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5 Linguistica como uma ciéncia: a distin- cao de Saussure entre Jangue (lingua como sistema) e parole (lingua em uso) Oleitor que lew o primeiro capitulo deste lioro foi apresenta- do @ abordagem de Saussure sobre a ciéncia da lingua através dos ecos da voz dele. Como vimos nos capitulos 2, 3.¢ 4, que fo- ram organizados de acordo com a cronologia de sua vida, gran- da lingua de parte de suas ideias sobre a esséncia da natures se formaram em oposicao as principais tendéncias da linguis- tica da sua época, Nao que ele tivesse uma teoria consistente € 1m elaborada para substituir as demais, mas porque ele estava intimamente convencido de que seus contemporiineos estavam ques alimentando equivocos herdados do passado. Ele tambéi tionava as bases epistemolégicas dos métodos deles nes quais detectava confusdes acerca do objeto das pesquisas por cles rea icadas. Saussure foi extremamente sensivel as deficiéncias da tica histérica enquanto estava totalmente comprometido linguis com esse paradigma, fato por ee ilustrado através de algumas pesquisas originais que apresentou em suas aulas. Contudo, ele estava experimentando um encotvimento com um alto nével de reflexdo que nutria incertezas epistemolégicas. Apesar de suas proprias diividas e perplexidade, ele elaborow continuamente as ideias que, em sua opiniao, poderiam fornecer a base para uma sdlida teoria sobre a lingua. Embora Saussure ndo tenha publicado nenhum artigo tedrico ou livros durante sua vida, ele deixou centenas de paginas manuscritas nas quais ele esbo- ¢0u suas posicdes e argumentos. Sao essas ideias, consideradas como tentaticas, que dado destaque a Saussure em relagao aos demais linguistas que justficam sua fama péstuma. Vamos deixar agora essa perspectiva kistérica e considerar sua abor- es @ dagem com base nas evidéncias fornecidas por suas anota ‘manuscritos sobre a linguistica geral e a semiologia (semiética). A principal fonte de informacao para este capitulo e para os dois seguintes é uma série de manuscritos que foi descoberta em 1996. Esses manuscritos foram editados e publicados em seu original em francés e foram, enido, traduzidos para o inglés em 2006. Outras fontes esto indicadas nas referéncias listadas no final deste lioro, Explicar e discutir a teoria de Saussure em outra lingua que ndo o seu francés original requer que decisaes sejam feitas a respeito da traducdo de palaoras téenicas que ele usa para desenvolver suas ideias. Nesse processo de traduedo seré neces sdrio manter alguns termos em francés usados por Saussure por razbes que seréo especificadas. 1 Problemas de traducao desafio de traduzir a terminologia bsica de Saussure 122 para o inglés tem sido enfatizado por todos os tradutores de sua obra, Isso levanta questOes que so relevantes para prépria natureza te6rica de sua abordagem, e cada tradt= do vern sendo calorosamente debatida. Problemas simi- lares existem, certamente, no que diz respeito a tradugio desses termos em outras Iinguas. Mas essa no sera a nos- sa preocupagdo aqui. Enfrentar essa dificuldade logo de inicio faz mais sentido se partirmos do principio de que tal dificuldade nao esté apenas na auséncia de equivalen- tes lexicais exatos para os termos tedricos de Saussure no inglés, mas também nas ambiguidades encortradas nes- ses termos no proprio francés. Em todas as linguas, as palavras tém uma variedade de significados ou nuances que dependem des contextos em que so usadas. Acontece ainda que, em qualquer que seja a lingua, uma palavra, seja ela na forma falada ou nificados nao relacionados entre si. escrita, tem varios sas palavras so chamadas de homénimos, como no in- glés em que left [esquerda] tanto pode ser 0 oposto de right {direita] quanto left [partiu] pode ser 0 posto de stayed {fi- car/permanecer}, bem como right [certo] pode ser 0 oposto sentido, é importante observar também que right [direita/certo}, apesar da mesma forma falada, € diferente de write [escrever. A terminologia téc- da linguistica faz a distincao de palavras homéfonas {que possuem a mesma prontincia, embora com formas es- de wrong [errado]. Nes: a critas diferentes (right e write, sell [vender] e cell [célula]) € de palavras homégrafas que possuem a mesma ortografia (loft e left, bear (urso} e bear (suportar]). Em uma conversa ou em um texto, o sentido ou o valor com que cada palavra 123 € usada é, na maioria das vezes, claro, em virtude tanto do contexto gramatical como do semantico. Contudo, hé algumas palavras que podem receber uma grande varie- dade de significados, principalmente quando séo usadas tanto metaforicamente, como acontece com a maioria de- las, quanto tecnicamente, ou seja, com definicdes padro- nizadas precisas. Pense, por exemplo, em pocket [bolso] relacionado a pecas do vestudrio e em expressdes como pocket of infection [foco de infecgio] no contexto médico ou pocket of resistance [foco de resi éncia] nos conflitos e estado de guerra. Em francés, a palavra langage, assim como seu equi- valente em inglés language, oferece uma lista de varian- tes semanticas. Ela pode designar a capacidade especi- ficamente humana de expressar ideias independente- mente de qualquer lingua era particular. Pode se referir também a qualquer uma das linguas que existem ou que existiram no mundo. Da mesma forma, é uma palavra que pode ser aplicada a qualquer forma de comunicacao € até mesmo a tudo 0 que pode ser interpretado como tansmitindo alguma informagao real ou ilus6ria. Por- tanto, é um termo bastante ambiguo. Seus significados se estendem desde a denotacao de lirigua natural ou arti- ficial, concebida tanto em sua generalidade como em sua especificidade, até aos usos analégicos ou metaféricos Por exemplo: only humans are endowed with the faculty of language [somente os seres humanos sio dotados da faculdade da linguageml; to which language family does this idiom belong? [a qual familia de linguas pertence este idioma?