e que são “o tipo mais
predominante de canção em um musical”. “If I Loved You”, do musical “Carousel”
(1945) exemplifica bem esse tipo de canção.

x Canções de Comédia
95

As Canções de Comédia são aquelas direcionadas a provocar gargalhadas, ou pelo


menos boas risadas no público. Não importa em que estilo ou ritmo, sua letra é aquilo
que faz diferença. Os momentos de alívio cômico trazidos por esse tipo de canção
costumam basear-se nas situações vividas pelas personagens, e não em piadas. A
plateia se diverte com as complicações vividas pela personagem, que atrai situações
que a levam ao ridículo. Um bom exemplo disso é a canção “Calm”, de “A Funny Thing
Happened On the Way to the Forum” (1962), de S. Sondheim.

Uma conclusão que emerge do estudo de canções de comédia é que as de


boa qualidade se baseiam em personagens, ocasionalmente em situações,
mas quase nunca em piadas (...). Personagens estão infelizes ou frustrados,
e sentindo pena de si mesmos. A maioria das comédias é baseada em
pessoas em situações desprazerosas, ou que estejam tristes (COHEN e
ROSENHAUS, 2006, p. 95).

x Canções Rítmicas, ou Rhythm Songs

São o que seu nome sugere: “canções que têm movimento, que têm um pulso mais
rápido do que baladas. Variam de tempo médio a rápido”, de acordo com Steven
Rosenhaus do blog <composingmythoughts.wordpress.com>. Essas canções se
definem por um ritmo “up-tempo83”, direcionadas a números de grupo e de grandes
danças. É um elemento estilístico muito comum, que traz aos shows famosos
momentos de grande excitação e glamour. (COHEN e ROSENHAUS, 2006 p. 95) A
canção título do musical Oklahoma! É um bom exemplo.

x Charm Song

É um tipo de canção que serve ao propósito de fazer o público ficar encantado pela
personagem. Nessa canção ele vai derramar todo o seu charme, seduzindo o público
a estar sempre ao seu lado, torcendo por ele. Na maioria das vezes, portanto, uma
canção desse tipo será cantada por um dos protagonistas. Através deste tipo de
canção a personagem faz uma conexão com a plateia.
O interessante desse tipo de canção, já que serve ao propósito de fazer a plateia se
encantar pelo personagem, é que ela não precisa ser alguém de bom caráter. Esse é
o desafio de se compor uma boa Charm Song: até um assassino precisa ter algo

83
Up-tempo –música de tempo rápido, que pode implicar uma característica alegre e positiva.
96

charmoso, encantador. E é este aspecto que será mostrado na Charm Song, para que
a plateia se conecte com a personagem mesmo que ela seja um vilão. Um bom
exemplo é a canção de Billy Flynn, em Chicago (1975), “All We Care About”. Apesar
de seu péssimo caráter, a canção faz com que a plateia se encante por Billy, e ele
passa a ser o vilão engraçado por quem todos torcem.

x 11 0’Clock Number

O número musical conhecido como “11 O’Clock Number” é um número grandioso.


Ilustra o momento em que a personagem que o canta, na maioria das vezes um
protagonista, percebe algo importante, ou passa por uma mudança fundamental. É
talvez o mais importante número do show. Tem esse nome pois acontece por volta
das onze horas da noite, quando o início do musical é às oito e meia da noite. Ou seja,
após o intervalo, no Segundo Ato, por volta de meia hora antes do término. É
considerado um grande momento clímax do espetáculo, o que se chama de
showstopper: tudo para e esse grande e memorável número acontece. Muitos “11
O’Clock Numbers” acabam se tornando as canções mais famosas de musicais, pois
são números pensados para terem grande impacto sobre o espectador. São canções
grandiosas, vocalmente desafiadoras, cheias de energia. “Rose’s Turn”, do musical
“Gipsy” (1959) é um exemplo clássico.

x List Songs

Também conhecidas como “Laundry-list”, cuja tradução literal é “lista de lavanderia”,


seu nome já prenuncia do que se trata: são canções que não possuem ação
dramática, que não movem o enredo adiante. Essas canções são colocadas no show
para puro divertimento do público. Mais comuns no passado do que nos dias de hoje,
canções deste tipo são aquelas cujas frases ou estrofes podem ser invertidas sem
que o sentido da canção sofra qualquer modificação. A mensagem da canção não
muda se você inverter as estrofes ou suas linhas.
“My Favorite Things”, em Sound of Music (1959), ou “You’re the Top”, em Anything
Goes (1934), são exemplos típicos de List Songs.
97

x Quando a personagem canta84

Este tipo de canção acontece quando a personagem sabe que está cantando. Por
exemplo, a personagem está num karaokê, ou está se apresentando em um cabaré.
Em uma canção regular, a plateia aceita a convenção de que personagens estão
cantando em vez de falar: o canto é, na verdade, a fala da personagem, como se
estivesse “dando” um texto. Mas aqui a personagem sabe que está cantando e seu
interlocutor em cena também. A canção “Edelweiss”, cantada pelo Capitão Von Trapp
em A Noviça Rebelde, pode ser um exemplo.
Essas canções correm o risco de interromper o desenvolvimento dramático se não
revelam nada a respeito da personagem nem movem a ação dramática. Mas a
maneira como são cantadas por uma personagem pode sim revelar muito sobre ela.
Se esse for o caso, é possível integrar esse tipo de canção à história, uma vez que
estará revelando algo a respeito da personagem que a canta.
É o caso do musical Cabaret. Nele, pode até parecer que as personagens estão
simplesmente se apresentando, mas as canções revelam o caráter da personagem e
tecem comentários sobre os acontecimentos. Isso é usado no musical como
ferramenta de uma linguagem estética, o kabarett alemão.
Detalhes a respeito da personagem podem ser revelados na maneira em que a
canção está sendo cantada. Algo pode ser mostrado, por exemplo, através da
linguagem corporal que a personagem usa para cantar.
.

x Canção de Entretenimento

São canções cuja única finalidade é entreter. Esse tipo de canção não é usado para
mover a ação dramática. Existem com a função de trazer alívio cômico quando o show
está tenso demais, ou garantir excitação e aplauso quando está tudo muito sério. O
problema de números de entretenimento é que, muitas vezes, param o desenrolar da
história. Muitos shows costumam apresentar uma canção de entretenimento em um
grande número de grupo. “Be Our Guest”, de A Bela e a Fera (1994) pode ser dado

84
Alguns autores referem-se a esse tipo de canção como ‘canção diegética’. Como exemplo, encontra-
se em Em Cohen e Rosenhaus (2006, p. 67): “A distinção entre canções diegéticas e não-diegéticas
não é como preto no branco. Muitas canções teatrais são ao mesmo tempo diegéticas e narrativas em
variados graus, e musicais muitas vezes tiram vantagem desta sobreposição de funções”. Esta
pesquisa faz referência a esse tipo de canção simplesmente como “Quando a personagem canta”, por
entender que o significado de ‘diegese’ não se aplica ao caso.
98

como exemplo.

3.2.2.4. Voz Musical de Personagem

Ao processar quais as sonoridades escolhidas para preencher um espetáculo, a


equipe criativa precisa também analisar como as personagens serão representadas
sonoramente. Este ponto é bastante importante. Personagens terão uma linguagem
própria - que aparecerá na corporalidade construída pelo ator para aquela
personagem - um modo de falar e de se expressar pelo gesto, e um modo de cantar
também. As personagens possuem algo como uma “personalidade musical”,
conhecida como “voz musical de personagem”. Essa “voz musical” precisa estar de
acordo com QUEM É essa personagem, e no que irá se tornar. Por exemplo, em My
Fair Lady a personagem Eliza é apresentada cantando “Wouldn’t it Be Loverly”,
demonstrando um sotaque específico que mostra qual sua classe social. Conforme o
espetáculo passa e sua condição social muda, também muda seu sotaque, sua
maneira de usar a linguagem e sua maneira de cantar.

3.2.2.5. Leitmotiv

Historicamente, o conceito de Leitmotiv vem acompanhando a evolução de


espetáculos musicais há mais de um século. O conceito foi introduzido pelo
compositor Richard Wagner, como parte de suas “obras de arte totais”85.
O teatro musical herdou esse conceito da ópera. É um tema ou ideia musical que
representa uma personagem ou um evento, e que ajuda o público, subliminarmente,
a decodificar sua presença no decorrer da história que está sendo contada.
Diz o pesquisador Whitthall (2001):

Esse tema é claramente definido para reter sua identidade se modificado em


aparições subsequentes, cujo propósito é representar ou simbolizar uma
pessoa, objeto, ideia, estado mental, força sobrenatural ou qualquer
ingrediente em uma obra dramática. (NEW GROVE DICTIONARY OF MUSIC
AND MUSICIANS, v. 14, p. 527).

Seu uso extrapolou os palcos das óperas e ganhou amplo uso em outros gêneros
narrativos, tais como o cinema e a televisão. Carrasco (2003, p. 97), explica que
leitmotivs são “temas que expressam estados emocionais e intenções de personagens

85
Vide item 2.4.1.
99

ou grupos de personagens e os relacionamentos entre eles”.


No que diz respeito à narrativa fílmica, a pesquisadora Claudia Gorbman diz que
leitmotiv seria "qualquer música – melódica, fragmento melódico ou progressão
harmônica identificável – escutada mais de uma vez durante o curso do filme”
(GORBMAN, 1987, p.26). Diz ainda que o leitmotiv possui duas funções, que são
primeiro se associar a um objeto cinematográfico. O segundo é fazer o espectador
lembrar-se de algo: o tema musical se liga a alguma ação ou personagem, de modo
que o espectador se lembre do personagem ou evento quando aquele tema musical
é tocado.
Claudia Gorbman e Claudiney Carrasco referem-se ao uso do leitmotiv na narrativa
fílmica, mas no teatro musical não é diferente. Esse é um mecanismo amplamente
usado nesse gênero, também com a finalidade de conectar um tema musical a um
personagem ou evento, de modo a conduzir a memória do espectador. Em teatro
musical o leitmotiv costuma ser introduzido na canção da personagem (I Am Song ou
I Want Song).

3.2.2.6. O Score

A palavra score, traduzida literalmente, significa “partitura”. Mas em teatro musical o


score é considerado a estrutura musical da obra. Ele traduz musicalmente o arco
dramático.
O score descreve o pensamento criativo por detrás da obra e pode ser considerado
um retrato da narrativa. A linguagem escolhida pela equipe criativa para ilustrar o
espetáculo está ali, em cada linha que do score. Nas palavras de Frankel (1977 p. 59),
“uma maneira importante de como um score funciona é personificando o musical.
Música resume a “realidade única” de um show”.
O score precisa também integrar todas as partes do musical. Música e texto precisam
estar integrados como os fios que formam um tecido, um emaranhado perfeitamente
composto. E para isso é necessário haver muita clareza por parte da equipe
colaborativa em relação à linguagem estabelecida para contar a história. O score
precisa surgir completamente integrado a essa ideia de linguagem. Como falam e se
comportam as personagens traduzirão como elas cantam e dançam. Cada aspecto
das personagens precisa estar muito claro para que o score possa traduzir
musicalmente essas ideias.
Uma sinopse musical do espetáculo deve ser capaz de contar a história da mesma
100

forma que uma sinopse não musical. E isso deve se dar justamente porque as canções
não estão ali inseridas a partir de um recorte do diálogo e nem apenas ilustrando a
cena que a antecedeu: a música deve fazer o enredo mover-se adiante.
O score precisa integrar as partes do enredo. Isso significa que o score não é um
songbook, não é uma coletânea de canções. Cada número musical, canção ou não,
precisa servir ao propósito de integrar as partes, fazendo com que a história avance.

3.2.2.6.1. Funções específicas encontradas no score de teatro musical

x Underscore

Conhece-se por underscore a música que acontece associada à uma cena com ou
sem o diálogo falado, e que pode dar início a algum número musical cantado na
sequência. Pode também ser um trecho de música que acontece apenas
acompanhando um diálogo ou monólogo, mas que traduz emocionalmente o que se
passa com a personagem, elevando o nível emocional do texto falado. Muitas vezes,
o underscore revela facetas emocionais da personagem. Pode também revelar ao
público algo que a personagem ainda não percebeu a respeito de suas próprias
emoções. Outras vezes o underscore é usado para remeter a cena a outra situação
já encenada no espetáculo, uma lembrança, por exemplo. Muitas vezes o underscore
apresenta pedaços do leitmotiv de alguma personagem. É um recurso que pode ser
utilizado de inúmeras formas, mas que, acima de tudo, cumpre a função de elevar o
nível emocional e dramático da cena em que se apresenta.
Muitas vezes o underscore é usado para revelar o subtexto da personagem que está
falando naquele momento: sua função aí é mostrar o que existe por detrás das falas
da personagem, o que está implícito, porém não é dito. Ou, simplesmente, revelar
como a personagem está se sentindo, ainda que esteja em silêncio.
O underscore é criado a partir do ritmo cênico do elenco que interpreta os papéis na
montagem original. Um novo ator que venha a substituir alguém do elenco original
terá que se adaptar ao underscore que foi criado pelo ritmo cênico de outro.
É possível que, em certas ocasiões, o underscore venha até mesmo a resolver
problemas em determinados pontos dramáticos em que o texto não consegue traduzir
completamente uma ideia. Ou a letra, quando às vezes não está inteiramente clara. A
música completa a necessidade de entendimento emocional do que se passa em
cena.
101

Existem alguns mecanismos de entrada e saída do underscore para o início de um


trecho cantado que venha após um trecho falado, ou vice-versa. Essas ferramentas
musicais são importantes no teatro musical e sua necessidade se dá pelo uso de
undesrcoring, já que acontece ao mesmo tempo que o texto falado. São elas: lead-in
e lead-out, explicadas a seguir:
Em teatro musical, lead-ins são os momentos falados que precedem o início da
canção, mais especificamente as falas ou diálogo que introduzem o momento
cantado. Em geral, estas falas já vêm acompanhadas de música, e representam uma
transição entre texto puramente falado e a canção. O lead-in pode ser apenas falado,
ou pode ser um recitativo.
Já o lead-out é o momento que faz a transição do fim da canção para a volta ao texto
falado. A maneira mais comum de fazer a transição de lead-out é o aplauso. Mas não
só. Quando a cena não acaba ao fim da canção e existe na sequência um diálogo
falado, é necessário fazer uso de outros tipos de ferramentas musicais e certamente
o underscore ajuda nessa transição.
Os mecanismos musicais usados para fazer essa transição entre a canção e uma
cena falada são: Vamp, Safety, Jump Cue, Cue to Continue.
Conhece-se por Vamp um trecho musical que pode ser tocado repetidas vezes
enquanto um ator dá seu texto, à espera de que o trecho falado termine para o início
de um trecho cantado. Em geral, um, dois ou quatro compassos musicais que são
repetidos quantas vezes necessário, e ao término do trecho falado o maestro dá,
então, a entrada da canção. Nada mais é do que um loop que está lá por segurança,
servindo ao diálogo ou monólogo.
Safety é um tipo de Vamp, porém é de uso opcional. Um trecho musical reservado
para ser usado se algo inesperado acontece em cena. Por exemplo: Atores estão no
palco à espera da entrada do companheiro de elenco, que entraria cantando. Mas
houve um atraso na troca de figurinos. A orquestra tocará o Safety até a entrada do
ator atrasado.
Cue to Continue é uma linha de texto falado que mostra para o regente que nesse
momento acaba o Vamp. Em português, na linguagem teatral é conhecido como
“deixa”. O Vamp é tocado até o final e então é iniciada a canção.
Jump Cue é quando a “deixa” de texto acontece antes do final do Vamp. Neste caso,
a banda ou orquestra não toca o Vamp até o final, e a canção é iniciada
repentinamente.
Lead-ins e lead-outs também têm a mesma função ao fazer a ponte entre diálogo e
102

dança, e da dança de volta para o diálogo, assim como para fazer uma transição entre
canção e dança.

x Recitativo

É um tipo de escrita musical para uma única voz, que procura imitar um discurso
dramático de forma cantada. Remonta da época no nascimento da ópera. A intenção
dos compositores que exploraram esse estilo era dar impressão de liberdade
declamatória, como em um encontro do canto com o discurso falado. A partir do século
XVIII, o recitativo passou a ser um veículo importante do diálogo e ação dramática na
ópera, enquanto as árias representavam a parte mais lírica (THE NEW GROVE
DICTIONARY OF OPERA, v. 3; p. 1252).
Apesar de no teatro musical haver uma herança mais forte da Ópera Comique, em
que há diálogo falado entre as canções, muitas vezes o recurso do recitativo é usado
como lead-in para canções. O recitativo funciona no teatro musical como uma
transição entre o texto falado e a canção: o ator fala seu texto, que aos poucos ganha
um acompanhamento musical e aos poucos vai sendo recitado, até que começa a
canção propriamente dita.

x Reprises

Reprise é a repetição de uma canção ou de um trecho principal de uma canção, em


geral o refrão, preferencialmente com outra letra, numa recontextualização do que
está sendo mostrado por uma personagem. Um novo sentido é dado para a mesma
sonoridade. Quando a letra se repete, ainda assim essa repetição vem demonstrar
algo diferente para um outro momento da personagem, ou vem reforçar algo que já
foi mostrado antes.

x Segues

Essa indicação designa que a próxima seção do score deve seguir imediatamente
após a anterior: uma canção pode terminar, por exemplo, e a música dar sequência
para a cena que vem a seguir, através de underscore. É possível que haja uma pausa
muito breve entre o fim de um número musical e o trecho em segue, com a finalidade
de permitir o aplauso.
103

x Overture, Entr’acte, Finale e Bows

A Overture é o número orquestral de abertura. A principal característica da abertura


costuma ser a apresentação dos principais temas musicais do espetáculo, ilustrando,
dessa forma, o arco dramático do início ao fim. Esse número de abertura possui a
função de transportar o espectador para dentro da história, tirando-o do “mundo lá de
fora”. Costuma haver muita dispersão no teatro antes do início do espetáculo, e a
Overture começa a conduzir o espectador para dentro daquilo que vai acontecer. O
fio condutor emocional do espetáculo está traduzido nesse trecho musical. E está
sendo oferecido, subliminarmente, ao espectador.
O Entr’Acte é conhecido em português como “entreato”. Nada mais é do que o número
de abertura do Segundo Ato, que tem a função de trazer o espectador, de volta para
a história após a dispersão do intervalo. As luzes serão reduzidas e a música fará esta
condução da atenção do espectador de volta para a história. Para tanto, o entr’acte
trará os temas dos números musicais do Primeiro Ato, relembrando o espectador da
história que já foi contada, e, provavelmente, introduzindo com algo novo a abertura
do Segundo Ato com algo novo.
O Finale é o número que encerra o espetáculo, trazendo, em geral de forma grandiosa,
o ponto final da história. Esse número pode trazer trechos reprisados dos pontos
musicais mais altos do espetáculo, relembrando o espectador do caminho trilhado até
ali pelo protagonista até ali.
Bows é o trecho orquestral final, um número instrumental usado para os
agradecimentos do elenco. Os temas musicais mais importantes são usados nessa
composição, e em geral quando os protagonistas vêm receber os aplausos seus
temas são tocados.

3.3. A criação do texto e letras de canções em 47 – O Musical

“Não importam quais as mudanças finais, uma história


sem definição de começo não tem esperança –
escrever e reescrever o enredo acabam dominando o
104

processo e isso nunca acaba. História concreta e


condensada é todo o esboço que se precisa”
(Aaron Frankel).

Após a pesquisa teórica sobre técnicas de dramaturgia e inserção musical para o


teatro musical, deu-se início ao processo de criação do texto dramático e letras. Foram
elaboradas a premissa, história e enredo de acordo com os levantamentos teóricos
realizados, descritos a seguir:

3.3.1. Premissa, história e enredo de 47 – O Musical

3.3.1.1. Premissa

As ideias-semente de 47 – O Musical se formaram a partir das seguintes inquietações:

x Como o nascimento de uma criança com síndrome de Down toca as vidas das
pessoas próximas a este nascimento? Como afeta suas relações interpessoais? O
que gera nelas, emocionalmente?

x E se alguém próximo a essa criança nascida com Down descobrisse que existe
um tratamento que é capaz de otimizar a saúde geral desta criança? Como tornar o
tratamento possível? De que maneira o tratamento em si afeta a vida de todos os
envolvidos?

Esses questionamentos deram origem às ideias que, aos poucos, ganharam forma e
se tornaram a história apresentada a seguir.

3.1.1.2. História – o monomito e os arcos de personagem

Apresenta-se a seguir a história de 47 – O Musical, distribuída pelas doze etapas do


monomito e com as etapas do desenvolvimento do arco de personagens. Os números
musicais estão indicados entre parênteses.

Primeiro Ato Literário: O MUNDO COMUM

CHAMADO À AVENTURA
105

x Gancho (Número musical de abertura: “Livre Pro Amor”)

Dois casais de amigos quarentões vivem no mesmo prédio: Cris e Pedro, vizinhos de
Rafael e Lucas. Cris e Rafael são amigos de infância e vivem nesse prédio desde
crianças, primeiro com seus pais, e agora com seus companheiros. Consideram-se
como irmãos um do outro, já que foram filhos únicos. Cris e Pedro estão tentando ter
um filho há algum tempo. O número musical de abertura apresenta os dois casais em
um início de dia, despertando e se preparando para suas jornadas.

x Evento Mobilizador - Cris finalmente se descobre grávida.

O casal convida o melhor amigo de Cris, Rafael, para ser o padrinho.


Rafael fica muito feliz, pois sempre desejou ser pai. Tanto que chegou a inscrever-se
na fila da adoção. Porém, ao se casar com Lucas, abdicou do sonho de ser pai, já que
Lucas não desejava filhos, por ter um trauma de abuso na infância. (Transição – “Pra
Não Pensar Em Mim”). Rafael reflete sobre a época de sua vida em que quase foi pai
adotivo (Solo - “Uma Criança a Brincar”).

TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR / ENCONTRO COM O MENTOR

x Evento-chave (Solo – “Pro Que Der e Vier”)

Cris descobre no ultrassom de doze semanas que seu bebê pode ter síndrome de
Down e pede a ajuda de seu melhor amigo, Rafael, para contar para seu marido,
Pedro. Rafael promete fazer tudo o que puder para ajudar (Reprise - “Pro Que Der e
Vier”)

x Ponto Inicial da Trama - First Plot Point

A síndrome de Down do bebê é confirmada por um segundo exame, o que gera


comoção nos dois casais. Em uma reunião entre os amigos, Lucas, que é advogado,
sugere que Cris faça um aborto, alegando que o preconceito fará com que a criança
possa sofrer abuso e ser vítima de bullying.

x Reação ao Ponto Inicial da Trama

Pedro e Cris decidem que não têm coragem de tirar a criança (Dueto – “Vem Me
106

Ensinar”)

Segundo Ato Literário: INICIAÇÃO

PROVAS, ALIADOS E INIMIGOS

Cris pede ajuda a Rafael, seu melhor amigo. Ela está de luto. Não tem forças para
pesquisar nada a respeito da síndrome de Down. Rafael se propõe a ajudá-la,
coletando informações na internet (Recitativo e solo – “Isso, Não!”). Ele mergulha num
desenfreado processo de pesquisa online, com a finalidade de descobrir o que existe,
o que possa ser feito, de mais recente e moderno no mundo para pessoas com Down.

x Primeira Dificuldade

A dedicação de Rafael ao assunto do bebê incomoda cada vez mais o marido, Lucas,
que cobra do companheiro por estar abandonando sua pesquisa de doutorado para
apenas pesquisar sobre síndrome de Down.

APROXIMAÇÃO DA CAVERNA SECRETA

x Ponto do Meio (Número musical – “Não Posso Nem Acreditar”)

Pesquisando a respeito da síndrome de Down na internet, Rafael se depara com


informações que jamais imaginara. Descobre estudos científicos, artigos e
profissionais médicos que revolucionam o cenário da síndrome de Down propondo um
novíssimo esquema de otimização da saúde, por vias metabólicas, realizado por
clínicas nos Estados Unidos. Essas descobertas vão construindo nele um desejo
desenfreado de ajudar o bebê de sua amiga Cris. Rafael se pergunta como ele poderia
fazer todo mundo saber que existe um tratamento. Ele vai se aprofundando cada vez
mais na informação e Lucas vai ficando cada dia mais incomodado com isso, pois
Rafael agora só pensa no bebê e em Cris.

PROVAÇÃO

x Segunda Dificuldade
107

Um novo ultrassom é feito: o exame revela que o bebê de Cris e Pedro têm uma
cardiopatia, fato ainda não revelado pelo casal a seus amigos.

x Terceiro Ponto da Trama - Third Plot Point

Rafael tenta contar a Cris e Pedro tudo o que descobriu, mas Cris resiste. Parte dela
tem dificuldade em compreender algo tão científico, então ela bloqueia tudo o que
Rafael quer lhe dizer. Rafael continua tentando fazer Cris entender que existe um novo
time de profissionais médicos oferecendo algo totalmente inovador. Quando Cris se
dá conta de tudo que precisaria ser feito, quando se dá conta da complexidade deste
tipo de tratamento, ela se nega a fazer, dizendo que seu filho receberá o que a maioria
das crianças com Down recebe, as terapias externas convencionais. Pedro mostra
curiosidade sobre tudo o que Rafael está explicando, mas Cris se recusa a escutar.
Rafael não pode acreditar que Cris esteja se recusando a compreender que existe
uma forma de otimizar a saúde do bebê e lhe diz que se isso parece demais para ela,
ele se propõe a cuidar do bebê.
Cris fica muito revoltada com a postura de Rafael, e diz que ele pensa que sabe muito
sobre síndrome de Down só porque descobriu sobre essa otimização da saúde. Ela e
Pedro então contam a Rafael que o bebê nascerá com uma cardiopatia, ainda que
leve. E que terá que passar por uma cirurgia ainda nos primeiros meses de vida.
Rafael fica muito chocado e oferece ao casal todo o seu apoio (Trio – “Coração”).
Rafael se sente muito perdido. A chegada do bebê reascendeu nele todo o desejo
contido de ser pai, e ao mesmo tempo ele se sente mal, pois agora tem muita
informação a respeito deste tratamento importante, mas não vislumbra a possibilidade
de ajudar ninguém, uma vez que Cris está se recusando a aceitar o tratamento.
Lucas, por sua vez, está cada vez mais irritado com a postura de Rafael, e diz que ele
tem que deixar Cris e Pedro com suas vidas. Rafael diz a Lucas que essa é a sua
forma de ajudar, já que não pôde ir mais longe adotando uma criança. Lucas fica
chocado por Rafael retomar esse assunto: há muito tempo já não discutiam isso, uma
vez que não ter filhos sempre foi a condição de Lucas para o casamento.
Pedro procura Rafael dizendo que, ao contrário de Cris, ele quer entender o que é
este tratamento que o amigo está estudando. Rafael dá a Pedro vários artigos e
pesquisas impressos por ele, para que Pedro estude por si e compreenda. Pedro
mergulha no estudo, sem contar à Cris, que ainda é contra.
Pedro estudou todo o material dado por Rafael, e quer conversar com Cris a respeito,
108

mas Cris explica que fazer um tratamento significaria que eles não aceitam o bebê e
que tratá-lo representaria preconceito. Pedro a convence do contrário, dizendo que a
inclusão é justamente fazer algo a respeito da diferença. Cris começa a se abrir para
escutar a respeito do tratamento (Dueto – “Te Amar”).
Rafael continua inconformado de ter tanta informação sobre algo que pode
verdadeiramente ajudar uma criança com Down, e não poder fazer nada. Ele procura
Sandra, a assistente social de seu antigo caso de adoção, para perguntar se seria
possível custear o tratamento para alguma criança com Down que esteja num abrigo.
Sandra diz que não, mas que, se ele realmente deseja isso, deveria adotar uma
criança nessas condições. Rafael diz que isso não é possível pois seu marido não
quer filhos.

RECOMPENSA

Cris e Pedro fazem o ultrassom de 24 semanas, que mostra que a saúde do bebê
parece estar bem, apesar da cardiopatia. O casal fica muito feliz de visualizar o bebê,
e Cris é tomada de grande alegria: entende que seu bebê é perfeito, de vê-lo com
cada dedinho, cada parte de seu corpo tão bem formada. Ela escolhe o nome da
criança - Arthur - e decide começar a montar o quartinho.

x Climax

Lucas decide pressionar Rafael para descobrir o que está acontecendo. Ele percebe
que Rafael esteve em contato com a Vara da Infância e o coloca na parede
perguntando o que aquilo significa. Rafael confessa que estava querendo custear um
tratamento para alguma criança de abrigo, mas toda a conversa faz Rafael confessar
seu desejo de adotar. Lucas o lembra que sua condição para o casamento era a
ausência de filhos e que Rafael optou por aceitar. Mas Rafael diz que escondeu de si
mesmo um desejo muito forte, e que agora isso está voltando com toda força. Lucas
pergunta o que ele quer afinal. Rafael responde dizendo que quer as duas coisas: ficar
com Lucas e adotar (Solo – “O Melhor Dos Dois Mundos”). Lucas diz que isso é
impossível, e sai de casa.

Terceiro Ato Literário – O RETORNO


109

O CAMINHO DE VOLTA / RESSURREIÇÃO

(Número musical – “Saber Abrir o Coração”)


Cris e Pedro estão animados, preparando tudo para a chegada de Arthur. Montando
o quarto, trazendo as roupinhas. Seu luto finalmente acabou e eles renascem na
esperança de amor por esse filho.
Rafael descobre uma clínica em São Paulo que está oferecendo o mesmo tratamento
de otimização da saúde para pessoas com Down que a clínica nos Estados Unidos
que havia encontrado na internet. Cris e Pedro decidem conhecer a clínica e aceitam
iniciar um tratamento pré-natal para o bebê.
Individualmente, Lucas e Rafael vão percebendo seu afastamento e tentam conversar.
Ambos sentem que a relação está difícil, mas nenhum dos dois quer ceder: Rafael
insiste em seu desejo de ser pai, Lucas insiste que não quer isso para si. No meio
dessa conversa, Pedro telefona e chama os amigos para virem à maternidade, pois o
bebê está nascendo. Lucas diz que não irá. Rafael sai de casa e vai para a
maternidade (Trio – “Algo Em Mim Sente o Que Vai Acontecer”).
Vinte e três dias se passam, com Rafael, Cris e Pedro no hospital, pois o bebê de
Cris está sendo estabilizado na UTI. Nesse período, quase que sempre sozinho no
apartamento, Lucas reflete sobre sua relação com Rafael. Começa a sentir que a
relação está se desfazendo e que ele está impedindo o companheiro de viver o sonho
da paternidade. Ele toma a decisão interna de não ser mais um impedimento.

O RETORNO COM O ELIXIR

23 dias depois, Cris, Pedro e Rafael voltam para casa com o bebê Arthur. Lucas vai
ao apartamento dos amigos para finalmente conhecer o bebê. Ele dá de cara com
Rafael segurando Arthur nos braços, e essa cena é muito forte para ele. Rafael está
exausto de ter passado vinte e três dias praticamente acordado, sentado no sofá do
hospital, esperando Arthur voltar para casa. Todos precisam descansar.
(Número musical Final – “Dorme”) Cris e Pedro estão felizes em casa com o bebê.
Lucas leva Rafael para casa. Rafael acaba adormecendo antes que tenham a
oportunidade de conversar. Lucas decide escrever uma carta, explicando a Rafael que
não quer ser motivo de impedimento para que Rafael possa viver seus sonhos. Ele
vai embora, deixando a carta ao lado do cartão de visitas de Sandra, a assistente
social da Vara de Infância, indicando que Rafael está agora livre para viver seu sonho
110

de ser pai.

3.3.1.3. Enredo

No caso de uma obra de teatro musical, o enredo é o próprio texto dramático com as
letras das canções.
O processo de escrita do texto e letras a partir da ideia-semente, desenvolveu-se
através das etapas do monomito. Uma vez pronta a primeira versão, deu-se início a
um processo de leituras dramáticas com atores profissionais, para revisões, cortes e
alterações. Estas leituras aconteceram com apoio do Grupo Téspis de Teatro, em
Campinas, que sediou noventa por cento das reuniões. Outras leituras ainda foram
realizadas na Escola das Artes de Jaguariúna e no Teatro Dona Zenaide, nessa
mesma cidade.
O processo de leituras dramáticas foi o acontecimento mais significativo de todo o
processo de criação. Dar voz às personagens foi fundamental para compreender os
excessos, para eliminar o desnecessário, para entender melhor o caminho das
personagens.
Cada leitura gerava várias horas de discussão entre autora e o grupo de atores. O
grupo teve espaço para se colocar, fazer comentários, propor experimentações,
opinar. Esse momento coletivo impulsionava o processo criativo a cada semana. Após
a leitura e discussão com o grupo de atores, a autora reescrevia o texto a partir dos
levantamentos feitos, levando o que foi reescrito para nova leitura dramática na
semana seguinte.
Além da participação fundamental do grupo de atores, houve a presença de
convidados que apenas faziam a escuta do texto para depois tecer comentários.
Os atores que participaram do processo de leituras dramáticas foram: João Paulo
Nascimento, André Checchia, Angela Azevedo, Dani Calicchio, Marina Franco, Gisele
Vecchin, Victor Paranhos, Richardson Clara, Guilherme Bassan, Victor Manzoli,
Yasmin Rosa, Andressa Estrela, Nelson Pelissari, Vinicius Planca, Priscila Murias. O
compositor Danilo Demori chegou a ler algumas vezes alguns papéis, assim como a
própria autora. Os atores se revezavam nos papéis, para uma escuta diferente de
cada personagem.
Os convidados que participaram do processo foram: Juliana Hilal, Renata Spis,
Robson Lóddo, Diogo Camargo, Caroline Estrela.
Uma outra parte importante do processo criativo foram as leituras feitas apenas pela
111

autora e o dramaturgo Daniel Salve. Foram realizados alguns encontros, para


discussão a respeito da dramaturgia, especialmente no que diz respeito à condução
dos arcos de personagem. Desses encontros resultaram mudanças igualmente
importantes.
O processo de leitura foi fundamental também para a determinação do song spotting.
Ao início do processo havia uma ideia básica de quais lugares do texto seriam
transformados em música, mas apenas com as leituras foi possível confirmar quais
eram os momentos em que a emoção da ação dramática estava mais elevada,
podendo ali caber uma canção.
Ao todo, foram realizados doze encontros de leitura, até a finalização do texto e letras
das canções. O grupo e a autora compreenderam que o texto estava pronto quando,
após a leitura daquele dia, foi percebida a desnecessidade de mexer em qualquer
aspecto do texto. O grupo como um todo teve a sensação de que o texto estava
finalizado, para essa primeira etapa. É claro para todos, porém, que várias coisas
ainda mudarão durante o período dos try-outs, que ainda está por vir.
Apresenta-se a seguir esse produto literário, que só foi musicado após ter chegado a
este formato.
112

47 – O Musical
Um Pocket-Musical em Um Ato
De Ana Taglianetti e Danilo Demori

Personagens
Rafael – Um escritor
Lucas – Seu companheiro, advogado
Cris – Vizinha e melhor amiga de Rafael
Pedro – Seu marido
Sandra – A assistente social
Médica
Médico 1
Médico 2

Números Musicais:
1- Número de abertura - Livre Pro Amor
2- Canção de Transição - Pra Não Pensar Em Mim
3- Solo – Uma Criança A Brincar
4- Solo – Pro Que Der e Vier
5- Dueto – Vem Me Ensinar
6- Recitativo e solo – Isso Não!
7- Número musical – Não Posso Nem Acreditar
8- Trio – Coração
9- Dueto – Te Amar
10- Solo – O Melhor Dos Dois Mundos
11- Número musical – Saber Abrir o Coração
12- O Melhor Dos Dois Mundos-Reprise
13- Trio – Algo Em Mim
14- Finale – Dorme

É verão em São Paulo. A luz se abre, revelando os apartamentos de Rafael e Cris.


Apartamentos vizinhos. Rafael vive com seu marido, Lucas, e Cris vive com seu
marido, Pedro. Os apartamentos revelam os estilos de vida de cada casal: os
descolados Rafael e Lucas, e os mais conservadores, Cris e Pedro. Ambos casais
têm a mesma faixa etária, quarenta, quarenta e poucos anos. Rafael e Cris são amigos
113

de infância, e vivem desde crianças neste prédio. Primeiro com seus pais, nos
mesmos apartamentos vizinhos, e agora com seus companheiros. As cenas se
desdobram mostrando a força dos personagens, que nunca demonstram auto
piedade.

CENA 1 – semana 5

# 1 - LIVRE PRO AMOR


(Toca o despertador. Luz se abre no apartamento de Cris e Pedro, que se levantam
da cama, ansiosos, mas ainda sonolentos. Cris espreguiça. Pedro a abraça).

CRIS
Não me aperta tão forte, o primeiro xixi da manhã tem que sair no potinho!
(Dão risada).
PEDRO
Corre lá!

CRIS
Ai, que medo!

PEDRO
Vai!

(Os dois se abraçam de novo. Cris pega o kit teste de gravidez que está em cima do
criado mudo. Cris vai para o banheiro e fecha a porta).

PEDRO
Precisava fechar a porta? (silêncio) Cris?!?

CRIS
(De dentro do banheiro) Me deixaaaaa.....

PEDRO
Fala alguma coisa!
114

CRIS
Espera aí... ainda não tá pronto... (Um pequeno suspense. De repente, abrindo a porta
do banheiro com o exame na mão) Deu positivo!!!!

PEDRO
Deixa eu ver!!! (Ele pega o exame das mãos de Cris) Você tá grávida!

(Cris e Pedro se abraçam numa exultante celebração)


CRIS
Demorou...

PEDRO
Agora somos três!!!

CRIS E PEDRO
EU ESPEREI POR TANTO TEMPO
E AGORA VAI ACONTECER
A ESPERANÇA QUE DESPERTA
FAZENDO TUDO RENASCER
E NO AMOR DESSA CRIANÇA
A PERFEIÇÃO VOU CONHECER
UM NOVO SONHO SE INICIA
FAZENDO TUDO RENASCER
HOJE COMEÇA A GRANDE AVENTURA
E NASCE O SOL E ABRE A FLOR
HOJE CONHEÇO A MAIOR TERNURA
E UM CORAÇÃO LIVRE PRO AMOR

(Se abraçam. A luz vai devagar caindo em resistência no apartamento de Pedro e Cris,
mas ainda vemos o casal celebrando, e se movimentando para o início de mais um
dia, se vestindo, etc .Luz acende no apartamento de Lucas e Rafael, que está
passando um café na cozinha americana, Lucas termina de se arrumar em frente ao
espelho)
115

LUCAS
É hoje aquela audiência que te falei...

RAFAEL
(Servindo o café numa xícara) Se tem alguém bom de resolver problemas, esse
alguém é você!
LUCAS
Amor, tô com pressa... e você... bom, sei que você precisa escrever.

RAFAEL
Calma, Lucas, olha que horas são, respira. Eu tenho todo tempo do mundo pra
escrever...
LUCAS
Você tem razão... É a audiência mais importante da minha vida... Tô ansioso! (Toma
um gole do café)
LUCAS
A VIDA NOVA VAI CHEGAR
PRA UMA CRIANÇA SEM AMOR
E JÁ NÃO VAI HAVER ABUSO
E JÁ NÃO VAI HAVER MAIS DOR
NÃO VAI TER MARCAS EM SEU CORPO
AGORA NÃO VAI MAIS DOER
ESSA CRIANÇA VAI SER LIVRE
E VAI VER TUDO RENASCER
HOJE COMEÇA A GRANDE AVENTURA
E NASCE O SOL E ABRE A FLOR
HOJE ELA VAI CONHECER A TERNURA
E VAI VIVER LIVRE PRO AMOR

RAFAEL
Me orgulho tanto de você...

LUCAS
E eu de você, na reta final do seu doutorado, um grande poeta, realizando uma
pesquisa tão bonita.
116

RAFAEL
Meu trabalho não é grande coisa... você, sim, que é o super-herói, que salva crianças
do abuso...
LUCAS
A arte, a poesia, também salvam o mundo, Rafa, todos os dias...

