Publicacoes POVOS MT Peninsula Da Juatinga OTSS Grafica Baixa FINAL

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Territórios da Península da

O povo que planta e pesca,


Juatinga 2021

Canta, dança e faz festa


no seu pedaço de chão,

Abastece a sua mesa e


agradece a natureza em
qualquer religião.

Seu lugar, seu oratório.

Tirar o seu território é


calar a tradição.

Luís Perequê

à memória de Seu Maneco e Telmo Elesbão

2 3
Realização:
Comunidade Caiçara da Praia Grande da Cajaíba Pesquisadores de Campo (FCT) / Povos: PENÍNSULA DA
Comunidade Caiçara do Calhaus e Ipanema Alexandre Karai Benite, Ana Carolina Santana
Comunidade Caiçara do Pouso da Cajaíba Barbosa, Ariane Rosa Martins, Carolina Santos,
Comunidade Caiçara do Saco da Sardinha Fabiana Ramos, Ivanildes Pereira, Luisa Vilas Boas
Comunidade Caiçara do Saco Claro Cardoso, Francisco Xavier, Guilherme Euler, Lohan
Comunidade Caiçara da Juatinga dos Santos, Sergio Reis, Vagno Martins, Julio
Comunidade Caiçara do Martim de Sá Garcia Karai, Santiago Bernardes, Neimar Lorenço
Comunidade Caiçara do Saco das Anchovas
Comunidade Caiçara do Cairuçu das Pedras Coordenação de Comunicação:
Observatório de Territórios Sustentáveis e Vinícius Carvalho, Eduardo Di Napoli, Felipe
Saudáveis (OTSS) Scapino, Vanessa Cancian, Tiê Passos
Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos
Reis, Paraty e Ubatuba (FCT) Coordenação de Governança e Gestão:
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Leonardo Freitas, Aline Tavares, Alessandra
Bortoni Ninis
Coordenação geral:
Fabiana Miranda Coordenação de Justiça Socioambiental:
Marcela Cananea, Thatiana Lourival
Coordenação de Campo / Península da Juatinga: ÍNDICE
Anna Maria Andrade Validadores / Movimentos Nacionais:
Julio Garcia Karai, Comissão Guarani Yvyrupa
Pesquisadores de Campo / Península da (CGY) Projeto Povos ..............................................................08
Juatinga: Marcela Cananea, Coordenação Nacional de
Carolina Santos, Fabiana Ramos, Francisco Xavier Comunidades Tradicionais Caiçaras (CNCTC) Entendendo o Pré-Sal .................................................10
Sobrinho “Ticote”, Sergio Reis, Vagno Martins Ronaldo dos Santos, Coordenação Nacional de Como estes mapas são feitos .....................................14
Articulação das Comunidades Negras Rurais
Textos: Quilombolas (CONAQ) Como usar esses mapas a favor da comunidade .......16
Anna Maria Andrade, Fabiana Miranda, Gabriela
Murua, Santiago Bernardes Entrevistados / Agradecimentos:
Altamiro dos Santos - Ana Paula Nascimento - Territórios da Península da Juatinga .........................18
Revisão Técnica: Angelita Conceição Costa - Anita Nakazaqui Miguel
Vinícius Carvalho, Aline Tavares, Anna Maria de Jesus - Aprígio Ramos dos Santos - Benedita
Introdução ....................................................................22
Andrade Alves da Silva, “Geni” - Benedita Maurício dos Praia Grande da Cajaíba e Calhaus .............................40
Santos, Dona “Dica” - Benedito Villela dos Santos
Mapas: - Claudio dos Remédios - Dinalva de Almeida - Pouso da Cajaíba ..........................................................70
Janaina Cassiano dos Santos, João Oswaldo Cruz, Dulcinéia dos Remédios - Elza Oliveira - Erielton Juatinga, Saco Claro, Saco das Sardinhas ...................92
Nicholas Saraiva, Tiê Passos Ramos Xavier - Francisco Carlos Lopes de Oliveira,
Seu “Chico” - Francisco Xavier Sobrinho, “Ticote” Cairuçu, Saco das Anchovas, Martim de Sá, Sumaca 118
Fotos: - Gabriel da Conceição - Iveti Elesbão - Jane de
Anna Maria Andrade, Eduardo di Napoli, Felipe Almeida - Jaqueline Jesus - Joel Nelson Costa
Scapino, Ricardo Martins Monge “Papu” - Josias Silva de Jesus - Jovino dos Remédios - Mapas
Manuel dos Remédios, “Seu Maneco” - Manuel
Projeto Gráfico e Editoração de Imagens: Xavier Sobrinho, “Manequinho” - Mario Cesar do
Microterritório Península da Juatinga ..........................20
Eduardo Di Napoli, Tiê Passos Nascimento, “Marinho” - Meire de Souza da Silva - Calhaus, Ipanema e Galhetas .......................................66
Miguel Souza - Natalia Ramos Sobrinho - Nazareth
Diagramação: de Freitas - Nilson Martins de Souza - Norival José Praia Grande da Cajaíba e Praia da Deserta ................68
Eduardo Di Napoli, Tiê Passos Elesbão, “Vavá” - Reginaldo Generoso, “Simão” - Pouso da Cajaíba ...........................................................86
Richard Sobrinho Ramos - Robson Dias Possidônio
Ilustrações e infográficos: - Rubens Souza - Secundino de Jesus - Suelen Maritório Caiçara Península Juatinga porção sul ........88
Tiê Passos Elesbão - Talita Elesbão Conceição - Telmo José Maritório Caiçara Península Juatinga porção norte.....90
Elesbão Filho - Thalia F. S. Junqueira - Valdecir da
Transcrição de Entrevistas: Conceição Juatinga .......................................................................114
Heloísa Vianna Saco da Sardinha e Saco Claro ...................................116
EM MEMÓRIA:
OTSS - EQUIPE PROJETO POVOS: Manoel dos Remédios “Seu Maneco” (1942-2020) Cairuçu das Pedras .....................................................148
Telmo José Elesbão (1977-2020)
Coordenação Geral: Martim de Sá e Rombuda ............................................150
Edmundo Gallo e Vagner Nascimento Saco das Anchovas ......................................................152
Coordenação de Gestão Territorializada: Sumaca ........................................................................154
Fabiana Miranda Maritório caiçara geral e Cadeia de petróleo e gás.....156
Coordenação de Campo / Povos:
Anna Maria Andrade, Cristiano Lafetá, Gabriela
Muruá

4 5
N ó s , o s po v o s tr a d i c i o n ais
d e Angr a d o s R ei s , Pa rat y
e Ub a tu b a , d i z end o
Pela primeira vez,
qu a nto s s o m o s , c o mo
nós por nós mesmos.
v i v em o s e o qu e b u s c am o s
pa r a a pl ena r ea l i z a ç ã o
d o s no s s o s d i r ei to s .

6 7
Projeto Povos:
Território, Identidade e Tradição
Onde o Projeto
Conheça a mais abrangente iniciativa de cartografia social já
realizada na Bocaina. Protagonizada pelas próprias comunidades, Povos ocorre?
caracterização envolve territórios indígenas, quilombolas e caiçaras
de Angra dos Reis (RJ), Paraty (RJ) e Ubatuba (SP) O Projeto Povos ocorre nos municípios de Uma observação importante é que esta
Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba. Para sua organização em agrupamentos de territórios
realização, foram definidos 11 agrupamentos – ou microterritórios - não quer dizer
Qual é exatamente o território O Projeto Povos utiliza metodologias de territórios que reúnem laços culturais, que as comunidades caracterizadas não
tradicionalmente ocupado pelos de cartografia social que permitem às ambientais e territoriais comuns. É o caso, tenham fortes e profundos laços com outras
quilombolas? Quais são as condições de comunidades desenhar, com ajuda de por exemplo, do agrupamento de territórios comunidades. Ou seja, essa divisão apenas
saneamento dos indígenas? E quais são os profissionais, mapas dos territórios que tradicionais do Carapitanga, que partilham ajuda a organizar os trabalhos de campo do
desafios dos caiçaras em relação ao acesso ocupam. Este tipo de mapeamento social a mesma Sub-Bacia Hidrográfica em Paraty projeto.
à educação? Estas são apenas algumas geralmente envolve populações tradicionais (RJ).
das informações que serão reveladas pelo e é um instrumento utilizado para fazer
Projeto Povos, iniciativa que vai colocar de valer os direitos desses grupos frente a
vez, no mapa do Brasil, os territórios de grandes empreendimentos, problemas
64 comunidades e localidades tradicionais relacionados à grilagem de terras e ao não
indígenas, caiçaras e quilombolas de Angra cumprimento de leis que dizem respeito à
dos Reis (RJ), Paraty (RJ) e Ubatuba (SP). delimitação de terras indígenas, à titulação
de territórios quilombolas
Reivindicação histórica do Fórum de
Caracterização e à regularização fundiária Paraty
Comunidades Tradicionais (FCT), a de territórios caiçaras,
realização do Projeto Povos é uma de 64 territórios entre outros.
exigência do licenciamento ambiental tradicionais
federal, conduzido pelo Ibama, para Além de informações
a produção de petróleo e gás pela
ocorre até 2023 técnicas, os mapas sociais
Petrobras na Bacia de Santos. Quem são construídos de forma
executa é o Observatório de Territórios participativa e apresentam o cotidiano de
Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), uma comunidade em linguagem simples
uma parceria entre o FCT e a Fundação e acessível. Neles, são colocados espaços
Oswaldo Cruz (Fiocruz). de roças, rios, lagos, casas, equipamentos
C caiçaras
sociais como unidades de saúde e escolas
i indígenas
Participam também a Coordenação Nacional e outros elementos que as populações Q quilombolas
de Articulação das Comunidades Negras envolvidas considerem importantes. Aliás,
Rurais Quilombolas (CONAQ), a Comissão são as comunidades que decidem o que
Guarani Yvyrupá (CGY) e a Coordenação querem caracterizar. No Projeto Povos, Ubatuba Paraty Angra dos Reis
Nacional de Comunidades Tradicionais nenhuma informação é tornada pública SP RJ RJ
Caiçaras (CNCTC), que completam o conselho sem a prévia autorização das comunidades
do projeto com a missão de garantir que envolvidas e das representações nacionais
todos os direitos das comunidades sejam dos povos e comunidades tradicionais
respeitados. (Conaq, CGY e CNCTC).

8 9
Entendendo o O que é o Produção média de

Pré-Sal
petróleo no Pré Sal
Pré-sal?
BARRIS POR DIA
O Brasil não era considerado um país
1,5MILHÃO
importante na produção mundial de petróleo
até a descoberta do Pré-sal, em 2007. 1MILHÃO

Pré-sal é um tipo de petróleo extraído de 500MIL

O Projeto Povos é resultado de uma condicionante do licenciamento camadas profundas embaixo do mar. Como 41MIL

ambiental federal para a exploração de petróleo e gás na camada do se vê na ilustração abaixo, esse petróleo 2010 2014 2016 2018
Pré-Sal na Bacia de Santos. Mas você sabe o que isso tem a ver com as está localizado em um agrupamento de
rochas localizadas em águas ultra profundas
comunidades tradicionais? em baixo de uma camada de sal, por isso
pré-sal. Ou seja, “antes do sal”.

Para que um grande empreendimento possa


ser construído, ele precisa antes receber
O que é o petróleo?
uma licença ambiental que é concedida
O petróleo é um recurso natural muito
pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente
importante na produção de energia em
e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
todos os países do mundo. Além de ser
Para receber essa licença, quem constrói o
combustível utilizado nos veículos de
empreendimento tem que cumprir também
transporte – carro, ônibus, caminhão, avião
uma série de condições para mitigar
– ele também está presente no plástico
ou compensar seus impactos sociais e
que compõe muitos dos equipamentos
ÁGUAS SUPER PROFUNDAS FUNDO DO MAR 2.000 m
ambientais.
eletrônicos (como celulares, computadores)
e eletrodomésticos, além de ser
muito utilizado em embalagens.
O Projeto Povos é uma
Pré-sal é Tem petróleo também em
destas condições, e foi COMPOSTA DE AREIA E ROCHA CAMADA PÓS SAL 3.000 m
exigido da Petrobras um tipo de cosméticos (como batons), pasta
de dente e até em roupa.
pelo Ibama para que as petróleo
comunidades tradicionais
da Bocaina possam extraído de
entender e se manifestar camadas
sobre potenciais
impactos da exploração
ultraprofundas FORMADO A MILHÕES DE ANOS,
CAMADA DE SAL 5.000 m
embaixo do
APÓS SEPARAÇÃO DOS CONTINENTES
de petróleo na Bacia
mar
1984 2018
de Santos sobre seus
territórios. Outro objetivo
é disponibilizar mais
informações sobre as PÓS-SAL PRÉ-SAL
CAMADA PRÉ SAL 7.000 m
4.108 77 POÇOS
FORMADO ANTES DA CAMADA DE SAL
comunidades para que suas reivindicações
possam ser levadas em conta pelo Ibama
POÇOS PETRÓLEO
1,5MILHÃO
quando houver algum novo pedido de licença
para grandes empreendimentos na região. 500 MIL
BARRIS POR DIA BARRIS POR DIA

10 11
Onde fica o Pré-sal? Europa

África África
África África
GONDWANA
América
do Sul
América América América
do Sul do Sul do Sul
PRÉ SAL

130 MILHÕES 115 MILHÕES 110 MILHÕES 100 MILHÕES HOJE


ANOS ATRÁS

Bacia do
Espírito Santo O que isso E, também, alterações terrestres tais

significa para as como o aumento do número de pessoas


vindas de fora, que chegam para trabalhar
comunidades? na exploração de petróleo sem que haja,
por vezes, uma melhoria equivalente na
É tão grande a estrutura necessária para infraestrutura local como mais hospitais e
Bacia
a exploração do petróleo no mar que faz escolas.
de Campos
com que o Pré-sal seja definido como um
Megaempreedimento, já que ele altera
a dinâmica social, econômica, cultural e
Como o
ambiental das cidades litorâneas onde ficam licenciamento do
Bacia
de Santos
Reservatórios
do pré-sal
as reservas do Pré-sal.
Pré-sal funciona?
Isso significa dizer que, além do risco de
800 quilômetros Megaempreedimentos como o Pré-sal
vazamentos, a estrutura do Pré-sal gera
de comprimento e como consequências alterações no território
precisam cumprir dois procedimentos
legais para poderem se instalar em
200 quilômetros marinho como, por exemplo, o aumento do
uma região. O primeiro é a Avaliação de
de largura número de grandes embarcações, mudanças
Impactos Ambientais e o segundo é o
no comportamento de cardumes e ampliação
Processo de Licenciamento Ambiental.
de portos para atender a demanda de
Bacia A partir daí é feito o Estudo de Impacto
de Pelotas transporte.
Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto
Ambiental (RIMA), que ajudam o Ibama a
Tempo médio de construção
decidir se dá ou não a licença.
de poços marítimos
Depois, é necessário realizar
2,5X RÁPIDO
A área de influência do pré-sal mede cerca O que tem no audiências públicas para ouvir o que
a população e o poder público têm a
de 800 quilômetros de comprimento e
200 quilômetros de largura e está entre
pré-sal? dizer sobre o empreendimento. No
os estados de Santa Catarina e Espírito território da Bocaina, essas audiências
Para se ter uma noção do que significa a aconteceram nas Etapas 1, 2 e 3 do Pré-
Santo, passando, também, por territórios
descoberta do pré-sal, é possível que o sal. Sim, já estamos na etapa 3 desse
tradicionais localizados no litoral norte de
Brasil duplique sua produção de petróleo empreendimento.
São Paulo e sul do Rio de Janeiro.
em aproximadamente 10 anos. Entre 2006

O volume produzido por poço no pré-sal


e 2007, as reservas do país somavam cerca
de 14 bilhões de barris de petróleo. Com
2010 2018 Esses procedimentos têm como objetivo
avaliar os impactos causados pelo Pré-sal
da Bacia de Santos, onde estão essas 310 DIAS 127 DIAS
essa descoberta, é possível que as reservas e propor condicionantes e compensações
populações, está muito acima da média
atinjam entre 50 a 80 bilhões de barris. Cada que amenizem ou compensem os impactos
da indústria de óleo e gás. Dos dez poços
barril de petróleo tem o volume aproximado 1 ANO ambientais e sociais causados pela sua
com maior produção no Brasil, nove estão
de 158,98 litros. instalação.
localizados nessa área.

12 13
Como estes mapas 4) Refletindo o
Território

são feitos?
Depois, é hora de apresentar à comunidade
a primeira versão do mapa final e validar
com os participantes cada dado coletado.
Um momento, também, para corrigir
eventuais erros e acrescentar informações
Com a participação de pesquisadores indígenas, caiçaras e quilombolas, importantes que não tenham aparecido nas
o Projeto Povos mapeia só o que as comunidades querem caracterizar. etapas anteriores.
Conheça, passo a passo, como se dá essa construção coletiva.
5) Nosso mapa
Ícones dos mapas do Projeto POVOS

1) Chegança 2) Mapa Falado A última etapa se divide em dois momentos.


O primeiro consiste em revisitar o material
produzido durante toda a caracterização
Realizada com a participação do Fórum Nessa atividade, a comunidade é convidada e validar coletivamente o mapa final. Em
de Comunidades Tradicionais (FCT), a fazer um desenho livre, em um papel em sequência, a comunidade define quais
a “chegança” é o passo inicial da branco, representando seu território. Neste informações quer que se tornem públicas e
caracterização. Ela envolve lideranças e desenho, o território e seus elementos vão quais prefere que sejam de uso restrito da
articuladores locais para esclarecer dúvidas surgindo a partir do exercício da memória comunidade.
sobre o projeto e para garantir que os mapas e da definição, pela própria comunidade,
sejam construídos por muitas mãos. do que ela quer e acha importante que seja
caracterizado.

3) Localizando o
território no mapa
A etapa seguinte consiste na transposição
do mapa falado para uma foto de satélite, 6) Ganhando o
localizando os elementos do desenho em
uma base georeferenciada. Nesta etapa,
mundo
o objetivo principal é garantir que os Percorrido esse caminho, o material
participantes consigam dimensionar seu segue para impressão e é devolvido para
território em um mapa e visualizar demais as comunidades. Também validadas pelas
delimitações territoriais já estabelecidas comunidades e suas representações
por órgãos governamentais, como nacionais, as publicações finais são
Unidades de Conservação e demarcações já distribuídas para bibliotecas e órgãos de
realizadas. governo e da sociedade civil cuja atribuição
seja zelar pelos direitos dos povos e
comunidades tradicionais da Bocaina.

14 15
Como usar estes
mapas a favor das Segurança
comunidades alimentar e
nutricional:
O projeto permitirá às comunidades
ampliarem seus conhecimentos sobre as
Os mapas construídos pelas comunidades são instrumentos de espécies agrícolas manejadas por elas e
promoção de direitos. Entenda algumas das formas como eles podem também por suas comunidades vizinhas.
Isso fortalece o conhecimento do território
ser utilizados para a defesa dos territórios tradicionais e facilita possíveis trocas de sementes e de
técnicas de plantio.

