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A REPUBLICA Platio FUNDAGAO CALOUSTE GULBENKIAN A REPUBLICA ES Platao Introdugio, Tradugio ¢ notas de Marra HELENA DA RocHA PEREIRA 5. edicdo FUNDACAO CALOUSTE GULBENKIAN na sua prtdpria cidade, mas talvez nfo na sua patria, @ menos que concorra um acaso divino. —Compreendo. Referes-te 4 cidade que edificimos h& pouco na nossa exposicio, aquela que esté fundada s6 em palavras, pois creio bem que nio se encontra em parte alguma da terra. — Mas talvez haja um modelo no céu, para quem quiser contemplé-la e, contemplando-a, fundar uma para si mesmo. De resto, nada importa que a cidade exista em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto € pelas suas normas, e pelas de mais nenhuma outra, que ele pautard o seu comportamento, —E natural — concordou. 450 LIVRO X —Ora a verdade € que—prossegui eu—entre muitas razdes que tenho para pensar que estivemos a fundar uma cidade mais perfeita do que tudo, nao é das menores a nossa douttina sobte a poesia }. —Que doutrina? —A de nfo aceitar a parte da poesia de cardcter mimético. A necessidade de a recusar em absoluto é agota, segundo me parece, ainda mais claramente evi- dente, desde que definimos em separado cada uma das partes da alma. —Que queres dizer? — Aqui entre nés (porquanto nao ireis conté-lo aos poetas trégicos e a todos os outros que praticam a mimese), todas as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruigio da inteligéncia dos ouvintes, de quantos nao tiverem como antidoto o conhecimento da sua ver- dadeira natureza. —Em que te baseias para falares assim? —Tenho de o dizer — confessei eu—. E contudo, uma espécie de dedicagio e de respeito que desde a 2 CE. supra 11.377b-111.403¢. 451 595a 596a infancia tenho por Homero impede-me de falar, Na verdade, parece ter sido ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos poetas trdgicos *, Mas nfo se deve honrar um homem acima da verdade, e, antes pelo con- tratio, deve-se falar, conforme eu declarei. — Absolutamente. —Escuta, pois; ou melhor, responde. — Interroga. — Serds capaz de me dizer em geral o que é a mimese? Porque eu, por mim, nao entendo 14 muito bem o que ela pretende ser. — Est4-se mesmo a ver que eu é que hei-de sabé-lo! —Nio era nada de extraordindrio, pois j4 muitas vezes os que tém uma vista fraca descobriram primeiro as coisas do que os que a tém penetrante! —Assim é. Mas, na tua presenca, eu nio seria capaz de ter a ousadia de falar, ainda que me ocorresse alguma coisa. Vé antes tu. — Queres ento que comecemos 0 nosso exame a partir deste ponto, segundo o nosso método habitual? Efectivamente, estamos habituados a admitir uma certa ideia (sempre uma s6) em relacio a cada grupo de coisas particulares, a que pomos o mesmo nome. Ou nio estds a compreender? — Estou. — Vamos entio escolher, mais uma vez, um desses muitos objectos, o que tu queiras. Por exemplo, este, se te aprouver: ha para ai muitas camas e mesas. —Pois nao! 4 A mesma relacdo, estabelecida de novo em 6o7a, foi tetomada por Aristételes em passo célebre da Arte Poética (1448b 34-38). 452 — Mas as ideias que correspondem a esses artefactos so duas: uma para a cama, ¢ outra para a mesa. — Sio. — Ora no costumamos também dizer que o artifice que executa cada um destes objectos olhando para a ideia, é assim que faz, um as camas, outro as mesas, de que nos servimos, e da mesma maneira para os restantes artefactos? Porque, quanto a ideia propriamente, nao hé artifice que possa executé-la, Pois como havia de fazé-lo? — De modo nenhum. —Mas vé ld agora que nome vais dar ao seguinte artifice. —A qual? —Ao que executa tudo o que sabe fabricar cada um dos artifices de per si. —Fi habilidoso ¢ espantoso o homem a que te referes! —Ainda é cedo para o afirmares; em breve diris mais ainda. Efectivamente, esse artifice nao sé € capaz de executar todos os objectos, como também modela todas as plantas e fabrica todos os seres animados, incluindo a si mesmo, e, além disso, faz a terra, o céu, os deuses ¢ tudo quanto existe no céu e no Hades *, debaixo da terra. —F um sébio 4 de espantar, esse a que te referes. 2 Sobre o Hades, vide supra, n. 11 a0 Livro 1. © © original diz cogtrhs, a palavra donde veio Sofista, que até ao final do séc. v a.C. tinha normalmente sentido equi- valente ao de 0094 («sabio»). Usando 0 termo para se qualificarem, os Sofistas desacreditaram-no por muito tempo. Nos diilogos de Platio, 0 sentido primitivo e o translato concorrem, ¢ s6 0 453, 597a —Duvidas? Ora diz-me 14: parece-te que nio pode existir, de todo em todo, um artifice desses, ou que, de certo modo, pode existir o autor de tudo isso, e de outro modo nao pode? Ou nao te apercebes de que, de certa maneira, tu serias capaz de executar tudo isso? —E que maneira é essa? — Nao é dificil — esclareci eu—e variada e rdpida de executar, muito r4pida mesmo, se quiseres pegar num espelho e andar com ele por todo o lado, Em breve criarés o sol e os astros no céu, em breve a terra, em breve a ti mesmo e aos demais seres anima- dos, os utensilios, as plantas e tudo quanto hé pouco se referiu. — Sim, mas sfo objectos apatentes, desprovidos de existéncia real. — Atingiste perfeitamente o ponto que eu precisava para o meu argumento. Com efeito, entre esses attifices conta também, julgo eu, o pintor. Nao é assim? — Pois nao! — Mas decerto vais-me dizer que 0 que ele faz nao € verdadeiro. E contudo, de certo modo, o pintor também faz uma cama. Ou nao? — Faz, mas que também é aparente. —E o marceneiro? Nao dizias ainda hé pouco que ele nao executava a ideia, que declar4vamos ser a cama real, mas sim uma cama qualquer? — Dizia, realmente. contexto ajuda a determinar em qual deles foi tomada a palavra. Neste passo, julgamos, ao contririo de alguns intérpretes, que existe uma ambiguidade intencional, que procurimos manter na tradugio com 0 qualificativo de «sibio», que em portugués tanto pode set encomifstico como despectivo. 454 — Logo, se faz o que nfo existe, ¢ nao pode fazer © que existe, mas simplesmente algo de semelhante ao que existe, mas que nao existe, e se alguém afirmasse que o produto do trabalho do marceneiro ou de qualquer outro artifice era uma realidade completa, corretia ele o risco de faltar 4 verdade? — Assim pareceria 20s que esto familiatizados com argumentos dessa natureza. —Nio nos surpreendamos. por consequéncia, se se der o caso de essa obra ser pouco clata em face da reali- dade. — Pois nfo. —Quetes entio que, A luz destes exemplos, pro curemos esse imitador, a ver quem é? — Se quiseres. — Acaso nfo existem trés formas de cama? Uma que € a forma natural, e da qual diremos, segundo entendo, que Deus a confeccionou. Ou que outro Ser poderia fazé-lo? —Nenhum outro, julgo eu. — Outra, a que executou o marceneiro. — Sim. — Outra, feita pelo pintor. Ou nao? — Seja. — Logo, pintor, marceneito, Deus, esses trés seres presidem aos tipos de leito. — Sao trés. —Ora Deus, ou porque nao quis, ou porque era necessitio que ele nao fabricasse mais do que uma cama natural, confeccionou assim aquela unica cama, a cama teal. Mas duas camas desse tipo, ou mais, € coisa que Deus nio criou nem criara. —Como assim? 455 —E que, se fizesse apenas duas, apareceria outra cuja ideia aquelas duas realizariam, e essa seria a cama teal, nio as outras duas. — Exactamente, —Por saber isso, julgo eu, € que Deus, querendo ser realmente o autor de uma cama real, e no de uma qualquer, nem um marceneiro qualquer, criou-a, na sua natureza essencial, una. — Assim parece. ee — Queres entio que o intitulemos artifice natural da cama, ou algo de semelhante? — Fi justo, uma vez que foi ele o criador disso € de tudo o mais na sua natureza essencial. —E quanto ao marceneito? Acaso nao lhe chama- remos 0 artifice da cama? — Chamaremos. —E do pintor, diremos também que é 0 artifice ¢ autor de tal mével? — De modo algum. —Entio que diras que ele é, em relagio 4 cama? —O titulo que me parece que se lhe ajusta melhor € 0 de imitador daquilo de que os outros so artifices. —Seja—concordei eu—. Chamas, por conse- guinte, ao autor daquilo que esta trés pontos ® afastado da realidade, um imitador. — Exactamente. — Logo, também o tragedidgrafo sera assim (se na verdade é um imitador) como se fosse 0 terceiro, depois do rei e da verdade; ¢ bem assim todos os outros imi- tadores. * grego diz trés, devido 4 mancira antiga de contar os extremos. 