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retrato e a burguesia florentina irlandaio em Santa Trinita de Lorenzo de’ Medici e seus parentes Dedicado a minha ¢sposa I. grande errore parlare delle cose del mondo indistintamente e assoluramente, ¢, per dire cosi, per regolas perché- quasi curte hanno distinziene ed eccezione per la varicté delle circumstance, in le quali ossono fermare con una medesima misura; e ueste distinzioni e eecezioni non si trovano scritte su’ libri, ma bisogna lo insegni la discrezione. TE. um grande erro falar sobre os assuntos do mundo ‘em termos indistintos c absolutos ¢ — por assim dizer ~ como regra; quase sempre cles envolvem distingbes e excegdes, pois as circunstancias variam, € nunca podem ser submetidos mesma medida, Essas distingSes ¢ excegées no sdio encontradas em livros, podem ser ensinadas pelo discernimento maduro.| Francesco Guiceiatdini, Ricordi politici ¢ eivili VI plo de um escoteiro modelar, Jakob Burckhardt desbravou e dominou ge ze 0 campo da cultura italiana do Renascimento ¢ 0 abriu para a ciéncia. © correspondia a sua natureza ser um explorador autocratico. Ao contré- grande era seu altruismo cientifico que, em vex de tratar 0 problema his tural em toda sua unidade artistica encantadora, dividiu-o em varias S, superficialmente desconexas, para entdo investigar e representar cada uma dualmente com sua serenidade magistral. De um lado, em sua obra Kultur sance [A cultura do Renascimento},' apresentou a psicologia do indivi- @ social sem referéncia as artes plasticas; de outro, em seu Cicerone;! ofereceu sas “uma orientacao para o desfrute das obras de arte”. Cumpriu com toda a ‘arte do etrato ea burguesiaflorentina 2 ta 21 <1) dutos mais belos, sem se preocupar em saber se algum dia viria a ter o privilégio de fazer uma apresentagio abrangente da cultura como um todo; s6 queria que nao fosse interrompido durante a semieadura — no se importava com quem ceifa- ria 0s frutos. Mesmo apés sua morte, esse conhecedor ¢ crudito genial nos desafia como investigador incansavel; em sua obra postuma, Beitrige zur Kunstgeschichte vont Italien [Contribuigées para a historia da arte italiana|,' na tentativa de realizar seu grande objetivo de uma histéria sintética da cultura, cle indicou um terceiro caminho empirico: nao se esquivou do trabalho de investigar cada obra individu- almente em seus winculos imediatos com 0 contexto contemporiineo para assim compreender as exigénciag‘da vida real como “causalidades”. O fato de estarmas cientes da personalidade superior de Jakob Burckhardt nao pode nos impedir de avancar pelas trilhas que ele apontou. Uma estadia de muitos anos em Florenca, os estudos em seus arquivos, os progressos obtidos na fotografia c a delimitacao local ¢ temporal do objeto de pesquisa me encorajam a publicar com este texto um adendo ao ensaio sobre o “retrato” de Burckharde, incluido em sua abra Contribuigées para a historia da arte italiana, acima men- Gionada. Outros estudos sobre a relagio entre as culturas burguesa ¢ artistica no circulo de Lorenzo de’ Medici — sobre Francesco Sassetti como ser humano ¢ amante da arte, sobre Giovanni Tornabuoni e 0 coro de Santa Maria Novella, sobre a cultura festiva mediceia ¢ as artes plsticas ¢ outros ~ devem seguir se em breve, assim espero. Desejo que essas publicagdes sejam recebidas por meus amigos conselheiros ¢ colegas fiéis dos anos de estudo em Florenga como expresso do mesmo espirito posto em pritica pelas vidas de Heinrich Brockhaus e Robert Davidsohn, que se dedicaram ao estudo incansivel ¢ minucioso das fontes da cultura florentina. Hamburgo, novembro de 1901. m2 Aby Warburg As forgas impulsionadoras de uma arte viva do retrato ndo se encontram exclusi- yamente no artista. Devemos manter em mente que ocorre um contato intimo entre criador e objeto criado; em cada periodo de formagio de um gosto mais clevado, tal contato gera um Ambito de relagdes mutuamente inibidoras e motiva- doras. Pois 0 comitente, ao desejar parecer-se mais com 0 tipo dominante em sua aparéncia externa ou, a0 contrério, ao preferir um destaque das particularidades de sua personalidade, também exerce uma influéncia sobre a arte do retrato, enfa- tizando ou o tipico ou o individual. ‘Um dos fatos fundamentais da cultura do inicio do Renascimento florentino diz que as obras de arte devem sua criago a interagdo conjunta ¢ compreensiva entre comitentes ¢ artistas; sua concepeao deve partir da nogdo de serem produtos de um acordo entre encomendador mestre executante. Nada, portanto, parece mais na- tural ¢ evidente do que a tentativa de expor detalhadamente a pergunta, que fize- mos acima, sobre a “relagao entre criador e objeto criado”, a exemplo de casos selecionados da histéria da arte florentina, para assim identificar os aspectos de validade geral nos atos individuais de sua existéncia real. No