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Idalice Ribeiro Silva Lima

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A demolição da construção
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no Brasil sombrio
Autores
Adriano Correia Afonso Celso Lana Leite
Alex Degan Artur Nogueira Santos e Costa
Christian Laval Clayton Cardoso Romano
Daniel França Oliveira Daniele Cristina de Souza
Edemilson Antunes de Campos Idalice Ribeiro Silva Lima
Ileizi Fiorelli Silva Ira Shor
Jacqueline Sinhoretto Janaina Francisca de Souza Campos Vinha
Jean Pablo Guimarães Rossi Larissa Brito Ribeiro
Lorene Figueiredo Lúcio Marques
Luis Felipe Miguel Márcio Ferreira de Souza
Marilena Chaui Michel Oliveira
Natália Aparecida Morato Fernandes Peter McLaren
Rafaela Cyrino Régia Cristina Oliveira
Ricardo Fernandes Pátaro Ricardo Musse
Wagner da Silva Teixeira
Conselho Editorial

Cristiane Tavares – Instituto Vera Cruz/SP


Daniela Mussi – UFRJ
Idalice Ribeiro Silva Lima – UFTM
Joanna Burigo – Casa da Mãe Joanna
Leonardo Antunes – UFRGS
Lucia Tennina – UBA
Luis Augusto Campos – UERJ
Luis Felipe Miguel – UnB
Maria Amélia Bulhões – UFRGS
Regina Dalcastagnè – UnB
Regina Zilberman – UFRGS
Renato Ortiz – Unicamp
Ricardo Timm de Souza – PUCRS
Rodrigo Saballa – UFRGS
Rosana Pinheiro Machado – Universidade de Bath/UK
Susana Rangel – UFRGS
Winnie Bueno – Winnieteca
Idalice Ribeiro Silva Lima
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A demolição da construção
7;lo1u‫ࢢޣ‬1-7-;7†1-2‫ޥ‬o
no Brasil sombrio

2021

1ª edição

Porto Alegre
© 2021 Idalice Ribeiro Silva Lima; Régia Cristina Oliveira

Projeto gráfico e edição: Editora Zouk


Revisão: Tatiana Tanaka
Capa: a partir da obra A ameaça, de Afonso Celso Lana Leite.
Direitos reservados. Fotografia de Thaneressa Lima.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


de acordo com ISBD
Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949

D383
A demolição da construção democrática da educação no Brasil sombrio
/ organizado por Idalice Ribeiro Silva Lima, Régia Cristina Oliveira. - Porto
Alegre, RS : Zouk, 2021.
524 p. ; 16cm x 23cm.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5778-032-9

1. Educação. 2. Política. 3. Democracia. 4. Brasil. I. Lima, Idalice Ribeiro


Silva. II. Oliveira, Régia Cristina. III. Título.
CDD 370
2021-2722 CDU 37
Índice para catálogo sistemático:
1. Educação 370
2. Educação 37

direitos desta edição reservados à


Editora Zouk
r. Cristóvão Colombo, 1343 sl. 203
90560-004 – Floresta – Porto Alegre – RS – Brasil
f. 51. 3024.7554

www.editorazouk.com.br
Dedicamos este livro a Paulo Freire, in memória, e a todos
e todas que lutam pela educação democrática no Brasil e
noutras partes do mundo.
A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’
em que vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir
um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse
momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro
estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na
luta contra o fascismo.

Walter Benjamin
Sumário

Apresentação
Idalice Ribeiro Silva Lima e Régia Cristina Oliveira
13

Prefácio
A escola democrática e seus inimigos
Christian Laval
23

Introdução
Democracia e a educação como direito
Marilena Chaui
29

O Escola Sem Partido e a emergência da direita que ousa dizer o nome


Luis Felipe Miguel e Michel Oliveira
45

Estado “com partido”, neoliberalismo e socialização


política rumo a uma sociedade de empreendedores
Rafaela Cyrino
69

A crise da escola republicana: a filosofia e seu lugar ameaçado no ensino


Adriano Correia
99

Liberdade acadêmica ameaçada: a ascensão da ultradireita no Brasil


Jacqueline Sinhoretto
107

A pesquisa científica em tempos sombrios:


o caso da pesquisa da Fiocruz sobre o uso de drogas no Brasil
e as contribuições das Ciências Humanas e Sociais
Edemilson Antunes de Campos
127
A universidade brasileira e as humanidades:
entre a formação autoritária e a lógica do mercado
Wagner da Silva Teixeira e Alex Degan
137
Nietzsche e Taylor: a ilusão da objetividade
e o produtivismo acadêmico entre “Qualis” e “Quantum”
Lúcio Marques
167
A neutralidade incompreendida pelo Movimento Escola Sem Partido
Larissa Brito Ribeiro
185

Quem tem medo dos estudos de gênero?


O Movimento Escola Sem Partido sob a perspectiva dos estudos das
masculinidades em articulação com a Sociologia das emoções
Márcio Ferreira de Souza
207

“Meninos vestem azul e meninas vestem rosa”: questões de gênero e


articulações político-religiosas do Movimento Escola Sem Partido
Jean Pablo Guimarães Rossi e Ricardo Fernandes Pátaro
241

Caminhos da reforma do Ensino Médio:


dos programas educacionais à MP 746/2016
Natália Aparecida Morato Fernandes
257

A Sociologia na Educação Básica:


dos currículos democráticos aos currículos genéricos (1996-2020)
Ileizi Fiorelli Silva
275

Diretrizes Curriculares e o Movimento Escola Sem Partido:


(des)caminhos de um campo em disputa
Artur Nogueira Santos e Costa
307
Para não dizer que não falei das flores que estavam plantadas no jardim: o
capitalismo agrário e seus efeitos devastadores na educação do campo
Janaina Francisca de Souza Campos Vinha
323
A educação do campo no Brasil Contemporâneo:
uma construção coletiva e em disputa na política educacional
Daniele Cristina de Souza e Clayton Cardoso Romano
345

Da terra à educação: ataques neoliberais e


neoconservadores aos povos indígenas
Daniel França Oliveira e Régia Cristina Oliveira
367

Processo de trabalho e gestão da educação:


liberdade de aprender e ensinar sob ameaça em tempos de pandemia
Lorene Figueiredo
405

Extremamente neoliberal e neoconservadora:


a construção antidemocrática da educação no Brasil
Idalice Ribeiro Silva Lima
429

Justiça, democracia, igualdade:


o legado de Paulo Freire na escola e na sociedade
Ira Shor
475

Educação democrática, volver!


Os extremos sob os olhos da pedagogia da esperança
Peter McLaren
481

Posfácio
A educação no governo Bolsonaro
Ricardo Musse
497

Notas biográficas das autoras e dos autores


515
Apresentação

Idalice Ribeiro Silva Lima


Régia Cristina Oliveira

O exercício de pensar o tempo, de pensar a técnica, de pensar o


conhecimento enquanto se conhece, de pensar o quê das coisas, o
para quê, o como, o em favor de quê, o contra quê, o contra quem
são exigências fundamentais de uma educação democrática à
altura dos desafios do nosso tempo.
Paulo Freire

Nos últimos tempos, vivenciamos a ascensão das forças antidemocráti-


cas e o desmoronamento das democracias liberais no Brasil e noutras partes
do mundo. Desde a trama política que se configurou no contexto das eleições
de 2014 e culminou no golpe de Estado de 2016, que destituiu uma presiden-
ta da República legitimamente eleita, abriu-se um cenário no qual diversos
atores aglutinados na nova direita, com seus tons fascistas, fortaleceram-se e
passaram a atuar na cena pública sob o signo do neoliberal conservadorismo,
demonizando e demolindo as políticas democráticas. As forças direitistas, as
tradicionais e as novas, engendraram assim o cenário político em que foram
forjadas as condições que levaram um candidato populista da extrema direita
à presidência da República, Jair Messias Bolsonaro, eleito democraticamente
nas eleições de 2018. Desde então, Bolsonaro passou a governar o país abaten-
do os valores democráticos e lançando por terra os princípios da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, assim como as condições de pos-
sibilidade da democratização da sociedade. Em seu (des)governo, instaura
políticas de destruição e morte – insolentemente anunciadas desde as suas
campanhas eleitorais para presidente – e arruína o que resta do frágil Estado
de bem-estar social que ainda assegura direitos sociais como educação.
No Brasil, a educação pública sempre percorreu um caminho tortuo-
so, mas, no momento presente, parece estar diante de uma avalanche anti-
democrática a soterrar as condições políticas que a asseguram como direi-
to social, apesar de essas condições estarem ainda muito longe da sonhada
igualdade educacional, e mesmo da educação para a igualdade e a liberdade.