456 —E provavel. — Quanto ao imitader, chegdmos, entio, a acordo. Mas diz-me agora o seguinte, com rela¢io ao pintor: parece-te que o que ele tenta imitar é cada uma das coisas que existem na natureza ou as obras dos artifices? —As obras dos artifices. —Mas tais como elas sio, ou como patecem? Define ainda este ponto. — Que queres dizer? —O seguinte: se olhares para uma cama de lado, se a olhares de frente ou de qualquer outro Angulo, é diferente de si mesma, ou nao difere nada, mas parece distinta? E do mesmo modo com os demais objectos? —E como dizes: parece diferente, mas nao é nada. —Considera ento o seguinte: relativamente a cada objecto, com que fim faz a pintura? Com o de imitar/ a tealidade, como ela realmente é, ou a aparéncia, como cla aparece? FE imitagdo da aparéncia ou da realidade? — Da aparéncia. — Por conseguinte, a arte de imitar esta bem Jonge da verdade, e se executa tudo, ao que parece, € pelo facto de atingir apenas uma pequena porgio de cada coisa, que nio passa de uma aparicio. Por exemplo, dizemos que 0 pintor nos pintaré um sapateiro, um carpinteiro, ¢ os demais artifices, sem nada conhecer dos respectivos oficios. Mas nem por isso deixaré de ludibriar as criangas ¢ os homens ignorantes, se for bom pintor, desenhando um carpinteiro e mostrando-o de longe com a semelhanga, que lhe imprimiu, de um auténtico carpinteiro. — Sem divida. —Mas afigura-se-me, meu amigo, que de todos estes assuntos, se disse apenas 0 seguinte: quando alguém 457 598a b 599a nos anunciar, a respeito de outrem, que encontrou um homem conhecedor de todos os oficios e de tudo quanto cada um sabe no seu dominio, e com nao menos exacti- dio do que qualquer especialista, deve responder-se a uma pessoa dessas que ¢ um ingénuo, e que, ao que parece, deu com um charlatio ¢ um imitador, por quem foi iludido, de maneira que lhe pareceu um sdbio universal, devido a ele nfo ser capaz de extremar a ciéncia da ignorincia ¢ da imitagio. — Absolutamente exacto. —Temos entdo a considerar, depois disto, a tra- gédia e o seu corifeu, Homero, uma vez que j4 ouvimos dizer que esses poetas sabem todos os oficios, todas as coisas humanas referentes A virtude e ao vicio, e as divinas. Efectivamente, um bom poeta, se quiser produzir um bom poema sobre o assunto que quer tratar, tem de saber 0 que vai fazer, sob pena de nao ser capaz de o realizar. Temos, pois, de examinar se essas pessoas nao estio a ser ludibriadas pelos imitadores que se lhes depararam, ¢, ao verem as suas obras, nfo se apercecbem de que est&o trés pontos ¢ afastados do real, pois é facil executé-las mesmo sem conhecer a verdade, porquanto so fantasmas € nio seres reais o que eles representam; ou se tem algum valor o que eles dizem, ¢€ se, na reali- dade, os bons poetas tém aqueles conhecimentos que, perante a maioria, parecem expor tao bem. —E assunto a examinar com todo o cuidado. — Supées ent&do que, se uma pessoa pudesse fazer ambas as coisas, o objecto a imitar e a imagem, se entre- garia com afinco 4 confecgio de imagens e poria essa * Cf. a nota anterior. 458 aptiddo na primeira linha da sua vida, como o seu mais precioso bem? — Eu cA, niio. — Mas se, na verdade, ele fosse conhecedor das coisas que imita, aplicar-se-ia, julgo eu, muito mais as obras do que as imitagdes, tentatia deixar criagées numerosas e belas como monumentos comemorativos da sua pessoa, € empenhat-se-ia mais em ser elogiado do que em elogiar. — Assim o creio, porquanto a honra e o proveito nao seriam os mesmos, — Por conseguinte, no vamos pedir contas a respeito de outros assuntos a Homero ou a qualquer outro dos poetas, perguntando se algum deles era médico, e nao 86 imitador da linguagem dos médicos, ou a quantas pessoas qualquer poeta dos antigos ou dos modernos se diz ter restituido a saide como Asclépios, ou quantos discipulos deixou na arte de curar, como os descendentes que aquele teve; tio-pouco fagamos perguntas sobre as outras artes; deixemo-los. Mas acerca daqueles assun- tos mais elevados e mais belos, sobre os quais Homero se abalangou a falar, guerras, comando dos exércitos, administragao das cidades e educagio do homem, é de certo modo justo dirigirmo-nos a ele para o interrogar «Meu caro Homero, se, relativamente 4 virtude, nao estas afastado trés pontos da verdade, nem és um fazedor de imagens, a quem definimos como um imitador, mas estas afastado apenas dois, e se foste capaz de conhecer quais sio as actividades que tornam os homens melhores 7 Nao sabemos se os praticantes dessa arte se intitulavam Asclepiades por se considerarem descendentes de Asclépios ou por cle inspirados, mas o certo & que o oficio passava de pais a filhos. Sobre Asclépios, vide supra, nn. 74 € 75 a0 Livro mm. 459 b ou piores, na vida particular ou publica, diz-nos que cidade foi, gracas a ti, melhor administrada, como suce- deu com a Lacedeménia, gracas a Licurgo 8, e com muitas outras cidades, grandes e pequenas, devido a muitos outros? Que Estado te aponta como um bom legislador ® que veio em seu auxilio? A Itdlia ¢ a Sicilia indicam Carondas ¥, e nés, Sdlon4. E a ti, quem?» Teria alguém para indicar? —Julgo que nao —respondeu Gléucon—. Pois nada dizem, nem mesmo os Homéridas 32. — Mas hd alguma guerra de que se tenha lembranga, no tempo de Homero, chefiada por ele, que o tivesse por conselheiro e que fosse levada a bom termo? — Nenhuma. ® © legislador de Esparta, considerado por Herddoto (1. 65-66) 0 criador da Gerisia ¢ dos Eforos, chegou a ser tido por lendétio, conforme jé transparece da biografia que Ihe dedicou Plutarco. A critica actual reconhece, porém, a sua historicidade (vide A. Toynbee, Some Problems of Greek History, Oxford, 1969, PP. 274-283). % Adam observa, a este propésito, que nio s6 nao era esse © sentir geral grego, como nio era o do proprio Platio no Ban- quete 209¢-e. 39” Carondas foi o legislador de Catinia, sua cidade natal, € outras colénias calcidicas da Sicilia ¢ da Magna Grécia. Deve datar do comeso do séc. vr a.C. 4 © ateniense Sélon (¢.640-560 a.C.) € exaltado vezes sem conta, como 0 fundador da democracia ateniense, nio s6 em Platio, como nos grandes oradores iticos. 12 Os Homéridas eram uma espécie de corporacio de poctas da ilha de Quios, que se consideravam descendentes de Homero ¢ detentores da autoridade maxima sobre os seus poemas, como se depreende de Platio, lon 530d ¢ Fedro 252b. Também Pindaro se Ihes refere em Nemeias 11. 1-3. 460 — Mas entio ha muitas ideias e invengdes que lhe sejam atribuidas em relagio as artes e outras actividades, coisas que so caracteristicas de um homem_habili- doso 18, no género das que se contam de Tales de Mileto 4 e de Anacérsis da Citia 15? —Nada desse género. — Mas, se nao o foi na vida publica, ao menos na particular nao constar4 que Homero, durante a sua vida, tenha dirigido a educagao de algumas pessoas, que o estimassem pela sua companhia e que transmitissem 4 posteridade 0 estilo de vida homérico, como o prdéprio Pitagoras 16, que foi extraordinariamente apreciado por esse motivo, ¢ até os que vieram depois dele ainda hoje chamam Pitagérico a esse regime de vida, ¢ por ele se salientam no meio dos outros homens? 18 No texto esti aopés, usado, segundo nos parece, no seu sentido primeiro de «perito numa arte». 4B de notar que o primeiro filésofo nos aparece aqui, tal como em Herddoto (1. 74-75, 170), em Aristéfanes (Nuwens 180, Aves 1009), € mesmo em Arist6teles (Politica 1. 11. 12598 5-23) mais como um homem astuto e engenhoso do que como um pen- sador. Cf. D. R. Dicks, Early Greek Astronomy to Aristotle, London, 1970, p. 43- 18 Contemporineo de Tales, ¢ por vezes também incluido na lista dos Sete Sibios (Estrabio vit. 3.9), foi, segundo Didgenes Laétcio 1. 105, 0 inventor da ancora e da roda do oleiro. 18 BE esta, como é sabido, a tinica referéncia nominal a Pitgoras na obra de Platio, embora a influéncia da escola do filé- sofo de Samos em parte do seu pensamento niio ofereca diividas, assim como parece ser aos Pitagéricos que alude quando se refere a chomens ¢ mulheres sibios». De resto, as citagdes de Pitigoras anteriores ao fim do séc. 1v so, escassissimas: Xen6fanes, fr. 7 Diels; Heraclito, frs. 40, 81, 129 Diels; Herddoto rv. 953 Isécrates, Busiris 28. 461 —Também sobre isso nada consta. Com efeito, Creofilo 17, 6 Sécrates, o discipulo de Homero, talvez ainda seja menos ridiculo pelo nome do que em relagio & educagiio, se ¢ verdade o que se diz acerca de Homero. De facto, conta-se que recebeu dele muito poucas aten- des enquanto foi vivo. —E o que se diz, efectivamente. Mas supdes, 6 Glaucon, que, se Homero fosse, na realidade, capaz de educar os homens ¢ de os fazer melhores, como pessoa que podia nio ser imitador, mas bom conhecedor dessas matérias, nao criaria numerosos discipulos que 0 hon- rassem e estimassem, ao passo que Protdgoras de Abdera e Prddico de Ceos 1 e tantos outros podem, em conversas patticulares, convencé-los de que nio serio capazes de administrar a sua casa nem a sua cidade, se nao se submeterem 4 educagio deles, e sio estimados com tal veeméncia, devido a esta arte, que sé lhes falta que os discipulos andem com eles aos ombros? ” E os 7 © nome, na forma adoptada pelos editores antigos (Kpedg:hos), significa «amigo de comer carne», Mas os melhores manuseritos, que Bufnet segue, e bem assim outros autores gregos, escrevem Keewquing. A diferenca s6 é sensivel em por- tugués no lugar da tonica, pois a segunda das formas citadas, por ter a pendltima longa, tem de ter acentuagio paroxitona, Cali- maco, Epigrama 6, atribui a Creofilo 0 poema Oechalia. A Suda (léxico do séc. x) diz que ele reccbeu esse poema de Homero, em agradecimento pela hospitalidade que Ihe concedera. O escoliasta declara que Homero lhe confiou a Iiada. 18 Dois dos mais famosos Sofistas, interlocutores de Sécrates no diilogo Protdgoras. 1 © original diz «nas cabecas». Esta caricatura do entu- siasmo despertado pelos Sofistas deve completar-se com as cenas deliciosas da abertura do Profdgoras. 462 que viveram no tempo de Homero, se realmente ele era capaz de ajudat os homens a serem virtuosos, e de Hesiodo, haviam de os deixar andar de um lado para © outro a recitar *°, e nao se apegariam mais a eles do que ao dinheiro, e nio os forgariam a ficar com eles nos seus lares, ou, se nado os convencessem, nao se teriam transformado em pedagogos *1, para os seguirem onde quer que fossem, até que se saciassem do seu aprendizado? —Parece-me que 0 que dizes é absolutamente ver- dadeiro, 6 Sécrates. —Assentemos, portanto, que, a principiar em Homero, todos os poetas sao imitadores da imagem da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais com- poem, mas nfo atingem a verdade; mas, como ainda ha pouco dissemos, o pintor fara o que parece ser um sapateito, aos olhos dos que percebem tio pouco de fazer sapatos como ele mesmo, mas julgam pela cor e pela forma? — Precisamente. —Do mesmo modo diremos, parece-me, que o poeta, por meio de palavras e frases, sabe colorir devida- mente cada uma das artes, sem entender delas mais do que saber imité-las, de modo que, a outros que tais, que julgam pelas palavras, parecem falar muito bem, quando dissertam sobre a arte de fazer sapatos, ou sobre a arte da estratégia, ou sobre qualquer outra com metro, ritmo e harmonia. Tal é a grande seducio natural que % No original esté o verbo que significa «ser rapsodo». Os rapsodos andavam de terra em terra, a recitar pocmas, 21 O pedagogo acompanhava sempre os passos do seu edu- cando. A inversio de atitudes contribui para acentuar a ironia da frase. 