entanto, é mais facil pretender ¢ ousar tal tentativa do que executé-la, pois para a andlise comparativa da relagdo entre comitente ¢ artista a histéria da arte s6 tem a sua disposicao 0 re- sultado definitivo do processo artistico-figurativo, ou seja, a propria obra. Rara- ‘mente aspectos da interacio emocional ou dos acordos obtidos chegam ao publico. A verdade supreendente ¢ indefinivel manifesta-se na obra como dadiva de um afortunado momento imprevisto, ¢ assim se esquiva da consciéncia pessoal e hist6- ica. Ja que é tio dificil obter depoimentos de testemunhas oculares, precisamos provar a participacio do piiblico por meio de evidéneias cireunstanciais, Florenca, 0 berco da cultura urbano-mercantil moderna ¢ autoconfiante, no ‘nos legou somente retratos de pessoas hd muito falecidas em uma vivacidade cati- ‘ante e uma abundancia incomparavel. Em centenas de documentos arquivados j Jidos, e em outros milhares ainda nao lidos, as vozes dos mortos continuam vivas. ‘Uma postura de respeito histérico pode devolver © timbre a essas vores inaudiveis, dado que nos damos ao trabalho de recuperar o vinculo natural entre palavra e smagem. Para quem insiste em suas perguntas ¢ limita 0 escopo de sua curiosidade, rrenca oferece uma resposta a todas as perguntas de natureza histérico-cultural. rarte, a pergunta abstrata, acima levantada, acerca da influéncia do ambiente ¢ 0 artista obtém uma resposta concreta na comparacao de dois afrescos, um quais se serve do outro como modelo ¢ representa o mesmo objeto, mas acres- 1a retratos conspicnos que podem ser identificados como membros de um cfreu- -altamente pessoal. Voltando toda a nossa atenco, e utilizando também as ferra- s da pesquisa literdria ¢ documentéria, para um afresco de Domenico irlandaio na capela de Santa Trinita, em Florenca, podemos reconhecer 0 con- -0 contemporaneo como forca influenciadora em seus contornos pessoais, ‘© amante da arte que prefere se deleitar na contemplagio da obra ¢ considera a intelectualidade comparativa é um esforco que se serve de meios inadequa- rem toda a liberdade de, durante a leitura das paginas seguintes, compensar smo com a alegria imediata fornecida pela contemplacao das obras-pri- ceti A arte do retrato.e a burguesialorentina 123 131 rs rs mas da arte italiana do retrato, entre elas os primeiros retratos de criangas do inicio do Renascimento florentino, até entZo completamente ignorados. Por volta de 1317, Giotto* adornou a capela dos Bardi, na igreja Santa Croce, em Florenca, com representagées da lenda de Sao Francisco. Um desses afrescos, uma lunette, narra aquele momento memorivel na vida do santo em que o papa Ihe entrega a confirmacao da regra de sua ordem. © papa esta sentado em seu trono na presenga dos cardeais; ajoelhado ¢ acompanhado por doze irmios da ordem, Sao Francisco recebe a confirmagio da regra. A indicagio sumaria de uma basilica com trés naves que, em seu timpano, mostra a imagem do apéstolo Pedro revela que a cena se realiza no Ambito da Igreja romana. Nenhum outro acréscimo desvia a atencio do espectador. Em contornos claros, a a¢ao principal preenche o plano da pintura ¢ concentra a atengio do contemplador em si. Nas duas naves laterais, apenas dois homens idosos de barba e com mantos pesados testemunham esse ato sacro como representantes do mundo cristao. Mais ou menos 160 anos depois (entre 1480 ¢ 1486), 0 mercador florentino Francesco Sassetti incumbe © pinter Domenico Ghirlandaio e seu atelié da tarefa de narrar a lenda de Sao Francisco em seis afrescos no mausoléu de sua familia, aa igreja Santa Trinita. Nao ha duivida de que pretendia demonstrar em primeiro lu- gar a veneragio pelo seu padroeiro, da mesma forma que transferiu para a igreja a propriedade de sua antiga casa de familia, com o propésito explicito de garantir que, em todos os dias de festas mais importantes, uma missa solene fosse celebrada em honra de Sao Francisco.' Enquanto, porém, Giotto retrata a fisicalidade humana como inyélucro infe- rior a servico da alma, 0 objeto espiritual, para Ghirlandaio, ¢ um pretexto bem-vindo para refletir a beleza e o esplendor da vida temporal — como se ainda fosse o aprendiz de ourives no atelié patemo, incumbido de apresentar os mais belos vasos ¢ outras mercadorias aos olhos curiosos da clientela da festa de Sao Joao. Ghirlandaio e seu comitente, sem qualquer escrépulo, estendem 0 modesto direito do doador, de se ver devotamente representado cm algum canto do quadro, a. um privilégio de livre acesso & narrativa, como espectador ou até mesmo parti cipante da agao. Uma comparagao dos dois afrescos revela como a vida eclesisstica se seculari- zara desde os dias de Giotto. A mudanga da linguagem oficial de formas eclesidsticas é tio radical que nem mesmo um espectador com conhecimentos basicos de histéria da arte suspeitaria 8 primeira vista que o afresco de Domenico