Você está na página 1de 144

HELENA CLÁUDIA DE FARIA GUIMARÃES DE SOUSA PEREIRA

IDO DESERTO!

PENSAR O MAL
COM ·
HANNAH ARENDT

FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO


PORTO - 2000
He l e na Cl á u d i a de F a r i a G u i m a r ã e s d e S o u s a P e r e i r a

UNIVERSIDADE DO PORTO
Faculdade de Letras
N.º ~~L~~GA
Data 2o]iLj o ~ 1230

DO DESERTO
Pensar o Mal com Hannah Arendt
Tese de Dissertação de Mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea
sob a orientação da Exma . Senhora Professora Doutora Maria José Cantista

FLUP-2000
3
Agradecimentos

Ao Exmo. Senhor Professor Doutor Eduardo Abranches de Soveral, coordenador


deste Mestrado, e à Exma. Senhora Professora Doutora Maria Manuel de Araújo Jorge,
a simpatia, as novas perspectivas para que os seus seminários tão bem souberam
convidar.
À Exma. Senhora Professora Doutora Maria José Cantista, minha orientadora, a
confiança, o ânimo e a alegria que sempre soube transmitir-me em momentos difíceis;
a serenidade, amizade di sponível, tão determinantes para a concretização deste
trabalho.

Ao João Gomes Pinto, a cordialidade, o brilhantismo intelectual com que


animou os seminários, e que se constituiu como um renovado convite a dar o meu
melhor.
À lsa, à Isabel Figueiredo, à Umbelina e à Isabel Tavares, à Isabel Braga, ao
João Sousa Dias e à Joana Rodrigues, a amizade, a disponibilidade e o interesse com
que acompanharam a realização deste trabalho.
Ao Alfredo e à Eli ane, à Anita Ribeirinho, à Ana Serapicos, à Becas e à Sílvia, ao
Né e à Cristina, à Lídia, à Ana Maria Cunha, ao Miguel e à Joana, às tias Júlia, Clarisse
e Bel, à Sofia Miguéns, à Dra. Fernanda Guerra, tantas palavras de ânimo.
Ao Mane! e à Lau ri nda, o carinho, a atenção, o interesse . . . e a estadia em
Moledo (!), que inaugurou o andamento sério dos t rabalhos.
À Helena Pedro, amiga de sempre, os ralhetes com que, ternamen t e, censurou
os meus momentos de preguiça.

Aos meus pais, a perseverança, a dedicação, o empenhamento e o orgulho que


põem em tudo quanto faço.
Ao Miguel, a alegria, meu melhor descanso.
Ao Manel, enfim, o amor inteiro, a paciência infinita.
Aos meus pais e
ao mano Miguel
6

SIGLAS UTILIZADAS

Nas obras de Hannah Arendt

RV - Rahel Varnhagen. The Ufe of a Jewish Woman, redigido em 1933, salvo os


dois últimos capítulos, redigidos em 1938. Primeira edição - East and West
Library, Grã-Bretanha, 1957 (John Hopkins University Press, 1997)

OT - The Origins of Totalitarianism , Hartcourt Brace and Jovanovi ch, New


York, 1951 (Les Origines du Totalitarisme , Vol. I - Sur l'Antisémitisme, trad.
Micheline Pouteau, Paris, Seuil, 1984; Vol. 11 - Sur l'lmpérialisme, trad.
Martine Leiris, Paris, Seuil, 1982 ; Vol. III - Le Systeme Totalitaire, trad. Jean-
Loup Bourget, Robert Davreu e Patrick Lévy, Paris, Seuil, 1972)

NT - Understanding and Politics, Partisan Review, Julho-Agosto, 1953


Religion and Politics, Confluence, ed. H.A. Kissinger, Cambridge, 1953 (La
Nature du Totalitarisme , trad. Michelle- lrene B. Launay, Paris, Payot, 1990)

CH - Th e Human Condition, university of Chicago Press, Chicago, 1958 (La


Condición Humana, trad. Ramón Gil Novales, Barcelona, Paidós, 1993)

BPF - Between Past and Future, Viking Press, New York, 1961 (Penguin, 1993)

CC - La Crise de la Culture (trad. francesa de Between Past and Future), Paris,


Gallimard , 1972

EJ - A reporter at large: Eichmann in Jerusalem, A Report on the Banality of


Evil , The New Yorker, 16 de Fevereiro, 1963 (Penguin, 1994)

VP - Tr u th and Politics , The New Yorker, Fevereiro, 1967 (Verdade e Politica,


trad. Manuel Alberto, Lisboa, Relógio d'Água, 1995)

HTS - Men in Dark Times, Harcourt Brace, 1968 (Homens em Tempos Sombrios,
traducão de Ana Luísa Faria, Santa Maria da Feira, Relógio d'Água, 1991)
CM - Thinking and Moral Considerations, A Lecture, Social Research, n°3, 1971
(Considérations Morales, trad. Marc Ducassou e Dider Maes, Paris,
Payot et Rivages, 1996)
7

VE - The Ufe of the Mind, Harcourt Brace & World, 1978 (La Vie de l'Esprit ,
Vol. I - La pensée, trad. Lucienne Lotringer, Paris, PUF, 1981 ; Vol. 11 - Le
Vouloir, Paris, PUF, 1983)

JP - The Jew as a Pariah , Grave Press , New York, 1978

AJ - Auschwitz and Jerusatem , Deuxtemps Tierce, Cal. Agora, 1991

QLP - Was ist Politik?, München, Piper, 1993 (Qu'est-ce que la Politique?
tradução e prefácio de Sylvie Courtine-Dénamy, Paris, Seuil, 1995)

PHA - The Portable Hannah Arendt, Penguin, Middlesex, England , 200


8

ÍNDICE

PARTE I 11
O Mal e o Problema da Justificação dos Actos Humanos

CAP. I- Introdução 12

1. Apresentação do Trabalho 12
2. O Problema do Mal 16
3. Tradição e Modernidade 24

CAP. 11 - Compreender o Sem Precedente 31

1. Totalitarismo, Ditadura, Tirania 31


2. Medo e Terror 38
3. Totalitarismo e Anti - Semitismo 44

PARTE 11 52
Mal, Mundo, Liberdade

CAP. I - As Figuras do Mal 53

1. O Mal como Necessidade 54


- Mundo e pré-Modernidade
2. O Mal como Irrealidade 64
- Mundo e Época Moderna
2.1 Da Descoberta da América a Galileu 66
2.2 Aparência e Mundo 70
2.3 Mundo e Realidade 76
- O problema do Sionismo e dos Direitos do Homem
3. O Mal como Ausência de Pensamento 89
4. Os Campos como Mal Radical 113

CAP. 11 - Do Deserto 124


Em jeito de Conclusão

Considerações Finais 132

Bibliografia Consultada 137


9
DO DESERTO
PARTE I

O Mal e o Problema da Justificação dos Actos Humanos


CAP. I

INTRODUÇÃO

1. Apresentação do trabalho

À Sú e ao Manel

Ognuno sta solo


sul cuore della terra
trafitto da un raggio di sole
ed e subito sera

Giuseppe Ungaretti

O percurso que, na concretização deste trabalho, encontra o seu


primeiro momento de repouso, é, a um tempo, afectivo e intelectual -
tem, por isso, as limitações e as virtudes, as lisuras e os sobressaltos dos
percursos em que estas dimensões não souberam (não quiseram, não
puderam) separar-se. É, para o melhor e para o pior, um trabalho vivido. E
por isso valeu a pena.
O meu primeiro encontro com Hannah Arendt data de 1991 -
estudava, então, as belissimas páginas de A Condição Humana, dedicadas à
temática da eternidade e da imortalidade, na cadeira de Antropologia.
Dado o interesse e a curiosidade que esse estudo, na altura, despertara, foi
com grande entusiasmo que, anos depois, acolhi a sugestão de trabalhar a
autora em tese de mestrado, feita pela minha orientadora, a professora
Maria José Cantista. Não sabia, ainda, o quanto, acontecimentos por vir,
13

determinariam o amadurecimento da minha relação com o pensamento


arendtiano, o quanto, enfim, poderia existir de providencial na
coincidência ...

Originalmente pensado em três partes - Do Deserto-Do Oásis-Amor


Mundi - este trabalho acabaria por ser inteiramente dedicado à primeira
dentre elas, apenas. Por solicitação dos próprios percursos que fui
trilhando, pelo amadurecimento da relação com a obra da autora, e, claro,
por imposições de tempo, de formato até, de humildade sobretudo,
acabaria por me centrar - por razões de que darei conta adiante - no
problema do mal.

Nos capítulos que dão corpo à primeira parte, proponho-me esboçar,


por um lado, a moldura conceptual no âmbito da qual a noção de mal foi
sendo burilada, precisamente porque, segundo Arendt, essa moldura não
dá resposta às perplexidades inerentes ao fenómeno totali tário; proponho-
me, por outro, perscrutando-lhes a significação, percorrer os
acontecimentos que, na perspectiva arendtiana, estariam, por
cristalização, na origem do sem precedentes que t raumaticamente
inaugura a nossa era, porquanto disso parece depender, a existir, qualquer
possibilidade de regeneração .
A segunda parte do trabalho, enfim, consiste no desdobramento
desse inédito nas suas várias figuras, de que o Deserto é, afinal, metáfora,
expoente - e esta é, porventura, a sua mais expressiva chancela - muda
1
manifestação •

1 CH, pp.39-40: «A grandeza do homérico Aquiles só pode compreender-se se o vi rmos como 'o

agente de grandes acções e o orador de grandes palavras',(... ) o que originalmente significou não só
que a maior parte da acção política, até onde permanece à margem da violência, é realizada com
palavras, senão algo mais fundamental, ou seja, que encontrar as palavras oportu nas, no momento
oportuno, é acção, deixando de parte a informação ou comunicação que levem. Só a pura violência é
muda, razão pela qual nunca pode ser grande. » Sublinhados meus.
14

Há, entretanto, um implícito que anima este trabalho, e que requer,


por isso mesmo, esclarecimentos adicionais.
Não tive, como se verá, a preocupação de dedicar nenhum capítulo
à biografia de Hannah Arendt; assim , à excepção dos momentos em que,
para melhor compreensão de determinada temática, essa referência se me
2
impunha, não lhe atribuí qualquer relevância • E, contudo, é a própri a
razão de ser deste trabalho que me obriga, neste momento, a uma
referência desse tipo.

É conhecido o desinteresse da jovem Hannah pela política e pela


história . Conhecido, também, é o momento em que a urgência da acção, e,
portanto, a impossibilidade de se abster, a despertaria do seu 'sono
intel ectual ': decorria o ano de 1933 3 • Assumiria, desde então o dever da
intervenção política, um compromisso de que só a morte a libertaria, em
1975.
No nosso contexto, importa o seguinte: o i ncêndio do Reicht ag, a 27
de Fevereiro de 1933, que simbolicamente inaugura a demência de que os
campos de morte seriam o culminar, determinava, na vida de Arendt, o
momen to em que o apelo à acção já se não podia declinar. Por outras
palavras, não compreenderemos o amor pelo mundo - de que a vi da e obra
da nossa autora apresentam o mais notável testemunho - sem antes

2 Tratando-se de uma opção de cariz claramente pessoal, não posso, entretanto, deixar de referir três
biografias a que tive acesso, a primeira das quais considero magistral: For the Lave ofthe Wor!d, de
Elisabeth Young-Bruehl; Hannah Arendt, de Wolfgang Heuer; e Hannah Arendt, de Sylvie Courtine-
Dénamy, referidas, de resto, na bibliografia geral.
3 ARENDT, Hannah- What Remains? The Language Remains: A Conversation with Günter Gaus, in

The Portable Hannah Arendt, pp.S-6: «Gaus: O seu interesse pela teoria política, pela acção e
comportamento pol íticos, está hoje no centro do seu trabalho. A esta luz, o que encontrei na sua
correspondência com o Professor Scholem parece particularmente interessante. Aí, escreveu, se me
permite citá-la, que ' não estava interessada na [s ua] juventude, nem em política nem em história' .
Professora Arendt, como judia, emigrou da Alemanha em 1933 . Tinha então 26 anos. Está o seu
interesse pela política - o fim da sua indiferença em relação à política e à história - ligada a estes
acontecimentos?
Arendt: Sim, concerteza. A indiferença j á não era possível em 1933 . Já não era possível até antes. ( ... )
O que aconteceu então era monstruoso, mas foi ofuscado pelas coisas que aconteceram mais tarde .
Isto foi um choque imediato para mim, e a partir daí senti-me responsável.»
15

evocarmos a experiência do seu rosto oculto, quer dizer, o assalto do


deserto, a alienação do mundo, como génese desse amor que Arendt
confessa tardio . E assim, se é nas condições de deserto que o Amor Mundi
se revela , só pela experiênci a desse amor, por seu turno, pode o deserto
4
chegar a constituir-se como tema •

A minha experiência do amor pelo mundo é, também ela, uma


descoberta tardia, não anterior, pelo menos, à irrupção do amor e da
morte, no meu caminho. De tudo o que daí resultari a, este trabalho
recolhe uma leitura possível das reflexões arendtianas sobre os avessos do
Amor Mundi - reflexões que só esse Amor pelo Mundo mesmo pode solicitar
- e que encontram no mal a sua mais radical e inquietante expressão.