}; data can be expressed in artificial languages [os 124 dados podem ser expressos em linguas artificiais), Ma € possivel falar também das linguagens dos animais, por cxemplo, a linguagem das abelhas; ou a linguagem das flores, ou seja, o que uma flor especifica significa quan- do é oferecida como um presente; ou da linguagem do coragao, da espada ou do dinheiro. O léxico do francés tem outro termo, langue, que é sinénimo de langage na maioria dos exemplos citados acima, porém tende a ser mais especificamente aplicado no sentido de articula- cao da lingua, algo como tongue em inglés. Tanto langue quanto tongue também podem designar o misculo loca- lizado na boca, cujo movimento contribui para a produ- eo dos sons da lingua O estudo dos manuscritos de Saussure mostra que ele usa a palavra langage com os valores semanticos que essa palavra abrangia na lingua comum do seu tempo, uma situagao que nao mudou até hoje. Algumas vezes ele se refere a langage como a faculdade humana, como quan- do a filosofia da linguagem ou a origem da linguagem sao consideradas. As vezes ele usa o termo para designar linguagens especificas. Para compreender em qual sen- tido ele usa essa palavra no precisamos conhecer nada sobre a teoria de Saussure. Como em qualquer situacdo, 0 contexto indica claramente o significado desse termo na sentenga que lemos. Porém, este nao € 0 caso de langue, pois Saussure criou uma definicio especial para esse termo. Perguatar a nés mesmos por que ele redefiniu Jangue da forma como ele fez serd o passo inicial em direcdo a compreensao da abor- dagem de Saussure para o estudo da lingua. Mas vamos 125 primeiro examinar qual foi seu verdadeiro objetivo e a estratégia epistemolégica que ele adotou para alcancé-lo. 2 Aabordagem de Saussure para fundar a Linguistica como uma ciéncia principal objetivo de Saussure foi elaborar uma ci- éncia da lingua. Como vimos no segundo capitulo, sua nogdo do que deveria ser uma ciéncia era baseada ndo em uma filosofia vaga, mas na tradigdo cientifica & qual ele fora apresentado por sua familia, bem como em suas pri- meiras experiéncias universitérias. Durante o século XIX © conhecimento cientifico era, cada vez mais, baseado nos famosos métodos empiricos ¢ formais que, afinal, propor- cionaram avangos cruciais em nossa compreensao sobre questées relativas & natureza ¢ A humanidade. Saussure planejou consistentemente seus esforgos buscando a fun- dagdo da linguistica como uma ciéncia dos signos mais abrangente que ele previa como uma tarefa para o futuro. Ele demonstrava otimismo epistemolégico e, a0 mesmo tempo, enfatizava a enorme dificuldade que encontrava ao tentar enfrentar a complexidade da lingua. A lingua pode ser aboréada por miltiplos pontos de vista: € um fendmeno neuromotor; pode ser descrita em termos actisticos e fonéticos; os sistemas de escrita adicio- ‘nam um componente visual que nao pode ser ignorado; é um processo cerebral neurol6gico, conforme demonstrou © médico e anatomista francés Paul Broca (1824-1880) através de sua pesquisa sobre afasia; a lingua esta também intimamente conectada ao pensamento e & l6gica; é, ob- mente, ndo menos um fendmeno social que tem como 126 suporte as interacdes verbais € a aprendizagem formal ¢ normativas parece ser estével em qualquer momento em que € usada, mas, na verdade, esta sujeita a constantes transformacdes e, como tal, é um fendmeno histérico cujas mudancas através do tempo do espaco podem set cestudadas com relativa precisio. Cada um desses pontos de vista cria um tipo especifico de objeto: anatomia e fi- siologia neural e motora; padrdes de articulacio € de on- das de ar; segmentagdes em categoria de sons, funcoes gramaticais, configuragoes de significado ¢ argumentos I6gicos; modos de transmissio socials mudangas constan- tes que deixam pistas em registros arqueol6gicos de ins- crigdes, textos ¢ na propria estrutura de cada palavra em qualquer lingua conhecida, Confrontado com este estado de coisas, 0 desafio que Saussure encontrou foi, primeiro, decidir qual das disci- plinas correspondentes era a mais apropriada, se € que al- guma era, e, segundo, se combiné-las era, de algum modo, possivel. Era absolutamente 6bvio para ele que nenhuma dessas abordagens sozinha poderia capturar a verdadeira natureza da lingua, Essa é a razo pela qual ele embarcou ‘em seu projeto de vida de elaborar uma linguistica geral, ou seja, uma ciéncia da lingua. Para alcancar esse objeti- vo seu primeiro passo foi identificar qual seria o objeto dessa ciéncia. Esse objeto tinha que ser claramente iden- tificado ¢ definido. Ele o chamou de la langue. Porém, € fundamental compreender que esse termo foi redefinido por ele de uma forma que é diferente do significado des. sa palavra na lingua francesa comum. Se 0 inglés tivesse sido a Iingua nativa de Saussure, ele poderia muito bem ter redefinido a palavra “tongue”, a fim de doté-la do sa- tus de um conceito cientifico que, dai por diante, teria sido compreendida de acordo com a definigdo explicita que ele teria aplicado a ess contexto de sua teoria, Como ja vimos anteriormente, nos escritos teéricos de Saussure, o termo langue tem um signi« ficado especifico, diferente de todos os outros que langue possa receber na lingua comum. Iremos, ento, explicar a definigao de Saussure do termo langue e 0 usaremos nesse sentido daqui para frente. Observemos rapidamente que estas redefinigoes de palavras usuais s40 tio comuns na linguagem da filoso- fia e da ciéncia quanto é a criacdo de neologismos. Por palavra sempre que usada no exemplo, ha um caso de redefinicao similar de uma palae vra comum, catdstrofé, feita pelo matemético francés René ‘Thom (1923-2002) que assim designou uma bifurcagao topol6 a, uma sibita mudanca de um equilibrio espe+ ico para outro tipo de equilibrio. O significado teérico da redefinigao de Thom certamente nao esta relacionado diretamente com os tipos de eventos trigicos aos quais a lingua comum se refere através dessa palavra, pois ela ndo 6 de mancira alguma, restrita a esse significado. Para a definicao topolégica formal de Thom nao é relevante a qualidade negativa da palavra de um ponto de vista hue mano. Ela é um elemento da teoria geral de singularida- des de Thom que denota a sibita mudanca de um estado ara o outro, Saussure considerava que existiam duas maneiras de se