463 601a estas tém, por si sds. Pois julgo que sabes como patecem as obras dos poetas, desnudadas do colorido musical, ¢ ditas sé por si. Ja assentaste nisso, de algum modo. — Pois ja. —Entio parecem-se com o aspecto que tomam aqueles rostos que tiveram frescura, mas nao beleza, quando a flor da juventude os abandonou **. — Exactamente. — Vamos 14 entio! Repara no seguinte: o criador de fantasmas, o imitador, segundo dissemos, nada entende da realidade, mas sd da aparéncia. Nao é assim? —E£. —N4ao deixemos, contudo, a nossa exposicio a meio; vamos exploré-la suficientemente. — Fala. —O pintor, dizemos nés, pintard as rédeas ¢ o freio? — Sim. —Mas quem os faz é 0 correeiro ¢ o ferreiro? — Exactamente. —Porventura é o pintor que entende como devem ser feitas as rédeas e 0 freio? Ou o que as fabricou, © ferreiro e o correeiro? Ou antes aquele que sabe servir-se delas, o cavaleiro somente? — Exactamente. —Acaso nio afirmaremos que se passa 0 mesmo em tudo o mais? — Como? 22 Bsta frase figura, como exemplo de simile, em Aris- thteles, Retérica 1. 4.1406b 36-37- 464 en — Que hd estas trés artes relativamente a cada objecto: ade o utilizar, a de o confeccionar, e a de o imitar. — Sim. —Ora a qualidade, a beleza e perfeigio de cada utensilio, de cada animal ou acgio ‘nao visam outra coisa que nio seja a fungio para a qual cada um foi feito ou nasceu? — Assim é. —Grande é, pois, a necessidade, para quem se serve de cada coisa, de ter delas a maior experiéncia e de se tornar intérprete, junto do fabricante, da boa ou mi qualidade do objecto de que se serve quando o utiliza. Por exemplo, o flautista informa o fabricante acerca das flautas de que se serve para tocar, e pres- creve-Ihe como as deve executar, e ele atendé-lo-4. — Pois nao? — Portanto, aquele que sabe informa sobre as qua- lidades ¢ defeitos das flautas, o outro faz fé 5, e exe- cutard? — Sim. — Por conseguinte, em relagio ao mesmo instru- mento, o fabricante teré uma crenga exacta quanto 4 sua exceléncia ou inferioridade, por estar em contacto com quem sabe ¢ ser obrigado a escuti-lo; ao passo que aquele que o utiliza possui a ciéncia. — Exactamente. —Mas o imitador adquirira 0 conhecimento dos objectos que pinta, pela pritica, e a capacidade de dis- tinguir se sio belos e bem feitos ou nao, ou obter4 uma 23 Esta expressio retoma a linguagem do simile da linha, supra, vi. sogd-511¢. 465 30 602a opirii> correcta, pelo facto de forgosamente ter de conviver com aquele que sabe e¢ de acatar as suas pres- ctigdes sobte a maneita como deve pintar? —Nem uma coisa nem outra. — Por conseguinte, o imitador nao saber4 nem ter4 uma opiniao certa acerca do que imita, no que toca 4 sua beleza ou fealdade. — Parece que nio. — Ser4 um encanto esse imitador em poesia, quanto 4 sua mestria nos assuntos que trata! —Nem por isso! —Contudo, fara as suas imitagdes 4 mesma, sem saber, relativamente a cada uma, em que é que ela é ma ou boa; mas, ao que parece, aquilo que parecer belo 4 multidio ignara, é isso mesmo que ele imitard. —Pois que outra coisa ha-de fazer? — Logo, quanto a estas questdes, estamos, ao que parece, suficientemente de acordo: que o imitador nao tem conhecimentos que valham nada sobre aquilo que imita, mas que a imitacdo é uma brincadeira sem seriedade; e os que se abalangam 4 poesia tragica, em versos iambicos ou €picos *4, sio: todos eles imitadores, quanto se pode ser. , — Exactamente, —Por Zeus! —exclamei eu—. Essa imitagio esta trés pontos afastada da verdade ou nao? — Esta. * Novamente se considera aqui (tal como em 595¢) o cle- mento trigico como potencialmente existente na poesia épica. Formalmente, a tragédia era composta em metro iambico, nas partes faladas, ¢ em metros liricos, nas cantadas (além disso, havia ainda as partes em recitativo: em ritmo anapéstico, ou nos iambos no meio de liricas, ou ainda nos tetrimetros trocaicos). 466 —Além disso, em que parte do homem exerce 0 poder que detém? —De que pretendes falar? —Do seguinte: a mesma grandeza, vista a nossos olhos de perto e de longe, nao parece igual. — Pois nao. —E os mesmos objectos parecem tortos ou direitos, para quem os observa na 4gua ou fora dela, céncavos ou convexos, devido a uma ilusio de dptica proveniente das cores, e € evidente que aqui ha toda a espécie de confusio na nossa alma. Aplicando-se a esta enfermi- dade da nossa natureza é que a pintura com sombreados nao deixa por tentar espécie alguma de magia, e bem assim a prestidigitagio ¢ todas as outras habilidades desse género. —E verdade. —Mas nfo se inventaram a medigio, o calculo, a pesagem, como auxiliares preciosos contra esses incon- venientes, de tal modo que nio prevalece em nés a aparéncia de maior ou menor, mais numetoso ou mais pesado, mas o que se calculou, mediu ou pesou? — Pois nao! — Ora, realmente, essas opetagdes podem ser o trabalho da razio que esté na nossa alma, — Fi dela, efectivamente. —Mas perante esse principio, quando mediu ¢ assinalou que certos objectos sio maiores ou menores que outros, ou iguais a eles, surgem aparéncias por vezes em relagio com os mesmos objectos, ao mesmo tempo. — Surgem. — Nao afirm4mos que é impossivel que o mesmo elemento tenha, ao mesmo tempo, opinides contrarias sobre os mesmos objectos? 467 603a — Afirmémos, e com razio. —Portanto, o que julga na alma A margem da medida, nio poderd ser 0 mesmo que o que julga com medida. —Pois nao. — Mas, realmente, o elemento que faz fé na medida e no cilculo deverd ser a melhor parte da alma. —Sem divida. — Logo, o que lhe for contrétio pertencer4 ao mimero do pior que temos. — Forgosamente, — Era a este ponto que eu queria chegar, quando dizia que a pintura e, de um modo geral, a arte de imitar, executa as suas obras longe da verdade, e, além disso, convive com a parte de nds mesmos avessa ao bom- -senso, sem ter em vista, nesta companhia e amizade, nada que seja sio ou verdadeiro. — Exactamente. —Se o mediocre se associa ao mediocte, a arte de imitar s6 produz mediocridades. — Assim parece. —Referes-te apenas 4 que se dirige aos olhos, ou também a que se dirige aos ouvidos, e a que chamamos poesia? — A essa também, € natural. — Nao facamos fé, contudo, apenas na semelhanca com a pintura, mas avancemos até aquele sector do espirito que convive com a imitagao poética, e vejamos se ele é inferior ou valioso. —E bem preciso. — Vamos por a questo desta maneira. A poesia mimética, diziamos nés, imita homens entregues a acgdes forgadas ou voluntirias, e que, em consequéncia de as 468 terem praticado, pensam ser felizes ou infelizes, afli- gindo-se ou regozijando-se em todas essas circunstancias. Havia mais alguma coisa, além disto? — Nio. — Ora, em todas essas ocasides, porventura o homem esté de acordo consigo mesmo? Ou, tal como sofria de dissensio interna relativamente 4 visio, e albergava ao mesmo tempo opinides contrarias sobre os mesmos assuntos, do mesmo modo, no seu comportamento sofre de dissensio ¢ luta consigo mesmo? Mas recordo-me de que, quanto a isso, nfo precisamos agora de chegar a um acordo; pois j4 na discussio anterior *° concorda- mos suficientemente em todas estas questdes, de como a nossa alma esté cheia de mil contradigdes dessa espécie, que surgem ao mesmo tempo, —E com trazio. —Com razio, efectivamente. Mas parece-me agora necessario analisar 0 que entdo deixdmos de lado. —O qué? —Dissemos entio que um homem comedido, se lhe coubesse em sorte perder um filho ou algo que lhe fosse muito caro, suportaria essa desgraga mais facil- mente do que os outros. — Exactamente. — Examinemos agora, entio, se nao se afligira nada ou se, sendo isso impossivel, moderaré 0 seu desgosto. —FE nesta hipétese, de preferéncia, que est a ver- dade. —Diz-me agora o seguinte acerca dele: supdes que luta ¢ resiste mais ao seu desgosto quando é observado 2 Supra, Vv. 435¢ seq. 469 604a pelos seus semelhantes, ou quando fica s6, no seu isola- mento, perante si mesmo? —Suportaré muito mais, quando estiver a ser observado. —Mas, quando ficat sé, julgo que ousard dizer muitas coisas das quais se envergonharia se alguém » as ouvisse, e fara muitas outras, que nao aceitaria que alguém o visse fazer. — Assim é, — Por conseguinte, a forga que o impele a resistir €a razao € a lei, ao passo que a forga que o arrasta para a dor é a propria afligio? —E verdade. — Mas, quando ha no homem impulsos contrérios e simultaneos em relagio ao mesmo objecto, dizemos que h4 necessariamente nele dois elementos. —Pois nio! — Ora um estar pronto a obedecer 4 lei, naquilo que ela lhe prescrever? —Como? —A lei diz que o que ha de mais belo é conservar a calma o mais possivel nas desgracas ¢ nao se indignar, uma vez que nao se sabe o mal ¢ o bem que hd em tais aconteci- mentos, nem se adianta nada, positivamente, em os supor- tar com dificuldade; nem tudo o que é humano merece que se lhe dé muita importancia; e o que poder acudir-nos o mais depressa possivel é entravado pelo desgosto. —A que te referes? —A reflexio sobre o que nos aconteceu; e, tal como quando se langam os dados, assim devemos endi- teitar as nossas préprias posigdes, de acordo com o que saiu, pelo caminho que a razio escolher como melhor, €, se nos baterem, nado devemos fazer como as criangas, 470 que levam a mio ao sitio da pancada e perdem o tempo a gtitar, mas acostumar a alma a ser o mais rapida pos- | sivel a curar ¢ a endireitar o que caiu e adoeceu, elimi- nando as lamentagdes com remédios. — Seria a melhor maneira de nos comportarmos perante a adversidade. — Ora, é a melhor parte de nés que quer seguir a razio. —E evidente. — Mas a parte que nos leva 4 recordagio do sofri- mento e aos gemidos e que nunca se sacia deles, acaso nao diremos que é irracional, preguigosa e propensa 4 cobardia? —Diremos, pois. — Ora, 0 que contém material para muita e variada imitagio é a parte irascivel; ao passo que o cardcter sensato e calmo, sempre igual a si mesmo, nem é facil de imitar nem, quando se imita, é facil de compreender, sobretudo num festival 2° ¢ perante homens de todas as proveniéncias, reunidos no teatro. Porquanto essa imitagao seria de um sofrimento que, para eles, é estranho. — Absolutamente. — FE evidente desde logo que o poeta imitador nao nasceu com inclinagdo para essa disposigao de alma, nem a sua atte foi moldada para lhe agradar, se quiser ser apreciado pela multidio, mas sim com tendéncia para o cardcter artebatado e variado, devido 4 facilidade que hé em o imitar. —Fi evidente. 