Garantia de Práticas de saúde:


territórios: O projeto permitirá também às comunidades
O projeto não assegura que haverá titulação, ampliarem seus conhecimentos sobre as
demarcação ou regularização fundiária de práticas de cuidado corporal e espiritual
territórios tradicionais. Mas irá contribuir utilizadas por ela e por suas comunidades
para que as reivindicações das comunidades vizinhas. Isso também facilita possíveis
cheguem aos órgãos competentes trocas de sementes e de conhecimentos
responsáveis por fazer isso. em relação a procedimentos de cura e
prevenção a partir das plantas medicinais.

Acesso a políticas Qualificação de


públicas: Fortalecimento do
licenciamento FCT:
ambiental:
O projeto também não construirá
infraestruturas nas comunidades, mas vai O mapa feito pela comunidade contribuirá
contribuir para levar ao conhecimento dos Outra conquista importante é que estes também para fortalecer as bandeiras
governos e órgãos públicos qual é a situação dados passarão a ser consultados pelo de luta do Fórum de Comunidades
de cada comunidade em relação a serviços Ibama quando houver uma nova solicitação Tradicionais nas áreas de Turismo de
e equipamentos públicos nas áreas de de licença ambiental para grandes Base Comunitária, Educação Diferenciada,
educação, saúde, saneamento, trabalho e empreendimentos que possam impactar as Saneamento Ecológico, Economia Solidária
renda, entre outras decididas pelas próprias comunidades tradicionais de Angra dos Reis, e Agroecologia e a combater todas as
comunidades. Paraty e Ubatuba. formas de racismo e violência contra as
comunidades.

16 17
18 19
20 21
“O mar é o nosso
quintal de casa”
Os territórios tratados nessa publicação estão localizados ao longo
da costeira da península da Juatinga, na porção sul da Baía da Ilha
Grande, no município de Paraty. A península abrange desde a margem
direita do Saco do Mamanguá até a Praia do Sono, e toda sua extensão
é território histórico de comunidades tradicionais caiçaras.

Antes dos caiçaras, a Juatinga era ocupada A caracterização abarcou a maior parte
por indígenas, mas essa população foi dos territórios tradicionais da península.
desaparecendo durante a colonização, com a As comunidades estão localizadas em
chegada dos europeus e dos africanos e com duas enseadas separadas pela Ponta da
o violento processo de invasão que começou Juatinga. Navegando para a região a partir

pelo litoral. Conta-se que a Praia Grande da de Paraty, avista-se primeiro a enseada da
Cajaíba, entre a Ponta da Cajaíba e a Ponta
Cajaíba abrigou um dos primeiros quilombos
da Mesa. A enseada da Cajaíba abrange a
que se formaram na região. As comunidades
praia da Deserta, Praia Grande da Cajaíba,
caiçaras nasceram desse encontro de povos,
Itaóca, Gaietas, Calhaus, Ipanema e Pouso
e foram se consolidando na costa do sudeste
da Cajaíba. Após a Ponta da Mesa, no
brasileiro ao longo do século XIX.
costão em direção à Ponta da Juatinga,
estão as comunidades do Saco Claro, Saco
Vivendo em meio a um relevo acidentado, das Sardinhas e da Juatinga. Virando a
coberto de mata atlântica, com abundância Ponta da Juatinga, pode-se ver o outro
de água doce, numa costeira recortada e conjunto de localidades caiçaras que se
banhada por mar cristalino, os caiçaras encontram entre a Ponta da Juatinga e o
da Juatinga se estabeleceram nesse Ilhote do Cairuçu. Nesta área estão a Praia
território construindo uma relação ecológica da Sumaca, a Ponta da Rombuda, a Praia
cuidadosa e sustentável. O modo de vida de Martim de Sá, o Saco das Anchovas e
caiçara na Juatinga é totalmente enraizado o Cairuçu das Pedras. Diferente da Baía
no território. Há uma interdependência da Cajaíba, essa região fica exposta às

entre a cultura e o ambiente, pois ao mesmo correntes e ressacas de mar aberto, e por
razões geográficas e históricas, segue
tempo em que o manejo caiçara moldou a
sendo a zona mais remota e selvagem da
paisagem, esse espaço foi, e continua sendo,
península.
um elemento inseparável da sua identidade
e cultura.

22 23
As comunidades de Cairuçu, criada em 1983 e que,
além da península, abrange uma
da costeira boa porção territorial e insular de
Paraty, somando 34.690,72 hectares;
As comunidades caiçaras dessa e uma unidade estadual de proteção
integral, a Reserva Ecológica da
região são conhecidas em
Juatinga (REJ), criada em 1991,
Paraty como as “comunidades com 9.797 hectares, em processo
da costeira”, não só porque seus de recategorização. As duas UCs
territórios estão localizados à tiveram como justificativa e objetivo
beira mar e são acessados quase de criação a proteção ambiental e
exclusivamente de barco, mas também das comunidades caiçaras
da região.
porque uma boa parte dessas
localidades não possui praia e o O trabalho de caracterização
embarque e desembarque são envolveu diretamente 10 localidades
feitos nas pedras do costão. atualmente ocupadas por
comunidades caiçaras: Praia Grande
Devido aos obstáculos geográficos da Cajaíba, Calhaus (junto com
da península, o traçado da BR 101 Ipanema), Pouso da Cajaíba, Saco
que liga Ubatuba a Paraty passou da Sardinha, Saco Claro, Juatinga,
longe das praias e não viabilizou Martim de Sá, Saco das Anchovas,
o acesso terrestre motorizado Cairuçu das Pedras e a Sumaca,
às localidades onde residem as onde reside apenas um morador
comunidades caiçaras. Para chegar caiçara. Além destas, localidades
à região é preciso ir pelo mar ou a como a Praia da Deserta, Gaieta,
pé, em caminhadas por trilhas que Itaóca e Rombuda foram indicadas
duram horas ou dias de subidas como território histórico caiçara
e descidas. Embora a BR 101 pelos moradores da península, mas
tenha alterado todo o território da não foram realizados levantamentos
Bocaina, promovendo a chegada de campo mais detalhados nesses
maciça do turismo e da especulação locais.
imobiliária, o relativo isolamento da
Juatinga contribuiu decisivamente A população total nestas 10
para a proteção da cultura local comunidades é de cerca de 650
tornando a península o mais pessoas, incluindo alguns parentes
preservado reduto de comunidades que dividem residência entre a
tradicionais caiçaras do município costeira e a cidade. A comunidade
de Paraty. Os territórios caiçaras mais populosa é o Pouso da Cajaíba,
da Juatinga estão sobrepostos por seguida pelo Calhaus e depois
duas unidades de conservação: uma Juatinga. A Sumaca tem apenas um
federal de uso sustentável chamada morador e as demais comunidades
Cerco fixo flutuante da comunidade da Juatinga
Área de Proteção Ambiental (APA) variam entre 10 e 40 pessoas.

24 25
Tempos e abandonou, largou tudo lá e
veio pra cá, veio morar aqui.
espaços caiçaras Antigamente eles não ligavam
pra terra. E o mar era o quintal
de casa.”
O povo caiçara da península habita
Telmo José Elesbão Filho, 42 anos,
essa região há muitas gerações.
Juatinga, 2019
Nas entrevistas surgiram relatos
sobre a trajetória de famílias que Assim como uma árvore que vai
estão no território há pelo menos 7 dispersando seus galhos e suas
gerações. Ao longo desses mais de sementes, as famílias caiçaras foram
150 anos, seus descendentes foram ocupando diferentes localidades
se espalhando em várias localidades. da península e da Bocaina em
Estiva e ranchos de pesca no Saco das Anchovas
geral. O casamento e a procura por
melhores áreas de trabalho foram
A família, ela vai as principais razões que motivaram
distanciando e vai o deslocamento de pessoas, e às O modo de se relacionar e de
crescendo, que nem uma árvore vezes de famílias inteiras de uma apreender o território se expressa de comunidades onde não tem praia,
mesmo. Vai criando galho, vai localidade para outra. Assim, ao várias maneiras. Uma delas é o nome o acesso se dá pelas pedras, em
caindo folha, vai caindo fruto longo de décadas, foi se formando dado para os lugares (os topônimos). estivas feitas de madeiras roliças,
e vai espalhando. Minha mãe uma rede de parentesco que conecta Na Juatinga, os morros, as pedras, por onde as embarcações são
nasceu no Saco das Anchovas todas as comunidades da península, tocas, sacos, pontas, trilhas, ilhas, puxadas até os ranchos. O Saco
e meu pai nasceu no Saco incluindo também a Ponta Negra e a sertões, tudo recebe um nome. Os da Sardinha e a Juatinga possuem
Praia do Sono. nomes são escolhidos pelo formato,
da Sardinha. Os meus avos cais, facilitando o embarque e
eram primos. O meu avô José pelo uso, ou pela memória de algum desembarque em dias de mar
O modo de vida caiçara se desenrola fato ali ocorrido. Assim, a Juatinga
Bernardo, pai da minha mãe agitado. Também sobre as pedras
em diferentes espaços do território não é um mero cenário da vida são construídos os varais, que são
que morava aqui no Pagarês
e integra praia, costeira, encostas, caiçara, e sim um espaço repleto plataformas de bambu ou madeira
[lugar na Ponta da Juatinga], sertão e mar. As atividades são de significados, uma paisagem que servem para estender as redes
era primo do meu avô que definidas e organizadas muito produzida pelos seus habitantes ao de pesca, para que sequem e para
morava no Saco da Sardinha, em função das estações do ano, longo de gerações vivendo ali. serem consertadas. Tais estruturas
o José Rodrigues. E ele era da geralmente chamadas de “tempo evidenciam a adaptabilidade caiçara
família do Manuel do Roque quente” e “tempo frio”. As estações A maior parte das localidades às características espaciais de seu
[Seu Maneco, do Martim de Sá]. definem o tempo de fazer roça, habitadas tem praia, com exceção território.
Por isso que meu avô também o tempo de pescar e o trabalho de quatro comunidades que se
morou no Saco das Anchovas. O no turismo. Também influencia formaram nas encostas da costeira:
meu avô tinha parente também as condições de navegação e a Juatinga, Saco Claro, Saco da
que morava no Sono, o pessoal circulação das pessoas entre as Sardinha e Saco das Anchovas.
do Albino, do Zezinho lá do comunidades e para a cidade. A vida
Sono. E minha avó Antonia Rosa na Juatinga está muito conectada aos Nas comunidades com praia,
tinha parente no Mamanguá, ciclos naturais e eventos climáticos as embarcações de pequeno
do território. porte (botes) chegam pelo mar e
na Praia do Cruzeiro. Aí ela
“aterrissam” na faixa de areia. Nas

26 27
O espaço da mata é fonte de recursos embarcações anteriores chegaram
fundamentais para a vida caiçara, com força no início dos anos 2000.
fornecendo água, cipós e madeiras Eles são muito utilizados em fretes
para construção de casas, canoas, de turismo, mas também na pesca.
remos e remédios naturais. Durante
muito tempo, a mata forneceu O mar é uma constante na paisagem
também um importante complemento visual e sonora dos moradores da
alimentar, por meio da caça, extração península. Ele habita as casas, as
de palmito e frutas. Até hoje, a mata roças e seu barulho ressoa dentro
inspira respeito e cuidado. E, para das pessoas todos os dias. O povo
alguns, é um espaço considerado da costeira está sempre atento
sagrado. aos ventos, à influência da lua e
das marés, e articula todas essas
Outro espaço essencial da vida variáveis para prever o tempo, as
cotidiana dos caiçaras é o mar. O condições do mar, e com base nisso
mar provê a maior parte da renda organizam o seu tempo de trabalho.
A praia é um espaço de encontro e lazer em muitas comunidades familiar, não apenas com a pesca, Na Juatinga, saber fazer a leitura do
mas também por meio da atividade ambiente marinho é determinante
de turismo náutico no verão. para o sucesso e a segurança
Além disso, pelo mar são feitas nas atividades. Esse sistema de
as travessias para a cidade para conhecimentos tradicionais é de
A praia é um espaço de encontro impactar o ambiente com grandes acessar serviços de saúde, fazer grande importância e vem sendo
e lazer, e em muitas comunidades obras de infraestrutura. compras e visitar parentes. Essas construído, transmitido e atualizado
é o lugar de jogar bola. Ao longo rotas marítimas são importantes ao longo de várias gerações.
da faixa de areia se localizam os Nos quintais das casas há plantas para a história do povo da costeira.
ranchos para guardar embarcações e medicinais, frutíferas, muitas Segundo contam, as idas para a
petrechos de pesca. Alguns ranchos flores e alguns mantém criação de cidade se tornaram mais frequentes
também podem ser usados como galinha. Antigamente era comum nos últimos anos, à medida em
quiosques e bares que atendem a também criação de porco. As áreas que as pessoas foram adquirindo
demanda do turismo na temporada. agrícolas podem estar perto da embarcações motorizadas. Primeiro
Fora de temporada, muitos desses casa, ou mais afastadas. As zonas as travessias eram feitas em canoas
comércios voltam a ser ranchos de agrícolas mais afastadas do mar são a remo, e muitos moradores mais
pesca. chamadas de “sertão”. Em alguns velhos da região contam as sagas
relatos, a palavra “sertão” aparece que enfrentavam no mar nessas
Todos os núcleos de moradia caiçara associada ao nome de quem trabalha viagens. Depois começaram a surgir
se situam bem próximos ao mar, na área, o “sertão do seu fulano”. as canoas motorizadas que duraram
na subida das encostas. As casas Em outros, aparece como forma de até os anos 70, e depois vieram as
são ligadas por caminhos estreitos se referir às áreas “mais retiradas baleeiras e os pequenos botes de
que respeitam e aproveitam os da comunidade”, às zonas de “mata madeira, ainda presentes na região.
elementos da natureza. Os caminhos virgem” que recobrem todo o interior Só mais tarde os caiçaras começaram
aproveitam as pedras, as árvores, da península, e que são espaços de a comprar barcos maiores de pesca.
raízes e respeitam os fluxos d’água uso comum. Os botes de fibra com motor de
na feitura das trilhas, evitando popa, muito mais rápidos que as

28 29
A pesca artesanal coloca em prática século XX pelos japoneses, é uma
um sistema de conhecimentos das mais sustentáveis artes de pesca
que inclui desde o feitio das pois os peixes permanecem vivos
canoas e remos, confecção dos dentro da armadilha, sendo possível
petrechos, técnicas de captura retornar ao mar os peixes que não
adequadas, até a compreensão dos são vendidos nem consumidos pelas
diferentes ambientes marinhos, das famílias caiçaras.
características do solo subaquático
e do comportamento das espécies A pesca embarcada que também
(se são peixes de passagem, onde emprega caiçaras da Península
costumam ficar, o que gostam de da Juatinga percorre áreas bem
comer, quando se reproduzem). maiores, chegando a cruzar toda
Tudo isso conectado às estações do a baía da Ilha Grande, e também
ano, que também influenciam todo o áreas de mar aberto fora da Baía.
ambiente. O conjunto desses saberes Ao Sul, normalmente ultrapassam a
e práticas constitui um dos principais fronteira com o Estado de São Paulo.
bens do patrimônio cultural caiçara, Há relatos de pescadores que já
e está ameaçado pela redução do trabalharam embarcados na pesca da
estoque pesqueiro na região. sardinha e corvina em uma extensão
costeira que vai do Rio Grande do Sul
Mesmo assim, a pesca artesanal à Bahia.
resiste: ela acontece tanto nas
regiões mais próximas da costeira - A pesca também é fundamental
com a rede mijuada (ou de espera), para a economia local. Além de ser
Conhecimentos cerco fixo flutuante, linha, fisga e importante para a alimentação, a
tradicionais e usos mergulho - quanto em áreas até
30 milhas afastadas da costa -
pesca é a principal fonte de renda
familiar no Pouso da Cajaíba,
do território com espinhel e redes. Importante Calhaus, Saco Claro, Saco das
destacar que a península da Juatinga Sardinhas, Cairuçu das Pedras, Saco
A caracterização revelou a riqueza dos é a região que concentra o maior das Anchovas e Juatinga.
conhecimentos e práticas tradicionais número de cercos fixos flutuantes
envolvidos na pesca, agricultura, extrativismo de toda a Bocaina. Entre a Ponta
e construção de casas. Por meio desses da Cajaíba e o Ilhote do Cairuçu
saberes, essas atividades continuam sendo foram identificados 30 pontos de
a base do modo de vida caiçara na Juatinga, cerco nos mapeamentos realizados
e elas envolvem o manejo de uma grande pelas comunidades. Essa técnica
quantidade de espécies terrestres e marinhas. pesqueira, introduzida no início do
Cada uma delas acontece de diferentes
maneiras em cada comunidade, como se verá
nos capítulos a seguir, mas vale destacar que
a pesca é central em todas as comunidades da
costeira.