fazer ciéncia: 0 método analitico ¢ 0 sintético. O “modo itico” € 0 que poderiamos chamar hoje de uma abor- dagem que se desenvolve “das partes para o todo”, come= gando pelos dados e construindo hipéteses para testar rios padrées de explicagées, com a expectativa de alcan- car uma formula teérica, uma lei, que possa ser aplicada a todos os dados. E dessa forma que se acredita que as cién- cias empiricas, em geral, procedam. O “modo sintético” ¢ © que poderiamos chamar hoje de uma abordagem que se desenvolve “do todo para as partes”. Comegando por pre- missas te6ricas baseadas em postulados ou axiomas que derivam do que parece ser uma forte evidéncia intelectu- al, © método consiste em analisar os dados para avaliar a congruéncia desses dados com a teoria, bem como a con- sisténcia dos mesmos em relagdo as previsées implicitas nas premissas. Saussure concluiu que o método analitico era impossivel de ser adotado quando o objeto da investi- gacdo € lingua em funcao da multiplicidade de possiveis Pontos de vista proporcionados pelos varios dados hetero- séneos ¢ incoerentes. Nao havia unidades basicas claras surgindo a partir de investigacées sistemsticas da lingua de nenhum dos pontos de vista que haviam sido tentados, -mantica, 1 logica, a psicologia ¢ a sociologia. Como um todo, 0 es- incluindo a actstica, a fonética, a gramética, a tudo da lingua, até entéo, apresentava uma complexidade impossivel de tratar. E preciso ficar claro que, por “lingua”, Saussure consi- derava a lingua falada, nao a escrita. As habilidades de ler © escrever sio inovagdes culturais relativamente recentes. As diferentes formas de escrita sdo processos secundarios que foram deliberadamente inventados, em um passado hist6rico distante, para atender a necessidades especificas 129 como registrar transacdes econémicas, cultuar divinda- xr propriedade. Os seres humanos jé fala vam hé bastante tempo antes de escreverem e, mesmo em des ou estabele: culturas dominadas pela escrita, as trocas orais permane- cem no centro da vida social. Saussure sempre chamava jengdo para o fato de que pensar na lingua através da lente da es rita € uma tendéncia que deve ser evitada na elaboracdo de uma ciéncia da lingua. Se mantivermos em mente que a abordagem tesrica de Saussure dedicava-se exclusivamente 4 lingua falada, poderemos compreender: melhor suas intuicdes acerca da natureza sistemitica e so- cial da lingua. & isto o que, independentemente de todas as outras consideragées, Saussure chamou de langue, redefinindo, assim, uma palavra comum do francés para dar a ela um status teérico ou, no minimo, heuristico. Saussure dew uma definicao explicita a sua nocio de langue, oposta a todos os outros sentidos em que a palavra lingua pode ser entendida, tanto em sua forma singular como na forma do plural. Langue no singular é o que é universal. E a base de todas as linguas passadas, presentes e futuras. E a lin« outros gua reduzida ao sistema essencial sem 0 qual 0 aspectos perderiam sua relevancia linguistica. E por isso que, para Saussure, tal sistema pode formar a base de uma ciéncia. Dessa forma, podemos entender que, traduzindo “La langue est forcément sociale, le langage ne lest pas forcément” como: “The language is necessarily social; language is not necessarily so” [A lingua é necessariamente social, a linguagem nio necessariamente 0 é] ou “Nous powwons dire 130 que Le langage se manifeste toujour au moyen d'une langue” como: “We can say that language always works through language” [Podemos dizer que a linguagem sempre fun- ciona através de uma lingua] (KOMATSU & HARRIS 1993: 7)!, perdemos o ponto a ser abordado e podemos, apenas, gerar confusio. Se insistirmos que uma tradugao deve produzir valores semanticos equivalentes exclusiva mente com 0 Iéxico da lingua-alvo, entao a tinica solugdo € confiar em uma expresso complexa como “language as a system” [lingua como um sistema] para transmitir 0 valor diferencial que Saussure atribuiu a Jangue em opo- sigdo a todos os outros significados da palavra langage ou “language” [linguagem] que Saussure usa indiscrimina- damente (SANDERS, 2006: xx-xxv). 3 Uma nogao-chave: /angue (lingua como sistema) termo que aparece com mais frequéncia nos textos de Saussure para definir langue é “sistema”. Note que isso nao implica, necessariamente, uma légica ou uma racio- nalidade comum. Na realidade, em varias ocasices, Saus sure expds sua frustracio diante do que ele considerava a irracionalidade da lingua cuja natureza sistemética, com- preendida como uma consisténcia interior relativa, pare- cia-the téo estranhamente diferente que ele até arriscou uma ousada metéfora, afirmando que a lingua poderia ser | Ao apresentar estes exemplos, o autor busca demonstrar a dificuldade da tradugio para o inglés em que s6 hi uma palavra Vanguage’ tanto para 1a quanto pata linguagem. Embora este no sea 0 e880 de portugues, pois temos em nosso lxico as palavras lingua elinguagem, hi que se tomat ‘uidado com 0 uso desses dos termos no eontexto dos estudos lingusticos| INT 131 ‘comparada a um pato que foi chocado por uma galinha. Conforme ele disse varias vezes, a lingua ¢ um sistema préprio. Ela conceitualiza nossa experiéncia de mundo ¢ expressa ideias, mas nao pode ser reduzida a isso, muito menos ser explicada simplesmente em termos das fungdes que pode exercer nas relagdes humanas. Entio, o que Saussure quer dizer com “sistema”? Essen cialmente, a langue é um conjunto fechado de relagées en- tre termos que s6 podem ser compreendidos como valores mutuamente definidos. Ela preenche todo 0 nosso univer= so mental. Esses valores sio determinados rigorosamente dentro dos limites desse conjunto de relagées. Veremos no préximo capitulo que langue pode ser definida com mais: preciso como um sistema de signos. Saussure nunca ten- tou formalizar completamente sua hipétese, nem produ zit um verdadeiro algoritmo ou elaborar um modelo que pudesse ajudar a conceitué-la ou representi-la. Tudo 0 que fez foi expressar superficialmente suas ideias de diversas formas, propor alguns poucos exemplos e, ocasionalmente, apresentar tentativas de imagens para sugerir 0 que tinha