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Desde o fim da ditadura militar, em meados da década de 1980, houve um


enorme esforço de construção democrática da sociedade principalmente pe-
los grupos sociais dominados, os quais, (re)criando seus espaços de política,
(re)fundaram suas associações, seus sindicatos e seus partidos, (re)organiza-
ram-se em movimentos sociais e, assim, colocaram-se na cena pública em
defesa dos direitos civis, políticos e sociais e da construção de políticas de-
mocráticas. Lutas essas que se fortaleceram a partir da Constituição de 1988
– também conhecida como Constituição cidadã – que, em nossos dias, está
por um fio, pois, desde o golpe de 2016, tem sido devastada por contínuos atos
de transgressão que empurram o Brasil para as sombras.
A educação, neste país, tem sido uma das principais bandeiras de todos
aqueles que defendem a democracia, ainda que esta, até então, tenha se cons-
tituído nos marcos do (neo)liberalismo. Uma democracia minimalista que
ostenta a igualdade política dos cidadãos, mas não lhes demanda participação
política ativa, assim como não abre ou garante possibilidades duradouras do
seu agir político, do seu exercício de cidadania. Com seus tons autoritários,
a vida política do Brasil tem sido sempre assim: a democracia só é possível
até o ponto em que as políticas que os grupos sociais dominados fazem nas-
cer, em suas lutas por direitos, não estorvam os interesses dos grupos sociais
dominantes, nem ameaçam a sua hegemonia. Num cenário político assim
constituído, as políticas educacionais que emergiram das disputas entre esses
grupos sociais restringiram-se a propiciar principalmente às classes populares
uma educação voltada aos imperativos do mercado e da moralidade tradicio-
nal, sem possibilitar uma educação emancipadora que constituísse cidadãos
engajados na democracia, capazes de pensar por si mesmos, de debater e deli-
berar os assuntos públicos, de tomar a palavra e agir politicamente.
Como mostra a história, nos embates por um dever ser da educação,
os oligarcas políticos jamais disfarçaram os seus temores de que o campo da
educação se tornasse fértil para a diversidade social e cultural, o pluralismo
de ideias, os dissensos e a democracia como a forma mesma da sociedade.
Historicamente, a educação pública tem sido tomada como uma força de con-
trole dos grupos sociais dominantes, os quais procuraram (e procuram) man-
ter a escola como espaço de reprodução de uma ordem social à sua imagem e
semelhança. Assim colonizando-a, eles não fazem senão perpetuar uma lógica
social que naturaliza as desigualdades sociais e pereniza uma cultura e uma
história pretensamente universais que não são senão seu espelho, suprimindo
a presença de outras culturas, de outras histórias. Soterram quaisquer saberes
e práticas que confrontem a ordem social e política que é como é. Destituem

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Apresentação

a imaginação social esperançosa, no dizer freireano, e quaisquer pensamen-


tos, discursos, atos, palavras, gestos e imagens que possam engendrar outras
culturas escolares, outras formas sociais esperançosamente melhores e mais
justas. A educação autoritária que aí se ergue suprime o pensamento crítico e
entroniza o pensamento por clichês, destituindo a educação como prática da
liberdade, no dizer de Paulo Freire, em que os sujeitos constituem-se critica-
mente e passam a interpelar e a irromper o que se apresenta como uma ordem
social inexorável; a perceber o campo das possibilidades, das escolhas, das
alternativas; a vislumbrar caminhos que possam levar à construção de uma
sociedade democrática sob o signo da justiça social.
Nos últimos tempos, a democratização da educação pública parece ter
se tornado insuportável para os grupos sociais dominantes. As instituições
educacionais públicas têm sido vilipendiadas pelas forças privatistas e obscu-
rantistas que dominaram o cenário social e político brasileiro. Cada vez mais,
a liberdade acadêmica é duramente ameaçada e encurralada sob a insígnia
da “neutralidade da educação”, da “desmarxização” e do “desaparelhamento
ideológico e político”, no dizer dos arautos da direita e seus extremos. Os pro-
fessores e os estudantes passaram a vivenciar o cerceamento da liberdade de
ensinar e de aprender assegurada pela Constituição de 1988, principalmente
no que concerne à grande área das ciências humanas, que, claro, têm o huma-
no não só como objeto de estudo, mas também de ensino e, por isso mesmo,
tantas vezes nos desafiam a pensar o vivido e o que estamos a viver. Assim
sendo, as ciências humanas não se esquivam das suas conexões com a vida
social e política e se colocam na contramão das perspectivas educacionais
dos adeptos do Movimento Escola Sem Partido (Mesp) e demais movimentos
antidemocráticos que ganharam vigor desde o engendramento do golpe de
Estado de 2016, que ainda plasma a vida política brasileira. Sob o manto do
que dizia ser a “neutralidade da educação” e a “pluralidade de ideias”, o Mesp
semeou no campo educacional as sementes da demolição da construção de-
mocrática da educação.
Num país onde o Estado de Direito se dissolve e a democracia se des-
morona, desfazendo a Constituição cidadã que assegura os direitos sociais,
vemos crescer, a cada dia, os ataques à educação e a demais bens sociais. Isso
acontece justamente num contexto em que se ampliava o acesso dos mais des-
favorecidos à educação pública e gratuita, em particular com a reestruturação
e expansão das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) e as políticas de
cotas sociais e raciais e de construção de currículos escolares mais plurais em
que se inscrevem as abordagens educacionais da diversidade social e cultural.

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Nessa conjuntura de desdemocratização das políticas educacionais,


somos instigados a uma defesa intransigente da construção democrática da
educação. É com esse objetivo que trazemos este livro ao público.1 Escrito a
muitas mãos de diferentes matizes disciplinares das ciências humanas, o pro-
jeto desta coletânea se constituiu aos poucos, à medida que professores de
diversas universidades públicas aderiam à nossa proposta. Parte dos textos
aqui inscritos resultou dos debates em torno das investidas do Mesp contra a
educação pública e as ciências humanas, realizados em diversas instituições
educacionais brasileiras.2 Com o tempo, juntaram-se ao projeto deste livro
os escritos de intelectuais público(a)s engajado(a)s na defesa da democracia
avassalada pelos autoritarismos da direita e seus extremos, com o(a)s quais
tivemos oportunidade de dialogar por meio de suas aulas, de seus livros e de
suas palestras inspiradoras que deixaram marcas indeléveis em nossas trajetó-
rias acadêmicas e em nossas experiências de vida.
Num cenário de despejo da democracia, somos todos incitados a de-
marcar nossos posicionamentos políticos, a tomar partido não só na coisa
política, mas também na coisa educacional. Por isso, não hesitamos em re-
correr aos professores e às professoras que inscreveram aqui suas vozes tanto
para discutir a grave situação política em que vivemos quanto para reavivar
as ideias e as lutas democráticas e (re)acender o fogo da esperança de que
ainda é possível um mundo menos injusto. Eles e elas se juntaram a nós para
uma tomada da palavra na cena pública que é este livro. Assim, falamos aqui
do lugar dos que acreditam que a democracia não pode se curvar à ética do
mercado e do conservadorismo moral, como diria Paulo Freire. E, refutando
a concepção de educação como mercadoria e de escola como empresa, colo-
camo-nos numa defesa apaixonada da educação democrática como possibi-
lidade de pensar e construir um mundo social melhor, fundado em valores
democráticos.

1 Projeto de livro este que se iniciou no término da segunda edição das Jornadas de Discussão
intituladas Educação, Ideologias e Movimento Escola Sem Partido, realizadas na Universidade
Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Política, Trabalho,
Educação e Cultura (Gepptec), vinculado ao Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão em
Filosofia e Ciências Sociais (Lafics) do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais do Instituto
de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais (Ielachs).
2 Por exemplo, as Jornadas de Discussão já mencionadas.

16
Apresentação

Na abertura do livro, encontram-se os textos introdutórios que nos


conduzem às discussões sobre a demolição da construção democrática da
educação no “Novo Brasil” que emergiu do golpe de 2016. Christian Laval,
em seu prefácio, ilumina a nossa reflexão sobre a escola democrática e seus
inimigos, partindo da apreensão do autoritarismo neoliberal que avassala o
Brasil e outras partes do mundo. Afirma que a educação é um bem comum
supremo e a sociedade democrática só poderá se efetivar se engendrarmos a
constituição do que Paulo Freire chamou de “mentalidades democráticas”. Por
sua vez, Marilena Chaui nos convida à reflexão sobre democracia e educação
como direito, explicando que a política democrática se erige como um contra-
poder que controla, muda e dirige as ações do Estado e o poder dos governan-
tes, mas se desfaz na constituição da nossa sociedade historicamente marcada
pelas desigualdades sociais, ainda mais acentuadas pelo neoliberalismo que se
ergue em novas formas de totalitarismo.
Entrelaçando-se aos fios introdutórios do livro, Luis Felipe Miguel e
Michel Oliveira apresentam suas discussões sobre a emergência da nova direi-
ta no cenário político brasileiro e o movimento em defesa do programa Escola
Sem Partido como uma arena em que esses atores se aglutinam e discutem as
suas investidas contra a educação democrática. Apontam a noção de “neutra-
lidade” como dispositivo discursivo com que o Escola Sem Partido procura
invalidar não só a educação crítica, mas também o conjunto dos valores do
campo progressista.
Rafaela Cyrino examina o posicionamento político e ideológico do
Estado na constituição da sociedade neoliberal, o qual assume o papel de im-
plementar políticas educacionais sintonizadas com as diretrizes dos organis-
mos multilaterais, fundações de direito privado e think-tanks empenhados em
alavancar a socialização política fundante da sociedade de empreendedores.
Aproximando-se do tema, Adriano Correia analisa a crise da escola republica-
na engendrada pelo neoliberalismo escolar, com suas pretensões de produzir
indivíduos “úteis” em vez de cidadãos com capacidade crítica, que pensem
por si mesmos. Interroga o lugar da filosofia na educação para a sociedade de
empreendedores e reafirma a sua contribuição para a educação democrática.
Na sequência, encontram-se as discussões mais centradas nas ofensivas
contra as universidades públicas e as ciências. Jacqueline Sinhoretto expõe as
reconfigurações do cenário político brasileiro a partir do golpe de 2016 e a
ascensão da extrema direita, indicando os ataques à democratização da edu-
cação e às ciências, o cerceamento da liberdade acadêmica e o solapamento