4CANTISTA, Maria José- O Político e o Filosófico no Pensamento de Hannah Arendt, in Separata


da Revista Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, II Série, Volume XV-XVI, Porto
1998-99, p.47: «Repor a verdade acerca do homem, sign ifica ocupar-se da fundacionalidade do
político, reabilitando o pensamento, numa denúncia das falácias metafisicas com que a filosofia se
identificou. Tal desconstrução metafísica mostrará que não é a questão do ser, mas a questão do
mundo que suscita o pensamento. A admiração inicial, o famoso thaumadsein não conduz o
pensamento ao ser, antes nos leva do mundo ao pensamento para de novo a ele retornar. O
pensamento do político, em vez de pensar o ser a partir do pensamento, pensa o pensamento a partir
do mundo. Ao substituir a acção pela contemplação, a fi losofia tal como a metafísica tradicional a
entendeu, exilou o pensamento do mundo e dei xou em desabrigo o viver em conjunto, o ser em
comum. Comprometido o sentido da pluralidade e da amizade, é o sentido dialógico do humano que
16

2. O Problema do Mal

" O mal no III Reich tinha perdido a qualidade pela


qual a maior parte das pessoas o reconhece- a
qualidade da tentação. Muitos alemães e nazis (... )
devem ter sido tentados a não matar, não roubar,
não deixar que os seus vizinhos partissem para a sua
condenação. (... ) Mas, só Deus sabe, tinham
aprendido a resistir à tentação. ,

Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem

Foi a ironia do excerto em epigrafe, o sobressalto e a dúvida que o


seu conteúdo desencadeou, que de imediato fez do percurso filosófico de
Arendt e das suas reflexões sobre o mal um desafio a aceitar. Que mal era
esse, dito radical, em alguns textos, de pálida (mas nem por isso menos
aterradora) banalidade, noutros, que a tradição não previra? O que é o mal
quando o já não podemos circunscrever nas categorias - da tentação, do
orgulho, da fraqueza e da falta, da carência, da corrupção, da ignorância e
da transgressão - que herdamos da tradição, filosófica , teológica,
literária? 5 Uma tradição segundo a qual, concretamente, o problema do
mal aparece originalmente associado ao de Deus, constituindo uma aporia
cuja solução mais fácil é a que nos aparece já com Platão, a saber, a
afirmação de que Deus é somente a causa do bem e que o mal escapa,
radicalmente, ao seu poder. Seria, assim, o principio de corrupção e
destruição das coisas, e por isso de uma dignidade ontológica francamente

se eclipsa e, com ele, o pensamento como experiência do mundo. Se queremos reaver o sentido do
homem, é, po is, pelo político que temos que começar.»
5 o quadro de que, ·a partir daqui , apresen tarei um esboço, não tem qua isquer pretensões de carácter

exaustivo. A passos largos. pretende apenas apresentar um cenário histórico que fac i li te a
compreensão do carácter sem precedente do mal totalitário, ta l como Arendt o entendeu .
17

inferior.Nesta medida, portanto, sendo Deus o Bem em si mesmo, entende-


lo como origem do mal seria uma contradição nos termos. 6 E a acção, por
outro lado, só pode ser motivada pelo bem, uma vez que parece absurdo
supor que alguém possa querer o mal pelo mal. Assim , só a representação
de um bem pode levar o sujeito a agir, donde " ninguém faz o mal
voluntariamente. '' O mal, portanto, não é senão uma fraqueza da vontade,
7
normalmente atribuída à ignorância.
Colocada de forma aguda pela Bíblia, a temática do mal percorre- -a
como um fio : do Génesis ao Livro de Job, do Eclesiastes a S. Paulo, vêmo-

6
PLATÃO - A República, Il, 380 a: «Deus, uma vez que é bom, não é a causa de tudo, como
pensamos comummente; não é causa senão de uma pequena parte do que acontece aos homens e não
o é da parte maior, uma vez que os nossos bens são muito menos numerosos do que os nossos males,
e não devem ser atribuídos senão a ele, enquanto que para os nossos males é preciso procurar uma
causa, mas não Deus.»
7
PLATÃO- Ménon, 77c -78b: «Sócrates: Não te parece, meu caro, que todos desejam o que é bom?
Ménon: De modo algum.
Sócrates: Na tua opinião, alguns desejam o que é mau?
Ménon: Sim.
Sócrates: Queres dizer que eles olham o mal como bom, ou que, conhecendo-o por mau, não deixam
de o desejar?
Ménon: Um e outro caso parecem-me possíveis.
Sócrates: O quê? Ménon, julgas tu que um homem, conhecendo o mal pelo que ele é, possa continuar
a deseja-l o?
Ménon: Realmente.
Sócrates: A que chamas desejar? é desejar que a coisa lhe aco nteça?
Ménon: Que lhe aconteça, sem dúvida.
Sócrates: Mas esse homem, imagina ele que o mal é vantajoso para aquele que o experimenta, ou
sabe que é nocivo para aquele em que se encontra?
Ménon: Há quem imagine que o mal é vantajoso; e há outros que sabem que ele é nocivo.
Sócrates: Mas crês que aqueles que imaginam que o mal é vantaj oso, o conhecem como mal?
Ménon: Não creio.
Sócrates: É evidente, consequentemente, que esses não desejam o mal, q ue não o conhecem como
mal, mas que desejam o que tomam por um bem, e que é realmente um mal; de modo que aque les que
ignoram que uma coisa é má, e que a crêem boa, desejam manifestamente o bem. Não é?
Ménon: Parece que sim.
Sócrates: Mas quê? os outros que desej am o mal , tal como dizes, e que estão persuadidos que o mal
prejudica aquele em que se encontra, sabem sem dúvida que ele lhes será prejudicial?
Ménon: Necessariamente.
Sócrates: Não pensam eles que aqueles a quem prejudicamos, são de lamentar, ni sso que os
prejudicamos?
Ménon: Necessariamente, ai nda.
Sócrates: E que quando se é de lamentar, é-se infel iz?
Ménon: Creio que sim .
Sócrates: Ora, há alguém que queira ser a lamentar e infeliz?
Ménon: Não creio, Sócrates.
Sócrates: Se, portanto, ninguém quer ser tal, também ninguém quer o mal. ( ... ) »
18

lo em relação com o tema da transgressão e do sofrimen t o do justo, da


8
condição humana e da impotência, respectivamente •

É o relato de Adão e Eva que primeiramente nos f ornece a chave


simbólica da ori gem humana da falta que, porque decorrente do uso da
liberdade, dá ao mal um carácter contingente. O Livro de Job, depois,
apresenta o mal na sua figura talvez mais marcada, a inj usti ça enquanto
desequilíbrio entre o mal cometido e o mal sofrido. E é este tema, de
resto, que encontramos radi calizado em Hans Jonas e na proposta que nos
deixa de, ao invés de se explicar o mal a partir de Deus, compreender-se
Deus a parti r do mal: um Deus silenci oso que, no mal radical, en controu a
marca da sua impotência 9 .

8
BÍBLIA
Génes is, III 4-7: «A serpente replicou-lhe:'vocês não têm que morrer. De maneira nenhuma! O que
acontece é que Deus sabe que, no dia em que comerem desse fruto, abrirão os olhos e ficarão a
conhecer o mal e o bem, tal como Deus' . A mulher pensou então que devia ser bom comer do fruto
daquela árvore, que era apetitoso e agradável à vista e útil para alcançar a sabedoria. Apanhou-o,
co meu e deu ao seu marido que comeu também . Nesse momento, abriram-se os olhos de ambos e
deram-se conta de que andavam nus.»
Livro de Job, XIII 23-29: «Que maldades ou pecados tenho eu? Mostra-me os meus crimes e
pecados ! Por que é que desvias de mim o olhar e me tratas como teu inim igo? Precisas de meter medo
a uma fo lha caída ou correr atrás de uma palha seca? Fizeste contra mim um relatório de rebeldias e
continuas a faze r-me pagar por erros da infância. Prendes os meus pés com cadeias e observas todos
os meus passos, anotando em pormenor toda a minha vida. Mas a minha vida desfaz-se como madeira
podre, como roupa que a traça vai roendo.»
Ecles iastes, IX 2-3: «Para todos existe o mesmo fim : para o inocente e o culpado, para o bom e para o
mau, para o que oferece sacrifícios e para aquele que não os oferece, para o j usto e para o injusto,
para o que faz juramento e para o que tem medo de o fazer. Este é o pior dos males deste mundo, que
todos tenham o mesmo fim . O coração dos humanos está cheio de maldade, a ignorância domina-os
comp letamente durante a vida e, depois de tudo, acabam por morrer.»
Romanos, VII 14-24 : «Sabemos que a lei vem de Deus, mas eu sou um homem fraco, vend ido como
escravo ao pecado. Nem me compreendo, pois não faço aquilo que queria fazer e faço o mal que
detesto. [... ]Encontro pois em mim esta regra: quando quero fazer o bem, faço o mal. No meu int imo,
quero segu ir a lei de Deus, mas vejo que no meu corpo há uma outra lei que está contra a minha
intel igência . É isso que me torna prisioneiro da lei do pecado que está no meu corpo. Que infel iz eu
sou! Quem me li bertará deste corpo que me leva à morte?»
9 JONAS, Hans- Le Concept de Dieu apres Auschwitz, pp . 34-35 : «Acontecendo actos

verdadeiramente monstruosos e inteiramente un il aterais que os humanos fe itos à Sua imagem


cometem, por vezes, em relação a outros humanos sem a falta destes últimos, deveríamos esperar que
o bo m Deus quebrasse de vez em quando a sua própria regra, a extrema retenção do seu poder, e que
interviesse por um mi lagre salvador. [.. .] Agora, eu digo: se ele não interveio, não fo i, de modo
algum, porque o não quisesse, mas porque não pod ia. Proponho, por razões inspiradas pela
experiência contemporânea de modo determinante, a ideia de um Deus que durante um tempo - o
tempo que dura o processo continuado do m undo - se despojou de todo o poder de ingerência no
curso físico das coisas deste mundo; de um Deus que, portanto responde ao choque dos
acontecimentos contra o seu ser próprio, não com 'uma mão forte e um braço estendido' - como o
19

Em S. Paulo, enfim, é evidente o tratamento do mal enquanto


tentação, produto do paradoxo de uma vontade simultaneamente
orientada para o bem e limitada - porque corrompida desde a origem - por
uma atracção pelo mal. O pecado aparece como uma derrota, submissão
da vontade a uma lei que não a de Deus, apesar de esta estar viva na
consciência, sinal da presença do divino no homem.