em mente. Da mesma forma, Saussure confiava em mode- los mateméticos reais para tentar ilustrar suas ideias. Por exemplo, Saussure deu o exemplo do xadrez como. um jogo baseado em um sistema de valores em que cada pega é definida pelo seu valor relativo diante das demais pe- a, Jogar xadrez consiste em entrar em um mundo fechado em que, qualquer que seja a lingua falada por seus jogadores e (8 nomes especificos dados as pecas, seus valores mutuamente definidos sie aceitos ¢ determinam o significado de cada situa co sucessiva que € observada no tabuleiro e de cada movimen- 132 ‘0 que ¢ feito. Nao ha limites externos. O significado de cada movimento é limitado somente pelos valores atribuidos is pecas pelo sistema ¢ o conjunto de movimentos possiveis & determinado pelo proprio sistema. Evidentemente, as regras do jogo sao perfeitamente arbitrérias. Elas nao podem ser ‘mudadas porque jogos so instituicdes humanas. Poderia ser decidido, por exemplo, que o rei se moveria aiém do espaco préximo a ele como um nivel predeterminado de liberdade. Essa nova regra mudaria automaticamente tcdo o sistema, ou seja, muda o valor das outras pecas e, consequentemente, as formas como 0 jogo € jogado. A relevincia da imagem do jogo de xadrez para a com- preensao da langue é dupla. Primeiro, a langue 6 um con- junto de palavras, da mesma forma que o jogo de xadrez ¢ simplemente, um conjunto de pegas. No iltimo, é 0 Conjunto de relagdes entre as pecas que determina seus valores. Segundo, esses valores dao conta de todo o uni- verso do jogo de xadrez, da mesma maneira que a langue da conta de todo o universo de seus falantes. Nao pode- ‘mos falar sobre o que ainda ndo esta integrado como um subconjunto de valores distintos ao sistema da lingua na- tural que falamos no momento em que desempenhamos a.agao de falar. Nossa langue diz respeito ao que podemos dizer, assim como 0 conjunto de regras no xadrez diz res- Peito aos movimentos que podemos fazer no tabuleiro de xadrez. Naturalmente, a langue € um sistema muito mais complexo do que o xadrez ¢, de acordo com o que Saussu- re postula, embora as propriedades e as regras da langue sejam arbitrérias, elas nio podem ser mudadas como po- deriam, a principio, as regras do jogo de xadrez. Consideremos, entio, alguns exemplos dados por Saus- sure para ilustrar suas ideias. Esses exemplos geralmente sdo dados em latim porque, na Europa do século XIX, 0 latim clissico era parte obrigatéria da educacao basica. Para uma palavra como salt-us (salto) ter algum signifi- cado, ou seja, para ser capaz de significar, ela deve estar relacionada com outras formas como salt-or (saltador) ou sal-io (eu salto), da mesma maneira que stare (permanecer) € status (estado), motio (movimentacao), movere (mover) € ‘motus (movimento). ‘Todas essas formas esto relaciona~ das umas com as outras por valores distintos de som € significado. Em outra lingua, a rede de relagdes de som ¢ significado poderia ser diferente, mas seria igualmen te descrita como um conjunto de valores relacionais. Na verdade, para Saussure, a maneira como essas diferencas sio implementadas ¢ irrelevante. Elas podem ocorrer por padrdes visuais como nos sistemas de escrita ou por: qualquer outro meio, contanto que formem uma rede de diferencas rel expressos. As linguas artificiais se basei cionadas por meio da qual 0s valores sio m no mesmo principio na medida em que sio linguagens computacio- nais formadas por algoritmes, usando o enorme poder de combinar em cadeias os ntimeros 0 1 Nao ¢ facil expressar a ideia de langue concebida por Saussure porque estamos acostumados a pensar em lin= guas como colecdes de itens lexicais que se referem a ob= jetos e nogoes, tal como rétilos colados a esses objetos € nogdes. O préprio Saussure passou sua vida lutando com a dificuldade de articular essa intuigéo epistemolégica, as vezes até duvidando de sua validade, mas voltando a ela 134 por conta da evidencia fornecida por sua experiéncia lin guistica, Ao mesmo tempo em que é relativamente facil captar a idk geral de Saussure ao conceber langue como um sistema de relagdes distintas baseado em diferengas que torna a articulacao das Kinguas possivel, € muito di- ficil compreender como esse sistema realmente funciona e como ele pode ser representado formalmente. A razio para essa dificuldade esta no fato do proprio Saussure nunca ter ido além de falar de suas intuigdes de diferentes maneiras, como em numerosas anotagdes € manuscritos incompletos ou em seus trés cursos de linguistica geral, conforme vimos quando acompanhamos seus ts cursos no primeiro capitulo, Ele também expressava, com frequén- cia, sua frustragao por ndo ser capaz de ir além. Virias vezes ‘aussure declarou em suas palestras que a langue deveria ser expressa na forma da algebra e que essa seria a condi- cdo para a linguistica geral se tornar uma ciéncia, Outras vezes ele imaginava essa ciéncia sendo construida como um conjunto de teoremas, tal qual a geometria. Em uma conversa com um aluno que registrou suas palavras por escrito, Saussure afirmou que achava essa tarefa dificili- ma porque era impossivel para ele conciliar todos os teo- remas. O niimero ¢ 0s tipos de oposigdes que teriam que ser capturadas em equagdes matemiticas para produzir uma teoria cientifica da langue pareciam para ele além do poder de sua metodologia, sendo até mesmo além do po- der da mente humana, Por fim, a Jangue era para Saussure um fenémeno intrigante ¢ dificil de solucionar frente a0 estado do conhecimento de sua época. 4 Onde esta localizada a langue? A dificuldade se agrava quando a questéo da incor- poracao da lingua como um sistema emerge. Os textos escritos sao apenas sedimentos ou pistas deixados pelo estado passado de algumas linguas que s6 sio de interesse dos historiadores dessas linguas. Eles simplesmente teste- munham o sistema passado das linguas. A langue € 0 que torna possivel a comunicacdo € a compreensio no aqui € agora em uma determinada comunidade linguistica. 