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da autonomia universitária na gestão e produção de conhecimento, com ênfa-


se nas ingerências do governo Bolsonaro. Por sua vez, Edemilson Antunes de
Campos aborda o contexto autoritário dos ataques às ciências, expondo o caso
da pesquisa da Fiocruz que refutou o caráter epidêmico do uso de drogas con-
sideradas ilícitas e as contribuições das ciências sociais para as reflexões acer-
ca do tema. Em seguida, Wagner da Silva Teixeira e Alex Degan reconstituem
o percurso da formação da universidade brasileira e das suas reformas, pon-
tuam as políticas de democratização da educação superior pública e discutem
as ofensivas antidemocráticas que acometeram as universidades públicas e as
humanidades após o golpe de 2016, trazendo reflexões sobre a importância da
contribuição destas para a edificação da sociedade democrática.
A discussão sobre as ideias de objetividade e de neutralidade na pro-
dução do conhecimento e nas práticas educacionais se fazem presentes parti-
cularmente em dois capítulos seguintes. Lúcio Marques analisa os princípios
epistêmicos da verdade/conhecimento, considerando os paradigmas episte-
mológicos orientados pela administração científica do saber e a busca da ver-
dade sob o manto da objetividade científica. Interrogando a ideia de verdade
“objetiva”, reflete sobre a suposta neutralidade do Estado e o lugar do pensa-
mento no âmbito da universidade sob o produtivismo acadêmico. Na sequên-
cia, Larissa Brito Ribeiro demonstra a incompreensão da noção weberiana de
neutralidade axiológica pelos adeptos do Mesp, argumentando que os deslo-
camentos do contexto e da constituição da obra de Max Weber, tomada como
referência pelos mespianos, indicam as distorções dos usos dessa noção para
a defesa de uma concepção pedagógica criticada pelo autor.
Sobre as ofensivas contra os estudos de gênero, Márcio Ferreira de Souza
discute os estudos sobre masculinidades em articulação com a sociologia das
emoções e as questões educacionais postas pelo Mesp. Reflete sobre a cons-
trução de um ethos de masculinidade assentado na violência como princípio
norteador de sociedades patriarcais e as contribuições desses estudos para a
superação das desigualdades de gênero. Por sua vez, Jean Pablo Guimarães
Rossi e Ricardo Fernandes Pátaro discorrem sobre as articulações político-reli-
giosas contra os estudos de gênero nas escolas e problematizam o que o Mesp
entende por “ideologia de gênero”.
Sobre a Reforma do Ensino Médio, Natália Aparecida Morato Fernandes
analisa os programas educacionais que procuraram delinear uma nova con-
figuração desse nível de ensino e discute a reforma imposta pela Medida
Provisória 746/2016, trazendo reflexões acerca do redesenho curricular do

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Apresentação

Ensino Médio e dos retrocessos dessa reforma, a exemplo da ruptura com a


perspectiva da formação integral.
Nas discussões sobre as políticas de currículo, Ileizi Fiorelli Silva discute
a presença da sociologia nos currículos do ensino médio formulados após
1996, os quais fortaleceram as ciências de referência. Argumenta que, após
o golpe de Estado de 2016, a reforma do ensino médio e a BNCC enfraque-
ceram as ciências sociais como disciplinas curriculares, afetando a presença
da Sociologia e dos cientistas sociais nas escolas. Da perspectiva da História,
Artur Nogueira Santos e Costa faz uma discussão sobre diretrizes curriculares,
tomando o currículo como um campo de disputas pelo dever ser da educação.
Reflete sobre os (des)caminhos do campo educacional que, nos últimos anos,
tem sido tensionado pelo Mesp, destacando o avanço de forças ultraconserva-
doras que passaram a disputar as diretrizes curriculares e corroer a democra-
tização da educação.
Sobre a desconstrução das políticas de escolarização do/no campo,
Janaina Francisca de Souza Campos Vinha apresenta suas reflexões sobre a
conjuntura agrária do período após o golpe de 2016 e o desmantelamento
da construção da educação do/no campo. Segundo a autora, o paradigma
do capitalismo agrário se apresenta como uma visão de mundo hegemôni-
ca para o Estado, o qual se direciona ao agronegócio e ataca as conquistas
dos grupos populares do campo, a exemplo do fechamento das escolas ru-
rais e da extinção do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(Pronera). Confluindo para esse tema, Daniele Cristina de Souza e Clayton
Cardoso Romano discutem as lutas pela construção da educação do campo
no Brasil e os desafios enfrentados num cenário em que vigoram as políticas
antidemocráticas. Em referência a Gramsci, refletem sobre a escola do campo
como um projeto contra-hegemônico assentado nos interesses e nas reivin-
dicações dos trabalhadores campesinos, o qual tem sido minado por atores
antidemocráticos.
Daniel França Oliveira e Régia Cristina Oliveira examinam a política de
Bolsonaro para a educação (evangelizadora) indígena a partir de sua localiza-
ção no que Viveiros de Castro conceitua como ofensiva final aos povos indí-
genas, que é um produto da aliança entre o capital, evangélicos, militares e o
grupo de extrema direita que compõe o governo brasileiro. Analisam o modo
como o neoliberalismo e o neoconservadorismo operam localmente a partir
de íntimas conexões entre a expansão da propriedade privada, do moralismo
e do racismo, assim como as narrativas do governo Bolsonaro no processo de

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demolição das instituições nacionais de proteção aos povos indígenas, seus


territórios e sua cultura.
Adentrando nas discussões sobre as transformações econômicas das
últimas décadas, Lorene Figueiredo discorre sobre as reconfigurações do pro-
cesso de trabalho e a gestão da educação e de outros serviços públicos sob os
imperativos do Estado gerencial. Problematiza o redesenho da organização do
trabalho docente que se virtualiza no contexto excepcional da crise sanitária
decorrente da pandemia de Covid-19 e expõe os impactos das atividades la-
borais remotas na vida da comunidade escolar e universitária.
Sobre a retomada à direita da educação, Idalice Ribeiro Silva Lima discu-
te a reconstrução das políticas antidemocráticas da educação no decurso dos
governos pós-golpe de 2016. Na apreensão da “guerra cultural” sob o signo do
neoliberal conservadorismo, explica que os atores aglutinados na nova direita
engolfaram o campo educacional e passaram a defender a desdemocratização
da educação, tencionando destituí-la como direito social e como condição de
possibilidade da construção da sociedade democrática.
Em memória de Paulo Freire, Ira Shor nos leva a revisitar as contri-
buições do educador da autonomia, mostrando como a pedagogia de Paulo
Freire entrelaça os fios da(s) linguagem(ns) com os das experiências de vida
e instaura um processo educativo emancipador em que prevalecem a relação
dialógica igualitária e a escuta ativa entre educadores e educandos. Para o
autor, o legado de Paulo Freire não é seu método pedagógico em si, mas uma
filosofia que nos instiga a pensar a educação como “prática da liberdade”.
Se, no campo educacional, os adeptos da extrema direita passaram a
ultrajar as contribuições das teorias críticas fundantes da educação democrá-
tica, nomeando-as como “marxismo cultural”, Peter MacLaren nos convida à
agência freireana para o enfrentamento ao projeto de sociedade arquitetado
pelos extremistas de direita. Numa defesa apaixonada da educação crítica e
do legado de Paulo Freire, concita-nos a manter acesa a chama da esperança
e a tomar o “otimismo da vontade” gramsciano e a utopia concreta blochiana
como esteios reluzentes das nossas lutas por uma sociedade justa.
Ao final, o(a) leitor(a) encontrará o posfácio de Ricardo Musse, que
analisa as ações do governo Bolsonaro, evidenciando a instabilidade e a pa-
ralisia que marcam a gestão do Ministério da Educação e as incertezas dos
efeitos desse modo descarrilado de operar os rumos das (anti)políticas de
educação no Brasil.

20
Apresentação

Para além do questionamento e da análise crítica desse cenário de de-


molição da democratização da educação no Brasil, os autores e as autoras
aqui reunido(a)s nos convidam a pensá-la como condição de possibilidade da
sociedade democrática e a transbordar os diques neoliberais e neoconserva-
dores que se erguem no campo educacional para conter a construção demo-
crática da educação. Na contracorrente da sociedade autoritária, instam-nos
a resistir aos processos colonizadores da educação empreendidos pelos grupos
sociais dominantes e dirigentes situados na direita política e seus extremos e
a engendrar o que Paulo Freire chamou de “mentalidades democráticas” que
possam construir e fortalecer a democracia no Brasil. Deixamos aqui o nosso
convite à leitura dos escritos que ora vêm a público e agradecemos profunda-
mente a generosidade dos autores e das autoras que se colocaram na defesa
da democracia e da educação crítica e esperançosa e assim fizeram a boniteza
deste livro.

“Novo Brasil”, primavera de 2020.