Do encontro entre a religião cristã e a filosofia pagã, resultaria,


entretanto, uma mudança profunda no modo de entender o Mal e a sua
relação à acção divina - e, em Santo Agostinho, encontramos o seu maior
representante , porquanto efectua a síntese entre o racionalismo platónico
e a teologia da Criação e do poder divino, a que o pensamento clássico era
alheio, e em torno da qual gravitará todo o pensamento cristão dos séculos
posteriores.
10
Assim, a consideração do mal como simples privação - cuja origem
se encontra na filosofia pagã - vai constituir um elemento precioso no
pensamento cristão e, particularmente, no pensamento agostiniano . Com
efeito, o combate mais intenso deste ex - maniqueísta vai ser o de,
precisamente, insistir no facto de que o Mal não é nada de positivo, mas
apenas uma privação do bem devido, um puro nada 11 . Deste modo,
garantia, por um lado, a perfeição da Criação, onde o mal encontra o seu
lugar - não há coisas más, mas apenas coisas a que falta o bem que
deveriam ter12 ; des-responsabiliza Deus relativamente ao problema do Mal,

recitamos todos os anos, nós judeus, para comemorar a saída do Egipto - mas perseguindo o seu fim
não cumprido com um mutis mo penetrante.»
°
1
11
Cfr. AGOSTINHO- Confissões, VII, 12
RICOEUR, Paul- O Mal, p.32: «Agostinho sustenta que o mal não pode ser entendido como
substância, pois pensar o ' ser' é pensar ' intel igivelmente', pensar 'uno' , pensar ' bem '. Então, o
pensar fil osófico exclui todo o fantasma do mal substanci al. Por outro lado, nasce um a nova ideia do
nada e do ex nihil o, contida na ideia de um a criação total e· sem excesso. Ao mesmo tempo, um outro
conceito negativo, associado ao precedente, toma o lugar de uma distância ôntica entre o criador e a
criatura que permite falar de deficiência daquele que é criado enquanto tal; em virtude desta
deficiência, torna-se compreensível que criaturas dotadas de livre escol ha possam 'decli nar-se' longe
de Deus e ' inclinar-se' em direcção ao que tem menos ser, em direcção ao nada.»
12 Cfr. AGOSTINHO- De Civitate Dei, X I, 22
20

por outro; e, finalmente, dá um sentido à diversidade das naturezas


criadas e à desigual distribuição dos bens entre elas.
O Mal é, além disso, condição de um bem superior: não só no sentido
de que os defeitos das partes são condição da harmonia do conjunto, como
também no de que, se é verdade que o homem pode escolher livremente
fazer um bom ou mau uso das suas faculdades, elas são, em si mesmas,
boas, e, sobretudo, no sentido de que o próprio pecado original é uma felix
culpa, porquanto é motor da história da Salvação e da vinda do Redentor.

Em Leibniz, que inaugura um novo período da filosofia moderna pelo


estatuto que confere ao problema da irracionalidade, o mal não é um
escândalo senão para o ignorante, e é integrado num esquema de
explicação do Universo - nada existe que não tenha a sua razão de ser, no
entendimento de Deus que, porque absolutamente bom, não poderia ter
feito o mundo com outra natureza que não a Sua: o Bem está sempre e
originariamente presente na ordem do mundo e, deste modo, Razão e
13
Bondade implicam-se mutuamente.
O mal, portanto, faz parte apenas da condição humana (inclinada
para o amor-próprio mais do que para o Outro, arrogante a ponto de se
crer mais sábia do que o seu Criador), mas não tem, por si mesmo, uma
natureza própria; é uma «falta de ser, , sem uma «causa eficiente,, mas
<<deficiente, 14 . Não se trata, ainda assim, de por em causa a existência do
mal, mas de rever a sua pertinência enquanto conceito. Mais longe, afinal,

13 LEIBNIZ, W. G. - La Cause de Dieu, pp.433-34: «A sabedoria infinita do Todo-Poderoso,


juntamente com a sua bondade imensa, fez com que, fe itas as contas, nada poderia ter sido criado de
melhor do que o que foi criado por Deus. ( .. .) Consequentemente, sempre que uma coisa nos parece
repreensível nas obras de Deus, é preciso lembrar que não sabemos o suficiente, e acreditar que um
sábi o, que a compreendesse, julgaria que nós não poderíamos mesmo desejar nada de melhor.>>
14
LEIBNIZ, W.G.- Essais de théodicée, I, p. 116: «há uma imperfeição original na criatura antes do
pecado, porque a criatura é limitada essencialmente, do!lde se segue que ela não pode saber tudo,
pode enganar-se e cometer outras faltas.»
21

foi Espinoza, que reduziu o mal a uma realidade ilusória, inteiramente


dependente de juízos de valor subjectivos e, por aí mesmo, arbitrários. 15

Kant e Hegel, rel acionando o mal à História, concebem -no como


momento necessário ao desenvolvimento de um processo- do «plano da
Providência, no primeiro caso, do «Espírito,, no outro. Em ambos os casos,
portanto, mantém-se a caracterização do mal como «falta,, não lhe sendo
atribuída a densidade ontológica de poder transformar a natureza humana
a ponto de a tornar maligna.
Em Hegel 16 , concretamente, o mal é entendido como descontinuidade
necessária ao progresso em direcção ao bem, pelo que está justificado -
trata-se, no fundo, da transposição da tese de Leibniz que distingue a
vontade antecedente de Deus, que quer o Bem, e a sua vontade
consequente, que o realiza pela mediação do mal. Através, pois, de uma
reavaliação do negativo, a dialéctica consagra o mal como necessário à
17
realização da liberdade na História .

Em Kant, o mal é indissociável da faculdade humana de desejar, pelo


que, mesmo no que ao mal, por ele apelidado de radical, diz respeito,
trata-se apenas da possibilidade geral de desobedecer à lei moral.

15
ESPINOZA, Baruch- Ética, Apêndice ao Livro ! , p. 67: «Muitos, com efeito, têm o hábito de
argu mentar assim. Se todas as coisas seguiram da necessidade da natureza de um Deus totalmente
perfeito, donde vêm então tantas imperfeições existentes na Natureza? Quer dizer, donde vem que as
coisas se corrompam até ao fétido, que sejam disformes até à náusea, donde vêm a confusão, o mal, o
pecado, etc. É fácil responder. Porque a perfeição das coisas deve estimar-se somente pela sua
natureza e poder, e elas não são, então, nem mais nem menos perfeitas porque agradam aos sentidos
do homem ou os ofendem, porque convêm à natureza humana ou lhe repugnam.»
16 HEGEL, G.W.F.- La Raison dans l'Histoire, cap.l, p.68: «Ü mal no universo, incluindo o mal

moral, deve ser compreendido e o espírito pensante deve reconciliar-se com o negativo. [ ... ] Esta
concili ação não pode ser alcançada senão pelo conhecimento do afir,mativo no qual o negativo se
reduz a qualquer coisa de subordinado e de ultrapassado e esfuma-se. E a tomada de consciênci a, por
um lado, da verdadeira finalidade do mundo e, por outro lado, da realização desta finalidade no
mundo: perante esta ultima finalidade e a sua realização no mundo, o mal não pode subsistir e perde
toda a sua validade. [... ] A razão não pode eternizar-se ao pé das feridas infligidas aos indivíduos,
porque as finalidades particul ares se perdem na finalidade universal.»
17 RICOEUR, Paul-. Op. cit., p.39 : «A negatividade é, a todos os níveis, o que constrange cada figura

do Espírito a jogar-se no seu contrário e a gerar uma nova figura que ao mesmo tempo suprime e
conserva a precedente, segundo o sentido duplo do Aujhebung hegeliano. A dialéctica faz assim
22

Derivando de um desequilíbrio entre sensibilidade e razão, o mal,


concretamente na figura do pecado original, é a subordinação da lei moral
à sensibilidade, transfiguração enganadora do dever em móbile de
satisfação.

Reflectir sobre o mal é, ainda, prospectar os actos dos homens e as


relações que se estabelecem entre eles, pelo que o problema da
justificação dos actos humanos, enquanto problema político, e,
concomitantemente, tão urgente quanto incontornável, neste século
sobretudo, surpreendidos que fomos por acontecimentos políticos
fundadores da dominação totalitária, onde formas de indizível des-razão
mancharam , irremediavelmente, o tecido das relações humanas .
Ora, são preci samente essas formas que tornam inadequada , na
perspectiva de Arendt, qualquer presunção de uma natureza humana
pecadora, incapaz de dominar os seus in teresses: " o mal, ensinamo-lo às
crianças, releva do demónio; el e encarna-se em Satanás que 'cai do céu
como um raio' (S. Lucas, 1O, 18) ou Lúcifer, o anjo caído ('O diabo é,
também ele, um anjo' - Miguel de Unamuno) cujo pecado é o orgulho
('orgulhoso como Lúcifer'), esta superbia de que só os melhores são
capazes: eles não querem servir Deus, querem ser como Ele. Os maus,
costumamos dizer, são movidos pela inveja [Ricardo III e Caím], e podem
ser também guiados pela fraqueza (Macbeth). Ou, ao contrário, pelo ódi o
poderoso que a maldade sente perante a pura bondade [lago, Claggart], ou
ainda pela cobiça, 'fonte de todos os males' (Radix omnium malorum
cupiditas). Entretanto, o que tinha perante os olhos, se bem que
18
totalmente diferente, era um facto inegável .»
Como procurarei mostrar, o projecto da superfluidade humana não se
deixa, explicar, afinal, pela voracidade dos apetites de uma alma tirânica,

coincidir, em todas as coisas, o trágico e o lógico: é necessário que alguma coisa morra para que
alguma coisa maior nasça.»
18
VE I,p.l8
23

tentada a desempenhar o papel de Deus .19 Além disso, e como a própria


autora salienta, «é um traço inerente a toda a nossa tradição filosófica que
não possamos conceber um ' mal radical': isto é verdade tanto para a
teologia cristã, que atribuía ao próprio diabo uma origem celeste, como
para Kant, o único filósofo que (... ) deve ter pelo menos suspeitado da
existência de um tal mal, ainda que se tenha apressado a racionalizá-lo
pelo conceito de uma 'vontade perversa ', explicável a partir de móbiles
inteligíveis. ·· 20

19
VILLA, Dana -Politics, Philosophy, Terror, p. 34: « Arendt reconhece que [o declínio da fé]
desempenhou pelo menos um papel negativo em tornar o totalitarismo possível, contudo, contesta a ideia de que
o pecado do 'orgulho' (no sentido Agostiniano tradicional) esteja por trás da experiência totalitária. O que é
crucial não é simplesmente a hubris e a aspiração à omnipotência manifesta na ideia de mudar a natureza
humana, mas o papel desempenhado pela submissão, tanto no caso dos líderes como no dos seguidores.»
20
OT III, p. 20 1
BERNSTEIN, Richard J.- Hannah Arendt and the Jewish Question, p. 143: «Se Arendt está a ser
justa com Kant é discutível. Mas é claro que Arendt crê que Kant não alcançou o que ela pretende
s ignificar com 'mal radical'. A análise de Kant é baseada no pressuposto de que há m otivos
compreensíveis que podem explicar o mal radical. Mas é isso, precisamente, que A rendt está a por em
causa. É por isso que diz que 'não temos nada em que nos apoiar em ordem a compreender um
fenóm eno que, contudo, nos confronta com a s ua esmagadora reali dade. ' »
24

3. Tradição e Modernidade

Em A Crise da Cultura, pode ler-se: ''A nossa tradição de pensamento


político tem um começo bem determinado nas doutrinas de Platão e
Aristóteles. Creio que conheceu um fim menos determinado nas teorias de
Karl Marx. ( ... ) O começo e o fim da filosofia têm em comum que os
problemas elementares da política não são nunca tão distin tamente
revelados na sua imediata e simples urgência como quando são formulados
pela primeira vez e quando conhecem o seu último relance.>> 21
Rejeitando embora, como se verá no ponto a seguir, a noção de um
qualquer tipo de explicação causal para o fenómeno totalitário, não deixa
de ser possível vislumbrar, ainda assim, uma relação - e uma relação que a
própria autora estabelece - entre a tradição ocidental da filosofia política
e o espírito da Idade Moderna, e que abarca toda a história do pensamento
político, de Platão e Aristóteles a Hitler e Estaline.
Tema central na reflexão arendtiana, avultadas que são as suas
consequências nos conceitos de liberdade, acção e juizo, na filosofia
ocidental, a substituição do agir pelo fazer encontramo-la já em Platão e
Aristóteles 22 . Trata -se, como se verá, da consequênci a de uma
fundamental desconfiança relativamente à possibilidade da liberdade
humana se manifestar como pura espontaneidade no âmbito da esfera
pública . Mai s, que liberdade e não-soberania pudessem coincidir- na
medida em que a capacidade de começar é correlativa da incapacidade de
controlar sequências de acontecimentos radicalmente novos que cada
começo, em si mesmo, solicita - assumia -se tão absurdo, quanto