0 estado passado de formas linguisticas nao pode fazer par- te do sistema dessa langue no momento em que esté sendo: tusada. Mas onde esti localizada a langue? Saussure afire mava repetidamente que a langue é “concreta”, querendo dizer com isso que ela nao é uma realidade ideal abstrata € que seu modelo reside no cérebro dos individuos. Em qualquer momento, quando falantes de uma lingua usam essa lingua para expressar seus pensamentos e para se co- municarem uns com os outros, eles se baseiam nos rex cursos fornecidos por sua langue, ou seja, eles selecionam: algumas relagdes, ou valores, que Ihes permitem produzir significados para cles mesmos e para seus interlocutores que compartilham a mesma Jangue. A imagem que vinha ‘a mente de Saussure quando ele abordava essa questo era’ uma representacao metaférica do cérebro cognitive como um conjunto de pequenas caixas ou arquivos interconee- tados. Devemos ter em mente que Saussure dependia da compreensio do cérebro que se tinha no fim do século’ XIX e que ele usava as terminologias e as imagens que o$ neurologistas da época empregavam. Jé havia, ento, am= pla evidencia de que as patologias cerebrais eas disfungoes 136 linguisticas, tanto oral (afasia) quanto escrita (agrafia), es tavam conectadas. Portanto, a questo para Saussure era: Como o sistema normal que constitui a langue é incorpo- rado no cérebro? Mas essa era uma questo que nao podia ser respondida frente ao estado do conhecimento da neu- rologia na época. Além disso, a questo era ainda mais di- ficil, pois, para Saussure, parecia dbvio que a competéncia formal que deu origem as linguas e que sustentava suas préprias possibilidades (suas langues) permitia, também, a criagdo de outros sistemas convencionais para produzir significados através de outros meios além da articulagao de sons. Saussure, entio, esbocou 0 que viria a ser mais tarde as bases da pesquisa semiol6gica, principalmente no dominio visual, sugerindo exemplos como « sinalizagio maritima através de bandeiras ou a etiqueta social, porém sem jamais ter explicado como isso poderia funcionar. Porém, a incorporagio ao cérebro é apenas um pon- to de vista, apesar de crucial, por meio do qual a Kingua pode ser abordada, Muito pouco era sabido, até aquele momento, para fundamentar, na anatomia do cérebro e na psicologia, uma ciéncia da lingua. A estratégia epis- temol6gica de Saussure consistia em eliminar heuristi- camente os pontos de vista que eram importantes, mas nao essenciais, ou seja, que no eram especificos para a lingua em si. Foi assim que ele aleancou a nogao de langue como um sistema de relagées diferenciais ou valores sem 08 quais a significacio e a comunicagio néo poderiam ser realizadas. Conforme enfatizamos acims, a langue uma perspectiva conceitual, por assim dizer, do sistema que possibilita a comunicacao verbal no momento em que 137 ela acontece. E dificil sustenté-la empiricamente porque nao h& como parar suas constantes mudangas. Seu estudo cientifico € mais parecido com a andlise de uma amostra de tecido biolégico do que com a observagao do cresci- mento de uma colénia de bactérias em uma lamina de la- boratério. O desafio dessa nocao é expresso por Saussure nas anotacdes nas quais ele baseou suas trés aulas inau- gurais na Universidade de Genebra em 1891: “[na lingua] nao ha caracteristicas permanentes; ha somente estados de langue que sao, perpetuamente, transigdes entre os es- tados de ontem e de amanha”. “A /angue é um instrumen- to que deve, constante e imediatamente, realizar a sua func: espe as formas distintas, ou seja, a morfologia que represen- ta Jangue em um dado momento, determinam umas as outras. E nesse sentido que essas formas distintas cons- tituem um sistema, Elas ndo podem ser explicadas pelas formas que as precederam em um passado remoto, exceto de maneira anedética que nao possui impacto no sistema. ‘enquanto potencializador da comunicacao. © estudo da transformagio de formas isoladas através do tempo € 0 9 que € tornar a comunicagao possivel.” Saussure fica que essa funcdo s6 pode ser realizada porque campo da linguistica historica. Nao é essa a chave capaz de abrir a porta para o conhecimento do que é a lingua em sua esséncia, ou seja, do que é a langue. Uma comparacao com a geologia ¢ a geografia, recurso metaforico muito usado por Saussure em seus escritos, poderia esclarecer essa questo: para alguém que esté viajando por um paisy indo de um ponto A para um ponto B, em nada facilitaria saber que havia um vale entre esses dois pontos, digamos, 138 ha cem milhdes de anos atris, se Ae B sio separadoty no momento atual, por uma cadeia de montanhas, O que 6 relevante para 0 viajante é a paisagem atual dos liga res por onde ele vai passar. Da mesma forma, saber que € possivel demonstrar que a palavra inglesa water [égual esta relacionada & raiz proto-indo-europeia *WeloD, da mesma forma que palavras como wasser, wattar, vod-ka © hydro, nao causa qualquer impacto no uso da palavra water ‘no inglés atual. Isso é muito mais conhecimento histérico do que propriamente linguistico. O significado de water depende de uma rede de diferencas fonologices e seman- ticas que permite distingui-la de mater, batter, bem como de wine ou air, dependendo do contexto. Mas como lidar com um sistema multidimensional? Comparado a isso, o jogo de xadrez € muito simples. Um quebra-cabeca tridimensional estaria mais apto a nos ajudar a visualizar a complexidade da langue modelo universal conforme postulado por Saussure, mas também como os sistemas linguisticos especificos que ela possibilita, Isso tudo fica ainda mais dificil na medida em ‘que, como apontamos acima e como veremos em mais de- talhes no préximo capitulo, esse quebra-cabega no é na verdade, estavel. Ele esta em constante movimento: teori- camente, cada movimento forca um reposicionamento de todas as pecas e transforma a geometria de todo o sistema. Uma iiltima observagio influenciard as tentativas de Saussure de enfrentar as complexas implicagdes de sua perspectiva ¢a dificuldade que encontramos em obter um centendimento claro de sua nocdo da linguistica como uma ciéncia, Em seus manuscritos ¢ em suas aulas hd uma rela~ va falta de preciso e uma insuficiéncia de dados no que diz respeito aos sistemas especificos da lingua em geral € dos sistemas de