As organizadoras

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Prefácio
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Christian Laval

Assistimos atônitos e, por vezes, aterrorizados ao surgimento de formas


políticas monstruosas que pensávamos pertencer a um passado já distante.
É o que ocorre com os neoliberalismos autoritários ou autoritarismos neo-
liberais, realidades híbridas que prosperam em múltiplas crises engendradas
por uma globalização desigual e destrutiva. O Brasil de Bolsonaro, os Estados
Unidos de Trump, a Turquia de Erdogan, para citar apenas alguns exemplos
entre diversos outros governos do gênero, não devem nos desviar da única
razão para lutarmos coletivamente hoje: a causa da democracia. Não me re-
firo aqui a uma forma de democracia minimalista que consiste em pedir aos
eleitores que, de quatro em quatro anos, ou de cinco em cinco, saiam da pas-
sividade e votem em dirigentes sobre os quais não têm nenhum controle. Ao
utilizar o termo democracia, refiro-me a um certo tipo de sociedade em que
todas as cidadãs e todos os cidadãos são chamados a participarem ativamente
da coisa pública, em todos os níveis e em todos os domínios da existência co-
letiva. Muitos poderiam argumentar que essa democracia não existe em parte
alguma, pois, em todos os lugares, oligarquias tradicionais, classes dominan-
tes e proprietárias, forças armadas, partidos totalitários ou burocracias con-
fiscaram o poder dos cidadãos. A soberania popular poderia parecer assim
como uma esperança sempre frustrada. No entanto, que seria de um mundo
sem esperança? O que seria de uma sociedade completamente desesperada de
si mesma, crendo estar condenada a reviver, sem cessar, esse mesmo pesadelo
de um capitalismo canibal e de um Estado predador?
É preciso ir “contra os ventos e as marés”, como se diz, rumo ao cabo
da democracia. Nessa direção, a educação desempenha um papel central.
Todavia, a escola do passado e a do presente proporcionam, quando muito,
apenas frágeis esboços do que deveria ser a educação democrática em uma
sociedade verdadeiramente democrática. Seu objetivo? Formar cidadãs e ci-
dadãos que adquiram o sentimento íntimo de sua dignidade pessoal e de sua

1 Tradução de Idalice Ribeiro Silva Lima e Rafaela Cyrino.

23
_ubvࢢ-m-ˆ-Ѵ

capacidade de agir em comum. Há muito tempo, em todo o mundo, essa es-


cola foi tomada como um objetivo a ser alcançado por educadores, filósofos,
progressistas e democratas coerentes consigo mesmos. A educação, em uma
sociedade democrática, deve dar a cada um os meios para uma verdadeira
autonomia pessoal e coletiva. Saberes, é claro, mas também disposições para
agir em maior igualdade com os outros e vontade de cooperar na criação cole-
tiva, contínua e possivelmente feliz que é uma sociedade. O que se espera, em
primeiro lugar, de uma educação democrática é que ela engendre aquilo que
Paulo Freire acertadamente chamava “mentalidades democráticas”.

Os quatro princípios da educação democrática

Tentemos imaginar, por um momento, o que deveria ser essa educação


verdadeiramente democrática: aquela que orientaria a nossa ação cotidiana
como educadores. Ela obedece a quatro ou cinco princípios básicos, articu-
lando-os – o que não é nada fácil.
O primeiro é a busca da igualdade nos acessos concretos à cultura e
ao saber. Para começar, ela deve disponibilizar tudo o que é necessário para
que os estudantes tenham, em toda parte, as melhores condições possíveis de
estudos. Isso requer recursos para a escola pública. Uma sociedade democrá-
tica coloca em uma espécie de grande fundo comum os meios necessários,
proporcionais à riqueza coletiva de cada país, para fornecer os bens comuns
supremos, isto é, educação, saúde e moradia. Em seguida, com todos os dados
disponíveis, especialmente os sociológicos, implementa uma pedagogia exi-
gente e adaptada ao maior número possível de pessoas, que explicite racional-
mente as abordagens cognitivas da aprendizagem para que esta não se curve à
“arbitrariedade cultural” das classes mais favorecidas.
O segundo princípio é a transmissão de cultura comum, do mais alto
nível possível, fundada em abordagens racionais, sem uma especialização de-
masiadamente precoce e excessiva dos currículos, propiciando, assim, o aces-
so aos saberes mais indispensáveis à autonomia de julgamento, à cooperação
social, à criatividade individual e coletiva. Desse modo, nenhuma censura,
nenhum limite a priori, nenhum tabu poderão entravar a liberdade de pensar,
a curiosidade intelectual, o conhecimento dos direitos de cada um e, em pri-
meiro lugar, o conhecimento do direito de conhecer.
O terceiro princípio é o desenvolvimento da cooperação na aprendiza-
gem, em substituição ao princípio exclusivo da concorrência entre os alunos.

24
Prefácio
;v1oѴ-7;lo1u‫ࢢޣ‬1-;v;†vbmblb]ov

O esforço individual é indispensável, mas só tem sentido em relação a uma


progressão do coletivo na classe e no estabelecimento escolar. Uma educação
democrática tem como objetivo e ideal o indivíduo social plenamente desen-
volvido, que deseja aprender e agir com os outros.
O quarto princípio é a organização democrática do próprio estabe-
lecimento escolar, que permite uma participação ativa dos professores, dos
alunos, das famílias, dos cidadãos constitutivos da comunidade local no go-
verno da escola. Assim, a escola, numa educação democrática, é concebida
como uma pequena república, em que se aprende a democracia, praticando-a
coletivamente.
Além desses, ouso acrescentar um quinto princípio concernente às re-
lações com o saber, que talvez seja o mais difícil de ser posto em prática, vis-
to que depende de fatores ao mesmo tempo objetivos e subjetivos, os quais,
em geral, são complexos demais para se apreender e parecem, muitas vezes,
remontar à “história profunda” de cada um: o desejo de saber, o prazer de
compreender.
Decerto, é difícil conciliar esses princípios, e grandes obstáculos colo-
cam-se em seus caminhos. Contudo, eles devem ser lembrados sempre como
fins reguladores da ação educacional. Eles são as bússolas dos educadores da
democracia, os faróis dos formadores dos cidadãos ativos. Esses princípios
não dissipam a dificuldade intrínseca da educação, que, como diria Freud,
é um “trabalho impossível”, que consiste em agir sobre os outros para que
conquistem a sua liberdade. A via da educação democrática não é portanto
absurda, quando enuncia que essa liberdade só pode ser alcançada pratican-
do-a coletivamente na escola.

A insuportável liberdade do conhecimento, a intolerável soberania popular

Essa educação só tem sentido se estiver ancorada num ideal e num pro-
jeto de soberania popular. Só se torna concebível a partir do momento em que
se afirma que são os cidadãos comuns, “os de baixo”, isto é, o maior número de
pessoas, que devem escolher seu próprio destino, não para o colocar nas mãos
dos mais poderosos, mas para determiná-lo, por eles mesmos, em órgãos so-
beranos ao seu alcance nos lugares onde vivem e trabalham.
Todavia, deparamo-nos com uma nova dificuldade: como os pode-
res instituídos poderiam aceitar uma educação orientada para um objetivo
tão radical quanto o que consiste no exercício do poder pelos “de baixo”?

25
_ubvࢢ-m-ˆ-Ѵ

Entendemos então o desafio a ser enfrentado pelos educadores e a sua res-


ponsabilidade na defesa de uma escola para todos, de uma pedagogia coope-
rativa, de uma cultura comum, de bom nível, mas também ponderamos sobre
a dificuldade da tarefa que lhes é própria: resistir a todos os que não querem
a educação democrática porque, acima de tudo, enjeitam a soberania popular.
Esses inimigos são, ao mesmo tempo, diversos e poderosos. Há eviden-
temente todos os velhos adversários da liberdade de pensar e de agir: os fiéis
amigos da hierarquia social e das superstições, os adoradores do mundo de-
sigual e os adeptos do autoritarismo e do adestramento militar da juventude.
As Luzes têm quase três séculos, mas uma espécie de obscurantismo vindo da
profundeza dos tempos ainda acomete as sociedades como uma força de inér-
cia a impedir a chegada da era da democracia. A esses adversários juntaram-
-se os novos inimigos oriundos da modernidade, não menos perigosos para a
liberdade de pensar e agir. Em nome da modernidade capitalista, pretendem
fazer da escola uma empresa a serviço da economia capitalista, pois, para eles,
a única vocação da educação é “produzir capital humano”, evidentemente em
diferentes “níveis”, visto que tanto os inferiores como os superiores são neces-
sários para a empresa.
A desigualdade, a concorrência, o lucro são os princípios da educação
capitalista. Esses inimigos, que professam um neoliberalismo escolar e uni-
versitário e intentam privatizar as escolas e as universidades, defendem que o
conhecimento seja tratado como uma mercadoria, um bem privado destinado
exclusivamente à maximização pessoal de vantagens econômicas e sociais.
Acontece, e é terrível, que esses inimigos da educação democrática,
os arcaicos e os modernos, fazem uma aliança embasada na sua profunda
e comum hostilidade à soberania popular. É o caso dos países onde se im-
pôs o neoliberalismo autoritário, nomeadamente no Brasil, na Hungria ou na
Turquia. Se o único conhecimento permitido deve ser “útil”, “eficaz” e “perfor-
mático”, o resto pode permanecer no domínio da ignorância, do fanatismo ou
da mentira. Estes são os termos do pacto obscurantista.

A educação, bem comum mundial

A essa aliança regressiva é preciso contrapor a firme convicção de que


a educação não pertence a uma casta, a uma classe ou a uma igreja. Ela deve
ser instituída como um “bem comum” inseparável da soberania popular, para
a qual é uma das condições, junto com a liberdade de pensar e agir. Decerto,

26
Prefácio
;v1oѴ-7;lo1u‫ࢢޣ‬1-;v;†vbmblb]ov

não basta enunciar um postulado filosófico para que o projeto cosmopolita de


uma educação democrática adquira forma. Em cada país, a situação é diferen-
te, mais ou menos difícil, mais ou menos perigosa para os verdadeiros educa-
dores. Mas o que é certo é o objetivo a ser perseguido: que a educação, assim
como a saúde, possa finalmente ser instituída como um bem comum mundial.
Essa era já a promessa da Declaração Universal dos Direitos do Homem em
1948, quando enunciava, no seu artigo 26o, que “todas as pessoas têm direito
à educação” e acrescentava: “A educação deve visar ao pleno desenvolvimento
da personalidade humana e ao reforço do respeito dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais”. Façamos todos, em toda parte, com que, um dia,
esse voto, expresso após o aniquilamento do nazismo, se torne uma realidade
mundial.