21
CC, pp. 28-29
22
VILLA, Dana- Op. cit., p. I 94 : « O desejo de Platão e Aristóteles de pensar a acção como uma
espécie de fazer- de 'reformular' a acção política de modo a que ela aparecesse tão pouco afectada
pelo facto da pluralidade humana como a actividade de fabricação- não se esgota nas suas escol has
dos fenómenos políticos que consideravam valer a pena estudar. Pelo contrário, levou-os a criar uma
óptica sobre a vida política na qual a liberdade, sentido e objectivo da acção, eram reinterpretadas de
modo a que os efeitos 'desestabilizadores' da pluralidade humana (e da cidadania democrática ou
republicana) pudessem ser contidos, senão mesmo e liminados.»
25

perturbador. Deste modo, portanto, parece possível estabelecer um


paralelo entre o fenómeno totalitário e a tradição , como se aquele levasse
a cabo uma radicalização dos fundamentos da segunda. 23
Pela analogia que estabeleceram entre o político justo e o artesão-
"na República, o filósofo-rei aplica as ideias como o artesão o faz com as
suas normas e modelos; 'faz' a sua cidade como o escultor uma estátua,,24
- evitava-se o caos da política democrática que condenara Sócrates,
viabilizava-se que alguns dominassem as opiniões. É que o modelo do
artesão implica, também , a separação entre saber e fazer- "quem sabe não
tem que fazer e quem faz não precisa de pensamento ou conhecimento,, 25 -
e, concomitantemente, um modelo político em que a doxa e a deliberação
plural são substituídas por uma relação de ordem e obediência, que está na
base de todas as teorias da dominação. Ora, " o problema que originam
estas formas de governo não é que sejam cruéis, já que frequentemente o
não são, mas que funcionem demasiado bem. (.. . ) Entretanto, todas têm
em comum o desterro dos cidadãos da esfera pública e a insistência em
que se preocupem com os seus assuntos privados e que só 'o governante
deve atender aos assuntos públicos.,, 26 Consumava-se, afinal, a oposição
entre verdade e opinião que constituiu "a mais anti-socrática conclusão
que Platão tirou do julgamento de Sócrates. , É, de resto, esta tendência
que, nos regimes totalitários, encontra o seu extremo, fim de um caminho
de marginalização do juízo em favor da dedução silogística da acção.
Esta analogia implica, ainda, que o poder do actor decorra de uma
fonte externa e superior, que transcende, ela mesma, a esfera política,
assegurando-se, deste modo, a superação da contingente fragilidade dos
assuntos humanos. Por outras palavras, eis que se anuncia mais um tema

23 Op. cit., p. 197: « A vontade de apagar a pluralidade, de ultrapassar a 'casualidade' da

espontaneidade, de identificar li berdade e controlo, juízo e episteme, legitimi dade e obediência a uma
' lei superior', tudo são características da tradição Ocidental do pensamento político (tal como Arendt
o entende) e o toti1litarismo.»
24
CH, p. 247
25
Op. cit., p. 243
26
Op. cit., p. 242
26

de toda a tradição, mais um argumento especioso da metafísica : o da


supermacia do Ser por relação à simples aparência.
Com efeito, todos os esforços intelectuais dos filósofos - como dos
homens de ciência- foram feitos no sentido de descobrir qualquer coisa
para além das aparências, o que sempre implicou uma fuga do mundo
enquanto tal e um fechamento sobre si, a procura de um fundo que não
aparece sobre a superfície que o faz, e que seria causa ontologicamente
mais digna do que o visível aparente. Ora, isso ,,não seria grave se não
fossemos senão simples espectadores, demiurgos lançados num mundo para
velar pelas suas necessidades, para fruir dele, para nos distrairmos,
conservando uma qualquer outra região à maneira de habitat natural. Mas,
de facto, nós somos do mundo e não simplesmente no mundo., 27
Assim, pois, a substituição do agir pelo fazer, - com todos os ecos
que gerou- garantia da soberania do actor, esta consagração da categoria
meios-fins, marcariam de forma indelével todo o pensamento político
Ocidental.
E, contudo, " a questão é que Platão, e em menor grau Aristóteles,
em cujo critério os artesãos não mereciam a plena cidadania, foram os
primeiros a propor que se manejassem os assuntos políticos e se regessem
os corpos políticos à maneira da fabricação . Esta aparente contradição
indica com clareza a profundidade das autênticas perplexidades inerentes
à capacidade humana para a acção e a força da tentação para eliminar os
riscos e perigos ao introduzir na trama das relações humanas as categorias,
muito mais mornas e dignas de confiança, inerentes às actividades nas
quais enfrentamos a natureza e construímos o mundo do artifício
humano. ,,28 Pela renúncia à capacidade de acção, com a sua futilidade e
insegurança, viabilizava-se um remédio para a fragilidade dos assuntos
humanos .

27
VE I, p. 37
28
CH, p. 250
27

Assim, " a trivial noção, que já se encontra em Platão e Aristóteles,


de que toda a comunidade política é formada por governantes e
governados (... ) fundamenta-se na suspeita que inspira a acção, mais do
que no desprezo pelos homens, e procede do desejo de encontrar um
substituto para a acção, mais do que da irresponsável ou tirânica vontade
de poder.,, 29
Estes pressupostos chegarão, quase intactos, à época Moderna, onde
adquirirão novos contornos com a filosofia marxista que, paradoxalmente,
assumindo-se conscientemente contra a tradição, se mostrou, enfim,
incapaz de a abandonar: " na filosofia de Marx, que não virou do avesso
Hegel, tal como não inverteu a hierarquia tradicional do pensamento e da
acção, da contemplação e do trabalho, da filosofia e da política, o começo
de Platão e Aristóteles prova a sua vitalidade conduzindo Marx a teses
manifestamente contraditórias, sobretudo na parte da sua doutrina
habitualmente chamada de utópica.>> 30 As mais importantes são três, a
saber: «O trabalho criou o homem» (que, contra a tradição, troca o poder
de Deus pelo do homem; o animal rationale pelo animal laborans; a razão
pelo trabalho) , contudo, o ideal da revolução consiste na sua abolição; «a
violência é a parteira de toda a velha sociedade, grávida de uma nova»
(tradicionalmente ultima ratio na relação entre as nações, pelo que a
fórmula marxista é simultaneamente, a renúncia aos aristotélicos zoon
politikon e zoon logon ekhon) , contudo, com o cumprimento da luta de
classes e o desaparecimento do Estado, nenh uma violência será mais
possível; <<OS filósofos não fizeram senão interpretar o mundo de
diferentes maneiras, o que importa, agora, é transforma-lo» (contra a
tradição de Platão a Hegel, em que a filosofia , em rigor, não é «deste
mundo», a utopia de Marx prevê a identificação do mundo dos assuntos
humanos com o mundo das ideias) , contudo, quando a filosofia tiver sido,

29
Op. cit., p. 242
°CC, p. 30
3
28

ao mesmo tempo, realizada e suprimida, nenhum tipo de pensamento


restará.
Ora, " contradições tão fundamentais e flagrantes raramente se
encontram em escritores de segundo plano, onde podem ser
negligenciadas. Na obra de grandes autores elas conduzem ao centro do
31
seu trabalho. " No caso de Marx, dissimulam a dificuldade de tratar
problemas novos nos termos da tradição, « sem a estrutura conceptual da
qual o mais tímido pensamento parecia impossível . , 32
As teses de Marx, de resto, não são sequer, em rigor, utópicas,
porquanto « reproduzem as características do Estado-cidade ateniense que
era o modelo de experiência para Platão e Aristóteles e,
consequentemente, o fundamento sobre o qual repousa a nossa
33
tradição., Com efeito, se Ari stóteles opõe à vida política o seu ideal do
lazer (crxoii.TJ), «a sociedade sem classes e sem Estado realiza, de uma
certa maneira, o estatuto geral do lazer na antiguidade, lazer por relação
ao trabalho e, ao mesmo tempo, lazer por relação à polftica., 34
Tendo em conta, ainda, o papel desempenhado pela violência na
fabricação, o impacto e a dimensão que ela assume na tradição do
pensamento politico e na época Moderna apresentam nuances a considerar.
Com efeito, ,, a violência, sem a qual não poderia dar-se nenhuma
fabricação, sempre desempenhou um papel importante no pensamento e
esquemas políticos baseados numa interpretação da acção como
construção; mas até à época Moderna, este elemento de violência
permaneceu estrictamente instrumental, um meio que carecia de um fim
para se justificar e limitar; ( ... ) A sentença de Marx, 'a violência é a
parteira de toda a velha sociedade grávida de uma nova' ( ... ) apenas
resume a convicção da época Moderna e tira as consequências da sua

31
CH, p.ll6
32
CC, p. 38.
33
Op. cit., p. 30
34
Op. cit., p. 31
29

profunda crença de que a história 'fazem-na' os homens da mesma


maneira que a natureza a 'faz' Deus. ,, 35 E é nesta perversão da acção
política em feitura da história que Arendt vê a ligação entre Marx e o
totalitarismo: pelo desdém de ambos relativamente à pluralidade, pelo
estatuto de obstáculo ao telas da história que ambos lhe atribuem,
partilham da distorção que convida ao sacrifício do indivíduo, das classes e
outros grupos ,a bem da espécie 36 •
Assim, pois, " o fim de uma tradição não significa necessariamente
que os conceitos tradicionais tenham perdido o seu poder sobre o espírito
dos homens. Ao contrário, parece, às vezes, que este poder das velhas
noções e categorias se torna tão mais tirânico quanto a tradição perde a
sua vitalidade e a lembrança do seu começo se afasta. ,,37

Em suma, portanto, se o começo da filosofia política marca o desvio


do filósofo por relação à política, à qual torna para impor as suas normas
aos assuntos humanos, o fim chega quando o filósofo se desvia da filosofia,
a fim de a 'realizar' na política: " virando do avesso a tradição no interior
do seu próprio quadro, [Marx] não se desembaraçou, verdadeiramente, das
ideias platónicas, ainda que tenha tomado parte no obscurecimento do céu

35
CH, pp. 247-248
36
BOWEN-MOORE, Patricia, Hannah Arendi 's Philosophy of Natality, p. 128 : «Ü homo faber de
Arendt é o fabricante do mund o. O homo faber de Marx, contudo, é o home m histórico enquanto
distinto do homem socializado (is to é, animal laborans, estritamente fa lando). No que respeita à
actividade política do homo faber, Marx vê o homem hi stórico como o fabricante da hi stória sempre
que é instru mental em efectuar uma mudança na estrutura social através de me ios violentos
(revolução). A relação entre a violência e as acções do homo faber reside na Assumpção de que agir
na natureza sempre requer uma ruptura com o que é natural. Segui ndo esta linha de pensamento, se a
história é vista como um processo natural, então a violência é uma interrupção necessária no curso
natural das co isas. Marx estava convencido de que a violência era a parteira da história e que a acção
política- no modo de homo faber- é pri mordialmente violência: daí a eq uação de Marx da história
com a política. Arendt expl ica que a convicção de que a acção política é essencialmente violência e
que a hi stória é feita pelo homem 'não se deveu à feroc idade gratuita de um temperamento
revo lucionário, mas tem o seu lugar na filosofia da história de Marx, que sustenta que a hi stória( ... )
pode ser feita pelo homem com inteira consciência do que está a fazer. (...) Ele viu a feitura da
história em termos de fabricação; o hom em histórico era, para ele, primordialmente, homo jaber.'»
37
CC, p. 39
30

claro onde essas ideias, bem como outras presenças, se tinham outrora
tornado visíveis aos olhos dos homens. , 38
Entretanto, nenhum destes dados está, por si só ou no seu conjunto,
habili tado a explicar a catástrofe totalitária do nosso tempo. Ela constitui-
se como uma ruptura por relação às categorias de pensamento e critérios
morais tradicionais, pelo que se assume como o radicalmente sem
precedente.