RAFAEL
MAS O FUTURO É UMA CRIANÇA
QUE SEJA LIVRE PRA CRESCER

LUCAS
VOCÊ É LIVRE NA SUA ARTE
E ISSO É O QUE TE FAZ VIVER
E EU ME ORGULHO DESSE HOMEM
QUE MUDA O MUNDO A ESCREVER

RAFAEL
A VIDA TEM TANTAS HISTÓRIAS
MAS A MINHA É COM VOCÊ

(A luz se abre nos dois apartamentos)

CRIS, PEDRO, LUCAS


EU ESPEREI POR TANTO TEMPO
E AGORA VAI ACONTECER
A ESPERANÇA NA HORA CERTA
FAZENDO TUDO RENASCER

RAFAEL
UMA CRIANÇA VAI SER LIVRE
MAIS UMA HISTÓRIA PRA ESCREVER

CRIS, PEDRO, LUCAS E RAFAEL


AGORA UM SONHO RECOMEÇA
117

E FAZ A VIDA RENASCER


HOJE COMEÇA A GRANDE AVENTURA
E NASCE O SOL E ABRE A FLOR
TODA A DOR DO PASSADO TEM CURA
PARA VIVER LIVRE PRO AMOR!!!

(Lucas beija Rafael e sai de casa, pegando o paletó. Cris e Pedro terminam de se
arrumar para ir ao apartamento de Rafael e Lucas).

CENA 2
# 2 – PRA NÃO PENSAR EM MIM

(Rafael sozinho em casa, abre o computador, tomando seu café).

RAFAEL
A VIDA TEM TANTAS HISTÓRIAS...
TANTA INSPIRAÇÃO, NÃO TEM FIM
DOS OUTROS ESCREVO A MEMÓRIA...
PRA NÃO PENSAR EM MIM...

(Cris e Pedro vão ao apartamento de Rafael e Lucas. Batem na porta e já vão


entrando).
CRIS
Rafa?
RAFAEL
(Saindo do computador para receber Pedro e Cris) Oi, gente, entra!

PEDRO
Tá mergulhado na tua pesquisa, né... a gente tá atrapalhando?

RAFAEL
Gente, vocês são família!

CRIS
Desculpa, Rafa... mas não dava pra esperar... você tinha que ser o primeiro a saber!
118

RAFAEL
(Desconfiando) O quê?

PEDRO
Adivinha!

RAFAEL
Um bebê?

CRIS
Um bebê!

RAFAEL
Que maravilha gente! Parabéns! Finalmente!!!

PEDRO
Acabamos de fazer o teste!

CRIS
E fazemos questão que você seja o padrinho!

RAFAEL
Ai, eu não acredito...

CRIS
Rafa... não podia ser outra pessoa... você é como meu irmão... o que sempre esteve
aqui pra mim... crescemos juntos, tinha que ser você...

PEDRO
Vamos convidar minha irmã ser a madrinha, Rafa... mas a gente queria primeiro saber
se você aceita!

RAFAEL
Mas claro!!!! Vocês sabem o quanto eu sempre quis estar próximo de verdade de uma
criança... não pude ser pai... mas agora... isso é muito, muito especial mesmo pra
119

mim, muito obrigado de coração...

CRIS
Você vai ser o melhor padrinho do mundo!

RAFAEL
Vou fazer o melhor que puder por esse bebê. Eu prometo: vou fazer valer toda a
espera de vocês!

CRIS
Tudo acontece na hora certa!

RAFAEL
Isso merece uma comemoração! O Lucas tem uma audiência muito importante agora
de manhã, ele vai tirar mais uma criança de uma situação de abuso... vai dar certo, e
aí hoje de noite podemos todos sair pra comemorar! Uma comemoração dupla!

CRIS
Perfeito! Então...então vamos todo mundo trabalhar, né?

RAFAEL
De noite a gente se vê!

(Todos se despedem, se abraçam. Cris e Pedro saem para o trabalho. Rafael


permanece em seu apartamento)

CENA 3

# 3 – UMA CRIANÇA A BRINCAR

RAFAEL
A Cris sempre dizia que a gente ia ser padrinhos dos filhos um do outro! (Ri de si
mesmo) Pelo visto eu não vou cumprir com a minha parte no trato, mas ela... vai
120

realizar o grande sonho...

RAFAEL
EU TIVE UM SONHO QUE JÁ PASSOU
DE UMA CRIANÇA A BRINCAR
FAZENDO A VIDA BROTAR DE AMOR
JUNTOS A GARGALHAR
VEIO A SURPRESA DE UM OUTRO AMOR
EU ME DEIXEI LEVAR...
E ESQUECI DESSE SONHO BOM
POR ME APAIXONAR...

EIS QUE A VIDA ME COBRA


ME CHAMA DE VOLTA
ME TRAZ UM BEBÊ
A CHANCE DE SER PADRINHO
UM NOVO CAMINHO
VAI ACONTECER...

A vida passa tão rápido... naquela época, passava o dia me imaginando com um filho,
brincando, jogando bola. Cada dia de ansiedade esperando por uma notícia da Vara
da Infância. Cinco anos na fila pra adotar um menino... Cinco anos! E aí o Lucas
chegou como uma avalanche, só ele importava... mas agora, o bebê da Cris...

A NOVA VIDA QUE VAI CHEGAR


QUE JÁ ME CONQUISTOU
VEM MEU AMOR, VEM PRA ME MUDAR
ISSO SÓ COMEÇOU
DESSA VEZ NÃO TEM VOLTA
E NADA NO MUNDO PODE ME DETER
VOU TE TRAZER BEM PRA PERTO
E VOU ME ENTREGAR...ME ENTREGAR PRA VOCÊ!

(Black-out)
121

CENA 4 – semana 12

# 4 – PRO QUE DER E VIER


(Foco de luz se acende no proscênio lateral, em Cris, que está a caminho do seu
primeiro ultrassom. Enquanto a cena se inicia neste foco lateral, os objetos de cenário
que compõem a sala de exame de ultrassom são levados para o centro do proscênio,
no escuro)
CRIS
É hoje, nenê! Vou te ver pela primeira vez... Já tem 12 semanas que você está aí
dentro, eu aqui nessa ansiedade... O papai só vai poder te ver no próximo exame...
ele precisou muito viajar a trabalho...Ah esse papai... sempre afundado no trabalho...
Eu aqui com você... tá me dando um frio na barriga...

HOJE É O DIA
EM QUE A GENTE VAI SE CONHECER
É SÓ ALEGRIA
ESSA MINHA VONTADE DE TE VER
PELA TUA VIDA, EU PROMETO
QUE EU VOU FAZER O QUE PUDER
NÓS ESTAMOS JUNTOS
E AGORA É PARA SEMPRE
DE MÃOS DADAS
PRO QUE DER E VIER
VEM, MEU AMADO, VEM
ME LEVAR ALÉM
MUITO ALÉM DE UM SONHO QUE É SÓ NOSSO
DE MAIS NINGUÉM

HOJE SINTO A VIDA


DA AVENTURA QUE VAI COMEÇAR
ISSO NÃO SE EXPLICA
QUE TODO MEU AMOR QUERO TE DAR
PELA TUA VIDA EU PROMETO
QUE EU VOU FAZER O QUE PUDER
NÓS ESTAMOS JUNTOS
122

E AGORA É PARA SEMPRE


DE MÃOS DADAS PRO QUE DER E VIER
VEM, MEU AMADO, VEM
ME LEVAR ALÉM
MUITO ALÉM DE UM SONHO QUE É SÓ NOSSO
DE MAIS NINGUÉM

(Cris adentra o espaço cênico do exame de ultrassom, no centro do palco. Quando a


luz se abre ela já está deitada na maca e o exame está começando, a médica já está
manipulando o aparelho de ultrassom. Uma enorme tela baixa do urdimento, e nela o
feto é visualizado. Medidas do feto vão sendo tiradas, ouve-se as batidas do pequeno
coração. As batidas do coração do bebê se alternam com as frases de Cris).

CRIS
MEU PEQUENO AMOR
É LINDO VER VOCÊ MEXER AS MÃOS
E OS SEUS PÉZINHOS
OUVIR BATENDO O TEU CORAÇÃO

(Batidas do coração do feto)

ISSO É TÃO PROFUNDO QUE DÁ MEDO


MEDO QUE EU NÃO SEI DE ONDE VEM

(Batidas do coração do feto)


E EU ME PERGUNTO SE HÁ UM SEGREDO NESSA HISTÓRIA
O DOM DA VIDA É UM GRANDE MISTÉRIO
BEM.... ESTÁ TUDO BEM...
NÃO HÁ O QUE TEMER
É ESSE SILÊNCIO QUE AMEDRONTA
MAS TÁ TUDO BEM

(Batidas do coração do feto)

PELA TUA VIDA EU PROMETO


123

QUE EU VOU FAZER O QUE PUDER


NÓS ESTAMOS JUNTOS
E AGORA É PARA SEMPRE...

(Por um momento, Cris e Médica em silêncio, mas se ouvem as batidas do coração


do bebê)
CRIS
Já dá pra ver se é menino ou menina, doutora?

MÉDICA
Só um momento...

CRIS
Mas dá pra ver?

MÉDICA
Dona Cristina, um momento por favor, o sexo agora é o de menos.

(Silêncio entre a médica e Cris. Ouvimos apenas as batidas do coração do feto.


Conforme a médica desliga a máquina de ultrassom, a imagem do feto fica
congelada na tela).
(underscore para)

CRIS
(Quebrando o silêncio entre elas) Menino ou menina?

(Mais um instante de silêncio, e então a médica fala, ignorando a curiosidade de Cris)

(Deixa para seguir)


MÉDICA
Muito bem, Dona Cristina. Vamos sentar e conversar um pouco (Ajuda Cris a sentar-
se na maca). Veio alguém hoje aqui com a senhora? O pai do bebê?

CRIS
Ele não pôde vir, o trabalho...
124

MÉDICA
Bem. Eu gostaria muito que ele estivesse presente, é uma pena eu ter que conversar
com a senhora assim, sozinha.

CRIS
O que está havendo?

MÉDICA
Creio que a senhora sabe que, pela sua idade, 40 anos.... Bem, quando você entrou
nessa sala já sabia que era uma paciente de risco, certo? Eu... acredito que existe
uma possibilidade de sua criança ser uma criança... diferente.

CRIS
Diferente do quê, doutora?

MÉDICA
Temos aqui no exame de ultrassom alguns marcadores um pouco alterados, Dona
Cristina.

CRIS
Alterados?

MÉDICA
O exame apresenta algumas alterações que sugerem que o bebê possa ter alguma
condição genética. O ossinho nasal está ausente, e a medida da nuca está acima do
normal.

(Underscore interrompe)
(Silêncio absoluto. Depois de um tempo, são novamente ouvidas as batidas do
coração. Cris leva a mão no peito, como se sentisse um aperto no coração)

CRIS
O que você está querendo dizer?
125

(Deixa para seguir)

MÉDICA
Não posso afirmar nada, Dona Cristina. Para dar uma resposta concreta preciso fazer
outros exames. Eu infelizmente preciso ser direta com a senhora. Existem indicadores
que apontam a possibilidade do seu bebê ter uma condição genética conhecida como
síndrome de Down. A senhora sabe o que é síndrome de Down, Dona Cristina?

CRIS
(Sem saber o que pensar) Sim... quer dizer... não... eu...

MÉDICA
E na sua idade... bem. A senhora já sabia dos riscos... Eu vou deixar a senhora um
pouco sozinha para pensar no que deseja fazer, Dona Cristina. A senhora quer que
eu chame alguém?

CRIS
Não.

MÉDICA
(Dá um tapinha no ombro de Cris) Fique aqui um pouco. Vou dar um tempinho para
que a senhora possa respirar. Voltamos a conversar para falar dos próximos exames.
E então a senhora decide o que fazer. Eu sinto muito (Sai).

CRIS
(Tentando ainda a atenção da médica, enquanto ele sai da sala) Menino ou meni....
(Ela desiste. Cris está sozinha na sala do exame, aquela grande imagem do bebê
congelada na tela. Silêncio. Cris olha a imagem e toca sua própria barriga. A frase
começa calma e vai ficando mais revoltada). Não é nem menino nem menina, é só
diferente...uma criança diferente... Como assim? (Imitando a médica) “Eu sinto
muito”? Quem sente sou eu (Chora)! Meu Deus o que é que está acontecendo! Por
que o diferente tem que ser comigo?!? Eu não quero nada diferente! (Ela se acalma e
respira. Olha novamente para a imagem do bebê congelada na tela).Quem é você
afinal, bebê?
126

NÃO É POSSÍVEL...
ONDE FOI O QUE EU SONHEI?
O QUE DESEJAMOS
E TUDO AQUILO EM QUE ACREDITEI?
QUERO ENTENDER A TUA ESCOLHA
E NÃO SEI O QUE É QUE VOCÊ QUER
O QUE É QUE ESTÁ ACONTECENDO...
NÃO, COMIGO NÃO
O MEU CORAÇÃO
NÃO VAI AGUENTAR ESSA TRISTEZA
COMIGO NÃO...

(Pega o telefone e liga para Rafael) Alô, Rafa? Preciso te ver agora. Eu não tô nada
bem. Eu não sei como vou dizer isto pro Pedro, Rafa. Eles acham que o bebê tem
síndrome de Down. Vem me buscar? Eu... eu não consigo sair do lugar... isso, aqui
mesmo... vem por favor...

NÃO TE CONHEÇO
E NÃO SEI O QUE É QUE VOCÊ QUER
ME FAZ ENTENDER
PARA EU FAZER O QUE PUDER
QUERO CONSEGUIR ENCONTRAR FORÇAS
PRA TE DAR O QUE EU TE PROMETI
AFINAL, ESTAMOS JUNTOS
E AGORA É PARA SEMPRE...

(Rafael aparece na lateral do palco. Os amigos se veem. Cris corre ao encontro de


Rafael, os dois se abraçam. Cris chora desconsoladamente. Rafael vai procurando
acalmá-la).

RAFAEL
Crisoca... Shhhh... eu tô aqui, eu tô aqui... vai ficar tudo bem...

CRIS
A médica disse que tem que fazer outro exame pra confirmar... mas ela realmente
127

acha que... (Chora).

RAFAEL
Calma, Cris. O que quer que aconteça estamos todos com você. Vai ficar tudo bem.

CRIS
Como vou dizer isso pro Pedro, Rafa? Esse filho... o grande sonho da vida dele...
todas as expectativas...a gente demorou tanto tempo pra conseguir... de que jeito vou
contar isso pro Pedro?

RAFAEL
Vamos falar com o Pedro juntos...vamos fazer ele entender...

CRIS
Obrigada por ser mais que meu melhor amigo, ser meu irmão... Não sou nada sem
você, Rafa... me ajuda...

RAFAEL

PELA TUA VIDA, EU PROMETO:


QUE VOU FAZER O QUE PUDER
NÓS ESTAMOS JUNTOS
ONTEM, HOJE E PRA SEMPRE
DE MÃOS DADAS
PRO QUE DER E VIER...

(Black-out)
m
CENA 5 – semana 15

(No apartamento de Cris e Pedro, os quatro amigos estão reunidos. O clima é tenso.
Cris realizou o segundo exame e ficou confirmado que o bebê tem síndrome de Down.
Cris tem o resultado do exame em sua mão. Pedro não recebeu bem a notícia. Está
andando de um lado para o outro. Cris, sentada, já nem chora mais, de tanto que já
chorou. Rafa, preocupado, tenta acalmá-lo. Lucas está meio afastado, observando
128

tudo em silêncio. Já se percebe que ele tem algo em mente. A cena tem uma energia
de nervos à flor da pele, e não de tristeza).

PEDRO
(Esbravejando) Não é possível. Esse bebê é o meu filho, não tem como ter alguma
coisa errada com ele! (Para Cris) Vamos fazer outro exame e vai dar tudo normal,
você vai ver, amor.

CRIS
(Com o resultado do exame de punção, o segundo exame proposto pelo médico, em
mãos) Pedro por favor. Você não está querendo aceitar... Esse exame aqui...ele...ele
é... (Ela acena com o resultado do segundo exame que ela tem em mãos).

PEDRO
(Interrompendo Cris, ele tira o exame das mãos dela) Isso deve estar errado!

RAFAEL
Pedro, por favor... se acalma, amigo (Pega o exame das mãos de Pedro).

RAFAEL
Esse segundo exame não tem erro. Você tem que aceitar o que diz aqui. Este bebê
tem mesmo síndrome de Down.

PEDRO
(Muito nervoso, ofegante, anda pela sala de um lado para o outro em silêncio por um
breve tempo. Está tentando pensar. Ajoelha-se perto de Cris e segura suas
mãos).Cris. Esse não é o nosso sonho. O que a gente planejou foi outra coisa.

CRIS
O que é que a gente pode fazer, Pedro? A vida é assim, não tem ensaio, não. Um
avião cai, se ganha na loteria... não se planejam certas coisas... elas simplesmente
acontecem.

PEDRO
Eu não sei se consigo lidar com isso, Cris.
129

CRIS
Do que você tá falando? Você não estava lá! Fui eu quem escutou o coração desse
bebê batendo! Tem um ser humano aqui, gente!

RAFAEL
Calma, Cris...

LUCAS

(Interrompendo a todos) Amigos. Por favor, eu vou pedir a atenção de vocês por uns
minutinhos. Vocês são como família pra mim. (Abraçando Rafael) São a nossa família.
Rafael e Cris são como irmãos, cresceram juntos neste prédio, se conhecem desde
crianças. Está todo mundo abalado, esta é uma notícia difícil.. Vamos tentar usar o
bom-senso aqui por um momento. (Faz Rafael e Pedro sentarem) A verdade é que é
muito bonito falar em vida, que esta é uma vida, e tudo mais. Mas falar assim é
perigoso, a gente deixa de levar em consideração uma série de coisas. (Para Pedro e
Cris) Vocês dois ainda são jovens. Ter 40 anos é nada, todos nós temos 40, 40 e
poucos aqui, e a vida inteira pela frente. Vocês têm alguma ideia do que significa
cuidar de uma pessoa com necessidades especiais? Vejo casos assim todo dia no
fórum. Sei o que as famílias passam. Um de vocês dois vai ter que desistir da carreira
e ficar por conta. Vocês sabiam disso? Sabiam que pro resto da vida de vocês vão ter
que correr atrás dessa criança?

RAFAEL
(Incrédulo) Lucas, por favor!

LUCAS
Eu sei que pareço duro, mas eu tenho que falar. Famílias se desintegram por causa
dessas coisas. Nenhum de vocês sabe o que é isso tudo. Nenhum de vocês entende
o bullying que essa criança vai sofrer. Se pararem pra pensar no que vai ser a vida
dessa criança, vão concordar comigo. O quanto essa criança pode enfrentar de abuso,
verbal, físico, moral... Algum de vocês aqui entende de abuso infantil?
130

RAFAEL
(Após um breve silêncio) Lucas, eu sei que você...

LUCAS
(Cortando Rafael) Gente, vocês têm a vida pela frente! Antes de tomarem qualquer
decisão, vocês precisam saber o que é esse novo mundo onde vocês estão prestes a
entrar. Vocês têm que ir ver de perto, e não é nada bonito. Qual de vocês dois está
disposto a abdicar de tudo?

RAFAEL
Lucas, você é o exemplo de alguém que superou completamente as adversidades da
sua vida, como você pode colocar as coisas nesses termos?

LUCAS
Eu não tive escolha. Fiz o que tinha que fazer.

RAFAEL
Os momentos difíceis unem as pessoas, veja você e sua mãe, como eram fortes
juntos! E se esse bebezinho for o nosso passaporte pra coisas que nem imaginamos?
Descobertas, enfim! Já pensaram sobre isso? Que de repente vamos todos descobrir
coisas que vão nos tornar mais unidos, mais fortes ainda juntos?

LUCAS
Eu não vejo as coisas assim. E sinceramente, por mais difícil que seja dizer isso,
consideraria interromper essa gravidez enquanto é tempo.

RAFAEL
Lucas!

LUCAS
Gente, vai ser difícil demais pra ele, pro bebê! Vocês querem mesmo que essa criança
sofra? Cris, pensa um pouco. É o melhor que você tem a fazer (No silêncio, dá um
tapinha no ombro de Cris) Vamos, Rafa. Vamos deixar eles um pouco sozinhos pra
pensar no que querem fazer. Depois a gente continua essa conversa. (A cena de Cris
com a médica está se repetindo, e ela percebe). Eu sinto muito...
131

(Cris respira fundo fechando os olhos, controlando a raiva, e falando junto com Lucas
o “eu sinto muito”, como quem recorda a cena com o médico. Ela quase ri, de
desprezo, mas fecha os olhos e se controla).

RAFAEL
(Abraçando Cris) Crisoca... eu tô aqui. Sempre vou estar.

LUCAS
(Incomodado) Vamos, amor.

(Lucas e Rafael saem em direção ao seu apartamento, deixando Cris e Pedro


sozinhos. Rafael vai sem querer ir).

CENA 6

(Pedro e Cris sozinhos)

PEDRO
Acho que o Lucas pode ter razão...

CRIS
Pedro... ele fala na posição de quem teve uma infância difícil...

PEDRO
Pois então, Cris! Temos o exemplo aqui do nosso lado! Você quer uma criança que
passe por isso? Pelo que o Lucas passou? E o Lucas é inteligente pra caramba... mas
uma criança com Down.. como vai ser? .Ai, Cris... eu não sei de mais nada. Não sei o
que pensar, eu tô muito, muito perdido (Caem no silêncio).

CRIS
Meu Deus! (Repentinamente vendo tudo por outro prisma) E se eu abortasse, Pedro?

PEDRO
A gente poderia tentar de novo, fazer inseminação artificial... aí eu topo, Cris..
132

CRIS
Será que vale a pena colocar no mundo alguém que vai sofrer tanto preconceito?
Alguém que as pessoas acham que nem deveria existir?

PEDRO
Que difícil, que difícil...

CRIS
(Pensando) Mas... sabe lá o que é fazer um aborto? Você lembra da Vanessa? Eu fui
com ela. Eu lembro de ter ouvido o barulhinho do...

PEDRO
(Cortando Cris) Não me conta. Não tenho coragem. Essa não é uma boa razão para
alguém não ter a chance de viver.

# 5 – VEM ME ENSINAR - DUETO

CRIS
Não é uma boa razão... (Os dois se abraçam).O Lucas diz que sabe dessas coisas,
mas como poderia saber? Ele sabe só do que vê no fórum... Nenhum de nós sabe
nada...Cada um só pensando em si, no que quer... (Tocando a própria barriga, fala
com o bebê) E você? O que é que você quer?

VEM ME DIZER, ME CONTAR


QUEM É VOCÊ, ME FAZ ACREDITAR
NO QUE EU NÃO SEI E PRECISO SABER
PRA PODER ENTENDER

PEDRO
VEM ME MOSTRAR MEU LUGAR
ME DIZ SE É PRA RIR OU SE É PRA CHORAR
O QUE VOCÊ QUER DE MIM
E PORQUE DECIDIU VIR ASSIM?
133

CRIS E PEDRO
VEM FALAR COMIGO, BEBÊ
EU NÃO CONSIGO ENTENDER
VEM REVELAR TEU DESEJO
VOCÊ QUE VIR? QUER VIVER?
É A TUA VONTADE, BEBÊ?
VENHA E ME DIGA PORQUE
SE ESSE É TEU PLANO, ME CONTA SE
VOCÊ QUER VIR? QUER VIVER?

(Underscore segue)
(Cris põe a mão na barriga e sente o bebê. Como se sentisse a resposta dele, sente
ele se mexer. É tomada de uma imensa alegria. Ela entende o que o bebê demonstra.
Coloca a mão de Pedro na sua barriga, eles sentem o bebê mexer. Ela passa a rir, ela
pode senti-lo! Eles sentem que ele quer viver)

CRIS E PEDRO
EU TE SINTO COMIGO BEBÊ!
UMA SEMENTE DE FLOR
EU VOU LUTAR, SEI QUE VOU CONSEGUIR SUPERAR
TRANSCENDER ESSA DOR
EU TE RECEBO MEU FILHO!
E QUERO TE ABRAÇAR
SE É TEU DESEJO EU RESPEITO
E ME ENTREGO PRA SEMPRE
VEM ME ENSINAR
VEM ME MOSTRAR!

(Black-out)

CENA 7 – semana 19

(No apartamento de Rafael).


134

CRIS

(Entrando sem bater) Rafa?

RAFAEL
Entra Cris! (A abraça). Como você está hoje, Crisoca?

CRIS
Um dia de cada vez, Rafa...

RAFAEL
E o Pedro?

CRIS
Eu achei que fosse ser mais difícil pra ele do que pra mim... mas acho que me enganei.
Ai, Rafa... acho que eu preciso de ajuda... Minha cabeça não tá boa... eu achei que a
tristeza fosse passar mas não tá passando...

RAFAEL
Irmãzinha... tô aqui...

CRIS
Desculpa eu vir aqui te atrapalhar, Rafa... eu sei que você tá ocupado com o
doutorado...mas eu tô me sentindo sem forças pra fazer as coisas que preciso fazer...
várias vezes eu já tentei sentar na frente do computador, estudar alguma coisa, pra...
enfim... pra entender o que é síndrome de Down. Mas toda vez que eu tento, começo
a chorar.

RAFAEL
Você quer que eu te ajude? Se a gente estudar juntos... eu posso ajudar você.

CRIS

(Abraçando Rafael) O que seria de mim sem você, Rafa...


135

RAFAEL
Vou selecionar informações pra você, tá bom? E te mostro a coisa mais mastigada!

CRIS
Não vai atrapalhar o teu doutorado?

RAFAEL
Você é a pessoa mais importante da minha vida, Cris. O Lucas é o meu amor, mas
você é a minha família. A que me conhece faz mais tempo. Foi a primeira pessoa que
soube que eu sou gay. A que me apoiou com todas as forças. A que esteve lá comigo
quando eu contei pros meus pais. Você que me apoiou quando eu inventei que queria
ser pai solteiro e adotar... todo mundo achando que eu era maluco! Mas você ficou do
meu lado.

CRIS
Você queria tanto uma família, e nunca namorava, nunca encontrava ninguém, e eu
não gostava de te ver sozinho...

RAFAEL
A vida dá umas voltas engraçadas, né? Demorou cinco anos pra sair a licença de
adoção e aí apareceu o Lucas... e tudo mudou tanto que de repente não teve mais
espaço pra esse filho. Sei lá.

CRIS
Sempre achei que foi uma escolha difícil que você fez... desistir de ser pai pra ficar
com o Lucas.
RAFAEL
Não vamos pensar nisso, o que importa agora é que vou ser padrinho, desse
supebebê que está chegando!

CRIS
Ah, Rafa... tô com um pouco de medo do superbebê...Tô com medo do que pode
acontecer com ele nessa vida... por ser diferente.
136

RAFAEL
O problema não é o bebê... é o mundo, que não consegue lidar com o que é diferente...
pensa comigo, se o Lucas tivesse concordado com a adoção, nosso filho teria dois
pais. Não adianta a gente querer dourar a pílula: isso é diferente, sim. A gente é que
tem que ser forte pra ensinar essa criança a ter compaixão do olhar do outro...
compaixão pela ignorância do outro... esse é nosso papel.

CRIS
A diferença é que eu tenho apenas seis meses pra me preparar... você já desistiu de
adotar, não precisa lidar com isso.

RAFAEL
Bem, não é que eu desisti. Eu me apaixonei pelo Lucas. Mas ele não quer, não adianta
tentar conversar, então... Mas isso já nem importa, só o bebê importa agora, ok?

CRIS
(Eles se abraçam) Obrigada Rafa! Vou aceitar a tua ajuda... (Cris sai, Rafael se vê
sozinho e reflete).

RAFAEL

# 6 – ISSO NÃO!

A CRIS PODIA DESISTIR DO BEBÊ


MESMO COM MEDO QUIS SE COMPROMETER
MEU MEDO FOI MAIOR E UM SONHO ENTREGUEI
EU DESISTI PORQUE ME APAIXONEI...

A vida é engraçada. Um sonho vira outro sonho, um sonho engole outro sonho, e a
gente nem percebe, vai levando... o tempo passa... (Tentando ser objetivo)
Bom... eu prometi ajudar a Cris a entender tudo isso. Nossa, eu não sei nem por onde
começar... (Ele começa a abrir várias abas para selecionar algumas coisas para Cris
ler. Ele vai lendo alto o que vai abrindo. Aquilo que Rafael vai selecionando, vai sendo
projetado nas inúmeras telas espalhadas pelo palco. Vai lendo meio por alto, seleciona
e imprime algumas coisas) Quando é que eu imaginei que fosse ler alguma coisa
137

sobre síndrome de Down?

EU SÓ PRECISO CONSEGUIR AJUDAR...


FAZER AGORA O QUE ANTES EU NÃO FIZ
EU TENHO QUE ESTENDER A MÃO PARA A CRIS
SOBRE ESSE ASSUNTO EU TENHO QUE PESQUISAR

EU NÃO PUDE FAZER POR MIM MESMO


ENCOBRI E DEIXEI PRA DEPOIS
HÁ UM AMOR BEM DENTRO DO MEU PEITO
QUE NÃO É O DA VIDA A DOIS

UMA CRIANÇA VEM PRA ME RESGATAR


É COMO O FILHO QUE EU NÃO PUDE TER
POR ELE JURO QUE VOU TUDO FAZER
QUERO ENCONTRAR TUDO QUE POSSA AJUDAR

(Underscore segue)

(Conforme Rafael vai buscando informação, vai mergulhando cada vez mais, sendo
quase que dominado pela sua própria curiosidade. A luz dá a entender que vão se
passando dias e noites, e que há dias que ele não sai da frente do computador. O
underscore está associado a um som de tique-taque de relógio. Nas várias telas
distribuídas pelo palco, vão sendo projetadas as coisas que Rafael pesquisa. É um
movimento frenético, de quem está buscando algo desesperadamente. Conforme ele
abre, lê algo para si mesmo, comenta algo consigo mesmo, ininteligivelmente. É um
diálogo dele apenas com ele mesmo. Ele vai meio que sempre encontrando coisas
semelhantes e nada animadoras. E vai ficando irritado. Mas vai imprimindo algumas
coisas que encontra. Coloca as impressões num envelope, a luz continua mostrando
dias e noites se passando. Rafael sai de casa, passa o envelope por debaixo da porta
de Cris. Volta e o movimento frenético de busca continua).

FAZ QUATRO DIAS QUE PROCURO EM VÃO


É A MESMA COISA SEMPRE, NÃO HÁ O QUE FAZER
138

A TRISSOMIA É UM DESTINO, ENTÃO?


MAS NÃO ACEITO, EU PRECISO ENTENDER!
NÃO, ISSO NÃO! NÃO, NÃO! NÃO, NÃO!!!!!

(Fecha as abas, empurra sua cadeira de rodinhas para longe da mesa do computador)

CENA 8

RAFAEL
Eu preciso encontrar alguma coisa!!!!

LUCAS

(Entrando na sala, vindo do quarto) Amor... você está exagerando... (Ele percebe que
Rafael não está escutando) Rafa! Estou falando com você.

RAFAEL

(Ríspido) Lucas, eu tô muito focado aqui...

LUCAS
Rafa, você está passando dos limites, sentado na frente deste computador faz dias, e
não está nem indo dormir... e já tem uma semana que não escreve nem uma linha do
seu doutorado!

RAFAEL
A Cris é mais que uma irmã, Lucas... e ela pediu a minha ajuda. O Pedro até que está
forte, mas a Cris... ela não está conseguindo nem fazer isso que eu tô fazendo aqui...
Tô imprimindo umas coisas, dando pra ela ler.

LUCAS
Ela deveria ter tirado a criança, Rafa. Pra poupar esse bebê de tudo que vai ter que
passar. E você, ao invés de ficar mais presente com ela, fica aí afundado no
computador pesquisando sei lá o que.
139

RAFAEL
Lucas. Eu vou ser o padrinho dessa criança. Eu sei tanto quanto eles a respeito desse
assunto, ou seja, nada... mas a Cris... Ela tá em negação, tá de luto. Não me critique
por eu estar aqui tentando ajudar esse bebê... você ajuda crianças todos os dias. Eu
estou ajudando uma, apenas. Poderíamos muito bem ter feito até mais, se a gente
tivesse adotado.

LUCAS
Que é isso, Rafael? Você vai voltar a falar sobre isso? Faz cinco anos que não tem
esse assunto aqui em casa, o que é isso agora?

RAFAEL
Imagina o que a gente poderia ter feito se a gente tivesse adotado uma criança?
Dando uma família pra alguém que precisasse?

LUCAS
Rafa, não é uma coisa simples pra ninguém ser adotado. Nem ser filho de dois
homens. O meu papel eu faço no fórum todo dia. Não vai ser criando um filho que...

RAFAEL
(Interrompendo) Não entendo por que tanta rejeição, já que você é o Robin Hood das
crianças.

LUCAS
Rafa...

RAFAEL
Eu saí da fila de adoção por sua causa... desisti desse sonho pra ficar com você.

LUCAS
Você fez essa escolha, Rafael. Eu nunca te pedi nada, nunca te prometi isso também...

RAFAEL
Então me deixa ajudar do meu jeito! Se é isso que eu posso fazer, me deixa...
140

LUCAS
Eles vão ser melhor orientados se procurarem gente especializada... por que você?

RAFAEL
Não sei porque eu, Lucas! Talvez porque seja a família da Cris? Porque foi pra mim
que ela pediu? Como é que não vou estender a mão?

LUCAS
Eu me preocupo porque te conheço, você é incansável... Não sai mais desse
computador! E você, não é cientista, Rafa! É um artista, você não entende nada
dessas coisas...

RAFAEL
Amor, no começo eu nem sabia por onde começar a olhar. Mas, depois, fiquei
pensando: não é possível que o homem tenha ido até a lua, mas que não saiba o que
fazer a respeito de uma síndrome genética. Eu vou pesquisar aqui até encontrar
alguma coisa, encontrar uma luz.

LUCAS
Tá vendo? Ta aí o que eu falei! O que você acha que vai encontrar? Uma cura
milagrosa? (Ri)

RAFAEL
É sério... olha, quase ninguém nunca ouviu falar que existe medicação pra prevenir o
HIV. Mas existe, não é? Vai que existe alguma coisa sobre síndrome de Down que eu
desconheço, mas que existe?

LUCAS
A Prep não cura o HIV, Rafa, ela previne. Não tem como prevenir o bebê de ter Down,
ele já tem Down. Ele já tem um cromossomo a mais em cada celulazinha dele... Bem,
estou indo pro escritório. Vê se larga isso um pouco e se dedica à sua tese. Não
coloque a vida deles na frente da nossa, Rafael. Não se esquece da gente...

RAFAEL
(Meio que se livrando de Lucas, mas quase rindo amorosamente. Dá um beijo em
141

Lucas) Tá... Tchau...

(Lucas sai)

RAFAEL
(Respira fundo e volta para o computador. Ele primeiro abre sua tese no computador.
A tese aparece projetada em uma das telas no palco: “Dramaturgia Musical – Um
Caminho Poético Para O Teatro Musical Contemporâneo”. Ele encara a tela do
computador. Respira fundo. Desistindo). Não dá, não consigo pensar em nem mais
uma linha disso aqui. Eu preciso ajudar a Cris, mas como?
(Ele fecha a janela da tese e volta a abrir consultas sobre síndrome de Down. As
consultas que ele faz vão aparecendo nas telas).A gente passa a vida ouvindo dizer
isso e aquilo sobre síndrome de Down... a gente não sabe nada a respeito, porra... e
fica fingindo que isso não existe... tô me sentindo um idiota. Onde mais eu posso
procurar? Cansei de ler e ouvir só descrição, descrição... (Tirando sarro do que lê) “A
síndrome de Down é uma anomalia genética causada pela duplicação do cromossomo
21” blá blá bláááá. Só aparece coisa esquisita, ninguém fala NADA a respeito do que
fazer...tipo... será que não tem mesmo o que fazer? (Ele vai pensando alto e digitando,
abrindo abas que vão sendo projetadas nas telas do palco).

RAFAEL
O que é que acontece pra pessoa ficar diferente? Eu preciso entender... tenho que
conseguir encontrar alguma coisa...

CENA 9
(Luz cai em resistência no apartamento de Rafael, mas ainda o vemos. Durante a
cena no apartamento de Cris, ainda vemos Rafael no computador. Abre a luz no
apartamento de Cris. Lucas bate em sua porta, e vai meio que entrando sem que Cris
abra).

LUCAS
Ô de casa! Cris?

CRIS
Entra Lucas. Quer um café? .
142

LUCAS
Não precisa não, obrigado.

CRIS
(Meio sem paciência) Diga, Lucas.

LUCAS
(Notando, em cima da mesa, o envelope que Rafael passou por debaixo da porta, e
folhas impressas meio espalhadas pela mesa. Dá uma olhadela) Vejo que você
também está estudando.

CRIS
Preciso, né? O Rafa que me trouxe esses papéis. Mas ainda tô com medo de ler,
acredita? Quero ver se leio com o Pedro quando ele chegar do trabalho... Tá meio
difícil de encarar essa realidade. Eu tô tentando me acostumar com a ideia, ainda.

LUCAS
Não vai ter como você fugir disso... porque nada vai mudar. Essa é a condição desse
bebê...

CRIS
Ah, Lucas, você é o cara que acha que eu devia ter tirado o bebê, né... isso vindo de
você...

LUCAS
Vamos deixar pra trás aquela conversa, por favor. Eu disse o que achava que tinha
que dizer, mas respeito a sua escolha, tá? E eu fico feliz que o Rafa possa te ajudar
um pouco... mas faz um favor pra mim? Incentiva o Rafa a dar uma olhadinha no
doutorado dele de vez em quando, agora ele só estuda sobre o bebê...

CRIS
Como assim?
143

LUCAS
É que agora ele não faz outra coisa. Tá lá, mergulhado no computador. Faz um tempão
que ele não põe a mão na tese dele. Eu fico preocupado...

CRIS
É isso que você tem pra me falar? Que o meu pedido de ajuda tá atrasando a vida do
Rafa?

LUCAS
Não, não, não me entenda mal, por favor... Na verdade, eu também estou querendo
fazer a minha parte pra te ajudar, foi por isso que eu vim aqui. Tem muitas coisas
possíveis de serem feitas pelo bebê, juridicamente, mesmo. Em relação aos custos
das terapias, por exemplo. Se você me autorizar, eu posso atuar como seu
representante legal.

CRIS
Obrigada, Lucas...

LUCAS
Vocês já escolheram nomes pro bebê?

CRIS
Resolvemos desencanar disso. Uma hora vamos sentir qual é o nome... nem
sabemos o sexo...

LUCAS
(Tentando demonstrar solidariedade, colocando a mão no ombro de Cris) Bom,
tenho que ir. Qualquer coisa fala com a gente, hein? (Sai)

(Cris pega sua bolsa, fecha o computador, e sai de casa na sequência, enquanto a
resistência em seu apartamento vai caindo e vai subindo a luz no apartamento de
Rafael)
144

CENA 10 - semanas 20 a 22

RAFAEL
Esse povo todo só diz a mesma coisa com palavras diferentes, só descrição...
ninguém se arrisca, pessoal, a descobrir uma solução? Os estudos avançam no
sentido de mostrar cada detalhe dos problemas, mas e as soluções gente? Não tem
uma porra de um tratamento pra esse negócio? Que saco... (Ele se afasta um pouco
do computador e dá uma pausa. Pensa.)
Peraí... e se eu digitar em inglês... arriscar algo bem absurdo aqui... Hashtag Down
syndrome treatment... (Chega em uma página do Facebook, de uma clínica, nos EUA.
Ele vai lendo, tudo o que ele visualiza aparece na tela para o público).Peraí... o que é
isso aqui?

# 7 – NÃO POSSO NEM ACREDITAR

(Lendo alto) Complex B, Thyroid... EGCG? O que é isso? Meu Deus, peraí... como é
que é? Não acredito... não acredito... encontrei alguma coisa... encontrei alguma
coisa!!!
(Ele vai digitando em inglês e vai abrindo páginas, abre páginas relacionadas à clínica
que encontrou, encontra a médica proprietária desta clínica no Youtube, seleciona
palestras como favoritas, através deste site vai encontrando blogs. As abas vão
novamente sendo abertas e sendo projetadas nas telas distribuídas pelo palco)

RAFAEL
ESPERA UM POUCO...
O QUE É ISSO AQUI?
AQUI DIZ QUE...
UAU!!!!!
QUEM É ESSA GENTE
ISSO É SÉRIO!!!
ACHEI! ACHEI ALGUMA COISA!!!
Nem dá pra acreditar!!!

(Underscore segue)
145

Onde fica esse lugar? Hmmmm, uau, que incrível isso...