28 Alusio aos’festivais deaméticos (especialmente as Gran- des Dionisias), nos quais se representavam as tragédias. 471 605a — Por conseguinte, temos razio em nos atirarmos a ele desde j4, ¢ em o colocar em simetria com o pintor. De facto, parece-se com ele no que toca a fazer trabalho de pouca monta em relagio 4 verdade; e, no facto de conviver com a outra parte da alma, sem ser a melhor, nisto também se assemelha a ele. E assim teremos desde ja tazio para nio o recebermos numa cidade que vai ser bem governada, porque desperta-aquela parte da alma e a sustenta, e, fortalecendo-a, deita a perder a tazio, tal como acontece num Estado, quando alguém torna poderosos os malvados e lhes entrega a soberania, a0 passo que destruiu os melhores. Da mesma maneira, afirmaremos que também o poeta imitador instaura na alma de cada individuo um mau governo, lisonjeando a parte irracional, que nao distingue entre o que é maior € 0 que é menor, mas julga, acerca das mesmas coisas, ora que sio grandes, ora que sio pequenas, que est4 sempre a forjar fantasias, a uma enorme distancia da verdade. — Precisamente.. —Contudo nao é essa a maior acusagio que fazemos & poesia: mas o dano que ela pode causar até as pessoas honestas, com excep¢io de um escassissimo ntimero, isso é que € o grande perigo. —Como nio havia de sé-lo, se na verdade produz tal efeito? — Ouve e repara. Os melhores de entre nés, quando escutam Homero ou qualquer poeta trigico a imitar um herdi que esta aflito e se espraia numa extensa tirada cheia de gemidos, ou os que cantam e batem no peito 2’, 2 A tirada (@jouc), a que se faz referencia primeito, é a fala de um actor; 0 segundo exemplo é um canto lamentoso do 472 sabes que gostamos disso, e que nos entregamos a eles, e os seguimos, sofrendo com eles, ¢ com toda a seriedade elogiamos 0 poeta, como sendo bom, por nos ter pro- vocado, até ao maximo, essas disposicées. — Sei. Como nao havia de sabé-lo? — Mas quando sobrevém a qualquer de nés um luto pessoal, reparaste que nos gabamos do contrario, se formos capazes de nos mantermos tranquilos e de sermos fortes, entendendo que esta atitude é caracteristica de um homem, ao passo que aquela, que ha pouco louvémos, o € de uma mulher? — Reparei. — E estard certo que se déem estes elogios, a0 vermos um homem comportar-se de uma maneira que nio teria- mos por digna, mas nos envergonharia, sem termos repulsa por ele, antes regozijando-nos ¢ louvando-o? —Por Zeus que nao! Nao parece de uma pessoa sensata! —Exacto, sobretudo se examinares a questo sob este aspecto. — Qual? —Se pensares que a parte da alma que h4é pouco continhamos pela forga, nos nossos desgostos pessoais, que tem sede de lagrimas e de gemidos em abundancia, até se saciar, porque a sua natureza é tal que a leva a ter esses desejos, é, nessas alturas, a parte a que os poetas dio satisfagio e regozijo. Ao passo que a parte de nés que é a melhor por natureza, por nao estar suficiente- mente educada pela razio ¢ pelo habito, abranda a vigi- coro, que, por set acompanhado de gestos de desespero, como bater no peito, tomou o nome de xouués, € veio a designar uma parte especifica (embcra no obrigatoria) da tragédia, 473 606a lancia dessa parte dada as lamentagées, a pretexto de que est4 a contemplar males alheios, e que nao é ver- gonha nenhuma para ela, se outra pessoa, que se diz um homem de bem, se lamenta a despropésito, louva-la € ter compaixdo dela, mas supde que tira uma vantagem, © prazer, de que nao aceitaria privar-se, desprezando todo o poema. FE que, julgo eu, a poucos é dado fazer ideia de como inevitavelmente temos, na nossa vida intima, 0 usufruto dos sentimentos alheios. Porquanto, depois_de termos criado e fortalecido neles a nossa pie- dade, nao é facil conté-la nos sofrimentos prdéprios. — Exactamente. —Porventura nao se aplica também o mesmo argumento ao ridiculo? Se, numa imitagéo cémica ou numa conversa particular, ao ouvires gracejos de que pessoalmente te envergonharias, te divertires 4 grande € nao os desprezares como coisa inferior, nao estés a proceder exactamente do mesmo modo que quando se trata de sentir comiseragio? FE que 4 vontade de fazer rir, que ‘continhas pela tazio, com receio de ganhares fama de desabusado, das-lhe entio livre curso, e, depois de ai a refrescares, muitas vezes te deixas levar, sem dares por ela, a fazer de autor cémico em tua casa. —E isso mesmo. —E quanto ao amor, a ira e a todas as paixdes penosas ou apraziveis da alma, que afirmd4mos acompa- nharem todas as nossas acgdes, nao produz em nds os mesmos efeitos a imitagdo poética? Porquanto os rega para os fortalecer, quando devia secd-los, e os erige nossos soberanos, quando deviam obedecer, a fim de nos tornarmos melhores e mais felizes, em vez de piores e mais desgracados. —Nio posso dizer de outro modo. 474 — Por conseguinte, 6 Glducon, quando encontrares egcomiastas de Homero, a dizerem que esse poeta foi “o educador da Grécia®*, e que é digno de se tomar por modelo no que toca a administragio e a educagio humana, para aprender com ele a regular toda a nossa vida, deves beija-los e saud4-los como sendo as melhores pessoas que € possivel, e concordar com eles em que Homero € 0 maior dos poetas e o primeiro dos trage- didgrafos, mas reconhecer que, quanto a poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encédmios aos vardes honestos e nada mais. Se, porém, acolheres a Musa aprazivel na lirica ou na epopeia, governaraio a tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei ¢ do prin- cipio que a comunidade considere, em todas as circuns- tancias, o melhor. — Exactamente, — Aqui est4 o que tinhamos a dizer, ao lembrarmos de novo a poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte desta espécie *°. Era a raziio que a isso nos impelia. Acrescentemos ainda, para ela nio nos acusar de uma tal ou qual dureza e rusticidade, que é antigo o diferendo entre a filosofia ¢ a poesia. Realmente, 14 temos a «cadela a ganit a0 dono» e a «que ladra» ¢ 0 chomem superior a proferir palavras vas», e o «bando de cabegas magistrais» € os «que pensam subtilmente», como afinal «vivem na penuria» e mil outras provas da antiguidade % A mais antiga prova do facto — documentado, aliis, em muitos autores —é dada pelo fr. 10 Diels de Xenéfanes: Uma vex que, desde inicio, todos aprenderam por Homero... % Cf. supra, mr. 3982. 475 607a 608a do antagonismo entre elas *°. Mesmo assim, diga-se que, se a poesia imitativa voltada para o prazer tiver argumentos para provat que deve estar presente numa cidade bem governada, a receberemos com gosto, pois temos consciéncia do encantamento que sobre_nds exerce; mas setia impiedade trair o que julgamos set verdadeiro. Ou nio te sentes também seduzido pela poesia, meu amigo, sobretudo quando a contemplas através de Homero? — Sinto, e muito. — Logo, é justo deix4-la regressar, uma vez que ela se justifique, em metros liricos ou em quaisquer outros? — Absolutamente. —Concederemos certamente aos seus defensores, que nao forem poetas, mas forem amadores de poesia, que falem em prosa, em sua defesa, mostrando como € nfo s6 agradavel, como util, para os Estados ¢ a vida humana. E escut4-los-emos favoravelmente, porquanto s6 teremos vantagem, se se vir que ela é nio s6 agra- davel, como também util. —Como nfo havemos de lucrar? —Mas se assim nao for, meu caro amigo, faremos como aqueles que, quando esto apaixonados por alguém, e reconhecem que aquele amor nio lhes € proveitoso, se afastam dele, embora com esforgo; do mesmo modo n6s, devido ao amor por essa poesia que em nés se for- mou por influéncia da educacio dos nossos belos Estados, estaremos dispostos a vé-la como muito boa e verdadecira, mas, enquanto nao for capaz de se justificar, escutd-la- % ‘Todas as expresses entre aspas devem provir de cita- goes de poetas, provavelmente da lirica, mas nao & possivel iden- tificd-las. 476 -emos, repetindo para nés mesmos os argumentos que expusemos, e aquele mesmo canto mifgico, tomando Pprecaug6es para nao cairmos novamente naquela paixio da nossa infancia, ¢ que ¢ a da maioria. Repetiremos que nio devemos preocupar-nos com esta poesia, como detentora da verdade, e como coisa séria, mas o ouvinte deve estar prevenido, receando pelo seu governo inte- tior, e acreditar nas nossas afirmagdes acerca da poesia. —Concordo inteiramente — respondeu ele. —F um grande combate, meu caro Gl4ucon, é gtande, e mais do que parece, 0 que consiste em nos tornarmos bons ou maus. De modo que nio devemos deixar-nos atrebatar por honrarias, riquezas, nem poder algum, nem mesmo pela poesia, descurando a justia € as outras virtudes. —Concordo contigo, em consequéncia da anilise que fizemos; ¢ qualquer outra pessoa também, segundo julgo. — Além disso — prossegui ¢u— no tratémos das recompensas maximas da virtude e dos prémios que a aguardam. —E incrivel a sua magnitude, se ainda hi outros maiores do que os que referimos. — Que poderia haver de grande em tempo tio minguado? Efectivamente, todo esse tempo que medeia entre a infancia e a velhice, em comparagio com a tota- lidade, seria coisa assaz reduzida. —Nao é mesmo nada. —Ora bem! Julgas que um objecto imortal deverd preocupar-se com um tempo assim limitado, e nio com a sua totalidade? —Eu nio, por certo. Mas por que dizes isso? —Nio te apercebeste de que a nossa alma é imortal € munca perece? 