38
Op. c it., p. 57
31

CAP. 11

COMPREENDER O SEM PRECEDENTES

" A instituição dos regimes totalitários, na medida


em que as suas estruturas e as suas técnicas são
absolutamente sem precedente, representa a
novidade essencial da nossa época. Compreender a
sua natureza- o que não é possível senão após ter
descrito e analisado as orige ns e estruturas do
fenómeno- equivale, por assim dizer, a compreender
o coração mesmo do nosso século. ,

Hannah Arendt, La Nature du Totalitarisme

1. Totalitarismo, Ditadura, Tirania

Porque o mal totalitário não se deixa explicar pelo recurso à lição da


história, deve distinguir-se, antes de mais, das formas mais familiares de
terror que a revolução, a ditadura ou a tirania consubstanciam 39 • Com
efeito, " o"s meios da dominação total não são somente mais radicais, mas
é o totalitarismo que dife re , por essência, das outras formas de opressão
política que conhecemos, como o des potismo, a tirania ou a ditadura. (... )
[Começou-se] a agir segundo um sistema de va lores tão radicalme nte
diferente de todos os outros, que nenhuma das nossas categorias
utilitárias, sejam elas as da tradição, da justiça ou do bom se nso, já não

39
KAT EB, George- Politics, Con~cience, Evil, p. 77: « Para Arendt, nem a aspi ração ao poder total
nem a possessão de poder total ou quase total é suficiente para indicar a presença do totali tarismo. O
t irano intoxicado pelo exercíc io do poder e o líder decid ido pe la completa fa lta de escrúpulos- dois
t ipos que podem parecer mais facilmente diferenciáveis teoricamente do que nos exemplos hi stóri cos
que os apresentam para análise e juízo - não são intei ramente descontínuos com a natureza humana
comum. (... ) O ponto é que, para Arendt, a li derança totalitári a não é para ser exp licada assim . o
totalitarismo é um fenómeno dis tinto porque as raízes dos seus actos não são exp licáveis por nenhum
dos modos comuns que usamos para dar sentid o ao que pode perturbar-nos.»
32

são nenhuma ajuda para nos conciliar com a sua linha de acção, para a
julgar ou predizer. ,, 40
Nesse sentido, o título de As Origens do Totalitarismo não deve
iludir-nos 41 : não se trata de qualquer tipo de explicação causal que
pudesse conduzir-nos à interpretação do mal totalitário como rejeição dos
li mites morais tradicionais ou como patologia pessoal, emanação do génio
demoníaco do líder: " Os componentes do totalitarismo constituem as suas
origens, na condição de que por 'origens' não se entenda 'causas'. A
causalidade, quer dizer, o factor de determinação de um processo
composto por elementos no seio do qual, sempre, um acontecimento causa
outro e pode ser explicado por ele, constitui verdadeiramente, no domínio
das ciências históricas e políticas, uma categoria totalmente deslocada e
fonte de distorção .,, 42 Com efeito, é característica do fenómeno totalitário
- e do universo concentracionário em particular- derrubar a categoria de
meios- fins, tão querida à explicação das ciências sociais e da psicologia, a
que Arendt não poupa as mais severas criticas: ''Evidentemente, as
categorias utilizadas pelas ciências sociais, mesmo que se tenham tornado
muito estereotipadas, têm mais hipóteses de chegar a algumas intuições do
que as noções dos psicólogos, nem que seja porque as primeiras são tiradas
de um mundo real e não de um universo fantasmático. Mas na verdade,
isso não faz, infelizmente, muita diferença . Desde que a im agem do pai

40
OT III, p. 203
41
KATEB, George- Op. cit., pp. 55-57:« Arendt está a dizer que o totalitarismo- pelo menos nas suas
primeiras aparições nas formas de nazismo e estalin ismo- aconteceu contra todas as probabilidades;
que foi uma espécie de milagre, um milagre negro. Ela é clara em relação a que, por ter acontecido
uma vez, um fenómeno pode mais facilmente acontecer de novo. Dificil, é a primeira vez: tão difícil
que o fenómeno- neste caso o totalitarismo- tem de permanecer inexplicável.( ...) O Total itarismo( ...)
é inexplicável num duplo sentido. [Por um lado] não é redutível ao 'produto' de causas antecedentes,
[e, por outro], resiste à atribuição retrospectiva de qualquer tipo de racionalidade. ( ...)Em suma, o
totalitarismo não é concebível, não é conceptualmente possível, não é reconhecível superficialmente,
não experiencialmente fami liar, não é capaz de receber adesão e cooperaç~o, s em várias gerações de
anti-semitismo, outras formas de racismo e imperialismo (não apenas em Africa). Ao mesmo tempo,
0 total itarismo não é a sua derivativa causal ou produto lógico. ( ... ) O totalitarismo é da
responsabilidade da Europa: esta é, certamente, uma das idéias principais que Arendt nos deixa,
apesar de nunca pôr a questão assim tão cruamente.»
42
NT, p. 73
33

invadiu as ciências sociais e que a pequena burguesia domina as disciplinas


psicológicas, as diferenças que separam estes dois domínios tendem a
43
tornar-se negligenciáveis. , Trata-se, antes, de compreender o
absolutamente sem precedentes, ou seja, exercitar a faculdade do juízo
sem o seu chão habitual de senso-comum, confiar numa «imaginação
destemida, preparada para «insistir nos horrores". Menos irónica, escreve
no seu artigo As técnicas da ciência social e o estudo dos campos de
concentração: " qualquer ciência funda-se necessariamente sobre um certo
número de postulados implícitos, elementares e axi omáticos, que não se
expõem e não explodem a não ser que os confrontemos com fenómenos
inesperados, e a partir daí incompreensíveis no quadro das categorias
desta ciência. As ciências sociais e as técnicas que usaram ao longo do
século passado não constituem uma excepção a esta regra. Este artigo
defende que a instituição dos campos de concentração e de extermínio - e
isso refere-se tanto às condições sociais em vigor no interior dos campos
como à sua função no aparelho mais vasto de terror próprio aos regimes
totalitários - poderão muito bem tornar-se nesse fenómeno inesperado, o
obstáculo na via de uma compreensão adequada da política e da sociedade
contemporâneas . Fenómeno que obrigará os investigadores em ciências
sociais e historiadores a reconsiderar os seus a priori fundamentais e nunca
postos em causa sobre a evolução do mundo e do comportamento
humano ., 44
Como se se tratasse de retomar o pedido de Salomão de um
«Coração inteligente»- a faculdade de imaginar que, longe de se
assemelhar à fantasia, tem esse poder extraordinário de penetrar todas as
trevas .
Assim, dirá Arendt: " se, por exemplo, aplicarmos ao fenómeno do
terror totalitário a categoria de meios e fins, pela qual o terror seria um

43
Op. cit., p.74
44
AJ, p. 203
34

meio para manter o poder, para intimidar as pessoas, para as amedrontar,


e deste modo fazê-las comportar de determinadas maneiras e não de
outras, torna-se claro que o terror totalitário seria menos eficaz em atingir
esse fim do que qualquer outra forma de terror. O medo não pode ser um
guia fiável se aquilo que constantemente temo me pode acontecer
independentemente do que eu faça. ( ... ) Poder-se-ia dizer ( ... ) que neste
caso os meios se transformaram em fins. Mas isto não é, realmente, uma
explicação. É apenas uma confissão, disfarçada de paradoxo, de que a
categoria de meios e fins já não funciona., 45
O terror é um processo em espiral, cuja 'finalidade' consiste em
revelar a superfluidade dos seres humanos, reduzindo-os a rostos
desumanizados, ao anónimo da espécie. Como se verá, os campos de
extermínio confirmam ou, mais ainda, exponenciam, as leis da Natureza -
cujo imperativo consiste no genocídio e da História 46 - cujo
desenvolvimento culminaria na extinção do capitalismo e dos inimigos da
47
classe trabalhadora - a que todo o processo se subordina • Esta é, de
resto, " a pretensão monstruosa e, contudo, aparentemente sem réplica,
do regime totalitário que, longe de ser 'sem lei' , remonta às fontes da
autoridade, de que as leis positivas receberam a sua mais alta
legitimidade; longe de ser arbitrário, está, mais do que nenhum outro
antes, submetido a estas forças sobre-humanas; longe de exercer o poder

45
OT UI, p. 204
46
VILLA, Dana R.- Arendt and Heidegger, The Fate ofthe Politica!, p. 255: «Como Arendt salienta
em ' Ideologia e Terror', nenhum regime anterior acalentou a ideia de identificar a fo nte trans-humana
da auto ridade directamente com a ordem política: todos tinham visto a necessidade de estruturas de
autoridade mediadoras, artificiais - por exemplo, a lei positiva - como a necessária 'tradução' do
imutável ius natura/e, sem as quais esta lei seria irrelevante para a esfera dos assuntos hum anos. A
disti nção resultante entre j ustiça e legalidade é superada por um regime totalitário que varre o
cascal ho das autoridades tradicionais e pretende 'estabelecer o reino directo da justi ça sobre a terra'.»
47
VILLA, Dana R.- Politics, Philosophy, Terror, p.17: «( ... ) O que o totalitarismo assume é a
possibil idade de dominar seres humanos inteiramente (' dominação total'), de tal modo que já não
possam interferir com a ' lei do movimento'- da Natureza ou História- que o movimento totali tário
procura acelerar. .Tais leis do movimento (... ) providenciam o 'supersentido' dos movimentos
tota litários, uma meta-narrativa com a qual tentam por a realidade de acordo . O objectivo do
totalitarismo não é senão refazer a humanidade e o mundo de tal modo que ' os factos' reflictam a
verdade do supersentido ideológ ico.»
35

em proveito de um só homem, está pronto a sacrificar os interesses vitais


imediatos de quem quer que seja à realização daquilo que pensa ser a lei
da História ou a da Natureza. ,, 48 Ora, pela subordinação a uma necessidade
sobre- humana, líderes e seguidores totalitários experimentam um poder
49
peculiar.
É, de resto, no contexto do processo gigantesco, do movimento sem
fim das leis naturais e históricas, obnubilação da liberdade, da
contingência mesma, em nome da ideologia determinista, que melhor se
há-de compreender a noção arendtiana de 'mal radical' como o telas
implfcito do totalitarismo, a saber, a transformação da natureza humana 50 -
é que, em situação totalitária, tudo é feito para 'estabilizar' os homens,
para impedir qualquer acção, «de modo que o terror como lei do processo
possa desenvolver-se sem obstáculo, sem ser travado por esses homens . ,, 51
Mais tarde abandonado 52 , é certo, o conceito de mal radical merece, ainda
assim, que o precisemos: nas palavras de Hannah Arendt, " O mal provou
ser mais radical do que o esperado. Em termos objectivos, os crimes
modernos não estão previstos pelo Dez Mandamentos. ( . .. ) Os maiores
males ou mal radical já nada tem a ver com tais motivos pecaminosos,
humanamente compreensíveis. [ ... ] Trata-se de tornar os seres humanos