(Ele está fascinado, vendo a informação em seu computador. Imagens de palestras e
artigos vão sendo projetadas nas várias telas dispostas por todo o cenário, uma a
uma, dando cada vez mais a impressão de que existe muita informação disponível. O
underscore acompanha esse frenesi de imagens, as vozes das pessoas dando
palestras vão se sobrepondo, uma por uma, até um caos sonoro. Quase num grito de
alegria, interrompendo repentinamente o caos sonoro)

RAFAEL
EU NÃO POSSO NEM ACREDITAR!
NO QUE EU TÔ VENDO AGORA AQUI
BEM NA FRENTE DOS OLHOS VEM ABRIR
A GRANDE ESPERANÇA!
DIZ AQUI QUE SIM, DÁ PRA TRATAR!
QUE TEM COMO BALANCEAR
ESSA CLÍNICA É ESTRANGEIRA
MAS EU VOU LIGAR!

SÍNDROME DE DOWN É ALGO BEM COMPLEXO


MAS PARECE QUE HÁ UM JEITO
DE TRATAR AS CONSEQUÊNCIAS
DESSE CROMOSSOMO A MAIS!
É NO METABOLISMO QUE A COISA PEGA
MAS TEM ALGO PRA SER FEITO
NÃO É NADA IMPOSSÍVEL
DÁ PRA MELHORAR!

Tem uma biblioteca enorme de artigos no site dessa clínica... nossa, é muita coisa.

(Nas telas vão se projetando os artigos que Rafael vai abrindo. Lucas entra em casa
animado)

LUCAS
Amor! Vou te levar num novo happy-hour que descobri... combinei de a gente
encontrar o Fabio e o Leandro lá!
146

RAFAEL
(Mergulhado no computador) Amor, eu encontrei umas coisas incríveis, muito
importantes mesmo!

LUCAS
Deixa então pra depois, vamos que eles estão esperando a gente!

RAFAEL
(Sem tirar o olho do computador) Não, não, Lucas, não dá pra ir agora não! (Lê para
si mesmo algumas frases, murmurando)

LUCAS
Mas a gente combinou que...

RAFAEL
(Cortando Lucas) Amor, tá importante isso aqui! Eu explico depois... eu... agora não
consigo... quando eu te contar você nem vai acreditar!

LUCAS
Rafael...

(Rafael não responde, está meio que lendo baixinho em voz alta alguma coisa na
internet. Lucas, meio bravo, sai de casa)

RAFAEL
EU NÃO POSSO NEM ACREDITAR
QUE ISSO POSSA EXISTIR
AGENDEI PRA AMANHÃ UM CHAT ONLINE
SOBRE O TRATAMENTO
EU PRECISO TUDO ENTENDER
PRA AJUDAR NOSSO BEBÊ
ESSAS MÉDICAS SABEM COMO E VÃO ME DIZER!
147

SE DE UM LADO FALTA ALGO, EU SUPLEMENTO


E SE FOR DEMAIS EU TIRO
NÃO É SIMPLES DE SER FEITO
MAS É ESSENCIAL!
OLHAR ESSA PESSOA INTEIRA, BEM LÁ DENTRO
TODO O SEU MECANISMO
COMO É QUE TÁ FUNCIONANDO
VER SE TÁ LEGAL!

E se não olhar... vai dar problema, é aí que vai dar problema! Tudo isso que acontece
numa célula que tem um cromossomo a mais... precisa tratar os sintomas! O que eles
fazem, pelo que tô vendo, é suplementar... (Vai abrindo várias abas enquanto fala,
encontrando mais e mais coisas) Nossa, olha essa mãe aqui... o menino dela toma...
uau, bastante coisa...

(A resistência cai no apartamento de Rafael e um corredor de luz se abre no proscênio.


Pedro e Cris estão com um envelope nas mãos, é um novo exame de ultrassom. Eles
estão lendo o laudo e vendo as imagens, que ao mesmo tempo são projetadas na tela
central, a mesma do primeiro exame de ultrassom. Ela toca na barriga querendo sentir
o bebê. Enorme, bem acima de suas cabeças, as imagens são projetadas. O coração
do bebê bate, e exatamente no ritmo das batidas começa bem baixinho uma voz em
off quase sussurrando: síndrome de Down, síndrome de Down, síndrome de Down,
etc, para cada batida do pequeno coração. O que primeiro era um sussurro de uma
só voz vai ficando gradativamente mais forte, e maior vai ficando o número de vozes.
A imagem de ultrassom do bebê vai ficando cada vez mais focada apenas no coração,
a imagem do coração vai se ampliando, até se ter a imagem ampliada deste coração
pulsando enquanto as vozes continuam a dizer “síndrome de Down”. As vozes dão
lugar ao canto de Cris e Pedro. A imagem do coração no telão central congela)

CRIS
ME SINTO TÃO PERDIDA
PERDI PRA SEMPRE O CHÃO
NUNCA PENSEI SENTIR
TAL DOR NO CORAÇÃO
148

PEDRO
É UM APERTO IMENSO
COMO É QUE VOU FAZER
PRA ACREDITAR QUE A VIDA
VAI ACONTECER?

(O underscore segue, a luz em Cris e Pedro vai caindo, eles saem de cena. A luz volta
no apartamento de Rafael. A luz continua dando a entender que dias e noites vão se
passando. As informações continuam pipocando nas telas. Rafael, de vez em quando,
sai do computador, anda pela sala, pensa... toma um pouco de água, volta para o
computador, e isso acontece algumas vezes. Vai imprimindo papéis, retira da
impressora, lê o que imprimiu. Os artigos que ele imprime começam a formar uma
espécie de “bíblia”, que irá aumentando de tamanho durante o espetáculo, e que
nunca mais sairá de perto dele. Onde Rafael vai, leva a “bíblia” junto. A sensação da
passagem de tempo vai continuando. Durante a cena, Lucas sai de casa para
trabalhar de manhã e volta de noite, algumas vezes. No início, ainda fala com Rafael,
mas já mais para o final da cena ele chama por Rafael, que nem escuta. Lucas reage
saindo da sala quase batendo a porta. Durante os momentos em que as informações
vão pipocando na tela, Rafael canta digitando em seu computador)

RAFAEL
EU ESTOU COMEÇANDO A ENTENDER
MAS NEM SEI COMO EXPLICAR
TODO MUNDO PRECISA CONHECER
QUE HÁ UM CAMINHO!
É CIÊNCIA PURA ISSO AQUI
TEM MUITA COISA PRA ESTUDAR
VALE A PENA NÃO DESISTIR
POR QUE DÁ PRA ...

Não, não dá pra dizer, assim, “curar”, não tem como ser cura, o cromossomo extra
sempre vai estar lá... aqui nesse site eles dizem, como mesmo (Buscando a
informação, lendo rápido) Otimizar! Essas médicas aqui jogam a bola numa outra
direção... (Rafael entra novamente no site da clínica. Marca uma consulta online)
149

RAFAEL
E atendem gente do mundo inteiro... preciso conversar com elas sobre o que devemos
fazer pelo nosso bebê!

(O underscore segue)
(Lucas, que entrou em casa sem que Rafael percebesse, ouve Rafael dizendo esta
última frase. Um foco pin-beam em Lucas se acende)

LUCAS
O SONHO QUE TIVEMOS
DE SERMOS SÓ NÓS DOIS
PARECE QUE AGORA
FICOU PRA DEPOIS

JÁ NÃO É COMO ANTES


E EU SEI BEM PORQUÊ
POIS ELE IMAGINA
QUE ESSE É O SEU BEBÊ!

Como se o Pedro nem existisse! Que ridículo... A gente combinou que não ia ter
criança na nossa vida...

(Lucas volta a sair de casa. Um triângulo se forma em cena. Cris e Pedro aparecem
em seu apartamento, Lucas no proscênio, Rafa do apartamento dele. Os quatro
cantam ao mesmo tempo)

CRIS, PEDRO, LUCAS. RAFAEL


EU PRECISO AGORA RESPIRAR!
É TUDO NOVO PARA MIM
SINTO QUE A MINHA VIDA VAI MUDAR
EU QUERO ENTENDER
COM TODA CORAGEM VOU BUSCAR
UM JEITO DE RECOMEÇAR
PR’EU PODER ME ENCONTRAR DE NOVO
DEVO ACREDITAR!
150

EU NÃO VOU DESISTIR


EU VEJO TUDO ISSO
É DESAFIO E COMPROMISSO
VOU ME ENTREGAR PRA ISSO
POSSO ACREDITAR!

EU NÃO VOU DESISTIR


EU VEJO TUDO ISSO
É DESAFIO E COMPROMISSO
VOU ME ENTREGAR PRA ISSO
POSSO ACREDITAR!

(Black-out)

CENA 11 – semana 22

(Rafael telefona para Cris. O celular dela toca, na bolsa. A luz está nos apartamentos
de Cris e de Rafa. Cris atende).

RAFAEL
Cris! Você tá em casa? Tá com o Pedro?

CRIS
Oi, Rafa, sim!

RAFAEL
Venham AGORA pra minha casa, eu encontrei!

CRIS
Encontrou o que?

RAFAEL
Encontrei um monte de informação, um monte de artigo...
151

CRIS
Rafa, não tô podendo falar sobre o teu doutorado agora...

RAFAEL
Não, Não... (Ri) Faz dez dias que não ponho a mão no doutorado, eu sumi, desculpa...
Crisoca, agora que eu tô me dando conta que sumi... vem pra cá, eu encontrei um
monte de informação que pode ajudar o bebê!

CRIS

(Preocupada) Eu também tenho uma coisa pra te contar...tô indo. (Desliga o celular,
coloca de volta na bolsa. Pega o envelope do exame e leva consigo) Coragem.

PEDRO
O que o Rafa queria, amor?

CRIS
Pediu pra gente ir agora lá pra casa dele...

PEDRO
(Preocupado) A gente aproveita e conta pra ele...

(Se abraçam e saem em direção ao apartamento de Rafa .Atravessam para o


apartamento de Rafa, Cris chega meio ofegante, segura a barriga pra sentar. Ela já
mostra uma barriga de 22 semanas. Durante a cena, percebe-se um tom constante
de preocupação por parte de Cris)

RAFAEL
Tem jeito, Cris, dá pra melhorar muita coisa! Tem como ajudar o bebê a se desenvolver
muito!

CRIS
Rafa... eu e o Pedro lemos aqueles papéis que você deixou lá em casa semana
passada. Sobre as terapias. Já entendemos que hoje essas coisas ajudam muito, que
ele vai até poder ter um emprego, vai ler e escrever. Já sei.
152

RAFAEL
Cris, não pedi pra você vir aqui pra te falar das coisas que você já sabe... O que eu
quero te mostrar é outra coisa... gente, tem o que fazer! Bioquimicamente, lá nas
células do bebê... (Cris olha para Rafael como quem não entendeu. Cris e Pedro se
entreolham). Olha esses sites, aqui, e eu imprimi esses artigos também. (Coloca um
bolo de papéis nas mãos de Cris. Ele está ansioso. Tenta se fazer claro, tenta falar
pausadamente, ele busca um vocabulário mais fácil).
A perda intelectual que essas pessoas têm... as questões de saúde... dá pra amenizar
tudo isso, com uma nova abordagem médica, que segura a oxidação do cérebro com
suplementos!

PEDRO
Como é que é?

CRIS
Rafa, pelo amor de Deus...

RAFAEL
Não Cris, peraí. Me ouve. O que eu tô te mostrando aqui é ciência.

PEDRO
Vamos ouvir o que ele quer dizer, amor.

CRIS
(Folheando as páginas dos artigos que Rafa lhe deu. Um momento de silêncio)
Como é que você sabe que isso é informação confiável? Se é ciência, como você
diz, como é que a gente nunca ouviu falar dessas coisas?

PEDRO
Calma, Cris!

RAFAEL
(Apontando para o artigo aberto no colo de Cris) Esse artigo aí especificamente tirei
desse site aqui, dá uma olhada (Ele abre o site da clínica, já na página da
153

biblioteca).Uma biblioteca online, inteira, de artigos sobre todas essas coisas das
quais ninguém te falou! (As telas vão se enchendo com os artigos que ele vai clicando)
CRIS
Onde você quer chegar com isso?

RAFAEL
Quero mostrar um outro lado da história. Um que ninguém te contou. Até agora vocês
só ouviram suas famílias chorando pelos cantos (Dirigindo-se especificamente para
Cris) e médico olhando pra você com cara de “coitadinha dela...” Agora, essa gente
aqui (Ele segura o bolo de artigos impressos) conseguiu sacar que existem maneiras
de ajeitar um monte de coisas que saem do lugar pelo fato da pessoa ter um
cromossomo a mais! As questões cognitivas, os problemas de saúde... Já tem um
tempo que eles estão testando a ação de certas substâncias. Essa gente aqui desse
site, Cris... eles dedicam a vida deles a tratar de crianças com Down baseados nesse
conhecimento novo!

PEDRO
Sério? Como assim?

CRIS
Pedro! Espera aí! Rafa, você realmente acredita nisso? Francamente. Como é que
pode existir isso e até agora eu já passei na frente de tanto profissional de saúde e
ninguém me falou nada sobre isso? A gente vive num mundo globalizado, Rafa, todo
mundo já saberia.
RAFAEL
Eu não sei porque é que ninguém fala disso, porque afinal, a informação tá aí,
ó...(Aponta para a tela do computador) Tem gente falando sobre isso, sim! Vários blogs
de mães e pais, do mundo todo, falando sobre esse tipo de ação que se pode tomar.
Você devia entrar nesses blogs, tem gente aqui mesmo no Brasil fazendo isso com os
filhos! (Rafa abre algumas telas de blogs e mostra).

CRIS
Rafa, você não é médico. Não é nem cientista. E esses pais aí desses blogs? São
médicos?
154

PEDRO
Espera aí, Cris, não fala assim. Não custa nada a gente dar uma olhada...

RAFAEL
Exatamente! Não custa nada vocês lerem. Depois vocês me dizem o que acharam.
Me dá esse crédito...

CRIS
Rafa, você me fez vir aqui pra me dizer que síndrome de Down tem cura?

RAFAEL
Não foi isso que eu disse. Não disse que tem cura. Disse que tem como tratar.

CRIS
Que seja. Tratamento. É isso?

RAFAEL
Sim! Lê, vai... Por favor... Pedro... dá uma olhada, por favor!

(Cris e Pedro folheiam por alto o calhamaço que Rafael colocou em seu colo)

PEDRO
Parece ser muita coisa...

RAFAEL
Você percebeu? Eu sei que é muita coisa, mas conseguem perceber?

CRIS
Parece ser coisa demais pra fazer.

RAFAEL
Dá a impressão de ser muita coisa... Uma dieta bem diferenciada... e pelo visto são
muitos suplementos por dia...mas logo vira parte da rotina, as famílias que têm blogs
não reclamam não, muito pelo contrário! O metabolismo deles funciona diferente...
então tem que ajustar!
155

CRIS
Dieta diferente... Aqui diz que... (Apontando para uma das páginas impressas por
Rafa) não vai poder comer um monte de coisa! E tudo isso aí que ele vai ter que
tomar...essa mulher aqui desse blog...ela dá um monte de suplementos por dia pro
menino dela, Rafa! Olha essa lista!

RAFAEL
Mas o menino dela tá incrível, Cris! Tem ele no youtube brincando e falando, como
qualquer outra criança!

PEDRO
Como qualquer criança... abre o menino aí no youtube! Quero ver.

CRIS
NÃO! Eu não quero ver nada.

RAFAEL
Cris... eu sei que de repente tudo parece muito pesado, mas não é não! Eu tô digerindo
isso tudo faz dias, já nem parece um bicho de sete cabeças! (Ri).

CRIS
Não, não, Rafa, como que eu vou colocar uma criança numa bolha... não vai comer o
macarrão da vó? Brigadeiro na festa? E na escola? Eles vão ajudar a dar todas essas
coisas por dia pra ele tomar? É irreal! Viraria a nossa vida de ponta cabeça, não dá!
E se depois vier um irmãozinho? Esse bebê tem que comer o que todo mundo come,
o que o irmão mais novo vai comer!

RAFAEL
Como assim?!?!?! Você tá dizendo que daria preferência pro irmão sem Down? A
gente tá aqui falando de uma pessoa com necessidades diferentes das nossas, como
é que você pode pensar uma coisa dessas? Pedro! Pelo amor de Deus, me ajuda
aqui! Olha, pensa como se ele fosse...sei lá.... (Tendo uma grande ideia) Diabético!
Você deixaria de dar insulina pra ele só porque você não precisa tomar? Ou porque o
irmão não toma insulina? Porque que a gente não pode pensar nas necessidades
156

DELE? (Conforme ele vai falando ele vai se inflamando. Segurando a pilha de papéis
na mão, ele diz) É como se bebê estivesse te dizendo: “mãe, eu preciso de coisas que
são bem diferentes daquelas que você precisa. Você pode fazer isso por mim? Até
onde você pode ir por minha causa?”

CRIS
Rafa, você tá passando do limite...

RAFAEL
(Pressionando Cris mais e mais) O quanto está disposta a ir? “Mãe, você pode
escolher me ajudar ou não, mãe, espero que você escolha me ajudar”...

CRIS
Não joga isso na minha cara, Rafa!

PEDRO
Cris, por favor...

RAFAEL
Como você pode saber que tem o que fazer e escolher não fazer?

CRIS
(Com muita raiva) Cala a boca, Rafa! Cala a boca! Você fala daí do alto do seu maldito
doutorado, o grande sabe tudo de universidade que você é! Mas não é você que tem
um bebê na barriga, e não vai ser você que vai ter que fazer tudo diferente, a sua vida
vai continuar sendo exatamente o que é... Você e o Lucas, a família perfeita! Não é a
sua criança que vai tomar um monte de suplementos em um dia! Não, Rafa, esse
bebê vai frequentar uma instituição que possa ajudá-lo e vai comer o que todo mundo
come. Isso é o que eu posso fazer por ele, Rafa.

RAFAEL
Eu e Lucas a família perfeita? O que é que tem de perfeito? Quem me dera ter um
bebê pra quem eu pudesse dar todos os suplementos do mundo... e isso nunca vai
acontecer porque a gente nunca vai adotar... Cris, confia em mim... eu... se você acha
que é coisa demais (passando dos limites) eu posso cuidar do bebê pra você!
157

CRIS
(Sem acreditar) Você tá louco!

PEDRO
Chega! Vocês dois já passaram dos limites. Eu sou o pai, aqui. Não me excluam, essa
conversa não é de vocês dois. Cris, vamos dizer a ele.

(Um momento de silêncio. Todos respiram um pouco, o clima está muito tenso. Num
outro tom, Pedro procura trazer o diálogo para um tom mais controlado).

PEDRO
Você fala?

CRIS
Rafa, neste momento, o fato desse bebê ter síndrome de Down deixou de ter qualquer
importância. Pra gente, agora, o que importa é ele viver.

RAFAEL
Eu só estou te mostrando que a vida dele pode ser muito melhor se a gente...

CRIS

(Interrompendo) Rafa. Esse bebê vai nascer, vai vir pra casa, e pouco tempo depois,
talvez um mês, talvez dois, dependendo do peso dele, vamos ter que leva-lo pra um
hospital e entrega-lo pra um cirurgião que vai ter que abrir o peito dele, tirar o coração
pra fora, fechar um buraco, colocar de volta e costurar. Tá bom pra você isso ou você
quer mais? (Cris joga o envelope do novo exame para Rafael).

RAFAEL
(Abrindo o envelope e olhando o laudo do exame) Gente... o bebê...
158

# 8 - CORAÇÃO - TRIO

PEDRO
O bebê tem uma cardiopatia, Rafa.

RAFAEL
Pedro... eu...não tinha como saber, eu...

CRIS
Tudo bem, Rafa.

RAFAEL
O MEU CORAÇÃO
ESTÁ JUNTO DO TEU

CRIS
QUE O TEU CORAÇÃO
POSSA AQUECER O MEU

RAFAEL
EU TE PROMETO, ELE VAI CONSEGUIR

CRIS E PEDRO
SÓ O QUE EU QUERO É NÃO DESISTIR
MAIS UMA OUTRA SURPRESA
SERÁ QUE POSSO AGUENTAR?
TODAS AS MINHAS CERTEZAS
JÁ ESTÃO FORA DE LUGAR

(O underscore segue)

RAFAEL
É muito grave?
159

PEDRO
Eles dizem que não é das piores coisas... Tem um buraquinho. Podia ser algo muito
mais grave. Ele teve sorte... Mas não tem jeito, tem que fechar. É de um tamanho que
não vai fechar sozinho. Ainda vamos fazer vários ultrassons até ele nascer, mas os
médicos não acreditam que vá mudar. E tem que operar logo pra não gerar
consequências.

RAFAEL
Vai dar tudo certo...

RAFAEL, CRIS E PEDRO

ESSE CORAÇÃO TEM QUE VIR PRA PULSAR


FICO SEM CHÃO SÓ DE IMAGINAR

RAFAEL
EU TE PROMETO, ELE VAI CONSEGUIR

PEDRO E CRIS
E POR AMOR EU NÃO VOU DESISTIR

(Black-out)

CENA 12

(É cedo de manhã. Lucas está terminando de se arrumar para sair, dando nó na


gravata. Rafael entra direto para a cozinha, para fazer café. Vai pegando os utensílios
no armário e conversando com Lucas)
RAFAEL
Foi um susto esse lance da cardiopatia, Lucas...

LUCAS
Eu avisei que não ia ser fácil. Mal começou!
160

RAFAEL
Ah Lucas! Por favor! Vai dar tudo certo, você vai ver... não é algo complicado, graças
a Deus...

LUCAS
Tomara que você tenha razão.

RAFAEL
Mas ainda assim, eu senti que o Pedro tá aberto pra conversar sobre essas coisas
todas... é fascinante demais tudo isso aqui! A Cris não quer falar sobre isso ainda, mas
uma hora eu vou conseguir convencê-la...

LUCAS
Rafa, deixa as pessoas em paz com as suas vidas... a Cris e o Pedro vão fazer o que
acharem que devem, e você tem que ficar na sua.

RAFAEL
A Cris pode não querer dar ouvidos, mas você pelo menos podia me ouvir. Eu tô
provando pra vocês que tem muita informação nova! A ciência tá finalmente sacando
o que fazer a respeito da síndrome! Não é incrível? Essas pesquisas vão acabar
levando à cura disso e outras coisas, como Alzheimer!

LUCAS
Rafa, não viaja. E esse assunto não me interessa nem um pouco. Tenho uma
audiência bem difícil agora. Me deixa concentrar nisso. Até mais tarde

(Se dirige para a porta de casa e é interrompido pelas palavras de Rafael).

RAFAEL
Porra, que saco, eu estudo, estudo, ninguém me dá a menor bola!

LUCAS
Eu estaria dando bola se você estivesse estudando o que você tem que estudar,
Rafael, o seu doutorado, que você largou sem mais nem menos, tá aí esperando você
tomar juízo!
161

RAFAEL
Eu não gosto de me sentir pressionado, Lucas.

LUCAS
(Parando na porta) O que você está querendo dizer?

RAFAEL
Nada. Pensei alto.

LUCAS
Isso é o que me preocupa. As coisas que você anda pensando. Te conheço. Você
acha que só porque vai ser o padrinho, que o lugar de pai dessa criança é seu? Você
não é o pai dele, Rafa. Não se esquece que temos a nossa vida, que você colocou
completamente de lado nos últimos meses.

RAFAEL
Eu só estou tentando fazer todo mundo entender que tem coisa pra fazer, que não
precisa ser um problema, entende? Me desculpa, eu não imaginava que você tava
pensando assim... eu...

LUCAS
Tá tudo bem. Você só precisa pôr a cabeça no lugar. E precisa voltar para o seu
doutorado hoje. Tá bom? Por favor, amor...

RAFAEL
Mas... o que é que eu vou fazer com tudo isso que eu sei agora, Lucas? Vou fingir
que não sei de nada? (Pega o bolo de artigos que antes tinha dado para Cris e mostra
para Lucas)
LUCAS
(Calmamente, Lucas toma os artigos da mão de Rafael, joga os artigos no lixo ao
lado da mesa de trabalho) Nada disso aqui faz parte do nosso combinado. Da
nossa vida. (Sai).
162

RAFAEL
(Ainda chamando por Lucas) Lucas!
(Lucas não volta. Rafael abaixa perto do lixo e coleta as folhas jogadas por Lucas.
Senta em sua cadeira, tenta arrumar as folhas e limpá-las, com delicadeza, mostrando
como são preciosas. Traz as folhas para si num abraço. Abre o computador e abre
sua tese, mas continua abraçado com as folhas de sua “bíblia”).

CENA 13
(Pedro chega ao apartamento de Rafael)

PEDRO
(Batendo na porta e já entrando devagar) Oi! Rafa?

RAFAEL
(Se levanta do computador para recebê-lo, ainda desajeitado com os papéis. Coloca
os papéis sobre a mesa) Oi, Pedro .

PEDRO
Já no computador?

RAFAEL
Tô tentando fazer as pazes com o doutorado... mas tá difícil, eu travei.... a minha
cabeça não pensa em outra coisa. Desculpa, Pedro, eu não estou querendo tomar o
lugar de vocês. Só quero ajudar.

PEDRO
Então... é mais ou menos sobre isso que eu queria conversar com você. Eu pensei
muito durante toda essa semana. Fiquei quieto no meu canto, nem falei nada sobre
isso com a Cris, mas... eu quero que você me mostre o que encontrou, Rafa...

RAFAEL
Pedro, claro!!! (Abraça Pedro) A recusa da Cris tem sido difícil pra mim, ela é como
minha irmã....
163

PEDRO

Como que funciona esse tratamento?

RAFAEL
Olha Pedro, eu posso até te contar, mas eu acho que você tinha que ler por conta
própria, as pesquisas, os artigos...

PEDRO
Mas então porque ninguém nos falou nada?

RAFAEL
Não sei. Afinal, tem muita gente falando sobre isso. Nós é que somos muito
ignorantes, isso não fazia parte da nossa realidade... tem gente boa falando no
assunto, até mesmo aqui no Brasil...

PEDRO
Mas afinal...

RAFAEL
Pedro, é esse cromossomo a mais. Causa um grande desbalanceamento do
metabolismo e muita oxidação, acúmulo de metais pesados... absorção pobre de
várias vitaminas e minerais... Só essas coisas são capazes de fazer um estrago bem
grande no cérebro. É por isso que você precisa ler, entrar nesses blogs. Você tem que
ver o que os outros pais estão fazendo.

PEDRO
É muita coisa, Rafa?

RAFAEL
Dá a impressão que sim. Mas tem bastante gente fazendo... isso prova que não é
impossível...

PEDRO
Eu quero ler... pra poder pensar. Assusta um pouco, dá a impressão de que a minha
164

vida vai parar e vai ser só isso...

RAFAEL
Não tem como a gente saber... só quando ele estiver aqui com a gente...

PEDRO
É apostar ou não...

RAFAEL
Apostar ou não. Vou imprimir pra você, Pedro. Passa aqui de noite e eu te entrego,
OK? Eu tô aliviado de você ter vindo. Meu coração tava apertado.

PEDRO
Foi a gente? Foi a reação da Cris?

RAFAEL
Alguma coisa tá mexendo lá dentro. Eu não sei o que é. Mas só de pensar em não
poder ajudar o bebê de vocês... enfim... já teve gente que precisou de mim antes e eu
dei preferência pra outras coisas. Pensar nisso acaba comigo.

PEDRO
Rafa, depois que eu ler... a gente pode conversar?

RAFAEL
Claro! (Se abraçam. Pedro sai).

CENA 14

RAFAEL

(Para si mesmo) Tomara que ele leia e convença a Cris... que ele consiga o que eu
não consegui. No dia de hoje tudo o que eu sinto é essa avalanche das coisas que
não fiz nessa vida, caindo na minha cabeça... o que é que eu faço com tudo isso que
eu descobri? Eu tenho que poder fazer alguma coisa... (Rafael busca na internet um
número de telefone da Vara da Infância.. As abas que ele vai abrindo vão sendo
165

projetadas nas telas do palco) Preciso achar aquele telefone...


(Rafael sai da sala por um momento e vai até um arquivo no outro cômodo. Busca
alguma coisa no arquivo. Ele encontra uma pasta antiga). Achei! Nossa, quanto
tempo... Mas tá tudo aqui... meu processo de adoção. Aqui... (Encontrando na pasta
um cartão de visitas) Achei o telefone!

LUCAS
(Entrando em casa) Rafa? Você ainda tá em casa? (Percebendo o computador aberto,
vai até ele). Desculpa eu ter saído daquele jeito, voltei pra te pedir desculpa... (Para
si mesmo, olhando a tela do computador) Ele deixou tudo aberto... (Vendo as
consultas feitas or Rafael) Não.... não, não, eu não acredito... o que é que você tá
fazendo, Rafael... (Clicando nas abas abertas) Ah, Rafael... o que deu em você...

RAFAEL
(Voltando para a sala, nas mãos ele traz a pasta que achou no arquivo )Lucas...

LUCAS
O que é que está acontecendo, Rafa? O que é isso aqui que você tá olhando?

RAFAEL
Não é nada, Lucas... (Vai até o computador e começa a fechar as abas que abriu. Ele
põe a pasta em cima da mesa de trabalho) São só umas ONGs, eu estava pensando
em ajudar de alguma forma...

LUCAS
Rafa, e esse site aqui da Vara de Infância? Você tá de novo pensando...

RAFAEL
Eu...só tava buscando por um número de telefone... ah, Lucas, eu tenho que ficar me
justificando? O que tá acontecendo aqui?

LUCAS
Você é que está cheio de novidades na sua cabeça, não eu.
166

RAFAEL
Acho que por muito tempo eu fiquei fugindo, a verdade é essa. Coloquei coisas
importantes debaixo do tapete e agora tudo está vindo à tona. Lucas, será que a gente
não poderia pelo menos voltar a conversar sobre adoção?

LUCAS
A gente decidiu lá atrás que não ia mais falar sobre isso. Você sabe que eu não quero,
não consigo... você, justo você... que sabe de tudo que me aconteceu. Eu não vou
saber ser pai, Rafa. Não está em mim. Essa sempre foi a minha condição.

RAFAEL
Lucas, eu achava que já tinha superado tudo isso, e de repente... percebi que continua
tudo aqui.

LUCAS
Você vai ter que lidar com isso. Não tem espaço pra conversar sobre isso mais. Você
sabe de TODA a minha história.

RAFAEL
Eu não consigo parar de pensar... quando a gente se conheceu eu estava prestes a
adotar... eu havia acabado de conhecer aquele menino, o Daniel, já tinha feito a
primeira visita. Eu tento não pensar nisso, mas de vez em quando me vem uma culpa,
eu fico imaginando se o Daniel nunca foi adotado por ninguém.

LUCAS
Vamos deixar o passado no passado, Rafa!

RAFAEL
Mas então! Vamos deixar o passado no passado! Será que de repente uma criança
não poderia ser um caminho de superação pra você, Lucas? Refazer a tua história
através desse amor incondicional que é um filho?

LUCAS
De que amor incondicional você tá falando? As porradas de tirar sangue que o meu
pai me dava? Rafa, acorda! Ter uma criança em casa não significa que esse pai, essa
167

mãe, vão amar esse filho!

RAFAEL
Mas no nosso caso...

LUCAS
(Interromendo) Não, Rafael. Não! Esse pode ter sido o SEU sonho, mas ter um filho
não é importante pra mim!

RAFAEL
Lucas!
(Lucas não volta. Rafael vai até a pasta. Abre. Pega de lá de dentro o cartão de
visitas da assistente social de seu caso de adoção).
(Black-out)

CENA 15
(Pedro está em casa, lendo a “bíblia” de Rafael, e abrindo várias abas no seu
computador, a partir da leitura que está fazendo. Ele está mergulhado na informação.
Cris chega em casa. Ela já apresenta uma barriga maior. Ao mesmo tempo, vemos
Rafael folheando a pasta que ele encontrou no arquivo, em seu apartamento. Rafael
está sentado no sofá).

CRIS
Oi amor! Que bom você em casa a essa hora já!

PEDRO
Que bom que você chegou, eu queria muito falar com você. Eu estive pensando
muito... eu... eu preciso te dizer que tem várias semanas que eu tô lendo as coisas
que o Rafa separou. Eu quis ler tudo antes de falar com você.

CRIS
Pedro... a gente já não tinha combinado que não ia mais tocar nesse assunto?

PEDRO
Você precisa ler isso aqui, Cris... tenho certeza de que você vai se surpreender!
168

CRIS
Pedro... você acha mesmo que eu nunca parei pra pensar nisso tudo? A única coisa
que tem na minha mente é esse nenê... o dia inteiro fico pensando... eu tento me
acostumar com a ideia, tento sair desse luto... Mas eu tô com medo.

PEDRO
Cris, você precisa sair desse lugar, amor... até agora você não quis nem comprar nada
pro bebê, não quis nem começar a montar o quartinho dele...

CRIS
De vez em quando eu penso em tudo que o Rafa falou.

PEDRO
Mas como assim pensa se você nem foi olhar? Você ouviu o que o Rafa disse naquele
dia, mas não quis ler nada! Em todos os tempos coisas novas surgem e costumam
ser desacreditadas primeiro. De repente estamos na frente de algo assim... podemos
ser pioneiros ou podemos nos arrepender depois... esse é o meu maior medo, me
arrepender depois.

CRIS
(Cris pensa por um momento, em silêncio)Tá... eu vou ler. Mas se começar a me
machucar, se eu for começar a chorar, vou parar, tá?

PEDRO
Cris... não precisa ter medo... vamos juntos tentar sair desse lugar de tristeza... tem
maneiras de conseguir melhorar pra caramba a saúde do bebê... de ajudar, digamos
assim... a funcionar melhor... vamos ler isso aqui juntos! (Estende a “bíblia” para Cris).

CRIS
Se a gente fizer isso tudo que diz aqui, não vamos estar praticamente declarando que
não aceitamos a condição do nosso filho? Não é preconceito? Submeter pro resto da
vida essa criança - e a gente - à uma escravidão diária de tomar montes de
suplementos, de alimentação restrita... Isso não é declarar que não aceito o meu filho
como ele é?
169

PEDRO
Claro que não, Cris! Tratar é declarar que você aceita a diferença. Inclusão é isso,
aceitar que ele precisa de coisas que você não precisa.

(Silêncio)

CRIS
Acho que você tem razão...

# 9 – TE AMAR - DUETO

PEDRO
A gente precisa sair desse luto do bebê de 46 cromossomos, Cris... E fazer algo a
respeito. 47 cromossomos é o que temos? Vamos ser felizes com 47, então!
(Pedro coloca as mãos na barriga de Cris) Filho...

EU QUERO CAMINHAR PELOS TEUS PASSOS


É ISSO QUE VOCÊ VEM ME ENSINAR
E O MEU PAPEL É VER COMO É QUE EU FAÇO
PRA TE DAR O QUE VOCÊ VEIO BUSCAR
EU QUERO SER O QUE VOCÊ PRECISA
EU NÃO VOU TENTAR ME IMPOR SOBRE VOCÊ
EU AGORA VISTO A TUA CAMISA
ISSO NÃO É SACRIFÍCIO, É QUERER

PEDRO E CRIS

TE AMAR
DA MANEIRA QUE VOCÊ É
TE AMAR
PRA TE DAR AQUILO
QUE VOCÊ PRECISAR...
170

CRIS
TE AMAR

PEDRO
ISSO NÃO É SACRIFÍCIO, É QUERER

CRIS
TE LEVAR...

PEDRO E CRIS
PARA CONQUISTAR O MUNDO
TE LEVAR
PRA VIVER CADA SEGUNDO
SÓ PRA ME ENSINAR
A TE AMAR...

PEDRO
ISSO NÃO É SACRIFÍCIO, É QUERER
TE AMAR...

CRIS
A VIDA TODA SONHEI CONTIGO
E ESPERAVA SER DO JEITO QUE PENSEI
NÃO CONTAVA QUE A TUA CAMINHADA
ERA TUA E NÃO MINHA, HOJE EU SEI
QUERO SER O GRANDE AMOR DA TUA VIDA
ISSO É TUDO QUE IMPORTA, MEU BEBÊ
EU AGORA VISTO A TUA CAMISA
ISSO NÃO É SACRIFÍCIO, É QUERER

PEDRO E CRIS
TE AMAR
DA MANEIRA QUE VOCÊ É
TE AMAR
PRA TE DAR AQUILO
171

QUE VOCÊ VAI PRECISAR...

CRIS
TE AMAR

PEDRO
ISSO NÃO É SACRIFÍCIO, É QUERER

CRIS
TE LEVAR...

PEDRO E CRIS
PARA COMNQUISTAR O MUNDO
TE LEVAR
PRA VIVER CADA SEGUNDO
SÓ PRA ME ENSINAR
A TE AMAR...
ISSO NÃO É SACRIFÍCIO É QUERER
TE AMAR...

CRIS
Vem ler comigo?

(Pedro sorri afirmativamente. .A luz cai em resistência no apartamento de Cris e


Pedro, mas ainda vemos o casal, sentados no sofá, lendo juntos a “bíblia” de Rafael.
É uma cena muda. A luz abre em Rafael, na lateral do proscênio oposta ao
apartamento de Pedro e Cris)

CENA 16 – Semana 24

(Essa cena dupla acontece em paralelo. Enquanto Rafael dialoga com a assistente
social, ao mesmo tempo vemos Lucas no apartamento.
Rafael está na sala de espera, na Vara da Infância. Ele está esperando para falar com
Sandra, a assistente social. Ele folheia sua “bíblia” enquanto espera. Ao mesmo
tempo, Lucas entra no apartamento e vai até a cozinha buscar algo para comer. Pega
172

uma maçã)

SANDRA
(Se levanta de sua mesa e se dirige à sala de espera. Chama por Rafael)
Pois não, posso ajudar?

RAFAEL
(Animado) Sandra!

SANDRA

(Ela não reconheceu Rafael) Sim?

RAFAEL
(Percebendo que ela não se lembrou dele) Acho que você não se lembra de mim...
faz alguns anos já... meu nome é Rafael Ferreira, eu era solteiro e queria adotar... A
gente se falou muitas vezes, eu esperei vários anos pela aprovação... Eu... eu guardei
o teu cartão todos esses anos... que bom que você ainda trabalha aqui!!!

(Lucas vem até a sala comendo a maçã. Percebe, em cima da mesa de Rafael, a
pasta do antigo caso de adoção. Sem saber o que é aquilo, pega a pasta e abre)

SANDRA
Você deu sorte de eu poder atender você, mas tem que ser rápido, infelizmente...
(Os dois se sentam. Sandra abre seus arquivos no computador) Rafael Ferreira,
você disse?... Rafael Ferreira dos Santos?

LUCAS
(Lendo o primeiro documento que encontra na pasta) Rafael Ferreira dos Santos... o
que é isso? (Continua a folhear a pasta. Desiste da maçã e se senta com a pasta no
colo)
173

SANDRA
Saiu da lista faz cinco anos...

RAFAEL
Sim! Esse sou eu!

SANDRA
Ah... estou lembrando do seu caso, sim... pai solteiro... foi aprovado pra adoção mas
depois acabou desistindo...

LUCAS
Documento de desistência...

SANDRA
Você se casou, não foi isso? Está vindo tudo na minha mente agora! Como posso te
ajudar, Rafael?

RAFAEL
Então Sandra... é o seguinte... minha vida tomou de repente uma direção inesperada...
e eu acabei entrando em contato com umas pesquisas médicas, enfim, não vou tomar
teu tempo com detalhes. Mas eu queria saber se você poderia me dar uma informação
sobre as crianças para adoção que tenham problemas de saúde.

SANDRA
Bebês HIV positivos, crianças com síndrome de Down, paralisia cerebral,
hidrocefalia...

RAFAEL
Então... crianças com síndrome de Down... Tem caso assim que você cuida?

SANDRA
Sim. De várias idades. Tem até um bebezinho que chegou faz pouco tempo. Você por
acaso estaria considerando...
174

RAFAEL
(Interrompendo) Não, na verdade... bem... a pergunta que eu quero te fazer é a
seguinte... As crianças com Down recebem algum tipo de tratamento específico,
assim... pro que elas tem?

SANDRA
Síndrome de Down não tem tratamento, Rafael.

RAFAEL
Então, mas aí é que está! A questão Sandra, é que esses médicos que eu falei estão
promovendo uma otimização de ponta para a saúde geral de pessoas com Down... É
algo bem recente, esse tipo de tratamento. Você acha que assim... por exemplo... se
eu quisesse oferecer isso pra alguma criança que está aguardando adoção... seria
possível? (Estende sua “bíblia” para Sandra) Tudo isso é informação sobre o que eu
estou falando. Tem um certo custo, e eu gostaria de poder oferecer isso pra quem não
tem como pagar...

LUCAS
(Ele continua folheando a pasta) Rafael...

SANDRA
(Folheando a “bíblia”) Mas você acha justo oferecer algo assim pra uma criança e não
pras outras? Do mesmo abrigo?