27
Introdução
Democracia e a educação como direito
Marilena Chaui

Sejamos realistas: peçamos o impossível.


Grafite estudantil em 1968

I.
Pesquisas do CPDOC e do Iser, realizadas em 2018, buscaram verificar
o que a população brasileira entende por direitos do cidadão e, entre estes,
quais são considerados por ela como os mais fundamentais. Os resultados
foram alarmantes:
– 45% dos entrevistados não tinham ideia do que é um direito do cida-
dão e tendiam a identificar “direito” com “o que é correto” ou “o que é certo”,
dando uma interpretação moral para um conceito sociopolítico;
– dos 55% restantes, que entendiam, mesmo que vagamente, o que é
um direito do cidadão, praticamente todos colocaram a segurança pessoal
como o primeiro dos direitos e apenas 11% consideraram a educação como
um direito do cidadão;
– desses 11%, apenas 5% disseram que o direito à educação deve ser
assegurado pelo Estado por meio da escola pública gratuita.
Curiosamente, porém, ao serem indagados sobre suas aspirações e de-
sejos, 60% dos entrevistados colocaram a instrução, juntamente com o empre-
go, entre suas aspirações principais.
Na mesma época, uma outra pesquisa, dessa vez circunscrita ao estado
de São Paulo, feita pelo jornal O Estado de S.Paulo, indagava a opinião da
população sobre a escola pública de Ensino Fundamental. As respostas foram
de dois tipos: os entrevistados pertencentes às classes populares afirmaram
que a escola já havia sido melhor, mas que a violência, de um lado, e a apro-
vação automática dos alunos, de outro, haviam prejudicado a qualidade do
ensino; por sua vez, os entrevistados pertencentes à classe média, que haviam
ou perdido o emprego ou tido uma redução salarial, explicaram que os filhos
sempre haviam frequentado escolas particulares e que somente pela força das
circunstâncias adversas estavam sendo obrigados a cursar a escola pública, o
que para eles era um verdadeiro castigo, uma humilhação e um infortúnio,

29
Marilena Chaui

pois a qualidade do ensino é péssima e tornará quase impossível a entrada


numa faculdade.
As três pesquisas indicam que:
– poucos brasileiros compreendem que a educação é um direito;
– os que a compreendem assim não atribuem ao Estado o dever de
assegurar esse direito;
– o desejo de instrução é forte porque, frequentemente, vem associado
à possibilidade de um emprego melhor;
– as classes populares lastimam a perda da qualidade do ensino nas
escolas públicas;
– a classe média abomina a escola pública porque não oferece instru-
mentos para a competição pelo ensino universitário e, consequentemente,
para a obtenção de empregos mais qualificados.
Se cruzarmos os dados dessas pesquisas, obteremos a seguinte inter-
pretação: a educação não é percebida como um direito por três motivos prin-
cipais: 1) porque a maioria da população ignora o que seja um direito do
cidadão; 2) porque a educação não é encarada sob o prisma da formação e
sim como instrumento para a entrada no mercado de trabalho; 3) a escola
pública é desvalorizada porque não é um instrumento eficaz para a entrada
nesse mercado.
Somos, assim, levados a duas indagações: em primeiro lugar, por que
há desconhecimento do que sejam os direitos da cidadania e, entre eles, o
direito à educação? Em segundo, por que a escola é imediatamente associada
ao mercado?
Essas duas perguntas nos dirigem, de um lado, à necessidade de com-
preendermos o que é uma sociedade democrática e, de outro, à exigência de
compreendermos os efeitos do neoliberalismo sobre a educação.

II.
Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como
regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que
o pensamento e a prática liberais identificam liberdade e competição, essa de-
finição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à
competição econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política
entre partidos que disputam eleições; em segundo, que há uma redução da lei
à potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade
contra a tirania, pois a lei garante os governos escolhidos pela vontade da

30
Introdução
Democracia e a educação como direito

maioria; em terceiro, que há uma identificação entre a ordem e a potência


dos poderes executivo e judiciário para conter os conflitos sociais, impedindo
sua explicitação e desenvolvimento por meio da repressão; e, em quarto lugar,
que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é
encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida, no plano legislativo, pela
ação dos representantes, entendidos como políticos profissionais, e, no plano
do poder executivo, pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos
quais cabe a direção do Estado.
A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado
na ideia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no pro-
cesso eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes
e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.
Todavia, a democracia ultrapassa a ideia de um regime político, pois
ela define a forma da própria sociedade. Em outras palavras, ela não se refere
apenas à forma do governo, mas à forma geral de uma sociedade, a sociedade
democrática. Sob esse aspecto, os principais traços da democracia poderiam
ser assim resumidos:
1) forma sociopolítica definida pelo princípio da isonomia (igualdade
dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em pú-
blico suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo
como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém
está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das
quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa;
indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema
da democracia numa sociedade de classes é o da manutenção de seus princí-
pios – igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real;
2) forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito
é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para
que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do
trabalho dos e sobre os conflitos. Daí uma outra dificuldade democrática nas
sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a
forma da contradição e não a da mera oposição?
3) forma sociopolítica que busca enfrentar as dificuldades acima apon-
tadas, conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real
das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do conflito e a exis-
tência de contradições materiais, introduzindo, para isso, a ideia dos direitos
(econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos direitos, os desiguais

31
Marilena Chaui

conquistam a igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a parti-


cipação nos direitos existentes e sobretudo para criar novos direitos. Estes são
novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são
diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos,
novos sujeitos políticos que os afirmaram e os fizeram ser reconhecidos por
toda a sociedade;
4) pela criação dos direitos, a democracia surge como o único regime
político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir o
novo como parte de sua existência e, consequentemente, a temporalidade é
constitutiva de seu modo de ser;
5) única forma sociopolítica na qual o caráter popular do poder e das
lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os di-
reitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das classes
populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a classe domi-
nante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna, permitindo sua
passagem de democracia liberal à democracia social, encontra-se no fato de
que somente as classes populares e os excluídos (as “minorias”) sentem a exi-
gência de reivindicar direitos e criar novos direitos;
6) forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é
garantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de au-
toridade, mas também pela existência das eleições, pois estas (contrariamente
do que afirma a ciência política) não significam mera “alternância no poder”,
mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e
que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário
para isto. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes,
mas eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem
do poder, repondo o princípio afirmado pelos romanos quando inventaram a
política: eleger é “dar a alguém aquilo que se possui, porque ninguém pode
dar o que não tem”, isto é, eleger é afirmar-se soberano para escolher ocupan-
tes temporários do governo.
7) uma sociedade – e não um simples regime de governo – é demo-
crática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes
da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais
profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui
direitos e essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade
democrática social realiza-se como um contrapoder social que determina, di-
rige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.

32
Introdução
Democracia e a educação como direito

O coração da democracia é a criação e conservação de direitos.


O que é um direito? Um direito difere de uma necessidade ou carên-
cia e de um interesse. De fato, uma necessidade ou carência é algo particular
e específico. Alguém pode ter necessidade de água, outro, de comida. Um
grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais. Há tantas
necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais. Um
interesse também é algo particular e específico, dependendo do grupo ou da
classe social. Necessidades ou carências, assim como interesses, tendem a ser
conflitantes porque exprimem as especificidades de diferentes grupos e classes
sociais. Um direito, porém, ao contrário de necessidades, carências e interes-
ses, não é particular nem específico, mas geral e universal, válido para todos
os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque é o mesmo e válido para
todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque, embora diferencia-
do, é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das mino-
rias). Assim, por exemplo, a carência de água e de comida manifesta algo mais
profundo: o direito à vida. A carência de moradia ou de transporte também
manifesta algo mais profundo: o direito a boas condições de vida. Da mesma
maneira, o interesse, por exemplo, dos estudantes exprime algo mais profun-
do: o direito à educação e ao conhecimento. Em outras palavras, se tomarmos
as diferentes carências e os diferentes interesses veremos que sob eles estão
pressupostos direitos, não explicitamente formulados.
Um direito difere de necessidades, carências e interesses, mas se distin-
gue intrinsecamente do privilégio, pois este é sempre particular, excludente
e jamais pode universalizar-se e transformar-se num direito sem deixar de
ser um privilégio. Enquanto necessidades, carências e interesses pressupõem
direitos a conquistar, privilégios se opõem aos direitos.
Uma das práticas mais importantes da política democrática consiste
justamente em propiciar ações capazes de unificar a dispersão e a particulari-
dade das carências em interesses comuns e, graças a essa generalidade, fazê-las
alcançar a esfera universal dos direitos. Em outras palavras, privilégios e ca-
rências determinam a desigualdade econômica, social e política, contrariando
o princípio democrático da igualdade: a passagem das carências dispersas em
interesses comuns e destes aos direitos é a luta pela igualdade. Medimos a ca-
pacidade e força políticas da cidadania não só quando realiza essa passagem,
mas também quando tem força para desfazer privilégios, fazendo-os perder a
legitimidade diante dos direitos.

33
Marilena Chaui

Eis porque é tão significativa a prática de declarar direitos (Lefort,


1983). Por que declará-los? Essa prática revela, em primeiro lugar, que não é
um fato óbvio para todos os humanos que eles são portadores de direitos e,
em segundo, que não é um fato óbvio que tais direitos devam ser reconheci-
dos por todos. Em outras palavras, a existência da divisão social das classes
permite supor que alguns possuem direitos e outros, não. Em contraposição,
a declaração de direitos afirma exatamente o oposto ao inscrever os direitos
no social e no político, afirmando sua origem social e política e como algo que
pede o reconhecimento de todos, exigindo o consentimento social e político de
todos. Esse reconhecimento e esse consentimento dão aos direitos a condição
e a dimensão de direitos universais.
Ora, a sociedade brasileira está polarizada entre as carências das classes
populares e os privilégios da classe dominante e dirigente. Essa polarização
é signo da ausência de democracia real ou, pelo menos, da enorme dificul-
dade para instituí-la e indica que, estruturalmente, somos uma sociedade
autoritária.