48
NT, p. 205
49
Cf. Nota 38
50 VILLA, Dana - Op. cit. , p . 35 : «Porque o alvo do totalitarismo não é, como o exemplo naz i parece

mostrar, a e liminação do 'sub-humano'. É, antes, a transformação do humano- <.leve notar-se- não


num 'super homem' que faz as suas próprias leis, alheias aos ditados d·a moralidade tradicional, mas
numa espécie animal cujos membros, impiedosamente ensinados da sua própria superfluidade,
obedecem passivamente aos ditados das (supostas) leis da Natureza ou História. Este é o úni co e sem
precedente mal do totalitarismo- um sistema 'no qual todos os homens se tornaram igualmente
supérfluos'- e a razão pela qual Arendt sente que deve ser rotulado de 'absoluto' o u 'radical'.»
SI NT, p. 102
52
Em resposta a uma carta de Gershom Scholem, em que este se indignava com o concei to de
banalidade do mal que, em Eichmann in Jerusalem, Arendt introduz ira, e em que confessava,
desgostoso, não poder levar a sério a nova tese, escreve Arendt: «Mudei de ideias e j á não falo de mal
radical.( ... ) É, de facto, a minha opi nião que o mal não é nunca ' radical', que é apenas extremo, e que
não possui nem profund idade nem qualquer dimensão demoníaca. Pode crescer desmesuradamente e
lay waste o mundo inteiro, precisamente porque se espalha como um fungo na superfície. É
'desafiador do pensamento ' porque o pensamento tenta alcançar alguma profundidade, ir às raízes, e
no momento em que se preocupa com o mal, é frustrado porque não há nada. Essa é a sua
'banalidade '. Só o bom tem pro fundid ade e pode ser radical.» in JP, pp. 250-5 I
36

enquanto seres humanos supérfluos (não os usando como meios para um


fim, o que deixa a sua essência de humanos intocada e afecta apenas a sua
humana dignidade; antes tornando-os supérfluos enquanto seres humanos).
Isto acontece assim que qua lquer imprevisibilidade - que, nos seres
humanos é equivalente à espontaneidade- é eliminada., 53
Não se trata, salientemo-lo, nem de desvelar uma concepção de
natureza humana desiludida, ou mais ou menos pessimista, nem de
questionar o seu carácter naturalmente bom ou egoísta 54, mas de averiguar
da existência de limites para o poder humano, concretamente no que toca
à plasticidade do material humano: tal como Arendt o afirma, "é a
natureza humana enquanto tal que está em jogo, e ainda que pareça que
tais experiências conseguiram, não mudar o homem, mas apenas destruí-
lo, criando uma sociedade em que a niilista banalidade do homo
hominilupus é realizada com consistência, devemos ter em mente as
necessárias limitações para uma experiência que requer controlo global de
modo a mostrar resultados conclusivos., 55
De que modo, pois, se pode evidenciar o seu carácter único- e este
não é, de modo algum , " um ponto de erudição que pudéssemos
tranquilamente abandonar aos 'teóricos' , 56 - sabendo embora que nem o
terror político nem os campos são uma invenção totalitária, é o que se
trata, agora, de esclarecer. Para tal, há-de ser possível resistir a duas
tentações maiores: primeiramente, a de subsumir o estranho no familiar,
para que Arendt alerta quando procede à análise da banalização do uso dos
termos 'imperialismo' e 'totalitarismo' no discurso popular, da assimilação

53
Hannah Arendt - Karl Jaspers Correspondance 1926 - 1969
54
VILLA, Dana- Op. c it., p. 33: «A concepção arendtiana do mal rad ical apoia-se num específico (e,
para a lguns talvez, idiossincrático) conj unto de pressupostos normativos. Como a sua resposta a
Voeglin demonstra, seria errado atribuir-lhe uma concepção robusta de natureza humana, que
pressupusesse um hiato entre a essência imutável e a existência contingente. Ainda assim, Arendt
press upõe uma vari ante existencialista do ponto Rousseaun iano/Kantiano sobre a li berdade e a
es pontaneidade.»
55
OT III, p. 200
56
Op. cit., p. 13
37

do totalitarismo à tirania ou à ditadura- " a afirmação desta equivalência,


o reconhecimento aparente, nos acontecimentos mais recentes , de certas
tendências antigas e às quais o tempo concedeu os seus pergaminhos de
nobreza, comporta um motivo de consolação particular e particularmente
eficaz: nada de pior do que a agressividade, conhecida para nós desde que
a história existe, nada de pior do que a tirania que, em certo sentido,
sempre representou a forma especificamente política da natureza
pecadora do homem, vem ameaçar-nos. O denominador comum que
recobrem termos como imperialismo e totalitarismo, quando são utilizados
como termos passe-partout na sua generalidade abstracta, faz sempre
papel de cortina de fumo atrás da qual se dissimulam os acontecimentos e
as formações políticas verdadeiras.>> 57 Além disto, deverá ainda recusar-se
qualquer explicação que assimile o fenómeno totalitá rio a um país
particular, sob pena de «minimizar a nocividade e o carácter sem
precedente do totalitarismo ou de lhe retirar a sua pertinência para a
análise dos problemas políticos contemporâneos.,,sa Mais ainda, numa
formulação surpreendente, Arendt rejeita interpretar a Solução Final como
o culminar de uma história de anti-semitismo: " A única consequência
directa e não adulterada dos movimentos anti-semíticos do século XIX não
foi o Nazismo, mas , ao contrário, o Sionismo, que, pelo menos na forma
ideológica Ocidental, era uma espécie de contra-ideologia, uma 'resposta'
59
ao anti-semitismo. >>

57
NT, p. 108
58
Op. cit., p. 113
59
OT II, p. 18
38

2. Medo e Terror

Começarei, pois, por estabelecer a diferença, qualitativamente


fundamental, entre tirania e totalitarismo, decorrente do papel que,
nestas formas de governo, assumem o medo e o terror, respectivamente.
Com efeito, se é verdade que, apoiada no medo, a tirania procura o
isolamento dos seus membros e a desertificação da esfera pública, também
o é que o agir, obedecendo ou evitando conflitos , continua a ser, ainda
assim, possível , se bem que como mero princípio de sobrevivência.
Nesse sentido, afirma Arendt: " Porque até o medo é, ainda, (de
acordo com Montesquieu} um princípio de acção e, enquanto tal,
imprevisível nas suas consequê ncias . (... ) O medo é o principio dos
movimentos humanos neste deserto de companhia [neighborlessness] e
solidão [loneliness]; enquanto tal, contudo, é ainda um principio que guia
as acções do indivíduo que, assim, retém um mínimo, amedrontado
contacto com outros homens. O deserto em que este homem individual e
totalmente atomizado se move, retém uma imagem, ainda que distorcida,
daquele espaço que a liberdade humana requer. »60
Assim, se é certo que o isolamento, na tirania, desgasta a
capacidade humana para a acção, a esfera privada, com todas as suas
possibilidades é, ainda, preservada. Ora, " nós sabemos que o círculo de
ferro do terror total não deixa espaço a uma tal vida privada, e que o
autoconstrangimento da lógica totalitária destrói no homem a capacidade
de experimentar e de pensar, bem como a de agir.,, 61
O terror é, ele próprio, essência da dominação totalitária :
eliminando a liberdade enquanto tal, no sentido de dar cumprimento aos
juízos de morte da História e da Natureza, o terror totalitário incapacita

60
NT, p. 105
61
OT III, p. 224
39

para a acção. Com efeito, « a partir do momento em que o terror é total,


o próprio medo não é bom conselheiro da conduta a adoptar: porque o
terror escolhe as suas vítimas sem ter em conta as acções e os
pensamentos individuais, mas exclusivamente segundo a necessidade
objectiva do processo natural ou histórico. Em situação totalit ária, o medo
está, certamente, mais espalhado do que nunca antes; mas perdeu a sua
util idade a partir do momento em que as acções que ins pira já não são
nenhuma ajuda para evitar os perigos temidos pelo ho mem . A mesma coisa
é verdadeira para a simpatia ou apoio manifestados ao regime; porque o
terror total não se contenta com escolher as suas víti mas segundo critérios
objectivos., 62
Além disso, entretanto, e dado o seu carácter essencial, deve
evitar-se analisar o terror como um meio de poder político 63 - o te rror como
essência assum e, de algum modo, o estatuto de fim em si mesmo, o que
significa at ribuir-lhe, com Arendt, o estatuto de «instru mento
incomparável »64 . É, de resto, neste sentido, que Arendt afirma: ,, O terror
começa por apagar os limites instituídos pela lei dos home ns, mas não o
faz em proveito de uma qualquer vontade ti rânica, do poder despótico de
um homem contra todos os outros, e menos ainda para permitir a guerra
de todos contra todos. O terror substi tui aos limites e aos modos de

62
Op. cit., p.2 l4
63
KATEB, George- Op. cit. , p.76: « O totalitari smo é genocíd io, um genocídio metódico ' num
quadro de ordem legal'. O totali tarismo é a matança metód ica de certas popu lações em grande escala
(envolvendo m ilhões) levada a cabo de liberadamente e como questão po lítica pelos que estão no
poder, cuj o object ivo primord ia l é matar essas populações, e mata-las apesar de não serem hostis nem
mes mo d iss identes, ou obstácu los para um qualquer objecti vo de utilidade, ou estarem na posse de
bens de qualquer tipo de que os seus assass inos precisem, quei ram ou cobicem. Para o observador
racional o total itari smo é tão gratuito quanto metódico: combina a mais extrema eficácia de método
com o que parece ser a total ausênc ia o u vazio de m otivo.»
64
BERGEN Bernard J. - The Banality of Evil, p. 155: « Arendt vê que se quisermos agarrar a
natureza única do tot al itaris mo, temos de inverter o nosso entendimento tradi cional do terror: as
imagens tradicionais do terror são imagens de pessoas demasiadamente paralisadas para se mover;
mas para o totalitarismo, o terror é a arma da lei que chama os homens à acção. Mas a chamada à
acção não é uma chamada a agir, que pode apenas ser dirigi da a indivíduos. Onde os indivíduos são
apenas a corporização da le i do movimento, estão apenas a transportar [motion-carrying] o terror que
é a s ua lei.»
40

comunicação entre os indivíduos uma golilha que os mantém tão apertados


que ficam como que fundidos, como se fossem um ..,65
Em suma, o terror vaporiza o próprio critério de definição da
essência dos governos, a saber, a alternativa entre legitimidade e
arbitrariedade, entre legalidade e ausência de lei e, assim, a dominação
totalitária assume-se como o regime em que o terror é, ele mesmo, guiado
pela lei, quando " o próprio termo de lei mudou de acepção: exprimia o
quadro estável no seio do qual as acções e os movimentos humanos eram
supostos ter lugar, era a sua condição, e veio a constituir a própria
expressão desses movimentos .,, 66
Deste modo, inviabilizando a lógica binária do ' nós' e 'eles', o
totalitarismo tem por princípio o ,,ninguém está a salvo••, pois " não é nem
a favor dos homens nem contra eles que o terror está instituído. A sua
existência tem por fun ção fornecer ao processo natural ou histórico um
instrumento de aceleração incomparável. ·· 67 Em As Origens do
Totalitarismo, Arendt reitera e aprofunda: " os cidadãos de um país
totalitário são atirados e tomados pelo processo da Natureza ou da História
com vista a acelerar- lhe o movimento; como tal, não podem ser senão os
executores ou as vítimas da lei que lhe é inerente. O curso das coisas pode
decidir que aqueles que hoje eliminam raças e indivíduos, ou os
representantes de classes agonizantes e os povos decadentes, sejam
amanhã os que devem ser sacrificados. Aquilo de que tem necessidade o
reino totalitário para guiar a conduta dos seus sujeitos, é de uma
preparação que torne cada um deles apto a desempenhar tanto o papel de
carrasco, como o de vítima. Esta preparação de duas faces, substituto de
um princípio de acção, é a ideologia.··68

