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640 palavras

Pare exatamente do jeito que você está. Inspire fundo: encha seu diafragma — é para você sentir sua barriga
se expandir como um balão — e leve seus ombros em direção às orelhas. Sustente essa posição, com o ar
dentro da barriga, por quatro, três, dois, um: abra a boca, exale e deixe os ombros caírem de uma vez só.
Esse exercício de relaxamento deveria ser um apêndice em diversas obras da escritora estadunidense Joyce
Carol Oates. Repita-o quantas vezes for necessário durante a leitura de Minha vida de rata. Sentiu
desconforto em ficar com os ombros contraídos no alto? Com um enredo vertiginoso e visceral, é impossível
não reagir com o corpo todo, muitas vezes ficando em estado de alerta e tensão. Pausas para respirar fundo
serão muito bem-vindas em uma leitura que faz ofegar.

Aqueles já iniciados na obra de JCO — escritora que se equilibra entre a popularidade comercial enquanto
autora de best-sellers e uma carreira de premiações e reconhecimentos no espaço literário — sabem bem o
quanto ela é cirúrgica ao construir sensações de angústia, principalmente ao esmiuçar sujeiras
estruturalmente jogadas para debaixo do tapete. Nesse livro, inédito no Brasil e lançado originalmente em
2019 nos Estados Unidos, ela mais uma vez convoca a temática da vida íntima em família, principalmente
em seus elementos corrosivos e suas bases erodidas. O que destaca Minha vida de rata é a abordagem
ousada: a dinâmica de uma numerosa família de ascendência irlandesa em solo estadunidense se torna no
livro o cruzamento de violências e opressões. A narrativa segue o percurso de um eletrocardiograma,
atingindo mais de um pico e apresentando curvas acentuadas ao impacto de cada novo trauma.

Tirar a peneira que tapa o sol parece ser a obsessão criativa de Oates, e aqui aconselhamos cuidado: a
exposição direta ao astro-rei pode também iluminar o lado mais sombrio de nossas relações e de nossas
contribuições — conscientes ou não — para a manutenção de privilégios e, consequentemente, opressões.
Sua carreira começa no final dos anos 1960 e é acompanhada de forma insistente por um questionamento
por parte de público e de crítica: por que abordar tópicos tão duros, ásperos, umbrosos? Em entrevista
recente, quando perguntada sobre a questão, ela declarou o seguinte:

Parecia haver um consenso geral, mesmo entre escritores, de que as escritoras deveriam se concentrar na
vida doméstica, vida familiar, criação de filhos, casamentos, romance... Algumas mulheres me
repreenderam repetidamente por ousar escrever sobre assuntos tão diferentes. A revisora de uma revista
influente na década de 1960 me disse, sem rodeios, para eu me concentrar em questões femininas e deixar
“grandes romances sociais” para (o escritor e jornalista) Norman Mailer.

Joyce Carol Oates está interessada na luta diária pela sobrevivência, por personagens que se veem diante
do extremo, histórias comoventes sobre o processo de superação — sob um olhar bastante crível e humano.
Em certa medida, ela rompe com a patriarcal e exaustiva noção de “escrita feminina”, conceito que cristaliza
a produção feita por mulheres em um reduzido universo temático. A escrita de mulheres é, basicamente,
tudo o que uma mulher quiser escrever e ponto final, né? Para JCO, a família aparece como ponto de partida
para reflexões sobre acontecimentos que causam danos irreparáveis, capazes de tornar suas personagens
mulheres dotadas de resiliência.

Ambientes abusivos e mudanças inesperadas são marcantes em algumas de suas obras mais densas, mas,
em Minha vida de rata, eles se combinam de forma ensurdecedora, culminando em uma obra considerada
pela crítica “o mais sombrio de todos os livros”. Para atingir tal obscuridade, não foi necessário ir em busca
do terror, da fantasia, ou do sobrenatural, mas, sim, da audácia de cavoucar nas condições humanas mais
desumanas. Nessa obra, JCO é capaz de fazer de Violet a personificação de como uma ruptura com os ciclos
de violências seculares e estruturais pode ser dolorosa, apesar de ser o caminho mais redentor.

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