417 609a Ele olhou para mim, e, suspenso, disse: — Eu c& nao, por Zeus! Mas tu podes demonstr4-lo? — Nao tenho o direito de me escusar. E acho que tu também podes, pois nao é nada dificil. —Eu cé niio. Mas terei muito prazer em te ouvir essa demonstragio que no é dificil. — Ouviras. — Fala entio. — HA uma coisa a que chamas bem e outra mal? — Hi. — Porventura pensas sobre isso 0 mesmo que eu? —O qué? — Que tudo o que destréi e corrompe é mau, 20 passo que o que salva ¢ preserva € bom. —E o que penso. —E entio? Afirmas que hé para cada coisa, bem e mal? Por exemplo, a oftalmia, pata os olhos, a doenga, para a totalidade do corpo, o mildio, para o trigo, a podridio para a madeira, o verdete e a ferrugem para o bronze e o ferro, e, conforme disse, um mal e uma doenga quase congénitos para cada coisa? — Afirmo, sim. — Logo, quando algum destes males sobrevém a uma dessas coisas, nado deteriora aquela em que surgiu, € nao acaba por a dissolver e destruir completamente? — Pois nao! —Por conseguinte, o mal e o vicio préprios da natureza de cada coisa é que deitam a perder cada uma; ou, se nio for isso que a deita a perder, nio ha outra coisa que possa destrui-la. De facto, nao se teme que © bem jamais cause a perdigio de qualquer coisa, nem © que nio é bom nem mau. —Como havia de fazé-lo? 478 — Se, portanto, encontrarmos algum ser, com um mal que o torna corrupto mas incapaz de o dissolver ¢ destruir, no saberemos desde logo que nao ha des- truigio possivel para um ser assim canstituido? —E natural que seja assim. — Ora pois! Para a alma nao ha nada que a torne md? — Hi, e muito. Tudo quanto enumerdmos ha pouco*! : a injustiga, a intemperanga, a cobardia e¢ a ignorincia. — Acaso é um desses defeitos que a destréi € cor- rompe? E repara, nao vamos iludir-nos, supondo que o homem injusto ¢ insensato, quando surpreendido a praticar a injustiga, perece nessa ocasido, devido 4 injustiga, que € o vicio da sua alma. Mas procede da seguinte maneira: tal como a maldade do corpo, que é a doenga, desgasta o corpo, o destrdi e o leva a ja nao ser um corpo, do mesmo modo também tudo o que ha pouco enumerdmos, devido 4 maldade prdpria, que, assentando arraiais e permanecendo hela, a corrompe, acaba por ser aniquilado, nao é assim? —Vamos 14 entio examinar a alma segundo o mesmo método. Porventura a injustica, e demais vicios que nela existem, pelo facto de permanecerem e assen- tarem arraiais nela, a destroem e fazem murchar, até que a levam a morte, separando-a do corpo? — La isso nao! —Contudo, seria absurdo que um mal alheio des- truisse uma coisa, e o préprio nao. — Seria absurdo. 1 Supra, Iv. 444c. 479 c d 610a — Pensa entiio, 6 Gléucon, que nao é devido a m4 qualidade que tenham os alimentos, quer ela seja velhice, podridio ou qualquer outra, que supomos que © corpo nao pode deixar de ser destruido. Mas, se a m4 qualidade dos préprios alimentos é que causa no corpo, a corrupcio do mesmo, diremos que, devido a esses alimentos, peteceu por efeito do seu préprio mal, que é adoenga. Mas jamais julgaremos que o corpo é destruido. pela m4 qualidade dos alimentos, por estes serem uma coisa, € 0 corpo outra, desde que o mal alheio nao tenha provocado nele o mal que lhe € préprio. —Dizes muito bem. — Pela mesma razao, se o mal do corpo niio provoca na alma o mal da alma, no pretendamos jamais que a alma é destruida por um mal alheio, sem a ajuda do seu mal prdprio, e que uma coisa perece pelo mal da outra. —E légico. —Por conseguinte, ou demonstramos que nao dissemos bem, ou, enquanto o nio fizermos, nao afir- memos jamais que, devido 4 febre, ou a qualquer outra doenga, ou a assassinio, nem que se retalhasse 0 corpo todo em bocadinhos 0 mais pequeno possivel, por esses motivos, a alma jamais pereca antes de alguém demonstrat que, devido a esses padecimentos do corpo, se torna mais injusta e mais impia. Mas, quando surge o mal numa coisa, que lhe é alheia, sem que se forme o que lhe é préprio, nao consintamos que se diga que a alma ou qualquer outra coisa perece. —A verdade é que nunca ninguém poder provar que as almas dos que morrem se tornam mais injustas por efeito do seu trespasse. — Mas se alguém — prossegui eu — ousasse entrar em luta com o nosso argumento, e dizer, a fim de nio 480 | | ser forcado a concordar com a imortalidade da alma, que quem morre se torna pior e mais injusto, entende- riamos que, se tais afirmagoes fossem verdadeiras, a injus- tiga era, para o seu detentor, tio mortal como se fosse uma doenga, e que esse mal, mortal por sua prdépria matureza, matava quem o.contrai; mais depressa aos mais injustos, mais de espago aos menos injustos, em vez de ser como na situacio actual em que, como resultado desse facto, os injustos motrem por outros lhes imporem castigo. —Por Zeus! A injustiga nao pareceria um mal tio terrivel, se fosse mortal para quem a acolhesse, porquanto setia a libertagio do mal, mas julgo antes que se apresentard, bem ao contrério, como causa da morte dos outros, se a tanto chega 0 seu poder, ao_passo que torna cheio de vivacidade aquele que a possui, e desperto, além de Ihe dar vitalidade. Tao longe estio, 20 que parece, os seus arraiais dos da morte. —Dizes bem. Desde que a petversidade propria eo mal préprio nao sao capazes de matar e destruir a alma, dificilmente o mal predisposto para a destruigao de outra coisa perder a alma ou qualquer outra coisa, excepto aquela a que esta afecta. — Dificilmente, ao que perece. — Logo, quando uma coisa nfo perece devida a um mal, quer Ihe seja préprio, quer estranho, é evidente que é forgoso que exista sempre. E, se existe sempre, € imortal. — Forgosamente. — Admitamos, portanto, que isto é assim. Mas, se 0 for, compreendes que sio sempre as mesmas almas que existem. Uma vez que nenhuma petece, no podem diminuir nem aumentar. Com efeito, se algum grupo 481 611a de seres imortais aumentasse, bem sabes que se ampliaria com o que é mortal, e tudo acabaria por ser imortal. —Falas verdade. —Mas nio vamos supor tal coisa, porquanto a raziio 0 niio consente, nem tio-pouco vamos supor que a alma, na sua verdadeira natureza, € de tal espécie que esteja repleta de variedade, disparidade e discordincia consigo mesma. — Que queres dizer? —Nio é facil ser eterno, se se é formado de muitas partes, a menos que a ordenagio seja perfeita, como agora se nos revelou ser o caso da alma. — Nao é natural, na verdade. — Que a alma é, por conseguinte, imortal, quer o argumento de ha pouco, quer os demais ** nos forcariam a dizé-lo. Mas, para saber o que é na verdade, nao devemos examiné-la deteriorada pela unio com 0 corpo € outros males, que é como actualmente a vemos, mas tal como ela fica depois de purificada, é assim que devemos observ4-la cuidadosamente pela razao, ¢ entéo acharemos que ela € muito mais bela e veremos com muito maior transparéncia diferentes exemplos de justiga ¢ injustiga ¢ tudo quanto acabémos de expor. Agora o que dissemos sobre ela, é verdade, quanto ao seu estado actual. Nés vimo-la seguramente num estado comparavel ao de Glauco marinho %*, Quem o vit, nao reconhecerd facilmente a sua natureza primitiva, devido ao facto de, das partes 32 Qs comentadores tém utilizado esta referéncia como uma das raras indicagdes sobre a cronologia telativa da obra, uma vez que pode ver-se aqui uma alusio aos argumentos apresentados no Ménon e no Fédon sobre a imottalidade da alma. 33 Pescador bedcio que, por se ter banhado numa fonte sagrada, se tornou imortal — segundo informa o escoliasta. Como 482 antigas do seu corpo, umas se terem quebrado, outras estarem gastas, e todas deterioradas pelas ondas, ao passo que outras se sobrepuseram nela — conchas, algas, ou seixos —, de tal modo que se assemelha mais a qual- quer animal do que ao seu antigo aspecto natural. E assim também que nés vemos a alma, abatida por milhentos vicios, mas é para 14, 6 Glducon, que devemos olhar. — Para onde? —Para o seu amor da sabedoria, para o conhe- cimento dos objectos com que entra em contacto, a espécie de companhias que procura, uma vez que aparentada com o divino, o imortal e o eterno, e para aquilo em que se tornaria, se se voltasse toda para coisas dessa natureza, e se, arrebatada por esse impulso, saisse do mar em que se encontra actualmente, arrancando seixos ¢ conchas — as numerosas e selvagens excrescéncias de terra e pedra que, em consequéncia destes festins bem-aventurados, como lhes chamam, nasceram em volta dela no seu estado actual, porque é de terra que ela se banqueteia, Entio ver-se-ia a sua verdadeira natureza, se € complexa ou simples, ou como é. Agora quanto as afecgdes e formas que tem na vida humana, analisamo-las suficientemente, segundo julgo. | — Absolutamente. —Pois bem! Nao conseguimos, na nossa argumen- tagio, refutar as acusagdes contra a justiga, e, especial- mente, abstet-nos de trazer 4 liga as recompensas e fama que lhe sio atinentes, como vés dizieis * que fizeram divindade marinha, acabou por se assimilar a Proteu. Fi de supor que estivesse presente a intengao, notada por Ferguson, de fazer um jogo de palavras com o nome de Gliucon. 