representa uma cena da santa lenda. Acreditaria talvez. que estivesse olhando para uma festividade religiosa realizada na Piazza della Signoria ¢ honrada pela presenca do papa ~ precisaria partir do pressuposto de que se trata da Piazza em Florenga, jé que 0 Palazzo Vecchio’ e, no lado oposto, a Loggia de’ Lanzi so claramente reconheciveis ao fundo. Com a ajuda de uma fotografia,’ reconhecemos, no entanto, que esse histérico evento eclesidstico se realiza numa galeria renascentista, indicada por pilastras ¢ arcos ~ provavelmente em deferéncia a alguns tiltimos regeios hist6ricos ¢ ¢clesiasticos ¢ para evitar uma fusio direta com o pano de fundo florentino real. Mas nem a 4 by Warburg galeria, nem a mobilia do coro, nem o parapeito erguido por trds dos assentos do eolégio de cardeais protegem o papa e Sao Francisco da invasio da familia de doador ¢ de seus amigos. © fato de Sassetti ter incluido a si mesmo, seu filho mais novo, Federigo,* seu irmao mais velho, Bartolomeo,’ ¢, em frente a estes, seus trés filhos adultos ~ Teodoro I, Cosimo e Galeazzo — pode ser considerado permissivel, }8 que se contentam em permanecer & margem da pinturas mas, a0 incluir o pré prio Lorenzo de? Medici entre Francesco e Bartolomeo, parece que se permite uma intrusio nao justificada do elemento secular. No entanto, Francesco Sassetti nao pretendia apenas honrar o homem mais poderoso de Florenga: Lorenzo fazia par- te do circulo mais intimo dos Sassetti, pois Francesco era sécio da firma dos Me- dici em Lyon, tendo sido encarregado mais tarde de por em ordem o estado cao co em que se encontrava 0 banco mediceio nessa cidade. Quaisquer que sejam os argumentos usados para justificar a inclusio da consor- teria dos Sassetti, eles em nada mudam o fato barroco de que ~ enquanto Giotto, em sua simplicidade extitica, transmite como razo de existéncia principal da pin- tura a clevagdo involuntéria de um grupo de monges desinteressados no mundo a vassalos figis da Igreja combatente — Ghirlandaio, com toda a autoestima cultural do homem civilizado do Renascimento, transforma a lenda dos “eternamente po- bres” em um pano de fundo para a rica aristocracia mercantil de Florenca. As figuras de Giotto, meros terrestres, 56 ousavam se mostrar sob a protecdo dos santos. As figuras autoconfiantes de Ghirlandaio tratam com condescendéncia as figuras da lenda. Mas nao por serem estupidamente arrogantes: eles frequentam a Igreja ¢ amam a vida, € a Igreja se vé forcada a aceiti-los sob os termos deles, pois jd ndo podem mais ser mantidos em um estado de abjeta submissao. O artis. ta € seu comitente no violam a etiqueta: nio ultrapassam o limite como uma pa- trulha de soldados em pé de guerra, mas introduzem seus rostos na capela “alla buona”; nao como 0 povo bizarro que ocupa as margens dos livros de horas me- dievais com suas brincadeiras, mas com a postura edificante do suplicante que, com gratidao ou esperanca, afixa sua propria efigie como dadiva votiva a uma imagem miraculosa. i didivas votivas a imagens sacras, a Igreja Cat6lica, em sua profun- da sabedoria terrena, disponibilizara uma vlvula de escape aos pagdos converti- Ao asso dos, com seu impulso religioso inextinguivel de associar a si mesmos, ou as suas cfigies, a0 divino na forma palpével de uma imagem humana. Os florentinas, descendentes de etruscos pagios e supersticiosos, cultivaram esse uso magico da imagem na forma mais extrema até o século XVI; quero descrever em algum de talhe seu exemplo mais caracteristico, até hoje ignorado pelos pesquisadores em seu contexto hist6rico-cultural. A igreja Santissima Annunziata conferiu aos poderosos da cidade e aos nobres estrangciros 0 cobicado privilégio de, ainda em vida, instalar na igreja suas efigies feitas de cera, em tamanho natural e vestidas com suas proprias roupas."” Nos tempos de Lorenzo de’ Medici, a fabricacdio dessas figuras de cera [voti] era um ramo da arte altamente descnyolvido ¢ reconhecido, dominado pelos Benintendi, alunos de Andrea Verrocchio, que, durante varias geracdes, operaram uma gran. {*7 Aartedoretiatoes burguesi florentina Bs ss) (91 de fabrica de voti em nome da igreja e por isso cram chamados de “Fallimagni”. © proprio Lorenzo, apés escapar das adagas dos Pazyi em 1478, encomendou trés figuras de cera em tamanho natural, que foram fabricadas por Orsino Benin- tendie, vestidas com trés trajes diferentes, instaladas em igrejas florentinas, Numa igreja da Via San Gallo havia uma efigie sua vestida com as mesmas roupas que usou no dia do assassinato de seu irmo ¢ em que se apresentou ao povo em sua janela, ferido mas salvo; na Annunziata, sua figura foi erguida acima de uma porta no lucco, @ uniforme oficial da repsblica florentina; e uma terceira dessas figuras de cera foi entregue como dadiva votiva 3 igreja Maria degli Angeli, em Assis."' Ja no inicio do século XVI, o numero desses voti