III.
Conservando marcas da sociedade colonial escravista, patriarcal e pa-
trimonialista, a sociedade brasileira é marcada pelo predomínio do espaço
privado sobre o público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente
hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersub-
jetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e
um inferior, que obedece. Isso explica o fascínio pelos signos de prestígio e
de poder, que aparece, por exemplo, na manutenção de criadagem doméstica
cujo número indica aumento de status, ou no uso de títulos honoríficos sem
qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição, o caso mais
corrente sendo o uso de “Doutor” quando, na relação social, o outro se sente
ou é visto como superior, de maneira que “doutor” é o substituto imaginário
para os antigos títulos de nobreza.
Na sociedade brasileira, as diferenças e assimetrias são sempre trans-
formadas em desigualdades, e estas, em inferioridade natural (no caso das
mulheres, dos trabalhadores, negros, índios, migrantes, idosos) ou como
monstruosidade (no caso dos LGBTQIA+), reforçando a relação de mando
e obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujei-
to de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteri-
dade. As relações entre os que julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de

34
Introdução
Democracia e a educação como direito

cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento


toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a
desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão.
Em suma, micropoderes capilarizam em toda a sociedade, de sorte que
o autoritarismo da e na família se espraia para a escola, para as relações amo-
rosas, o trabalho, o comportamento social nas ruas, o tratamento dado aos
cidadãos pela burocracia estatal, e vem exprimir-se, por exemplo, no desprezo
do mercado pelos direitos do consumidor (coração da ideologia capitalista) e
na naturalidade da violência policial. Compreende-se, então, porque em nos-
sa sociedade há a recusa tácita (e às vezes explícita) de admitir a igualdade
formal ou o mero princípio liberal da igualdade jurídica: para os grandes,
a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. A lei não exprime o
polo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca exprime direitos
e deveres dos cidadãos porque a tarefa da lei é a conservação de privilégios
e o exercício da repressão. Por esse motivo, as leis aparecem como inócuas,
inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem
transformadas. O poder judiciário é claramente percebido como distante, se-
creto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da ge-
neralidade social.
A ausência do reconhecimento dos direitos leva a conceber a cidada-
nia como privilégio de classe, uma concessão da classe dominante às demais
classes sociais, podendo ser-lhes retirada quando os dominantes assim o
decidirem e por isso, no caso das classes populares, os direitos, em lugar de
aparecerem como conquistas dos movimentos sociais organizados, são sem-
pre apresentados como concessão e outorga feitas pelo Estado, dependendo
da vontade pessoal ou do arbítrio do governante mantê-los ou retirá-los por
meio de “reformas trabalhistas”.
Os conflitos sociais são considerados sinônimos de perigo e desordem,
recebendo três respostas: a repressão policial e de milícias privadas para as
camadas populares, a repressão militar para movimentos políticos de contes-
tação, e, no espaço institucional, o desprezo condescendente pelos opositores
bem como o uso do poder judiciário para impedi-los de agir ou desacreditá-
los, graças aos meios de comunicação, que não só monopolizam a informa-
ção, mas também difundem a ideia de que o consenso é a unanimidade e de
que a discordância é ignorância, atraso, conspiração e perigo.
As lutas pela posse da terra desencadeiam a criminalização de seus lí-
deres, cujo assassinato permanece impune; os trabalhadores do agronegócio

35
Marilena Chaui

são conhecidos como “boias-frias” porque, iniciando a jornada de traba-


lho de madrugada, sua refeição (quando têm o que comer) se reduz a um
punhado de arroz e ovo frios. Os acidentes de trabalho, tanto no campo quan-
to na cidade, são imputados à incompetência e ignorância dos trabalhadores
e não às péssimas condições de trabalho. A população das grandes cidades se
divide entre um “centro” e uma “periferia”, bairros afastados nos quais estão
ausentes todos os serviços básicos (luz, água, esgoto, calçamento, transporte,
escola, atendimento médico), fazendo com que a jornada de trabalho dure até
15 horas. No caso do “centro”, está naturalizada a oposição entre os chamados
“bairros nobres” e os bolsões de pobreza, cortiços e favelas.
O racismo não é percebido como tal e assegura a naturalidade das ex-
clusões sociais e culturais bem como a desigualdade salarial, pois os negros
são considerados infantis, ignorantes, safados, indolentes, raça inferior e pe-
rigosa; e os indígenas, em fase final de extermínio, são considerados irres-
ponsáveis (isto é, incapazes de cidadania), preguiçosos (isto é, mal adaptáveis
ao mercado de trabalho capitalista), perigosos, devendo ser exterminados ou,
então, “civilizados” (isto é, entregues à sanha do mercado de compra e venda
de mão de obra, mas sem garantias trabalhistas porque “irresponsáveis”).
O machismo não é percebido como tal, seja na vida doméstica de opres-
são das mulheres, seja no espaço do trabalho, onde a desigualdade salarial en-
tre homens e mulheres é considerada natural; e as mulheres que trabalham (se
não forem professoras, enfermeiras, assistentes sociais ou empregadas domés-
ticas) são consideradas prostitutas em potencial, e as prostitutas, degeneradas,
perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar
a santidade da família, e cujo cortejo aumenta com a chegada da perigosa
multidão de outros perversos sexuais, que devem ser prontamente eliminados
– os LGBTQIA+.
A desigualdade salarial entre homens e mulheres e entre brancos e ne-
gros e a exploração do trabalho infantil e a dos idosos são consideradas nor-
mais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados é atribuí-
da à ignorância, à preguiça e à incompetência dos “miseráveis”. A existência de
crianças sem infância é vista como “tendência natural dos pobres à criminali-
dade”. Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e ignorância
dos trabalhadores.
Esse autoritarismo faz com que o neoliberalismo nos caia como uma
luva.

36
Introdução
Democracia e a educação como direito

IV.
O que chamamos de neoliberalismo nasceu de um grupo de econo-
mistas, cientistas políticos e filósofos, que, em 1947, reuniu-se em Mont Saint
Pèlerin, na Suíça, para se opor contra o surgimento do Estado de Bem-Estar
Social, no qual o Estado regulamenta a economia e o mercado e dirige os fun-
dos públicos para os direitos sociais dos trabalhadores (salário-desemprego,
salário-família, férias, moradia, saúde e educação). Esse grupo elaborou um
detalhado projeto econômico e político no qual atacava o Estado de Bem-Estar
Social, afirmando que esse tipo de Estado destruía a liberdade dos cidadãos e
a competição, sem as quais não há prosperidade. Essas ideias permaneceram
como letra morta até a crise capitalista do início dos anos 1970, quando o ca-
pitalismo conheceu, pela primeira vez, um tipo de situação imprevisível, isto
é, baixas taxas de crescimento econômico e altas taxas de inflação: a famosa
estagflação. O grupo de neoliberais passou a ser ouvido com respeito porque
oferecia a suposta explicação para a crise: esta, diziam eles, fora causada pelo
poder excessivo dos sindicatos e dos movimentos operários que haviam pres-
sionado por aumentos salariais e exigido o aumento dos encargos sociais do
Estado. Teriam, dessa maneira, destruído os níveis de lucro requeridos pelas
empresas e desencadeado os processos inflacionários incontroláveis. Feito o
diagnóstico, o grupo propôs os remédios: 1) Um Estado forte para quebrar o
poder dos sindicatos e movimentos operários, controlar os dinheiros públicos
e cortar drasticamente os encargos sociais e os investimentos na economia; 2)
Um Estado cuja meta principal deveria ser a estabilidade monetária, contendo
os gastos sociais e restaurando a taxa de desemprego necessária para formar
um exército industrial de reserva que quebrasse o poderio dos sindicatos; 3)
Um Estado que realizasse uma reforma fiscal para incentivar os investimentos
privados e, portanto, que reduzisse os impostos sobre o capital e as fortunas,
aumentando os impostos sobre a renda individual e, portanto, sobre o traba-
lho, o consumo e o comércio; 4) Um Estado que se afastasse da regulação da
economia, deixando que o próprio mercado, com sua racionalidade própria,
operasse a desregulação; em outras palavras, abolição dos investimentos esta-
tais na produção, abolição do controle estatal sobre o fluxo financeiro, drástica
legislação antigreve e vasto programa de privatização (Harvey, 1992).
Como podemos observar, o neoliberalismo é decisão de investir o fun-
do público no capital e privatizar os direitos sociais, de maneira que podemos
definir o neoliberalismo como alargamento do espaço privado dos interesses
de mercado e encolhimento do espaço público dos direitos. Seu pressuposto