30 31
A roça de coivara é a técnica agrícola
tradicional até hoje praticada Ameaças e olhasse assim, só via roça, isso
aí era tudo roça! Hoje ninguém
na região, e encontra-se ativa conflitos mais se interessa em fazer uma
no Cairuçu das Pedras, Saco das roça. Foram proibindo de pouco
Anchovas, Praia Grande da Cajaíba, “A cultura está se acabando,
a pouco, e de pouco a pouco as
Saco da Sardinha e algumas áreas morrendo aos poucos. Os caiçaras
pessoas de fora vão vindo e vão
no sertão do Pouso da Cajaíba estão morrendo pouco a pouco,
invadindo. Turismo é uma coisa
e do Martim de Sá. Há também como os índios. Hoje, o próprio
boa pra pessoa ganhar dinheiro,
outras técnicas agrícolas, como a povo caiçara tá vivendo quase
mas é muita ambição. Eu nasci na
agrofloresta na Praia Grande. igual o povo da cidade vive.
Ponta Negra, sou nascido e criado
Com a evolução que vai tendo, a
O extrativismo de madeiras, cipós,
lá e moro aqui há quase uns 30
maioria dos jovens vai mudando,
sapê, taquaras, bambus e remédios anos, e olha: quem viu Ponta
vai copiando as coisas da cidade.
da mata são essenciais para manter Negra e quem vê!
Saiu um tal de celular, eu nunca
a confecção de peças e construções
tive esse tal de celular. Hoje em
que também são um traço Muitas comunidades hoje vivem
dia, até um gato tem celular.
característico da cultura caiçara: do turismo, já nem pescam mais,
As crianças desenvolvem muita
casas de estuque (ou pau-a-pique), tá difícil manter a cultura. E se
coisa por causa disso, coisa boa e
estivas, móveis, remos, canoas, a Petrobrás afetar aqui, aí é que
cestos, tapitis, peneiras e covos são coisa ruim. Hoje tem caiçara que
não vai ficar ninguém mesmo. Se
algumas dessas peças. São peças vive na cidade que nem fala com
tiver um vazamento, nem vamos
confeccionadas para uso cotidiano, a gente! Nascido aqui, mas que
saber o que fazer, nem temos pra
mas, por sua beleza, acabam sendo não vive mais aqui, não lembra
onde ir.”
vendidas para visitantes também mais da infância, do que viveu
como artesanato. Alguns elementos aqui, desencantou. As pessoas Joel Nelson Costa, Juatinga, 2019
da cultura material local foram têm vergonha às vezes de se dizer Embora seja um território
sendo substituídos com o tempo, caiçara, dizer que é da roça, da preservado, há diversas ameaças ao
como por exemplo a embira, nome tradição caiçara. Talvez o caiçara território e ao patrimônio cultural
dado às cordas feitas com as fibras que vive e tá crescendo aqui das comunidades caiçaras da
retiradas da casca de algumas hoje pense em morar na cidade, Juatinga. O depoimento acima coloca
árvores, como a embaúba. como os outros. A cultura caiçara uma preocupação sobre o risco de
evoluiu, antigamente era tudo ruptura na transmissão da cultura
Por meio de suas atividades caiçara para as novas gerações.
muito mais difícil, mas era bom.
produtivas, os caiçaras da península
da Juatinga manejam centenas de De modo geral, todas as
Mesmo nas comunidades mais
variedades e espécies marinhas, comunidades apontaram que a
agrícolas e florestais, tornando
isoladas não se vê mais os
principal ameaça é a diminuição do
evidente essa relação inseparável caiçaras morando em casa de
estoque pesqueiro, atribuída a dois
entre a cultura caiçara e o seu estuque; hoje já é alvenaria.
principais motivos: a presença de
território. Daqui a pouco, você vai chegar embarcações da pesca industrial
aqui na Juatinga e não vai ver e o aumento do número de navios
nenhuma casa de estuque. A petroleiros dentro do seu território
Juatinga antigamente, se você pesqueiro. Ainda não se sabe a
32 33
FCT e as e encaminhar soluções coletivas para
questões ligadas à pesca artesanal.
dimensão dos danos causados bandeiras
de luta na
pela indústria do petróleo, mas E em 2020, o FCT atuou na península
com a “Campanha Cuidar é Resistir”
os caiçaras percebem muitas
transformações no ambiente Península da para reduzir a vulnerabilidade das
comunidades no contexto da pandemia de
marinho, como o desaparecimento de
várias espécies, peixes contaminados
Alguns efeitos indesejados do turismo,
Juatinga Covid-19.

de óleo e diferentes tipos de poluição como a exposição das comunidades às Nas sessões a seguir, serão
no mar, como manchas pretas de drogas, também foram mencionados, Defesa do território, cultura, educação apresentados os principais resultados
óleo e espumas nunca antes vistas mas de modo geral o turismo é uma diferenciada, saneamento ecológico, da caracterização. O processo criado a
chegando perto da costa e das oportunidade de renda e muitas famílias agroecologia, pesca artesanal e turismo partir da cartografia social mostrou que
praias. Esses impactos acumulados se preparam para receber os visitantes de base comunitária são as principais as comunidades, quando olham para si
geram insegurança para os durante os meses de verão, mesmo nas bandeiras das comunidades tradicionais e seus territórios, apontam ameaças,
moradores da costeira que dependem comunidades mais afastadas. organizadas. O FCT vem atuando, desde conflitos e demandas mas, sobretudo,
de seu território para viver. sua fundação, no apoio à solução dos muitas fortalezas e potencialidades.
Demandas pela melhoria dos serviços desafios enfrentados pelas comunidades Essas fortalezas estão relacionadas à
Outra ameaça apontada foi a de saúde e educação foram citadas pelos desta porção da península. Existem sua cultura, seus saberes, alimentação
criminalização de práticas tradicionais moradores em todas as comunidades, ações de assessoria jurídica para defesa saudável, tranquilidade na costeira em
por leis ambientais, principalmente seja pela precariedade dos postos de do território tradicional em conflitos comparação com a vida na cidade, saber
agricultura e extrativismo. Foram saúde ou ausência de profissionais. fundiários na Praia Grande da Cajaíba pescar, plantar, fazer farinha, fazer casa,
mencionados também conflitos Apareceram também preocupações com e Martim de Sá; implementação da canoa, cestos, fazer remédio, cozinhar no
fundiários, que incluem tanto processos a demora na instalação da rede elétrica. educação diferenciada e do segundo fogão à lenha e a liberdade de controlar o
judiciais com grileiros como a No final do processo de caracterização, segmento no Pouso da Cajaíba e seu tempo de trabalho.
especulação imobiliária que de pouco em placas solares já tinham sido instaladas Praia do Sono a partir da luta pela
pouco vai varrendo os caiçaras de seus nas comunidades mais isoladas, aprovação de uma política pública Os conhecimentos sobre a natureza
territórios. resolvendo parcialmente o problema. municipal de educação diferenciada reduzem a dependência de produtos da
em 2015; implementação do sistema cidade, aumentando a autonomia. No
de saneamento ecológico no Pouso da momento em que Paraty e Ilha Grande
Cajaíba, Praia Grande da Cajaíba e Praia se tornam patrimônio mundial pela
do Sono; e recentemente o FCT passou UNESCO (2019), a caracterização visibiliza
a se articular para acolher pautas dos a importância das comunidades caiçaras
pescadores artesanais. da península na construção e conservação
do território da Bocaina e reforça a
Em 2019, diversas comunidades da necessidade de medidas de proteção
região estiveram presentes em audiência dos territórios tradicionais da Juatinga,
pública sobre educação, realizada considerando se tratar de um dos maiores
em Paraty, para exigir melhoria de e mais preservados redutos caiçaras da
infraestrutura e qualidade dos serviços, região. Esse patrimônio é perpetuado
demonstrando engajamento em questões graças aos saberes ancestrais dessas
de interesse para o bem estar e o futuro comunidades e o profundo zelo pelo seu
das comunidades da costeira. Ainda território.
nesse ano, o FCT criou o GT Pesca para
unir os pescadores, agregar demandas

34 35
Resumo das ações do
Projeto POVOS nos
territórios da Península
da Juatinga

36 37
PENÍNSULA DA

Resultados
por território
tradicional
38 39
Praia Grande
da Cajaíba e
Calhaus
Praia Grande da Cajaíba e Calhaus
(também chamado de Escaléu) são
localidades próximas, localizadas
na Enseada da Cajaíba. Além delas,
há na enseada outras localidades
historicamente ocupadas por
caiçaras, como a Praia da Deserta,
Praia da Itaóca, Galhetas e Ipanema.
Os moradores da Praia Grande,
Calhaus e dessas outras localidades
possuem relações de vizinhança
e parentesco e todas as crianças
estudam na escola do Calhaus,
aproximando ainda mais essas
localidades.

40 41
A Praia Grande da Cajaíba possui Tenho minha casa, tenho A Praia Grande da Cajaíba foi uma localidade bastante povoada, se comparada
a maior extensão de faixa de areia aos dias de hoje. A história recente desse território está marcada pelo êxodo
uma cachoeira linda,
da enseada da Cajaíba, com pouco caiçara por causa de um conflito fundiário com Gibrail Tannus, um notório
mais mil metros. A população é de essa natureza. Meu lugar grileiro de terras que chegou em Paraty na década de 1950. Em 2002, 21 das
40 pessoas distribuídas em 14 casas é aqui. Eu não tenho 23 famílias que moravam na Praia Grande já tinham deixado a localidade.
caiçaras, contando os parentes leitura, o que eu vou fazer Para manter seus direitos possessórios, Gibrail fez uso de diversas formas
que habitam a Praia da Deserta e de violência: oferta de dinheiro; pressão e intimidação para assinatura de
na cidade? Vou arrumar
os parentes que moram na Itaóca. contratos de comodato que os caiçaras nem sabiam do que se tratavam;
Alguns desses moradores dividem
emprego pra varrer a rua? fechamento de acessos no território tradicional; presença de capangas
residência na cidade de Paraty. Não!” contratados; e colocação de búfalos que devastaram quintais e áreas
agrícolas. As famílias que não resistiram, abandonaram suas terras e suas
Altamiro dos Santos, 64 anos, Praia
O Calhaus possui uma pequena Grande da Cajaíba, 2019 casas foram demolidas pelo grileiro. As famílias que ficaram foram da Dona
praia de pouco mais de 100 metros Benedita Maurício dos Santos, (dona “Dica”), e do Seu Altamiro dos Santos, e
de extensão. Aí reside a segunda permanecem no local convivendo com um conflito que se arrasta até hoje na
comunidade mais populosa dessa História da esfera judicial.
região da península. Considerando
o conjunto de famílias do Calhaus e
Localidade
Ipanema, a população total é de 216
pessoas (62 famílias).
Praia Grande da
Cajaíba
Nas oficinas de mapeamento, os
participantes da Praia Grande Quando conta a história do seu lugar,
e do Calhaus fizeram um único Altamiro sempre fala da presença
mapa, abrangendo todas essas dos indígenas e dos africanos. Ele
localidades. Por isso, os resultados escutou os mais velhos contarem
do trabalho são apresentados aqui que na formação do povo caiçara da
conjuntamente. península da Juatinga tem sangue
dos indígenas que viviam perto do
Pico do Cairuçu, e dos quilombolas
Chegou um homem que habitavam o sertão da enseada
ali na praia, numa da Cajaíba.
lanchona, daquelas
enormes que parecem
um navio: ‘Seu Altamiro,
não tenha medo de pedir
quanto o senhor quer
[pela sua terra]. Eu disse:
‘desculpa aí, mas eu já
sou rico. Eu não tenho
dinheiro, e não quero. Já
sou rico’.
42 43
Dona Dica lembra com saudade do
tempo quando morava muita gente
na Praia Grande. Do tempo em que a
Bandeira do Divino circulava, tempo
em que “o santo saía pra roça” e os
foliões visitavam e cantavam de casa
em casa.

A luta das famílias caiçaras da Praia


Grande pela permanência em seu Atualmente, e apesar de tudo, as
território tradicional conquistou famílias seguem vivendo da pesca,
muitos parceiros e apoiadores da agricultura, da renda do turismo
institucionais ao longo do tempo. e da venda de peças artesanais
Entre eles destacam-se o Fórum feitas com fibras coletadas na
de Comunidades Tradicionais (FCT) mata. Altamiro conta que já recebeu
e os gestores das unidades de ofertas milionárias pelas terras que
conservação que mobilizaram a ocupa no morro do lado esquerdo
comunidade acadêmica e envolveram da localidade. Mas reafirma que
defensores públicos e o Ministério não tem interesse em vender pois
Público Federal dando visibilidade ao os caiçaras e as caiçaras da Praia
caso de injustiça contra os caiçaras. Grande já são ricos.

Calhaus 90 anos, que na época


tinha uns navios que
O Escaléu está localizado entre
a Praia da Ipanema e a pequena
vinham de lá trabalhar pra
Galheta. As famílias tradicionais cá. Aqueles navios vinham
do Calhaus ocupam esse território de Portugal, daqueles
há pelo menos 6 ou 7 gerações. cantos de lá. Vinham
São comuns as narrativas sobre
uns alemães, e nessa
a chegada de portugueses que
chegaram e se casaram com pessoas época, esse cara que veio
do local. Relatos que atravessam trabalhar pra cá, ele fez
gerações e contam a origem das moradia aqui na praia. Ele
comunidades.
gostou da minha bisavó e
casou com ela. A minha
O meu pai conta,
avó é daqui, ele não era”
e o pessoal mais
velho como o falecido
Francisco Carlos Lopes de Oliveira,
Onofro, que morreu com Seu “Chico”, 60 anos, Calhaus, 2019
44 45
A comunidade caiçara do Calhaus foi um pessoal mais velho;
crescendo a partir dos anos 1960.
o Angelino morou ali;
Conta-se que nesse tempo moravam
7 famílias aparentadas e havia umas tinha o Seu Pequeninho
3 casas fechadas, de famílias que lá embaixo também, onde
tinham se mudado. No relato, os era a casa do Almir”
nomes de antigos moradores mantêm
viva a memória dos primeiros Francisco Carlos Lopes de Oliveira,
“Chico”, 60 anos, Calhaus, 2019
ocupantes caiçaras dessa localidade.

Na década de 1970 foi vendido o


Quando eu tinha primeiro terreno para pessoas de
de nove pra dez fora. A procura por imóveis chegou
anos, eu me lembro, aqui com mais força no final dos anos
dava pra contar no dedo 90. Hoje o Calhaus tem cerca de
70 edificações, das quais 10 são
quantas casas tinha. [Vai casas de veraneio. As próprias
apontando a direção das famílias do Calhaus e as unidades
casas]. Tinha a casa do de conservação restringiram a
Onofro ali; tinha a casa do construção de casas de veranistas
e assim vão protegendo o território
Bigode ali; Mané aqui; tio tradicional. Nos meses de verão
Benedito aqui; o falecido o turismo é intenso, mas fora da
Tião lá em cima; o e Zé temporada a cena mais comum
Ferro lá no final. Parece de se ver no Escaléu é o cotidiano
pesqueiro, com pescadores
que eram seis casas que
costurando as redes estendidas na
tinha. Sete casas, com areia e saindo para visitar o cerco.
essa do Mané Tatá e do
meu sogro. Era todo
mundo parente. Tinha
mais, mas teve um que
foi embora e fechou. O
total, entre os caras que
tavam aí, eram umas dez
casas. E hoje tem mais de
50 casas. Na época isso
tudo era tudo mandiocal e
capoeirão. Depois o Nanã
fez casa; o Gaguinho,

46 47
Espaços mapeados pontos de cerco, os pontos de rede
mijuada, pontos de pesca de linha e
na Praia Grande e arrasto de praia. Cruzando a Baía da
Calhaus Ilha Grande, há locais de pesca
também em áreas próximas à Ilha
Os nomes que o povo caiçara dá para Grande.
os lugares do seu território mostram
a importância e múltiplos usos e Em terra, há diversas áreas e pontos
significados que esses espaços de uso. Foram identificados o rio
têm. Tanto no mar, na costeira ou e o manguezal da Praia Grande;
em terra, os morros, cachoeiras, várias cachoeiras, como a Cachoeira
pontas, sacos, pedras e ilhas são do Paulista, Cachoeira da Vargem,
nomeados. Os nomes às vezes são Cachoeira do Nilo ou Cachoeira
escolhidos conforme o formato ou Grande ou Cachoeira do Monjolo,
a característica do lugar, outras Cachoeira do Quilombo; pontos de
vezes pelo tipo de uso, ou então captação de água; roças atuais e
associado à memória de algum antigas; áreas de sapezal; áreas
fato que aconteceu ali. Isso facilita de extração de fibras, madeiras e
a identificação e a comunicação bambus; ranchos; casas de farinha; e
interna, por exemplo, sobre os áreas de camping.
diferentes pesqueiros e outras áreas
de uso da comunidade. Também estão no mapa os caminhos
que interligam as comunidades e
Na enseada da Cajaíba, os principais são usados cotidianamente pelos
pontos de referência do território moradores. A trilha que liga a Praia
costeiro são, além das praias, a Grande e o Pouso da Cajaíba passa
Ponta da Cajaíba, Ilha da Deserta, pelo Calhaus, e tem 4 quilômetros.
Costão da Deserta, Ponta da Deserta,
Saco do Barbosa, Ponta da Jamanta, Na Praia Grande, as habitações
Ponta da Espia, Ilha da Itaóca, e áreas de uso caiçaras estão
Pontinha e a Ponta do Pouso. Vários concentradas do lado direito do
desses pontos são pesqueiros e nos Rio (olhando da terra pro mar).
costões também há áreas de coleta Toda a outra porção da praia e
de mexilhões e guaiá. restinga do lado esquerdo é ocupada
pelos caseiros dos “donos”. Essa
No mar, o mapeamento caracterizou área deixou de ser uma zona de
as áreas de pesca conforme o tipo de circulação e uso livre dos moradores
técnica usada ou espécie capturada. tradicionais.
Assim, foram identificadas áreas
de pesca de lula e mergulho (numa
faixa de 90 a 100 metros distantes da
costeira); uma área mais abrangente
de pesca artesanal, que inclui os
48 49
Atividades ranchos de pesca são adaptados
para funcionarem como bares e
Pesca
Produtivas no restaurantes. A venda do belíssimo
Calhaus e Praia artesanato produzido pela Dona Dica
O Calhaus e a Praia Grande
são comunidades que praticam
Grande com cipós e taquara também é um
complemento da renda familiar.
intensamente a pesca artesanal.

O cerco fixo flutuante é uma técnica


Pesca, agricultura, extrativismo e No Calhaus a organização dessa
pesqueira que fornece peixe para
turismo são as principais atividades atividade envolve a prestação de
o sustento familiar e o excedente
desenvolvidas pelas comunidades do serviços como caseiros e estrutura
é vendido. Nos meses de fartura,
Calhaus e Praia Grande da Cajaíba para recepção de visitantes que
os pescadores conseguem uma
para garantir alimentação e gerar inclui: casas ou quartos anexos para
boa renda com o peixe do cerco. As
renda. As três primeiras (pesca, hospedagem; área de camping e
duas comunidades juntas possuem
agricultura e extrativismo) são fornecimento de refeições.
15 pontos de cerco na enseada da
realizadas ao longo do ano todo,
Cajaíba.
variando conforme os ciclos naturais. Tanto na Praia Grande como no
Calhaus, o transporte marítimo
A comunidade do Calhaus tem uma
As técnicas construtivas tradicionais entre Paraty, Paraty-Mirim e as
história especialmente vinculada aos
feitas com recursos do território comunidades da península também
cercos, pois nessa localidade vivem
garantem independência com é uma atividade essencial da
famílias caiçaras que descendem do
relação aos materiais de construção infraestrutura turística que eles
Oda, que morou na Ponta da Juatinga
comprados na cidade. Na Praia oferecem. Para esse trabalho, os
e ensinou a técnica para os caiçaras.
Grande, essas práticas estão caiçaras investem em botes de fibra
O falecido Olímpio, da Juatinga,
bastante ativas. e motores de popa, mais rápidos que
contava que Oda se refugiou na
os antigos botes de madeira com e Kika.
península na década de 40, durante
motor de centro. Embora a maioria
Turismo dos jovens já esteja adaptada a esse
a segunda guerra mundial. Suas
Os 11 cercos mantidos pela
netas que moram no Calhaus, Anita
tipo de embarcação, alguns antigos comunidade do Calhaus estão
O turismo é sazonal: se intensifica e Bidica confirmam que Oda precisou
ainda preferem o tempo das viagens localizados no costão da Deserta e
na temporada de verão e depois fica mudar de nome para fugir das
mais longas: “Eu não quero essa ao longo da enseada, até a Ponta
meses com movimento em baixa. perseguições aos japoneses durante
lancha não! As coisas rápidas ainda do Pouso. São mais de 20 pessoas
Nas últimas duas décadas, também a guerra.
vão acabar com a gente” Altamiro dos envolvidas na pesca de cerco no
em função da redução da pesca, Santos, 66 anos, Praia Grande, 2021 Calhaus.
os caiçaras do Calhaus e Ipanema O Calhaus é a comunidade com
passaram a obter com o turismo o o maior número de cercos ativos
No Calhaus, o tingimento do cerco
maior volume de renda anual. em toda a península da Juatinga,
era feito com a casca de algumas
somando 11 pontos: 4 pontos do
árvores (tigicuia, mangue, cobi e
Na Praia Grande também a maior Secundino, 2 pontos do Chico, 2
aroeira) mas deixou de ser feito
parte dos recursos financeiros pontos do Cecílio, 1 do Valdeci, 1
porque as árvores utilizadas estão
gerados na comunidade vem do do Valmor e 1 do Dito (ver mapa).
distantes e porque durante um tempo
turismo. Na localidade existem A comunidade da Praia Grande
houve proibição do órgão ambiental à
áreas de camping e quartos para trabalha em 4 pontos: 1 do Altamiro,
prática.
alugar. Durante a temporada, os 1 do Alef, 1 do Cacaio e 1 do Veraldo

50 51
Os cercos flutuantes são armadilhas de pesca fixadas a uma distância que
varia conforme as características do local onde será instalado. A altura varia
entre 7 e 9 braças. O “caminho” do cerco é a rede que bloqueia a passagem
dos peixes conduzindo-os à boca da armadilha. O caminho pode variar entre
50 e 60 braças, ou seja, até 80 metros. Existem cercos de uma ou duas
bocas. Quando os peixes entram no cerco, ficam dentro do sacador, uma rede
de malha mais fina. O rodo do cerco são os cabos que sustentam as redes
na superfície da água, por meio de bóias, as chamadas copiadas, feitas de
bambu, e para fixar o cerco são utilizadas pedras, com a função de âncora. O
cerco precisa ser visitado 2 a 3 vezes ao dia, para que os peixes não tenham
tempo de encontrar a saída. A manutenção das redes do cerco precisa ser
feita com frequência, porque ela desgasta naturalmente em contato com a
água e porque tem peixes que arrebentam a rede, como o baiacu e a espada. O
ideal é retirar a rede da água a cada 10 ou 12 dias.