65
NT, p. 103
66
Op. cit. , p. I 00
67
Op. cit., p. 103
68
OT III, p. 215
41

Em suma, a dinâmica totalitária do terror remete- nos para uma


forma de governo radicalmente nova, com finalidades igualmente
inauditas: eliminar a capacidade de acção independente dos indivíduos,
pela supressão do espaço entre eles, favorecendo a criação efectiva, mais
do que de um monopólio do poder público, de «Um Homem de dimensões
gigantescas,, onde a pluralidade e a concomitante diferença de
69
perspectivas não encontra lugar - " Abolir as barreiras das leis entre os
homens - como o faz a tirania - equivale a suprimir as liberdades humanas
e a destruir a liberdade enquanto realidade política viva; porque o espaço
entre os homens enquanto delimitado pelas leis é o espaço vital da
liberdade. ( ... ) Esmagando os homens uns contra os outros ( ... ) [o
totalitarismo] destrói a única condição essencial a toda a liberdade:
simplesmente, a faculdade de se mover, que não pode existir sem
espaço.,, 70
É verdade que ambos os regimes, tirânico e totalitário, aspiram à
dominação de uma população privada de liberdade política. É verdade,
também, que em ambos encontramos a convicção de que um só pode e
deve velar sobre todas as actividades humanas, sejam elas quais forem.
Contudo, neste ponto em que as semelhanças se acentuam, anuncia-se,
irremediavelmente, a diferença crucial: ,, Com efeito, Nero, na sua
loucura, não desejava ter frente a si senão uma só cabeça, para que a
calma do seu reino não fosse nunca mais ameaçada por uma nova oposição

69
VILLA, Dana R. - Arendt and Heidegger, 1he Fate of the Politica/, p. 25 8: «A decisão de
exterminar os judeus - de eliminar, de uma vez por todas, essas testemunhas das origens plurais do
Ocidente Greco-Judeo-Latino ele mesmo - segue, como Lacoue-Labarthe enfatiza, uma lógica que é,
estritamente falando, espiritual ou metafisica. É a decisão de identificar a heterogeneidade com um
povo - ver os judeus como o elemento heterogéneo por excelênci a - e 'eliminar' a ameaça colocada
por esta heterogeneidade exterminando a sua corporização exteriorizada. A diferença que precede e
assombra a identidade, e que desestabil iza todas as tentativas de institucional izar a identidade, produz
uma vontade violenta naquele ' povo'- os alemães- que são os mais ameaçados pela artificia lidade da
sua própria identidade nacional. De que outro modo se compreenderia a paradoxal declaração de
Hitler, 'o judeu eq1 cada um de nós' , uma declaração que, de uma só vez, reconhece a 'primordial'
contaminação' da identidade e ordena a aniquilação de uma alteridade [otherness) exteriorizada,
substanc ializada?»
70
OT III, pp.21 1-2 12
42

(... ) e sabia que isso era impossível. O ditador totalitário, ao contrário,


considera-se como o único chefe do conjunto da raça humana, e não se
preocupa com a oposição senão na medida em que esta deve ser eliminada
antes mesmo que ele possa reinar pela dominação total. O seu objectivo
último não é a tranquilidade do seu reino, mas [a reprodução ou
interpretação] de certas leis, da natureza ou da história, que são leis do
movimento e que, consequentemente exigem que constantemente se
tomem medidas e se torne (... ) as alegrias seculares da dominação tirânica
(... )impossíveis por definição.,/ 1
O totalitarismo não tem , portanto, muito em comum com a tirania,
e a mesma distinção pode estabelecer-se relativamente à ditadura, com a
qual, frequentemente, se confundiu. Com efeito, Arendt não se cansa de
salientar que as ditaduras não são totalitárias : o regime de Lenine, apoiava
o seu poder no aparelho burocrático do partido; Mussolini prestava um
verdadeiro culto ao Estado; a Espanha de Franco aceitou o apoio e os
limites impostos pela Igreja Católica 72 • Ora, em situação totalitária ,,
nenhum grupo, nenhuma instituição do país permanecem intactos, não
somente no sentido de que devem 'articular-se' com o regime e apoiá-lo
do exterior- o que já é grave- mas no sentido literal em que, a longo prazo,
não são supostos, sequer, sobreviver.,/3
Em suma, o fenómeno é sem precedente e recusa qualquer
tipificação baseada em categorias tais como as de causalidade, ânsia de
poder ou ,,ismos,, de qualquer ordem, e por isso ,, o aborrecido com os
regimes totalitários não é que eles manipulem o poder político de uma
maneira particularmente impiedosa, mas que, por trás da sua política, se

71
NT, p. II I
72
AMIEL , Anne- Hannah Arendt, Política e Acontecimento, p.3 1: « O princípio totalitário e o
movimento que impl ica forma m um conceito novo da realidade e do poder, com, podem os ins istir,
um antiestadismo (o Estado im põe a rigidez de uma estrutura, de um quadro gera l, de um territóri o),
um antinacionalis mo (os Arianos não são, por exempl o, os alemães, e o movimento supera a nação e
os interesses naciona is), e um anti- utilitarismo.»
73
NT, p. I I3
43

esconda um conceito inteiramente novo, sem precedente, da realidade.


Supremo desprezo pelas consequências imediatas mais do que
inflexibilidade; ausência de raízes e negligência dos interesses nacionais
mais do que nacionalismo; desprezo de uma ordem utilitária mais do que
perseguição inconsiderada do interesse pessoal; 'idealismo', quer dizer, fé
inquebrantável num mundo ideológico fictício mais do que apetite de
poder- tudo isso introduziu na política internacional um factor novo, mais
perturbador do que o teria sido a agressividade pura e simples. ,,74

74
OT III, p. 148
44

3. Totalitarismo e Anti-Semitismo

No que ao problema do anti -semitismo diz respeito, escreve Arendt:


" em simples termos de anti-semitismo não podemos compreender
plenamente nem o destino dos judeus da Europa, nem o estabelecimento
das fábricas da morte. Ambos transcendem o raciocínio anti-semita tanto
quanto os móbiles políticos, sociais e económicos que se escondem atrás da
propaganda dos movimentos anti-semitas. O anti-semitismo apenas
preparou o terreno e facilitou , com o extermínio dos judeus, o de outros
povos. » 75
Tendo recusado, como se viu antes, as potencialidades
hermenêuticas da noção de causalidade, no que toca ao fenómeno
totalitário, porque razão faz Arendt preceder o último volume de As
Origens do Totalitarismo, dedicado ao Sistema Totalitário , de dois outros,
um consagrado ao Anti-Semitismo, outro ao Imperialismo? Creio que,
convicta embora de que nada do que acontecera anteriormente pode ser
entendido como conduzindo inevitavelmente ao totalitarismo, Arendt
considerava que a propagação do anti-semitismo, do imperialismo e das
políticas racistas que este executou, tudo contribuiu para a possibilidade
do milagre negro, que agora era preciso compreender: " como todas estas
correntes subterrâneas só se revelaram na ocasião da catástrofe final , que
as juntou, teve-se tendência a assimilar o totalitarismo aos seus elementos
constitutivos e às suas origens, como se toda a explosão de anti-semitismo,
de racismo ou de imperialismo pudesse ser uma manifestação de
' totalitarismo'. Este erro é tão perigoso para a investigação da verdade
histórica como para o julgamento político. A política totalitária- longe de
ser simplesmente anti-semita, ou racista, ou imperialista, ou comunista-
usa e abusa dos seus próprios elementos ideológicos e políticos, a ponto de
a base concreta que tinha fornecido às ideologias a sua força e o seu valor

75
AJ, p. 206
45

de propaganda- a realidade da luta de classes , por exemplo, ou os conflitos


de interesses entre os judeus e os seus vizinhos- quase ter desaparecido.» 76
Na sua incomensurável perversidade, o t otalitarismo esconde uma
razão, segue uma lógica que, contudo, nos term os em que Ben-Guri on a
f ormulou, por altura do caso Eichmann , Arendt não poderá senão rejeitar:
como farsa , como a mais hipócrita lição que Judeus, Árabes Israelitas e
Gentios poderiam tirar da história negra que constituiu o Holocausto:
<<Havia a lição para o mundo não-judeu: 'queremos estabelecer perante as
nações do mundo como milhões de pessoas, porque eram judeus, um
milhão de crianças, por serem crianças judias, foram assassinados pelos
nazis. ( ... ) Queremos que as nações do mundo saibam... e se
envergonhem . ' Os judeus da Diáspora deviam lembrar-se como o judaísmo,
'durante quatro mil anos, com as sua criações espirituais, as suas lutas
éticas , as suas aspirações Messiânicas' tinha sempre feito face a um
'mundo hostil', como os judeus tinham degenerado até caminharem para a
própria morte como cordeiros , e como apenas o estabelecimento de um
Estado judeu teria permitido aos judeus ripostarem, como os Israelitas
tinham f eit o na Guerra da Independência, na aventura do Suez, e nos
quase diários incidentes das infelizes fronteiras de Israel. E se aos judeus
fora de Israel tinha de ser mostrada a diferença entre o heroísmo israelita
e a dócil submissão judia, isto era uma lição também para os que estavam
dentro de Israel: 'a geração de israelitas que cresceram desde o
Holocausto' estavam em risco de perder os seus laços com o povo judeu e,
por implicação, com a sua própria história. ' É necessário que a nossa
juventude lembre o que aconteceu ao povo judeu. Queremos que
conheçam os mais trágicos factos da nossa história.' ( ... ) Em alguns
aspectos, as lições eram supérfluas. Noutros, completamente
enganadoras., 77

76
0T II, pp. l7-18
77
EJ,p. l0
46

Com efeito, a amarga ironia com que rejeita as lições de Ben-


Gurion, já em As Origens do Totalitarismo as explicara; como se verá a
propósito da sua temporária ligação ao Sionismo- convicta umas vezes,
outras reticente- o que estava em causa era contestar um certo modo de
conceber a história do povo judeu como ••uma continuidade ininterrupta de
perseguições, expulsões e massacres desde o fim do Império Romano até à
Idade Média, da era Moderna até aos nossos dias, frequentemente
embelezada pela ideia de que o anti-semitismo moderno não é senão uma
versão secularizada das superstições populares medievais,, 78 , que Arendt
considera tão falaciosa quanto o mito anti-semita da secreta dominação do
mundo, por parte dos Judeus, desde a Antiguidade.
Assim, pois, se queremos compreender o motivo pelo qual o anti-
semitismo pôde tornar-se um elemento fundamental das ideologias maiores
do século XX, há que desmontar, antes de mais, algumas explicações mais
clássicas: «Este livro- escreve no volume de As Origens ... dedicado ao anti -
semi ti smo- constitui uma tentativa de compreensão de factos que, ao
primeiro olhar, e até ao segundo, pareceriam simplesmente revoltantes.
Compreender, entretanto, não significa negar o que é revoltante e não
consiste em deduzir a partir de precedentes o que é sem precedente. ( ... )
Compreender, numa palavra , consiste em olhar a realidade de frente, com
atenção, sem ideia preconcebida, e resistir à necessidade dela, qualquer
9
que seja ou pudesse ser esta real idade. ,,7
Neste sentido, Arendt fundamentará a sua recusa das explicações
até então usadas para a explicação do surgimento da máquina infernal,
mostrando, por um lado, que constituem respostas improvisadas à pressa
para suprir a falta de sentido e de razão dos acontecimentos sem
precedente que pretendem explicar e, por outro, que todas coincidem

78
OT II , pp.9-10
79
Op. cit., pp.16-1 7
47

numa fuga à rea lidade, numa rejeição da responsabilidade que os próprios


judeus teriam tido no curso dos acontecimentos. 80
Assim , pois, a primeira interpretação a contestar é a que identifica
o anti-semitismo com um nacionalismo latente manifesto em explosões de
xenofobia; ora «OS factos mostram, infelizmente, que o anti-semitismo
moderno aumentou à medida que o nacionalismo tradicional declinava; o
seu apogeu coincidiu exactamente com o colapso do sistema europeu dos
Estados-nação e a ruptura do equilíbrio precário dos poderes que daí
resultou. , 81
Com efeito, a história mostra- concretamente os estudos de
Tocqueville relativos ao ódio do povo francês pela aristocracia, na altura
da Revolução- que os homens toleram mais facilmente o poder- mesmo na
figura da opressão- ao qual reconhecem alguma utilidade, do que a riqueza
sem poder, associada a privilégios parasitas e intoleráveis . Assim, do
mesmo modo que os aristocratas franceses foram mais odiados numa altura
em que já não detinham o poder mas mantinham a sua riqueza, também o
caso Dreyfus explode, não quando os judeus franceses estavam no apogeu
do seu poder, ,, mas sob a terceira República, quando os judeus tinham
quase desaparecido dos lugares importantes,> 82 , e também o anti-semitismo
se exasperou ''no momento em que os judeus tinham perdido as suas
fun ções públicas e a sua influência, não conservando senão a sua
riqueza. ,,83