37
Marilena Chaui

ideológico básico é a afirmação de que todos os problemas e malefícios econô-


micos, sociais e políticos do país decorrem da presença do Estado não só no
Setor de Produção para o mercado, mas também nos Programas Sociais, don-
de se conclui que todas as soluções e todos os benefícios econômicos, sociais e
políticos procedem da presença das empresas privadas no Setor de Produção
e no dos Serviços Sociais. Em outras palavras, o mercado é portador de ra-
cionalidade sociopolítica e agente principal do bem-estar da república. Isso
transparece claramente na substituição do conceito de direitos sociais pelo de
serviços, que leva a colocar direitos sociais no setor de serviços privados. Em
outras palavras, a privatização neoliberal se refere à transformação dos direi-
tos em serviços privados vendidos e comprados no mercado.
O neoliberalismo é a nova forma do totalitarismo. Para compreendê-lo,
precisamos considerar seu núcleo, qual seja, a ideia da ação social e política
como administração ou gestão.
Como sabemos, o movimento do capital tem a peculiaridade de trans-
formar toda e qualquer realidade em objeto do e para o capital, convertendo
tudo em mercadoria e por isso mesmo produz um sistema universal de equi-
valências, próprio de uma formação social baseada na troca de equivalentes ou
na troca de mercadorias pela mediação de uma mercadoria universal abstrata,
o dinheiro como equivalente universal. A isso corresponde o surgimento de
uma prática, a da administração, analisada por Adorno, Horkeimer e Marcuse
(Adorno; Horkheimer, 1985; Horkheimer, 1968; Marcuse, 1964). Essa
prática se sustenta em dois pressupostos: o de que toda dimensão da reali-
dade social é equivalente a qualquer outra e por esse motivo é administrável
de fato e de direito, e o de que os princípios administrativos são os mesmos
em toda parte porque todas as manifestações sociais, sendo equivalentes, são
regidas pelas mesmas regras. Em outras palavras, a administração é percebida
e praticada segundo um conjunto de normas gerais desprovidas de conteúdo
particular e que, por seu formalismo, são aplicáveis a todas as manifestações
sociais. Dessa maneira, como observa Michel Freitag (1996), transforma uma
instituição social numa organização.
Uma instituição social é uma ação ou uma prática social fundada no
reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num prin-
cípio de diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições
sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhe-
cimento e legitimidade internos a ela. Sua ação se realiza numa temporalida-
de aberta porque sua prática a transforma segundo as circunstâncias e suas

38
Introdução
Democracia e a educação como direito

relações com outras instituições – é histórica. Em contrapartida, uma organi-


zação se define por uma outra prática social, qual seja, a de sua instrumenta-
lidade, fundada nos dois pressupostos de equivalência e generalidade de todas
esferas sociais, que, como vimos, definem a administração. É percebida e pra-
ticada segundo um conjunto de normas gerais desprovidas de conteúdo parti-
cular que, por seu formalismo, são aplicáveis a todas as manifestações sociais.
Está referida ao conjunto de meios particulares para obtenção de um objetivo
particular, ou seja, não está referida a ações articuladas às ideias de reconhe-
cimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações,
isto é, estratégias balizadas pelas ideias de eficácia e de sucesso no emprego de
determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. É regida
pelas ideias de gestão, planejamento, previsão, controle, competição e sucesso.
Por que designar o neoliberalismo como uma nova forma do
totalitarismo?
Totalitarismo: porque, em seu núcleo, encontra-se o princípio funda-
mental da formação social totalitária, qual seja, a recusa da especificidade das
diferentes instituições sociais e políticas que são consideradas homogêneas e
indiferenciadas porque concebidas como organizações. O totalitarismo (em
qualquer época) é a recusa da heterogeneidade social, da existência de classes
sociais contrárias (contraditórias e conflituosas), da pluralidade de modos de
vida, de comportamentos, de crenças e opiniões, costumes, gostos, colocando
em seu lugar ideias para oferecer a imagem de uma sociedade homogênea,
una, indivisa, em concordância e em consonância consigo mesma.
Novo: porque, em lugar de a forma do Estado absorver a sociedade (ou
a sociedade como o espelho que reflete o Estado), vemos ocorrer o contrário,
isto é, a forma da sociedade absorve o Estado (o Estado é o espelho que reflete
a sociedade). De fato, os totalitarismos anteriores instituíam a estatização da
sociedade. A grande novidade neoliberal está em definir todas esferas sociais
e políticas não apenas como organizações, mas, tendo como núcleo central o
mercado, as define como um tipo determinado de organização que percorre
a sociedade de ponta a ponta e de cima a baixo: a empresa – a escola é uma
empresa, o hospital é uma empresa, a igreja é uma empresa, o centro cultural
é uma empresa e o próprio Estado é concebido como empresa, sendo por
isso espelho da sociedade e não o contrário, como nos antigos totalitarismos.
Vai além: define o indivíduo não como membro de uma classe social, mas
como um empreendimento, uma empresa individual ou “capital humano”,
ou como empresário de si mesmo, destinado à competição mortal em todas

39
Marilena Chaui

as organizações, dominado pelo princípio universal da concorrência disfar-


çada sob o nome de meritocracia. O salário não é percebido como tal e sim
como renda individual e a educação é considerada um investimento para que
a criança e o jovem aprendam a desempenhar comportamentos competitivos.
Dessa maneira, desde o nascimento até a entrada no mercado de trabalho, o
indivíduo é treinado para ser um investimento bem-sucedido e a interiorizar
a culpa quando não vence a competição, desencadeando ódios, ressentimen-
tos e violências de todo tipo, particularmente contra imigrantes, migrantes,
negros, índios, idosos, mendigos, sofredores mentais, LGBTQIA+, destroçan-
do a percepção de si como membro ou parte de uma classe social, destruindo
formas de solidariedade e desencadeando práticas de extermínio.
Quais as consequências desse novo totalitarismo?
Social e economicamente, ao introduzir o desemprego estrutural e a
fragmentação/dispersão do trabalho produtivo, dá origem a uma nova classe
trabalhadora, denominada por alguns estudiosos com o nome de precariado
para indicar um novo trabalhador sem emprego estável, sem contrato de tra-
balho, sem sindicalização, sem seguridade social, e que não é simplesmente o
trabalhador pobre, pois sua identidade social não é dada pelo trabalho nem
pela ocupação e que, por não ser cidadão pleno, tem a mente alimentada e
motivada pelo medo, pela perda da autoestima e da dignidade, pela insegu-
rança e sobretudo pela ilusão meritocrática de vencer a competição com ou-
tros e sentir culpa se fracassar nisso.
Politicamente, põe fim às duas formas democráticas existentes no modo
de produção capitalista: 1) põe fim na social-democracia com a privatização
dos direitos sociais regidos pela lógica de mercado, trazendo o aumento da
desigualdade e da exclusão; 2) põe fim na democracia liberal representativa,
com a política definida como gestão e não mais como discussão e decisão pú-
blicas da vontade dos representados por seus representantes eleitos; os gesto-
res criam a imagem de que são representantes do verdadeiro povo, da maioria
silenciosa com a qual se relacionam ininterrupta e diretamente por meio do
Twitter, de blogs e redes sociais – isto é, por meio do partido digital –, operan-
do sem mediação institucional, pondo em dúvida a validade dos congressos
ou dos parlamentos políticos e das instituições jurídicas e promovendo mani-
festações contra essas instituições; 3) introduz a judicialização da política, pois
numa empresa e entre empresas os conflitos são resolvidos pela via jurídica
e não pela via política propriamente dita (sendo o Estado uma empresa, os
conflitos não são tratados como questão pública e sim como questão jurídica);

40
Introdução
Democracia e a educação como direito

4) os chamados gestores políticos operam como gângsteres mafiosos que ins-


titucionalizam a corrupção, alimentam o clientelismo e forçam lealdades.
Como o fazem? Governando por meio do medo. A gestão mafiosa opera por
ameaça e oferece proteção aos ameaçados em troca de lealdades para manter
todos em dependência mútua. Como os chefes mafiosos, os governantes têm
os consiglieri, conselheiros, isto é, supostos intelectuais, que orientam ideo-
logicamente as decisões e os discursos dos governantes; 5) transforma todos
os adversários políticos em corruptos: os corruptos são os outros, embora a
corrupção mafiosa seja, praticamente, a única regra de governo; 6) passa a ter
controle total sobre o judiciário, pois o funcionamento de máfia faz com que
tenham dossiês sobre problemas pessoais, familiares e profissionais de magis-
trados aos quais oferecem “proteção” em troca de lealdade completa e, quando
o magistrado não aceita o trato, sabe-se o que lhe acontece.
Ideologicamente, 1) estimula o ódio ao outro, ao diferente, aos social-
mente vulneráveis (imigrantes, migrantes, refugiados, LGBTQIA+, sofredores
mentais, negros, pobres, mulheres, idosos), e esse estímulo ideológico tor-
na-se justificativa para práticas de extermínio; 2) com a expressão “marxis-
mo cultural”, persegue todas as formas e expressões do pensamento crítico,
inventando a divisão da sociedade entre o “bom povo”, que os apoia, e os
“diabólicos”, que o contestam. Os governantes/gestores pretendem fazer uma
limpeza ideológica, social e política e para isso desenvolvem uma teoria da
conspiração comunista, que seria liderada por intelectuais e artistas de es-
querda. Os conselheiros são autodidatas que se formaram lendo manuais e
odeiam cientistas, intelectuais e artistas, aproveitando o ressentimento que a
classe média e a extrema direita têm com relação a essas figuras do pensa-
mento e da criação, ressentimento produzido pelos liberais, que sempre dis-
seram que o povo não sabe pensar nem votar. Como esses conselheiros são
desprovidos de conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos, empregam a
palavra “comunista” sem qualquer sentido preciso – é um slogan: comunista
significa todo pensamento e toda ação que questionem o status quo e o senso
comum (que a Terra é plana; que não há evolução das espécies; que a defesa
do meio ambiente é uma conspiração comunista; que a teoria da relatividades
não tem fundamento etc.). São esses conselheiros que oferecem aos gover-
nantes os argumentos racistas, misóginos, homofóbicos, machistas, religiosos
etc., isto é, transformam medos, ressentimentos e ódios sociais silenciosos em
discurso do poder e justificativa para práticas de censura e de extermínio;
3. manipulando o sentimento da fugacidade do presente, da ausência de laços