aumentou tanto queem Pouco tempo nio havia mais espaco para eles no interior da igreja. As figuras foram suspensas no vigamento e fixadas com cordas, ¢ 0s muros tiveram que ser reforcados com correntes. Apés os figis terem sido perturbados varias vezes por voti que caiam do teto, todo esse muscu de cera foi banido para um patio lateral, onde seus restos ainda podiam ser vistos até o final do século XVII, Esse costume festivo, barbaro, legitimo ¢ to persistente das figuras de cera exi= bislas na igreja cm seus trajes clegantes ¢ mofados lanca uma luz mais veridica ¢ favordvel sobre os semblantes retratados nas figuras lendérias dos afrescos da igre- ja. Comparados com a magia das figuras de cera, esses eram uma tentativa relati= vamente disereta cle aproximar-se da divindade por meio de um simulacro apenas pintado. Ainda representavam, pois, aquele tipo de latinos pagaos que interpreta- Tam a visio poética do inferno de Dante como experiéncia real e procuraram servie- -se daqucla suposta capacidade do pocta de conjurar os poderes infenais para suas Proprias intengSes magicas: quando o Duque Visconti, de Milo, tentou langar um feitico sobre o papa Jodo XXII por meio de um ritual arcano que envolvia a queima de incenso em frente 4 miniatura em prata de sua efigie, ele pediu ~ em vio — a ajuda de Dante Alighieri para que este executasse a invocacao. Quando visdes conflitantes do mundo despertam paixdes unilaterais nos membros da sociedade e assim provocam guerras de vida ou morte, acabam cau- sando uma decadéncia social inevitavel. Mas quando essas visoes conseguem cn. contrar um equilibrio no mesmo individuo ~ quando, em vez de se destruirem, essas oposicdes se fertilizam mutuamente ¢ expandem toda a gama da personali as mais nobres da civilizacdo. Foi nesse solo que a cultura do inicio do Renascimento florentino floresceu. Todas as caracteristicas completamente heterogéneas do idealista cristdo-me- dieval, romantico-cavalheiresco ou clissico-platonizante e do mercador etrusco- -pagiio, pragmitico e voltado para o mundo, permeiam ¢ se unem no florentino mediceio para formar um organismo enigmético de energia vital elementar, porém, harménica. Qualquer vibragio de sua alma é aceita, desenvolvida e aproveitada como expansio de seus limites intelectuais. Fle rejeita 0 pedantismo inibidor do “ou isso ou aquilo” cm todas as dreas, ndo porque ndo percebe as oposig&es em toda sua agudeza, mas porque acredita em sua conciliago, Justamente por isso, todos os produtos artisticos resultantes do acordo entre Igreja ¢ mundo, entre dade -, transformam-se em forcas impulsionadoras que levam as conquis 126 Aby Warburg Fig, 28. Domenico Ghielandaio, Confirmacao da regra Lamina XVII Tig. 29. Ghirlandaio, Poliziano ¢ Gitlian, Fig. 30. Ghirlandaio, Lorenzo ¢ Francesco Sassetti, detalhe da fig. 28. detalhe a fg, 28. Fig. 313, b. Spinello, Lorenzo de" Medici, medalha, passado antigo ¢ presente cristo exalam a forca entusidstica, porém concentrada, de uma experiéncia nova e audaz. Francesco Sassetti representa esse tipo do cidadao compreensivo ¢ honesto em periodos de transicdo que, sem qualquer pose heroica, aceita o novo sem rejeitar 6 velho. Os retratos em seus afrescos da capela sio o resultado da firme vontade de viver que guia a mao do pintor, revelando assim ao olho humano o milagre do semblante efémero do ser humano.” Até hoje os maravilhosos retratos de Domenico Ghirlandaio no foram apre- ciados adequada e devidamente como documentos singulares hist6rico-culturais nem, pela historia da arte, como incundbulos insuperados da pintura italiana de retratos. Nem mesmo a pintura em tamanho natural do proprio Lorenzo, 0 Mag. nifico — apesar de ser 0 nico retrato auténtico ¢ contemporaneo no estilo dos afrescos monumentais de um mestre de primeira ordem que pOde ser preservado. A historia da arte tem conhecimento desse retrato ha muito tempo," mas a simples ¢ evidente obrigagio de produzir uma fotografia em maior detalhe ainda nao foi cumprida, 0 que s6 pode ser justificado pelo fato de que © afresco se encontra em grande altura, raramente ¢ iluminado adequadamente é, mesmo sob condicdes ideais, 56 relurantemente revela seus detalhes. No entanto, a aparéncia de Lorenzo suscita um interesse profundamente humano. Nao é apenas a curiosidade hist6ri- ca que determina nosso desejo de obter uma imagem fiel de seu fisico, mas 0 mi tério de que uma das pessoas mais feias pdde ser o centro espiritual da mais eleva- da cultura artistica e o aristocrata mais cativante ¢ irresistivel, que guiava as vyontades ¢ os coragoes das pessoas a seu bel-prazer. Escritores contemporineos'’ descrevem unanimemente os defeitos grotescos de sva aparéncia externa: olhos miopes, um nariz amassado com ponta pendente que, apesar de uma aparéncia chamativa, no era dotado de olfato; uma boca de tamanho descomunal, bochechas descarnadas e