52 53
Nós estávamos Além do cerco, outras modalidades Eu comecei a Os pescadores conhecem o
de pesca são praticadas, como calendário anual da pesca na região,
tingindo [a rede pescar com uns
mergulho, pesca embarcada, pesca e com base nele organizam o tempo
do cerco], agora paramos de rede e de linha. Importante ter 14 anos. Com nove, dez e os materiais de trabalho mais
porque dá muito trabalho. petrechos diferentes para poder anos, eu já tava nesse mar adequados ao momento.
Se tingir a rede, fortalece diversificar a modalidade de pesca aí, perdido, com o meu
quando o “mar não está pra peixe”.
o fio e pesca mais, demora pai. A pesca não é muito
a pegar sujeira e limo. A No tempo frio, o cerco não fica
de ensinar. Ele [o pai]
gente tinge com tigicuia, na água, a pesca cai e muitos fica fazendo as coisas e
mangue, cobí aroeira pescadores optam por buscar uma a gente fica ali, só vendo
também dá. Nós tínhamos vaga na pesca embarcada. A pesca como é que faz, como não
embarcada de sardinha, corvina
uns tachos e banheira e camarão é também uma escola
faz. Aí pega a manha e faz
também, mas agora para muitos pescadores do Calhaus. também, é facinho.
paramos de cozinhar. O Antigamente, na década de 1970 e Eu abandonei a escola
meio ambiente também 80, os pescadores saíam para pescar com dez anos pra pescar.
sardinha em Santos ou Cabo Frio,
acabou com a gente. onde havia maior disponibilidade
Eu fiquei trabalhando
A gente descascando, de traineiras e postos de trabalho. lá na rede de malha, na
os caras vinham. Uma Naquele tempo não havia sonar, e casa da minha avó. Com
vez, estávamos tirando a pesca era feita durante as noites 14 anos saí pra fora. Eu
sem lua, pois era preciso ver a
mangue lá em cima, cada fiz o embarque na minha
ardentia que a passagem do cardume
um trazia o seu saco de deixava no mar. Ainda bem jovens, carteira lá em Santos. Lá
mangue. Aí os homens muitos pescadores deixaram a escola era assim: eu trabalhava,
bateram lá e começaram para aprender o ofício de pescador e quando chegava no final
profissional nas embarcações de
a proibir. Aí a gente do escuro eu parava.
sardinha, corvina e camarão.
parou. Mas uma coisa Quando a lua ficava clara,
eu digo: um cerco com que aparecia toda, não
tinta é mais pesqueiro. pescava. Porque pra
Agora liberaram, deixam saber onde tá o cardume,
cortar uma madeira pra a lua tem que estar bem
fazer uma casa, pode turva. Senão a lua reflete
tirar uma canoa. Só levar na água e ninguém vê a
lá, tirar foto e levar lá, ardentia”
[autorizam]” Francisco Carlos Lopes de Oliveira,
“Chico”, 60 anos, Calhaus, 2019
Francisco Carlos Lopes de Oliveira,
“Chico”, 60 anos, Calhaus, 2019

54 55
Nós trabalhamos camarão de sete barbas
por épocas: e branco fecha em março
outubro e novembro e abre em junho. Então a
em diante tem a época maioria [dos pescadores]
da sororoca e carapau pesca nesses barcos. A
branco. Mês de novembro tainha é do mês de junho,
a gente pega um robalo no só que a tainha a gente
cerco também. Dezembro não tem preparo pra ela,
cai um pouquinho a coisa porque é uma vez no ano,
do peixe. Janeiro é meio precisa de uma rede só
fraco, é época de galo, pra tainha. Julho, agosto
mas é meio fraco ainda. e setembro pra nós não
Fevereiro e março, até dá. Tem a corvina aí fora.
abril, é época de xerelete Por isso que pescaria é
e cavala. A lula vem de assim: você tem que ter
novembro, dezembro, todas as qualidades de
janeiro até março. Maio material pra trabalhar,
e junho, no tempo frio, porque chega uma época,
é fraco pra nós. O cerco é um fracasso. Esses três
mesmo a gente já evita meses que eu falei, se
jogar na água. Mas é você tem o material da
melhor pro camarão, corvina pra trabalhar,
aqui tem o branco e o você trabalha bem”
sete barbas. A pesca do
Francisco Carlos Lopes de Oliveira,
“Chico”, 60 anos, Calhaus, 2019

Na foto: Altamiro dos Santos, liderança caiçara da Praia Grande da Cajaíba

56 57
Roça e extrativismo Abacate Jabuticaba
Abacaxi (e rama plantada pelo meio, e Jaca
banana também)
Na Praia Grande, a atividade agrícola
Açaí Jacatirão - madeira da casa
é realizada por vários núcleos
familiares. No Calhaus não tem roças Anjico preto, ou “Janjico” - pra móvel e Jussara
pra barco
hoje em dia, mas algumas famílias
Araça Laranja mexerica - junho
mantêm algumas frutas e outras
Mandioca Maricá, Aipim Vermelho,
plantas no quintal. Araribá aipim vassorinha
Banana Prata, Banana Ouro, Banana da Manga
Além das tradicionais roças de Terra
coivara onde plantam rama, feijão, Batata-Doce Roxa, Batata-Doce Branca Monjolo
milho, cana e algumas frutas, na
Cacau Paineira
comunidade da Praia Grande tem
Paineira rosa (traz periquito e
uma agrofloresta com plantio de Cajuja papagaio, cabaça grande e bom para
espécies importantes para uso (seja canoa)
Cambucá
alimentar, medicinal, construtivo, ou Palmeira real
por sua importância para nutrição Cana Cera, Cana Preta e Cana Pico
Pau Brasil
do solo) junto com espécies nativas
Cana Ficha (para canoa)
deixadas na área, também em função Pitanga
de sua utilidade. Capororoca
Pupunha
Cedro (para canoa)
Quaresmeira
Condessa
Taioba
Dama da noite
Tarumã
Embaúba
Timbuíba (para canoa)
Feijão de porco “bom pra plantar na
roça, contra “olho grande” Urucum
Grumixama

Guacá O extrativismo segue ocorrendo na


Praia Grande da Cajaíba para fins
Guapuruvu (ou Capurubu) construtivos, como será detalhado
Ingá de Concha (para canoa) na sessão a seguir, para fazer canoa
e remos, e para confecção de peças
Ingá de metro artesanais, como cestos e balaios
Ingá Flecha (canoa) de cipó feitos principalmente pela
Dona Dica e seus filhos e filhas que
Inga macaco
aprenderam com ela.
Inhame

Ipe amarelo

58 59
Construção de casa Antes de barrear, as paredes são O sapê, arranca [as raízes]. Pra amarrar
envaradas: primeiro é fincado o pau-
ele quando começa usa o cipó timumpeva,
a-pique, que são as madeiras roliças
A construção de casas de pau-
na vertical. Então são amarradas a amarelar. Faz uma mas hoje é arame. Vai
a-pique ou estuque faz parte
as madeiras finas ou bambus primeira limpeza, tira a duas ripas, uma por cima,
dos conhecimentos e práticas
tradicionais que a comunidade
na horizontal, dos dois lados. A terra dele, tira um capim uma por baixo. Amarra
amarração do envaro no pau-a-pique
mantém vivos na localidade. A navalha que sai junto, e três mãos por vez, bem
pode ser feita de cipó timbopeva ou
construção de uma casa de barro
embé, ou de arame.
estende espalhado pra espremido pra não cair
envolve a organização de um secar. Com sol, em 3 ou 4 e pra se o vento bater
“jitório”, também chamado de
ajutório ou mutirão. Participam
A massadura de barro para dias tá preparado. Recolhe ficar bem firme. O capelo
preencher o envaro deve ter uma e guarda. Pode guardar é a cumeeira, mas aí é
familiares, amigos, compadres e
consistência certa para poder
comadres e, geralmente, leva o dia
fixar no envaro. A massadura é
ela até 1 anos sem pegar feito de sapê maduro, faz
todo de trabalho. A família anfitriã
feita adicionando água no barro chuva. Na hora que vai entrelaçado pra cobrir a
oferece um almoço para a equipe
e pisoteando até amolecer e ficar jogar pra cima [pra cobrir cumeeira”
de trabalho. Nesses momentos, os
laços de solidariedade e amizade
homogênea. Pode-se adicionar a casa] corta a cabeça dele Altamiro dos Santos, 66 anos, Praia
cimento na massa para reduzir as
são atualizados e reforçados. Grande, 2021
fissuras ou “gretas” naturais que
Antigamente, era comum esses
se formam quando o barro seca.
mutirões terminarem com um baile.
Rachaduras não são desejáveis,
porque nelas se alojam insetos e
A primeira tarefa na construção
aranhas.
da casa é a escolha do terreno,
considerando como critério
Depois de cerca de 2 dias secando
principal o abastecimento de
no sol quente, já é possível fazer
água. Se o terreno não for plano, é
o emboço, revestindo as paredes
preciso “cortar o barranco” com a
barreadas com uma fina camada de
picareta e o enxadão para aplainar
uma massa preparada de barro, areia
a área da casa. Boa parte da terra
e cimento. Este reboco, mais liso,
removida nessa operação é utilizada
pode ser pintado, conforme o gosto
posteriormente para barrear as
do dono da casa.
paredes da casa.

A cobertura tradicional é feita


Os esteios e travessas da cobertura
de sapê. Altamiro conta que seu
precisam ser feitos de madeiras
avô Ambrósio era construtor dos
resistentes. São muito usados o
bons, “fazia casa de todo mundo na
jacatirão, a capororoca e a casca-
Cajaíba”e a cobertura que ele fazia
preta. As madeiras da casa devem
de sapê “durava 8 anos sem entrar
ser cortadas na lua minguante, para
nenhuma água”
aumentar a durabilidade e evitar
bichos e brocas.

60 61
Ameaças e O que acabou com Segundo relato abaixo, a liberação
dos barcos industriais no território
conflitos a pescaria aqui pra
tradicional caiçara está ligada
nós é a aparelhagem, o a um conjunto de interesses de
As comunidades do Calhaus e Praia Grande da sonar. Ele “choca” o peixe, setores empresariais e políticos.
Cajaíba identificam uma série de ameaças à pesca. espanta o peixe. Tinha que Para solucionar esse problema,
Mencionaram o problema da pesca industrial com botar fiscal pra impedir segundo relatos, teria que se criar
sonar, a presença de navios e da iluminação que eles uma reserva pesqueira caiçara, que
a pesca dos grandes aqui protegesse a pesca artesanal. Isso
geram, desrespeito ao defeso e falta de fiscalização.
E falaram mais de uma vez que têm medo do
dentro. Porque o graúdo beneficiaria ao mesmo tempo os
vazamento de petróleo. Os navios têm potencial faz a gente de gato e pescadores industriais, pois nessa
impacto para o turismo também, pois eles alteram a sapato” área estaria garantida procriação
dos peixes e também ajudaria a
paisagem. Secundino de Jesus, 68 anos, Calhaus, salvaguardar o patrimônio cultural
2021
caiçara.
Depois que eles
começarem a mexer
aí fora, vai dar problema:
os camarões aí de fora
vão começar a sumir;
as corvinas. Porque de
vez em quando dá um
vazamentozinho nas
águas, não dá? Esse ano
tavam matando lula tudo
no navio. Chegou a ver
isso? Passava lá, tinha
um bocado de barco no
navio, barco de 200 quilos,
150 quilos. Lula foi tudo
pros navios por causa da
iluminação. Então esse
ano deu bem pouca lula
aqui pra nós”
Francisco Carlos Lopes de Oliveira,
“Chico”, 60 anos, Calhaus, 2019

62 63
A pescaria não tem mais, comunidades também apareceram.
não existe, quebrou setenta Por fim, surgiu uma preocupação
por cento. Porque onde dos mais velhos com o desinteresse
eles [barcos industriais] tiram dos jovens em manter a cultura
sardinhazinha é onde o peixe tá. O tradicional colocando em risco sua
peixe vem aqui pra comer a sardinha, continuidade.
aí eles vão, cercam, tiram tudo. E
tem outra: você não pode reclamar Além das questões já mencionadas,
com eles porque eles têm licença pra na Praia Grande o conflito fundiário
matar e tirar onda de você ainda, tá narrado no início desse bloco
entendendo? Porque um barco desse continua preocupando os moradores.
é tudo de empresa. É governador, Altamiro é réu em uma ação de
é deputado, é a família toda ali reintegração de posse movida em
agarrada. Então não tem como tirar, 2003 pelo suposto dono, que coage
pra tirar é uma briga. Vai brigar com a comunidade com violência física
uns homens desses? A única coisa e psicológica. Enquanto corre o
que pode tirar é fazendo a reserva. processo jurídico, a insegurança
Se tu botou a reserva, você tira. Da permanece e convive-se com o medo
reserva pra dentro, se eles entrarem, de que a Praia Grande seja loteada
aí já é briga. Uma reserva que ou seja invadida por um resort de
pegasse lá da Trindade e passasse luxo.
ali por fora, pegando aquela ilha
do Sono ali, viesse direto, direto, Infraestrutura
direto. Aí sim. Aí você ia ver criação
de peixe, ia ver criação de sardinha, comunitária e
ia ver muita coisa. Enquanto não serviços públicos
fizer isso, não vai ver nada. Eu falo a
Há uma escola de ensino
verdade pra vocês, eu ainda tô vendo
peixe. Mas essas criancinhas não vão fundamental para o primeiro Bandeiras de luta
ver mais, não” segmento no Calhaus. Lá estudam do FCT
crianças da Praia Grande, Itaóca,
Francisco Carlos Lopes de Oliveira, A comunidade da Praia Grande da Cajaíba integra o
“Chico”, 60 anos, Calhaus, 2019 Calhaus e Ipanema. Para estudar no
segundo segmento, as crianças vão Fórum de Comunidades Tradicionais e estabelece
para a escola do Pouso da Cajaíba. uma relação de apoio mútuo, ao mesmo tempo em
Questões sobre a atuação do órgão
Em 2019, foi implementado pela que fortalece o movimento, é por ele fortalecido em
ambiental na comunidade também
secretaria municipal de educação suas lutas locais. O FCT tem apoiado a comunidade
foram mencionadas no Calhaus.
Problemas ligados à assistência um esquema de transporte marítimo na resolução dos conflitos fundiários, tecendo
de saúde (médico e agente de para levar as crianças do segundo articulações com parceiros institucionais e assessoria
saúde pouco disponíveis), à segmento até o Pouso. jurídica em diversos níveis para defesa do território
educação (não tem ainda o segundo caiçara. Na Praia Grande há módulos de saneamento
segmento do ensino fundamental ecológico, aplicando a tecnologia social elaborada pelo
no Calhaus), e insuficiência do OTSS. Além disso, ações da frente de agroecologia
serviço de recolhimento de lixo nas também acontecem nessa localidade.
64 65
66 67
68 69
Pouso da
Cajaíba
Pouso da Cajaíba é a maior
comunidade desta região da
península da Juatinga. É o principal
refúgio para embarcações e para
descanso dos viajantes para outras
localidades da região. Contam
que Cajaíba foi o nome dado pelos
indígenas para designar “fruta-
pão”, quando esta foi introduzida na
América, de origem asiática.