41
Marilena Chaui

com o passado objetivo e de esperança em um futuro emancipador, suscita


o reaparecimento de um imaginário da transcendência religiosa sob a forma
de fundamentalismos religiosos. Dessa maneira, a figura do empresário de
si mesmo é sustentada e reforçada pela chamada “teologia da prosperidade”,
desenvolvida pela Igreja Universal do Reino de Deus (IUDRD) e, mais do que
isso, esse fundamentalismo leva ao culto da chamada autoridade política de-
cisionista, isto é, ao apoio incondicional ao governante como autoridade forte
incontestável (um pequeno Deus terrestre – um mito).
Psicologicamente, leva ao surgimento de uma nova forma da subjeti-
vidade, marcada por dois traços aparentemente contrários, mas realmente
complementares – de um lado, uma subjetividade depressiva, porque marcada
pela exigência de vencer toda e qualquer competição e pela culpa se fracas-
sar; e, de outro lado, uma subjetividade narcisista, produzida pelas práticas
das tecnologias eletrônicas de comunicação. Opera, portanto, com uma sub-
jetividade que não se define mais pelas relações do corpo com o espaço e o
tempo do mundo ou da vida, mas com a complexidade de relações reticulares
esparsas e fragmentadas. As novas tecnologias operam com a obediência e a
sedução no campo mental, porém disfarçadas numa pretensa liberdade – a de
escolher obedecer –, pois os estudos em neurologia revelam que, nos usuários,
há diminuição das capacidades do lobo frontal do cérebro, onde se realizam
o pensamento e os julgamentos, e há grande desenvolvimento da parte do
cérebro responsável pelo desejo. Pensa-se menos e deseja-se muito e, conse-
quentemente, frustra-se muito. Curtir se tornou uma obrigação, o selfie, o like
e o meme tornaram-se a definição do ser de cada um, pois, agora, existir é
ser visto. Somente em aparência essas duas formas da subjetividade parecem
contrárias, pois, há um século, os estudos de Freud revelaram que depressão e
narcisismo são as duas faces da mesma moeda.
Esse breve quadro significa que estamos prontos para compreender o
surgimento, no Brasil, da ideologia da “Escola Sem Partido”.
Com essa ideologia, a educação (do Ensino Fundamental à universida-
de) deixa de ser uma instituição social para se tornar uma organização admi-
nistrada segundo as regras do mercado, levando à desqualificação e desmo-
ralização da escola pública e ao incentivo à privatização ou à escola como um
negócio.
Mas não só isso. Sob o poder dos consiglieri, ela perde seu duplo nú-
cleo. Por um lado, perde a ideia da formação, isto é, o exercício do pensa-
mento, da crítica, da reflexão e da criação de conhecimentos, substituída pela

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Introdução
Democracia e a educação como direito

transmissão rápida de informações não fundamentadas, a inculcação de pre-


conceitos e a difusão da estupidez contra o saber, um adestramento voltado à
qualificação para o mercado de trabalho. Por outro lado, perde a condição de
direito da cidadania, afirmando-se como privilégio e, como tal, instrumento
de exclusão sociopolítica e cultural, de competição mortal, estímulo a ódios,
medos, ressentimentos e culpas. Numa palavra, instrumento de terror.
Se, ao contrário, consideramos a educação como um direito da cidada-
nia, não podemos pensá-la simplesmente como transmissão de informações
ou como habilitação veloz de jovens que precisam entrar rapidamente num
mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois tornam-se,
em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis; nem podemos tomá-la
como adestramento para obtenção de competências impostas pelos interesses
de mercado, isto é, do conhecimento como força produtiva do capital. Se a
educação é um direito, precisamos tomá-la no sentido profundo que possuía
em sua origem, isto é, como formação para e da cidadania, portanto, como
direito universal de acesso ao saber e à criação de conhecimento. É exercício
da liberdade e não instrumento de terror.
A formação da e para a cidadania é uma ação civilizatória que toma o
livre exercício do pensamento e da imaginação como um direito porque nos
lança na interrogação, nos pede enfrentamento com o instituído para que haja
descoberta, invenção e criação. A educação formadora da e para a cidada-
nia se realiza como trabalho do pensamento para pensar e dizer o que ainda
não foi pensado nem dito, trazendo uma visão compreensiva de totalidades
e sínteses abertas que levam à descoberta do novo e à transformação histó-
rica como ação consciente dos seres humanos em condições materialmente
determinadas.

Referências

ADORNO, T. W.; Horkheimer, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar,


1985.
FREITAG, M. Le naufrage de l’université. Paris: Editions de la Découverte, 1996.
HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
HORKHEIMER, M. Critical theory. New York: Herder, 1968.
LEFORT, C. A invenção democrática. São Paulo: Brasiliense, 1983.
MARCUSE, H. One unidimensional man. Boston: Brandeis, 1964.

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Luis Felipe Miguel
Michel Oliveira

Em poucos anos, o pêndulo da política brasileira oscilou, de maneira


forte e acelerada, para a direita. É um fenômeno que se pode dizer inédito na
história do país. Houve, decerto, momentos de regressão autoritária e ondas
repressivas, mas a tendência do eleitorado, quando ele tinha condições de se
expressar, era caminhar na direção da esquerda.
Os estudos da ciência política mostram que o golpe de 1964 interrom-
peu a paulatina ampliação do contingente eleitoral do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), que representava, na ordem política constituída a partir do
fim do Estado Novo, a opção mais progressista entre os grandes partidos. No
governo militar, após um período inicial de atordoamento, o movimento se
reinicia, com o crescimento do Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
que reunia a oposição consentida ao regime. Mais adiante, é o Partido dos
Trabalhadores (PT) que se torna o principal destinatário desse voto. Em
cada momento, o que há é a identificação, pelo eleitorado, de uma legenda
ocupando a posição de “partido dos pobres”, como diz André Singer (2018,
p. 144), recuperando a expressão com que moradores da periferia de São Paulo
designavam o MDB. A busca por um “partido dos pobres” já sinaliza o enten-
dimento de que a desigualdade social é um problema central a ser enfrentado.
A Constituição de 1988 expressa este espírito. É um documento talvez
mais avançado do que a média dos representantes que o redigiram, mostran-
do como, naquele momento histórico, os ventos sopravam a favor da igualda-
de e da justiça social. Recém ultrapassada a ditadura, o Brasil apostava na or-
ganização da disputa política em torno da gramática dos direitos e assumia, ao
menos no papel, o compromisso com o combate às assimetrias sociais. Nem
a mudança na política internacional, com o colapso do mundo soviético e o
triunfo do neoliberalismo, foi capaz de mudar esse cenário. Parte importante
da elite brasileira abraçou, sim, as teses mercadistas, mas sem abandonar o
discurso do combate à desigualdade e defesa de direitos. Um equilíbrio instá-
vel, que encobria ações que muitas vezes contrariavam esse discurso, mas que
revela em si mesmo a permanência de um consenso social profundo.

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Luis Felipe Miguel
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Tudo isso ruiu nos últimos anos. As eleições de 2018 consagraram, pela
primeira vez na história do País, um discurso abertamente hostil à igualdade
e aos direitos.1 Não foi só a presidência. Os candidatos que ganharam os go-
vernos da maioria dos estados aderiram a esse perfil, de maneira menos ou
mais radical. E, se logo após as eleições de 2014, o diretor do Departamento
Intersindical de Assessoria Parlamentar, Antônio Augusto de Queiroz, julgava
que fora eleito o Congresso mais conservador desde 1964 (Sousa; Caram,
2014), quatro anos depois ele precisaria reconhecer que o recorde fora ultra-
passado mais uma vez (Queiroz, 2018).
A eleição de Jair Bolsonaro foi a culminação de um movimento que
ganhara as ruas no final do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff,
tomara corpo na agressiva campanha eleitoral de 2014 e cumprira papel de-
cisivo no golpe de Estado de 2016. A direita brasileira que, constrangida pela
mentalidade dominante, costumava andar disfarçada, passou a se assumir
sem rodeios – e, na ofensiva, anatematizar a esquerda como sendo equivalen-
te à desordem e à corrupção. Numa reviravolta surpreendente, foi a esquerda
que começou a se disfarçar. Candidata à prefeitura de São Paulo em 2016,
Marta Suplicy, que mudara de partido mas fizera toda sua carreira política no
PT, declarava: “Eu nunca me coloquei como alguém de esquerda” (Turollo
Jr.; Reverbel, 2016).
No bojo desta direita que perdera a vergonha de se assumir como tal,
diferentes grupos sociais buscaram forjar uma matriz ideológica, um discurso
que legitimasse suas práticas políticas. Uma das faces dessa empreitada é o
movimento em favor de uma pretensa “Escola Sem Partido”. Ele é importante
não apenas pelo que representa como ameaça às liberdades e à educação crí-
tica, mas também por ter sido uma arena de contestação em que as diversas
correntes da direita brasileira construíram sua união. Na primeira seção do
texto, discutimos possíveis definições de “direita” e de “conservadorismo”, de-
marcando o campo conceitual em que nos movemos, e indagamos o sentido
da “onda conservadora” identificada nos últimos anos no Brasil. Na segunda
seção, apresentamos a agitação em torno do Escola Sem Partido como central
para o processo de criminalização da esquerda – em complemento à Operação
Lava Jato – e, portanto, à emergência de um macarthismo à brasileira. Na
terceira seção, singularizamos a noção de “neutralidade” como dispositivo

1 O resultado é significativo, ainda que a legitimidade do processo eleitoral tenha sido


colocada em xeque por inúmeras interferências abusivas, em especial o veto à candidatura e a
prisão ilegal do ex-presidente Lula.

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