(Silêncio)

RAFAEL
Eu não havia pensado nisso.

SANDRA
Olha, Rafael, seria um trâmite jurídico sem fim você tentar fazer isso por uma criança
que está num abrigo. Acredito que você nem conseguiria. Porque você está querendo
fazer isso?
175

RAFAEL
Todo mundo acha que síndrome de Down não tem o que fazer... E a criancinha lá,
num abrigo... sem receber um tratamento que existe...Entende? Eu só gostaria de
poder fazer alguma coisa por alguém.

SANDRA
Você precisa adotar uma criança nessa condição, então, Rafael. E cuidar dela da
maneira que você acha que é necessário. Não existe política pública pra isso que você
está me dizendo.

RAFAEL
Desculpa ter incomodado você.

SANDRA
Imagine, você só queria ajudar... mas... será que você não voltaria a considerar uma
adoção? Levar pra sua casa uma criança com Down e fazer na sua casa isso que
você quer? Seria uma grande chance pra você e pra criança... a adoção sai muito
mais fácil em casos assim... lembra do quanto você esperou na fila?

LUCAS
Três anos de espera e desistiu...

RAFAEL
Não, eu não posso fazer isso Sandra... tem o meu marido, eu saí da fila por causa
dele. Eu... não posso.

LUCAS
Eu...não posso.

SANDRA
Sinto muito, Rafael... é uma pena... bem, se algum dia na sua vida você mudar de
ideia, a fila da adoção estará sempre de braços abertos (Ela devolve a “bíblia” para
Rafael).
176

RAFAEL
Obrigado, Sandra. Foi bom falar com você de novo. Me trouxe boas lembranças...

LUCAS
Ele quase foi pai de verdade...

SANDRA
Qualquer coisa estamos aqui.

RAFAEL
(Rafael se levanta para sair, apertam as mãos. No que está indo embora, hesita).
Sandra!

SANDRA
Sim?

(Enquanto Rafael pergunta sobre o menino que ele teria adotado, Lucas encontra na
pasta uma foto de Rafael com o menino).

RAFAEL
Aquele menino... o Daniel...

LUCAS
(Acha a foto de Rafael com o menino) Daniel...

SANDRA
Sim sim, foi adotado sim. E lembre: se você quiser voltar pra fila...

RAFAEL LUCAS

Eu não consigo... Eu não consigo...

(Lucas recoloca a pasta onde havia encontrado. Joga o resto da maçã no lixo, e se
dirige à porta e sai de casa)
177

SANDRA

Rafael!

(Lucas e Rafael hesitam ao mesmo tempo. Rafael volta e olha para Sandra, Lucas
para a pasta sobre a mesa)

RAFAEL
Sim?

SANDRA
Se isso tudo for real, uma boa maneira de ajudar é lutar por políticas de saúde... pra
que no futuro todos possam ter direito a isso que você está falando.

RAFAEL
Obrigado, Sandra.

(Black out)

CENA 17 – semana 24

(Cris e Pedro estão no ultrassom morfológico, de 24 semanas. O exame acontece no


centro do proscênio. Cris está na maca, Pedro ao seu lado. A médica fazendo o
exame)

CRIS
Como ele está, doutora?

MÉDICA
Interessante... Há marcadores que a gente esperaria que estivessem alterados... mas
não estão.
178

CRIS
Como assim?

MÉDICA
Na síndrome de Down a gente espera algumas coisas como fêmur mais curto... mas
o do seu bebê tem tamanho regular... o ossinho nasal também está maior do que o
esperado. E isso que estou olhando agora... só um momento, eu realmente preciso
me concentrar aqui... só uns minutos...

(Um breve silêncio)

CRIS
Mas ele tá bonzinho, né?

MÉDICA
Sim, sim, Dona Cristina, por favor, um minuto aqui...

(Vai tirando medidas do feto. Finaliza o exame)

Vocês querem saber o sexo?

PEDRO
Sim!

MÉDICA
É um menino!

CRIS
Eu sabia!

PEDRO
Menino!!!

(A imagem do bebê está congelada na tela)


179

MÉDICA
É interessante. Sabemos que o bebê tem síndrome de Down, que o coraçãozinho vai
ter que ser operado. Mas tem outros marcadores... as medidas de cérebro, sistema
nervoso... estão todas dentro de padrões considerados normais.. Os ossos, mesmo a
medida da nuca do bebê, está no limite mas não está acima do valor de uma criança
típica... não há inchaço nos rins...

PEDRO
Mas o que isso quer dizer?

MÉDICA
Quer dizer que ele está ótimo! Não me entendam mal, nada disso significa que o bebê
não tenha a síndrome. Ele tem. Mas vejam como é a natureza. Ninguém é igual a
ninguém... não existe um padrão... o bebê está bem, quero que fiquem tranquilos.
Tamanho ótimo, peso ótimo. Tudo indica que ele estará bem forte para o procedimento
do coração! Parabéns!

PEDRO
Obrigado, doutora!

MÉDICA
Vejo vocês na trigésima quinta semana... pra olharmos melhor o coração, mais perto
do parto. A obstetra já disse a vocês que será uma cesárea, certo? Por causa do
coração.

CRIS
Sim, ela disse.

PEDRO
Obrigado!
(Saem do exame. Cris e Pedro voltam para casa conversando. Atravessam o palco
em direção ao apartamento)

CRIS
Engraçado, Pedro... fizemos o exame, nada mudou... sabemos que o bebê tem
180

Down... mas sei lá... eu estou me sentindo diferente. Acho que me enchi de esperança.

PEDRO
Eu fiquei assim também!

CRIS
Ver o bebê tão bem formado, tão perfeito... nunca pensei que fosse dizer isso... mas
ele é perfeito! Todo bonitinho, cada dedinho... perfeito!

PEDRO
Senti a mesma coisa...

CRIS
Pedro... temos um bebê perfeito! Perfeito do jeito que ele é! Quero ir pra casa, quero
começar a montar o quartinho!

PEDRO
Que bom, Cris!

CRIS
Pedro... o nome dele... pode ser Arthur?

PEDRO
Claro que pode!
(Se abraçam, ainda na rua. Black-out)

CENA 18 – semana 26
(É de manhã. Rafael levanta e encontra Lucas já preparando o café, na cozinha. Lucas
já está praticamente pronto para sair, seu paletó na cadeira e a gravata já no pescoço,
ainda para dar nó)

RAFAEL
Bom dia!
181

LUCAS

(Friamente) Bom dia.

RAFAEL
Nossa, Lucas, o que deu em você? Que bom dia é esse?

LUCAS
Me deixa, Rafael.

RAFAEL
Eu heim? Faz duas semanas que você está um congelador. O que é que tá
acontecendo?

LUCAS
Eu é que te pergunto!

RAFAEL
Do que você tá falando?

LUCAS
Esse tempo todo eu tô só te observando.

RAFAEL
Então tem alguma coisa que você tá me escondendo faz DUAS SEMANAS?

LUCAS
Sabe lá quanto tempo faz que VOCÊ está me escondendo algo, Rafael. (Lucas abre
a gaveta de Rafael e tira a pasta da adoção de dentro) Você deixou isso em cima da
mesa de propósito. Você queria que eu visse isso?

RAFAEL
Você andou fuçando as minhas coisas!
182

LUCAS
Você deixou em cima da mesa!

RAFAEL
Então como é que você sabe que depois eu coloquei nessa gaveta?

LUCAS

Tá, fucei suas coisas. Olha o ponto que a gente chegou, Rafa.

RAFAEL
Lucas... Eu só quis falar com a assistente social que me atendeu naquela época.
Queria saber qual é a real sobre crianças com Down que vivem em abrigos. Eu só
queria saber se tinha um jeito de ajudar alguém.

LUCAS
Ajudar?

RAFAEL
Custear um tratamento pra uma criança.

LUCAS
Já não basta você querer interferir na vida e nas escolhas da Cris, agora vai querer
virar super-herói? Todas as crianças com Down do mundo agora são sua
responsabilidade? Que infantil, Rafael!

RAFAEL
Você me deixou sem escolha, Lucas... Não teve nem conversa... você foi entrando na
minha vida sem dar pra gente a menor oportunidade de pensar num futuro que
envolvesse um filho...

LUCAS
Você topou, Rafa...
183

RAFAEL
Eu me apaixonei por você...

LUCAS
Você desistiu muito rápido, não acha? Por causa de um cara que você conhecia há
poucos meses... eu nunca achei que essa adoção pudesse ser assim tão importante...
senão seria o contrário, você desistiria de mim e continuaria com o processo de
adoção!

RAFAEL
Que injustiça, Lucas! Com os meus sentimentos!

LUCAS
Não acho que você queria de verdade.

RAFAEL
Era muito importante sim! E você também era importante, ainda é! Você está
desprezando o quanto eu me apaixonei, tá desprezando o fato de que foi um sacrifício
sim abrir mão do meu sonho!

LUCAS
Não diz que abriu mão de nada pra ficar comigo! Não joga esse peso nas minhas
costas, eu nunca te pedi nada!

RAFAEL
Eu tentei algumas vezes conversar com você a respeito, tentei te mostrar como seria
bom a gente adotar...

LUCAS
Chega, Rafa! Eu nem te reconheço mais!

RAFAEL
Eu não sei que que está acontecendo... esse bebê que vai chegar me faz todo dia
lembrar do quanto eu sempre quis ser pai... e então me apaixonei por você... e eu
mergulhei no teu sonho, que era diferente do meu, Lucas.
184

LUCAS
Por favor, coloca a cabeça no lugar... esquece disso tudo...

RAFAEL
Lucas, eu preciso pensar.

LUCAS
O que você quer? Quer que eu vá embora?

RAFAEL
Não! Eu quero as duas coisas...

# 10 – O MELHOR DOS DOIS MUNDOS

O QUE EU QUERO É O MELHOR DOS DOIS MUNDOS


ISSO É TUDO O QUE EU QUERO PRA NÓS
E ACREDITE, POR NENHUM SEGUNDO
VOU DEIXAR ISSO PARA DEPOIS
O AMOR QUE EU TENHO EM MIM
NÃO SE DIVIDE EM DOIS

VOCÊ É O QUE EU SEMPRE SONHEI


NADA PODE TOMAR TEU LUGAR
MAS EXISTE UM AMOR DIFERENTE
QUE NÃO POSSO MAIS NEGAR
ESSE FILHO QUE É O MEU SONHO
E QUE HOJE EU POSSO AMAR

EU PRECISO VIVER ISSO COM VOCÊ


É POSSÍVEL... SE A GENTE PERMITIR
EU PREFIRO QUE ESSE AMOR VENHA NOS REDIMIR
BASTA ABRIR O CORAÇÃO
E SENTIR...
185

É MAIS FORTE DO EU QUE IMAGINEI


E, CONFESSO QUE ATÉ TENTEI FUGIR
MAS A VIDA ME TROUXE DE VOLTA
MESMO SEM PEDIR

LUCAS, TENTE ME COMPREENDER


O QUE TENHO NO MEU CORAÇÃO
É PRA DIVIDIR SÓ COM VOCÊ
É MAIS SIM DO QUE NÃO
BEM MAIS FÁCIL DO QUE VOCÊ PENSA
ME ESTENDA A MÃO...

LUCAS
Isso é impossível, Rafa. (Pega seu paletó e sai pro trabalho)

RAFAEL
Lucas!

(Underscore entra)

(Indo atrás de Lucas, que não volta) Lucas... (Desiste. Emocionado, esconde o rosto
com as mãos)

(Black-out)

CENA 19 - semanas 27 a 38

# 11 - NÚMERO MUSICAL – SABER ABRIR O CORAÇÃO


(Neste número vemos a passagem do tempo. Durante o número vemos Cris e Pedro
trazendo coisas para casa, abrindo pacotes, vendo roupinhas. Conforme entram e
saem de cena, a barriga de Cris vai crescendo. Ao final do número ela já apresenta
uma barrigona)

(Cris e Pedro estão no quartinho do bebê, estão pendurando uma cortina, felizes. Cris
mostra uma barriga de 27 semanas)
186

PEDRO
Segura a escada pra eu descer!

CRIS
Ficou linda, a cortina!!!

PEDRO
Ficou ótima!

(Se abraçam)

CRIS E PEDRO
VAMOS COMEÇAR!
PRA TE RECEBER
EU QUERO TUDO ARRUMAR!
QUERO QUE VOCÊ
SINTA NOSSO AMOR QUANDO CHEGAR!
VEM QUE É PRA MUDAR A NOSSA VIDA...
NESSE BERÇO E NO MEU COLO, TUA VIDA VAI PULSAR!

VEM ARTHUR!
VEM PRA REVELAR O TEU SEGREDO
VEM PRA SEGURAR NA MINHA MÃO!
É A TUA VIDA QUE VAI ME ENSINAR
SABER ABRIR O CORAÇÃO!

RAFAEL
(Em seu apartamento, ainda pesquisando na internet, Rafael descobre uma clínica
em São Paulo que oferece cuidado semelhante à clínica dos EUA)

EU PRECISO ACHAR
ALGUMA MANEIRA QUE ELA POSSA ACREDITAR
TUDO O QUE EU ESTUDEI
187

A CRIS PRECISA ACEITAR

Espera aí! Caramba, uma clínica em São Paulo? Esse lugar... Parece que... Uau!

VOU LIGAR!
PRA SABER SE ELES FAZEM O QUE EU ESTUDEI
SE OFERECEM ESSE JEITO DE TRATAR
PODE SER QUE ESSA SEJA A SOLUÇÃO!

(Pega o telefone e liga) Alô?

(Cris e Pedro estão em casa recém-chegados, cheios de sacolas de lojas de bebês.


Cris com barriga de 30 semanas. Cris abre um pacote e tira de dentro uma roupinha)

CRIS
ELE VAI FICAR
TÃO MARAVILHOSO, UMA GRAÇA NESSA COR!

PEDRO
ONDE COLOCAR ESSE XALE?

CRIS
COM O COBERTOR!

RAFAEL
(Underscore segue)

(Entrando no apartamento de Cris) Pessoal, eu achei! Achei um lugar bem aqui, em


São Paulo! Eles estão fazendo os procedimentos que a gente tem estudado!

PEDRO
Em São Paulo?

RAFAEL
Sim!!!
188

PEDRO
Cris! A gente tem que ir conhecer...

RAFAEL
Por favor, irmã... pelo Arthur... eu te garanto que você não vai se arrepender!

CRIS
Ai gente, será? Quem são esses médicos?

PEDRO
Vai que realmente dá certo... vamos tentar!

RAFAEL
Minha intuição tá bem forte...

É SÓ ABRIR O CORAÇÃO!

CRIS
(Hesita por um momento. Ela olha a roupinha que está em suas mãos e pensa) Está
bem!!!!

(Os três se abraçam)

CRIS, PEDRO E RAFAEL


HOJE COMEÇA A GRANDE AVENTURA
E NASCE O SOL E ABRE A FLOR
HOJE CONHEÇO A MAIOR TERNURA
DE UM CORAÇÃO LIVRE PRO AMOR!

LUCAS

(Lucas sozinho no apartamento)

A CHEGADA DE UMA CRIANÇA


189

É MAIS FORTE QUE QUALQUER RAZÃO


ME PERGUNTO SE O MEU NASCIMENTO
FOI MOTIVO DE CELEBRAÇÃO
NA MEMÓRIA GUARDEI SÓ AS DORES
FECHEI MEU CORAÇÃO...

PEDRO E CRIS
(Estão na nova clínica, em São Paulo, recebendo orientações da equipe
multidisciplinar. Cris e Pedro estão sentados em frente a dois médicos, que olham
cautelosamente vários exames trazidos pelo casal. Cris apresenta barriga de 32
semanas)

VOU CONFIAR
QUE EXISTE UMA CHANCE DE MUDAR
DE OFERECER CUIDADOS
QUE VÃO AJUDAR
O ARTHUR
A VIVER MELHOR A VIDA,
HOJE EU VOU CONFIAR!

MÉDICO 1
Há uma importância muito grande de iniciar estes cuidados ainda na gravidez... as
pesquisas mostram uma grande diferença na criança, perceptível já no ato do
nascimento... a senhora deverá tomar estas duas cápsulas uma vez ao dia, conforme
indicado aqui na receita (Estende a receita médica para o casal, Pedro pega o papel)

MÉDICO 2
Estamos muito felizes de poder ajudar vocês, é raro podermos iniciar um tratamento
com o bebê ainda na barriga, mas isso fará uma diferença enorme para ele... parabéns
a vocês dois...

MÉDICO 1
Vamos acompanhar você de perto, Cristina, até o parto. Vamos monitorar tudo desde
já. Assim que o coraçãozinho for resolvido, vamos iniciar um programa de
suplementação para o Arthur. Parabéns a vocês por procurarem ajudar o Arthur desde
190

já!
(Todos se levantam e se despedem. Pedro e Cris saem do consultório)

PEDRO
Devemos isso ao Rafa...

(Rafael está na rua. Lucas está em seu apartamento)

LUCAS E RAFAEL
SE EU PUDESSE ESQUECER DA DOR
E VIVER DE ILUSÃO
SE EU QUISESSE SÓ TE PROPOR
DISSOLVER A QUESTÃO
E COMEÇAR NOVAMENTE
SEM NENHUM PROBLEMA
SEM NUNCA FERIR
MAS EU SÓ SINTO A DISTÂNCIA
AUMENTAR CADA DIA
TE SINTO PARTIR

(Cris está no quartinho de Arthur. Pedro entra e estende para Cris a cápsula
receitada pelos médicos, e um copo de água)

PEDRO
VEM, AGORA É PELO ARTHUR
É HORA DE TOMAR
A PRIMEIRA DOSE DE ESPERANÇA
VEM TOMAR...

(Cris pega o copo e a cápsula e toma. Eles se olham e colocam as mãos na barriga
sentindo a presença de Arthur)

RAFAEL

(Em seu apartamento)


191

ELA ACEITOU AJUDA


E ISSO TUDO MUDOU...
MAS AQUI DENTRO
MEU VAZIO PIOROU
E O SENTIMENTO
DE QUE ALGO QUEBROU
EU TENHO MEDO
DE PENSAR SE ACABOU...

LUCAS

(No proscênio)

CADA DIA MAIS DISTANTE DE VOCÊ


EU QUERIA
PODER ENTENDER PORQUE
MAS TEM ALGO QUE GRITA MAIS ALTO
AQUI DENTRO DE MIM

LUCAS E RAFAEL
ESTOU COM MEDO DO FUTURO
MAS SEI DO QUE EU QUERO PRA MIM
TÔ APOSTANDO NO ESCURO
DIZENDO NÃO EM VEZ DE SIM
EU DEDIQUEI CADA SEGUNDO
PRA ESSE AMOR CONTINUAR
MAS OUTRO SONHO ADORMECIDO
VEM DO PASSADO PRA ASSOMBRAR!

PEDRO E CRIS E RAFAEL


(No apartamento, terminando de montar o bercinho de Arthur. Barriga de Cris 35
semanas)
192

TUDO NO LUGAR!
JÁ TÁ TUDO PRONTO
SÓ PRECISA ELE CHEGAR!
PRA TE RECEBER
BASTA ABRIR A PORTA E ENTRAR!
VEM QUE É PRA MUDAR A NOSSA VIDA!
EU SÓ QUERO TEU ABRAÇO, QUERO VER O TEU OLHAR!
VEM ARTHUR!

LUCAS

(Em seu apartamento)

ELE VEM PRA MUDAR TUDO


EU NÃO VOU AGUENTAR
VAI SER SÓ PRA ELE A ATENÇÃO
EU QUERIA TANTO CONSEGUIR MUDAR
SABER ABRIR MEU CORAÇÃO

Mas...não! (Sai)

CRIS, PEDRO, RAFAEL


ELE VEM PRA MUDAR TUDO
VEM PRA ENSINAR
ME FAZER BOTAR OS PÉS NO CHÃO
SÓ UMA CRIANÇA E VAI ME MOSTRAR
SABER ABRIR MEU CORAÇÃO!
(Black-out)

CENA 20

(Rafael entrando em seu apartamento, encontra Lucas na sala)


193

RAFAEL
Tá em casa? Nem te vejo mais por aqui...

LUCAS
Rafael, a gente tá realmente precisando conversar... tem semanas que essa casa tá
fria, a gente distante, cada um no seu mundo... não dá pra ficar assim...

RAFAEL
A gente precisa mesmo conversar, eu sei...

LUCAS
Você essas semanas todas só nesse computador... ou lá no quartinho do Arthur.

RAFAEL
Lucas, eu só sei que amo você. Não sei mais o que te dizer. Sei que precisa de
conversa, mas tem conversa? Ou você não vai ceder?

LUCAS
E você, Rafa? Não vai cumprir o combinado? Você sabe da minha decisão.

(O telefone toca. Rafael olha a tela)

RAFAEL
Lucas, é o Pedro.

LUCAS

(Sem acreditar) Tudo bem, atende.

RAFAEL
Alô, Pedro?

(Luz abre no proscênio, foco em Pedro, que fala ao celular com Rafael)
194

PEDRO
Rafa? Eu tô com a Cris na maternidade... a bolsa dela estourou, a médica dela pediu
pra gente vir pra cá.

RAFAEL
Meu Deus! Ok, ok! A gente já vai! Tá tudo bem?

PEDRO
Tá um pouco tenso, depois que ele nascer vão levar o Arthur pra UTI por causa do
coraçãozinho...

RAFAEL
Eu já tô indo pra aí!

(Desligam. A luz se apaga em Pedro)

Lucas, o bebê está chegando! O Pedro ligou pra gente ir pra maternidade!

LUCAS
Rafa, eu... vai você. Eu não vou.

RAFAEL
Como assim?

LUCAS
Vai lá, Rafa. É importante pra você. Numa boa. Esse momento é de vocês, não é meu.

RAFAEL

# 12 – MELHOR DOS DOIS MUNDOS - REPRISE

POR VOCÊ EU ATÉ FICARIA


MAS AGORA CHEGOU O ARTHUR
195

NESSE DIA COMEÇA A JORNADA


DESSE SER PEQUENINO DE LUZ
EU ESPERO QUE VOCÊ ENTENDA...

Eu... eu tenho que ir. Me desculpa. (Sai apressado)

CENA 19

# 13 - ALGO EM MIM - TRIO

LUCAS
ACHO QUE ACABOU
COMO ÁGUA PELOS DEDOS
VOCÊ ME ESCAPOU
REVELANDO OS MEUS MEDOS
VOCÊ FOI VOAR
FOI VIVER DE UM SONHO LIVRE
POR ACREDITAR
NO AMOR DESSA CRIANÇA
QUE HOJE VAI CHEGAR..
ELE VAI CHEGAR...
ESSE CORAÇÃO QUE BATE
VAI FAZER TUDO MUDAR
EU NÃO SEI SE POSSO RESOLVER
ALGO EM MIM SENTE O QUE VAI ACONTECER...

PEDRO

(Luz se abre em Pedro no proscênio)

JÁ VAI COMEÇAR
A AVENTURA DA EXISTÊNCIA
QUE VAI ME ENSINAR
A ENCONTRAR A MINHA ESSÊNCIA
196

VOCÊ VEM VOAR


VEM VIVER UM SONHO LIVRE
QUERO ACREDITAR
NO AMOR DESSA CRIANÇA
QUE HOJE VAI CHEGAR...
ELE VAI CHEGAR...
ESSE CORAÇÃO QUE BATE
VAI FAZER TUDO MUDAR
EU SÓ QUERO AMAR SEM ME DETER
ALGO EM MIM SENTE O QUE VAI ACONTECER...

RAFAEL
(Na diagonal oposta ao seu apartamento, na lateral/centro)
UMA CRIANÇA ESTREIA HOJE
NO PALCO DA VIDA
ELE CHEGA PRA ME ENCONTRAR AQUI
SOU COM ELE ALGUÉM QUE AMA
SEM SABER PORQUE...
MAS ALGO EM MIM SENTE O QUE VAI ACONTECER...

LUCAS, PEDRO E RAFAEL


JÁ VAI COMEÇAR
VEM RASGANDO SEM PIEDADE
SÓ PRA ME MOSTRAR
QUE AMOR NÃO TEM IDADE
O QUE VEM TUDO MUDAR
É APENAS UM BEBÊ
QUE CHEGA A REVELAR
TUDO AQUILO QUE DESEJA
CADA CORAÇÃO
CADA CORAÇÃO
A VERDADE VEM TRAZER
NINGUÉM VAI PODER ESCONDER...
197

LUCAS
POR OUTRAS ESTRADAS

PEDRO
A PARTIR DE HOJE

RAFAEL
É OUTRA CAMINHADA

LUCAS
AINDA QUE EU NÃO QUEIRA

PEDRO
PR’UMA VIDA INTEIRA

RAFAEL
TUDO POR VOCÊ...

(A canção é interrompida pelo choro de um bebê que nasce)

LUCAS, PEDRO, RAFAEL


ALGO EM MIM SENTE O QUE VAI ACONTECER.

CENA 20 – semana 41

(Cris, Pedro e Rafael entram no apartamento trazendo o bebê consigo. O bebê está
nos braços de Cris. Pedro abre a porta do apartamento, Rafa vem atrás trazendo uma
mala e o carrinho, assim como sua “bíblia”)
CRIS
Ei, nenê... essa é a sua casa!

PEDRO
Bem-vindo, filho!
198

CRIS
Ah que bom, filho, que você está com a gente em casa... que alívio...
(Cris coloca o bebê no carrinho e se senta com um pouco de dificuldade)

RAFAEL
Gente, acho que vou pedir um delivery pra gente, 23 dias comendo no hospital não
dá...

PEDRO
E você não arredou o pé de lá, o tempo todo sentado naquele sofazinho da sala de
espera...

RAFAEL
Não tinha jeito de sair de lá, o Arthur na incubadora por 20 dias...

CRIS
Agora já passou a fase um, graças a Deus. O Arthur tá forte e vai segurar bem a onda
até o dia da cirurgia...

RAFAEL
(Pega Arthur no colo) Meu meninão! O tio Lucas vai chegar já já pra te conhecer...

CRIS
Ele não quis vir na maternidade...

RAFAEL
Ele nunca iria ver um bebê numa UTI, Cris... Mas ele deve estar chegando.

(A campainha toca. Pedro abre a porta para Lucas)

PEDRO
Lucas! Que bom, finalmente você vai conhecer o Arthur!
199

# 14 – NÚMERO FINAL - DORME

(Underscore começa)

(Lucas entra e vê Rafael segurando o bebê em seus braços. A cena é forte pra ele.
Lucas se aproxima devagar)

RAFAEL
Oi, Lucas, esse é o Arthur.

LUCAS
(Meio desajeitado) Oi, Arthur. Oi Rafa (Se olham profundamente)

CRIS
(Estendendo o álcool gel) Você quer segurar o Arthur?

LUCAS
Não, não, eu não levo muito jeito com essas coisas...

PEDRO
O Rafa está craque já, parece que nasceu pra isso!

(A fala de Pedro constrange um pouco Rafael e Lucas, que se entreolham. Cris


percebe o desconforto dos dois)

CRIS
Rafa, você deve estar muito cansado... está praticamente sem sair do nosso lado
todos esses 23 dias... dormindo poucas horas... vai descansar agora, o Arthur está
ótimo... e vocês dois não se veem direito faz semanas...

RAFAEL
Tá, a gente se fala daqui a pouco de novo então. (Rafael vai indo para a porta levando
Arthur consigo, e se dá conta) Ah, o Arthur! (Coloca o bebê nos braços de Cris) Tchau,
nenê...
200

LUCAS
Vamos pra casa, Rafa? Você tem que descansar.

(Rafael e Lucas saem em direção ao seu apartamento. Conforme a luz se abre no


apartamento deles, a resistência cai um pouco no apartamento de Cris e Pedro, mas
ainda vemos o casal em movimento pela casa, com o bebê.

(Underscore segue)

CENA 21

RAFAEL
Nossa, eu tô muito quebrado.

LUCAS
Agora você vai descansar.

RAFAEL
Senti sua falta esses dias... foi tudo muito intenso lá...

LUCAS
Eu imagino, você só pisou em casa de três em três dias pra tomar um banho...

RAFAEL
Eu tenho que deitar...

LUCAS
Vai! Eu já vou. Vou ajeitar alguma coisa pra você comer...

RAFAEL
Você traz pra mim no quarto? Tô muito exausto.

LUCAS
Claro.
201

(Rafael vai para o quarto e se deita na cama. Lucas vai para a cozinha para preparar
um sanduíche para Rafael)

(A luz volta a abrir nos dois apartamentos)

CRIS
DORME FILHO MEU
DESCANSA
E SONHA ALTO
ESSE TEU SONHO DE CRIANÇA

PEDRO
ESSE MUNDO É TEU
ESSA DANÇA
ELE TE ESPERA
CHEIO DE NOVA ESPERANÇA

CRIS E PEDRO
SÓ QUERO ESTAR AQUI
TE AMAR SEM NENHUM MEDO
SÓ QUERO QUE ESSE AMOR
SEJA UM CAMINHO SEM SEGREDO

CRIS
‘’ DORME FILHO MEU

PEDRO
DORME FILHO MEU

CRIS E PEDRO
SÓ QUERO ESTAR AQUI
TE AMAR SEM NENHUM MEDO
SÓ QUERO QUE ESSE AMOR
SEJA UM CAMINHO SEM SEGREDO
202

CRIS
DORME FILHO MEU

PEDRO
DORME FILHO MEU

CRIS E PEDRO
DORME FILHO MEU...

(Resistência cai no apartamento de Cris e Pedro, que ainda embalam Arthur e devagar
o levam para seu berço. A resistência vai abrindo devagar no apartamento de Lucas
e Rafael)

LUCAS

(Canta a preparar o sanduíche, sem perceber que Rafael já não ouve mais pois já
adormeceu)

SABE, MEU AMOR


VOCÊ FEZ FALTA CADA DIA QUE PASSOU
MAS EU PRECISO TE DIZER QUE ALGO AQUI MUDOU.
DEPOIS DO SONO A GENTE TEM QUE CONVERSAR...
FOI BOM SABER QUE O ARTHUR
TEVE O TEU COLO E O TEU AMOR TODO ESSE TEMPO
MAS QUANDO A CASA ESVAZIOU
EU PUDE REFLETIR DIREITO SOBRE NÓS...

(Ele vai para o quarto e chega perto de Rafael, trazendo o sanduíche numa bandeja)

LUCAS
Rafa? Rafa? (Percebe que Rafael adormeceu)

LUCAS
DORME AMOR MEU
203

PRESENTE TÃO MARAVILHOSO QUE EU SEMPRE QUIS...


MAS EU NÃO POSSO TE IMPEDIR
DE SER FELIZ

(Lucas vai até a mesa do escritório. Coloca a bandeja sobre a mesa. Pega uma folha
de papel e escreve)

LUCAS
SÓ QUERIA ESTAR AQUI
TE AMAR SEM NENHUM MEDO
SÓ QUERIA QUE ESSE AMOR
FOSSE UM CAMINHO SEM SEGREDO

CRIS E PEDRO
DORME FILHO MEU

LUCAS
DORME AMOR MEU

CRIS E PEDRO
DORME FILHO MEU

CRIS E PEDRO LUCAS


DORME FILHO MEU DORME AMOR MEU

LUCAS
DORME MEU AMOR
FOI POR VOCÊ QUE QUIS CURAR CADA FERIDA
PORÉM EU SINTO QUE ESSA É A HORA DA PARTIDA...
FOI SÓ UM SONHO SEGURAR NA TUA MÃO...
SEGUE A VIDA EM PAZ
EU JÁ NÃO POSSO SER A PEDRA NO CAMINHO
EU SEI QUE EXISTE O TEU DESEJO
ENTÃO PRECISO RESOLVER POR NÓS DOIS...
204

(Lucas abre a gaveta de Rafael e tira de lá a pasta do antigo caso de adoção. De


dentro, tira o cartão de visitas da assistente social. Ele coloca a pasta na bandeja, ao
lado do sanduíche, com o cartão em cima)

LUCAS
ENTENDA ESSA PARTIDA
COMO A PORTA PRO FUTURO...
TE DEIXO TODO MEU AMOR
E A VIDA LIVRE PRA ESSE SONHO...

(Lucas dobra a carta, coloca na bandeja. Volta para o quarto e coloca a bandeja
sobre a cama, ao lado de Rafael)

LUCAS
DORME AMOR MEU

CRIS E PEDRO
DORME FILHO MEU

LUCAS CRIS E PEDRO


DORME AMOR MEU DORME FILHO MEU

DESCANSA
POIS O AMOR AGORA É UMA CRIANÇA

DORME AMOR MEU DORME FILHO MEU

DESCANSA
É NECESSÁRIO DESPERTAR ESSA MUDANÇA

LUCAS
SEGUE A VIDA EM PAZ
EU FAÇO ISSO POR VOCÊ
205

CRIS E PEDRO
VOCÊ É MINHA PAZ
E MINHA FORÇA DE VIVER

LUCAS
(Apagando a luz no quarto de Rafael enquanto Cris e Pedro diminuem a luz no quarto
do bebê e sentam no sofazinho do quarto de Arthur)

TENTE ME COMPREENDER, POR DEUS

CRIS E PEDRO
VOCÊ É A LUZ DOS OLHOS MEUS...

LUCAS
ADEUS.

(Cris e Pedro se sentam no sofazinho abraçados. Lucas pega uma mochila que
estava atrás do sofá, já pronta. Sai do apartamento. Quando ele fecha a porta atrás
de si, black-out)

FIM
206

3.3.2. Narrativa

A história é o que acontece e o enredo é o porque acontece. Já a narrativa é como se


conta o que acontece. Em um musical, o modo de contar a história envolve música e
canções, a voz musical, o que terá underscoring86 e o que não, quem cantará qual
trecho musicado. Todas as decisões tomadas pelo autor compõem a narrativa,
inclusive a linguagem estética e corporal da encenação.
No caso do teatro musical, ainda se deve considerar as questões próprias da
linguagem desse estilo: é necessário atravessar a quarta parede e aproveitar as
liberdades do grande palco. A linguagem teatral precisa ser aberta: os solilóquios
devem atravessar a quarta parede e se direcionarem diretamente ao público. As
canções e os underscores devem ser os veículos que elevam o nível emocional de
determinados momentos do espetáculo para além da emoção do diálogo falado. A
dança pode estar presente como parte integrante da narrativa. Esse é o momento em
q todas as coisas se unem e formam um espetáculo integrado.
Uma vez que tudo o que diz respeito à música faz parte da narrativa, descreve-se a
seguir a criação das canções de 47 – O Musical.

3.3.2.1. A criação da música de 47 – O Musical

O processo de criação musical teve início só depois que o texto dramático e letras
haviam ficado prontos. Até esse ponto, a equipe criativa envolvia apenas a autora e
os atores.
Foi feito o convite para o compositor e maestro Danilo Demori, para unir-se à autora
na composição dos números musicais. A grande maioria do song spotting já havia sido
definida pela equipe inicial, antes da chegada de Danilo Demori ao processo, mas
apenas após o início de sua participação as letras originalmente escritas para as
canções receberam alterações, conforme as propostas melódicas foram surgindo.
Antes de dar início ao processo de composição, Danilo Demori participou de duas
leituras dramáticas do texto já finalizado. Contudo, na última leitura que contou com
sua participação, houve a percepção de que havia um lugar do texto em que ainda

86
Underscoring – Vide 3.2.2.6.1.
207

faltava uma canção. A convidada Juliana Hilal abordou o assunto e fez a sugestão,
que pareceu ótima para todos.
No dia seguinte a letra da canção foi concebida e poucos dias depois, com todas as
letras prontas, foi dado início ao processo de composição, que se deu nas seguintes
etapas:

x Definição da Voz Musical do espetáculo


O primeiro encontro durou quase um dia inteiro de discussões a respeito de vários
aspectos ligado à obra e músicas. O primeiro ponto de definição foi a respeito da voz
musical do espetáculo. Os quatro personagens centrais têm a mesma faixa etária,
quarenta, quarenta e poucos anos. Decidiu-se buscar referências dentre artistas que
essa geração teria escutado. Após um levantamento, foi decidido fazer uma escuta de
composições de Billy Joel, Jason Robert Brown, Elton John, Roupa Nova, Guilherme
Arantes, Asia, Duran Duran, inúmeras trilhas sonoras de comerciais de televisão dos
anos 1980. Através destas sonoridades, as primeiras ideias de temas musicais
começaram a despontar.

x Song spotting e arco dramático das canções


Após o esclarecimento de qual seria a voz musical do espetáculo, o passo seguinte
foi garantir que as canções movessem a ação dramática adiante. Para tanto, foram
revisadas as letras e lugares do espetáculo onde as canções aparecem.
O terceiro ponto foi garantir que as canções representassem uma linha de sustentação
da narrativa, que cada uma delas movesse adiante a história, sem ‘parar’ o
espetáculo. Para tanto, no processo de song spotting definiu-se que cada etapa do
arco de personagem ganharia um número musical, como a seguir:

1- Gancho – Número de abertura – “Livre Pro Amor”


No que diz respeito às funções dramáticas do Gancho, aqui os personagens são
apresentados em seu Mundo Comum. Quem são, o que fazem, com quem se
relacionam, o que pensam que querem. Qual a estabilidade aparente que será
desmoronada.
O número de abertura também move a ação adiante: em seu início Cris ainda está
prestes a descobrir que está grávida, durante o número ela descobre esse fato, e ao
fim do número ela já está no papel de mãe, assim como Pedro no papel de pai.
208

O personagem Lucas é apresentado como advogado defensor de crianças que sofrem


abuso, Rafael é apresentado como um escritor fazendo seu doutorado.
Os quatro personagens são mostrados em um mundo estável, onde tudo aparenta
estar no lugar.

2- Evento Mobilizador – “Pra Não Pensar em Mim” e “Uma Criança a Brincar”


O Evento Mobilizador desse musical é a gravidez de Cris. É o gatilho que promove a
primeira instabilidade, a novidade. Pedro e Cris já não são mais apenas um casal,
agora eles são pai, mãe e filho. A notícia da chegada de um bebê desestabiliza Rafael,
que entra em contato com aquilo que tentou sufocar por tanto tempo: o desejo de ser
pai.
“Pra Não Pensar Em Mim” mostra que Rafael está escondendo algo de si próprio,
existe algo que ele não quer encarar de frente: o desejo reprimido de ser pai.
Em “Uma Criança a Brincar”, Rafael declara que seu sonho de ser pai foi sufocado
pelo casamento, mas que a vinda do bebê de Cris poderá fazê-lo renascer.

3- Evento-chave – “Pro Que Der e Vier”


O Evento-chave deste musical é a descoberta de que o bebê de Cris provavelmente
tem síndrome de Down.
Na canção Pro Que Der e Vier Cris se move do susto de receber a notícia e da recusa
da situação para declarar que precisa encontrar novamente o amor prometido ao
bebê. Nesta canção ela diz que fará o que puder pelo bebê.

4- Ponto Inicial da Trama –“Vem Me Ensinar”


O Primeiro Plot Point desse musical é apresentado quando Lucas sugere a
necessidade de um aborto. Os pais Cris e Pedro chegam a pensar no caso, mas ao
sentirem o bebê se mexer na barriga pela primeira vez eles decidem pela vida.

5- Primeira Dificuldade – “Isso não!”


Cris pede ajuda de Rafael para estudar sobre a síndrome de Down pois ela não tem
forças para fazer isso sozinha. Está de luto. Rafael se compromete a ajudar, mas tudo
isso faz com que ele chegue cada vez mais perto da sua verdade pessoal. Na canção
Isso Não! Rafael se responsabiliza por ajudar sua amiga Cris a entender sobre a
209

síndrome de Down. Ele dá o primeiro passo em direção à pesquisa que o levará a


descobrir o tratamento.

6- Ponto do Meio – “Não Posso Nem Acreditar”


Neste número musical Rafael descobre que existe um tratamento personalizado
possível para pessoas com síndrome de Down. Ele fica fascinado pela possibilidade
de que seja possível minimizar bastante problemas de saúde e perdas cognitivas
dessa população. Rafael mergulha numa pesquisa desenfreada, esquecendo de tudo
o mais: tudo o que importa para ele agora é ajudar o bebê que vai nascer.
Rafael começa essa cena meio desesperançoso, sem saber exatamente como ajudar
sua amiga, e termina a cena com o ‘Elixir’ nas mãos.