70 71
História da porco, fazia as coisas todas, então
não dependia nada de lá [da cidade].
O relato de Seu Miguel traz muitos aspectos da história do
Pouso da Cajaíba. Partindo do período colonial e dos primeiros
localidade Plantava laranja, as frutas: banana, ocupantes da Fazenda Martim de Sá, ele fala da importância
mamão, abacate. central da agricultura e da pesca de subsistência, e que
A ocupação não indígena na A gente não tinha barco, não tinha por meio dessas atividades, os moradores tinham certa
península da Juatinga começou motor, não tinha nada. Era tudo a independência com relação aos produtos comprados na cidade.
com a implantação de fazendas remo, tudo a remo, canoa tirada Conta das viagens a remo, e de como eram animadas as festas
que funcionavam com mão de obra do mato. Daqui pra cidade a gente que celebravam São Sebastião, padroeiro do Pouso da Cajaíba,
escravizada. Miguel Souza, um antigo viajava na canoa a remo, quatro e os festejos juninos. Miguel fala que o Pouso era antes mais
morador caiçara do Pouso da Cajaíba, horas a remo daqui na cidade. habitado do que é hoje. De fato, em 2011 a população era
descendente dos primeiros europeus E fazia festa: no tempo de Reis, de 233 pessoas, segundo estudo de recategorização da REJ.
que aportaram na região, conta o que fazia Reis. Fazia baile, dançava. Atualmente é de 216, conforme dados do posto de saúde local.
ouviu os seus mais velhos contando. Aquela igreja ali [aponta para a
Sua filha, Marinete Souza, reuniu igreja localizada na praia] é igreja
esses relatos e pesquisas e publicou de São Sebastião. Antigamente
um livro chamado “Pouso da Cajaíba era uma igreja pequenininha,
desde 1563”, ano em que consta a era de estuque a igrejazinha. O
visita do Padre Anchieta à localidade. padroeiro é São Sebastião, fazia
Na entrevista que concedeu no festa em janeiro, tinha um andor
processo de caracterização, Seu grandão, botava o santo em cima,
Miguel conta como era a vida no andava pela praia, procissão na
Pouso da Cajaíba antigamente: praia. Tava aquela fogueira, aí ia
pro baile, dançava o baile. E tinha
Na época quando foi os tocadores, eram daqui mesmo,
descoberto o Brasil que tocavam viola, pandeiro... a timba.
veio esse pessoal. Aqui Aí dançava de par, dançava em roda.
também teve o tempo dos escravos, Tinha muita qualidade de dança,
no Pouso e Martim de Sá. Tinha a dançava a ciranda, tinha cana verde
fazenda Martim de Sá que pegava de mão (dançava soltava essa mão,
o Pouso, Martim de Sá, Sumaca, pegava na mão do outro, pra dar
Cairuçu. O dono da fazenda tinha a mão pro outro, em roda), tinha
uns escravos também na época. dança do chapéu. Era a noite toda,
Aqui tinha um sobrado grandão, até de manhã! Amanhecia o dia
ó na frente ali. Sobrado do tempo dançando! Era luz, era querosene.
dos escravos. Antigamente as Aqui no Pouso era só o católico
pessoas viviam da roça, plantava, mesmo, não tinha crente. Aí
não tinha esse negócio de meio depois apareceu e foi mudando.
ambiente. Roçava, plantava o feijão, Antigamente tinha muita gente aqui,
a mandioca, a rama, mandioca para mas foram se mudando. Os mais
fazer farinha, plantava o milho, velhos foram morrendo e os mais
plantava tudo! Vivia da roça. Dali saía novos foram saindo.”
pescar o peixe, a sobrevivência dele,
Miguel Souza, 78 anos, Pouso da
a comida. Criava galinha, criava o Cajaíba, 2019
72 73
Na praça central do Pouso da cuidou e a árvore
Cajaíba, ao lado da igreja, da escola
cresceu. Os eventos que
e do posto de saúde, existe um
imenso pé de Tamarindo. A árvore acontecem na comunidade
teria sido plantada quando o Padre são embaixo da árvore.
Anchieta esteve na localidade. A árvore protege a
Histórias como essa marcam a
comunidade. O pé de
memória dos moradores e tornam o
território um espaço-tempo repleto
Tamarindo é sagrado para
de significados. o povo do Pouso”
Francisco Xavier Sobrinho, “Ticote”;
Ninguém sabe a INEA, 2011

idade do pé de
tamarindo. Quando meu Espaços mapeados
pai se entendeu como
O mapeamento do Pouso da Cajaíba
gente, o avô não soube
levantou uma série de lugares
contar, a árvore já era nomeados que são referências do
grande. Várias gerações território tradicional caiçara, tanto
não souberam contar a em terra, como na costeira: Pedra
das Araras, Ponta da Mesa, Saco
idade do pé de tamarindo.
da Baleia, Toca do Carro, Pedra da
Mas tem uma história que Lagada, Ponta do Pouso, Diogo e
me contaram: o Padre Tapina do Miranda são alguns desses
Anchieta plantava uma espaços. Também foram incluídos
árvore em todo lugar que no mapa áreas de uso, como roças
antigas e atuais, pesqueiros,
passava. O tamarindo áreas de extração de sapê, fibras
não é do Brasil, vem da e madeiras, cursos d’água, rotas
Índia. Dizem que o Padre marítimas e caminhos que dão
Anchieta quando veio ao acesso às outras localidades.
Também estão no mapa a igreja,
Rio de Janeiro ancorou o pé de tamarindo e pontos de
no Pouso da Cajaíba. infraestrutura e serviços públicos,
A guarnição desceu na como a escola e o posto de saúde.
praia, o padre escreveu Os navios que integram a indústria
do petróleo e os barcos de pesca
um salmo na areia. E como
industrial também aparecem no
ele sempre fazia, plantou mapa, demonstrando sua presença
uma árvore: o pé de no maritório caiçara.
Tamarindo. A comunidade

74 75
Atividades Aprendi a pescar Recentemente, a comunidade do Pouso voltou a trabalhar com cerco. Em
2021, foram contados 3 cercos ativos. Os pontos para fixar o rodo de cerco
produtivas com meu pai,
são escolhidos com base nas condições do ambiente marinho, incluindo as
Anastácio. Com cinco características da costeira, das correntes e levando em conta o movimento
anos, seis anos de idade, dos “peixes de passagem”. Quando um pescador define um ponto para

Pesca e turismo são as principais ele saía na canoa para colocar o cerco, geralmente esse ponto é de uso exclusivo dele, e os demais
respeitam isso enquanto estiver em uso. Os pontos de cerco podem ser
atividades que geram renda para pescar, botava eu na popa
herdados de pai para filho, ou repassados para outra pessoa, por meio de um
as famílias caiçaras do Pouso da da canoa e ele ficava combinado entre as partes.
Cajaíba. Segundo os moradores,
no meio pescando. Eu
a pesca de camarão é a principal
fonte de renda da comunidade,
sentado na popa com A pesca de camarão, como falado acima, é a maior fonte de renda no Pouso da
uma linhazinha na minha Cajaíba. Alguns barcos de arrasto de camarão pertencem aos moradores do
seguida pela atividade de turismo.
Pouso. Esse investimento na aquisição de grandes embarcações foi possível
Ambas são atividades sazonais e, mão também, pescando. devido aos ganhos do próprio trabalho como pescador, como tripulante de
para muitas famílias do Pouso, se A gente não tinha barco, outros barcos; devido ao aumento do turismo; e mais recentemente, por
complementam.
não tinha motor, não tinha meio de programas federais de apoio à pesca. O camarão com maior valor

Além disso, a agricultura e o nada, era tudo a remo, comercial é o camarão rosa, ele é capturado em áreas mais mais afastadas
da costa. Além dele, são capturados também o camarão branco (de mesmo
extrativismo ainda se mantêm canoa e remo tirados do tamanho que o rosa), sete-barbas e o santana (ou vermelho).
como práticas de subsistência. Com mato”
relação à maricultura, há um ponto Miguel Souza, 78 anos, Pouso da
de maricultura desativado (do Ticote) Cajaíba, 2019
e uma fazenda marinha voltada à
A pesca artesanal é essencial para
criação de vieira e mexilhão (do
manter a segurança alimentar e
Gabriel)
nutricional das famílias caiçaras
do Pouso. Os pescadores e as

Pesca pescadoras conhecem e praticam


várias modalidades de pesca, e cada
uma é apropriada para capturar
No Pouso da Cajaíba, as pessoas
certas espécies, em determinados
aprendem a pescar quando são ainda
locais e nos momentos certos. Entre
crianças. Esse aprendizado acontece
as técnicas de pesca artesanal
na prática, com parentes mais
praticadas próximas à costeira estão
velhos.
a pesca de cerco, pesca de lula
(com zangareio), pesca de linha,
pesca de rede mijuada e mergulho.
Mais afastada da costa, se dedicam
bastante à pesca de camarão, em
barcos de arrasto, durante os meses
de junho a fevereiro.

76 77
O camarão branco e o camarão rosa é a mesma Diferentes da maioria das fica tudo juntinho, de
modalidades pesqueiras praticadas
coisa, eles crescem igual. O mais caro é o rosa, cardume, camarão não.
pelas comunidades caiçaras da
ele é de alto-mar, da Ponta da Juatinga pra fora, anda península, a pesca de camarão é a Ele se cria em tudo
duas horas. Uns dizem que tem um sabor melhor. única que segue forte por diversas quanto é lugar, qualquer
O sete-barbas não cresce muito. E tem o camarão razões: primeiro porque os camarões buraquinho de pedra
“criam muito” nessa região; segundo
vermelho também, chamado camarão Santana. Dentro tem camarão filhotinho.
que eles escapam dos sonares da
da baía arrasta só em junho, porque no começo da safra pesca industrial; e terceiro devido O camarão sempre tem
eles ficam tudo aqui ainda [dentro da baía]. Depois os ao período de defeso nos meses de dado, porque o camarão
barcos vão abatendo, ele vai caindo tudo pra fora março, abril e maio. cria muito. Antigamente
não tinha parada, hoje
Mario Cesar do Nascimento, “Marinho”,
39 anos, Pouso da Cajaíba, 2019
Agora o forte tá tem defeso, a pesca fecha
sendo [a pesca pra defeso março, abril e
de] camarão. Porque maio. Ficamos três meses
o camarão tem mais. parados, pro camarão
Não tem nada que acha crescer. Então isso
ele, a não ser uma rede ajudou”
[específica]. Inventaram
Mario Cesar do Nascimento, “Marinho”,
o sonar pra traineira, 39 anos, Pouso da Cajaíba, 2019
acabou com a pesca de
Uma questão que alguns pescadores
traineira. O sonar não de camarão levantam é a
identifica camarão, necessidade de ajustar o período
porque o camarão anda de defeso, porque segundo eles, em
assim espalhado, o sonar algumas regiões, os meses definidos
para defeso não correspondem
só pega coisa grande,
ao momento correto do ciclo
escura. A sardinha reprodutivo.

No desenho do maritório, o mar tem uma divisão que reflete


os usos: a faixa de mar mais próxima da praia e da costeira
é área de fundeio, de lazer e da pesca artesanal. Nessa área
são fixados os cercos flutuantes e são largadas as redes
mijuadas. Mais longe da costa seria a área para o arrasto de
camarão.

78 79
Roça e extrativismo isso: para que os produtos da roça
sejam usados nas receitas, eles
Práticas de Regina Santos da Conceição, Seu Piá
(Iranil Luís do Nascimento), Ticote
Antigamente a agricultura era precisam ser processados pelas cuidado (Francisco Xavier Sobrinho), Tiana
muito comum no Pouso da Cajaíba, ferramentas e peças produzidas por (Sebastiana Custódia).
praticamente todas as famílias eles mesmos, como moendas, apás, Existe no Pouso da Cajaíba um vasto
plantavam e tinham casas de peneiras, tapitis e pilões. conhecimento sobre as plantas
farinha. As capoeiras e tigueras medicinais. Normalmente são ervas,
ainda são visíveis nas encostas da frutas ou cascas de árvores mantidas
localidade, marcando a história do
Fazia café, moía nos quintais e preparadas de várias
território. Com a chegada do turismo cana, não era maneiras para cura e prevenção
e a implantação de unidades de açúcar não, moía cana de diversos males e para acudir
mulheres em trabalho de parto.
conservação, a atividade foi sendo no engenho de moer
abandonada, mas ainda tem pessoas
que plantam mandioca, aipim,
cana. Fazia panela de Um levantamento recente realizado
frutíferas e mantêm plantas usadas caldo de cana, aí fervia e pela Universidade Federal do Rio de
como remédio. passava o café. A comida Janeiro (UFRJ) identificou mais de
40 variedades de plantas usadas na
da roça, cozinhava aipim,
As principais áreas agrícolas que localidade. Os remédios são usados
cozinhava batata. Nisso de diversas formas, tanto para
ainda ativas são o sertão da Zilda,
da Margarethi, da Sebastiana, da fazia angu de milho, serem ingeridos em chás, inalações,
Amélia, do Ananias e a roça da Ana. depois cortava igual gargarejos, xaropes, maceradas,
Sertão é a área um pouco mais polenta de prato. O milho cruas ou cozidas, como também fora
afastada da praia. Há também uma do corpo, em banhos, compressas,
verde era socado no pilão. defumações.
área de cultivo de maracujá.
Depois botava num apá
Na mata, a extração de cipó feito de taquara, apá Os saberes medicinais da
timumpeva e embé, taquara e fechadinho, e depois na comunidade foram registrados no
madeira é realizada para a confecção manual “Plantas Medicinais do
peneira, que é aberta pra Pouso da Cajaíba”. Muitas pessoas
de peças da cultura material
caiçara. Seu Doracil, por exemplo,
passar. Passava tudo, da comunidade participaram desse
faz vassouras de cipó. O falecido limpava tudo e fazia trabalho e são lembradas aqui: Ana
Piá, construtor de barco e canoa, aquele panelão de angu. Paula do Nascimento, Adélia Souza
do Nascimento, Dona Dita (Benedita
era conhecido por fazer as peças Alguns faziam salgado,
artesanalmente e com acabamento Ferreira), Dona Peca (Juventina
impecável. Esses conhecimentos
outros faziam doce Maria do Nascimento), Juraci dos
permanecem vivos no Pouso, Miguel Souza, 78 anos, Pouso da Santos Nascimento, Lourival Luís
precisam apenas ser valorizados Cajaíba, 2019 do Nascimento, Hildo da Conceição,
e estimulados para que as novas Maneco (Manuel Vargas), Margarethi
gerações se interessem em aprender. dos Remédios Nascimento, Maria de
Araújo da Conceição, Nilson Martins
A culinária tradicional une os de Souza, Norma Sobrinho de Souza,
conhecimentos agrícolas e a cultura Odete Ana de Almeida, Odete de
material. O relato abaixo mostra Araujo, Tetéia (Oristéia de Souza),

80 81
Festejos e Futebol calendário de eventos comunitários
tradicionais o Dia das Crianças,
Ameaças e Dizem que o pré-
conflitos sal tá lá para fora
comemorado dia 12 de outubro.
O festejo tradicional do Pouso da da Juatinga. Mas os navios
Cajaíba é feito em homenagem ao
Os torneios de futebol são Nas oficinas realizadas durante a estão aqui no Pouso e
padroeiro, São Sebastião, e ocorre caracterização, a comunidade do
no dia 20 de janeiro, com a presença
possivelmente os eventos eles não veem isso como
comunitários que mais movimentam Pouso apontou algumas ameaças
do padre, que celebra missa na ao seu território. Entre elas, a impacto. Eles dizem que [o
a juventude. O FestJuá reúne
igreja, e um bingo. A celebração
os times de futebol de todas as principal é a redução do pescado. óleo] não vai atingir. Mas
atualmente reúne poucas pessoas.
comunidades da península da Os pescadores associam essa um barco bateu em São
No início desse capítulo Seu diminuição a dois fatores: primeiro
Miguel conta como eram animados
Juatinga. As partidas circulam pelas Sebastião e o corpo dois
comunidades e, dessa forma, os a presença de muitas embarcações
os festejos de São Sebastião da pesca industrial, principalmente
dias depois foi encontrado
moradores aproveitam para visitar
antigamente.
localidades mais afastadas que atuneiros, e barcos munidos de boiando no Pouso”
não costumam ir sempre. O Pouso sonar, um aparelho que localiza Richard, Pouso da Cajaiba, 2019
Em junho, a comunidade se reunia cardumes e que, quando não captura
da Cajaíba disputa o torneio todo
no pé de tamarindo para fazer uma os cardumes inteiros, afasta os
ano, e já sediou o evento esportivo Problemas de sobreposição com
fogueira, e tinha música. Em alguns peixes devido ao choque provocado
diversas vezes. No Pouso, o campo unidades de conservação também
anos ainda fazem uma pequena pela frequência que emite na água.
de futebol é a praia. Há também foram apontados, porque algumas
festa junina. Também faz parte do E, segundo, pela presença crescente
um campo de futebol gramado no práticas agrícolas e extrativistas
interior da vila. de navios petroleiros dentro do foram criminalizadas, dificultando a
território pesqueiro caiçara. Na salvaguarda da identidade cultural
área de fundeio dos navios se cria da comunidade.
uma lama, são sedimentos que as
âncoras levantam do fundo do mar
Às vezes o órgão
atrapalhando a pesca, inclusive o
arrasto de camarão. [ambiental] chega
aqui e só sabe falar o que
Com todos os não pode, só vem para
navios ali na frente, reprimir, para prejudicar.
eu não consigo mais E os turistas vem e fazem
passar com a minha rede o que quiserem”
para lá, porque o navio Richard, Pouso da Cajaiba, 2019
ancora e forma uma lama”
Fazer casa não
Elielton, Pouso da Cajaíba, 2019
pode, canoa não
pode, cortar um palmito
não pode que já vem a
polícia”
Ana Paula, Pouso da Cajaiba, 2019

82 83
Serviços públicos Francisco Xavier Sobrinho (Ticote),
um dos fundadores do FCT,
e Infraestrutura participou da luta pela melhoria
comunitária da educação no Pouso da Cajaíba
e junto com pessoas de várias
O Pouso da Cajaíba é a localidade comunidades da costeira lutou pela
com a maior infraestrutura de criação de uma resolução municipal
serviços, turismo e lazer dessa que reconhece e apoia a educação
região da península. Existem na diferenciada em comunidades
localidade: caiçaras. Também é uma luta do
FCT implementar soluções para
Escola de Ensino Fundamental o problema do saneamento. No
(1º e 2º segmento) Pouso, Ticote mantém uma unidade
demonstrativa de saneamento
Posto de Saúde
ecológico desenvolvido em parceria
Coleta de lixo com o OTSS.
Campings, pousadas, casas de
aluguel, bares e restaurantes As crianças da escola do Pouso
Igrejas realizaram ao longo de 2016 e 2017
a cartografia de sua comunidade
Campo de futebol
com intuito de identificar locais
importantes de seu território.
Bandeiras de Luta Esse levantamento contribuiu para

do FCT compor um roteiro de Turismo de


Base Comunitária que valoriza a
história e a cultura da comunidade.
O Pouso da Cajaíba é uma das
Essa inciativa resultou num caderno
comunidades pioneiras na região da
intitulado “Guia Turístico Local”,
Bocaina a implementar a educação
feito inteiramente pelas crianças. Os
diferenciada e o segundo segmento
elementos cartográficos do mapa das
do ensino fundamental (do 6º ao 9º
crianças foram considerados para
ano) na escola da comunidade. O
a elaboração do mapa apresentado
objetivo da educação diferenciada
aqui.
é promover a cultura tradicional
dentro da escola, como forma de
incentivar o interesse pelos saberes
e práticas tradicionais e para manter
viva a identidade caiçara. “Tem
muita coisa que na realidade não
podia acabar. O principal é as crianças
mesmo aprenderem” (Elielton, Pouso
da Cajaiba, 2019).

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Juatinga,
Saco Claro
e Saco da
Sardinha
Juatinga, Saco Claro e Saco da Sardinha
são comunidades vizinhas, situadas ao
longo de um costão que termina na Ponta
da Juatinga. A Ponta é o marco que separa
a Baía da Cajaíba das outras localidades
caiçaras na enseada do Martim de Sá.
Nessa região, as localidades são acessadas
pelas pedras, os barcos chegam até as
estivas construídas na costeira e lá as
pessoas embarcam e desembarcam. As
três comunidades são ligadas por relações
familiares (o sobrenome “Generoso”
aparece na genealogia das três) e se
visitam com frequência. As oficinas de
caracterização reuniram os moradores das
três comunidades, então os resultados são
apresentados conjuntamente.
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História das Antigamente, Naquele tempo viviam da caça, da pesca e da agricultura. E também
praticavam uma técnica de pescaria que acreditam ser de origem indígena,
localidades quando meu pai
chamada fisga: faz uma lança com uma ponta afiada de prego e usa para
morava aqui, a Juatinga arpoar os peixes grandes de cima de uma pedra. Os lugares conhecidos
tinha poucas casas. Eram como “arpoador” são pesqueiros onde se costumava usar a lança. Seu Zé
No período em que viveu a geração
dos mais velhos, nas primeiras
umas seis casas. Era o Generoso do Saco da Sardinha tem uma fisga que fez há 50 anos atrás. Uma
das figuras mais emblemáticas da história da Juatinga para a geração atual
décadas do século XX, a Juatinga Anísio, que é o pai da
de pescadores é o tio Abílio (Abílio Bernardo Generoso, falecido na Ilha das
tinha 6 casas. Naquele tempo, as minha tia; tio Abílio, o Cobras em outubro de 2020, com 106 anos). Ele era chamado de “cacique” e
famílias circulavam pelas localidades cacique que falavam; o ensinou toda uma geração de jovens da Juatinga a pescar.
da península e moravam um tempo
em cada lugar. A terra era livre e
meu pai...”
estava disponível. Telmo José Elesbão Filho, 42 anos e
Norival José Elesbão “Vavá”, Juatinga,
2019
Os moradores dessas comunidades
têm parentes em toda a península.
Alguns exemplos: a genealogia de
uma família da Juatinga mostrou
que existem relações de parentesco
com moradores do Saco das
Anchovas, Saco das Sardinhas,
Sono e Mamanguá. Tem moradores
que nasceram na Ponta Negra e
construíram família na Juatinga.
Alguns caiçaras do Saco Claro
descendem de pessoas que nasceram
na Praia Grande da Cajaíba, no Pouso
da Cajaíba e na Praia de Ipanema.