pele palida; os retraros de Loren- zo em escultura ou pintura costumam mostrar a fisionomia tensa e repugnante de tum criminoso ou os tracos flécidos de um sofredor. Nada se percebe do encanto superior da dignidade humana que dele partia. Apenas Ghirlandaio nos permite imaginar nesse retrato de afresco aqucla espiritualidade que conferia tamanha atratividade ao rosto com distorcées tio demoniacas. Olhos e sobrancelhas nao formam (como, por exemplo, nas medalhas de Pollaiuolo ¢ Spinelli)’ um amon- toado de tracos obstinados: aqui, os olhos, acolhidos sob sobrancelhas suaves, fixam calmamente um ponto distante, ndo sem certa arrogincia principesca be- nevolente. © Libio superior nao se aperta contra o Libio inferior revelando um retraimento como sinal de um agouro malsinado, mas descansa sobre ele com uma serenidade superior, ¢ apenas no canto da boca se manifesta uma leve ironia, amenizada ainda mais pela dobra quase humorosa entre a boca ¢ a bochecha. “Toda sua personalidade ¢ sustentada pelo sentimento de uma superioridade natu- ral, que decide com intuigdo certeira sobre distanciamento ou aproximagéo das pessoas em sua volta, Com a mao direita fecha seu casaco cor de escarlate sobre © peito; o antebraco esquerdo esta estendido, com a mio erguida ~ num gesto um pouco surpreso, um pouco defensivo. Arte dosetrato #2 burguesiaflorentina 9 (e101 buy baz ral Ina ras, Francesco Sassetti também esta fazendo um gesto momentdneo: com scu indi- cador, aponta para algo no lado oposto do quadro, aparentemente para scus fi ‘hos, a fim de identifica-los como membros de sua fami O motivo do gesto surpreso ¢, a0 mesmo tempo, defensivo de Lorenzo pare- ce ser semelhante, mas, de certa forma, é muito mais surpreendente. A seus pés © pavimento de pedra da Piazza della Signoria de repente se abre ¢ revela uma ¢escada pela qual trés homens ¢ tés criangas estéo subinde em sua direcdo. Aparentemente, trata-se de uma delegacdo de cortcjo, cujos membros (apesar de serem visiveis apenas as cabecas ¢ os ombros) sio caracterizados com toda a vitalidade de um improvisador florentino, cada um com sua mimica pessoal exibida durante a aproximagio devota ao sen senhor e mestre Lorenzo. Essa interagao silenciosa entre Lorenzo e © grupo é t4o eloquente que, apés uma contemplagdo mais aprofundada, logo passamos a considerar essa “delegacao de cortejo” 0 centro de gravidade artistico ¢ espiritual de toda a composigéo e a desejar que essa vivacidade muda pudesse falar por si mesma. Tentemos entao descobrir o que essas figuras — cuja entrada em cena ¢ tio importante para Sassetti que estranhamente Ihes permite dominar 0 primeiro plano da pintura ~tém a dizer. Esto dispostas a falar. Nao querem ser ignoradas, e, se nos da- mos ao trabalho de recorrer a ajudas de todo tipo — documentos, medalhas, pinturas ¢ esculturas ~, elas comecam a falar ¢ contam detalhes intimos, encan- tadores ¢ também curiosos sobre a familia de Lorenzo, 0 Magnifico, de forma que o proprio Sassetti ¢ os membros de sua familia passam a ocupay, por ora, © segundo plano. © lider do grupo, o homem com o perfil marcante, perde imediatamente seu anonimato quando comparamos com seu retrato numa medalha: trata-se de messere Angelo Poliziano,'” 0 amigo erudito e colega poe- ta de Lorenzo, com seu nariz aquilino inconfundivel — motive de muita ridicu- larizagao - de ponta epicureia pendente, o curto lébio superior ¢ a boca farta de um gourmet."* Lorenzo lhe confiara a edueacio de seus filhos, temporaria- mente interrompida pelas objegdes de sua esposa, Madonna Clarice, cuja intui- cdo feminina certeira se preocupava com a auséncia de uma moralidade firme no idealismo pagao ¢ puramente estético daquele erudito renascentista; mas em 1481 Poliziano foi reinstituido em sen cargo. Com seu chapéu na mao, Polizia no lidera 0 grupo e, com postura de servo devoto, se aproxima de Lorenzo, certo de que seu mestre Ihe perdoard essa intrusio, pois o que o trav até cle € 0 orgulho da familia Medici e de sua arte pedagégica: os filhos de Lorenzo —Pie- 10, Giovanni e Giuliano. ‘Vemos apenas as cabecas ¢ 0s ombros das criangas, mas as maos de Ghirlan- daio transformam meios de expressio tio universais, como a posicdo da cabeca em relagdo ao torso, a direcao do olhar e a mimica, na ferramenta mais delicada para captar as nuangas distintas das fases de desenvolvimento da educagao dos principes, da crianga despreocupada ao futuro regente com fungdes representati- vas. O menino Giuliano,” que, sendo o menor, o professor mantém firmemente 20 seu lado, volta-se para o publico com seus castanhos olhos infantis, ciente de que logo ter4 que voltar a olhar para o pai, enquanto severo mestre olha para 0 alto, 130 Aby Warburg Lamina XVIII medalha, Hlorenga, Fig. 34. Spinello, Angelo Poliziano, Nazionale. medalha, bsorto em sua devocdo. Picro,"* o mais velho, que segue aos dois, também