3 CE, supra It. 3632-d. 483 612a Hesiodo ¢ Hometo? Nao descobrimos que a justia era, em si mesma, a coisa melhor pata a alma, € que esta devia praticar a justiga, quer fosse possuidora do anel de Giges #5, quer nio, e, além desse anel, do elmo de Hades 36? —Dizes a maior das verdades. —Ora, pois, Gléucon, ainda haveré que objectar, se restituirmos A justiga e 4s demais virtudes, além daqueloutras vantagens, as recompensas, quantas e quais ela proporciona a alma por parte dos homens e dos deuses, quando 0 homem esté vivo e depois de ter morrido? — Absolutamente nada. — Ora entio ides restituir-me o que vos emprestei na discussio? —O qué? —Concedi-vos que 0 homem justo pode passar por injusto, € © injusto por justo. Solicitaveis que, ainda quando ni fosse possivel enganar deuses e homens nesse ponto, mesmo assim devia concedet-se por amor da argu- mentagio, a fim de se pronunciar um juizo sobre a justiga em si, perante a injustica em si, Ou nfo te recordas? — Faria mal em nao me recordar. — Uma vez, portanto, que o juizo esté formulado, solicito-vos novamente, em nome da justiga, que a fama que tem junto de deuses e homens, reconhegamos nds igualmente que a possui, a fim de‘ela ganhar os prémios que conserva devido 4 sua reputacio, e que concede aos que Sobre 0 anel de Giges, vide supra 11. 359¢-360b e nota r, a0 mesmo Livro. % A mais antiga referéncia ao elmo de Hades (0 deus dos mortos) consta da I/iada v. 844-845, onde se lé que Atena colocou esse elmo na cabeca, para se tornar invisivel. 484 a possuem, uma vez que se evidenciou que ela dé os bens provenientes da realidade, e nao ilude os que a acolhem de verdade. —E justo o que tu pedes. —Restituis-me entio, em primeiro lugar, o prin- cipio de que aos deuses, pelo menos, nao passa desper- cebido como é cada uma destas espécies de homens? — Restituimos. —E, se nfo lhes passa despercebido, uma espécie ser4 amada pelos deuses, € outra detestada, tal como assentamos ao principio *7, —E isso. — Quanto ao que é amado pelos deuses, nio con- cordaremos em que tudo o que provém dos deuses sera para ele o melhor possivel, a menos que tivesse algum mal inevitavel, proveniente de uma falta anterior 98? — Absolutamente. — Assim, deve entendet-se, relativamente ao homem justo, que, se ficar na miséria, doente ou sob a alcada de qualquer outro desses estados considerados como maus, tal situagio acabaré num beneficio para cle, quer em vida, quer depois de morto. Efectivamente, os deuses nunca descuram quem quiser empenhar-se em er justo e em se igualar ao deus, até onde isso é possivel um homem, na pratica da virtude. — Fi natural, sem duvida, que um homem assim nao seja esquecido pelo seu semelhante. — Quanto ao homem injusto, no deve pensat-se © contrério? — Forgosamente. 8 CE. supra, 1. 352b. 98 Entenda-se: cometida numa existéncia anterior. 485 613a — Logo, do lado dos deuses, seriam estas as recom- pensas do justo. — Em meu entender, s4o-no certamente. —E agora, do lado dos homens? Acaso no é assim, se quisetmos pér as coisas como elas sio? Nao fazem os homens habeis e injustos como os corredores que correm bem do extremo inferior da liga para o supe- rior, mas nfo deste para aquele *°? A principio, saltam com presteza, mas ao chegarem ao fim fazem uma figura ridicula, quando, de orelha murcha “, saem a pressa sem serem coroados, ao passo que os verdadeiros corre- dores, depois de atingirem o fim, alcangam os prémios € sio coroados. Nao é assim que sucede a maior parte das vezes com os justos? Chegam ao termo de cada uma das suas actividades, das companhias e da vida, com boa fama e levam os prémios por parte dos homens. —E exacto. —Consentes entdo que eu diga acerca deles o que tu disseste sobre os injustos ‘1? Direi pois que os justos, quando se tornam mais velhos, atingem na sua cidade os postos que quiserem, casam com quem qui- serem, e dio os filhos em casamento a quem quiserem. E tudo quanto afirmaste acerca dos homens injustos, eu o direi agora dos justos. E agora, quanto aos homens injustos, mantenho que a maior parte deles, ainda que passem despercebidos em novos, sio apanhados ao 3 A metéfora é tirada do Biavdoc, uma das provas dos Jogos Olimpicos, que consistia em percorrer o estédio nos dois sentidos. “© A expressio do original significa literalmente «com as orelhas em cima dos ombros». © Supra, 1, 362b. 486 chegarem ao fim da carreita, cobrem-se de ridiculo e, quando envelhecem, siq insultados na sua miséria por estrangeiros e conterrineos, sio chicoteados e sofrem aqueles_suplicios que _classificaste_de_selvagens **, ¢ com razio (depois sio torturados e queimados com ferros em brasa); tudo isso tu imaginards que me ouviste dizer também a mim como o sofrem. Mas vé I4 se aceitas o que eu digo. —Absolutamente, pois sio justas as tuas palavras. — Serio assim os prémios, recompensas ¢ dadivas que 0 justo recebe, em vida, dos deuses ¢ dos homens, além daqueles bens que a prépria justiga lhe proporciona. —E sio bens formosos ¢ sdlidos. —Ora esses nada sio, em nimero nem em gran- deza, em comparacio com os que aguatdam cada um deles depois da morte. E isso que é preciso escutar, pata que cada um receba exactamente aquilo que, por forca da argumentagio, lhe é devido. —Diz l4, que nfo hé coisa que eu oiga com mais agrado, —A verdade € que 0 que te vou narrar nio é um conto de Alcinoo 4%, mas de um homem valente “, 2 Supra, 1. 36re. 43 Os contos narrados por Ulisses a Alcinoo, rei dos Feaces, nos Cantos x a xtr da Odisstia, sio todos de caricter fantastico. Entre eles, figura uma descida ao Hades (Canto x1), que reforca o paralelismo com a histéria de Er. A interpretagio do mito que agora principia pode ler-se no nosso trabalho Concepeoes Helénicas de Felicidade no Além, de Homero a Platao, Coimbra, 1955, pp. 85-88, 177-179, 200. 4° © adjectivo que traduzimos por «valenter, dxluov, forma, com o nome de Alcinoo, um jogo de palavras que nfo foi possivel manter em portugués. 487 614a Er o Arménio, Panfilio de nascimento. Tendo ele mor- rido em combate, andavam a recolher, ao fim de dez dias, os mortos j4 putrefactos, quando o retiraram em bom estado de satide. Levaram-no para casa para lhe dar sepultura, e, quando, ao décimo segundo dia, estava jazente sobre a pira, tornou 4 vida e narrou o que vira no além. Contava ele que, depois que saira do corpo, a sua alma fizera caminho com muitas, e haviam chegado a um lugar divino, no qual havia, na terra, duas aber- tutas contiguas uma 4 outra, e no céu, 14 em cima, outras em frente a estas. No espago entre elas, estavam sentados juizes que, depois de pronunciarem a sua sentenga, mandavam os justos avangar para o caminho 4 direita, que subia para o céu, depois de lhes terem atado a frente a nota do seu julgamento; ao passo que, aos injustos, Pprescreviam que tomassem 4 esquerda, e para baixo, levando também atrés a nota de tudo quanto haviam feito. Quando se aproximou, disseram-lhe que ele devia ser 0 mensageiro, junto dos homens, das coisas do além, e ordenaram-lhe que ouvisse ¢ observasse tudo © que havia naquele lugar. Ora ele viu que ali, por cada uma das aberturas do céu e da terta, saiam as almas, depois de terem sido submetidas ao julgamento, ao passo que pelas restantes, por uma subiam as almas que vinham da terra, cheias de lixo ¢ de pd, e por outra desciam as almas do céu, em estado de pureza. Eas almas, a medida que chegavam, pareciam vir de uma longa travessia e fegozijavam-se por irem para o prado acampar, como se fosse uma panegiria 44; as que se conheciam, cum- 45 Nome genérico para os festivais religiosos dos Gregos. A palavra significa etimologicamente «reuniio getal». 488 ptimentavam-se mutuamente, e as que vinham da terra faziam perguntas 4s outras, sobre 0 que se passava no além, e as que vinham do céu, sobre o que sucedia na terra, Umas, a gemer e a chorar, recordavam quantos ¢ quais sofrimentos haviam suportado e visto na sua viagem por baixo da terra, viagem essa que durava mil anos, ao passo que outras, as que vinham do céu, contayam as suas deliciosas experiéncias ¢ visées de uma beleza indescritivel. Referir todos os pormenotes seria, 6 Glaucon, tarefa para muito tempo. Mas o essencial dizia ele que era o que segue. Fossem quais fossem as injustigas cometidas ¢ as pessoas prejudicadas, pagavam a pena de tudo isso sucessivamente, dez vezes por cada uma, quer dizer, uma vez em cada cem anos, sendo esta a duragio da vida humana—a fim de pagarem, decuplicando-a, a pena do crime; por exemplo, quem fosse culpado da morte de muita gente, por ter traido Estados ou exércitos e os ter lancado na escravatura, ou por ser respons4vel por qualquer outro maleficio, por cada um desses crimes suportava padecimentos a decupli- car; ¢, inversamente, se tivesse praticado boas acgdes € tivesse sido justo e piedoso, recebia recompensas na mesma proporgio. Sobre os que morreram logo a seguir ao nascimento ¢ os que viveram pouco tempo, dava outras informagées que nao vale a pena lembrar. Em relagio 4 impiedade ou piedade para com os deuses € para com os pais, e crimes de homicidio, dizia que os saldtios eram ainda maiores. Contava ele, com efeito, que estivera junto de alguém a quem perguntaram onde estava Ardieu o Grande. Este