Com o passar do tempo, mais


famílias foram se fixando na
Juatinga, e atualmente ela é a
terceira comunidade mais populosa
dessa região da península, com 122
moradores.

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Antigamente eles corda de imbé, cochava,
pescavam muito de naquele tempo não tinha
linha e de fisga também. nada.
Arpoando os peixes com
a fisga. Eles faziam uma Eles iam esse horário
lança, tipo índio mesmo. assim, no encher da maré,
Ficavam em cima de uma e ficavam lá já esperando
pedra mais retirada, igual o peixe passar. Sabiam
a Ponta do Caçoeiro. Ali que esse horário o peixe
é arpoador. Tem vários ia passar, à tardinha.
arpoador: onde eles Passava robalo grande,
iam ficar para arpoar os passava olho de boi,
peixes. passava vários peixes”
Telmo José Elesbão Filho, 42 anos, e
Usavam uma vara de Norival José Elesbão “Vavá”, Juatinga,
madeira de uns quatro
metros. Cortava no mato
uma vara certinha, se
não fosse certa, eles
endireitavam no fogo. A
ponta eles faziam com
prego mesmo, prego de
ferro, comprava prego
grande e esquentava no
fogo. Ali, no caminho da
escola, naquela aguinha
que desce, você vai ver
nas pedras a marca que
tem onde eles amolavam a Nessas localidades existem casas de estuque e de alvenaria. As casas de
ponta da lança. Os índios farinha são todas feitas de pau a pique. A durabilidade das casas de alvenaria
amolavam, mas os nossos é maior, o que permite economizar tempo com manutenção. Ao mesmo tempo,
algumas pessoas não gostam da ideia de abandonar o conhecimento de
avós também usavam.
construção com os materiais da mata, e mantêm viva a prática de fazer casas
A corda eles faziam de de barro. A fala a seguir mostra que a implantação da escola da Juatinga foi
piteira, tiravam cipó no um marco para uma geração de caiçaras dessas comunidades, que até então
mato também, faziam não estudavam pois são localidades afastadas e de difícil acesso.
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Hoje o forte aqui
da comunidade é
a pesca e a mandioca. Espaços mapeados
As casas aqui antes na Juatinga, Saco
eram de estuque. Tudo Claro e Saco da
estuque. Agora é que é Sardinha
de tijolo. Mas as casas
dos antigos, todas eram. Cada espaço do território recebe um
A minha casa é metade nome e vários deles têm história:
de estuque ainda. Mas o são pontas, pedras, sacos, lages
pessoal parou de fazer de e vários lugares de referência
para pescadores e para quem
estuque porque antes não
navega. Nessa região, como em
tinha condição de comprar outras da península, os nomes e
tijolo, e agora dá muito histórias mostram que os caiçaras
cupim nas casas. Antes se relacionam com o seu território
de muitas maneiras. Os espaços
não dava cupim nas casas,
não são meras paisagens e nem
agora é muito cupim. apenas importantes para uso nas
Antigamente não tinha atividades produtivas, mas possuem
estudo não. Aqui tem uns muitos significados, sendo a base da
identidade e do pertencimento de
que não sabem ler. Tinha
seus moradores.
escola, mas os pais não
deixavam ir pra escola. Os moradores do Saco da Sardinha
Quando botaram escola na e do Saco Claro mencionaram uma
Juatinga, aí começaram a série de lugares ao longo de uma
faixa da costeira que vai do Saco das
ir” Araras (área de ocupação histórica
Reginaldo Generoso, “Simão”, 55 anos, da família Generoso) até o Saco
Saco Claro, 2019 da Bijiquara (localidade que já foi
habitada e hoje usada para pescar
e para desembarque de pessoas
para a Sumaca em dias de ressaca
no mar). Situam-se nesse costão:
a Toca do Morcego, Saco do Forno,
Racha das Três Pontas, Pedra do
Timão e Lage do Timão, Pedra
Alta, Pedra do Barquinho, Ponta do
Arpoador, Ponta do Ressoio, Toca do
Morcego (mais uma).
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Seguindo pela costeira, outros nomes que Trazem também áreas de uso, objetos e construções
identificam espaços do território marinho e feitas pelas pessoas, como as áreas agrícolas com
terrestre foram mapeados, tais como: Ponta de roça e muitas frutas; cercado de galinha; estivas e
Sul (local para pesca de Anchova), Lage da Ponta varais; o farol; canoas; barcos de pesca com rede
Sul (Pesqueiro), Paredão, Saco de Sul, Pedra da e espinhel; barco de pesca de corvina; barco de
Garopa, Pedra do Canto, Pedra do Testudo, Parcel do arrasto; lanchinhas de turismo e pesca; porto e o
Testudo, Praia da Cela (de pedra), Pixirica Grande rancho da Cela; e os cercos de pesca do pessoal.
(Itapecirica), Toca do Jacu, Pedra da Espia e a Trilha Estão mapeados o cerco da Pedra da Anchova e
da Ponta de Sul. o Cerco da Toca (ambos do Vavá), Cerco do Porão
(antigo cerco do Abílio, atual cerco do Négio), Cerco
Os mapas falados da Juatinga, Saco Claro e Saco do Saco de Sul (do Leontino), Cerco do Zé Generoso,
da Sardinha possuem um conjunto de referências e locais de pesca com rede mijuada (que costumam
do cotidiano caiçara. Trazem, por exemplo, muitos usar mais a noite).
elementos da natureza: no mar existem animais
como lulas, golfinhos, tartarugas, baleias e diversos
peixes; nos morros e nas pedras, há vários tipos de
vegetação e de animais terrestres como galinhas e
capivaras; no céu, a presença do sol, das nuvens e
das gaivotas.

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O mapa da Juatinga mostra a
sobreposição de usos no maritório
caiçara, com navios e embarcações
da pesca industrial dentro da área
pesqueira das comunidades.

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Atividades praia, as estruturas de apoio à pesca
são todas construídas sobre as
Produtivas pedras: estivas, varais e ranchos.

As comunidades do Saco da As três comunidades possuem pontos


Sardinha, Juatinga e Saco Claro de cerco flutuante ativos. O trabalho
vivem da pesca. E no Saco da na pesca de cerco também é familiar.
Sardinha e Saco Claro a atividade
agrícola e a produção de farinha Os caiçaras do Saco Claro, Saco
são complementos essenciais na da Sardinha e Juatinga investiram
alimentação familiar. Diferente das em embarcações com as quais
outras comunidades da península, desenvolvem várias modalidades de
atividades ligadas ao turismo são pesca, como a pesca de camarão, a
raras e ocupam um lugar bem pesca de rede para diversos peixes
pouco significativo. Essa escolha e a pesca com espinhel, realizada
por não trabalhar direto com o entre 5 a 30 milhas da costa para
turismo protege as comunidades de captura de peixes maiores como
alguns aspectos negativos que essa Dourado e Cação. Essa modalidade
atividade pode trazer pra dentro de pesca artesanal familiar é a que
das comunidades tradicionais. vai mais longe, e as embarcações
Alguns turistas chegam na Juatinga maiores chegam a passar 3 dias no
buscando a trilha para o farol, um mar, as menores vão e voltam no
atrativo do lugar e de onde se tem mesmo dia. Essa pesca tem sido
uma vista para a Baía da Ilha Grande. muito prejudicada pela rota de navios
dentro da Baía da Ilha Grande.
Pesca
Atualmente na Juatinga existem
As comunidades da Juatinga, Saco 13 barcos de pesca. No Saco da
Claro e Saco da Sardinha vivem Sardinha há 3 barcos equipados para
da pesca artesanal. Praticam uma pesca de camarão, e no Saco Claro
grande variedade de técnicas também tem um barco de arrasto
pesqueiras, algumas utilizadas de camarão. Os barcos do Saco da
nas áreas próximas da costeira Sardinha e Saco Claro são barcos de
(adequadas para captura de pesca diária, dificilmente passam
determinados peixes) e outras dias no mar.
mais afastadas, em pequenas
embarcações que empregam o O relato de Angelita explica como
trabalho familiar. As mulheres que ela e sua família jogam o
trabalham em todas as modalidades espinhel boiado. Como esse petrecho
de pesca: nos cercos, na pesca da fica à deriva no mar, precisam ficar
lula, e nas pescarias mais afastadas atentos às marés. Ela relata também
com rede, espinhel boiado e na pesca a presença de navios na zona
de camarão. Como não possuem pesqueira.

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Pesco lula e pesco com Leva uma hora mais ou menos pra
espinhel. Pesco com meu largar o espinhel. E depois tem que
esposo e meu filho. A gente ficar lá. Só vem embora depois que
sai daqui umas quatro e meia da colher o espinhel à tarde. Um fica
manhã, larga o espinhel umas seis lá de olho no espinhel, o outro fica
e meia e volta às cinco, seis horas lá sentado, o outro fica lá pescando
da tarde. Tem barco que chega oito jogando uma linha. Não dá pra saber
horas. Navega uma hora, uma hora se tem peixe fisgado no espinhel. De
e meia, mas não vai em bote não. hora e meia, duas horas, a gente vai
Dá medo até no barco, quanto mais correr ele de volta e se ver peixe,
no bote. Tem dia que tá mansinho, tira. Se não tiver, fica na outra ponta
mas tem dia que aqui tá manso e lá já. Depois de duas horas volta de
fora tá cheio de marola. O espinhel novo nele. Se tiver peixe fisgado,
não pode largar perto da beirada tira o peixe e bota a isca de novo,
da pedra, tem que ir longe, senão um pedaço de bonito ou a sardinha
a maré joga na pedra. Se a maré inteira.
jogar pra fora, nós vamos mais pra
longe. Se a maré jogar pra terra, nós Chega no final, à tarde, pega na
vamos mais pra terra. Tem que ver ponta e vamos colhendo. Tem a caixa
aonde que a maré tá levando. Se tiver do espinhel, vai pegando, um tira a
puxando pra fora é ruim, porque vai isca, o outro coloca dentro, arruma,
embora pra sul. Pra leste, vai mais o outro leva o barco. Tem hora que
pro lado da Ilha Grande. Tem gente demora mais pra colher porque
que vai até quinze, vinte milhas tem vento, aí vai mais devagar,
pra fora. Até trinta, esses barcos aí mais embaçado. Tá cada vez pior
[maiores]. A gente chegou até quinze a pescaria. Tem vez que dá peixe,
milhas. A gente não joga na rota do tem vez que não dá nada. Depende.
navio, mas a maré leva. A gente tem Tem alguns que vem pequenos, tem
que tirar porque às vezes a gente alguns que vem dez quilos, vinte
olha, já tá vindo o navio, não dá quilos, por aí. Mas é muito difícil,
tempo. Até tirar, o navio já passou o dia inteiro na água e vem embora
por cima. sem”.
Angelita Conceição Costa, 45 anos,
O tamanho do espinhel mede em Juatinga, 2019
braça. São uns quinhentos anzóis.
São seis, sete braças a distância
de um anzol pro outro. A primeira
bandeira que você largou você não vê
mais. Você tem que sempre passar
pra ver a de lá, se passar algum
barco e cortar, já era. São quatro
boias.

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Os pescadores conhecem muito
bem as espécies marinhas. No Saco
de linha, cerco, rede de espera ou
rede mijuada. A pesca embarcada
Roça e Extrativismo CANA: Campista, Sapa, Cera,
Caju, Santa Helena, Rosa,
da Sardinha, só de camarão, eles emprega as seguintes técnicas Caiana e Vinagre
No Saco da Sardinha existe uma
mencionaram 8 tipos diferentes, pesqueiras: arrasto de camarão,
considerável diversidade agrícola. MEDICINAIS: Saião,
que eles conhecem pelos seguintes rede de malha (para corvina), Rede
Além de diferentes variedades Terramicina, Capim Cidrão,
nomes: rosa, cinza, leite, tigre, de Fundo (para corvina, cação,
de mandioca, há pelo menos 30 Erva de São João, Hortelã,
cristalino, sete-barbas, santana linguado, vermelho, pescada,
variedades de frutas e 8 tipos de Boldo, Agrião, Guaco, Folha de
(ocorre no sul) e pitu (com “unha”). anchova, cavala) e espinhel boiado
cana. Há 2 casas de farinha ativas Pitanga, Folha de Laranja.
As espécies que eles pescam são (para dourado e cação). Antigamente
no Saco da Sardinha. No Saco Claro,
branco, rosa e sete-barbas. a Juatinga possuía mais um ponto
também existem áreas agrícolas As áreas de extrativismo de
No mapa do maritório compartilhado de cerco, na Ponta do Caçoeiro.
ativas, e a roça e a produção de madeiras, cipós e fibras utilizadas
pela Juatinga, Saco Claro e Saco Mas hoje esse local é utilizado para
farinha são consideradas atividades pelas comunidades da Juatinga,
da Sardinha as principais áreas fundeio dos barcos dos moradores.
muito importantes. Na Juatinga tem Saco Claro e Saco da Sardinha
de pesca próximas da costeira são Quem trabalhou nesse ponto foi o
uma roça, mas de modo geral, a são compartilhadas, são áreas de
aquelas usadas para os cercos, Seu Abílio, Antonio e seus parentes.
maior parte da comunidade não se uso comum. A mata que utilizam
pesca de lula, mergulho, pesca
dedica mais à agricultura. Existem é conhecida como Francês, e se
quintais com frutas, plantas e flores. localiza no interior da península,
na vertente em direção à Sumaca.
MANDIOCA E AIPIM: Maricá,
Além de uma variedade de madeiras
Bordão, Rama Branca e Landi
para construção de casas, ranchos,
Branco
portos, estivas, varais, canoas e
FRUTAS: Abacate, Abacaxi, remos, também são extraídos cipó
Acerola, Amora, Banana (prata, timumpeva e imbé, e a taquara para
d’água, terra, ouro, preta), cestarias, balaios e vassouras. A
Manga, Jaca, Cajá Manga, água que abastece o Saco Claro
Goiaba (2 tipos), Mamão, e a Juatinga também vem dessa
Bacupari, Jambolão, Fruta- área, em longos canos que cortam 3
pão, Seriguela, Jabuticaba, quilômetros por dentro da mata.
Coco, Ata, Condensa, Tangerina,
Limão cravo, Pitanga, Cacau,
Café, Carambola, Jambo
Amarelo, Grumixama, Laranja,
Cambucá, Ingá

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Práticas de Ameaças e O primeiro foi com o
barco do Joel, faz uns 15
levar lá na outra. Você tem de chegar
e juntar as duas pontas novamente
cuidado conflitos dias atrás. O barco tava pra emendar. A maré afasta uns
pescando a quatro milhas a leste cinquenta, sessenta metros, rápido.
No Saco Claro, Saco da Sardinha e da Juatinga, e o navio passou em Quando estoura de um lado e outro,
As principais ameaças identificadas
Juatinga, toda a geração das pessoas cima do material. Era um espinhel leva embora o pedaço do espinhel”
pelos moradores da Juatinga, Saco
com mais de 30 anos nasceu com de Dourado, espinhel boiado. Como
Claro e Saco das Sardinhas estão
auxílio de parteiras. A mãe de Seu o navio tava entrando a barra já “E ontem também aconteceu. O navio
ligadas aos conflitos de uso no
Zé Generoso, dona “Vastinha”, fez pra Angra, ele vinha meio devagar. veio em cima. Um navio vermelho,
maritório caiçara. A rota de navios
os partos da maior parte dos seus Quando o material pegou na proa do ele tava saindo. Meu sobrinho falou:
na Baía da Ilha Grande prevê uma
netos. Muitas mulheres tiveram seus navio, o material não estourou. Ele ‘tio, vem um navio ali’. Eu falei: ‘ah,
faixa de 500 metros de exclusão
filhos sozinhas também. [Joel] tentou segurar o material, ele vai passar no meio do material,
pesqueira, reduzindo o território
tradicional dos pescadores da mas o navio foi levando, então teve vamos pra cima já, pra poder
península. de largar. ficar mais perto, pra quando ele
O parto das cortar, não afastar muito’. Quando
mulheres da roça Hoje em dia os navios são vistos e Só nisso aí, esse navio levou uns chegamos no meio do material, ele
é melhor que na cidade. ouvidos nas comunidades todos os duzentos anzóis. Quem monta o fez a volta, rodou e passou por trás
petrecho [o espinhel], amarra o do barco e passou em cima, não teve
Lá eles colocam soro, dias, alterando a paisagem com a
presença de uma cadeia produtiva anzol a cada dez metros, é tudo a jeito. Cortou até uma raia que tinha
fica 3 dias no hospital. gente. Tem trabalho. Aqui em Paraty, ferrado no espinhel. A hélice dele
industrial que não os inclui, que
Em casa não: a gente ameaça a continuidade do modo de o material de pesca é muito caro. No passou no meio da raia e veio só os
pode caminhar e ainda vida dessas comunidades, e para a Rio de Janeiro compra uma caixa de pedacinhos dela”.
anzol por cinquenta reais, aqui vai
faz alguma coisinha, um qual não foram consultados. Telmo José Elesbão Filho, 42 anos,
pagar o triplo do preço.
serviço em casa, lava uma Juatinga, 2019
As percepções sobre mudanças no
roupa, e quando vê já tá ambiente marinho têm deixado os O nosso espinhel foi essa semana
boa” moradores preocupados. Surgiram agora. Devia ser umas duas da tarde.
Benedita Alves da Silva, “Geni”, 68 falas sobre o medo do vazamento Nós estávamos com o espinhel na
anos, Saco da Sardinha, 2021 água, esperando os peixes pegarem.
de petróleo, principalmente após o
desastre ocorrido em 2019 nos mares Aí daqui a pouco o navio veio de
De lá pra cá a relação com a do nordeste brasileiro. E também terra, saindo pra fora. O navio veio
cidade tornou-se mais frequente enfatizaram que os navios provocam em cima. O meu sobrinho falou: ‘ó,
e as mulheres passaram a parir ruídos no mar, emitem luzes, alteram tio, vai cortar o material’. ‘Vamos
no hospital. Existem mulheres o relevo do solo marinho nas áreas esperar, assim que ele cortar, a
que sabem os procedimentos para de fundeio e levantam sedimentos gente emenda’. Como ele vinha
auxiliar no parto, mas ultimamente que inviabilizam certas modalidades em marcha de viagem, em alta
não são chamadas. Nota-se, pela de pesca. velocidade, ele veio, passou em
fala dos moradores, uma valorização cima, e nós filmando. Ele cortou e
do conhecimento e da coragem das Os pescadores falam dos prejuízos foi embora. Passou a uns sessenta
parteiras. Foi mencionado também causados pelos navios petroleiros metros da gente, bem perto mesmo.
conhecimento dos remédios feitos que passam nas áreas tradicionais
com plantas do quintal, importantes de pesca, destruindo ou carregando Quando corta [o espinhel], você tem
para tratar diversos males. embora os petrechos de pesca. de pegar outra corda, puxar a ponta e