olha © espectador, mas com uma postura confiante ¢ a indiferenga arrogante do euro regente. © orgulhoso sangue romano da familia Orsini, herdado de sua jd comega a se rebelar ominosamente contra 0 sabio e equilibrado tempera- sento mercantil florentino, Mais tarde, Piero s6 permitiria ser pintado com a ar- dura de um cavalheiro — sinal fatidico, tipico da visio puramente externa da- homem que, para salvar sua posicdo de regente, precisaria ter sido um bom 1, mas se revelou pouco mais do que um espadachim decorativo de torncios. © pequeno nariz arredondado de Giovanni," futuro papa Ledo X, confere a seu ablante bem nutrido uma expresso infantil [Fig. 32]. A parte inferior e carnuda } rosto, com o Libio inferior protuberante, jé revela indicios das fartas feigbes de So X.? Ainda nao usa a tonsura, que receberia em 1° de junho de 1483. F ja que ssa insignia da dignidade eclesidstica, tio antecipada por Lorenzo come evidéncia mais visivel do éxito de sua politica em Roma, certamente nao teria sido ignorada, podemos datar o término do afresco, no maximo, em meados de 1483. Suporia- entdo que Piero, na época, tinha mais ou menos dove anos; Giovanni, sete nos ¢ meio; ¢ 0 pequeno Giuliano, quatro anos € meio, 0 que bem corresponderia aparéncia dos garotos. A identificagdo dos dois homens que completam o grupo é mais dificil. cemplos insuperveis da arte do retrato, nos quais as caracteristicas distintas € ais nobres da pintura flamenga sobre painéis ¢ dos afrescos italianos parecem se para refletir a vida psicoldgica no estilo de grandeza monumental [fig. 35]. Apesar de nao ser possivel identificar a primeira dessas cabegas por meio de comparagio dieta com outro retrato contemporanco, ¢reio, mesmo assim, sseando-me em evidéncias internas, reconhecer com certeza nesse rosto mareante ‘com seus olhos espertos mas bondosos, as narinas desdenhosamente dilatadas, a boca sarcistica pronta para 0 duelo verbal, sob a qual o queixo avanga audacio- nte ~ o confidente de Lorenzo, professor do ensino fundamental de seus filhos melhor amigo de Poliziano, Mattco Franco. ‘Numa carta a Piero, de 1492, escrita para parabenizi-lo pela nomeacao de Mat- “xeo Franco como cénego da catedral, Poliziano descreve Matteo ¢ a si mesmo como emplo celebrado da amizade.** Poliziano nao encontra palavras adequadas para “elogiar os méritos de Matteo a servico da familia de Lorenzo, realmente tao nume 70508 que dificilimente podem ser superestimados. Na profissdo, em sua funcao de “professor das criangas ¢ de clérigo, era colega de Polizianos mas, em termos de ¢a- “rater, o leal e altruistico Matteo cra 0 exato oposto do frio, crudito ¢ refinado ho- mem de letras. Suas tnicas obras litersrias sio 0 sonetos difamatérios contra Luigi Pulci, presentes ainda hoje na tradigo oral italiana, permeados da genialidade es- pontanea daquele homem toscano para quem o palavrao cra um meio de restabele- io dois cer o contato com a terra. F é justamente esse arlequim, que distribuia boferadas para todos 0s lados, que Lorenzo chamou de “um dos primeiros ¢ mais quetidos membros da casa” e destacou como acompanhante de Madalena, sua filha preferi- «da, quando esta se casou com Cybd, o filho do papa, por motivos politicos, para que ela o tivesse a seu lado como amigo paternal. Nao poderia ter escolhido homem -Aarte do etratoe»burguesiaforentina B ris, bes melhor, pois, como servo de Madalena, Matteo é “homem para tudo”: cuida dos assuntos domésticos, monitora em todos os detalhes a satide da mulher doente e, como seu enfermeiro, até se encarrega de fazer suas sopas ou a entretém com ane- dotas florentinas quando sua ansiedade pelo retorno do marido se torna insupo: vel. Quando necessario, assume a fungao de administrador de uma casa de banhos em Stigliano, cuja receita representava uma das poucas fontes de renda de Frances- chetto Cyba. Como recompensa pelos servigos como “escravo ¢ marti dos Cybd",:* recebe finalmente aquele cargo de cénego da catedral em Florenga. Por fim, sua incansavel busca por prebendas Ihe rende também a funcao de mestre de hospital em Pisa. Fm sua defesa seja dito que pelo menos nao a tratou como sinecura, pois morreu em 1494 enquanto cuidava dos doentes durante uma epidemia. Uma carta do proprio Matteo fornece outra justificativa interna para identifi- car o homem retratado com o clérigo doméstico da familia dos Medici. Como descobridor ¢ narrador do mundo infantil em seus retratos intimos (apesar de monumentais), Ghirlandaio ¢ uma excegio absoluta. Matteo demonstra essa mes- ma sensibilidade diante da jovialidade ¢ da docilidade da alma infantil, como Prova uma passagem em uma carta na qual descreve como 0s filhos receberam a mic, Clarice, depois de uma viagem aos banhos termais em Florenca. Mattco, que acompanhava Clarice como chefe dos criados, escreve ao amigo Bibbiena, secreté- fio de Lorenzo, no dia 12 de maio