linguay especificas. Como um historiador das Iinguas indo-europeias, Saussure dominava um vasto conhecimento das linguas antigas conforme registradas em textos religiosos e literdrios. Seus escritos filol6gicos cram ricos em dados linguistics que eram apresentados como evidéncias de mudangas fonéticas que poderiam ser inferidas como estados temporérios na evolugao das linguas antigas, na medida em que foram historicamen- te testadas. Mas quando se trata de dar exemplos do que ele considerava como langue, tanto como sistema quanto como aplicada a linguas contemporaneas, seus exemplos cram, na sua maioria, triviais, escassos para tal finalidade ©, quase sempre, em latim cléssico e grego, linguas que eram, entéo, parte de educayao geral, mas dificilmente poderiam ser consideradas como linguas vivas. Como praticamente todas as suas anotagoes ¢ rascunhos eram destinados a ele mesmo, eles inclufam, em grande parte, breves alusoes a fontes potenciais de dados que pudessem dar suporte as suas ideias e, alguns deles, demonstravam seu profundo interesse pelos fendmenos contemporaneos. Como foi mencionado no capitulo 3, Saussure viajou para a Lituania com o intuito de investigar a maneira como 0 lituano era falado naquela época. Ele também demons- trou interesse na descrigo de dialetos que podiam ser observados no interior de sua regido da Suica. Porém, ele confiava mais na evidéncia circunstancial do que na sis- tematica. Sobre os exemplos que dava em seus cursos, ele foi, de certa forma, apologético em uma conversa com um 140 de seus alunos que aconteceu em maio de 1911, ot sejt jf quase no final do seu terceiro Curso de Linguistica Ge- ral. De acordo com 0 que foi registrado por escrito por Leopold Gautier, Saussure explicou que estave limitado Ele nao podia dar voz as suas proprias dividas e ser muito experimental, pois, afinal de contas, 0 conhecimento dos alunos sobre o contetido de suas aulas seria testado em um exame ao fim do cur- so. Consequentemente, ele tinha que ser mais assertivo do que realmente se achava capaz de ser, diante da assus- tadora complexidade da teoria que ele somente era capaz de delinear. Saussure observou que ele também estava li mitado em suas aulas de lingufstica geral pelo fato dos 10 serem Linguistas, querendo dizer pela situacdo pedagégi alunos do seu curso com isso que eles nao haviam recebido um treinamento intensivo em linguistica histérica comparativa e, por isso, nao eram completamente intimos da terminologia técnica da disciplina. Por conta disso, ele nao podia buscar seus exemplos em um amplo corpo de dados, mas apenas ap lar para o que supunha ser conhecimento geral desses alunos sobre linguas. Apesar das muitas tentativas de encontrar uma repre- sentagdo da langue através de imagens e equacées algébri- cas experimentais, para Saussure sua nocéo fundamental permaneceu um postulado geral cuja real formalizac: era frustrantemente elusiva. O mais perto que ele chegou de sugerir um método se encontra em The Twefold Natu- re of Language [A dupla natureza da lingual, em que ele propés um instrumento matemitico real (0s quaternions {quatérnions}), como veremos no préximo capitulo, 5 A lingua como uma instituigao da forma como é possivel documentar as fundagdes O fato de a Jangue ter que ser concebida como um siste- transformacées da maioria das instituigdes. Além disso, ma de relagdes auténomo foi uma prova cabal para Saus- Saussure enfatizou que as tentativas de controlar a lingua, sure. Porém, o fato de a lingua ser também considerada em geral, fracassaram. Ele mencionou, por exemplo, a in- m fenémeno social nao foi menos importante para ele, vencdo do volapuque (Volapiik), uma lingua artificial que Quando Saussure escreveu que tudo é social na lingua foi criada em 1880 por um padre alemao com o objetivo de ou que a langue é uma instituigio baseada em convengies, promover a unidade internacional e alcangar a paz mun- ele nao quis dizer que a lingua € criada pela sociedade. Ao dial, mas que rapidamente caiu no esquecimento apés contrério, ele afirmou varias vezes que a sociedade nio algumas décadas de relativa popularidade. Se as linguas tem 0 controle final sobre a lingua na forma de agentes sie, literalmente, instituigdes sociais, deveria ser possivel institucionais. Quando falamos, nem temos consciéncia consideré-las como construgdes semelhantes is constitui- da presenca de um sistema que possibilita a significa- gies politicas e aos cédigos legais. A langue € social na io, nem tampouco somos conscientes das mudancas que medida em que é baseada em convengdes que pequenas ¢ ocorrem constantemente no sistema fora do alcance do grandes populacdes adotam e, gracas As quais, os indivi- radar da nossa atengio, exceto, talvez, na medida em que duos pertencentes a essas populagdes conseguem enten- consideramos algumas muckngas analégicas. A langue € der uns aos outros. Porém, essas convengdes sio apenas suas transformacées tém que ser construidas ou intuidas relativamente controladas, pois ocorrem variggdes ¢ as como objetos tedricos e nao como resultados da experién- convengdes mudam através de perfodos de tempo maio- cia direta, Porém, o material cru que € observavel € feito res ou menores. Langues particulares, enquanto sistemas, do intercurso verbal constante que Saussure chamou de 86 podem ser observadas em seu contexto social e em um interagbes baseadas na lingua que constituem as identi- dado momento no tempo. dades de populagoes distintas. De fato, parece que Saussure tinha fortes restrigdes Para Saussure, a natureza social da langue nao € me= acerca da caracterizagio no qualificada da lingua en- nos convincentemente evidente do que sua sistemitica quanto uma instituicao social que estava na pauta das dit natureza interna. A lingua (langue) é um sistema que € cusses linguisticas durante os tiltimos vinte e cinco anos adquirido por cada um de nés a partir da geracao que nos do século XIX. O principal expoente dessa abordagem precede, bem como de todas as pessoas com as quais in era William Dwight Whitney (1827-1894), um filésofo da teragimos desde o comeco da nossa vida. Porém, é im= Universidade de