7- Segunda Dificuldade – “Coração” e “Te Amar”


Cris e Pedro descobrem que o bebê tem uma cardiopatia. Seu foco nesse fato
impossibilita qualquer espaço emocional para entender a respeito de qualquer
possível tratamento para síndrome de Down apresentado por Rafael. Quando Rafael
apresenta ao casal que existe tratamento possível, Cris deixa claro que não vai fazer
nada a respeito. Apesar disso, Rafael demonstra seu apoio ao casal, no que diz
respeito à cardiopatia. Na canção Coração, Rafael sai das nuvens de ter descoberto
o tratamento para colocar os pés no chão e dar apoio ao casal.
Em um segundo momento, Pedro fica curioso a respeito do tratamento e resolve
estudar as coisas reveladas ao casal por Rafael. Ele consegue convencer Cris de que
fazer um tratamento não significa não-aceitação da condição da criança, pelo
contrário. Cris aceita ler sobre o tratamento. Na canção Te Amar o casal se move
emocionalmente do luto à esperança.

8- Terceiro Ponto da Trama – “O Melhor Dos Dois Mundos” e “Saber Abrir o


Coração”
Rafael não está mais suportando conviver com o desejo sufocado de se tornar pai. E
coloca Lucas na parede. Lucas lembra Rafael que sempre deixou muito claro que sua
condição para o casamento seria a ausência de filhos. Na canção O Melhor dos Dois
Mundos Rafael declara a Lucas que ele quer as duas coisas, permanecer casado com
Lucas e adotar com ele um filho. É o ponto em que Rafael demonstra que ainda
acredita ser possível ter o que quer e o que precisa, ao mesmo tempo. Ao fim da
canção Lucas mostra a Rafael que isso não é possível.
210

Já o número musical Saber Abrir o Coração representa uma passagem de tempo de


várias semanas. Durante este número, as personagens movem a ação adiante da
seguinte forma: Cris e Pedro construirão uma relação cada vez mais forte com o bebê
que vai chegar, Lucas perceberá cada vez com mais clareza que o bebê de Cris está
se tornando o foco da vida de Rafael, e Rafael descobrirá uma clínica em São Paulo
que oferece o tratamento para a síndrome de Down e consegue convencer Cris a
aceitar o tratamento, levando sua amiga até a clínica.

9- Climax – “Melhor Dos Dois Mundos – Reprise” e “Algo Em Mim”


O trio Algo Em Mim é introduzido pela pequena reprise de Melhor dos Dois Mundos,
e move a ação da seguinte forma: Nesta canção Lucas aceita para si o fato de que
sua relação com Rafael terminou. Ele deixa de acreditar na possibilidade de
continuarem juntos para aceitar que não há mais espaço para ele na vida de Rafael.
Pedro, por sua vez, se abre emocionalmente mais ainda para receber seu filho que
está chegando. Rafael se entrega ao amor pelo bebê de Cris, que para ele é o que
importa a partir de agora. Ele faz sua escolha.

10- Fim – “Dorme”


A canção final resolve a narrativa, dando o ponto final. Cris e Pedro ninam seu bebê,
agora seu grande amor. Lucas se despede de Rafael, abrindo espaço para que possa
viver seu sonho de ser pai.

x Concepção das canções

1- Número de abertura – “Livre Pro Amor”


O número de abertura tem a intenção de apresentar os quatro personagens centrais.
Apresenta momentos cantados entrecortados por diálogos, com a presença de
underscores. Ao mesmo tempo, o nível elevado de excitação emocional dos
personagens precisa ser mostrado. Esta abertura mostra quatro personagens felizes
e perfeitamente bem acomodados em seu Mundo Comum. A estrutura A – A – B – A –
A – B – A – A – A – A – B foi distribuída entrecortada pelos diálogos.

2- Canção de Transição - “Pra Não Pensar Em Mim”


Esse breve trecho musical foi construído para apresentar o leitmotiv do personagem
principal, Rafael. É o primeiro momento em que este personagem revela que existe
211

algo dentro dele que é desconhecido pelos outros personagens – um segredo. O


trecho musical é propositalmente curto, pois ele fala de seus sentimentos, mas não
quer admiti-los. Apresenta o tema da principal canção dessa personagem, que ainda
não aconteceu, mas aqui se introduz o seu leitmotiv.

3- Solo – “Uma Criança A Brincar”


Nesta canção, Rafael entra em contato com a verdade que vem escondendo de si
mesmo. Buscou-se trazer as lembranças dele de volta num tom sonhador, remetendo
a um sentimento nostálgico. A estrutura A – A – B – A – A – B foi pensada para essa
canção, cuja letra veio em primeiro lugar. Quando a melodia foi feita, apenas algumas
adaptações de letra foram necessárias.

4- Solo – “Pro Que Der e Vier”


Este número solo da personagem Cris é um número longo. O solo é entrecortado por
diálogos várias vezes. Quando ela canta, está falando consigo mesma, e quando
dialoga está interagindo ora com sua médica, ora com Rafael. O número ainda
descreve um arco emocional muito peculiar e importante: a personagem vai da
sensação sublime de ver seu bebê na barriga pela primeira vez até o total desespero
de descobrir que seu bebê tem trissomia do cromossomo 21. Ela vai de um lugar de
absoluta felicidade ao medo do silêncio da médica, ao desespero de descobrir a
verdade e ao lugar de buscar encontrar forças para continuar.
Para descrever esse complexo arco emocional, o número foi estruturado em A – B –
A –B – C, onde “C” será apresentada primeiro em tom maior e depois em tom menor,
já ilustrando a transformação da personagem de um momento feliz a um momento
triste. Os inúmeros underscores que acompanham os diálogos seguem os temas
apresentados nessa estrutura melódica, cujo tema foi desenvolvido a partir de uma
ideia musical inspirada em uma obra instrumental de Diogo Camargo, para piano. A
obra que inspirou o tema é como uma música de criança, que traz uma sensação de
ternura infantil. Exatamente essa sensação é que será distorcida no decorrer da
canção, com a modificação da harmonia.

5- Dueto – “Vem Me Dizer”


Neste dueto, Cris e Pedro decidem que não farão o aborto e vão ter o bebê. A canção
apresenta dois momentos distintos: no primeiro a preocupação do casal é mostrada,
quando eles pedem ao bebê que lhes diga se ele quer vir, se quer viver. Durante o
212

breve underscore de transição, o casal sente o bebê se mexendo na barriga pela


primeira vez, e percebem isso como sua resposta. Ao decidirem ficar com a criança,
a canção é levada de um tom de preocupação para um de esperança. Para descrever
esse arco cancional, foi determinada a estrutura A – A – B – B – C – C, onde “A” e “B”
são apresentados em tom menor e “C” em tom maior, mostrando a mudança de
caráter emocional da cena.

6- Recitativo e solo – “Isso Não!”


Aqui a intenção era a de retratar o personagem Rafael de forma ansiosa e nervosa.
Ele está irritado e preocupado. Durante o número Rafael está na internet buscando
informação que possa ajudar sua amiga Cris. Ele nem sabe o que está procurando,
mas acredita que precisa haver alguma coisa. Este também é um número que remonta
a uma passagem de tempo, de quatro dias, que é representada pelo underscore
associado à iluminação cênica.
A canção se inicia com um recitativo onde Rafael se dispõe a fazer de tudo para ajudar
sua amiga. Mas assim que ele inicia sua busca na internet, tem-se Rafael mostrado
de forma ansiosa, através de um tema inspirado em um rock ‘n roll instrumental de
Diogo Camargo. O tema distanciou-se do original, mas manteve principalmente seu
caráter rítmico, ganhando uma harmonia diferenciada. Estruturalmente a canção
recebeu um tratamento A – B – A – B – A – B’, e seu recitativo também é um “A”.
Optou-se por manter as falas que entrecortam a canção com um underscore da
própria estrutura da canção, no segundo “B” e terceiro “A”.

7- Número musical – “Não Posso Nem Acreditar”


Esse foi o último número a ganhar vida. Sabíamos que seria o mais complexo por ser
o número musical com maior quantidade de mudanças do texto falado para o texto
cantado, e vice-versa. Os quatro personagens principais participam desse grande
número, e cada um deles apresenta um estado emocional diferente nesse ponto da
narrativa, o que apresentava uma certa dificuldade. Deciciu-se estruturar a canção em
A – B – A – B – C – C, justamente para trazer essa sensação de diferença entre o que
cada personagem está dizendo: Rafael está muito animado, ele acaba de descobrir
que existe a possibilidade de realizar um tratamento. Já Cris e Pedro estão
preocupados com o resultado do ecocardiograma fetal, e Lucas está revoltado com a
postura de Rafael. A parte “C” da canção foi, portanto, construída em tom menor, e
deixada para ser cantada por Lucas em um momento, e pelo casal Cris e Pedro num
213

outro. As partes “A” e “B” foram pensadas para traduzir a animação de Rafael com
suas novas descobertas.
As ideias do que cada personagem deveria dizer estavam bem claras, mas novamente
aqui foi a música que surgiu primeiro e a letra foi encaixada de acordo com a melodia
previamente criada.
Esse número possui uma grande quantidade de underscores, mas optou-se por
manter a estrutura dos versos e refrão durante os diálogos e monólogos que
sobrepõem a música, sem variantes, uma vez que são muitas vezes que há o
intercalamento da parte cantada e da falada.

8- Trio – “Coração”
Este número segue a cena em que Cris e Pedro revelam a Rafael que o bebê tem
uma cardiopatia. A composição do trio baseou-se em uma linha de baixo que
lembrasse a batida de um coração, e que se mantivesse constante, onde apenas a
harmonia variasse, mas o baixo não, mantendo o pulso que remetesse às batidas
cardíacas. É um número curto, portanto a ausência de variação na linha do baixo não
apresenta sensação monótona. Uma pré estrutura de letra já existia antes da música
ser pensada, mas após o surgimento da ideia musical, os encaixes da letra precisaram
ser modificados.

9- Dueto – “Te Amar”


A sensação que este número busca despertar é de entrega e alegria. Neste momento
os personagens Cris e Pedro percebem que precisam vencer o luto. Essa condução
emocional para fora do estado de infelicidade é feita por Pedro, que mostra a Cris que
é possível ter esperança. Cris começa a se abrir para pelo menos conversar sobre o
tratamento do bebê. Durante essa canção, os pais e o bebê se reencontram
emocionalmente, num momento de aceitação plena. Neste caso, a música foi
composta para uma letra que já estava bem organizada, na estrutura A – B – C - A –
B – C.

10- Solo – “O Melhor Dos Dois Mundos”

Esta foi a primeira canção a ganhar vida. O aspecto preocupado das personagens
nesta cena nos inspirou a iniciar a canção em tom menor, e passar para tom maior na
parte em que desponta alguma esperança na personagem Rafael. Foi levada em
214

consideração a tessitura vocal do ator para quem o papel foi pensado, mas de
qualquer forma, seja quem for que venha a fazer este papel no futuro, definimos o
papel de Rafael, nosso herói, como tenor, durante a composição dessa canção.
Esta canção deu origem a dois outros números musicais, uma reprise que precede o
trio “Algo Em Mim”, e aquilo que nomeamos “Pré-prise”, durante o processo criativo,
em tom de brincadeira, pois é uma citação da canção, mas que a precede, aparecendo
no início do espetáculo. O tema dessa canção, portanto, é usado como leitmotiv da
personagem Rafael.

11-Número musical – “Saber Abrir o Coração”

Este número é o mais longo do espetáculo, tendo a duração de onze minutos. Sua
função dramática é mostrar uma longa passagem de tempo, dez semanas, e o
desenvolvimento das personagens durante esse tempo. O número se inicia com
Pedro e Cris iniciando a montagem do quarto do bebê e termina quando já está tudo
pronto para recebe-lo. Durante essa passagem de tempo, a barriga de Cris cresce, o
casal cada vez mais se regozija com a chegada do filho, Rafael e Lucas vão se
afastando cada vez mais, Rafael descobre que há uma clínica em São Paulo que
realiza o tratamento, o casal Crie e Pedro vão até essa clínica e conversam com os
médicos. Todos esses acontecimentos são trazidos através de canções e diálogos
que trazem a presença de underscores. Novamente, este número precisava ilustrar
diferentes lugares emocionais. Cris e Pedro felizes por estarem finalmente em paz
com a chegada do bebê Arthur. Rafael ainda buscando informações na internet que
pudessem ajudar o bebê, o que o leva a descobria a clínica em São Paulo. Ainda
durante o número ele convence Cris a visitar a clínica. Ao mesmo tempo, Rafael ainda
revela tristeza pelo afastamento que está acontecendo entre ele e Lucas, que por sua
vez também revela tristeza por sentir o mesmo.
São muitas nuances emocionais diferentes, e vários momentos são ilustrados no
palco, onde os personagens vão aparecendo em locais diversos.
Buscou-se resolver todas as diferenças trazendo uma unidade cancional na forma A
– B – A – B – C – C nas duas pontas do número: início e fim. O meio do número foi
construído como um grande medley de pequenos trechos de todos os números
anteriores, adaptados para o ritmo cênico do número.
Apesar de estar claro o que cada personagem precisava dizer a cada momento do
número, as letras precisaram entrar por último. Como eram muitos eventos a serem
215

organizados, a estrutura do número foi o primeiro passo a ser resolvido. A partir da


estrutura definida, a música foi composta e a letra veio em terceiro lugar.
12 – Reprise – “Melhor Dos Dois Mundos”
Esta pequena reprise que introduz o próximo número traz o leitmotiv do personagem
Rafael, que aqui deixa claro que vai seguir o caminho que precisa.

13- Trio – “Algo Em Mim Sente o Que Vai Acontecer”


Este número foi estruturado como A – A – B – A – C. Lucas Pedro e Rafael, cada um
no seu mundo, precisam revelar a mudança que cada um vai sofrer neste exato
momento, o do nascimento do bebê Arthur. Lucas e Pedro cantam a mesma melodia,
em tons diferentes, Lucas revelando que sabe que sua relação com Rafael acabou e
Pedro cantando a nova vida que hoje começa para ele. A modulação entre o trecho
cantado por Lucas e o cantado por Pedro ilustra a diferença do que está sendo vivido
por estes personagens, apesar de cantarem a mesma linha melódica. Rafael então
entra, cantando a parte B, revelando que está em um lugar emocional diferenciado. A
parte “C” da canção foi criada para que os personagens encontrassem uma
congruência nas suas diferenças emocionais, finalizando o número.

14- Número musical final – “Dorme”


Este foi o segundo número musical a ganhar vida. É um trio entre Cris, Pedro e Lucas,
pois Rafael adormece durante a última cena. A ideia foi criar uma canção de ninar, o
que já estava definido desde a escrita da letra. A ideia de fazer do número final uma
lullaby surgiu durante uma das leituras dramáticas e partiu da atriz Angela Azevedo.
O tema desse número foi inspirado em várias canções de ninar populares, folclóricas,
que usam muitas vezes intervalos de terça maior ou menor. Foi escolhida a terça maior
– para trazer um sabor agridoce ao final do espetáculo. Para tanto, a canção traz o
tema da terça maior como a parte doce e a linha descendente como a parte acre.
216

3.3.3. As partituras das canções de 47 – O Musical

A seguir apresentam-se as lead sheets dos números musicais de 47 – O Musical,


conforme sua ordem de aparição no espetáculo:

1. Livre Pro Amor


2. Pra Não Pensar Em Mim
3. Uma Criança a Brincar
4. Pro Que Der e Vier
5. Vem Me Ensinar
6. Isso Não!
7. Não Posso Nem Acreditar
8. Te Amar
9. Saber Abrir o Coração
10. O Melhor dos Dois Mundos
11. O Melhor dos Dois Mundos Reprise
12. Algo Em Mim
13. Dorme

As lead sheets apresentam as aberturas de voz dos personagens, além das


linhas solo, acompanhadas dos acordes cifrados. A escrita orquestrada apenas
se dará quando de fato acontecer a montagem do espetáculo, uma vez que isso
envolve a contratação de um profissional específico para arranjo e orquestração.

 Livre Pro Amor
Piano/Vocal
Ana Taglianetti
Danilo Demori
A@
@@  
±         Ç
E 7sus

@
4 @ 
Eu es - pe - rei por tan - to tem - po

D @/F B @m
@
4 @ @@ ±         Ç
 ±         Ç
10

E/a - go - ra vai a - con - te - cer A es - pe - ran - ça que des - per - ta

E @ 7sus E @7 A@
@@@ ±
@          Ç ±         Ç
14

4
Fa - zen - do - tu - do re - nas - cer E no a - mor des - sa cri - an - ça

D@ B @m
@@       Ç
4@@ ±    ±         Ç
18

A per - fei - ção vou co - nhe - cer Um no - vo so - nho se/i - ni - ci - a

E @ 7sus E @7 D@
@  T
4 @ @@ ±            (    
22

 (
Fa - zen - do tu - do re - nas - cer Ho - je co -

E@ A@ D@
@ @             
@
4 @    œ  
26

( (  
( (
me - ça a gran - de/a - ven - tu - ra E nas - ce/o
2 Livre Pro Amor 

E@ A@ E@
     
@@ @      ÇÇ ÇÇ      (
4 @  œ
30

(  (
sol e/a - bre/a flor Ho - je co - nhe - ço a

 A@       D @/E
@ @          T
Fm D

@
4 @ (   œ  
35

(  (
mai - or ter - nu - ra E/um co - ra - ção

E@ A@
@@ @ @  œ      
T KKKK 
39

4 œ
li - vre - pro/a - mor


G 7sus/A D Bm

±         Ç ±
61

4          Ç
A vi - da no - va vai che - gar Pra/u - ma cri - na - ça sem a - mor


Em A 7sus

± ±
65

4         Ç          Ç
E já não vai há - ver a - bu - so E já não vai ha - ver mais dor


G/A D Bm

± ±
69

4         Ç          Ç
Não vai ter mar - cas no seu cor - po A - go - ra não vai mais do - er
3 Livre Pro Amor 

 G
Em

± ±
           
73

4         Ç
Es - sa cri - an - ça vai ser li - vre E vai ver tu - do re - nas - cer!

 G      G   G
G A D Bm

T       œ
77

4  (
Ho - je co - me - ça a gran - de/a - ven - tu - ra

 G       Ç G 
G A D G

   Ç œ   
82

4 (
E nas - ce/o sol e/a - bre/a flor Ho - je/e - la

A/C 
            œ G
A D Bm Em A

(     T
87

4 ( (
vai co - nhe - cer a ter - nu - ra E vai vi - ver

F /A 
 
 œ     T
D

±      
92

4
li - vre - pro/a - mor Mas o fu - tu - ro/é/u - ma cri -

E/G 
   Ç
±          Ç ±   
109 Bm A D

4 ( 
an - ça Que se - ja li - vre pra cres - cer Vo - cê é li - vre na sua

4 Livre Pro Amor

F m

±     
G Em A

  Ç ±          Ç
113

4 (
ar - te E is - so/é que te faz vi - ver E eu me/or - gu - lho des - se

E/G  D/F 
   Ç
±          Ç ±    
117 A A

4 ( 
ho - mem Que mu - da/o mun - do/a es - cre - ver A vi - da tem tan - tas his -

E/G 
 K
œ         Ç T
G A 7sus A

 ( Ç ‡
121

4
tó - rias Mas a mi - nha/é com vo - cê

      
±         ÇÇ ±          ÇÇ
126 C/D G Em

4  Ç       Ç

Eu es - pe - rei por tan - to tem - po E/a - go - ra vai a - con - te - cer

‡ ‡ ‡ ‡
126


4 ±         ÇÇÇ ±         ÇÇÇ
130 A m7 D 7sus


A es - pe - ran - ça na/ho - ra cer - ta Fa - zen - do tu - do re - nas - cer
5 Livre Pro Amor 

 ±
4         Ç ±      
G Em

  Ç
134


U - ma cri - an - ça vai ser li - vre Mais u - ma/his - tó - ria pra/es - cre - ver

‡ œ  
134

   

T
T  ÇÇ
Ooo...
Ooo...

 ±         ÇÇ            
±            (
Am D7

        Ç
138

4
A - go - ra/um so - nho re - co - me - ça E faz a vi - da re - nas - cer

 TTT G       


      G  œ
C D/C G Em

     
142

4    (   
( 
Ho - je co - me - ça a gran - de/a - ven - tu - ra

  G    
     Ç G
        ÇÇ  ÇÇÇ    
C D G G/B C

4  œ
147

      
E nas - ce/o
(
sol e/a - bre/a flor To - da a

            G  T


        TT
D G/B D/E E m C D 7sus

4  (   œ
152

 ( (   
dor do pas - as - do tem cu - ra Pa - ra vi - ver

   TT TT T 
TT    
G G/B C9 C/D

œ     T T »
157

4
li - vre pro/a - mor! Li - vre pro/a - mor!

6 Livre Pro Amor

 TT 
G

4 T  œ œ œ
162

 Pra Não Pensar Em Mim
Piano/Vocal
Ana Taglianetti
Danilo Demori

@  • O    
Gm C 7/G

@
4  ‡ œ œ    
1


A vi - da tem tan - tas his - tó -

@   ±       
Gm C 7/G

4@ (    œ • O
4

 
- rias tan - ta ins - pi - ra - ção não tem fim Dos

@            
Gm C D 7sus

@    
7

4  (
ou - tros es - cre - vo/a me - mó - ria pra não pen - sar em mim

@ Ç
4@ ‡ ‡ ‡
10
 Uma Criança a Brincar


Piano/Vocal
Ana Taglianetti
Danilo Demori

   D E m/B

4               
Eu ti - ve/um so - nho que já pas - sou De/u - ma cri -


D/A G G/A D E m/B

        
       
7

4
 Ç
an - ça/a brin - car Fa - zen - do/a vi - da bro - tar de/a - mor Jun - tos a

D/F  A/C 

Em D E m/B

  ±       •
     
11

4 
  
gar - ga - lhar Ve - io/a sur - pre - sa de/um ou - tro/a - mor Eu me


D/A G G/A D E m/B

            •  
15

4 
 Ç
dei - xei - le - var E me/es - que- ci des - se so - nho bom Por me

A/C  E/G 
         •    
D/A E m7 Bm

     
19

4
a - paí - xo - nar... Eis que a vi - da me co - bra Me cha - ma de vol -

D/F  D 7M/F 
      
•  
A A/G G

 • O      
23

4  (
- ta Me traz um be - bê A chan - ce de ser pa - dri -
2 [Title] 

G m/B @

Em E m/D C G/B G/A

               Ç  œ
26

4
- nho Um no - vo ca - mi - nho Vai a - con - te - cer


Instr.

       
       
30

4
 Ç


                
34

4
   ± 


           •     
38

4
 Ç


           •        
42


D E m/B D/A

                
46

4

A no - va vi - da que vai che - gar Que já me con - quis - tou
3 [Title] 


G G/A D E m/B

    
49

4         
Ç
Vem meu a - mor, vem pra me mu - dar Is - so só

A/C 

 ±      
D/A E m7 Bm

      
52

4
co - me - çou Mas des - sa vez não tem

E/G  D 9/F  D/F 


   •        •    
A A/G

   ±
55

4
vol - ta E na - da no mun - do po - de me de - ter

D/F 

G Em E m7/D C

              ±  
58

4  
Vou te tra - zer pra bem per - to E vou me/en - tre - gar... Me/en - tre -

     Ç
G/B G/A D E m/D D

4   ‡
61

(
gar, Pra vo - cê!
 Pro Que Der e Vier


Piano/Vocal
Ana Taglianetti
Danilo Demori

   B

        
CRIS


    
Ho - je é o di - a Em que a gen - te


E/B B 7M

  œ
14

            
    
vai se co - nhe - cer É só a - le - gri - a Es - sa mi - nha von -


E/B E 7M

 
16

                  
ta - de de- te ver Pe-la tu - a vi - da eu pro - me - to Que eu vou fa -

F /E

E 7M


18


                 
zer o que pu - der Nós es - ta - mos jun - tos e a - go - ra/é pa - ra sem - pre

E/F  E/G  F /A  E/G 


 ±
B

  ±
20

   
3 3 3

             Ç   
De mãos da - das pro que der e vi - er Vem, meu a - ma - do, vem Me le - var a -

B/F  E/F 

E 7M B


23


3

Ç        
      T
lém Mui - to/a - lém de/um so - nho que/é só nos - so De mais nin - guém
2 [Title] 

E/G  E/F 

B E/B

 ‡ œ
26

             
    
Ho - je sin - to/a vi - da Da a - ven - tu - ra que vai co - me çar


B 7M E/B

      
29

             
Is - so não se/ex - pli - ca Que to - do meu a - mor que - ro te dar Pe - la tu - a

F /E

E 7M


31

                
    
vi - da eu pro - me - to Que eu vou fa - zer o que pu - der Nós es - ta - mos

F  7sus

E

 ±
33

          
3 3 3

         
jun - tos e a - go - ra/é pa - ra sem - pre De mãos da - das pro que der e vi - er

C  m7 B/D 

B

 ±
35


      Ç     Ç    
Vem, meu a - ma -do, vem Me le - var a - lém Mui - to/a - lém de/um

E/F 
 
E B

  »
38


3

         T Ç
so - nho que/é só nos - so De mais nin - guém
3 [Title] 

C m

B

  œ
50

       •
          
Meu pe - que - no/a - mor É lin - do ver vo - cê me - xer as mãos

B/D  E/G 

    
52

            Ç T
E os seus pe - zi - nhos Ou - vir ba - ten - do o teu co - ra - ção

 »
E 7M

 
55

              
Is - so/é tão pro - fun - do que dá me - do Me - do que/eu não

F /E

 ‡ »
57


      Ç    
sei de - on - de vem E eu me per -

E/F 

E 7M


60

       
3

            
gun - to se/há/um se - gre - do nes -sa/his - tó - ria O dom da vi - da é/um gran - de mis - té - rio

B/F  G m
 ±
E m/G

 
62

      Ç     Ç 
Bem, es - tá tu - do bem Não há/o que te - mer É es -se si -
4 [Title] 

E/F  B/F 

E m/G

  G± 
65

           Ç  
lên - cio que/a - me - dron - ta Mas tá tu - do bem Pe - la tu - a

F /E

E 7M


67

    
                 
vi - da eu pro - me - to Que eu vou fa - zer o que pu - der Nós es - ta - mos

E/F 
 3
E 7M

            ‡
69

     
         
jun - tos e a - go - ra/é pa - ra sem - pre...

   3 
 ‡
72


Veio alguem aqui?

G m

E m/G

 ± G     • œ
141

          
Não é pos - sí - vel A - on - de foi o que so - nhei?

G  m9

E m6

      
143

              
O que de - se - ja - mos E tu - do/a - qui - lo/em que a - cre - di - tei? Que - ro en - ten -
5 [Title] 

C m7(9) F /C 

 
145

                      
der a tu - a/es - co - lha E não sei o que/é que vo - cê quer O que é que/es -

D /G G  m

E/B A9

 œ » œ œ ±
147


           
tá a - con - te - cen - do... Não, co - mi - go

G m

E m6 E m6

 •
150


Ç     Ç 
      K K     
não O meu co - ra - ção Não vai a - guen - tar es - as tris - te - za Co - mi - go

G m B/D 

E m6

 »
153

          
T Ç
não... Eu não te co - nhe - ço E não sei o que

E/G  B 9/D 

  
169

       
    Ç    
é que vo - cê quer Me faz en - ten - der Pr´/eu po - der fa -

E/G 

E 7M

  
171

                    
zer o que pu - der Que - ro con - se - guir en - con - trar for - ças Pra te dar o
6 [Title] 

F /E

E 7M

 •
173


                    
que te pro - me - ti A - fi - nal es - ta - mos jun - tos e/a - go - ra/é pa - ra sem - pre...

  K 
K KK
G Am G/B

 » œ 
175


RAFAEL
4

Pe - la tu - a


C 7M D/C

4                   
195

  
vi - da eu pro - me - to Que eu vou fa - zer o que pu - der Nós es - ta - mos

D/F 

C 7M D 7sus C/E E 7 (9)

4            ±          T
197 3 3

jun - tos On - tem, ho - je e pra sem - pre De mãos da - das Pro que der e vi - er.


‡
200

4
 Vem Me Ensinar


Piano/Vocal
Ana Taglianetti
Danilo Demori

@  
@ »
CRIS:

      Ç    Ç
Vem me di - zer me con - tar

@
@ Ç œ
11

           Ç
Quem é vo - cê me faz a - cre - di - tar
   
No que/eu não sei

@ @
14


       Ç      Ç Ç
e pre - ci - so sa - ber Pra po - der en - ten - der

@
 @ » ± G
17


PEDRO:

    Ç   Ç Ç    
Vem me mos - trar meu lu - gar Me diz se/é pra rir

@
@      
20

  Ç         
ou se é pra cho - rar O que vo - cê quer de mim E por -

@@ œ  œ   
23 CRIS, PEDRO:


Ç      Ç Ç    Ç

que de- ci - diu vir as - sim? Vem, fa - la co - mi - go, be - bê
2 [Title] 

@ @ œ
27

        Ç Ç       
Eu não con - si - go/en - ten - der Vem re - ve - lar teu de -

@ @ G œ
30

       Ç    Ç Ç     
se - jo Vo - cê quer vir? Quer vi - ver? É a tu - a von -

@
@  »
34

   Ç        
Ç
ta - de, be - bê? Ve - nha/e me di - ga por - que

@ @
    G  œ
37

        Ç  
Se/es - se/é/o teu pla - no, me con - ta se Vo - cê quer vir, quer vi -

@ @ ‡ ‡ ‡ ‡
40

 Ç Ç
ver?

@
 @        Ç
45

KÇ        Ç Ç
Eu já te sin - to co - mi - go U - ma se - men - te de flor
3 [Title] 

@ @
49

                    
Eu vou lu - tar sei que vou con - se guir Su - pe - rar, trans - cen - der es - sa

@ @
 Ç Ç
52

       Ç KÇ      
dor Eu te re - ce - bo, meu fi - lho E que - ro te a - bra -

@
 @ Ç
56

Ç               
çar Se/é teu de - se - jo/eu res - pei - to/e me/en - tre - go pra

@ @ œ  ‡ ‡
  Ç Ç Ç Ç Ç
59

 
sem - pre Vem me/en - si - nar!
 Isso Não! 

Piano/Vocal
Ana Taglianetti
Danilo Demori
B@

± G       
Dm C/E A m9

    K Ç
4@ 
A Cris po - di - a de - sis - tir do be - bê

B@
L A /C  B @7M
G       Ç ± G  
   
Dm E Dm

@ ±    
7

4
Mes - mo com me - do quis se com - pro - me - ter Meu me - do foi mai - or e/um

B@
L A /C 
G       3Ç
C 9/E A m9 Dm E

 K Ç ±      
4@  
10

so - nho’en - tre - guei Eu de - sis - ti por - que me a - pai - xo - nei

B@
 G    
Dm C 9/E A m9

4@ ±      K Ç
13

 
Eu só pre - ci - so con - se - guir a - ju - dar

B @7M B @7M
G        Ç ± G       
Dm Gm A 7sus Dm

@ ±   
19

4
Fa - zer a - go - ra o que an - tes não fiz Eu te - nho que/es - ten - der a

B@
L A/C 
    Ç
±        
G
C/E A m9 Dm E

4 @    K Ç
22

mão pa - ra/a Cris So - bre/es - se/as-sun - to/eu te - nho que pes - qui - sar!
2 [Title] 

B @7M C/B @ B@

          G  
@ ± ±    
25

4   
Eu que não pu - de fa - zer só por mim mes - mo Eu que/en - co - bri e dei - xei -

C/B @ B@ C/B @
    Ç  
4@ ±        
  G 
28

- pra de - pois Há um a - mor bem a - qui den - tro do pei - to

B@
L A/C  B@
    Ç
 ± G       
E Dm

4@ ±    
31

Que não é es - se da vi - da a dois! U - ma cri - an - ça vem pra

B@
L A/C 
G         Ç
C Am Dm E

4 @    K Ç ±    
34

me res - ga - tar É co - mo/o fi - lho que eu não pu - de ter

B@ B@
G     
± G       
Dm C/E Am Dm

@ ±      K Ç
37

4
Por e - le ju - ro que vou tu - do fa - zer Que - ro/en - con - trar tu - do que

L
    3Ç   G  
E A7

Ç    
INSTR

4@ ±
40

  
pos - sa/a - ju - dar!
3 [Title] 

 Ç    G 


4@  ± 
44

  

 Ç G   G  


4@ ±      K Ç ±  
48

@   Ç ± G           K  Ç ± G       
52

B@
    Ç
VOZ

G    
Dm C/E A m9

4@ ±      K Ç
56

 
Faz qua - tro di - as que pro - cu - ro em vão

B@ A/C  B@
G       Ç ± G       
Dm A 7sus Dm

@ ±   
59

4
É/a mes - ma coi - sa sem - pre, não/há/o que fa - zer A tris - so- mi - a é/um des -

B@
    Ç
± G  
   
C Am Dm A


4 @   K Ç 
62

ti - no en - tão Mas não a - cei - to, eu pre - ci - so/en - ten - der!


4 [Title] 

A/C  B@ A/C  B @6 A/C 


    Ç ±± Ç ±± Ç T
Gm

4@ ‡
65

Não is - so não! Não não! Não não!


 Não Posso Nem Acreditar 

Piano/Vocal
Ana Taglianetti

A@
Danilo Demori
Cm

@  œ   (  G
RAFAEL:

@
4 @  ‡ ‡ ‡ ‡
1 2 3 4 5

B@ E @/G A@
Eu não pos - so nem
Gm

@ @ G G G
    Ç ±       (  
4 @  ( (
6 7 8

a - cre - di - tar No qu’eu tô ven - do a - go - ra a - qui


Fm G 7sus G7
10 G G G   11       12Ç
@ @@      »
4     (
9

A @/C B@
Bem na fren - te dos o - lhos vem a - brir A gran - de es - pe - ran - ça!

G G
Cm

@    G 14 G  15Ç  
4@@ œ (       ( ± 
13

E @/G A@ D@
Diz a - qui que sim, dá pra tra - tar Que há um mo - do

@@ @ 
G 7sus

     17        @    
4 ( ( ( ( ( (
16 18

A@ B@
de ba - lan - ce - ar Es - sa clí - ni - ca é es - tran - gei - ra Mas

@@ @    (  (             
G Cm Fm
19

4 ( (
20 21
( ( ( (

E@ G
7/B E @7M/G A@
eu vou li - gar! Sín - dro - me de Down é al - go bem

@ @ (     (       25     (
G 7/B Cm Fm

4 @ ( ( (  ( (  ( ( ( ( ± ( ( (
22 23 24

com - ple - xo Mas pa - re - ce que/há um jei - to De tra - tar as con -

        ±      
C m/G G Cm Fm

@  
4@@ ( (    ( ( (  (
26 27 28

- se quên - cias Des - se cro - mos - so - mo/a mais É no me - ta - bo - lis -


B@ E@ G
7/B
2 [Title] 

@@ (     ( 30 (     (       32    
Cm

4 @ ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ±
29 31

- mo que a coi - sa pe - ga Mas tem al - go pra ser fei - to

A@ G
7 G 7

@@      (       35      36T T
Fm G m7 C m/G G 7sus

4 @ ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( (
33 34 37

Não é na - da im - pos - sí - vel Dá pra me - lho - rar!


RAFAEL:
Cm

G
@@ @ ‡ ‡ ‡ ‡ œ   

38

4 ( 
42

A@ B@ E @/G A@
Eu não pos - so nem

@ @ @ G G G
    Ç ±         
4  ( ( (
43 44 45

a - cre - di - tar Que is - so pos - sa e - xis - tir


Fm G 7sus

@ @        G G G        
4 @     (
46 47 48

A@ B@
A - gen - dei pra/a - ma - nhã um chat on - line So - bre/o tra - ta - men -

G   52Ç
G7 Cm

œ   (      G (
G 51 G
@ @   »
4 @ ( ±
49 50

E @/G D @/F
- to Eu pre - ci - so tu - do en - ten - der Pra a - ju -

@@ @       54         @    
4 ( ( ( ( ( (
53 55

E @/G A@ B@
dar nos - so be - bê Es - sas mé - di - cas sa - bem co - mo E

@@ @   ( (  ( 57         
G 7sus G Fm

(   
4 ( ( ( (
56 58

vão me di - zer! Se de/um la - do fal - ta al - go/eu su -



E@ G
E @/G A@
3 [Title]

@@ (     ( 60(           62     (
Cm Fm

4 @ ( ( ( ( ( ( ( ( ± ( ( (
59 61

- ple - men - to E se for de - mais eu ti - ro Não é sim - ples de

  
@@ (   65 ±      
7sus C m/G G 7sus Cm Fm

   ( (   
4 @ ( ( ( ( (
63 64

B@ E@
ser fei - to Mas é/es - sen - ci - al! O - lhar es - sa pes - so -

@@ @ (  ( (  (       68      69   
G7 Cm

4 ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ±
66 67

- a/in tei - ra, bem lá den - tro To - do o seu me - ca - nis - mo

    
( ( (  ( T T
Fm Cm G sus

@     ( (    (
4@@ ( ( (
70 71 72 73 74

( (
Co - mo/é que tá fun - cio - nan - do Ver se tá le - gal!
Cm

@ G G
œ   G     G G
CRIS

4@@ ‡ ‡ ‡ ‡
75 76 77 78

 
Me sin - to tão per - di - da

E @ 7/B @ A @7M

@@ œ G G G G G G G
@    œ 
81

           
Ho - je me/a - briu o chão Nun - ca pen - sei
G 7sus G7 Cm

@ @ G G G G G G G
@  G G         T œ   G  
84


E @7
sen - tir Tal dor no co - ra - ção É um a - per -

@ @ G G G œ G G G G G
 @     
88

         
- to/i - men - so Co - mo/é que/eu vou fa - zer
A @7M
4 [Title] 

@ œ G G G G G G G G G G
@ @  
91

               T
Pra/a - cre - diRAFAEL:
- tar que/a vi - da Vai a - con - te - cer?

@ @ ‡ œ G
 @ G G  G Ç ±
95

   G G
96 97 98

        
Eu/es - tou co - me - çan - do/a - en - ten - der Mas nem sei

@ @@ G
      G  G G G  G
99 100 101

         
co - mo ex - pli - car To - do mun - do pre - ci - sa co - nhe - cer

@ œ  G G G G G  G
@@    
G »
      
102 103 104 105

    
Que há um ca - mi - nho! É ci - ên - cia pu - ra is - so/a - qui

 @@ @ Ç ±   G
   
G 108
        
106 107


Tem mui - ta coi - sa pra/es - tu - dar Va - le/a pe - na não de -

@@ G G G G 111
Instrumental segue
@
  @ G G G G          
109 110

     
- sis - tir Por que dá pra... ´

@ @ G G G G 113 G G G G 114 G G G G
 @                  
112

@@ G G 117 G
@
   G G ± G G G    G G
  

 (
115 116

     

120 G
@ G G G 119 ± G G G
 @ @ (                  
118
5 [Title] 

@
G@@ G G G 122 G G G G G G G ±
123

              
121

  

@@
G G G G G G G G
 @   G G       ( (      T
124 125 126 127

@ G G G
@@ T œ   G     G G  œ   G  
128

4
O so - nho que ti - ve - mos De ser - mos só

@ @ @ G G G œ G G G
   G G G
132

4            
nós dois Pa - re - ce que - a - go - ra Fi -

@ @ G
@
G G

G œ   G  G G  G G
135

4      T 
- cou pra de - pois Já não é co - mo an - tes

@ G G G
4@@ œ   G     G G œ   G  
139

  
E eu bem sei por - quê Pois e - le i -

@ @@ G G G G G G G G ‡
4     
142

       T 
- ma - gi - na Que es - se é o seu be - bê!
6 [Title] 

RAFAEL, PEDRO E CRIS

@ @ œ G G ±
 @    G G G G
146 147 148

 Ç
  - ra
Eu pre - ci - so/a - go
 
res - pi - rar
É tu - do

@ @ G
 @   G G G G  G
149 150 151

              
no - vo pa - ra mim Sin - to que/a mi - nha vi - da vai mu - dar

 @@ @ » œ G G
        
152 153 154

 Ç 
Eu que - ro/en - ten - der Com to - da

co - ra -

@ @ G 156 ± G G
 @ G G G   Ç      
  
155 157

-
 gem   bus
 vou - car Um jei - to de re - co - me - çar

 @@ @ G G G G G G G G

        @        
158 159 160

Pr’eu po - der me/en - con - trar - de - no - vo De - vo/a - cre - di - tar!