110 111
Outro grave problema é a presença
de embarcações da pesca industrial
O resultado dessas sobreposições
de uso no maritório caiçara tem
Infraestrutura e
que capturam dentro das enseadas sido a redução drástica do estoque serviços públicos
da península mais de 1 tonelada de pesqueiro, o que exige aumentar o
filhotes de sardinha para servirem tempo de trabalho dedicado à pesca Na Juatinga existe uma escola de
de isca para a pesca de atum. Com para alcançar os mesmos resultados. Ensino Fundamental para os alunos
isso, retiram o alimento dos peixes do 1º segmento onde estudam as
maiores, afastando-os da costa, e Alguns moradores ressaltaram crianças da Juatinga, Saco Claro
deixando à míngua os cercos, redes e também problemas de sobreposição e Saco da Sardinha. Os alunos
linhas da pesca artesanal. com a unidade de conservação. do segundo segmento estudam
Criação de porco e galinha foram na escola do Pouso da Cajaíba.
Tá aparecendo muito barco proibidas gerando indignação nos Atualmente há transporte marítimo
lá do sul, esses atuneiros. caiçaras do Saco Claro, pois se para levar as crianças dessas
Eles vêm buscar sardinha consideram pessoas que sempre localidades até lá. A demanda das
aqui na nossa baía porque lá no sul preservaram o meio ambiente. comunidades é abrir o segundo
não tem mais, lá é proibido. Então segmento na Juatinga.
eles vêm pra nossa área. Antes
vinham só dois, três barcos, hoje Uma luta histórica das comunidades
tá vindo quinze, vinte barcos. Faz é a rede de energia. No ano
dois, três anos que aumentou. Esse de 2020, foram instalados na
ano, 2019, foi que eu mais vi barco Juatinga módulos de energia solar
atuneiro na Baía. Você olhava, quinze abastecendo cerca de 30 casas. São
barcos por dia. Cada barco daquele sistemas que permitem conectar
ali sendo carregado de ‘comedio’ geladeira, facilitando a conservação
da nossa Baía, eles tiram a comida de alimentos e do peixe que
dos peixes. Os peixes que eram pra comercializam.
encostar nesse comedio, não vão,
porque os peixes encostam porque A coleta de lixo é realizada por
tem comida na costa pra eles. Esses barcos a serviço da prefeitura. Mas,
atuneiros realmente tiram toda conforme explicam os moradores,
manjuba da costa, passam uma é comum o serviço falhar. Durante
malha bem fina aqui na baía toda. a pandemia de Covid-19, o serviço
Até área proibida eles entram. Eles parou.
levam qualquer peixinho pequeno,
sardinha, manjubinha, aquele
xingozinho, que fala, ‘boca-torta’.
Todos esses barcos têm sonar.
Falaram que o sonar dá choque no
peixe, então assusta os peixes. Onde
eles passam com o sonar ligado, os
peixes saem fora”
Telmo José Elesbão Filho, 42 anos,
Juatinga, 2019
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116 117
Cairuçu, Saco
das Anchovas,
Martim de Sá
e Sumaca
As localidades caiçaras da Sumaca, Ponta da Rombuda,
Martim de Sá, Saco das Anchovas e Cairuçu das Pedras
estão situadas de outro lado da Ponta da Juatinga, uma
região mais exposta às correntes e ressacas de mar aberto
que não conta com refúgio para embarcações. Devido a
dificuldade de acesso, essas localidades são mais isoladas
e menos populosas.

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O mar é grande. As oficinas de caracterização atuais é Seu Maneco do Martim de tornaram adultos, cada um dos filhos
realizadas na região reuniram os Sá, que faleceu em agosto de 2020, do Manuel da Varzea buscou um
Mas o olho do
moradores dessas localidades e eles em meio à pandemia de Covid-19, lugar para morar. Benedito Caçador
homem é maior. Eu achava produziram um mapa falado único do levando consigo um acervo valioso se casou com Sofia e foi viver no
que bicho feroz eram os território, abrangendo desde a Ponta da memória histórica e social desse Cairuçu. Os outros irmãos foram
bichos do mato. Mas o ser da Juatinga até o Ilhote do Cairuçu. lugar. Partiu deixando um legado e um pro Sono, outro pro Martim de
Por isso, os resultados do trabalho um alerta para os que ficam. Sá. Benedito Caçador teve um filho,
humano é que é feroz”
são apresentados conjuntamente. chamado Manuel Roque, conhecido
A história da família Remédios como Roque Caçador, que se casou
Manuel dos Remédios, “Seu Maneco”, parece se confundir com a própria com Capitulina da Praia do Sono.
77 anos, Martim de Sá, 2019
História das história da península. Como já O casal teve alguns filhos, entre
localidades mencionado em capítulos anteriores, eles Manuel dos Remédios, ”Seu
a ocupação caiçara desta região está Maneco” nascido em 1942, Jovino dos
ligada à implantação da Fazenda Remédios, de 1944, e Dulcineia dos
Cairuçu das Martim de Sá ainda no período Remédios, de 1959.

Pedras, Saco das colonial. O bisavô de Seu Maneco e


de seus irmãos Jovino e Dulcinéia Projetando 25 anos para cada
Anchovas e Martim se chamava Manuel da Várzea e geração, Manuel da Várzea
de Sá era do Pouso da Cajaíba. Ele teve possivelmente nasceu em meados do
3 filhos, um deles era conhecido século XIX, perfazendo 170 anos de
como Benedito Caçador. Quando se ocupação da família na península.
As histórias do Cairuçu, Saco das
Anchovas e Martim de Sá têm suas
particularidades, mas podem ser
apresentadas juntas, pois essas
localidades são ocupadas há muitas
gerações por núcleos familiares de
caiçaras aparentados e que mantêm
relações próximas e cotidianas até
hoje. A árvore genealógica forma
uma rede emaranhada de pessoas
e lugares, conectando não só as
localidades próximas, mas também
outras comunidades da península,
como o Pouso da Cajaíba, a Praia do
Sono e a Ponta Negra ao longo de
pelo menos 170 anos.

Um dos principais elos entre as


primeiras gerações de moradores
dessas localidades e as gerações

120 121
Meu avô Benedito Caçador A mobilidade sempre foi uma
nasceu no Pouso. O pai característica marcante na vida
dele, meu bisavô, Manuel tradicional caiçara. Era comum
da Várzea, era de lá. Ele teve meu as pessoas morarem em vários
avô e mais dois filhos. Cada um foi lugares ao longo da vida, e mesmo
procurando [um local pra viver]. O as famílias já constituídas se
outro [irmão] procurou o Martim de deslocavam de uma localidade
a outra. Construíam uma nova
Sá. O outro foi pro Sono. Meu avô
casa de estuque, abriam uma
procurou o Cairuçu.
roça e recomeçavam a vida na
nova localidade. Ainda hoje esses
Meu avô casou com a Sofia e foi
deslocamentos ocorrem, mas já não
morar no Cairuçu. Teve um tio meu
são comuns como antigamente.
aqui [no Cairuçu], Jovino também.
Meu pai, o Roque, era pequeno Jovino dos Remédios e seu cunhado
quando morou aqui. Meu pai morou Aprígio Ramos dos Santos trazem
no Cairuçu até os 18 anos, daí a memória do tempo em que eram
perdeu a mãe e saiu pra trabalhar crianças. Jovino nasceu nos Antigos
em Santos. Quando voltou ele casou. e com 7 anos foi com a família morar
Minha mãe é filha do Sono. Meu pai no Martim de Sá. Depois de casar
morou com ela nos Antigos. Meu voltou para área do seu avô Benedito
pai saiu com nós, eu com idade de Roque no Sítio do Costão, no Cairuçu.
7 anos e meu irmão mais velho com Aprígio é da Ponta Negra e foi ainda
8, e fomos pro Martim de Sá. Aí do criança morar no Cairuçu. Casou-se
Martim de Sá me casei e vim morar com dona Dulcinéia, a irmã de Jovino
e Maneco, e lá mora até hoje.
lá no lugar onde meu avô trabalhava
[entre Cairuçu e Ponta Negra].

Jovino dos Remédios, 75 anos,


Cairuçu, 2019

122 123
J: Eu vou falar a verdade: O sal era bem difícil da pessoa ir na
antigamente, na idade dele cidade e trazer o sal. Antigamente
[Roque Caçador e Benedito era o sal mesmo da pedra, da água Também fazem parte da história
Caçador], todo mundo caçava... do mar, que entrava no buraco da dessas localidades conflitos por
Caiçara só vivia disso, na pesca e de pedra. Secava pra poder dar o sal pra terra que começaram a pipocar em
caçar. Não era nada da cidade. salgar os peixes, pra limpar o peixe. vários lugares da península com a
chegada de pessoas de fora que se
A: Quando o mar tava ruim, não tinha A: Quando batia o sol, aquilo secava proclamavam donos das terras. O
como comprar mistura, aí a gente ia e virava o cristal, aí você catava o Minha família é
uso de violência física e psicológica
no mato, matava uma paca, matava cristal, trazia pra casa, esquentava empregada contra as famílias geração antiga na
cotia, matava um porco do mato. na panela, torrava. Ficava igual sal promoveu a saída de muitos caiçaras Ponta Negra. A minha tia
Então, aqui pro caiçara era isso aí. mesmo comprado. Com aquele sal de seu território histórico. também, que morava aqui,
que temperava uma panela, salgava
J: Papai, meu avô, iam só na cidade um peixe. Vivia assim. Eu alcancei era da Ponta Negra. Só
No Martim de Sá, o conflito durou 20
na época do natal. As outras coisas isso, mas era pequeno. A noga anos, mas contou com a resistência
depois que eles mudaram
tudo eles tinham aqui da roça, no também, ela dá uma fruta, que você de Seu Maneco. Seu Maneco era de lugar, que vieram pra
mato. A luz, hoje tem aí a placa solar quebrava ela, no Martim de Sá tem ainda jovem quando teve que sair cá [para o Cairuçu]. Eles
pra botar luz. De primeiro era a bastante. Quebrava, fazia aquele
bicuíba [fruta], que às vezes a gente espeto também de noga e botava fogo
do Martim de Sá com a família. moraram em Ponta Negra,
O suposto dono das terras, o
procurava no mato pra fazer a luz. naquilo, aquilo pegava fogo, botava coronel do exército Antonio Rocha
de Ponta Negra foram
Pegava a bicuíba, quebrava, pegava assim do lado da parede e era a luz Pacheco, chegou e implantou morar em Antigos. Mas
o bambu pra fazer esse palitinho, que alumiava a noite” atividades de produção de carvão e como o Gibrail começou
enfiava a bicuíba toda, acendia e
botava na parede da casa de estuque.
criação de búfalos que destruíam a brigar com o pessoal lá
Jovino dos Remédios, 75 anos e Aprígio quintais e roças. Quando essas
Não era nada comprado da cidade. Ramos dos Santos, 68 anos, Cairuçu, nos Antigos, uns tiveram
atividades foram abandonadas,
2019
a família retornou ao local. E em que deixar os Antigos,
1999, Pacheco moveu uma ação de então foram morar no
reintegração de posse. A ação se Mamanguá. E o meu tio
arrastou por quase vinte anos, mas
veio praqui”
deu ganho de causa ao Maneco.
Aprígio Ramos dos Santos, 68 anos,
Outro conflito fundiário histórico Cairuçu, 2019
na península envolve a família de
Gibrail Nubile Tannus, o mesmo que A família “Remédios” ocupa as
promoveu a saída de quase todas as localidades Cairuçu, Saco das
famílias caiçaras da Praia Grande da Anchovas e Martim de Sá. A Ponta
Cajaíba. A família do Aprígio se viu da Rombuda também é território
obrigada a deixar a Ponta Negra e a histórico dos caiçaras dessa família,
Praia dos Antigos, e foi assim que ele ela era ocupada pelo núcleo familiar
chegou no Cairuçu, onde terminou de do Carmosino dos Remédios, mas
se criar, casou, e de onde nunca mais faz uns 6 anos a família se mudou,
saiu, a não ser no período em que visitando de vez em quando as áreas
trabalhou na pesca embarcada. de uso que deixaram lá.
124 125
Sumaca População Caiçara Tempos e Espaços
A Sumaca é um território tradicional Sem energia elétrica, a localidade
Caiçaras
• Martim de Sá: 15 pessoas,
caiçara, mas sua história recente foi segue com o ritmo do modo de vida considerando a família do Pedro
um pouco diferente. Na década de caiçara. Manequinho da Sumaca, Henrique e os demais filhos do Seu A extensão territorial representada
90 foi palco de um conflito fundiário como já é conhecido por alguns, Maneco que tem casas ali e dividem no mapa falado produzido pelos
entre um pretenso dono, do Rio conta que Sumaca era o nome de residência em Paraty; moradores começa na ponta da
de Janeiro, e um veranista de São um navio que naufragou ali e cujos Juatinga e vai até o Saco Bravo,
Paulo que teria adquirido as terras destroços ainda se encontram no • Cairuçu das Pedras: 17 pessoas incluindo a Sumaca, Rombuda,
ilegalmente. Expulso o paulista, território. Ele mostrou a bica d’água vivem permanentemente; o número Martim de Sá, Saco das Anchovas e
a Sumaca é ocupada hoje por um na praia que fez aproveitando um aumenta no tempo da pesca, com Cairuçu. Esse território é repleto de
caiçara do Pouso da Cajaíba que vive cano de ferro muito espesso, e a permanência da família do Pedro lugares nomeados pelos moradores,
sozinho e zela pela propriedade. visivelmente muito antigo. dos Remédios que tem um ponto de tanto na costeira como em terra.
cerco no local; e na temporada do Uma das referências importantes
turismo alguns parentes que moram dessa região da península é o Pico
fora devido à falta de escola para os do Cairuçu, que mede 1.017 metros
filhos chegam para passar as férias de altitude (o segundo mais alto da
na localidade; península).

• Saco das Anchovas: 15 pessoas Martim de Sá possui uma extensa


faixa de areia. Sumaca possui duas
• Sumaca: 1 morador permanente faixas de areia pequenas separadas
por pedras. A Praia do Cairuçu é
bem pequena e repleta de pedras
que exigem prática de quem vem
embarcado em botes motorizados.
O Saco das Anchovas não tem praia,
então o embarque e desembarque
das pessoas na localidade é feito em
portos estivados.

126 127
Além disso, os mapas mostram
Os nomes identificados no mapa elementos da natureza e as áreas de
são os seguintes: Ilhote do Cairuçu, uso pesqueiro, agrícola, extrativista
Pedra do Miranda, Pico do Cairuçu, e as casas dos moradores.
Cachoeira Grande, Cachoeira do
Cairuçu, Ponta da Juatinga, Saco As práticas realizadas no território
de Sul, Cela, Celinha, Costão do envolvem o manejo de uma grande
Francês, Saco da Rombuda, Ponta do diversidade de espécies. Para que
Martim de Sá, Encontro do Rio/Boca as atividades produtivas tenham
da cachoeira, Parcel (entre cachoeira sucesso, é preciso conhecer o
e Anchovas), Prainha (Anchovas), território, sua dinâmica ecológica,
Ponta das Anchovas, Saquinho, Ponta perceber as relações entre os vários
do Cairuçu, Duas Lages, Arpoador elementos que o compõe. A natureza
(enseada onde tem a Banana Prata), dá indicadores o tempo todo, os
Guatafunda (costão, ponto de caiçaras sabem ler os sinais.
pesca), Saco do Ingá, Saco da Vaca,
Cachoeira do Saco Bravo, Ponta do O diálogo abaixo traz a relação entre
Maximiano, Racha do Ronco (“mar o comportamento dos animais, o
bate cá embaixo e ronca lá dentro na clima e o mar.
racha da pedra”) e Saco Bravo.
Jovino (JV): Só quem
Os caminhos também são conhece o tempo é bicho do
importantes elementos do território mato. Passarinho... Se ele
de uso e ocupação caiçara. A trilha tiver falando demais, onde tem um
que liga o Pouso da Cajaíba ao montado de pica-pau, que fala ‘vein,
Martim de Sá passa por um local vein’, é sinal de tempo. Saracura
chamado Diogo e dá acesso a Tapina também é sinalizador de tempo.
do Miranda (ou pico do Miranda) um Se canta é sinal de tempo ruim, de
mirante de referência tanto para chuva.
quem está no Pouso como para
quem está no Martim. Essa trilha Josias (JS): Pitanhã também avisa,
histórica de cerca de 4 quilômetros um passarinho amarelo.
conectando a enseada da Cajaíba à
vertente mais remota e selvagem JV: Ele fala ‘tempoquéviiim’.
da península. A partir de Martim de
Sá, a caminhada para o Cairuçu das JS: O pica-pau também avisa quando
Pedras tem cerca de 5,3 quilômetros, chega gente de fora. Esses dias aí
passando pelo Saco das Anchovas. eu tava vendo. Tempo bem. Quando
Entre o Cairuçu e a Ponta Negra está vocês apontaram aí. E hoje de novo
o trecho mais extenso e pesado do ele tava aí chamando de novo.
circuito de trilhas da península, com
mais de 6,5 quilômetros e trechos
bastante acidentados.

128 129
Aprígio (A): A formiga, aquela O vento que chama corrente dá pra ver [olhando pro As estações são basicamente duas:
formiga correição também. Quando mar]. Se a corrente da água estiver tempo quente e tempo frio. Cada
todos os ventos é
aquilo tá alvoroçado é tempo ruim a leste... ali naquela Ponta da ano esses períodos podem atrasar
que tá vindo. o norte e o noroeste. É Juatinga, às vezes tem correnteza ou antecipar um pouco, muito em
aviso. Meu pai falava isso: de água ali, que aquilo levanta até o função da chuva. Conforme explicado
A: Aí no mato tem uma qualidade de tá ventando de noroeste, lodo de baixo. pelos moradores do Cairuçu, julho
sapo que quando ele começa a falar, e agosto, por exemplo, quando
tá chamando o sudoeste.
pode contar que é vento. Jovino (JV): Mais forte é o vento são meses secos, não fazem frio.
Tempo vai virar” oeste. O sudoeste é batido, ele é Se chove, faz muito frio. A cor e
JS: E tem um da chuva, né? Manuel Xavier Sobrinho “Manequinho”, direto, é compassado, eu acho. vitalidade das plantas também
59 anos, Sumaca, 2021 O oeste não. O oeste ele bate, mudam ao longo do ano.
A: Tem o da chuva também” ele tomba mesmo, ele vem de
Josias (JS): O vento
arrebentar... vem mais forte que o
Jovino dos Remédios, 75 anos; Aprígio sudoeste é o vento mais
sudoeste. Ele bateu, foi quebrando
Ramos dos Santos, 68 anos; Josias respeitado, ninguém sai.
Silva de Jesus, 47 anos, 2019, Cairuçu os galhos de pau tudo, arrancou o
 
sapê da casa, virou tudo de perna pra
Aprígio (A): O sudoeste ele venta
cima, ele vem de arrancar com tudo.
forte, mas o vento do oeste é
A correição, se ela complicado, que quando vem, vem
Lá mesmo na Ponta Negra acabou
com tudo, pé de jaca tudo.
vem da mata pra acabando com tudo, tanto faz em
praia, é chuva na certa. terra como no mar. Esse vento do
A: Mas agora, aquele vento que
Quando ela volta pra oeste quando ele venta é vento forte
passou lá na Ponta Negra foi um
pra caramba. E depois também o
dentro, o tempo vai ficar noroeste, vento forte também. Mas é
vento que se formou, né, foi um
bom” vento rápido.
ciclone.