Yale, que havia publicado, em 1875, um Possivel apontar a origem tanto das proprias convengdes importante livro intitulado The Life and Growh of Lan- linguisticas como de suas mudane: i$ ao longo do tempo, guage: an Oualine of Linguistic Science. Saussure admira- 143. va esse linguista experi ente que era também professor de sinscrito ¢ convicto opositor as teorias darwinianas de- fendidas por alguns linguistas alemaes que consideravam. as linguas como organismos em evolucao. Saussure, que conheceu Whitney durante sua estada em Berlim, sim- atizava com sua visio, mas nao endossava amplamente @ nocao da Iingua como uma instituicao em seu aspecto principal. Ele usava isso muito mais em seu sentido meta- frie : a Lingua compartilha muitas caracteristicas com as instituigdes sociais, mas nao pode ser considerada igual em seu sentido literal. Devemos também ter em mente ue Saussure estava acompanhando com grande interesse o debate entre Emile Durkheim (1858-1917) e Gabriel Tar= de (1843-1904), dois pioneiros da sociologia cujos escritos fundamentais forneceram uma ampla estrutura epistemo= l6gica para os primeiros escritos de Whitney. Para Saus sure, a natureza social da lingua, na verdade da langue, con juia mais uma evidéncia problematica do que uma resposta definitiva. Isso fica claro em sua também am- bigua avaliagao sobre o trabalho de Whitney quando ele se encarregou de escrever, mas nao pode completar, um obitudrio apés a morte do linguista americano. Encontramos nos manuscritos dé préprio Saussure, bem como nas anotagdes de seus alunos mais dedicados, afirmacées claras como: “a lingua é um fato social;” ou seja, “um conjunto de convengdes necessirias adotadas pelo corpo social a fim de tornar possivel o uso da facul- dade da linguagem entre os individuos”; mas também que “esse € apenas um tipo de convencao”; “se pudéssemos examinar 0 estoque de imagens verbais da forma como 144 sto preservadas ¢ organizadas em um individuo, veri mos, entdo, a articulacdo social que constitui a Jangue™ langue € 0 resumo total dos tesouros depositados nos e6s rebros individuais”. Esse € um ponto crucial: a langue nig existe fora dos cérebros individuais, mas hé uma sobre+ posigdo suficiente entre os membros de uma populagio para tornar a comunicacio possivel para essa populacao. Na verdade, parece claro que Saussure possufa uma visio estatistica em mente quando insistia que a /angue era um fato social. Somente a consideracio de cérebros individu- ais poderia fornecer evidéncia cientifica da realidade da langue. Sem isso, “fora da realidade social, a langue seria irreal, pois seria incompleta”. Ela seria, de fato, uma mera abstracdo (GODEL, 1957: 266). Esta abordagem era marcadamente diferente da nar- rativa predominante que sustentava a visio de Whitney de um contrato social original baseado na liberdade hu- mana ¢ desdobrado, através da hist6ria, objetivndo uma civilizagao universal. Para Saussure néo havia utilidade em uma agenda implicitamente divina para dar estrutura a uma teoria cientifica da lingua em que sua trajetéria fosse da Torre de Babel & sua redencéo, Ele se recusava a considerar que a origem da lingua fosse uma questo re- levante ou, pelo menos, possivel de ser respondida. Saus- sure, decididamente, ateve-se as evidéncias: a langue é um sistema que ¢ incorporado no cérebro ¢ ela é um fato so- cial. Somente esses dois pilares serviram como base para a construgao da linguistica geral. Contudo, estas duas caracteristicas definidoras, 0 fato de que cada langue pode ser considerada como um sistema 145, € também como uma instituicdo social, resultaram em al- gumas dificuldades conceituais para Saussure. A langue é um sistema em constante transformagio e é também uma instituigio cujas origens nao podem ser tracadas. S6 nos € possivel obter momentos instantaneos da langue e, entao, projetar a possibilidade de momentos similares ad infini- ‘tum em ambas as direcdes. Apesar disso, esse conceito de Jangue era poderoso e foi alcancado através da eliminagao de todos 0s outros a ow acidentais em r spectos da lingua que eram acessérios 10 a0 8 stema essencial, sem 0 qual eles perderiam sua relevancia linguistica, 6 Ouniverso da parole Parole € uma palavra francesa que é usada na lingua- gem comum com uma série de diferentes significados, Seu foco semantico é a “palayra falada”. Por um lado, po- demos lembrar ¢ relatar as derniéres paroles [iltimas pa> lavras] de alguém. Por outro lado, quando dizemos que a Gnica coisa que falta a um cachorrinho de estimagéo para ser completamente humano é la parole, significa “a faculdade da linguagem”. Entre esses dois extremos, pa role pode ser variavelmente traduzida como “enunciado”, “discurso”, “linguagem”, ou ainda como “palavra”. Por exemplo, um homme de parole é “um homem de palavra”, Essa reviséo informal de usos comuns é suficiente para mostrar que a introducao de Saussure para esse termo em seu discurso teérico implica uma definigdo especial com- parada a sua definigdo especial para Jangue. Parole € uma nocao na quel Saussure deposita, por as sim dizer, tudo 0 que nao é langue, Ou seja, tudo 0 que 146 sobra, uma vez.que o sistema essencial que define a langue tenha sido extraido do tecido heterogéneo e da hist6ria da lingua. Nenhuma simetria real est implicita entreas duas nogées. Porém, isso nio significa que o universo da paro- le seja rebaixado a um status inferior. Isso simplesmente Fequer que esses outros aspectos da lingua sejam estuda- dos por métodos apropriados que sao diferentes dos que podem descrever adequadamente o sistema da langue. No entanto, se néo ha simetria entre os dois, hi, definitiva- ‘mente, como veremos adiante, uma complementaridade necesséria: um nao pode ser sem 0 outro. A neurofisiologia, a actistica, a fonética, a psicologia, a sociologia, a hist6ria e a literatura sio modelos episte- mol6gicos nos quais o estudo da parole, no sentido que a palavra tem para Saussure, é realizado. Em seus cursos ¢ em suas anotagdes, ocasionalmente ele dava dicas para 0 desenvolvimento necessario de um método para tratar a parole de um modo mais especifico do que essas discipli- nas fazem. Lembremos