@ G G G G 163 G G
@@                G G  
161 162

Eu não vou de - sis - tir Eu ve - jo tu - do is - so/é De -


7 [Title] 246

@ @ G G G G 165 G G G ± G G G G
 @              
164 166

  
- sa - fio e com - pro - mis - so Vou me en - tre - gar

@ G G G G G 169 ±
 @        ( 
@           
167 168

pra is - so Pos - so/a - cre - di - tar! Eu não vou de - sis - tir

@ @ @ G G G G 171 G G G G 172 G G G G
                 
170

Eu ve - jo tu - do is - so/é De - sa - fio e com -

G 175 G
@@G
 @   G G ± G  G G    G G 
173 174

         (
- pro - mis - so Vou me en - tre - gar pra is - so Pos -

@ @@  G G G œ   K K   T T
176 177

 (     T
- so/a - cre - di - tar! Pos - so a - cre di - tar!
 Te Amar 247
Piano/Vocal Ana Taglianetti
Danilo Demori
G F C F G F C F

 
4  ‡ ‡ ‡ » ± O

Eu

G F C F

 PEDRO ± O
4               Ç
5


que - ro ca - mi - nhar pe - los teus pas - sos E/é

G F C F G G/F

 
4            Ç          
7

 
is - so que vo - cê vem me/en-si - nar E/o meu pa - pel é ver co - mo/é que/eu

C/E C G/B A 7sus A7 C 6/D D/F 

  
           Ç ± O
10

4 
fa - ço pra te dar O que vo - cê ve - io bus - car Eu

G F C F


4               Ç ± O
13


que - ro ser o que vo - cê pre - ci - sa Não

G G/B C  m7 ( 1 5 )

      Ç 
4       
15


vou ten - tar me/im - por so - bre vo - cê A-
2 Te Amar 
C 7M G/B Em

17
                   
4  
go - ra/eu vis - to a tu a ca - mi - sa Is - so não é sa - cri - fí -

Am D sus9 C/E D 7 (9)/F  G G/B

 ±  
PEDRO e CRIS:

4    ± G       ǝ  
19

± 

(
- cio, é que - rer Te a - mar Da ma -

C D/C G/B C D/C

            Ç ±           
             
22

4 ( ( ±
nei - ra que vo - cê é Te a - mar Pra te dar a - qui - lo Que vo - cê vai

G D/F  E m F A m/E C/E


CRIS PEDRO

4          Ç ±           
25


pre - ci - sar Te a - mar Is-so não é sa - cri - fí - cio, é que - rer

C/D C/E D/F  G G/B C D/C G/B

   Ç               Ç 
± 
PEDRO e CRIS

  ±  Ç
C RIS

  
28

4
Te le - var Pa - ra con - quis - tar - o mun - do Te le - var Pra vi -

C C/D G D/F  E m A 7sus A7

          
                 ±  
32

4  
ver ca - da se - gun - do Só pra me/en - si - nar A te/a - mar Is-so
3 Te Amar 
A m/G A m/E C/D G F C F G F

 »
4            Ç   Ç ‡ ‡
35

»
não é sa - cri - fí - cio, é que - rer Te a - mar

C F G F C F


4 » ± O               Ç ±
40 CRIS

  
A vi - da to - da eu so - nhei con - ti - go E/es - pe -

G F C F G G/B


4             Ç ±           
43

 
ra - va ser do jei - to que pen - sei Não con - ta - va que a tu - a ca - mi -

C G/B A 7sus A/C  C/D D

   
          Ç ±
46

4    
nha - da E - ra tu - a e não mi - nha, ho - je/eu sei Que - ro

G F C F

        ±
       Ç
49

4  
ser o gran - de/a - mor da tu - a vi - da Is - so/é

G G/B C  m7 ( 1 5 )


4             Ç ± O
51

tu - do que im - por - ta meu be - bê A-


4 Te Amar 
C G/B Em

53
                   
4  
go - ra/eu vis - to a tu - a ca - mi - sa Is - so não é sa - cri - fí -

A 7sus A7 C/D C/E D 7 (9)/F  G G/B

 ±  
PEDRO e CRIS

± G       ǝ 
55

4    ( ±
 
- cio, é que - rer Te a - mar Da ma -

C D/C G/B C

            Ç ±           
             
58

4 ( ( ±
nei - ra que vo - cê é Te a - mar Pra te dar a - qui - lo que vo - cê vai

G D/F  E m A 7sus A7 F C/E

 ± K          
PEDRO e CRIS

             
CRIS

4          Ç
61

œ » ±
pre - ci - sar Te a - mar Is - so não é sa - cri - fí - cio é que - rer

A m7/D C/E D 7(9)/F  G G/B C D/C

    Ç            
PEDRO e CRIS

  ±
CRIS

4    
64

»
Te le - var Pa - ra con - quis - tar o mun - do Te le -

G/B C C/D G D/F  E m

  Ç            
4  Ç ±             
67

 
- var Pra vi - ver ca - da se - gun - do Só pra me/en - si - nar A te/a -
5 Te Amar 

A 7sus A7 F C/E D sus9

 ±
4                 
70

±
- mar Is - so não é sa - cri - fí - cio é que - rer

E 7M

 œ
4 Ç T
72

œ 
Te/a - mar...
 Saber Abrir o Coração 
Piano/Vocal
Medley Ana Taglianetti
Danilo Demori

 
G/A

‡ ‡ ‡ ‡ K      Ç
CRIS E PEDRO

4 
Va - mos co - me - çar!


A 7M

             Ç Ç œ
6

4 K   
Pra te re - ce - ber Eu que - ro tu - do ar - ru - mar!


G/A A 7M

K      Ç            T
9

4
Que - ro que vo - cê Sin - ta/o nos - so/a - mor quan - do che - gar

 Ç
D m7 F 7M/G C 7M

œ  K       K         K  ± 

12

4
Vem que/é pra mu - dar a nos - sa vi - - Nes- se
da

D/F 

         ±         Ç
D m/F E 7sus E7 A 7M

»   T
15

4
ber - ço/e no teu co - lo, tu - a vi - da vai pul - sar! Vem Ar - thur!

  K        K      Ç
D m7 F 7M/G C 7M Bm D/E

       
19

4
Vem pra re - ve - lar o teu se - gre - do! Vem pra se - gu - rar na mi - nha

 T
A 7M Dm F/G C 7M

 K       K      Ç
22

4
mão! É a tu - a vi - da que vai me/en - si - nar
2 Saber Abrir o Coração 

 ±  
Bm D/E A

(          Ç Ç » ‡ ‡
25

4
Sa - ber a - brir o co - ra - ção!


G/A


K      Ç K         
30

4
RAFAEL

Eu pre - ci - so/a - char Al - gu - ma ma - nei - ra qu/e - la

      Ç
A 7M G/A

 Ç œ K      Ç
32

4
pos - as/a - cre - di - tar Tu - do/o que/es - tu - dei

 ±
A 7M

          T Ç œ
35

4
A Cris pre - ci - sa a - cei - tar

  K        K          K  
Dm F/G C 7M F 7M

± 
38 FALADO

       
Bm E 7sus A 7M

±      Ç »   Ç ± 
40

4
Vou li - gar! Pra sa -

  K   
D m7 F /G C 7M

    K      Ç ± K 
44

4
ber se e - les fa - zem o que/eu es - tu - dei Se/o - fe -
3 Saber Abrir o Coração 

            T
Bm D/E A 7M Dm F/G

 K       K  
46

4
re - cem es - se jei - to de tra - tar! Po - de ser que es - sa se - ja/a

FALADO: Alô?

    Ç
C 7M Bm D/E A

± (           Ç Ç » ‡
49

4
so - lu - ção!


G/A G /A


‡     Ç          
54 CRIS

4
E - le vai fi - car Tão ma - ra - vi - lho - so, u - ma

 
A 7M A6 G/A

     Ç Ç œ       Ç
57 PEDRO

4
gra - ça nes - sa cor! On - de co - lo - car


A 7M

           T Ç œ
60

4
CRIS

es - se xa - le? Com o co - ber - tor!

(UNDERSCORE)

  K        K          K  
± 
63

        ±         Ç   T
»
65

4
4 Saber Abrir o Coração 

69
  K        K       Ç         T
4

  K        K       Ç
Bm D/E

± (        
73 RAFAEL

4
Sa - ber a - brir o co - ra -

A/C 


A D E/D

G G
  Ç Ç »      G  
76

4
CRIS PEDRO RAFAEL
           
  
- ção! Ho - je co - me - ça a gran - de/a - ven -

F m A/C 


Bm E A

G G
 G ÇÇ      Ç
81

   

      ÇÇ TTT
tu - ra E nas - ce/o sol e/a - bre/a flor

E/G  F m

 G
D E Am

G G    
     ÇÇ
86

          
      Ç

Ho - je co - nhe - ço a mai - or ter - nu - ra


Bm D/E A

G œ 
    TT TT
90

     T  T T
4

De/um co - ra - ção Li - vre pro/a - mor

  KKK@
Dm

‡ œ œ   
95 LUCAS

4   K     
A che - ga - da de u - ma cri - an -
5 Saber Abrir o Coração 

G/D D m7 B @/F Dm

G
@             ±         
98

4
 
- ça É mais for - te que qual - quer ra - zão Me per - gun - to se/o meu nas - ci - me -

G/D Dm G 7/D G m7

G
@    ±         œ
102

4        


- to Foi mo - ti - vo de ce - le - bra - ção Na me - mó - ria guar - dei só as do -

œ
A m7(9) Dm C 7M/D D7 G G/B

± K     
G
4@   K 
106
PEDRO/CRIS

       Ç
- res Fe - chei meu co - ra-ção. Vou con - fi/ar Que e -

G D/FE m

           ±           
C D/C G/B C D/C

    
110

4 (
xis - ta uma chan - ce de mu - dar De o - fe - re - cer cui - da - dos Que vão a - ju - dar O Ar -

A 7sus A F C/E C/D E 7M


   ±              Ç ‡
114

4 (
- thur A vi - ver me - lhor a vi - da Ho - je/eu vou con - fi - ar!

119
 ‡ ‡ ‡ ‡ ‡ ‡ ‡ ‡
4

127
 ‡ ‡ ‡ ‡ ‡ ‡ ‡ ‡
4
6 Saber Abrir o Coração 

D E m7/B

 ‡ ‡ ‡  LUCAS e RAFAEL:

    
135

4     
4

Se eu pu-des - se/es - que - cer da dor E vi -

D/A G G/A D E m7 D/F 

 œ
                  
140

4
4

  
ver de/i - lu - são Se eu qui - ses - se só te pro - por Dis -sol - ver a ques - tão

G F  7/A  B m F /A


 
145

4                
E co - me - çar no - va - men - te Sem ne - nhum pro - ble -

G D/F  F  m Bm
148
        
4   
        Ç
- ma Sem nun - ca fe - rir Mas eu só sin - to/a dis - tân -

F /A G G m6/A D 7sus

    K  
            @  K 
151

4 
- cia/Au - men - tar ca - da di - a Te sin - to par - tir

G Am

  • O    • O   
4  Ç Ç
154 PEDRO 4 4

   
Vem, a - go - ra/é pe -lo/Ar - thur É ho - ra de to -

G/B C 7M C/D G

    ‡
4 Ç              Ç Ç
156 4 2
2 2

mar A pri - mei - ra do - se de/es - pe - ran - ça Vem to - mar!


7 Saber Abrir o Coração 

Dm B@ C/E A m7(9)

 ‡
G
K  RAFAEL
@  ±   
     K Ç

161

4  
E - la/a - cei - tou a - ju - da/e tu - do mu - dou

Dm B@ E
L A 7/C  Dm B@

G        Ç ±       
@ ± G
 
164

4
Mas a - qui den - tro meu va - zio pi - o - rou e/o sen - ti - men - to de que

L D/F 
 3
Ç T
 
C/E A m7(9) Dm B 7M E A 7sus A

G     K 
4 @    K Ç ±    
LUCAS


167

»  
al - go que - brou Eu te-nho me - do de pen - sar que/a - ca - bou! Ca - da

A/G G A/C  D G

  
4  (   ±        ±  (   ±  
171


di - a mais dis tan - te de vo - cê Eu que - ri - a po - der

A/C  D G A D/F 


    ±               
174

4 
en - ten - der por - que Mas tem al - go que gri - ta mais al - to A - qui den - tro/em

E m7 G/A D

  Ç
4   ±       ±
177 LUCAS e RAFAEL

 Ç       
mim Es - tou com me - do do fu - tu - ro Mas sei do qu/eu que - ro pra

Em G
181
 ± ±
4 T         G Ç       
mim Tô a - pos - tan - do no es - cu - ro Di - zen - do não em vez de
8 Saber Abrir o Coração 

A 7sus D


±         G Ç ±
185

4 T       
sim Eu de - di - quei ca - da se - gun - do Pra es - se/a - mor con - ti - nu -

Em G


± ±
189

4 T         G Ç      
ar Mas ou - tro so - nho/a - dor - me - ci - do Vem do pas - sa - do pra/as - som -


A 7sus G/A


‡ ‡ K      Ç
193 PEDRO, CRIS e RAFAEL

4 T T
brar! Tu - do no lu - gar!


A 7M

             Ç Ç œ
198

4 K   
Já tá tu - do pron - to Só pre - ci - sa/e - le che - gar!


G/A

K      Ç            T Ç œ
201

4
Pra te re - ce - ber Bas - ta/a - brir a por - ta e en - trar!

  K   
Dm F 7M/G C 7M F

    K       K  ±  
205

4 (
Vem que/é pra mu - dar a nos - sa vi - da! Eu só

D/F 

         ±         Ç
D m/F E 7sus E

»  
207

4
que - ro/o teu a - bra - ço, que - ro ver o teu o - lhar Vem Ar -
9 Saber Abrir o Coração 

 T
Dm F /G C 7M

»    K       K     Ç
210

4
LUCAS

thur! E - le vem pra mu - dar tu - do/eu não vou a - guen - tar

           T
B m7 D/E A 7M Dm F 7M/G

  K       K  
213

4
Vai ser só pra e - le/a a - ten - ção Eu que - ri - a tan - to con -

    Ç KKK
C 7M Bm D/E A

± (   »
        Ç Ç
216

4
guir mu - dar Sa - ber a - brir meu co - ra - ção

F 7M/G C 7M Fm A @/B @ E @7M

4»  @       @     Ç
220

  T
CRIS, PEDRO, RAFA

Vem, Ar - thur! Vem pra mu - dar tu - do vem pra me/en -si - nar

Dm F/G C 7M Fm A @/B

 @       @  
224

4        T
Me fa - zer bo - tar os pés no chão Só u - ma cri - an - ça e vai

E@ Dm F/G C

4    Ç ± G »
227

    Ç
      Ç
me mos - trar Sa - ber a - brir meu co - ra - ção

Fm C9

4» @   TT ‡
231

 Ç Ç
Vem Ar - thur!
 O Melhor dos Dois Mundos 
Piano/Vocal
Ana Taglianetti
Danilo Demori

@ 
G m7

@ ‡ œ œ    
     
RAFAEL:

4 
O que/eu que - ro/é/o me - lhor dos dois mun -

E @7M/G
@ 
C 7/G G m7

4@ (   ±          œ  
4


- dos Is - so/é tu - do/o que que - ro pra nós E/a - cre -

@     
Gm C 7/G G m7 C 7/G

@   ±     œ 
   
7

4  ( 

di - te por ne - nhum se - gun - do Eu ja - mais vou dei - xar pra de - pois O a-

@
C m7 D m7 Gm G m7 G m6

4@                 œ  
11

mor que eu tra - go em mim Não se di - vi - de/em dois Vo -cê

E @7M/G
@
Gm C 7/G G m7

4 @         (   ±          œ  
15


é o mai - or dos meus so - nhos Na - da po - de to - mar teu lu - gar Mas e -

@        ±    
G m7 C 7/G G m7 C 7/G

@     œ 
19

4  ( 

xis - te/um a - mor di - fe - ren - te Que eu já não con -si - go ne - gar Es -se
2 [Title] 

E @7M/B @ C m7/B @ D/F G/B


@          •          ±  KK
C m7 A 7sus

@ 
23

4 
fi-lho que/eu tan - to que- ri - a E que/eu pos -so/a - go - ra/a - mar Eu pre -

D/F  D/F 
       ±  (   ±        ± 
D/C C G G/B C G G/B

4 ( ±   
27

 
ci - so vi - ver is - so com vo - cê É pos - sí - vel se a gen - te per - mi - tir Eu pre -

D/F 
     
C G G/F Am A m/G

±         ±         
4 (
31

fi - ro que/es - se/a - mor ve - nha/a nos re - di - mir Bas - ta/a - brir o co - ra - ção e sen -

D/F 
      ±    ± 
F D 7sus G/B C G C

4 Ç  ±  ( ±    (
35


tir É mais for - te do que eu i - ma - gi - nei E con - fes - so que a -

D/F  D/F 
         
G

C
  G G/F

±           
40

4 (
té ten - tei fu - gir Mas a vi - da me trou - xe de vol - ta mes - mo sem pe - dir

C m/E @
 
D 7sus D Am G/B

œ            ±        
44

4 
Lu - cas ten - te me com - pre - en - der O que te - nho no meu co - ra -
3 [Title] 

F /E @
 G 
D 7sus D Am G 9/B C

4   ±             
48

  
ção É pra di - vi - dir só com vo - cê É mais sim que não


C 6/D F C 9/E C 6/D

 ±          
52

4    (
Bem mais for - te do que vo - cê pen - sa


A 6/B E9

4     Ç Ç
55

Me/es - ten - da/a mão...


 O Melhor dos Dois Mundos 
Piano/Vocal
5HSULVH Ana Taglianetti
Danilo Demori

œ           (   ±  
Am D/A

 ‡ œ
4
RAFAEL:

Por vo - cê eu a - té fi - ca - ri - a Mas a -

    
A m7 D/A Am D/A

    œ        
5

4 
go - ra che - gou o Ar - thur Nes - se di - a co - me - ça/a jor - na -

   ±   
Am D /A

    œ  
 
8

4(

- da Des -se ser pe - que - ni - no de luz Eu es -

F 7M Dm

    
4     œ
RAFAEL:

‡ ‡
11 Eu tenho que ir, me desculpa

(
pe - ro que vo - cê me/en - ten - da...
 Algo Em Mim 
Piano/Vocal
Ana Taglianetti
Danilo Demori



4

C F m/C

G
5


             
LUCAS

    
A - cho que/a - ca - bou Co - mo á - gua pe - los de - dos vo - cê

C F m/C G/B Am

±    Ç ± 
7

4  Ç          
me/es - ca - pou Re - ve - lan - do os meus me - dos Vo - cê foi vo- ar Foi vi -

F/A F/G C F m/C

G
4       ±
10

  Ç  
      
ver de/um so - nho li - vre Por a - cre - di - tar No a - mor des-sa cri-an - ça que/ho-je

F6 F 7M F6 Dm

± ± G
13

4    Ç     Ç           
vai che - gar E - le vai che - gar Es - se co - ra - ção que ba - te Vai fa -

C 9/E F C 9/E Dm F/G

4       ±           ±           
16

 
zer tu-do mu-dar Eu não sei se pos - so re - sol-verAl-go/em mim sen-te/o que vai a-con - te-cer
2 [Title] 


‡ ‡
19

4 T

D G m/D

 G
‡          
22 PEDRO

4        
Já vai co - me - çar A/a - ven - tu - ra da/e - xis - tên - cia Que vai

 ±

25

4   Ç  
me/en - si - nar A/en - con -

G m/D A/C  Bm G/B G/A

    DZ      
     
26

4
trar a mi - nha/essên
- - cia Vo-cê vem vo -ar Vem vi - ver um so - nho li - vre Que-ro/a-

D Gm G 7M

 G
  Ç ±   ±
29

4           Ç 
cre - di - tar No a - mor des-sa cri-an - ça Que/ho- je vai che - gar E - le

G6 Em D/F 


±         G  ±
         
32

4    Ç
vai che - gar Es -se co - ra - ção que ba - te Vai fa - zer tu - do mu - dar Eu só
3 [Title] 

G D/F  Em G 6/A D


       ±             T
35

4
que - ro/a - mar sem me de- ter Al - go/em mim sen - te/o que vai a - con - te - cer

D/F  G D/F 


4 » •                   Ç ±
38 RAFAEL

U - ma cri - an - ça/es - trei - a ho - je/o pal - co da vi - da E - le

G/B G/A D

            ±  
 Ç
41

4
che - ga pra me en - con - trar a - qui Sou com

G A/G D A/C  Bm

        
  •
43

4       
e - le/al - guém que a - ma sem sa - ber por - que

Mas al - go/em

C G 6/B A 7sus C/D

 K
»
45

4             T Ç
mim sen - te/o que vai a - con - te - cer
LUCAS,
PEDRO
G e C m/G


RAFAEL

        
4       ±    
48

(
Já vai co - me - çar Vem ras - gan - do sem pie - da - de Só pra
4 [Title] 

G Cm Em

   Ç 

4   Ç ±           ±
50

me mos - trar Que o/a - mor não tem i - da - de E/o que vem mu - dar É a-

A m7 C/D G

              Ç ±  
53

4
pe - nas um be - bê Que che - ga/a re - ve - lar Tu - do/a -

Cm C 7M F 7sus,

         Ç ±   @  Ç ± 
55

4 (
qui - lo que de - se - ja Ca - da co - ra - ção Ca - da co - ra - ção A ver -

Am G/B C

                T
±  
58

4
da - de vem tra - zer Nin -guém vai ter co - mo es - con - der

Am

 Ç
±     (
  
61

4
LUCAS

0 (
3
Por ou - tras es - tra - das, Ahh,

     G 
‡ 
61

4
PEDRO


Ah, 3
A par - tir de ho - je


‡   •     
61

4
RAFAEL


Ah, É ou - tra ca - mi -
5 [Title] 

C
L
±
G/B C

 •     
G
   ± ±   T
63

4 Ç »
A - in - da que/eu não quei - ra Por vo - cê
63
 Ç  ±     (  ± ± ±   T
4 (
Pr/u - ma vi - da/in - tei - ra Por vo - cê

   Ç Ç  T
  
63

4 (
nha - da Tu - do por vo - cê!

       
Am C/D

 
±            
66

4
Al - go/em mim sen - te/o que vai a - con - te

G 7sus,

 TT TT
4 Ç Ç T
68

cer!
 Dorme 
Piano/Vocal
Ana Taglianetti
Danilo Demori
G C m/G

  
G •
CRIS

  G G
3

           

Dor - me fi - lho meu Des - can - sa E so - nha
G C m/G
7

           
   Ç
al - to/es - se teu so - nho de cri - an - ça
G C m/G

 PEDRO:
G •
9

  G
3 3 3

           
Es - se mun - do/é teu, es - sa dan - ça E - le te/es -
G F/G G


± O
11

 
PEDRO e CRIS

             Ç 
pe - ra chei - o de no - va/es - pe - ran - ça Só
C D/F  G

 ±
      O
13

         
   
que - ro/es - tar a - qui Te/a - mar sem ne - nhum me - do Só
A m7 C/D C m/D
15
 •
 G
            
  
que - ro que/es - se/a - mor Se - ja/um ca - mi - nho sem se - gre - do
2 [Title] 

G C m/G
17

      Ç      Ç

»
17 Dor - me fi - lho meu, Dor - me fi - lho meu

      Ç     
Dor - me fi - lho meu Dor - me - fi - lho meu

19
 ‡
      Ç      Ç
19
 Dor - me fi - lho meu, Dor - me
»
      Ç
Ç      Ç
Dor me Fi - lho meu
D

  
‡ 
22 LUCAS

 4     Ç
Sa - be meu a - mor
Gm D D

 œ •             Ç
26

4 
Vo - cê fez fal - ta ca - da di - a que pas - sou
G m/G Bm G6

       Ç
œ • » œ •
28

4 
      
Mas eu pre - ci - so te di - zer que/al - go mu - dou De - pois do
3 [Title] 

D/A G 7sus


          ± O   
31

4
3

Ç   Ç
3


so - no/a gen - te tem que con - ver - sar Foi bom sa - ber que/o/Ar - thur


œ •
          G 
34

4   
Te - ve/o teu co - lo/e teu a - mor to - do/es - se tem - po

36
 œ •                
4
3

 
3
Mas quan - do/a ca - sa/es - va - zi - ou eu pu - de re - fle- tir di - rei -
D

 G 
4   ± G  œ      
LUCAS

O
38

Ç
Lucas: Rafa? Rafa? 3


- to so - bre nós Dor - me a - mor meu Pre -
G m/D D


          •
49

4        
3

sen - te tão in - crí - vel que eu sem - pre quis Mas eu não
G m/D

 
        T » ±
51

4
3


pos - so te/im - pe - dir de ser fe - liz Só que -
4 [Title] 

G A/C  D

                ±  
56

4
ri - a/es - tar a - qui Te/a - mar sem ne - nhum me - do Só que -
Em A 7sus


•
58

4              
  
ri - a que/es - se/a - mor Fos - se/um ca - mi - nho sem se - gre - do
D G m/D D

 ‡ ‡
     Ç
60

4      Ç
Dor - me fi - lho meu Dor - me a - mor meu
D Gm


     Ç œ •        
64

4
Dor - me meu a - mor Foi por vo - cê que quis cu - rar
D Gm

 
      œ •
     
66

4  
ca - da fe - ri - da Po - rém eu sin - to que/es -sa/é/a ho -
Bm G6 D/A A

   
    œ •       
68

4 (       Ç
- ra da par - ti - da Foi só um so - nho se - gu - rar a tu -a mão
5 [Title] 

D G m/D


»      Ç œ •
       
71

4 Ç
Se - gue/a vi - da/em paz Eu já não pos - so ser a pe -
D G m/D


     G  œ •
   

74

4   
- dra no ca - mi - nho Eu sei que/e - xis - te/o teu de - se -
Bm G6 A 7sus

    G
      
76

4
3

         Ç
3

- jo/En - tão pre - ci - so re - sol - ver es - ta ques - tão por nós dois
A G

          
‡ » ± O
79

4 
En - ten - da/es - sa par - ti - da Co - mo/a
A/G D/F  Em


       ± O •
82

4         
por - ta pro fu - tu - ro Te dei - xo/o meu a - mor E/a vi - da
G/G D G m/D


     Ç
84

4              Ç
li - vre pr’es - se so - nho Dor - me a - mor meu Dor - me fi - lho meu
6 [Title] 

D D Gm

 G3 G
‡  G •
87

4        
Dor - me a - mor meu Des - can - sa A tu - a
D G m/D D

 G 3
PEDRO

              
90

4
3

   Ç 
vi - da/a - go - ra é u - ma cri - an - ça Dor - me fi - lho meu Des -
Gm D C/D

 G
4    •             œ
93

  Ç
can - sa É ne - ces - sá - rio des - per - tar es - sa mu - dan - ça
G A 7/C  D

                 ±  
96

4
Se - gue/a vi - da/em paz Eu fa - ço is - so por vo - cê Vo - cê
E m7 A 7sus A


      •    »
98

4      Ç T  
L
é a mi - nha paz E mi-nha for - ça de vi - ver Ten - te
Bm B m/A G G 6/A


   T » ±      Ç
102

4    
   @  K Ç
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A - deus.


EPÍLOGO

Chegar até aqui significa mais um começo do que um fim. Não sinto que seja um ponto
final, mas o início de uma jornada de pesquisa e atuação artística em dramaturgia
musical. Cada passo do caminho trilhado para dar vida ao que era apenas uma ideia
leva agora a outros próximos passos.
Mas esse caminho a trilhar não é apenas meu. São tantas as vozes que buscam hoje
se fazer ouvir na nova dramaturgia musical brasileira. São tantas jornadas heroicas
de artistas, compositores e dramaturgos, que colocam cada tijolo em uma estrada que
vem sendo construída por todos, numa grande polifonia criativa.
As entrevistas realizadas no início desse processo criativo descrito pela tese, e que
tanto inspiraram os passos da pesquisa, trazendo luz e inspiração, encontram-se na
íntegra nos anexos desse texto. Mas são tão importantes as falas desses grandes
artistas que tive a honra de entrevistar, que me inspiraram a criar, com suas palavras,
aquilo que melhor sabemos fazer: um momento teatral. Apresento-vos, senhoras e
senhores, “Uma Sala de Conversa” – Entrevista com autores contemporâneos de
teatro musical no Brasil. Tenham todos um bom espetáculo!

“UMA SALA DE CONVERSA”

(A cortina abre. Em cena, cinco autores de teatro musical: Ricardo de Castro Monteiro,
Daniel Salve, Carlos Bauzys, Ricardo Severo e Ana Taglianetti. Estão sentados em
cadeiras, num semicírculo. Ana entrevista os outros autores).

ANA
Esta é uma roda de conversa entre estas pessoas que considero muito e que, de
alguma forma, me inspiraram em minha jornada. Meus passos como autora, como
dramaturga, ainda estão no início, e com certeza a estrada de cada um de vocês tem
iluminado o meu caminho, embora nem saibam disso. É um prazer ter vocês comigo:
Ricardo de Castro Monteiro, Daniel Salve, Carlos Bauzys. Ricardo Severo, é um
prazer te receber na minha jornada, nossos trabalhos não se cruzaram antes, mas
tenho certeza que a partir de agora se abre aqui esta oportunidade!
28

RICARDO SEVERO
Com certeza, Ana.

BAUZYS
Oi, Ana, é um prazer.

RICARDO MONTEIRO

Que bom que deu certo a entrevista, Ana!

DANIEL

Um prazer, Ana.
ANA
Gente, eu vou lançar algumas perguntas, vou pedir a vocês para comentarem, e a
gente conversa um pouco sobre o assunto, pode ser? Vamos lá então! A primeira coisa
que eu quero saber é sobre a relação de vocês com o teatro musical. Afinal, todos
vocês têm um histórico ligado ao teatro ou à música anterior à chegada dessa
linguagem do teatro musical nas vidas de vocês, certo? Deixa eu formalizar aqui: vou
pedir a vocês que descrevam brevemente como começou sua experiência com o
teatro musical.
RICARDO MONTEIRO

(Ricardo abre a conversa) Minha primeira experiência como autor de teatro musical
foi em 1994, ao conceber o espetáculo A Solidão dos Anjos, premiado na Mostra
SESC (Serviço Social do Comércio) daquele ano.

DANIEL

Comecei a carreira no teatro musical como performer, atuando profissionalmente em


musicais como Pocket Broadway e Rent. Passei a atuar também como diretor musical
a partir de Cazas de Cazuza.

RICARDO SEVERO
29

Considero meu primeiro trabalho de teatro musical, onde as canções faziam parte da
dramaturgia contando a história junto com os diálogos, um espetáculo infantil de 1990
produzido pela Cia Teatro di Stravaganza, um dos grupos teatrais mais antigos de
Porto Alegre e ainda em atividade. Na peça Por Um Punhado de Jujubas, trabalhei
com os idealizadores substituindo parte do texto por canções interpretadas ao vivo. O
espetáculo de uma hora tinha doze canções, teve várias remontagens feitas pelo
próprio grupo, teve um CD lançado com a trilha, ganhou vários prêmios nacionais e
internacionais, e ainda está no repertório da Cia. até hoje. Com o Stravaganza ainda
fiz os musicais A Lenda do Rei Arthur, que tinha mais de trinta canções, O Ovo de
Colombo, com doze canções que eram a maior parte da peça, e Decameron, com
canções originais compostas em italiano, todos premiados. Desde então, segui
compondo canções para a cena, entre as diversas trilhas para montagens adultas e
infantis, até os dias de hoje. Foram mais de oitenta espetáculos, e mais de vinte
prêmios com minhas trilhas musicais.

ANA
E você, Bauzys? Eu me lembro de ver você começando, lá na Escola de Arte
Dramática da USP...

BAUZYS
Bom, desde que eu comecei na música, para mim teatro e música andavam muito
juntos. Na época que eu estudava música, participei de grupos de teatro, e tudo.
Mesmo antes de entrar na faculdade. E quando entrei na faculdade, eu fiz UNESP
[Universidade Estadual Paulista], composição e regência.

ANA (Para Bauzys)


Ou seja, de uma certa forma, desde o início você sentiu que estava sendo puxado pra
esse lado...

BAUZYS
É... isso já era algo claro pra mim, eu gostava muito dessa interdisciplinaridade, teatro
– música – dança. Queria trabalhar com isso. E aí, na UNESP eu montei grupos de
música, eu sempre trazia elementos cênicos. Mas foi o maestro Abel Rocha que me
20

levou, como assistente dele; ele me conheceu na UNESP e ele me levou como
assistente dele pra fazer meu primeiro musical, que foi o Hair, na EAD [Escola de Arte
Dramática da USP], com direção do Iacov Hillel. O Abel Rocha me levou pra ser o
regente da banda, eu fiz os arranjos da banda e fui o regente. E me apaixonei (risos).
Opa! Não posso deixar de citar, que no início de minha carreira...é... foi importante o
período onde eu dei aula numa tal Casa de Artes OperÁria (risos). E... e lá fiz algumas
montagens, dei... dei aula de canto coral e teoria musical, e foi muito bacana também
essa experiência, cresci muito lá também.

RICARDO SEVERO
Desde o início de minha carreira como compositor de trilhas para teatro em 1986,
compus canções para a cena, em espetáculos adultos e infantis. Mas esses primeiros
espetáculos poderiam ser considerados como “peças com canções”, entre os norte-
americanos, o sub-gênero “play with songs”, que é quando a peça tem um número
reduzido de canções, ou quando os números musicais estão colocados na cena de
forma mais ilustrativa. Ainda assim, uma grande parte dos espetáculos onde fiz a
música original teve uma canção composta por mim. . Fui criador em produtoras de
áudio criando trilhas e jingles, nesses escrevendo as letras e músicas, além de fazer
toda a produção musical

ANA
E a partir disso, como é que houve continuidade pra dentro dessa linguagem, desde
essas primeiras descobertas? (para Daniel Salve) Me lembro do Daniel vindo até a
OperÁria me falar sobre um projeto de dramaturgia...

DANIEL
Sim! Um dia percebi que eu estava disposto a me utilizar de alguns talentos que eu
acreditava ter para contar novas histórias e criar novas obras, na tentativa de
amadurecer o autor/compositor que estava latente e contribuir para a construção de
um novo musical brasileiro, algo que refletisse a nossa identidade cultural dentro da
linguagem do teatro musical sem se limitar aos regionalismos e às releituras do
passado. Essa diretriz sempre me pautou. Passei a me dedicar à composição e a
dramaturgia diariamente, de forma quase monástica, em um processo de
amadurecimento que levou quase cinco anos. Foi uma fase de muito aprendizado,
autoconhecimento e entrega, e sinto que muito do que compus e escrevi nessa época
21

me reflete nitidamente. Essa busca também me fez montar um pequeno grupo, uma
companhia flutuante de atores, coisa que sempre gostei de fazer e que se mostrou
parte do meu método de desenvolvimento de novas obras.
ANA

Acho muito importante o trabalho em grupo. Eu tenho percebido mais e mais essa
importância. O processo criativo do meu musical, o 47, foi bastante coletivo, os atores
dando feedback o tempo todo.

BAUZYS

Eu já fiz musicais onde a criação era coletiva, por exemplo. E meu trabalho era
organizar as ideias, muitas vezes criar também, junto, é... mas a maior parte em
organizar a criação coletiva, né... e dar forma àquilo. Esse também é um processo
muito interessante... enfim, tudo é possível (risos) no teatro musical, isso é demais.

RICARDO MONTEIRO

Tenho uma predileção pelo trabalho de grupo, considerando mais gratificante vivenciar
suas muitas limitações do que entregar trabalhos prontos apenas para serem
montados por produtores em busca de projetos.

ANA

Concordo com você, Ricardo. É mais gratificante, mesmo. Agora, voltando para a
experiência de vocês, queria saber mais um pouco sobre suas trajetórias.

BAUZYS

A partir dali [da EAD – Escola de Arte Dramática], não parei mais com o teatro musical.
Logo depois fiz outro musical, lá na EAD, como diretor musical, que foi a Ópera do
Malandro. Depois disso o Miguel Briamonte me chamou pra fazer o meu primeiro
grande Musical Broadway, que eu o fui regente do Sweet Charity, com a Claudia Raia,
e não parei mais, graças a Deus....é... sempre continuei trabalhando como diretor
musical de teatro musical, como maestro. Às vezes, também, compositor, arranjador...
22

e é o que eu realmente amo fazer, é aonde eu queria trabalhar. 2006 foi meu primeiro,
Sweet Charity, então tem mais de 12 anos que eu estou nesse mercado, já fiz
bastante, já trabalhei bastante em grandes produções, graças a Deus já tenho um
currículo bem bacana. Tenho a sorte de ter trabalhado com grandes... acho que com
quase todos os grandes diretores de teatro musical, eu trabalhei, aqui em São Paulo,
no Rio, os coreógrafos também... tenho também muita sorte e também muita gratidão
por estar nessa carreira.

DANIEL

Meu primeiro impulso neste percurso resultou em um song cicle chamado A Quase
História de Ninguém, que se desenvolveu em alguns workshops e showcases. Esta
obra se desmembrou em uma tetralogia um tanto complexa, mas acabei optando por
focar e desenvolver apenas uma das histórias (com a mesma companhia de atores):
a ópera pop Eros e Psiquê – A Origem do Amor. É o único musical que escrevi até
hoje que é quase inteiramente cantado. Ela segue inédita e sonho produzi-la algum
dia.

ANA (Para Daniel)

Eu me lembro disso. Foi esse projeto que você levou para mim, foi assim que conheci
você! Mas aí você teve uma obra sua que chegou a público, certo?

DANIEL

Depois de superar algumas frustrações típicas de um jovem compositor/dramaturgo


frente às dificuldades que a produção cultural no Brasil impõe, ainda mais no que
tange musicais originais, escrevi o musical Ponto de Bala, que estreou no Theatro São
Pedro em 2013 e seguiu com duas temporadas no espaço Parlapatões em 2014/2015,
em São Paulo.

ANA

Severo, você também seguiu com experiências como dramaturgo, certo? E ainda
ganhou vários prêmios...
23

RICARDO SEVERO

Minha primeira incursão como dramaturgo foi em 1999, com um musical infantil
chamado Caçadores de Aventuras, onde escrevi o libreto - texto e canções. Depois
veio Ópera Monstra, de 2010, também para a Cia teatro di Stravaganza, mais uma
vez com o libreto. Em 2012, dirigi a comédia musical O Incrível Dr. Green, onde
também fiz a trilha incidental, e seis canções interpretadas ao vivo pelo elenco. Em
2014, com a peça Caros Ouvintes, que tinha canções interpretadas ao vivo por
Amanda Acosta, ganhei um Prêmio Shell de Melhor Música. Em 2016, escrevi as
canções do musical Um Dez Cem Mil Inimigos do Povo, para a Cia da Revista, que
teve direção de Kleber Montanheiro. Também com Kleber, fiz em 2018 a direção
musical de Carmen, a Grande Pequena Notável, tendo Amanda Acosta cantando as
canções de Carmen Miranda.

ANA
O Ricardo Monteiro teve também essa experiência de ver o próprio musical encenado,
o Rua 13 de Maio. Fala um pouco pra gente sobre esse processo, Ricardo.

RICARDO MONTEIRO

Esse espetáculo nasceu a partir de um convite de nosso saudoso mestre, José Renato
Pecora. Zé, assim como Paulo Autran e Fauzi Arap, gostava muito de um certo
espetáculo meu - A Viagem de Alice, do Céu ao Apocalipse. Mas como Alice era uma
produção cara - cerca de 36 personagens, sendo 5 centrais, e administrável com algo
em torno de 15 atores -, ele, que iniciava, ao mesmo tempo cauteloso e esperançoso,
seu novo projeto com a inauguração de seu Teatro dos Arcos, me convidou a escrever
um espetáculo sob medida para aquele espaço, com poucos atores, e profundamente
enraizado no imaginário do Bexiga. Foi assim que começou o Rua 13 de Maio. O
bairro, grande estrela da peça, aparece de diversas formas: no passado, a colônia
italiana da 1a metade do século XX, sua cultura, seus casarões. No presente, as
ruínas daquele mundo habitadas agora pela população de rua, o tráfico de drogas, as
24

leis invioláveis dos fora-da-lei, os mandarins do poder que controlam tudo sem que
seu nome venha à tona jamais, a lei do cão, e a tênue e fugidia linha que por vezes
separa o delírio da revelação, a alucinação da transcendência.
Depositei esse texto e suas músicas nas mãos ainda firmes do já octogenário Zé
Renato, um dos mais importantes diretores do teatro brasileiro do século XX.
A seu pedido, várias vezes reescrevi, cortei e acrescentei cenas e músicas.
Zé Renato venceu as adversidades e limitações técnicas, financeiras, e artísticas, e
conseguiu pôr de pé o espetáculo, buscando extrair o melhor que cada ator e atriz
tinha para oferecer naquele momento.
Ficamos cerca de dois meses em cartaz, que era o que nossa estrutura de produção
poderia comportar naquele momento.