Manuel Xavier Sobrinho “Manequinho”,


JV: Foi um vento do oeste, porque
59 anos, Sumaca, 2021 JS: Aquele bafo quente. Ele mexe
veio com chuva de trevoada.
o mar, mas também é coisa rápida.
Nessa região, as condições do Sudoeste também...
Ele cai forte assim, mas o mar não
mar determinam as atividades fica muito agitado, não. O mar que
das pessoas, seja a pesca, seja o JS: Os ventos que trazem chuva é
fica agitado mesmo é o sudoeste e o
transporte para a cidade ou outras sudoeste...
sueste.
localidades mais próximas. Tem
dias que simplesmente não dá pra A: É. Primeiro ele venta assim sem
JS: O sudoeste agita muito o mar, o
navegar, não tem como escapar das chuva. Depois que ele vai acalmando,
mar fica muito agitado...
ondas da Praia de Martim de Sá, aí que vem a chuva... primeiro é o
nem enfrentar o mar agitado na vento pra depois então vir a chuva.
A: O vento do oeste mexe com o mar
costeira das Anchovas ou do Cairuçu também, mas isso vai depender da Jovino dos Remédios, 75 anos; Aprígio
das Pedras e da Sumaca. O risco é correnteza da água, também tem Ramos dos Santos, 68 anos; Josias
muito grande. Por isso, conhecer os Silva de Jesus, 47 anos, 2019, Cairuçu
isso. Pode ventar forte, mas se a
ventos que trazem chuva e ressaca é correnteza do vento tiver contra, não
essencial para planejar as atividades dá ressaca no mar. Agora se tiver
e não ser pego de surpresa no meio a favor do vento, aí já é ressaca. A
da travessia.
130 131
Atividades
Produtivas
Nas comunidades do Cairuçu das Aqui eu pesco,
Pedras, Saco das Anchovas e Martim
planto, tenho
de Sá, a pesca e a agricultura
são atividades essenciais que
trabalho na lavoura. Mas
garantem a segurança alimentar. Na a lavoura é pro sustento
temporada, as famílias se dedicam da gente mesmo. Agora a
também à atividade do turismo, pesca é a nossa profissão.
com áreas de camping, aluguel de Eu gosto muito de
quartos, fornecimento de refeições
trabalhar com cerco, gosto
e transporte marítimo.
de fazer lavoura, construir
as canoas de vez em
Aprigio (A): O caiçara ruim é quando chove que vem essa quando. E assim a gente
não tem essa repartição frente fria, esse vento do oeste, aí vai indo”
[outono, primavera, verão, vem trazendo frio. E fica semana de Claudio dos Remédios, 46 anos, Saco
inverno]. A repartição do caiçara são chuva, às vezes ventando. das Anchovas, 2020
os meses de frio e os meses quentes.
Aqui pra nós é assim. E aí depende Jovino (JV): Tempo mais quente [o
do tempo: às vezes tem um ano que mato] fica mais verde, a planta que
já começa o frio mais cedo, e tem nasce, no tempo quente, vem mais
ano que o frio começa mais tarde. chuva, nasce melhor. No tempo frio
Que nem agora esse ano que passou: não, o mato no tempo frio seca. E não
o mês de agosto aqui pra nós, uns sei porque, mas até a água do rio, no
tempos passados, era mês quente, tempo frio, seca o rio. Lá no costão
não podia brincar com fogo por aí mesmo, os moradores que moravam
que pegava fogo qualquer lugar. Mês lá tinham o rio, agora que saíram os
seco e quente, de sol. Agora esse ano moradores acabou o rio... onde nós
o mês de agosto foi de frio. Teve um moramos lá tinha água...
ano aí pra nós que o mês de junho,
mês de julho, você tomava banho de A: No verão aumenta a água da
água fria e não sentia frio. Quando cachoeira, já no inverno já, que às
chegou no mês de agosto, aí já veio vezes que leva um pouco de tempo
frente fria, já mudou a temperatura, sem chover já a água da cachoeira
em vez de fazer frio no mês de junho, diminui”.
mês de julho, não fez. Às vezes o
mês de março é chuva com trovoada,
bateu aquela chuva, passou, daqui Jovino dos Remédios, 75 anos e Aprígio
Ramos dos Santos, 68 anos, Cairuçu
a pouco já tá quente de novo. O das Pedras, 2019
132 133
Na Sumaca, além da pesca de Cerco flutuante o de outubro, novembro
subsistência, o sustento vem
nome dele. Ele fica e dezembro, são meses
do turismo. Há no local uma
infraestrutura de camping e um no mar até 16, 17 dias. A bons pra peixe. Daí pra
bar. Além disso, o morador voltou a gente vai no cerco 4 vezes frente, cada mês tem
cultivar mandioca em uma pequena no dia fazer a levantação uma qualidade de peixe:
área e faz artesanatos com madeira
pra pegar os peixes. Tem xerelete, sororoca. Nesses
(remo e canoa miniatura, gamela,
fruteira, colher de pau).
vez que vem peixe, tem meses de setembro e
vez que não vem. É uma outubro tem variações de
Pesca pesca especial. Foram os peixe, menos quantidade,
japoneses que inventaram mas mais variações
No Saco das Anchovas e no Cairuçu, a pesca de cerco. Nós Claudio dos Remédios, 46 anos, Saco
onde a pesca é a principal atividade acatamos e até hoje a das Anchovas, 2020
que gera renda familiar, o cotidiano
é no mar. Essas comunidades
gente faz essa atividade.
Além dos cercos, que são colocados
organizam o seu calendário de
na água quando passam os meses
trabalho em função das safras dos O cerco captura todo peixe de ressaca (geralmente no meio
diferentes peixes e do clima que que passa ali. Inclusive do ano) outras técnicas de pesca
influencia a navegação e a captura
a nossa região que é mar artesanal são desenvolvidas nessas
dos peixes.
aberto, pesca até tubarão, localidades, tais como:

São 5 pontos de cerco fixo flutuante ele entra dentro do cerco. • Mergulho - Costões, lages, parcéis,
nessa região, localizados no Saco da O cerco pega o cardume, ilhas: Garopa, Sargo, Pirajica, Godião
Rombuda; na Ponta do Martim de Sá
o peixe vivo. E a gente Tesoura, Lagosta.
e no Saco das Anchovas (do Claudio);
no Cairuçu e no Ilhote do Cairuçu (do pode escolher o peixe que
• Rede mijuada ou linha - Costão,
Pedro). vamos consumir e vender, Ilhote do Cairuçu: Anchova, Garopa,
e o peixe que não serve, Olho de Cão, Olhudo, Bonito, Bicuda;
Todas as localidades possuem
se for pequeno, se for Espada; Sargo, Marimbá.
ranchos onde são guardados
petrechos e embarcações. Na
pesca proibida, a gente
• Rede de malha 55: Corvina,
pequena praia do Cairuçu são 5 devolve pro mar. Essa é a
embarcados na canoa ou em botes
Ranchos; Saco das Anchovas são 3; beleza do cerco. com 2 pessoas.
no Martim de Sá tem 1 e na Sumaca
tem 1 rancho.
No cerco, às vezes tem • Espinhel - Afastado da costa:
Cação, Dourado, peixes grandes.
peixe que dá de tonelada,
que vem em quantidade • Tarrafa - Costeira e Praia da
boa. A gente pesca mês Sumaca: Parati, Tainha, Olhudo,
Cara-Pau.

134 135
Roça
O trabalho na lavoura é bastante
importante para alimentação das
famílias nessa região. Foram
identificadas 2 roças no Martim de
Sá; 6 roças e 2 casas de farinha
ativas no Cairuçu; 9 roças e 2
casas de farinha ativas no Saco
das Anchovas. E 1 área agrícola
na Sumaca. A variedade agrícola é
essencial para garantir alimento o
ano todo, respeitando a sazonalidade
e ciclos próprios de cada planta.

Diversidade agrícola
Mandioca Maricá Laranja da terra Mangueira
(farinha)
Mandioca Bordão Laranja da China Cacau
(Farinha)
Aipim Vermelho Mexirica ou laranja cravo Abacate
Aipim Amarelo Limão Jaca
Aipim Seda Banana Prata Araçá
Inhame Banana Nanica (d’água) Coqueiro
Cará Roxo Banana da Terra Jussara
Cará Moela Banana Bacubita (ouro) Mamão
Feijão preto ou carioquinha Banana Santomé Pitanga
Café Banana São José Goiaba
Milho Banana Maçã Jabuticaba
Batata-doce Roxa Banana Cinza Cambucá
Abóbora Menina e Moranga Cana: Cera, Campista, Preta, Ubá, Melancia
Santa Helena
Abacaxi Quiabo Pepino

Para uma roça produtiva, é preciso que envolve os melhores meses


primeiro saber escolher o local: e as melhores luas para plantio.
observando a característica do solo, Arroz atualmente não é plantado na
a presença de determinadas espécies região, mas já houve roça de arroz no
que nascem na área, como bate o Cairuçu.
sol e como bate o vento. E depois
ficar atento ao calendário agrícola

136 137
Eu conheço duas qualidades fogo. Se a lua cheia vai cair no Para produzir uma farinha saborosa
de arroz: esse arroz princípio de agosto a gente limpa e de qualidade, a mandioca tem
pontiagudo que é da água, a terra em julho pra plantar no que ser plantada na lua minguante,
e tem do morro, esse arroz mais princípio de agosto. Se a lua cheia diferente de outros alimentos que
redondinho. Então esse aí nós de julho vai cair no final de julho, são bons de plantar na lua cheia.
já plantamos. Eu plantei aqui no pegando no mês de agosto, aí você Jovino explica porque:
costão, do morro, e bem deu arroz! tem que limpar em junho pra plantar
Deu bastante arroz, esse do morro em julho. Você plantando a
carregou bastante.
Primeiro nós plantávamos rama
rama na lua cheia,
Tem pessoas que pensam que podem perto um do outro, uma cova aqui, ela fica aguada. Se você
plantar em qualquer lugar e vai dar. outra aqui. Agora, não, tamo fazendo plantar na lua cheia,
Não dá. A gente já conhece pela mais longe. Sabe por quê? A rama sai toda mandioca pra fazer
terra. A terra que você olha e é uma mais tranquila, mais limpa, dá mais
terra assim lavada, uma terra limpa, raiz. Mais perto, ele cresce abafado,
farinha vai estar sempre
não adianta fazer derrubada que não tem [espaço] pra crescer, um aguada, mole, vai ter
não dá nada, uma terra assim que tira força do outro. Mesma coisa mais caldo, o polvilho
não tem estrume na terra, tá uma do feijão: se você plantar muito da farinha sai tudo no
terra só, aparecendo a terra, não junto, só dá pé, porque abafa muito.
caldo. Você vai torrar a
tem folha, não tem nada. E tem uma Plantando longe já sai mais liso. O
qualidade de mato, aí pra cima tem milho mesma coisa, tem que dar farinha, vai dar ponto,
palha braba, essa touceira assim, espaço um do outro. pega a farinha assim
um aqui, outro lá. Essa terra não sem polvilho, lavada,
dá nada. Agora, se é uma terra que Planta mês de agosto, o feijão e o
não tem uma goma,
você olha e tem outras qualidades milho. A rama também. O feijão a
de mato, você pega a terra, corta um época de colher é três meses. O
tá limpa. Agora você
pouquinho da terra, se tiver cheiro milho é quatro meses. O milho é uma plantando na minguante
de coco, cheiro de tatu, essa terra coisa que eu vou dizer pra você: pra já é mandioca enxuta, não
é boa. Se a terra não tem cheiro de mim, antigamente, só tinha esses tem muita água, daí você
nada, não é terra boa, não. dois meses: agosto e setembro.
Agora é julho, agosto, setembro,
faz farinha, a farinha tem
Encosta de morro, de frente pro outubro. Dá certo. Só mesmo se o polvilho. Então você tem
lado do vento sueste, não bota roça pessoal não quiser plantar. Porque que procurar a lua pra
porque ali é lugar frio. Lugar na eu plantei esse milho agora nesse plantar”
frente do sol sempre é uma terra mês de novembro. Mandioca é julho,
quente. agosto, setembro, vai indo até Jovino dos Remédios, 75, Cairuçu, 2019
outubro”
O tempo de trabalhar na roça é
Jovino dos Remédios,
julho, agosto, setembro, outubro. 75, Cairuçu, 2019
Começa em julho: roçar, derrubar,
queimar pra limpar a terra. Se tiver
de chuva, daí vai esperar o tempo
melhorar de sol... senão não pega

138 139
Extrativismo
O extrativismo é uma atividade fazem canoas um pouco mais curtas,
importante do modo de vida largas e bojudas do que as canoas
tradicional caiçara. As madeiras do feitas para navegar em águas mais
mato são usadas para fazer casa de calmas. Manequinho da Sumaca
farinha, rancho, canoas, remos e também aprendeu a fazer canoa.
pilões. O sapê que cobre as casas
é retirado das áreas de manejo das Os cipós e taquaras são recolhidos
roças de coivara. para confecção de tapitis, cestos e
peneiras, que são objetos da cultura
As canoas da região têm um formato material tradicional caiçara. Seu
peculiar, adaptado às características Jovino do Cairuçu é possivelmente o
do ambiente marinho da região. Seu único caiçara que ainda produz tapiti
Jovino, Maneco, Pedro e Claudio na região.

Madeiras para Madeiras Madeiras


Canoa para remo para
Artesanato
Ingá amarelo Cacheta branca Caxeta

Ingá flecha Guacá Guarana

Ingá Ferro Guarana Peloteira

Ingá Titica Cubitinga

Cedro Rosa Bicuíba

Timbaúba rosa

Timbaúba Branca

Louro (lasca mais, mas é


leve)
Sapopema

Aricurana

Garapubu (leve)
Cana Ficha
Cobi Ananhagatu
Carquera

140 141
Práticas de [A pessoa] sai de
cuidado um lugar que deu
lugar pra morar, comer
No Cairuçu, Saco das Anchovas tudo que é do bom e
e Martim de Sá, muitas pessoas plantado pela mão dela.
nasceram pelas mãos de Capitulina,
mãe de Seu Maneco, Jovino e
Quando ele vai pra cidade,
Dulcinéia, a parteira que dava comer as coisas, bem
assistência às gestantes. Ela dizer, envenenada, que
conduziu os partos de suas noras e tem remédio na comida,
filha. Também ela conhecia receitas
de remédios feitos com plantas
coisa comprada, tudo com
medicinais que coletavam na mata ou remédio. Não tem uma
mantinham no quintal. Havia pessoas coisa natural daqui da
que faziam benzimentos também, terra. Então a pessoa sai,
mas essa prática não tem ocorrido na
leva dois, até três anos
região.
bons, comida faz mal. Às
Os filhos do Seu vezes a pessoa não sabe
Maneco, ela que nem porque é, mas ela
foi a parteira. Daqui da tava comendo a comida
minha mulher [Dulcinéia], envenenada. Depois que
também. Só teve dois que você sai e cai na cidade...
vieram em Paraty, o resto um conhecido meu, um
foi tudo aqui, nascido aqui amigo meu, saiu pra
na mão da Capitulina cidade, não levou nem
Aprígio Ramos Santos, 68 anos,
dois anos. Morreu”
Cairuçu, 2019
Jovino dos Remédios, 75 anos, Cairuçu,
2019
A saúde também está muito
associada à alimentação. A comida
comprada no mercado, dizem, é
envenenada, e as pessoas hoje
adoecem mais porque comem esse
tipo de alimento. Com base nisso,
fazem a crítica à vida na cidade.

142 143
Infra-estrutura
comunitária e
serviços públicos
Nessa região mais remota da
península da Juatinga não há Aprígio: vem esses
serviços públicos de educação, saúde atuneiros pegar isca.
ou coleta de resíduos. A ausência Quando chega a época da
de escola força as famílias com criação da sardinha, vem pegar isca
crianças a se deslocarem para outras aqui.
comunidades ou para a cidade.
Josias: Por isso que tá acabando a
Em novembro de 2020 finalmente sardinha.
foram instalados sistemas de energia
solar no Cairuçu (6 módulos) e A: E hoje em dia também tem a
Martim de Sá (4 módulos), capazes aparelhagem.
de suportar a conexão de geladeiras.
Jovino: É, esses aparelhos que

Ameaças e os homens inventaram que tão


acabando com tudo.
conflitos
A: E porque no mar ninguém planta,
As principais questões que ameaçam só colhe, né?”
os moradores do Martim de Sá,
Cairuçu e Saco das Anchovas são: Aprigio Ramos dos Santos, 68 anos,
Jovino dos Remédios, 75 anos, Josias
os históricos conflitos fundiários Silva de Jesus, 47 anos, Cairuçu, 2019
envolvendo grileiros; a diminuição
do estoque pesqueiro, causada
pela pesca industrial, pela pesca Maneco do Martim de Sá também
de arrasto de camarão, pesca identificou como ameaça a poluição
predatória de sardinha e pela marinha (tendo como indicadores
presença de navios dentro da baía; a a alteração da água do mar e a
especulação imobiliária; e o turismo diferença no sabor dos peixes) e
predatório. também as mudanças climáticas
(a partir da percepção sobre a
redução da produtividade das árvores
frutíferas e do tamanho dos frutos).
Maneco não faz boas previsões para
o futuro do planeta. Considera que
as comunidades tradicionais estão
desaparecendo porque o mundo de
fora chega e é desfavorável para as
comunidades.
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Bandeiras de luta
do FCT
O FCT apoia desde seu surgimento
as famílias dessa região na defesa
de seu território tradicional,
atuando de maneira incisiva no
enfrentamento dos conflitos
fundiários por meio de assessoria
jurídica, campanhas e mobilização Além de um pai, ele
da opinião pública.
foi um professor
A luta continua. muito bom. Eu aprendi
Quem não luta não tudo com ele. E eu dou
vence. Isso foi deixado por continuidade a isso”
Deus pra nós” Claudio dos Remédios, 46 anos, Saco
Maneco das Anchovas, 2020
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Informativo POVOS
Território da Cajaíba
2021
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