que, conforme vimos no primeiro capitulo, ele planejava dedicar a tiltima parte do seu curso ao t6pico que trataria da lingua em uso. Isso indica cla- ramente que os problemas pertinentes a parole eram parte do escopo te6rico de Saussure. Afitmagées de Saussure que contribuiram para de- terminar sua nogao de parole incluem, por exemplo: “ato de um individuo que realiza sua capacidade para a guagem através da convengio social que é a langue”; “im- plementacao [de signos] pelos individuos”; “parte ativa ¢ individual (da lingua] na qual devemos distinguir: (1) 0 uso da capacidade geral para a linguagem como a fona- in- 147 ‘¢a0; (2) 0 uso individual do cédigo da lingua [langue] em fangio do pensamento individual”; “o resumo total do que pessoas dizem”; “os atos da parole sao individuais € transitérios” (GODEL, 1957: 271). Nas anotagées prepa- rat6rias de Saussure para o seu Curso de Linguistica Geral encontramos outros esclarecimentos: “Parole: (a) tudo 0 que tem a ver com a producao actistica; (b) tudo o que tem a ver com combinacio de elementos, tudo o que tem aver com a vontade humana. Dualidade: Parole = vonta- de individual. Langue = passividade social” (SANDERS, 2006: 209), Nos manuscritos intitulados The Twofold Essence of Language [A dupla esséncia da lingua] nos quais encon- tramos ecos do que obviamente pretendia ser sua teoria final, Saussure discorre longamente sobre a importancia da parole. Essa importancia se encontra em dois fatos: pri- meiro, 0 que quer que seja a langue, em Gitima instancia, vem da parole ¢ a parole é a fonte de todas as mudangas que ocorrem na langue através do tempo. Segundo, ¢ atrax vés da parole que a significacdo contida na palavra alcanga sua existéncia efémera. Nao nes esquecamos que a lingua falada € 0 tinico objeto legitimo de investigacio para a linguistica, de acordo com Saussure. A relacdo entre langue e parole &, indubitavelmente, de Saussure. Nos manuscritos mencionados acima (SAN- DERS, 2006: 39), ele observa que deveriamos fazer a dis tingdo entre a parole real € a parole potencial. De fato, a parole é constituida ou da “combinacao de elementos con- © ponto fundamental da problemética da lingui tidos em um segmento do discurso real” ou do “sistema 148: no qual esses elementos se unem ao que os precede € 80 que se segue a eles”. O primeiro se aplica a uma palaveat ou frase falada, e 0 segundo se refere a uma sentenga com pleta ou a um discurso. Isso é 0 que Saussure chama de simtagma, uma aliteragéo da palavra grega que signifi “aquilo que € ordenado lado a lado”. Na verdade, a parole se opde a parole potencial, ou seja, “um grupo de elementos criados e associados na mente ou o sistema em que um elemento tem uma existéncia abstra- ta entre outros elementos potenciais” (SANDERS, 2006: 39). Reconhecemos aqui uma formulagao que correspon- de & nogao de langue como um sistema de relagies que sustenta a lingua e no qual um sujeito falante encontra os recursos que ele necessita para articular um enunciado que possua significado. Isto quer dizer que qualquer elemento de uma lingua “é inerentemente obrigado a existir em dois sistemas: um no qual ele é definido pelo que o segue ou o precede, € ..” (SANDERS, 2006: 40). Em seus manuscritos, Saussure no completo outro no qual ele definido em relacio essa sentenga, mas ¢ fécil compreender que seu alvo € 0 sistema da langue, ou seja, 0 conjunto de relagdes basea- das nas diferengas que caracteriza aqui o “potencial” e 0 “paralelo” no universo da parole. Esse potencial éseletiva- mente realizado em sintagmas cujos significados depen- dem de seus diferentes valores dentro de todo o sistema a langue. Assim, as Iinguas podem ser teoricamente apreendidas linearmente, como sequéncias reais de palavras significa- tivas € outro segmento morfol6gico, ou como um conjun- 149 to de relagdes virtuais que determinam os valores de cada elemento potencial. Saussure se refere com frequéncia a0 timo como 0 “tesouro”, ou seja, a langue na qual 0 su- jeito falante encontra os recursos para produzir exemplos de parole, Contudo, esta nio é uma relagio de dependéncia de ‘mao tinica. As linguas mudam através do tempo e novos sistemas emergem para ocupar lugar dos anteriores. As mudangas ocorrem porque os enunciados as introduzem sob uma variedade de foreas ¢ a comunidade falante assi- mila algumas dessas mudangas que se tornam parte de sua Jangue, que é, assim, transformada. Por fim, a parole é res+ ponsavel pelo estado de uma langue enquanto, ao mesmo tempo, est, em grande medida, sob a dependéncia dessa mesma langue. Saussure lutou com essa circularidade con- ceitual. Na realidade da lingua, as duas esto emaranhadas. Langue ¢ parole s6 podem ser separadas se nogbes te6ricas ou heuristicas forem construidas. Abordaremos este assunto em mais detalhes no capi- tulo 7 quando introduziremos a distincao entre sincronia ¢ diacronia. Porém, uma investigacao mais profunda do universo da langue esté agora em pauta. Esse serd 0 t6pico principal do préximo capitulo, 6 Signos, significacao ¢ semiologia capitulo anterior teve como foco o conceito de langue na medida em que ele fornece a estrutura epistemolégica na qual todas as outras nogdes que Saussure desenvotveu fazem sentido. Saussure colacow esse objeto teérico a frente de outros aspectos da lingua, ais como a real expressdo de palaoras ne fala ¢ no discurso, os meios através dos quais os signos linguésticos sao arti- culados acistica ow visualmente, a implementacao fisioldgica de {fonemas ¢ as variagées que ocorrem nesses processos. Para Saus- sure, todos esses fenbmenos pertencem ao dominio heterogéneo da parole. Voltaremos a atencdo agora para a definicao ¢ 0 exame dos conceitos que explicitam o que Saussure quis dizer quando postulou a primazia do aspecto sistémico da lingua em oposi- io as infinitastransagBes verbais que podemos observar na vida real. Sendo a maioria desses modelos contraintuitioes, Saussure eve que forjar sua propria metalinguagem para expressi-los ¢ apesar das flutuacées terminolégicas das ditvidas ocasionais, compor uma agenda cientifiea coerente.

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