ANA

E pra chegar nisso, pessoal, como foi que vocês se prepararam? Houve estudo formal,
como é que foi isso pra vocês?

DANIEL

Meu desenvolvimento sempre se baseou na observação e na prática intuitiva. Não


tenho formação acadêmica como compositor nem autor, mas o teatro musical sempre
ressoou em mim de forma muito natural. Estudei teatro, música e roteiro
separadamente, na maioria das vezes enquanto fazia. Stephen Sondheim me
ensinou a importância das palavras e da harmonia; William Finn me ensinou que a
simplicidade é um superpoder; Jonathan Larson me ensinou que quanto mais pessoal,
mais interessante a obra; Joseph Campbell me trouxe muitas respostas sobre
narrativa mítica; John Truby e seu The Anatomy of Story me deu muitas ferramentas
válidas sobre storytelling; Chico Buarque me ensinou que a música brasileira tem uma
condução específica no teatro musical. A lista não tem fim.

ANA

Eu me lembro claramente de ter ido buscar me formar da melhor maneira possível


para atuar com ópera e teatro musical, que naquele tempo era outro conceito de
musical. Havia uma grande escassez de formação, aqui no Brasil. Isso foi lá pelos
25

idos do início dos anos 1990. Hoje, a história é outra. No meu caso, eu busquei tudo
o que pude por aqui, e quando esgotaram as fontes fui pra Nova Iorque estudar. Nessa
época ainda nem tinha esse mercado de musicais que hoje existe no Brasil. Como foi
isso pra vocês, essa transição para essa fase atual dos musicais no Brasil? Antes era
diferente? Como apareceu esse “ser criativo” de vocês, lá no começo? As primeiras
experiências?

BAUZYS

Tudo que eu estudei em música, e tudo que eu participei de grupos de teatro e, até de
dança – eu já fiz aula de dança (risos) – tudo que eu aprendi na UNESP [Universidade
Estadual Paulista] em composição, tudo isso acabou virando técnica, tudo isso se
juntou na cabeça, tudo que eu já li, tudo que já ouvi, tudo que já toquei, tudo isso virou
instrumento de criação. O artista criativo é isso, toda nossa experiência de vida vira
instrumento de criação. Nosso contato com a natureza vira instrumento de criação.
Nossos amores viram instrumento de criação. O artista criativo é isso: a maneira como
tudo que está dentro dele se junta e se mistura e se transforma, e no processo criativo
nasce de forma única, fruto de tudo que ele viveu, estudou, ouviu. Essa pelo menos é
a maneira como eu enxergo. A criação original... você pode sim usar técnicas
específicas, coisas que você aprendeu, você... algumas coisas te ajudam a percorrer
os caminhos de forma mais fácil, só que, no final, a criação é tudo isso misturado, tudo
isso junto. Senão acaba virando só cópia de alguma outra coisa, mas a criação original
mesmo, é dessa forma intuitiva, onde tudo se mistura, rola essa metamorfose dentro
de você mesmo e tudo o que você viveu, aprendeu, ouviu têm importância
fundamental e se transforma em arte quando você está criando. Então a criação
original tem sim a assinatura do criador, é a sua vivência, experiência de vida ali.
ANA

Você está dizendo que sente que no seu caso tudo é mais intuitivo?
BAUZYS

Pode-se dizer que é bem intuitiva nesse caso, apesar de que tudo, todas as
ferramentas estão ali na sua cabeça, na sua forma de fazer, presentes como
instrumentos, mas elas são mais um elemento. As técnicas... as ferramentas são mais
um elemento dentro de todos os outros elementos que fazem parte da criação. É, acho
26

que essa é uma boa maneira de descrever.

ANA
Quando você diz “ferramentas”, então significa que essa intuição está calcada numa
base encontrada no estudo formal? Você considera ter sido importante o estudo
acadêmico?
BAUZYS

Ainda falando sobre essa questão, o estudo acadêmico é importante sim, o estudo
acadêmico eu digo, a parte teórica é muito importante, mas não menos importante e
talvez mais importante seja a parte prática, ou seja, que você possa estudar e colocar
em prática. Isso fez toda diferença no período que eu fiz faculdade, apesar de que
naquela época, a UNESP [Universidade Estadual Paulista] não oferecia uma parte
prática muito intensa, aliás era bem pouca a parte prática que a UNESP oferecia, por
isso me vi na necessidade de montar grupos, montei grupo vocal, montei quarteto de
violão, banda, onde o que eu aprendia nas aulas eu podia colocar em prática,
experimentar, fazer e nada melhor do que essa experiência prática pra você realmente
tomar conhecimento, fixar conhecimento, ver o que funciona, ver o que não funciona,
experimentar, fazer mesmo. Meu conselho sempre pra quem está estudando é: estude
a teoria mas dê seu jeito de pôr em prática (risos), junte amigos, monte grupos, entre
em grupos, e coloque em prática, é o melhor jeito de aprender, sem dúvida.

ANA

Me parece que todos vocês têm algum background de estudo, ainda que através do
autodidatismo. Mas de alguma maneira foram buscar, ou estão buscando, informação.

RICARDO SEVERO

Em 2018, iniciei uma pesquisa de Mestrado na USP [Universidade de São Paulo]


tendo como tema geral a busca de novos caminhos para uma dramaturgia original no
teatro musical brasileiro, e focando na análise do sentido das letras nos subgêneros
do teatro musical. Tenho a intenção de seguir para o doutorado, abrangendo então a
análise das estruturas dramatúrgicas e musicais.
27

ANA
Em que ponto estão agora, como criadores?

DANIEL

Atualmente, estou em pré-produção com um projeto que venho desenvolvendo desde


2014, um musical inspirado no imaginário das cantigas de roda e parlendas chamado
Ciranda, com estreia prevista para o segundo semestre de 2019. Ao mesmo tempo,
estou desenvolvendo um novo drama musical chamado Nautopia.

ANA

Oba, tem obra original saindo do forno!

RICARDO MONTEIRO

Estou escrevendo e ensaiando um novo musical em processo de work-in-progress.

ANA

Qual é esse seu novo musical, Monteiro? Pode falar um pouco sobre o processo?

RICARDO MONTEIRO

Falo agora um pouco do espetáculo que escrevo e dirijo neste momento, em processo
de work-in-progress. Ao fundar o Núcleo de Teatro Musical da UFCA (Universidade
Federal do Cariri), minha ideia inicial era a de aproveitar certos textos que eu já havia
trabalhado anteriormente - inclusive, um deles com a ação se passando no próprio
Cariri, escrito em uma época em que eu jamais imaginaria que viria a morar ali.
Embora o processo estivesse caminhando de maneira promissora, comecei a me
perguntar se eu de fato estava fazendo teatro, ou se estava simplesmente ensaiando
28

atores. Senti que, no caso, estava caindo na armadilha de me satisfazer com a


segundo alternativa. A solução parecia evidente: teria que escrever um texto que de
fato dialogasse com a realidade daquelas pessoas, ao invés de tentar adequá-las ao
produto final de processos que não lhes diziam respeito. Temos cerca de uma hora de
peça pronta - faltando cerca de 40 minutos de cenas para consumar o espetáculo.
Ano passado, apresentamos, com dois elencos diferentes, uma coletânea de cenas
totalizando cerca de 45 minutos. Pretendo finalizar até o final deste ano o processo
de escrita da peça para, se tudo der certo, vê-la estrear em 2020.

ANA

No caso de vocês dois, Bauzys e Severo, o que está saindo do forno é o Aparecida,
certo? Contem pra gente um pouco sobre esse processo criativo.

BAUZYS

O Walcyr Carrasco fez o texto, a estrutura do texto, passou pra gente, é... pra gente
eu digo eu, que estou fazendo as músicas, e o Ricardo Severo, que está fazendo as
letras, eu e o Ricardo escolhemos. Aí sim, o Walcyr [Carrasco] já tinha dado algumas
indicações mas a gente que fechou mesmo a estrutura de onde vai, de onde teriam
as canções, as músicas, e do que elas iriam falar, e aí o Ricardo está fazendo as letras
e eu tô fazendo as músicas em cima das letras... nesse processo, muitas vezes eu
faço, eu mexo, e depois volta pra ele [Ricardo Severo],e então é a vez dele mexer,
enfim. Se bem que em algumas músicas que eu já tinha a sonoridade e a melodia
muito claras na minha cabeça eu fiz primeiro a música e depois passei pra ele pôr a
letra em cima. Em algumas músicas foram feitas assim mas a maioria das músicas
não, ele fez a letra primeiro e eu fiz a música depois. Mas tudo isso pra dizer que
realmente varia. Tudo é válido e tudo é possível no teatro musical, os processos
variam muito.

ANA

Basicamente você está dizendo que o processo de Aparecida foi baseado num time
criativo que trabalhou junto, cada um fazendo a sua parte. Como funciona isso para
todos vocês? Trabalham em equipe, sozinhos, como é pra cada um de vocês?
29

DANIEL

Até hoje, eu sempre assumi os três papéis, o que é – acredite – muito difícil e
trabalhoso e a cada nova obra fica ainda mais difícil. Adoraria colaborar com outros
parceiros, mas não sei o quanto isso seria um desafio para mim. Acho que isso sempre
se deu comigo de forma natural, me habituei a construir a tríade
dramaturgia/música/letra sozinho porque para mim se trata de um logos, uma unidade
tríplice com a qual em dialogo bem. Talvez eu seja um melhor compositor do que
letrista, ou book writer do que compositor, mas para mim o desafio é exatamente este:
me desenvolver por completo.

RICARDO MONTEIRO

Desde sempre assumo os três, embora não me oponha a criar em colaboração. Mas
isso simplesmente não aconteceu até o momento.

RICARDO SEVERO

Já experimentei todas essas alternativas: compus as canções - letra e música, escrevi


o texto e compus as canções, e em Aparecida – um musical, pela primeira vez escrevi
apenas as letras das canções, cujas melodias foram criadas por Carlos Bauzys. Acho
que o porque neste caso não importa muito. Algo que é recorrente nos “manuais” dos
musicais de matriz Broadway é que a dramaturgia é quase sempre feita em conjunto
entre os escritores e os compositores. Isso me leva a crer que essa é a melhor maneira
de criar um musical original, com as três partes sendo criadas em grupo. Pude testar
o processo de composição lado a lado com Carlos Bauzys em Aparecida, e o resultado
não poderia ter sido melhor. A história sendo contada a partir de uma canção criada
dessa forma tem mais fluidez e compreensão.

ANA

E pra você, Bauzys?


20

BAUZYS

Isso depende, né, depende do processo, depende do espetáculo, depende da


concepção. Podem ser feitas juntas, podem ser feitas separadas, no meu caso,
normalmente, são coisas separadas. Eu prefiro que sejam coisas separadas. Alguém
que faça o texto, que seja realmente... conhecedor de dramaturgia, um bom roteirista,
que tenha estudado e vivenciado isso na vida... é... a letra por alguém que conheça
muito poema, formas de poema, que conheça muito... é... que tenha estudado muito
letras de músicas, né, toda essa parte, que conheça muito a nossa língua, obviamente,
e a música feita por um compositor que também tenha se dedicado muito a isso. É
claro que no final todas essas coisas se misturam, e mais pra frente no processo
criativo todos têm que conversar e chegar a algum acordo. Mas... eu prefiro trabalhar
dessa maneira, acho que se chega a um resultado melhor. Claro que o diálogo tem
que estar sempre presente, muitas vezes o compositor sugere coisas ao letrista, o
letrista ao roteirista, e a gente chega assim ao melhor resultado possível. Mas no meu
caso acho que cada profissional fazer a sua parte funciona melhor. Cada um fazendo
a parte em que realmente é especialista. É isso.

ANA

Tenho muita curiosidade de saber a respeito da linguagem que usam em suas obras
e sobre o processo criativo de vocês.

RICARDO MONTEIRO

Musicalmente, utilizo uma linguagem essencialmente polifônica, e oriunda de


parâmetros harmônicos, rítmicos e melódicos com muitos elementos em comum com
a MPB [Música Popular Brasileira], assim como apresentando também influências da
música erudita em termos de escrita. A colocação que utilizo tende a requerer
conhecimentos de técnica vocal, mas em termos de timbre costumo preferir que o
cantor se aproxime da estilística da MPB.
21

BAUZYS

Bem, no que diz respeito a processo criativo, dos [musicais] que eu fiz compondo,
com texto, letras e canções originais, normalmente é assim: libretista muitas vezes faz
o texto e as letras, ele mesmo já escolhe onde serão as músicas, pelo menos as
canções, depois eu vou escolher onde eu vou colocar os underscores, os reprises,
tal, mas as árias, as canções, ele normalmente já escolhe, agora claro que, no
processo de composição muita coisa tem que ser mexida da letra, pra se adequar a
forma da música que eu quero fazer, e tal, então muitas vezes eu mexo na letra,
mando de volta, aí, aí ele corrige o que quer corrigir, ou fala “ah, não, tá ficou legal
assim”, ou às vezes a gente tem um texto, um argumento, então, tem a estrutura de
um texto, aí passa pra outra pessoa que vai fazer as letras, ou posso ser eu mesmo,
apesar de que eu prefiro não fazer as letras, não é meu forte, muitas vezes eu mexo
nas letras pra se adequarem às músicas, mas eu prefiro que alguém especialista em
letra faça. Eu acho que fica melhor. Um bom letrista tem que entender muito de poema,
tem que entender muito de dramaturgia, de poética, de tudo que diz respeito a isso,
especificamente.

ANA

É que você prefere trabalhar em equipe na hora da criação, certo? Cada um na sua
área?
BAUZYS

E o meu forte é a música, então... quando um bom letrista faz, eu prefiro.

ANA

Vocês acham que suas jornadas pelo teatro musical acabaram levando vocês a
criarem técnicas próprias? Ou vocês seguem técnicas de dramaturgia propostas por
teóricos da área? Apareceram autores relevantes nas suas pesquisas? Cursos
relevantes?

RICARDO SEVERO
22

Quando iniciei compondo canções para a cena, eu tinha uma técnica própria, que era
de substituir uma parte do texto dramatúrgico por uma canção que continuasse
contando a história naquele ponto. Mais tarde, comecei a estudar cinema e roteiro,
sou formado em Publicidade. Também fiz oficinas diversas de dramaturgia para teatro,
de dramaturgia de TV, de dramaturgia para teatro infanto-juvenil.
Como iniciei minha carreira como músico, compositor e produtor musical também em
1986, tive apenas a experiência de compor canções populares para cantores e
cantores que acompanhei e/ou produzi. Mas sempre pesquisei por conta própria
desde a forma da canção na ópera até os cancionistas populares nacionais e
internacionais

BAUZYS

Se eu sei citar livros, cursos... difícil, porque eu teria que citar todos (risos) os que eu
já li, não vou conseguir citar nenhum específico, que todos fazem parte. O que eu
posso dizer é que sim, a formação acadêmica foi muito importante, justamente porque
te dá uma ampla gama de elementos, muitos instrumentos, muitas referências.
Principalmente na hora de arranjar pros instrumentos, pras vozes, aí sim, a formação
acadêmica te dá o conhecimento necessário que você precisa ter pra aqueles
instrumentos, para aquelas vozes, pra você compor de maneira que seja efetiva, que
funcione da melhor maneira possível. O estudo acadêmico é muito importante eu
acho, muito importante... pra te dar todas as ferramentas necessárias pra você fazer
a melhor obra possível e que funcione...

RICARDO MONTEIRO

Atualmente, tendo a seguir um conjunto de técnicas de dramaturgia que me foram


passadas, principalmente, por Carlos Reichenbach, Chico de Assis e Ed Khmara. Elas
tendem a seguir a estrutura de curva dramática proposta por Syd Field e as funções
dramáticas discutidas por Christopher Vogler. Como nenhuma delas foi concebida
especificamente para o teatro musical, desenvolvi uma série de estudos sobre as
funções dramáticas da trilha sonora – o mais completo deles presente em um artigo
científico que publiquei com a análise da trilha sonora de Vertigo em um projeto de
semiótica aplicada desenvolvido pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo). Os estudos foram canalizados para uma disciplina do curso de pós-
23

graduação em trilha sonora na Universidade Anhembi Morumbi, onde lecionei por


vários anos, e resultaram em um conjunto de técnicas de que me utilizo tanto como
pesquisador quanto como autor.

ANA

Que legal ouvir você dizer isso, Ricardo, pois venho estudando justamente a estrutura
dramática a partir do olhar do Vogler, proposta por ele a partir da obra do Campbell.
Encontrou respostas em outras obras, Monteiro?

RICARDO MONTEIRO

Toda minha formação em dramaturgia sempre buscou respostas para as


especificidades do teatro musical – no entanto, não encontrei até o momento nenhuma
obra especificamente concebida para o teatro musical que tivesse deixado uma marca
maior em minha maneira de apreender e/ou de conceber um espetáculo nesse
formato.

ANA

Dando uma olhada no currículo de vocês antes da entrevista, percebi que eu e o


Severo temos pesquisado as mesmas obras de referência...

RICARDO SEVERO

Sim, tenho pesquisado em todos os livros referentes ao assunto que posso encontrar,
dentre os musicais de matriz Broadway, de matriz Brechtiana e de matriz Brasileira.
Existem diversos livros e manuais sobre como escrever musicais de matriz Broadway.
Afinal, eles têm mais de noventa anos de experiência continuada na criação e
produção desse tipo de musicais. Durante o mestrado na USP, cursei disciplinas de
semiótica musical e semiótica da canção, analisando obras e decupando suas
estruturas, formas e linguagens.

ANA
24

E no que diz respeito à aplicação técnica dos conhecimentos obtidos através do


estudo?

BAUZYS

Com relação a se eu criei minhas próprias técnicas, a gente acaba criando nosso jeito
de fazer, nossa cara, mas isso a cada musical a gente descobre um jeito novo de
fazer, percebe coisas novas, caminhos novos pra percorrer, eu não sei, assim, é difícil
dizer que “você” criou então esse jeito de fazer. Não sei, eu criei pra eu fazer, mas não
sei se outra pessoa também já não percorreu o mesmo caminho, criou da mesma
forma. Mas... eu, a maior parte das vezes eu descubro um caminho pra ser feito.

DANIEL

Como na maioria das vezes parto de algo abstrato, algo que internamente me
provoque, ou que me sugira uma história a ser “descoberta” ou “esculpida”, um
símbolo, uma imagem interessante, um tema ou até mesmo um título, entender que a
estrutura era fundamental para não me perder no caminho foi um grande passo.
Assim, no caso de um book musical, costumo estruturar a espinha dorsal dos atos em
um número específico de cenas e distribuo os números musicais de forma que aquilo
me pareça fluido, e isso vai se expandindo e se retraindo e mudando constantemente.
É um grande quebra-cabeça.

ANA

Sinto que precisei conhecer a estrutura formal também, justamente pela mesma
razão, para não me perder, uma vez que minha obra parte de uma simples indagação,
e não de uma história pré-concebida. Por isso busquei a obra de Vogler.

DANIEL

Peter Stone, autor de Titanic e 1776, dizia que um musical é algo que você mais
reescreve do que escreve, e há uma grande sabedoria nesta sentença. Claro, há que
se ter uma diretriz e saber que história você pretende contar. Tudo começa com uma
ideia que se torna um conceito, que se molda em uma premissa, que se desdobra em
25

uma escaleta e por aí vai. Você não vai começar a escrever um musical a partir dos
diálogos. O importante, pelo menos no meu caso, foi compreender que usar a
estrutura inteligentemente é ancorar a história de forma cada vez mais orgânica,
fugindo das metodologias que propõem estruturas mecânicas.

ANA

E pra você, Bauzys? Como é essa história de estruturar formalmente?

BAUZYS

Então, da mesma maneira, como eu disse que cada espetáculo é um espetáculo,


também quando você vai compor um Musical cada processo é um processo. Curioso
isso, também, porque cada espetáculo também vai ter primeiro uma equipe criativa.
Que muitas vezes trabalha de jeitos diferentes. Às vezes o texto já está pronto mas
ainda não tem nem as letras nem as músicas, ou texto e as letras estão prontos e
você tem que fazer a música, ou tudo está sendo feito junto, então isso já muda muita
coisa. E muda também a concepção do espetáculo: vai ser um espetáculo todo
musicado e cantado? Vai ser um espetáculo onde não vamos ter canções, mas vamos
ter texto também? Ou vai ser um espetáculo que é mais falado mesmo, e são algumas
árias. Isso também muda. E aí também se pensa: qual o estilo desse musical e qual
a sonoridade desse musical. É... aí entra toda uma parte de pesquisa, pra se inspirar
dentro daquele estilo específico que você quer compor aquele Musical... então tudo é
válido, e tudo é bem-vindo, dentro do teatro musical. É uma questão de escolha: como
você vai estruturar o musical, como vai ser o processo, como será possível fazer.
Precisa de pesquisa pra você pirar dentro daquele estilo que você quer compor aquele
Musical.
ANA

Gente, vamos falar de song spotting. Como vocês consideram a forma ideal de realizar
a escolha dos locais da obra que serão musicados? Vocês podem tentar descrever
seu processo de composição musical-dramatúrgica?

RICARDO MONTEIRO
26

Meus espetáculos são essencialmente operísticos – ou seja: trata-se de um teatro


cantado, em que a fala, e não a música, é que aparece de maneira pontual. Nos
espetáculos teatrais não-musicais em que atuei como dramaturgo e fui convidado para
compor a trilha, as escolhas do song spotting passavam pelo crivo de questões
técnicas de direção, independendo, lamentavelmente, das escolhas que eu faria por
razões estéticas e/ou conceituais caso tivesse autonomia para tomar as decisões
sobre essas questões de maneira independente.

ANA

O Ricardo basicamente compõe na técnica de sung-through musicals... que


interessante... e pra você, Bauzys? Que costuma trabalhar em equipe?

BAUZYS

Bom, muitas vezes isso já vem pronto, isso já vem sugerido dentro do texto que o
roteirista manda, mas claro que muitas vezes eu vejo a necessidade de sugerir algo
diferente, de acordo com o que eu vejo que sonoramente vá contribuir mais. Algumas
vezes eu mesmo já tive que escolher esses momentos, e aí eu considero sempre
aquela maneira de ver do teatro musical, que é assim: quando as palavras não são
mais suficientes, você usa então melodias. Então você passa a cantar. Quando o
canto não é mais suficiente você começa a dançar (risos). Isso tudo dizendo, como
formas de expressão. Acho que essa é uma boa maneira para escolher os momentos
de inserir canções dentro de um texto. Em que momentos a música realmente se faz
importante pra expressão de algo? Então esse é um bom caminho para pensar. A
coisa se torna mais orgânica. A história... tá percorrendo a história, e aí, em algum
momento onde as palavras já não sejam suficientes pra expressar toda aquela noção
que está sendo sentida, falada, então aquilo se torna, se transforma em uma melodia,
e, em uma canção, ou música, aquilo passa a ser cantado. Quando nem mais aquilo
já é suficiente, passa a ser dançado (risos). Acho que essa é uma boa maneira. Mas
claro que cada texto traz também as suas necessidades diferentes. Mas enfim, tudo
tem que andar de acordo com várias frentes. Onde, dentro de um texto, pode virar um
número interessante, onde você vai poder inserir um tipo de música diferente, com
estilo diferente... às vezes você também leva isso em consideração. (Ele exemplifica,
com entusiasmo) Opa! Peraí! Aqui pintou um personagem que é diferente, que é
27

engraçado, por exemplo, pô, aqui não posso perder a oportunidade de ter uma música
pra esse personagem, aí vai ser uma música mais divertida! (Em outro exemplo) Opa!
Aqui temos uma cena onde estão quase todos do elenco, então, poxa, não podemos
perder a oportunidade de ter uma música aqui, onde o coro todo vai cantar! Ou, aqui
temos uma cena de revolta, realmente precisa ter algo bem dramático pra que essa
cena funcione, então cada texto vai ter suas necessidades e aí sim cabe aos três
juntos, roteirista, letrista e compositor, acharem juntos esses momentos, pensando em
aproveitar todas as oportunidades pra contar melhor essa história, inserir momentos
interessantes, inserir números interessantes, aproveitar ao máximo o elenco, os
personagens, os momentos dramáticos que se tem dentro desse texto. Acho que é
isso.

DANIEL

No meu caso, depende do processo, dos objetivos narrativos e da história que estou
tentando contar. Algumas vezes uma canção e seu conteúdo antecipam a própria
história e podem dar uma indicação de um caminho narrativo a seguir, ou seja, a
narrativa parte da própria canção. Em outras situações, um trecho inteiro da narrativa
pode ser substituído por um número musical. Certamente, com uma canção pretende-
se chegar a um lugar emocionalmente inatingível com uma cena falada, mas o fato é
que isso pode variar, dependendo em que fase do desenvolvimento da obra se está.
Você quer mostrar ao público quem é o seu personagem, o que ele está sentido ou
pelo que ele está passando, o que ele quer ou, ainda, desenvolver uma cena/ação
inteira com base em um ritmo, pulsação, ou tema musical. Via de regra, sempre busco
encaixar canções nos momentos em que o personagem reflete sobre um sentimento,
ou algo se revela pela primeira vez no personagem, e isso também pode
primeiramente partir de uma reflexão, ou quando algo se transforma nela.

ANA

E pra você, Severo?

RICARDO SEVERO

A meu ver, isso deve ser feito em conjunto pelos criadores -dramaturgos e cancionistas
28

- no princípio do trabalho. Eu costumo pensar em uma “escaleta” de toda a história,


desde a primeira cena até o final, descrevendo a situação de cada cena, personagens,
local, e com isso, identificando onde estariam os números de coro, solos, duetos, trios,
etc., pensando ao mesmo tempo em como contar melhor a história naquela cena, e
buscando um equilíbrio da parte musical. Sempre escrevo o texto, quando sou
também o dramaturgo, a partir dessa “escaleta”. E tento inserir a canção onde possa
criar um melhor sentido e manter o ritmo da cena, seja no início da cena, no meio, ou
no final, pensando na sequência. Mas isso é algo que só pode ser definido durante o
processo de criação, e é algo que tem que ser definido em conjunto, quando não estou
sozinho na criação.

ANA

Alguns de vocês têm estendido sua experiência para o âmbito do ensino. Podem
relatar algo sobre isso?

RICARDO SEVERO

Durante doze anos fui professor em duas disciplinas da graduação no Curso de


Publicidade e Propaganda da PUCRS [Pontifícia Universidade Católica do Rio Grando
do Sul], onde orientava, entre os trabalhos práticos, a composição de jingles. Cheguei
a ministrar algumas oficinas de composição de canções, tanto em São Paulo quanto
em Porto Alegre

RICARDO MONTEIRO

Atualmente, ocupo a cadeira de Composição, Regência e Semiótica da Universidade


Federal do Cariri, a UFCA, rejo a orquestra sinfônica da universidade e dirijo o Núcleo
de Teatro Musical da instituição. O elenco está estudando a história do Teatro de Arena
e do SEMDA - o Seminário de Dramaturgia do Arena, que frequentei sob a direção de
outro grande mestre, Chico de Assis. Sinto que o que fazemos, de certa forma, pode
ser visto como uma releitura, ou mesmo como uma continuidade daquela forma de se
viver e questionar o teatro. Talvez seja ainda cedo para sabermos. O tempo dirá. Mas
trago e trarei sempre comigo um pouco do que aprendi com Zé Renato, e procuro
transmitir hoje a meus alunos algo da tradição de que, sem que eu me desse conta,
29

ele me fez herdeiro.

ANA

Pessoal, quero que vocês saibam que suas contribuições certamente trouxeram uma
luz para a compreensão do meu próprio processo criativo. Suas falas são muito
importantes.

BAUZYS

Ana, eu queria acrescentar que... cada espetáculo é um espetáculo, assim... isso é


que é bacana do teatro musical. Abrange todos os estilos de música e concepções
artísticas, não tem barreiras pra isso. Teatro musical é muito abrangente. E cada
espetáculo é um espetáculo, tem seus desafios, tem suas coisas únicas que é só
daquele espetáculo... então é um trabalho que é sempre um desafio constante... claro
que a experiência te ajuda, talvez, a percorrer alguns caminhos de forma mais rápida,
mais fácil e mais assertiva, só que cada espetáculo traz seus desafios novos. E
também cada equipe criativa é uma, que tem uma forma de trabalho, que chega a
diferentes resultados. E aí é uma questão, nem dá pra dizer “É melhor ou pior”, não,
são apenas diferentes. No momento, todas são muito boas... e isso é muito legal de
vivenciar. O teatro musical é um trabalho onde você não pode achar que você está
numa zona de conforto, porque não está, nunca está. Cada espetáculo tem seus
desafios e suas unicidades, que você só vai descobrir ali, como experiência isso é
muito bacana, muito legal.

ANA

Toda minha jornada para a criação de 47 – O Musical começou inspirada pelo trabalho
de vocês e de tantos outros artistas. Arriscar os primeiros passos, buscar entender
qual caminho seguir. Foi encantador mergulhar no nada, munida apenas de uma ideia
– e conseguir erguer uma obra. É uma sensação incrível, a mesma que tive todas as
vezes que assisti, li ou ouvi obras de vocês. Só posso agradecer demais a cada um,
pela inspiração. Sigamos!

(CAI O PANO)
0

REFERÊNCIAS
S
1. ANTONIETTI, A. C. Os Modos de Inserção e as Relações Dramático-Narrativas da
Canção no Cinema e na Televisão Brasileira no exemplo de Daniel Filho. Dissertação
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8. BORÉM, F.; TAGLIANETTI, A. P. Texto-música-imagem de Elis Regina: Uma Análise
de Ladeira da Preguiça, de Gilberto Gil e Atrás da Porta, de Chico Buarque e Francis
Hime. Belo horizonte: UFMG, 2013.
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Interactions of Music and Film. In: DONNELY, K. J. (org.). Film Music: Critical
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13. CARRASCO, C. R. Trilha Musical: Música e Articulação Fílmica. São Paulo, 1993.
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14. CAMPBELL, J. The Hero With a Thousand Faces. Princeton: Princeton University
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15. CAMPBELL, J. The Power of Myth. New York: Anchor Books, 1988.
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17. CRAMER, L. Creating Musical Theatre: Conversations With Broadway Directors
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18. CROCKER, R. L. A History of Musical Style. New York: Mc Graw-Hill, 1966.
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46. McMILLIN, S. The Musical as Drama. Princeton, NJ: Princeton University Press,
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51. NOVAK, E. A.; NOVAK, D. Staging Musical Theatre: A Complete Guide For
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Story Structure, Plot and Character Development. [S.l.]: PenForASword Publishing,
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70. WOOLFORD, J. How Musicals Work; And How to Write Your Own. London: Nick
4

Hern Books Publications, 2012.


5

ANEXOS
ENTREVISTAS COM AUTORES CONTEMPORÂNEOS DE TEATRO MUSICAL

x Daniel Salve (Daniel Pinto Ribeiro)


o)
1- Descreva sua experiência com o teatro musical.
Comecei a carreira no teatro musical como performer, atuando
profissionalmente em musicais como POCKET BROADWAY e RENT. Passei a
atuar também como diretor musical a partir de CAZAS DE CAZUZA. Um dia
percebi que eu estava disposto a me utilizar de alguns talentos que eu
acreditava ter para contar novas histórias e criar novas obras, na tentativa de
amadurecer o autor/compositor que estava latente e contribuir para a
construção de um novo musical brasileiro, algo que refletisse a nossa
identidade cultural dentro da linguagem do teatro musical sem se limitar aos
regionalismos e às releituras do passado. Essa diretriz sempre me pautou.
Passei a me dedicar à composição e a dramaturgia diariamente, de forma
quase monástica, em um processo de amadurecimento que levou quase cinco
anos. Foi uma fase de muito aprendizado, autoconhecimento e entrega, e sinto
que muito do que compus e escrevi nessa época me reflete nitidamente. Essa
busca também me fez montar um pequeno grupo, uma companhia flutuante de
atores, coisa que sempre gostei de fazer e que se mostrou parte do meu
método de desenvolvimento de novas obras.
Este primeiro impulso resultou em um song cicle chamado “A QUASE
HISTÓRIA DE NINGUÉM”, que se desenvolveu em alguns workshops e
showcases. Esta obra se desmembrou em uma tetralogia um tanto complexa,
mas acabei optando por focar e desenvolver apenas uma das histórias (com a
mesma companhia de atores): a ópera pop “EROS E PSIQUÉ – A ORIGEM DO
AMOR”. É o único musical que escrevi até hoje que é quase inteiramente
cantado. Ela segue inédita e sonho produzi-la algum dia.
Depois de superar algumas frustrações típicas de um jovem
compositor/dramaturgo frente às dificuldades que a produção cultural no Brasil
impõe (ainda mais no que tange musicais originais), escrevi o musical “PONTO
DE BALA”, que estreou no Teatro São Pedro em 2013 e seguiu com duas
temporadas no espaço Parlapatões em 2014/2015 (Em São Paulo). Atualmente
estou em pré-produção com um projeto que venho desenvolvendo desde 2014,
um musical inspirado no imaginário das cantigas de rodas e parlendas
6

chamado “CIRANDA” (com estreia prevista para o segundo semestre de 2019).


Ao mesmo tempo estou desenvolvendo um novo drama musical chamado
“NAUTOPIA”.

2- Ao escrever e/ou compor para o teatro musical, você leva em consideração


quaisquer técnicas específicas no que diz respeito à estrutura, à forma? Quais
são essas técnicas? Como teve contato com elas? Ou você criou técnicas pró-
prias para suas obras?
Como na maioria das vezes parto de algo abstrato, algo que internamente me
provoque, ou que me sugira uma história a ser “descoberta” ou “esculpida” (um
símbolo, uma imagem interessante, um tema ou até mesmo um título) entender
que a estrutura era fundamental para não me perder no caminho foi um grande
passo. Assim, no caso de um book musical, costumo estruturar a espinha
dorsal dos atos em um número específico de cenas e distribuo os números
musicais de forma que aquilo me pareça fluido, e isso vai se expandindo e se
retraindo e mudando constantemente. É um grande quebra cabeças. Peter
Stone (Titanic, 1776) dizia que um musical é algo que você mais reescreve do
que escreve, e há uma grande sabedoria nesta sentença. Claro, há que se ter
uma diretriz e saber que história você pretende contar. Tudo começa com uma
ideia que se torna um conceito, que se molda em uma premissa, que se
desdobra em uma escaleta e por aí vai. Você não vai começar a escrever um
musical a partir dos diálogos. O importante, pelo menos no meu caso, foi
compreender que usar a estrutura inteligentemente é ancorar a história de
forma cada vez mais orgânica, fugindo das metodologias que propõem
estruturas mecânicas,

3- Buscou informação a respeito de técnicas de construção para o teatro musical?


Quais (livros, cursos presenciais ou on-line, aulas específicas)? Ou baseou-se
de forma intuitiva para a confecção da obra?
Meu desenvolvimento sempre se baseou na observação e na prática intuitiva.
Não tenho formação acadêmica como compositor nem autor, mas o teatro
musical sempre ressoou em mim de forma muito natural. Estudei teatro, música
e roteiro separademente, na maioria das vezes enquanto fazia. Stephen
Sondhein me ensinou a importância das palavras e da harmonia; William Finn
7

me ensinou que a simplicidade é um super poder; Jonathan Larson me ensinou


que quanto mais pessoal, mais interessante a obra; Joseph Campbel me trouxe
muitas respostas sobre narrativa mítica; John Truby e seu “The Anatomy of
Story” me deu muitas ferramentas válidas sobre storytelling; Chico Buarque me
ensinou que a música brasileira tem uma condução específica no teatro
musical. A lista não tem fim.

4- Texto, música e letra são partes feitas separadamente por um time colaborativo
ou você assume os três papéis? Por que?
Até hoje eu sempre assumi os 3 papéis, o que é – acredite - muito difícil e
trabalhoso (e a cada nova obra fica ainda mais difícil). Adoraria colaborar com
outros parceiros mas não sei o quanto isso seria um desafio para mim. Acho
que isso sempre se deu comigo de forma natural, me habituei a construir a
tríade dramaturgia/música/letra sozinho porque para mim se trata de um Logos,
uma unidade tríplice com a qual em dialogo bem. Talvez eu seja um melhor
compositor do que letrista, ou book writer do que compositor, mas para mim o
desafio é exatamente este: me desenvolver por completo.

5- Como você considera a forma ideal de realizar o song spotting: a escolha dos
locais da obra que serão musicados? Descreva seu processo de inserção mu-
sical na obra teatral.

Depende do processo, dos objetivos narrativos e da história que estou


tentando contar. Algumas vezes uma canção e seu conteúdo antecipam a
própria história e podem dar uma indicação de um caminho narrativo a seguir,
ou seja, a narrativa parte da própria canção. Em outras situações, um trecho
inteiro da narrativa pode ser substituído por um número musical. Certamente,
com uma canção pretende-se chegar a um lugar emocionalmente inatingível
com uma cena falada, mas o fato é que isso pode variar, dependendo em que
fase do desenvolvimento da obra se está. Você quer mostrar ao público quem
é o seu personagem, o que ele está sentido ou pelo que ele está passando, o
que ele quer ou ainda, desenvolver uma cena/ação inteira com base em um
ritmo, pulsação, ou tema musical. Via de regra, sempre busco encaixar canções
nos momentos em que o personagem reflete sobre um sentimento, ou algo se
8

revela pela primeira vez no personagem (e isso também pode primeiramente


partir de uma reflexão) ou quando algo se transforma nele.

x Ricardo Nogueira de Castro Monteiro

1. Descreva sua experiência com o teatro musical.

Minha primeira experiência como autor de teatro musical foi em 1994, ao conceber o
espetáculo “A Solidão dos Anjos”, premiado na Mostra SESC daquele ano.
Musicalmente, utilizo uma linguagem essencialmente polifônica, e oriunda de
parâmetros harmônicos, rítmicos e melódicos com muitos elementos em comum com
a MPB, assim como apresentando também influências da música erudita em termos
de escrita. A colocação que utilizo tende a requerer conhecimentos de técnica vocal,
mas timbristicamente costumo preferir que o cantor se aproxime da estilística da MPB.
Tenho uma predileção pelo trabalho de grupo, considerando mais gratificante vivenciar
suas muitas limitações do que entregar trabalhos prontos apenas para serem
montados por produtores em busca de projetos. Atualmente, ocupo a cadeira de
Composição, Regência e Semiótica da Universidade Federal do Cariri (UFCA), rejo a
orquestra sinfônica da universidade e dirijo o Núcleo de Teatro Musical da instituição,
para o qual estou escrevendo e ensaiando um novo musical em processo de work-in-
progress.

2. Ao escrever e/ou compor para o teatro musical, você leva em consideração


quaisquer técnicas específicas no que diz respeito à estrutura, à forma? Quais são
essas técnicas? Como teve contato com elas? Ou você criou técnicas próprias para
suas obras?

Atualmente, tendo a seguir um conjunto de técnicas de dramaturgia que me foram


passadas, principalmente, por Carlos Reichenbach, Chico de Assis e Ed Khmara. Elas
tendem a seguir a estrutura de curva dramática proposta por Syd Field e as funções
dramáticas discutidas por Christopher Vogler. Como nenhuma delas foi concebida
especificamente para o teatro musical, desenvolvi uma série de estudos sobre as
funções dramáticas da trilha sonora - o mais completo deles presente em um artigo
científico que publiquei com a análise da trilha sonora de Vertigo em um projeto de
9

semiótica aplicada desenvolvido pela PUC-SP. Os estudos foram canalizados para


uma disciplina do curso de pós-graduação em trilha sonora na Universidade Anhembi
Morumbi, onde lecionei por vários anos, e resultaram em um conjunto de técnicas de
que me utilizo tanto como pesquisador quanto como autor.

3. Buscou informação a respeito de técnicas de construção para o teatro musical?


Quais (livros, cursos presenciais ou on-line, aulas específicas)? Ou baseou-se de
forma intuitiva para a confecção da obra?

Toda minha formação em dramaturgia sempre buscou respostas para as


especificidades do teatro musical -no entanto, não encontrei até o momento nenhuma
obra especificamente concebida para o teatro musical que tivesse deixado uma marca
maior em minha maneira de apreender e/ou de conceber um espetáculo nesse
formato.

4. Texto, música e letra são partes feitas separadamente por um time colaborativo
ou você assume os três papéis? Por que?

Desde sempre, assumo os três, embora não me oponha a criar em colaboração. Mas
isso simplesmente não aconteceu até o momento.
5. Como você considera a forma ideal de realizar o song spotting: a escolha dos
locais da obra que serão musicados? Descreva seu processo de inserção musical na
obra teatral.