Ardieu tinha sido tirano numa cidade da Panfilia, havia j4 entio mil ands; tinha assassinado o pai idoso € 0 irmao mais velho, e perpetrado muitas outras impiedades, 489 615a 616a segundo se dizia. E o interpelado respondera: «Nao vem, nem poder4 vir para aqui. Na verdade, um dos espectaculos terriveis que vimos foi o seguinte: Depois de nos termos aproximado da abertura, preparados para subir, e quando j4 tinhamos expiado todos os sofri- thentos, avistamos de tepente Ardieu e outros, que eram tiranos, na sua quase totalidade; mas também havia alguns gue eram particulares que tinham cometido grandes crimes —que, quando julgavam que j4 iam subir, a abertura nao os admitia, mas soltava um mugido cada vez que algum desses, assim incurdveis na sua maldade ou que nao tinham expiado suficientemente a sua pena, tentava a ascensio. Estavam 14 homens selvagens, que pareciam de fogo, e que, ao ouvirem o estrondo, agarravam alguns pelo meio ¢ levavam-nos, mas, a Ardieu ¢ outros, alge- maram-Ihes as maos. pés e cabega, derrubaram-nos ¢ esfolaram-nos, arrastaram-nos pelo caminho fora, car- dando-os em espinhos, ¢ declaravam a todos, 4 medida que vinham, por que os tratavam assim, e que os levavam para os precipitar no Tértaro». Entao tinham tido terrores multiplos e variados, mas o maior de todos era o de cada um deles ouvir o mugido, quando ia a subir, e foi com o maior gosto que cada um fez a ascensio ante o siléncio daquele. Eram mais ou menos estas as penas ¢ castigos, ¢ bem assim as vantagens que lhes correspondiam. Depois de cada um deles ter passado sete dias no prado, tinham de se erguer dali, e partir ao oitavo dia, para chegar, ao fim de mais quatro dias, aum lugar de onde se avistava, estendendo-se desde o alto através de todo o céu e terra, uma luz, direita como uma coluna, muito semelhante ao arco-fris, mas mais pbrilhante e mais pura. Chegaram 14, depois de terem feito um dia de caminho, e ai mesmo, viram, no meio 490 da luz, peridentes do céu, as extremidades das suas cadeias (efectivamente essa luz € uma cadeia do céu, que tal como as cordagens das trirremes 48, segura o firmamento na sua revolucio); dessas extremidades pendia o fuso da Necessidade, por cuja acgio giravam as esferas. A tespectiva haste e gancho #7 eram de ago; © contrapeso, de uma mistura desse produto e de outros. Quanto 4 natureza do contrapeso, era como segue. A sua configuracio era semelhante 4 dos daqui, mas, quanto 4 sua constituigio, contava ele que deviamos imaginé-la da seguinte maneira: era como se, num grande contra- peso oco e completamente esvaziado, estivesse outro semelhante, maior, que coubesse exactamente dentro dele, como as caixas que se metem umas nas outras; do mesmo modo, um terceiro, um quarto, e mais quatro. Com efeito, eram oito ao todo, os contrapesos, encai- xados uns nos outros, que, na parte superior, tinham o tebordo visfvel com outros tantos circulos, formando um plano continuo de um sé fuso em volta da haste. Esta atravessava pelo meio, de lés-a-lés, 0 oitavo. Ora © primeiro contrapeso, o exterior, eta o que tinha o citculo de rebordo mais largo; o segundo lugar cabia a0 sexto, © terceiro ao quarto, 0 quarto ao oitavo, o quinto ao sétimo, 0 sexto ao quinto, o sétimo ao terceiro, o oitavo ao segundo. O circulo do maior era cintilante, © do sétimo era o mais brilhante, o do oitavo tinha a “© As trirremes cram seguras na sua parte inferior por cotdas dispostas horizontalmente. * Os fusos gregos constavam de uma haste vertical, cuja extremidade superior terminava num gancho, sob o qual passava a li, que depois se ia enrolar na referida haste; na parte inferior desta, ficava 0 contrapeso, que facilitava a rotagio, enquanto se fiava. 491 617a cor do sétimo, que o iluminava, o do segundo e do quinto eram muito semelhantes entre si; um pouco mais ama- telados do que aqueles, 0 terceiro era o que tinha a cor mais branca, o quarto era avermelhado, o sexto era o segundo em brancura 48, O fuso inteiro girava sobre si na mesma direccdo, mas, na rotagao desse todo, os sete circulos interiores andavam 4 volta suavemente, em direccio oposta ao resto, Dentre estes, o que andava com maior velocidade era 0 oitavo; seguiam-se, a0 mesmo tempo, o sétimo, 0 sexto, € 0 quinto; o quarto parecia- -lhes ficar em terceiro lugar nesta revolugio em sentido retrégrado, o terceito em quarto, e o segundo em quinto. O fuso girava nos joelhos da Necessidade. No cimo de cada um dos circulos, andava uma Sereia que com cle girava, e que emitia um tnico som, uma unica nota musical; e de todas elas, que eram oito, resultava um acorde de uma tnica escala**, Mais trés mulheres estavam sentadas em circulo, a distancias iguais, cada uma em seu trono, que eram as filhas da Necessidade, as Parcas 5°, vestidas de branco, com grtinaldas na cabega Seguindo a interpretagio de Cornford, o circulo exterior é © das estrelas fixas; 0 sexto, o de Vénus; 0 quarto, de Marte; 0 oitavo, da Lua; 0 sétimo, do Sol; 0 quinto, de Mercirio; o terceiro, de Jupiter; © segundo, de Saturno, Quando se diz que «0 oitavo tinha a cor do sétimo, que o iluminava>, esti-se a explicar a origem do luar, que, aliés, jd fora compreendida por Xendfanes, Parménides, Empédocles ¢ Anaxagoras. Que o tenha sido anteriormente a estes, por Anaximenes, é duvidoso (cf. G. S, Kirk and J. E, Raven and M. Schofield, The Presocratic Philosophers *1983, p 156, nota 2. © Ea famosa «harmonia das esferas». % Em grego, as Moira, Nos Poemas Homéricos, a Moira representa, para cada um, 0 seu destino fixo, inamovivel. O numero € nome destas divindades surge pela primeira vez em Hesiodo, 492 — Laquesis, Cloto e Atropos—as quais cantavam ao som da melodia das Sereias, LAquesis, 0 passado, Cloto, presente, e Atropos o futuro. Cloto, tocando com a mio direita no fuso, ajudava a fazer girar o circulo exte- rior, de tempos a tempos; Atropos, com a mio esquerda, procedia do mesmo modo-com os circulos interiores; e Laquesis tocava sucessivamente nuns e noutros com cada uma das mios. Ora eles, assim que chegaram, tiveram logo de ir junto de Laquesis. Primeiro, um profeta 1 dispé-los por ordem. Seguidamente, pegou em lotes e modelos de vidas que estavam no colo de Laquesis, subiu a um estrado elevado e disse: «Declaragio da virgem Laquesis, filha da Necessi- dade. Almas efémeras, vai comegar outro periodo por- tador da motte para a raga humana. Nao é um génio que vos escolheré, mas vés que escolhereis 0 génio. O primeiro a quem a sorte couber, seja o primeiro a escolher uma vida a que ficar4 ligado pela necessidade. A virtude ndo tem senhor; cada um a teré em maior ou menor grau, conforme a honrar ou a desonrar. A res- ponsabilidade é de quem escolhe. O deus é isento de culpa». Teogonia 218, 905. A funcio de cada uma no texto esta em relagio com a etimologia do seu nome (cf. n. 61). Sobre a origem ¢ evolugio do conceito de Moira, veja-se 0 nosso artigo na Enciclo- pldia Verbo, 8. v. *1 A palavra grega, donde a nossa deriva, designa um intérprete dos deuses. «Celebrado profeta das Piérides» se intitula Pindaro no Péan vr, v. 6. © mesmo poeta escreveu (fr. 150 Snell): Dé o teu ordculo, Musa, que eu serei o ten profeta. 52 No original esta a palavrd daimop, que a partir de Hesiodo pode designar um ser intermédio entre deuses e homens. 493 Ditas estas palavras, atirou com os lotes para todos e cada um apanhou o que caiu perto de si, excepto Er, a quem isso nfo foi permitido. Ao apanhé-lo, tor- mara-se evidente para cada um a ordem que lhe cabia 618a para escolher. Seguidamente, dispds no solo, diante deles, os modelos de vidas, em nimero muito mais elevado do que o dos presentes. Havia-os de todas as espécies: vidas de todos os animais, e bem assim de todos os seres humanos. Entre elas, havia tiranias, umas duradouras, outras derrubadas a meio, e que acabavam na pobreza, na fuga, na mendicidade. Havia também vidas de homens ilustres, umas pela forma, beleza, forca e vigor, outras pela raga e virtudes dos antepas- sados; depois havia também as vidas obscuras, e do mesmo modo sucedia com as mulheres. Mas nfo con- tinham as disposig6es do cardcter, por ser forgoso que este mude, conforme a vida que escolhem. Tudo o mais estava misturado entre si, e com a riqueza e a indigéncia, a doenga ¢ a saide, e bem assim o meio termo entre estes ptedicados. E ai que esté, segundo parece, meu caro Gl4ucon, o grande perigo para o homem, e por esse motivo se deve ter o maximo cuidado em que cada um de nds ponha de parte os outros estudos para inves- tigar e se aplicar a este, a ver se é capaz de saber e des- cobrir quem lhe dard a possibilidade e a ciéncia de dis- tinguir uma vida honesta da que é ma e de escolher sempre, em toda a parte, tanto quanto possivel, a melhor. Tendo em conta tudo quanto ha pouco dissemos, e o efeito que tem, relativamente 4 virtude na vida, o facto de juntar ou separar as qualidades, saberé o mal ou o bem que produzira a beleza misturada com a pobreza ou a tiqueza, e com que disposigao da alma, ¢€ o resultado da mistura, entre si, do nascimento clevado ou modesto, 44 da vida particular e das magistraturas, da forca e da fra- queza, da facilidade e da dificuldade em aprender, e todas as qualidades naturalmente existentes na alma, ou adquiridas. De modo que, em conclusio de tudo isto, serd capaz de reflectir em todos estes aspectos e distinguir, tendo em conta a natureza da alma, a vida pior e a melhor, cha- mando pior 4 que levaria a alma a tornar-se mais injusta, e melhor 4 que a leva a ser mais justa. A tudo o mais ela nao atender4. Vimos, efectivamente, que, quer em vida, quer para depois da morte, € cssa a melhor das escolhas. Deve, pois, manter-se essa