de 1485: Fm Certosa, seus filhos sairam a scu encontroz melhor: encoatramos o paraiso com todos 08 anjos de jubilo e alegria, ou seja, os senhores Giovanni, Piero, Git liano ¢ Giulio rodeados por seu cortejo. Assim que viram a mic, saltaram de seus cavalos — sozinhos ou com a ajuda de seus criados ~c todos correram ¢ pularam os bragos de Madonna Clarice com tanta alegria e jibilo e beijos que nfo poderia descrever a cena nem se escrevesse cem cartas. QQuase no consegui me conter de também saltar do meu cavalo. Antes de retornarem a seus cavalos, abracei todos cles e dei a cada um dois beijos, um meu eum de Lorenro, “O, 6,6, 6!”, exclamou © amavel Giuliano com longos “6s”, “onde esta Lorenzo?” Quando Ihe dissemos: “Fle foi para Poggio para encontré-lo”, quase comegou a chorar e exclamou: “Ah, nio! E. verdade?” F dificil maginar uma cena mais comovente. Fle ¢ Piero, que se transformou no mais lindo dos garotos, a coisa mais linda que, juro por Deus, jamais vercis. Esti crescido, apresenta um perfil ji mais definide que o faz parecer tum anjo; 0s cabelos estio mais longos, graciosidade pura. E Giuliano é um menino ccheio de vide ¢ vigor como uma rosa, refinado e puro coma um espelho, divertido € a0 mesmo tempo pensativo com seus olhos (singulares). © messere Giovanni também € de boa aparéncia, de cor nao tio vigorosa, mas esti hem-disposto ¢ natural; Giuliano apresenta tec morena ¢ saudivel. Para concluir: todos sio a encarnagdo da prépria alegria. E assim passamos todos juntos, chcios de jubilo, por Via Maggio, Santa Trinita, San Michele Bertel di, Santa Maria Maggiore, Canto alla Paglia, Via de’ Martegli ¢ chegamos a nossa casa, “per infinita asecula aseculorum eselibera nos a malo amen” [para todo o sempre, ¢ nos liberta de todo mal. Amém|.5 Mesmo que a carta tenha sido escrita dois anos depois do que suporiamos em vista da datagao do afresco,"*a desctigdo das criangas corresponde quase perfeita- mente as cabecas pintadas por Ghirlandaio. 134 by Worburg a também pertence (como defenderemos aqui) a uma figura ecida do circulo mediceio, que, se ndo estivesse incluida aqui, deixaria uma lacuna: [igi Pulci” Um rosto magro, palido, desgostoso, o olho voltado colicamente para Lorenzo, um nariz protuberante com asas pesadas, libio or fino que repousa amargamente no grosso labio inferior. Podemos compa com seu retrato no afresco de Filippino na igreja Santa Maria del Carmina, ; Horenga.”* A primeira vista, a comparaciio é pouco convincente, mas precisa~ Jembrar que o retrato no afresco de Filippino foi feito mais tarde, provavel- ap6s a morte de Pulci (cm 1484) e a partir de uma mascara mortuéria. ce todos 08 rostos de aparéncia téo vivida, sua cabeca chama atencio pela total de expresso vital, pela érbita que, apesar do olho entreaberto, parece estar ‘pela auséncia de cabelos ¢ pelo pescoco desnaruralmente conectado ao resto Toda a parte inferior do rosto, no cntanto, com seu posicionamento so de nariz, labios ¢ queixo e sua expresso de cansaco resignado, é idéntica 0s retratos. Mesmo sem 0 retrato de Filippino, a referéncia a Pulci seria, incernas, completamente convincente. Pulci fazia parte do circulo inti- Lorenzo, ¢ra scu confidente politico eo famoso cantor do Morgante, aque 2 cavalheiresco humoristico ¢ popular cujos cantos cram apresentados & ‘casa mediceia (para alegria, sobretudo, da mae, Lucrezia). Mas ele perma- meméria do povo italiano principalmente como protagonista do duelo do com Matteo Franco. Os sonetos de ambos so pérolas daquela poesia <6ria cultivada nas cortes ¢ que tanto divertiu Lorenzo. Piero, ainda garoto, a menos na idade representada no afresco, teve que declamé-la para o di- ento dos adultos. sestemunhas mais fortes ou hipéreses melhores provarem 0 contrério, po- aderir a0 concetto segundo © qual os dois inimigos intimos aqui se encon- 6 tinico aspecto que os unia emocionalmente: o desejo de demonstrar vene- Se por Lorenzo. Xo enxanto, é possivel que Lorenzo nao tenha considerado oportuna essa pro- de seus filltos com seus circumferenze nesse exato momento. Por outro lado, jente Poliziano sabia o que podia ousar ou ndo, jd que Lorenzo, em ocasibes ores, havia deixado muito claro que era pai de familia apenas em segundo ‘era, acima de tudo, soberano ¢ regente do Estado. Nessa funcio, as doencas as filhos ndo podiam ocupar o primeiro plano de seus interesses. Em abril de realizou-se a s¢guinte correspondéncia” entre os dois, quando Poliziano quis sné-Jo indiretamente ¢ de forma sutil sobre 0 adoecimento de seus filhos: azo de’ Medici a Angelo Poliziano: Fai informado da carta que eaviaste a Michelozzo ¢ da doenga que acometea ‘nossos jovens filhos; como € da aarureza de um pai bondoso, essa noricia me preencheu com dor ¢ preocupacao. Em correta antecipagiio desses sentimentos, renraste nos fortalecer com tantas palavras ¢ razdes que nos vemos forgados a ‘ecceditar