Meus espetáculos são essencialmente operísticos - ou seja: trata-se de um teatro


cantado, em que a fala, e não a música, é que aparece de maneira pontual. Nos
espetáculos teatrais não-musicais em que atuei como dramaturgo e fui convidado para
compor a trilha, as escolhas do song spotting passavam pelo crivo de questões
técnicas de direção, independendo, lamentavelmente, das escolhas que eu faria por
razões estéticas e/ou conceituais caso tivesse autonomia para tomar as decisões
sobre essas questões de maneira independente.
6- Poderia falar sobre seu musical “Rua 13 de Maio s/n” e sobre o processo de criação
do novo musical ainda inacabado?
Rua 13 de maio s/n.
Esse espetáculo nasceu a partir de um convite de nosso saudoso mestre, José Renato
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Pecora.
Zé, assim como Paulo Autran e Fauzi Arap, gostava muito de um certo espetáculo
meu - A Viagem de Alice, do Céu ao Apocalipse. Mas como Alice era uma produção
cara - cerca de 36 personagens, sendo 5 centrais, e administrável com algo em torno
de 15 atores -, ele, que iniciava, ao mesmo tempo cauteloso e esperançoso, seu novo
projeto com a inauguração de seu Teatro dos Arcos, me convidou a escrever um
espetáculo sob medida para aquele espaço, com poucos atores, e profundamente
enraizado no imaginário do Bexiga.
Foi assim que começou o 13 de maio.
A trama se passa em um casarão abandonado - como tantos daquela região, e
daquela rua que dá nome ao espetáculo.
Rua 13 de maio sem número - s/n -, o endereço sem especificação, salientando a
indigência do lugar, dos sem-teto, das almas errantes que eventualmente o habitam.
É a história de um homem marcado para morrer.
Um traficante que termina se viciando, e adquire uma dívida que ele não será mais
capaz de pagar.
Escondido em um velho casarão, fugindo de um matador contratado para lhe matar,
certa noite, exausto e drogado, ele vê pela primeira vez Francesca.
O nome dela é inspirado na célebre personagem Francesca da Rimini, mulher adúltera
que Dante Alighieri, em sua Divina Comédia, narra encontrar no inferno.
A peça não deixa claro se Francesca seria um fantasma ou uma alucinação - o fato é
que, para J.R., o protagonista, ela é absolutamente real.
Mas não apenas para ele.
Também para um velho morador de rua - um senhor de origem italiana chamado Enzo,
que nasceu e viveu sua vida inteira naquela região.
Enzo jamais esqueceu a mulher de sua vida - e jamais superou sua morte prematura,
mesmo tendo vivido com ela um relacionamento profundamente turbulento.
E tudo o que ele queria, nesse momento de sua existência, era que ela viesse buscá-
lo.
Mas, aos olhos dele, é J.R. que ela escolhe levar consigo para a eternidade.
E Enzo é capaz de tudo para impedir que isso aconteça.
Até mesmo de proteger J.R. contra todos aqueles que estão ao seu encalço.
A peça é um hino de amor ao Bexiga.
O bairro, grande estrela da peça, aparece de diversas formas: no passado, a colônia
italiana da 1a metade do século XX, sua cultura, seus casarões, e o samba que já
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florescia em suas ruas desde antes da chegada dos imigrantes, quando o bairro
abrigava ainda um considerável número de ex-escravos. No presente, as ruínas
daquele mundo habitadas agora pela população de rua, o tráfico de drogas, as leis
invioláveis dos fora-da-lei, os madarins do poder que controlam tudo sem que seu
nome venha à tona jamais, a lei do cão, e a tênue e fugidia linha que por vezes separa
o delírio da revelação, a alucinação da transcendência.
Depositei esse texto e suas músicas nas mãos ainda firmes do já octogenário Zé
Renato, um dos mais importantes diretores do teatro brasileiro do século XX.
A seu pedido, várias vezes o reescrevi, cortei e acrescentei cenas e músicas.
Para seu escudeiro, ele convidou o ator, cantor e diretor Fernando Prata, com quem
eu já havia trabalhado por muitos anos.
Eu poderia escrever longamente sobre o elenco que tivemos - cada ator e atriz, e cada
contribuição indelével por eles deixada no resultado final do trabalho.
Como tantas vezes acontece no mundo do teatro, o processo foi permeado por
momentos sublimes, brigas monumentais, paixões fulminantes, romances
clandestinos que todos convincentemente fingiam desconhecer, rupturas dramáticas
- toda a magia, tão generosa e abundante, que a arte oferece aos que se entregam a
ela.
Zé Renato venceu as adversidades e limitações técnicas, financeiras, e artísticas, e
conseguiu pôr de pé o espetáculo, buscando extrair o melhor que cada ator e atriz
tinha para oferecer naquele momento.
Ficamos cerca de dois meses em cartaz, que era o que nossa estrutura de produção
poderia comportar naquele momento.
Mas trago e trarei sempre comigo um pouco do que aprendi com Zé, e procuro
transmitir hoje a meus alunos algo da tradição de que, sem que eu me desse conta,
ele me fez herdeiro.

Falo agora um pouco do espetáculo que escrevo e dirijo neste momento, em processo
de work-in-progress.
Ele começou com a percepção de um equívoco.
Ao fundar o Núcleo de Teatro Musical da UFCA (Universidade Federal do Cariri),
minha ideia inicial era a de aproveitar certos textos que eu já havia trabalhado
anteriormente - inclusive, um deles com a ação se passando no próprio Cariri, escrito
em uma época em que eu jamais imaginaria que viria a morar ali.
Embora o processo estivesse caminhando de maneira promissora, comecei a me
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perguntar se eu de fato estava fazendo teatro, ou se estava simplesmente adestrando


atores.
Senti que, no caso, estava caindo na armadilha de me satisfazer com a segundo
alternativa.
A solução parecia evidente: teria que escrever um texto que de fato dialogasse com a
realidade daquelas pessoas, ao invés de tentar adequá-las ao produto final de
processos que não lhes diziam respeito.
Mas sobre o que o texto falaria?
Decidi que ele se debruçaria sobre um assunto de que pouco se falava abertamente,
mas cujo silêncio deixava marcas profundas naquelas pessoas.
Foram muitas as alunas que me contaram histórias semelhantes.
Em um caso, era um tio. Em outro, o padrasto. Por vezes, o próprio pai.
Poderia ainda ser o próprio amado - o qual algumas vezes, diante da ruptura por parte
de quem não suportava mais um relacionamento daquela natureza, terminaria por
condenar sumariamente à morte a mulher que, hesitante mas decidida, ousasse lhe
dizer não.
Quando reuni o grupo e lhes disse que pretendia escrever um espetáculo cujo tema
seria o abuso sexual, houve um longo silêncio na sala.
Imaginei que talvez minha escolha tivesse sido equivocada.
Até que, na semana seguinte, ao entrar na sala, encontrei diante de mim um grupo
duas vezes mais numeroso do que aquele com quem falara.
No final de cada encontro, a mesma cena: enquanto eu arrumava a sala vazia, uma
aluna entrava, e me perguntava se eu teria um minuto.
Todas as vezes, a história que elas por fim revelavam superava as ideias mais
delirantes que eu pudesse vir a ter. Mas, justamente por serem tristemente tão reais,
dificilmente seriam convincentes encenadas no palco.
Como as Musas ensinam na Teogonia, na arte, às vezes é preciso contar mentiras
para se dizer a verdade.
Assim nasceu Maria dos Prazeres - a personagem e a peça que leva seu nome.
A peça se inicia com uma cena em que a mãe da adolescente Maria dos Prazeres,
Das Dores, comunica à filha sua decisão de mandá-la voltar a estudar.
Das Dores está nervosa.
A filha, desabrochando em sua feminilidade, a cada dia lhe parecia chamar mais a
atenção de seu padrasto, que Das Dores sentia estar perdendo.
Era melhor ela não passar mais tanto tempo em que casa - ainda que fosse para
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ajudá-la com os afazeres domésticos.


Mesmo assustada e se sentindo insegura, Maria dos Prazeres obedece.
Na escola, sua companheira de todas as horas é a personagem Jezebel. Sedutora,
dissimulada e oportunista, Jezebel aproveita todas as oportunidades que lhe
aparecem para usar Maria para seus propósitos, e termina a apresentando ao jovem
rei do tráfico daquela escola, Romeu.
Em um primeiro momento, Maria era para Romeu não mais do que uma presa em
potencial.
Mas a situação escapa totalmente ao seu controle, e ele se vê cada vez mais
envolvido com ela.
Como Maria com ele.
Sentindo-se desejada, Maria, mais do que nunca, floresce.
Mas é o padrasto quem, sem poder mais se conter, colhe a flor que Maria sonhava
oferecer para Romeu.
Temos cerca de uma hora de peça pronta - faltando cerca de 40 minutos de cenas
para consumar o espetáculo.
Ano passado, apresentamos, com dois elencos diferentes, uma coletânea de cenas
totalizando cerca de 45 minutos.
Pretendo finalizar até o final deste ano o processo de escrita da peça para, se tudo
der certo, vê-la estrear em 2020.
O elenco está estudando a história do Teatro de Arena e do SEMDA - o Seminário de
Dramaturgia do Arena, que frequentei sob a direção de outro grande mestre, Chico de
Assis.
Sinto que o que fazemos, de certa forma, pode ser visto como uma releitura, ou
mesmo como uma continuidade daquela forma de se viver e questionar o teatro.
Talvez seja ainda cedo para sabermos.
Mas o tempo dirá.

x Carlos Bauzys
1- Descreva sua experiência com o teatro musical.

Bom, desde que eu comecei na música, pra mim teatro e música andavam muito
juntos. Na época que eu estudava música, participei de grupos de teatro, e tudo, né?
Mesmo antes de entrar na faculdade. E quando entrei na faculdade, eu fiz UNESP
[Universidade Estadual Paulista], né, composição e regência, é.... isso já era uma
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coisa clara pra mim, eu gostava muito dessa interdisciplinaridade, né... teatro- música-
dança. Né? Queria trabalhar com coisas assim. E aí, na UNESP eu montei grupos de
música, eu sempre trazia elementos cênicos, fazia coisas... Mas foi o maestro Abel
Rocha que me levou, como assistente dele,ele me conheceu na UNESP, né, e aí ele
me levou como assistente dele pra fazer meu primeiro musical,que foi o Hair, na EAD
[Escola de Arte Dramática da USP], com direção do Iacov Hillel, ele me levou pra ser
o regente da banda, eu fiz os arranjos da banda e fui o regente da... da banda. E me
apaixonei (risos).Aí, a partir dali, não parei mais com teatro musical, aí logo depois já
fiz outro musical, lá na EAD, aí já como diretor musical, que foi a Ópera do Malandro...
aí, depois disso o Miguel Briamonte me chamou pra fazer o meu primeiro grande
musical né, Broadway, que eu o fui regente do Sweet Charity, com a Claudia Raia, e
aí não parei mais, graças a Deus....é... sempre continuei trabalhando como diretor
musical de teatro musical... ãnn... maestro, né? Às vezes, também, compositor,
arranjador... e é o que eu realmente amo fazer, é aonde eu queria trabalhar. É...
então... isso...deixa eu ver, 2006 foi meu primeiro, Sweet Charity,estamos em 2018,
então tem mais de 12 anos aí, que eu tô nesse mercado,já fiz bastante... ânn, já
trabalhei bastante em grandes produções, ãnn, graças a Deus já tenho um currículo
bem bacana. Ana, vou te mandar também meu currículo, né, acho que é bom, né,
você ter...ãnn, enfim, acho que é isso, né? Essa, essa... primeira questão. É...tenho a
sorte de ter trabalhado com grandes... acho que com quase todos os grandes diretores
de teatro musical, eu trabalhei, aqui em São Paulo, no Rio, os coreógrafos
também...ãnn... tenho...tenho também muita... sorte... e também muita gratidão por
ter... por estar nessa carreira.
Ainda sobre a experiência com teatro musical, eu queria acrescentar que... cada
espetáculo é um espetáculo, assim... isso é que é bacana do teatro musical,. É tão
abrangente, abrange todos os estilos de música e concepções artísticas, não tem
barreiras, né, pra isso. Teatro musical é muito abrangente. E cada espetáculo é um
espetáculo, cada espetáculo tem seus desafios, cada espetáculo tem... as... as suas
coisas únicas que é só daquele espetáculo... é...é... então é um trabalho que você tá
sempre em desafio constante... claro que a experiência te ajuda a... talvez... a
percorrer alguns caminhos de forma mais rápida, e mais fácil,e mais assertiva, só que
cada espetáculo traz seus desafios novos, né? E... também cada equipe criativa é
uma equipe criativa, que tem uma forma de trabalho, que chega a diferentes
resultados... é... e aí é uma questão, nem dá pra dizer “É melhor ou pior”, não, são
apenas diferentes. No momento todas são muito boas... e isso é muito legal de
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vivenciar. Então, e é também, então um...um trabalho onde você não pode achar que
você está numa zona de conforto, porque não está, nunca está... sempre tem... cada
espetáculo tem seus desafios e suas unicidades, que você só vai descobrir ali,né...
então... como experiência isso é muito bacana, muito legal.
Opa! Não posso deixar de citar, que no início de minha carreira...é... foi importante o
período onde eu dei aula numa tal Casa de Artes OperÁria (risos),né? E... e lá fiz
algumas montagens, dei... dei aula de canto coral e teoria musical, e foi muito bacana
também essa experiência, cresci muito lá também.
2-Ao escrever e/ou compor para o teatro musical, você leva em consideração
quaisquer técnicas específicas no que diz respeito à estrutura, à forma? Quais são
essas técnicas? Como teve contato com elas? Ou você criou técnicas próprias para
suas obras?
Segunda pergunta, “ao escrever e/ou compor para o teatro musical, você leva em
consideração quaisquer técnicas específicas no que diz respeito à estrutura, à forma?
Quais são essas técnicas? Como teve contato com elas? Ou você criou técnicas
próprias para suas obras?” Então, ãnn... da mesma maneira, né, como eu disse que
cada espetáculo é um espetáculo, também quando você vai compor um... um musical
cada processo é um processo. Curioso isso, também, porque...é... cada, cada
espetáculo também vai ter...ãnn... primeiro uma equipe criativa, né? Que muitas vezes
trabalha de jeitos diferentes... é... às vezes o texto já está pronto mas ainda não tem
nem as letras nem as músicas, às vezes já texto e as letras estão prontos e você tem
que fazer a música, é... às vezes tudo está sendo feito junto, né, então isso, isso já
muda muita coisa. E muda também a concepção do espetáculo: vai ser um espetáculo
todo musicado, e cantado? Vai ser um espetáculo onde, não, vamos ter canções mas
vamos ter texto também? Ãnn... ou vai ser um espetáculo que...é... mais falado
mesmo, e são... algumas árias, enfim, né? Isso também muda. E aí também entra:
qual o estilo desse musical, qual a sonoridade desse musical? Né? É... aí entra toda
uma parte de pesquisa... ãnn, né, pra se inspirar dentro daquele estilo específico que
você quer compor aquele musical... então tudo é válido, e tudo é bem vindo, né, dentro
do teatro musical. É uma questão de escolha de, de como você vai estruturar o
musical, de como vai ser o processo, de como será possível fazer, né... agora...
Precisa de pesquisa pra você pirar dentro daquele estilo que você quer compor aquele
musical. Agora... dos que eu fiz compondo...assim... onde a gente tinha texto... texto,
letras e canções originais, normalmente é assim. O libretista muitas vezes faz, é... o
texto e as letras, né, ele mesmo já escolhe onde serão as músicas e tal, pelo menos
6

as canções, depois eu vou escolher onde eu vou colocar os underscores ,os reprises,
tal, mas as árias, né, as canções, ele normalmente já escolhe, agora claro que, no
processo de composição muita coisa tem que ser mexida da letra, pra se adequar a
forma da música que eu quero fazer, e tal, então muitas vezes eu mexo na letra,
mando de volta, aí, aí ele corrige o que quer corrigir, ou fala “ah, não, tá ficou legal
assim”...né... ãnn...ou às vezes a gente tem um texto, né, um argumento, então, tem
a estrutura de um texto, aí, aí passa pra outra pessoa que vai fazer as letras, ou pode
ser eu mesmo, apesar de que eu prefiro não fazer as letras, não é meu forte, muitas
vezes eu mexo nas letras pra se adequarem às músicas, mas eu prefiro que alguém
especialista em...em letra faça. Eu acho que fica mais...fica melhor. Fica.. é... né?
Porque é todo um universo, né, fazer letra. Um bom letrista tem que entender muito
de poema, tem que entender muito de... dramaturgia, de poética, de tu... de tudo que
diz respeito a isso, né, especificamente. E o meu forte é a música, então... quando
um... um bom letrista faz, eu prefiro. Ann, como é o caso de um musical que a gente
tá fazendo agora. O Walcyr Carrasco fez o texto, a estrutura do texto, passou pra
gente, é... pra gente eu digo eu, que tô fazendo as músicas, e o Ricardo Severo, que
está fazendo as letras, eu e o Ricardo escolhemos. Aí sim, o Walcyr [Carrasco] já tinha
dado algumas indicações mas a gente que fechou mesmo a estrutura de onde vai, de
onde teriam as canções, as músicas, e do que elas iriam falar, e aí o Ricardo tá
fazendo as letras e eu tô fazendo as músicas em cima das letras... nesse processo,
né, muitas vezes eu faço, aí eu mexo, aí volta pra ele {Ricardo Severo], aí ele mexe,
enfim. Se bem que em algumas músicas que eu já tinha a sonoridade e a melodia
muito claras na minha cabeça eu fiz primeiro a música e depois passei pra ele pôr a
letra em cima. Em algumas músicas foram feitas assim mas a maioria das músicas
não, ele fez a letra primeiro e eu fiz a música depois. Mas tudo isso pra dizer que
realmente varia. Ann... é tudo, tudo válido e tudo possível, no teatro musical, né, os
processos variam muito. Eu já fiz musicais onde a criação era coletiva, por exemplo.
E meu trabalho era organizar a criação coletiva, muitas vezes criar também, junto, é...
mas a maior parte em organizar a criação coletiva, né... e dar forma àquilo. Esse
também é um processo muito interessante...enfim, tudo é possível (risos) no teatro
musical, isso é...demais, né... Ann, aí assim, com relação à se eu criei minhas próprias
técnicas, a gente acaba criando... ann, nosso jeito de fazer, nossa cara, mas isso a
cada musical, né, a cada musical a gente descobre um jeito novo de fazer, a gente
descobre coisas novas, caminhos novos pra percorrer, né... é...aí eu não sei, assim,
é difícil dizer “ai, que você criou então esse jeito de fazer”. Não sei... quer dizer, eu
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criei pra eu fazer, mas não sei se outra pessoa também já não percorreu o mesmo
caminho, criou da mesma forma, entende? Mas... eu, a maior parte das vezes eu
descubro esse caminho e, é... crio, por assim dizer, né, é... um caminho pra ser feito.
Né? Isso sim.
3-Buscou informação a respeito de técnicas de construção para o teatro musical?
Quais (livros, cursos presenciais ou on-line, aulas específicas)? Ou baseou-se de
forma intuitiva para a confecção da obra?
Terceira pergunta: Buscou informação a respeito de técnicas de construção para o
teatro musical? Quais (livros, cursos presenciais ou on-line, aulas específicas)? Ou
baseou-se de forma intuitiva para a confecção da obra? Bom, é...Tudo que eu estudei
em música, e tudo que eu participei de grupos de teatro e, até de dança, eu já fiz aula
de dança (risos) tudo que eu aprendi na UNESP [Universidade Estadual Paulista] em
composição, ann, tudo isso acaba virando a sua técnica, né, tudo isso se junta na sua
cabeça, tudo que eu já li, ãnn... tudo que eu já ouvi, tudo que eu já toquei, tudo isso
vira seu instrumento de criação, né. É... o artista criativo é isso, né, a gente... toda
nossa experiência de vida, NOSSA EXPERIÊNCIA DE VIDA vira nosso instrumento
de criação. Nosso contato com a natureza vira nosso instrumento de criação. Nossos
amores viram nosso instrumento de criação. É...o artista criativo é isso, né, é a
maneira como tudo que tá dentro dele se junta e se mistura e se transforma e aí no
processo criativo sai daquele jeito... né? Daquela, de uma forma única, que é fruto de
tudo que ele viveu, de tudo que ele estudou, de tudo que ele ouviu, né. Então, é... pelo
menos é a maneira como eu enxergo, né... a criação original... você pode sim usar
técnicas específicas, coisas que você aprendeu, você... algumas coisas te ajudam a
percorrer os caminhos de forma mais fácil, só que no final a criação é tudo isso
misturado, tudo isso junto. Né? A criação original... senão acaba virando só cópia de
alguma outra coisa, mas a criação original mesmo, é dessa forma intuitiva, onde tudo
se mistura, onde rola essa metamorfose dentro de você mesmo onde tudo que você
viveu, que você aprendeu, que você ouviu é ...têm importância fundamental e se
transformam em arte quando você tá criando. Né? Ela sai ainda daquele jeito. Então
a criação original tem sim, é... a assinatura do criador, quando é feito, porque é feito
dessa maneira, né, é a sua vivência, a sua experiência de vida ali, e sai daquele jeito.
É... né? (risos) então... é. Pode-se dizer que é bem intuitiva nesse caso, apesar de
que tudo, todas as ferramentas estão ali, tão ali na sua cabeça, tão ali na... na sua
forma de fazer, tão ali presentes como instrumentos, mas elas são mais um elemento,
né? As técnicas... as ferramentas são mais um elemento dentro de todos os outros
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elementos que fazem parte da criação. É, acho que essa é uma boa maneira de
descrever. Ann... agora, se eu sei citar livros, cursos... difícil, porque eu teria que citar
todos (risos) os que eu já li, assim... não, não, não... vou conseguir citar nenhum
específico, que todos fazem parte, né? O que eu posso dizer é que sim, a formação
acadêmica foi muito importante, justamente porque te dá uma ampla gama de
elementos, né... te dá muitos instrumentos, te dá muitasreferências. É... e...
principalmente na hora de, de... arranjar, né, pros instrumentos, pras vozes, aí sim, te
dá o conhecimento necessário que você precisa ter pra aqueles instrumentos, pra
aquelas vozes, pra você compor de maneira que seja...é... efetiva, né, que funcione,
que funcione da melhor maneira possível. Né... então... sim, o estudo acadêmico é
muito importante eu acho, muito importante... pra te dar todas as ferramentas... ann...
necessárias pra você fazer a melhor obra possível e que funcione... né... da melhor
maneira possível
No entanto, ainda falando sobre essa questão, é... o estudo acadêmico é importante
sim, né, o estudo acadêmico eu digo, a parte teórica é muito importante, mas não
menos importante e talvez mais importante seja a parte prática, ou seja, que você
possa estudar e colocar em prática. Tá? Isso fez toda diferença no período que eu fiz
faculdade, de apesar de naquela época na UNESP [Universidade Estadual Paulista]
não oferecer uma parte prática muito intensa, aliás era bem pouca a parte prática que
a UNESP oferecia, por isso me vi na necessidade de montar grupos, montei grupo
vocal, montei quarteto de violão, banda, onde o que eu aprendia nas aulas eu podia
botar em prática, experimentar, fazer, né, e nada melhor do que essa experiência
prática onde eu pudesse botar em prática, fazer... nada melhor do que essa
experiência prática pra você realmente... tomar conhecimento, é... fixar conhecimento,
então, ver o que funciona, ver o que não funciona, é... experimentar, fazer mesmo.
Então... é... meu conselho sempre pra quem tá estudando é: estude a teoria mas dê
seu jeito de botar em prática (risos), junte amigos, monte grupos, entre em grupos, e
bote em prática, né, é o melhor jeito de aprender, né, sem dúvida.
4-Texto, música e letra são partes feitas separadamente por um time colaborativo ou
você assume os três papéis? Por que?
Quarta pergunta, “Texto, música e letra são partes feitas separadamente por um time
colaborativo ou você assume os três papéis? Por que?” Eu acabei respondendo, né,
na... questão dois, mas... resumindo, é... isso depende, né, depende do processo,
depende do, do espetáculo, depende da concepção. Podem ser feitas juntas, podem
ser feitas separadas, no meu caso, normalmente, é... são, são coisas separadas. Eu
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prefiro que seja. Alguém que faça o texto, que seja realmente... conhecedor de
dramaturgia, que seja um bom roteirista, que tenha estudado e vivenciado isso na
vida... é... a letra por alguém que conheça muito poema, formas de poema, que
conheça muito ...é...que tenha estudado muito letras de músicas, né, toda essa parte,
que conheça muito a nossa língua, obviamente, e a música feita por um compositor
que também tenha se dedicado muito a isso. É claro que no final todas essas coisas
se misturam, e, ãnn... mais pra frente no processo criativo todos tem que conversar
e e... chegar a algum acordo. Mas... eu prefiro trabalhar dessa maneira, acho que
chega-se a um resultado melhor. Claro que o diálogo tem que estar sempre presente,
muitas vezes o compositor sugere coisas ao letrista, o letrista sugere coisas ao
roteirista, e a gente chega assim ao melhor resultado possível. Mas... dessa maneira
acho que é a que funciona melhor. Cada um fazendo a parte em que realmente é
especialista em. É isso.
5-Como você considera a forma ideal de realizar o song spotting: a escolha dos locais
da obra que serão musicados? Descreva seu processo de inserção musical na obra
teatral.
Quinta pergunta, “como você considera a forma ideal de realizar o song spotting: a
escolha dos locais da obra que serão musicados? Descreva seu processo de inserção
musical na obra teatral.” Bom, é...muitas vezes isso já vem pronto, né, isso já vem
sugerido dentro do texto que o roteirista manda, mas claro que muitas vezes eu... eu
vejo a necessidade de sugerir algo diferente, né, de acordo com o que eu vejo que
sonoramente vá contribuir mais. Ann...mas... é... algumas vezes eu mesmo, eu já tive
que escolher , né,esses momentos, e aí eu... eu tomo sempre aquele...é... é uma
maneira de ver do teatro musical, que é assim... quando você... quando as palavras
não são mais suficientes, você usa então melodias. Então você passa a cantar.
Quando o canto não é mais suficiente você começa a dançar (risos). Né, isso tudo
dizendo, como formas de expressão. Acho que essa é uma boa maneira pra escolher
os momentos, né... de inserir canções dentro de um texto, né... Em, em que momentos
a música realmente se faz importante pra expressão de algo, né ,naquele momento,
né? Então esse é um bom caminho pra pensar. A coisa se torna mais orgânica, né? A
história... tá percorrendo a história, e aí, algum momento onde as palavras já não
são suficientes pra expressar toda aquela noção que tá sendo sentida, que tá sendo
falada, então aquilo se torna, se transforma numa melodia, e, né, numa canção, numa
música, aquilo passa a ser cantado. Quando nem mais aquilo já é suficiente, passa a
ser dançado (risos). Né? Acho que essa é uma boa maneira. Mas claro que cada texto
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traz também as suas necessidades diferentes. Mas...é... enfim, tudo tem que andar
de acordo com várias frentes né? É... onde, dentro de um texto, ann... pode virar um
número interessante, pode virar um, um... é...pode inserir, onde você vai poder inserir
um tipo de música diferente, com estilo diferente...às vezes você também leva isso
em consideração. Opa! Peraí! Aqui pintou um personagem que é diferente, que é
engraçado, por exemplo, pô, aqui não posso perder a oportunidade de ter uma música
pra esse personagem, aí vai ser uma música mais divertida, tal tal tal tal tal tal. É...
Opa! Aqui temos uma cena onde estão quase todos do elenco, então, poxa, não
podemos perder a oportunidade de ter uma música aqui, onde o coro todo vai cantar,
né? Ou, Opa, aqui temos uma, uma cena de revolta, realmente precisa ter algo bem
dramático pra que essa cena funcione, né então cada texto vai ter suas necessidades
e aí sim cabe aos três juntos, roteirista, letrista e compositor, acharem juntos esses
momentos, é... pensando em aproveitar todas as oportunidades pra contar melhor
essa história, inserir momentos interessantes, inserir é... números interessantes,
aproveitar ao máximo o elenco que você tem, os personagens que você tem, os
momentos dramáticos que você tem dentro desse texto. Acho que é isso.

x Ricardo Severo

1. Descreva sua experiência com o teatro musical.


Acho que para responder essa questão é preciso primeiro definir o que é o teatro
musical. Entre as várias definições, posso destacar uma bem simples de Suellen
Ogando, que explica ser “o espetáculo teatral com o objetivo de contar uma história
ou mostrar uma ação através da dramatização utilizando a música como elemento
fundamental e determinante nesta estrutura.” (OGANDO, Suellen. O que é o Teatro
Musical. Editora Giostri, São Paulo, 2016.)
Desde o início de minha carreira como compositor de trilhas para teatro em 1986,
compus canções para a cena, em espetáculos adultos e infantis. Mas esses primeiros
espetáculos poderiam ser considerados como “peças com canções” (entre os norte-
americanos, o sub-gênero “play with songs”), que é quando a peça tem um número
reduzido de canções, ou quando os números musicais estão colocados na cena de
forma mais ilustrativa. Ainda assim, uma grande parte dos espetáculos onde fiz a
música original teve uma canção composta por mim.
Considero meu primeiro trabalho de teatro musical, onde as canções faziam parte da
dramaturgia contando a história junto com os diálogos, um espetáculo infantil de 1990
1

produzido pela Cia Teatro di Stravaganza, um dos grupos teatrais mais antigos de
Porto Alegre e ainda em atividade. Na peça “Por Um Punhado de Jujubas”, trabalhei
com os idealizadores substituindo parte do texto por canções interpretadas ao vivo. O
espetáculo de uma hora tinha doze canções, teve várias remontagens feitas pelo
próprio grupo, teve um CD lançado com a trilha, ganhou vários prêmios nacionais e
internacionais, e ainda está no repertório da Cia. até hoje. Com o Stravaganza ainda
fiz os musicais “A Lenda do Rei Arthur” (que tinha mais de trinta canções), “O Ovo de
Colombo” (com doze canções que eram a maior parte da peça) e “Decameron” (com
canções originais compostas em italiano), todos premiados. Desde então, segui
compondo canções para a cena, entre as diversas trilhas para montagens adultas e
infantis, até os dias de hoje. Foram mais de oitenta espetáculos, e mais de vinte
prêmios com minhas trilhas musicais.
Minha primeira incursão como dramaturgo foi em 1999, com um musical infantil
chamado “Caçadores de Aventuras”, onde escrevi o libreto (texto e canções). Depois
veio “Ópera Monstra”, de 2010, também para a Cia teatro di Stravaganza, mais uma
vez com o libreto (texto e canções). Em 2012, dirigi a comédia musical “O Incrível Dr.
Green”, onde também fiz a trilha incidental, e seis canções interpretadas ao vivo pelo
elenco. Em 2014, com a peça “Caros Ouvintes”, que tinha canções interpretadas ao
vivo por Amanda Acosta, ganhei um Prêmio Shell de Melhor Música. Em 2016, escrevi
as canções do musical “Um Dez Cem Mil Inimigos do Povo”, para a Cia da Revista,
que teve direção de Kleber Montanheiro. Também com Kleber, fiz em 2018 a direção
musical de Carmen, a Grande Pequena Notável”, tendo Amanda Acosta cantando as
canções de Carmen Miranda. E em 2019, escrevi as letras das canções e fiz a
adaptação para libreto em “Aparecida – um musical”, que tem texto de Walcyr
Carrasco e música de Carlos Bauzys.
Em 2018, iniciei uma pesquisa de Mestrado na USP tendo como tema geral a busca
de novos caminhos para uma dramaturgia original no teatro musical brasileiro, e
focando na análise do sentido das letras nos sub-gêneros do teatro musical. Tenho a
intenção de seguir para o doutorado, abrangendo então a análise das estruturas
dramatúrgicas e musicais.

2. Ao escrever e/ou compor para o teatro musical, você leva em consideração


quaisquer técnicas específicas no que diz respeito à estrutura, à forma? Quais são
essas técnicas? Como teve contato com elas? Ou você criou técnicas próprias para
suas obras?
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Quando iniciei compondo canções para a cena, eu tinha uma técnica própria, que era
de substituir uma parte do texto dramatúrgico por uma canção que continuasse
contando a história naquele ponto. Mais tarde, comecei a estudar cinema e roteiro
(sou formado em Publicidade). Também fiz oficinas diversas de dramaturgia para
Teatro, de dramaturgia de TV, de dramaturgia para Teatro Infanto-Juvenil.
Como iniciei minha carreira como músico, compositor e produtor musical também em
1986, tive apenas a experiência de compor canções populares para cantores e
cantores que acompanhei e/ou produzi. Mas sempre pesquisei por conta própria
desde a forma da canção na ópera até os cancionistas populares nacionais e
internacionais. Cheguei a ministrar algumas oficinas de composição de canções, tanto
em São Paulo quanto em Porto Alegre. Fui criador em produtoras de áudio criando
trilhas e jingles (nesses escrevendo as letras e músicas, além de fazer toda a
produção musical). Durante doze anos fui professor em duas disciplinas da graduação
no Curso de Publicidade e Propaganda da PUCRS, onde orientava, entre os trabalhos
práticos, a composição de jingles. Durante o mestrado na USP, cursei disciplinas de
semiótica musical e semiótica da canção, analisando obras e decupando suas
estruturas, formas e linguagens.
3. Buscou informação a respeito de técnicas de construção para o teatro musical?
Quais (livros, cursos presenciais ou on-line, aulas específicas)? Ou baseou-se de
forma intuitiva para a confecção da obra?
Sim, tenho pesquisado em todos os livros referentes ao assunto que posso encontrar,
dentre os musicais de matriz Broadway, de matriz Brechtiana e de matriz Brasileira.
Existem diversos livros e manuais sobre como escrever musicais de matriz Broadway.
Afinal, eles tem mais de 90 anos de experiência continuada na criação e produção
desse tipo de musicais. Entre os livros com os quais pesquiso estão:
- BELL, John e CHICUREL, Steven R. Music Theory For Musical Theatre. Plymouth,
Scarecrow Press, 2008.
- COHEN, Allen e ROSENHAUS, Steven L. Writing Musical Theater. New York,
Pallgrave Macmillan, 2006.
- ENGEL, Lehman. Words With Music – Creating the Broadway Musical Libretto. New
York, Appplause Theatre & Cinema Books, 2006.
- FRANKEL, Aaron. Writing The Broadway Musical. USA, Da Capo Press, 2000.
- JONES, Tom. Making Musicals. New York, Limelight Editions, 1998.
- SPENCER, David. The Musical Theatre Writer’s Survival Guide. Portsmouth, Ed.
Heinemann, 2005.
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…e também no site:
- KENRICK, John. How To Write a Musical. 2000, revisado em 2009. Disponível em
http://www.musicals101.com/write.htm. 8 de Dezembro de 2012.

Sobre as raízes dramatúrgicas do teatro musical de matriz brasileira, temos os livros


e diversos artigos da pesquisadora e diretora Neyde Veneziano. Entre eles, posso
destacar:
- VENEZIANO, Neyde. O Teatro de Revista no Brasil – Dramaturgia e Convenções.
São Paulo, SESI-SP Editora, 2013.
- __________________. Melodrama e Tecnologia no Musical Brasileiro. In: V
CONGRESSO ABRACE. 2008, Belo Horizonte. GT – Dramaturgia : Tradição e
Contemporaneidade.

...e também nos livros de Luiz tatit sobre a canção brasileira:


- TATIT, Luiz. O Cancionista – Composição de Canções no Brasil. São Paulo, EDUSP,
2002.
- TATIT, Luiz e LOPES, Ivã Carlos. Elos de Melodia & Letra – Análise Semiótica de
Seis Canções. Cotia, Ateliê Editorial, 2008.

Sobre a dramaturgia musical de matriz Brechtiana, além de duas disciplinas com o


pesquisador Zebba Del Farra, busquei matreial nos seguintes livros:
- BORNHEIM, Gerd. Brecht – A Estética do Teatro. Rio de Janeiro, Edições Graal,
1992.
- BRECHT, Bertold. Estudos sobre o teatro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005.
...e em artigos;
- DAL FARRA, Zebba. Música da Palavra. Caderno do Folias, São Paulo, n 9, p. 20-
23, Segundo semestre de 2006.
Além disso, reuni outros tantos livros e artigos:
- BOGOSSIAN, Pedro Paulo. Direção Musical em Processo Teatral de Grupo. Caderno
do Folias, São Paulo, n 9, p. 16-19, Segundo semestre de 2006.
- BRITO, Nayara. Mostrar, narrar e cantar: análise da dramaturgia/teatro de Chico
Buarque e Fernando Marques. Revista Brasileira de Estudos da Canção - Natal, n 2,
p. 164-190, jul-dez 2012.
- CARVALHO, Mario Vieira de. A Ópera como Teatro – De Gil Vicente a Stockhausen.
Âmbar, Porto, 2005.
4

- FOLEGATTI, Myrthes Maria da Silva. O Musical Modelo Broadway nos Palcos


Brasileiros. Rio de Janeiro, 2011. 187 f. Tese de Doutorado em Letras. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
- GHIVELDER, Debora. Estreia de 'Bilac vê estrelas' chama atenção para escassez
de trilhas sonoras inéditas em musicais. O Globo, Caderno de Cultura, Rio de Janeiro,
6 de janeiro de 2015.
- KERMAN, Joseph. A Ópera Como Drama. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990.
- LIMA NETO, Luiz Costa. A Dramaturgia Musical das Comédias de Luiz Carlos Martins
Penna (1838-1874): Companhias, Artistas e Repertórios. Revista do Laboratório de
Dramaturgia - LADI - vol. 2 e 3, Ano 1, p. 92-119, UnB, Brasília, dezembro de 2016.
- MARQUES, Fernando. O Teatro Musical e Político no Brasil. O Globo, Caderno de
Cultura, Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 2014.
- MOTA, Marcus. Música e cena: um imenso intercampo de atividades e reflexões.
Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - vol. 2 e 3, Ano 1, p. 2-6, UnB, Brasília,
dezembro de 2016.
- OGANDO, Suellen. O Que É O Teatro Musical. São Paulo, Giostri Editora, 2016.
- ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo, Editora Perspectiva, 1985.
- RUBIM, Mirna. Teatro Musical Contemporâneo no Brasil. Revista Poiésis, Niterói, n.
16, p. 40-51, Dezembro de 2010.
- SEVERO, Ricardo. Em Busca de Uma Dramaturgia Brasileira de Musicais. Revista
A[L]BERTO, São Paulo, n 4, p. 35-46, outono de 2013.

Esta é uma pequena parte da bibliografia que estou utilizando para o meu trabalho.
Tenho muitos outros não listados aqui.

4. Texto, música e letra são partes feitas separadamente por um time colaborativo ou
você assume os três papéis? Por quê?

Já experimentei todas essas alternativas: compus as canções (letra e música), escrevi


o texto e compus as canções, e em “APARECIDA – um musical”, pela primeira vez
escrevi apenas as letras das canções (cujas melodias foram criadas por Carlos
Bauzys).

Acho que o “porque” neste caso não importa muito. Algo que é recorrente nos
“manuais” dos musicais de matriz Broadway é que a dramaturgia é quase sempre feita
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em conjunto entre o(s) escritor(es) e o(s) compompositor(es). Isso me leva a crer que
essa é a melhor maneira de criar um musical original, com as três partes sendo criadas
“em grupo”. Pude testar o processo de composição lado a lado com Carlos Bauzys
em “APARECIDA”, e o resultado não poderia ter sido melhor. A história sendo contada
a partir de uma canção criada dessa forma tem mais fluidez e compreensão.

5. Como você considera a forma ideal de realizar o song spotting: a escolha dos locais
da obra que serão musicados? Descreva seu processo de inserção musical na obra
teatral.

A meu ver, isso deve ser feito em conjunto pelos criadores (dramaturgos e
cancionistas) no princípio do trabalho. Eu costumo pensar em uma “escaleta” de toda
a história, desde a primeira cena até o final, descrevendo a situação de cada cena,
personagens, local, e com isso, identificando onde estariam os números de coro,
solos, duetos, trios, etc., pensando ao mesmo tempo em como contar melhor a história
naquela cena, e buscando um equilíbrio da parte musical. Sempre escrevo o texto
(quando sou também o dramaturgo) a partir dessa “escaleta”. E tento inserir a canção
onde possa criar um melhor sentido e manter o ritmo da cena, seja no início da cena,
no meio, ou no final, pensando na sequência. Mas isso é algo que só pode ser definido
durante o processo de criação, e é algo que tem que ser definido em conjunto (quando
não estou sozinho na criação).

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