opiniio adamantina até ir para o Hades, a fim de, lé também, se permanecer inabalavel 4 riqueza e a outros males da mesma espécie, € nio se cair na tirania e outras actividades semelhantes, originando males copiosos e sem remédio, dos quais os maiores seria o proprio que os sofreria; mas deve-se saber sempre escolher 0 modelo intermédio dessas tais vidas, evitando 0 excesso de ambos os lados, quer nesta vida, até onde for possivel, quer em todas as que vierem depois, E assim que o homem alcanga a maior felicidade, Ora, entio, anunciou o mensageiro do além, © profeta falou deste modo: «Mesmo para quem vier em ultimo lugar, se escolher com inteligéncia e viver honestamente, espera-o uma vida apetecivel, e nio uma desgragada. Nem o primeiro deixe de escolher com prudéncia, nem o ultimo com coragem». Ditas estas palavras, contava Er, aquele a quem coubera-a primeira sorte logo se precipitou para escolher a tirania maior, e, por insensatez e cobica, arrebatou-a, sem tet examinado capazmente todas as consequéncias, antes Ihe passou despercebido que o destino que 14 estava fixado comportava comer os prdéprios filhos ¢ outras desgragas. Mas, depois que a obseryou com 495 619a 620a vagar, batia no peito e lamentava a sua escolha, sem se ater as prescrigdes do profeta. Efectivamente, nao era a si mesmo que se acusava da desgraga, mas A sorte ¢€ as divindades, e a tudo, mais do que a si mesmo. Ora esse era um dos que vinham do céu, e vivera, na incar- nagio anterior, num Estado bem governado; a sua participagio na virtude devia-se ao habito, nao a filosofia, Pode-se dizer que nao eram menos numetosos os que, vindos do céu, se deixavam apanhat em tais situagdes, devido 4 sua falta de treino nos sofrimentos. Ao passo que os que vinham da terra, na sua maioria, como tinham sofrido pessoalmente e visto os outros softer, nao faziam a sua escolha a pressa. Por tal motivo, e também devido A sorte da escolha, o que mais acontecia as almas era fazerem a permuta entre males e bens. Fi que, se cada vez que uma pessoa chega a esta vida, filosofasse sadia- mente, € nao lhe coubesse em sorte escolher entre os Ultimos, teria probabilidades, segundo o que se conta das coisas do além, nao sé de ser feliz aqui, mas também de fazer um percurso daqui para 14, e novamente para aqui, ndo pela _aspereza da terra, mas pela lisura do céu. Era digno de se ver este especticulo, contava ele, como cada uma das almas escolhia a sua vida. Era, realmente, merecedor de piedade, mas também ridiculo e surpreendente. Com efeito, a maior parte fazia a sua opgao de acordo com os habitos da vida anterior. Dizia ele que vira a alma que outrora pertencera a Orfeu 5% *8 As mais antigas referéncias a Orfeu sé falam da sua fama ico, fr. 25 Page) ou da sua habilidade como misico, que até 0s animais escutavam em siléncio (Siménides, frs. 62 ¢ go Page). Uma métopa do Tesouro de Sicion em Delfos representa-o na expedigao dos Argonautas, 0 que Pindaro confirma na IV* Ode 496 escolher uma vida de cisne, por édio a raga das mulheres, porque, devido a ter sofrido a morte ds mios delas, nao queria nascer de uma mulher; vita a de Tamiras 5 escolher uma vida de rouxinol; vira também um cisne preferir uma vida humana, e outros animais mitsicos procederem do mesmo modo. A alma a quem coubera a vigésima vez, escolheu a vida de um leio: era a de Ajax Telaménio 5, que fugia de ser homem, lembrada do julgamento das armas. A seguir a esta, era a de Aga- Pitica (176-177). O. mito segundo o qual descera ao Hades para trazer de ld sua mulher Euridice jé figura em Euripides (Alceste 357-362); ai consegue comover os deuses infernais e reaver a mulher, com a condigio de nao olhar para cla no caminho; 0 que Orfeu no faz, perdendo-a para sempre. A partir daqui, a histétia apresenta variantes, Segundo uma versio, Orfeu aborrece todas as mulheres, e elas vingam-se, dilacerando-o; segundo outra, deixa de prestar culto a Dioniso, ¢ as Ménades, devotas desse deus, dio-lhe a mesma sorte. No seu comentirio a este texto, Proclo escreyeu que Orfeu teve de softer o mesmo destino que Dioniso, por ser figura principal dos ritos desse deus. Sobre a interpretacio moderna da figura de Orfeu, veja-se E. R. Dodds, The Greeks and the Irrational, 1951, Pp. 147+ Ta ra um aedo tricio, que, por ter querido riva- lizar com “as Musas, foi por elas privado da visio, como se lé jé na Iliada 11. $94-600. 8s Ajax Telaménio, rei de Salamina, que muitos passos da Iiada proclamam o melhor guerreiro aqueu, depois de Aquiles, aparece a Ulises no Hades, mas no se aproxima dele, porque ainda se lembra do ressentimento que teve por haverem sido adjudicadas ao rei de {taca, ¢ nio a ele, as armas do mais valente dos Aqueus (Odisseia xt. 543-564). Esse «Julgamento das armas» € consequente suicidio de Ajax, a que, portanto, a Odisseia ja alude, era um dos episédios de um dos poemas do chamado Ciclo Epico, a Pequena Iiiada, A historia veio a ser aprovcitada diversas vezes pelos trigicos, mas s6 se conserva 0 Ajax de Séfocles. 497 32 mémnon 56, Também ela, por édio 4 raga humana, devido ao que padecera, quis mudar para uma vida de 4guia. A alma de Atalanta 5’, a quem a sorte colocara no meio, ao ver as grandes honrarias de um atleta, nao pode passé-las a frente, ¢ tomou-as para si. Depois dela, viu a alma de Epeio ®8, filho de Panopeu, entrar na matureza de uma mulher perita em trabalhos de arte- sanato. E 4 distancia, entre as ultimas, avistou a alma do bufao Tersites ® a enfiar-se na forma de um macaco. Depois, a alma de Ulisses, a quem a sorte reservara ser a ultima de todas, avangou para escolher, mas, lembrada dos anteriores trabalhos, quis descansar da ambicio, e andou em volta a procurar, durante muito tempo, a vida de um particular tranquilo; descobriu-a a custo, jazente em qualquer canto, e desprezada pelos outros; ao vé-la, declarou que faria o mesmo se lhe tivesse cabido © primeiro lugar, e pegou-lhe alegremente ®. Os res- 5¢ Agamémnon, ‘rei de Micenas e chefe supremo da expe- digio a ‘Trdia, foi assassinado no regresso por sua mulher Cli- temnestra e por Egisto. A historia, referida por diversas vezes na Odisseia, tornou-se famosa sobretudo através da tragédia de Esquilo, Agamémnon, *7 Atalanta era cagadora e s6 aceitava por marido quem a vencesse na corrida. O que Mildnion conseguiu, atirando-Ihe para o caminho trés magis de ouro, dadiva de Afrodite, que a jovem se demorou a apanhar. 58 Epeio foi o autor do cavalo de pau, que permitiu aos Aqueus insinuarem-se em Trdia, para’ tomarem a cidade. 5 ‘Tersites & a tinica figura motal e fisicamente inferior da Miada, Pata criticar os reis, dizia tudo 0 que fizesse rir os Aqueus, © que fez com que Ulisses 0 castigasse, com grande aplauso da assembleia (11. 212-277). © © desejo de uma velhice tranquila, apés tio grandes trabalhos, é tema que ja aparece mais do que uma vez na Odisseia, 498 ___ tantes animais procediam do mesmo modo, passando para seres humanos ou uns para outros; mudavam, os que eram injustos, para animais selvagens, os justos para domésticos, e faziam toda a espécie de misturas. Assim que todas as almas escolheram as suas vidas, avangaram, pela ordem da sorte que lhes coubera, para junto de Laquesis. Esta mandava a cada uma o génio que preferira para guardar a sua vida e fazer cumprir o que escolhera. O génio conduzia-a primeito a Cloto, punha-a por baixo da mio dela e do turbilhio do fuso a girar, para ratificar o destino que, depois da tiragem 4 sorte, escolhera. Depois de tocar no fuso, conduzia-a novamente 4 trama de Atropos, que tornava irreversfvel o que fora fiado®!. Desse lugar, sem se poder voltar para tras, dirigia-se para o trono da Necessidade, pas- sando para o outro lado, Quando as restantes passatam, todas se encaminharam para a planura do Letes ®%, através de um calor e uma sufocagio terriveis. De facto, ela era despida de drvores e de plantas. Quando jé entardecia, acamparam junto do Rio Ameles ®, cuja 4gua nenhum vaso pode conservar. Todas sio forga- das a beber uma certa quantidade dessa gua, mas aquelas a quem a teflexdo nio salvaguarda bebem mais do que a medida. Enquanto se bebe, esquece-se tudo. Depois ¢ faz parte da profecia de Tirésias ao rei de ftaca, sobre 0 destino que o espera no seu pals, depois de ele apaziguar a célera de Poséidon (xt. 134-137). *1 Conforme notou Adam, ha no original um jogo de pala- vras entre os nomes destas duas Patcas ¢ os efeitos do seu trabalho. ®2 A palavra grega Atm, que mantemos por ser tradicional, significa «esquecimento». * © nome do rio quer dizer «sem cuidados». 499 621a que se foram deitar e deu a meia-noite, houve um trovdo eum tremor de terra. De repente, as almas partitam dali, cada uma para seu lado, para o alto, a fim de nascerem, cintilando como estrelas. Er, porém, foi impedido de beber. Nao sabia, contudo, por que caminho nem de que mancira alcangara 0 corpo, mas, erguendo os olho$ de subito, viu, de manha cedo, que jazia na pira. Foi assim, 6 Glducon, que a histéria se salvou € nfio pereceu. E poderd salvar-nos, se lhe dermos crédito, ¢ fazer-nos passat a salvo 0 rio do Letes}e nao poluir aalma. Se acreditarem em mim, crendo que a alma é imortal e capaz de suportar todos os males e todos os bens, seguiremos sempre o caminho para o alto, € pra~ ticaremos por todas as formas a justiga com sabedoria, a fim de sermos catos a ndés mesmos e aos deuses, enquanto petmanecermos aqui; e, depois de termos ganho os prémios da justica, como os vencedores dos jogos que andam em volta a recolher as ptendas da multidao, tanto aqui como na viagem de mil anos que descrevemos, havemos de ser felizes. 500

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