que consideras pouca a nossa resistencia, Mesmo tendo certeza de que ‘agiste de tal forma por amor a nés, eu modo de agir me causow tristeza maior do que a noticia do adoecimento das criangas. Pois, apesar de dizerem que os filhos ‘Aarte do etrato ea burguesiaflorentina Bs 19) (°20) Hat sdo parte do pai, a docnca da alma sobressai a doenga dos filhos. Aquele que é so em espirito encontra satide rambém em todas as outras coisas; aquele, porém, gue no 0 6, para ele nio existe no mundo um porto protegido das ondas da Fortuna, nenhuma gua calma, nenhum estado de espirito tranquilo que nao pudesse ser perturbado pelas agitagdes. Consideras-me de natureza tio fraca que ime inguietasse com bagatelas desse tipo? E mesmo que minha naturera fosse tal que eu tendesse a ser facilmente jogado para li e para cA por sentimentos, as :miltiplas vivencias da minha experiencia certamente fortaleceram meu espitito ¢ me ensinaram a oferecer resisténcia, Nao conheei apenas a deenca dos meus Thos, mas até mesmo a morte. Aos 21 anos, a morte precoce de mev pai me expos tanto aos duros golpes da Fortuna que por vezes amaldicoci minha propria vida. Por isso podes crer que, mesmo que a natureza me tenha negado a bravura, a cexperincia da vida me ensinou a conquisté-la (..). Poliziano responde: ‘Nao porque davidei de tua sabedoria ¢ serenidade peeferi escrewer a Miche lozzi sobre 0 bem-estar dos tens filhos, mas porque tem see incauto, caso oma noticia scria te fosse entregue em momento importuno. Pois muitas veres o men- sageiro cntrega as cartas no momento errado ¢ no lugar crrado, enquanto 0 se- creuirio percebe todas as nuancas das circunstincias momentincas ( © velo exagerado manifestado no desejo de Lorenzo (que, na época, tinha 28 anos) de ser respeitado em sua atitude estoica revela indiretamente que a preocu- pacio de Poliziano com Lorenzo era resultado de um tato justificado, mesmo que inadmissivel numa corte. Fm idade mais avangada, Lorenzo dificilmente teria tido tanto cuidado em manter a aparéncia externa de serena dignidade, pois possuia, como nenhum outro em seu tempo, o dom da serenidade como qualidade interna indestrutivel. Fra seu instrumento de poder mais forte, que transformou o Estado florentino em um poder respeitado e procurado por todos, Lorenzo, no primeiro c insuperado mestre da politica do equilibrio. Em Lorenzo, © *Grao-poderoso”,” iniciou-se, a partir do mercante urbano, 0 desenvolvimento do tipo ideal de regente politico equiparavel ao regente feudal. Mesmo que condottieri altivos jogassem © peso de sua espada no prato da balan- ¢a, a propria balanga estava nas maos do comerciante sébio, que garantia seu equilibrio “e pari la bilancia ben tenere”.*! No entanto, no teve a oportunidade de usar sua magnifica politica mercantil para preservar a pay na Itilia por muito tempo ¢ protegé-la dos ataques ¢ da cobica de seus vizinhos beligerantes. Uma das poucas falhas de carater de Lorenzo, segundo Maquiavel,® era a bai xa autoestima, que teria se manifestado em casos amorosos exageradamente pro- longados, na preferéncia por pessoas espirituosas ¢ irdnicas em seu circulo mais proximo e no fato de que brincava com os filhos como se fosse, ele mesmo, uma crianga. Maquiavel, o virtuoso conhecedor do ser humano, que néo desconhecia nenhum aspecto da humanidade {podemos imaginar como ele abana a cabega em reprovacao ao obervar tal delegacio de cortejo na escada), se vé aqui diante de uma irreconciliabilidade enigmatica: “Quando contemplamos lado a lado sua vida leviana e sna vida séria, vemos como nele se reuniram duas pessoas comple- tamente diferentes em uma relagao totalmente impossivel.” 136 by worburg Essa falta de compreensio por parte de Maquiavel para o elemento inconven- cional ¢ vivido no cardter de Lorenzo demarca a linha diviséria entre 0 Quattro= cento € © Cinquecento. Aqui, a visio assustadoramente despreconceituosa dese [-22) inteligente historiador talver tenha sido turvada pelo seu senso de dignidade esti- listica, desenvolvido a partir do estudo de Livio, sobretudo, ¢ por seu tipo ideal politico completamente distinto. Aos olhos de Maquiavel, o infantil-folclérico e romantico-artistico representa- vam um defeito incompreensivel. Em tempos da mais profunda onipoténcia da Itdlia, ele ansiava fanaticamente pelo super homem [Ubermensch] de punho guer- reiro e disposto a partir para a aco. A verdade, no entanto, é que a supremacia -genial de Lorenzo, o Magnifico tinha suas raizes no fato de que seu escopo espiri- tual transcendia o mediano em medida fenomenal ~ gracas 4 amplitude e, sobre- tudo, & intensidade das vibracdes de sua alma. Com igual forca vital, era capaz de Jembrar-se piamente do passado, de desfrutar © momento efémero ¢ de encarar 0 fururo com olhar calculista: gragas & sua educagio ¢ formacao, era um erudito

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