°
8
KATEB, George- Op. cit., p. 59: «A grandeza de Arendt reside, precisamente, na sua honestidade.
Põe de lado tudo o que a deixaria a si e aos seus companheiros étnicos confortáveis, se esse conforto
é comprado pela auto- ilusão ou meio-conhecimento. No seu juízo, o anti-semi tismo moderno
depende do carácter do judeu moderno. Nunca diz estupidamente que os judeus mereceram o que
tiveram no século XIX e XX. Antes, tenta mostrar que dados certos padrões de vida judaica, a
resposta do anti-sem itismo não estava fora da esfera da normal maldade humana ou da pouco
imaginativa resistência ao estrangeiro ou dessemelhante.»
81
OT II, p.24
82
Op. cit, p.26
83
Loc. cit.
48

Mais, a hipótese do nacionalismo não circunscreve o que animava a


ideologia nazi, que se confessava, ela própria, um ,,movimento» mais
importante do que o Estado.
Em suma, " o declínio geral dos judeus na Europa ocidental e
central não é senão o pano de fundo dos acontecimentos que se seguiram.
Este declínio não explica, por si só, os factos, do mesmo modo que a
simples perda de poder da aristocracia não explica a Revolução Francesa. É
preciso, simplesmente, lembrar estas leis gerais para refutar os
argumentos de simples bom senso que nos levam a crer que um ódio
violento ou uma revolta súbita são sempre uma reacção contra um poder
imenso e abuso manifesto, e que, consequentemente, o ódio desencadeado
sistematicamente contra os judeus é forçosamente uma reacção contra a
sua influência e o seu poder. ,, 84
Entretanto, a teoria que supõe a absoluta ausência de poder dos
judeus, e que os converte nos eternos qodes expiatórios sobre os quai s se
faria recair toda a responsabilidade pelos conflitos generalizados e
insolúveis do seu tempo, não é menos fal aciosa: esta teoria << implica que o
bode expiatório poderia ter sido qualquer um . Supõe a inocência perfeita
da vítima, uma inocência tal que não somente a vítima não causou nenhum
mal, mas também que não fez nada que tenha a mínima relação com o
problema em jogo. ,, 85 Ora, lembra Arendt, muito antes de o terror ter
varrido todas as distinções entre culpados e inocentes, os judeus já
estavam no centro da ideologia nazi, e uma ideologia, que tem que
persuadir e mobilizar as pessoas, não pode escolher a sua vítima
arbitrariamente. Escreve, em Eichmann em Jerusalém: ,,É falso que
tenhamos sido em toda a parte e sempre essencialmente vítimas
inocentes. Mas, se tal fosse o caso, seria aterrorizante, pois isso excluir-

84
Op. cit., pp.27-28
85
Op. cit., p. 28
49

nos-ia definitivamente da história da humanidade, como todos os outros


perseguidos., 86
Radicalmente oposta à teoria do bode expiatório, aparece a
doutrina do «eterno anti-semitismo,,, segundo a qual nenhuma explicação
especial é necessária para um ódio de mais de dois mil anos.
O mais surpreendente, contudo, não é que esta interpretação tenha
sido rapidamente adoptada pelos anti-semitas, nomeadamente enquanto
álibi para o horror; «O mais surpreendente, nesta ideia de um eterno anti-
semitismo, é que ela foi adoptada por um grande número de historiadores
objectivos, e por um número ainda maior de judeus. É esta curiosa
coincidência que torna a teoria tão perigosa e própria a gerar a
87
confusão. ,, De algum modo, estamos perante um prolongamento e uma
modernização, ainda que invertidos, do mito da eleição, ao que acresce o
fenómeno da assimilação e concomitante perda de valores religiosos e
espirituais: ··o que se passou, de facto, é que uma grande parte do povo
judeu se encontrou ao mesmo tempo ameaçada do exterior, de extinção
física, e de desintegração interna. Em tais condições, era normal que os
judeus, preocupados com a sobrevivência do seu povo, viessem a pensar
que, antes de mais, o anti-semitismo poderia ser um excelente meio de
manter a unidade do povo judeu; foi um erro desesperado mas, no
imediato, consolador, uma vez que parecia que esse dito anti-semitismo
88
eterno garantiria ao povo judeu uma existência eterna.,
Em suma, se Arendt considera que a consequência directa do anti-
semitismo é o sionismo e não o nazismo, é porque rejeita,
simultaneamente, a causalidade e a contingência em história. A sua
desconfiança recai , assim, sobre t odas as ideias geralmente aceites que
pretendem explicar tendências inteiras da história. E reflectir sobre o mal
é, então, enfrentar e assumir a novidade que o fenómeno totalitário

86
EJ, p. 28
87
OT II, p.32
88
Op. cit., pp. 32-33
50

protagoniza; é, além disso, questionar a filosofia - concretamente a


filosofia política - confrontados que somos, no séc. XX, com um
acontecimento que «pulverizou manifestamente as nossas categorias
morais assim como os nossos critérios de juízo morais. ,, 89
O fenómeno da dominação totalitária e as várias formas de des-
razão que aí irrompem, levará Arendt a questionar, não só a crença no
progresso das formas de relação entre os homens90 , como a própria acção,
que agora revelava o mal como sua dimensão essencial: " É aparição de um
mal radical, desconhecido de nós anteriormente, que põe termo à ideia de
que os valores evoluem e se transformam. Aqui, não há critérios nem
políticos nem históricos, nem simplesmente morais, mas no máximo a
tomada de consciência de que há talvez na política moderna qualquer
coisa que não deveria nunca ter-se encontrado na política, no sentido usual
do termo, a saber, o tudo ou nada.,, 91
É, pois, do próprio interior das relações humanas que surge a
possibilidade da degenerescência, quer dizer, a possibilidade de um
desregramento sistemático e pretendido; é a acção que se vira contra o
que ela própria é, enquanto acção livre 92 • Com efeito, " (... ) a
manifestação dos princípios não se produz senão pela acção (... ). Os
princípios neste sentido são: a honra, a glória, o amor da igualdade - a que
Montesquieu chamava virtude- a distinção ou excelência (... ), mas também
o medo, a desconfiança ou o ódio. A liberdade ou o seu contrário
93
aparecem no mundo cada vez que tais princípios são actualizados. » É,
enfim , ao nível da própria inteligibilidade da acção, no plano do querer,

89
NT, p. 42 .
90 VILLA, Dana R.- Politics, Philosophy, Terror, p. ll: « A medida que o século XX se encaminha
para 0 fi m, é d ificil evitar ser tomado pe la náusea moral. ( ...) Qualquer concepção de dign idade
humana que parte do pressuposto do progresso mora l da espécie foi estil haçada por estes
acontecimentos. Montaigne, o observador céptico da humana e pers istente id iotice mora l, e não Kant,
mostro u-s e certo. Nenhuma escondida mão da providência ou natureza nos conduz.»
91
OT III, pp. 180- 18 1
92
Cf. nota 34
93
CC, p. 19 8 (o s ublinhado é meu) .
51

que um desconhecido nos interpela, rosto obscuro a confrontar e a


94
compreender .

«Para combater o totalitarismo escreve Arendt- basta


compreender isto: ele representa a negação mais absoluta da liberdade. , 95
O modo como, em qualquer um dos casos que passarei a analisar, a
negação da liberdade resulta sempre numa exclusão do mundo, mostrará
como Arendt questiona, mais do que a dimensão moral do Mal, a sua
dimensão política.

94 BERNSTEIN, Richard J. - Op. cit., p. 137: «Em 1945, Arendt declarou: 'o problema do mal vai ser
a mais fu ndamental questão da vida intelectual na Europa do pós-guerra'(EU, I 34). Enganou-se. A
maioria dos intelectuais evitou qualquer confronto directo com o problema do mal. Mas e le tornou-se
fundamental para Arendt. Voltou a ele repetidamente, e ainda estava a lutar com ele na altura da sua
morte.»
95
NT, p.67
PARTE 11
Mal, Mundo, Liberdade
53

CAP. I
As Figuras do Mal

Na filosofia arendtiana, o mal enquanto figura da ausênci a de


mundo e de liberdade aparece associado a três fenómenos mais gerais: o
recuo - pré-moderno (de raiz grega, romana e cristã) - por relação à esfera
política e a concomitante valorização do pensamento, recusa da humana
condição da publicidade em favor da contemplação filosófica; a
valorização - moderna - do eu, da intimidade e do privado , contra a
dimensão política e pública da existência humana; a dominação totalitária
enquanto forma de governo aniquiladora do mundo, que reduz à ficção da
ideologia.

São estes fenómenos que passarei a tematizar.


54

1. O Mal como necessidade


Mundo e pré-modernidade

" (...) Nada afasta alguém de maneira mais radical do


mundo do que a exclusiva concentração na vida do
corpo, concentração obrigada na escravidão ou na
dor insuportável. ( ... ) A única actividade que
corresponde estrictamente à experiência de não-
mundaneidade, ou melhor, à perda do mundo tal
como ocorre na dor, é o labor (... )"

Hannah Arendt, A Condição Humana

Que a necessidade é um mal, os Gregos sabiam -no: « A instituição


da escravatura na Antiguidade, ainda que não nos últimos tempos, não era
um recurso para obter trabalho barato ou um instrumento de exploração
em benefício dos donos, mas a tentativa de excluir o labor das condições
de vida do homem . O que os homens partilhavam com as outras formas de
vida animal não se considerava humano ( ... ). E a verdade é que está
plenamente justificado o uso da palavra 'animal' no conceito de animal
laborans , para diferencia-lo do muito discutível uso da mesma palavra na
expressão animal rationale. ,, 96

Com efeito, os processos biológicos do corpo fazem-nos partilhar


com os restantes organismos vivos do afã de produzir o vitalmente
necessário. E se o poder do laborar, em rigor, consiste em ser capaz de
produzir mais do que os bens necessários para a sua própria sobrevivência,
esta «produtividade», contudo, « não é mais do que outro modo do
'crescei e multiplicai-vos' no qual, por assim dizer, a própria voz da

96
CH, p. 100
55

97
natureza nos fala, , uma natureza que e indiferente à sorte da
individualidade.
De facto, Arendt não se cansa de salientar que, enquanto integrante
da Zoe, o homem não aparece senão enquanto membro da espécie, pelo
98
que não é ainda individuo • Como se de um estádio primitivo e intra-
humano do existir se tratasse, confrontamo -nos com o sem limite da
indiferenciação- o 'individuo' orgânico constituinte da Zoe, está
submetido àquilo a que Arendt chama uma 'circularidade natural' , ou seja,
o homem é verdadeiramente da natureza, pertence-lhe totalmente. 99
O labor é a mais natural e menos mundana das actividade do
homem- " de todas as actividades humanas, só o labor, não a acção nem o
trabalho, é interminável, e progride de maneira automática e em
consonância com a própria vida e à margem das decisões ou propósitos
100
humanamente intencionados ., E porque o processo da vida se localiza no
corpo, o labor é actividade ligada à vida por excelência. Ora, é à
necessidade que o homem deve ser capaz de opor o seu poder de começar,
isto é, a su a contingência, porquanto a vida humana - se se quer humana -
deve confrontar o natural, elevar-se acima dele e vencer 101 : « a ' natureza'

97
ARENDT, Hannah- Labor, Trabalho, Acção- Uma Conferência, in De la Historia de la Acción,p.95
98
TAMINIAUX, Jacques- La Filie de Thrace et le Penseur Professionnel, p. 42: «Porque ela não é,
no fi nal de contas, mais do que aquilo a que Marx chamava o ' metabolismo com a natureza', esta
actividade de trabalho no senti do de labor não pode senão parti lhar as características do ciclo vital no
qual se inscreve: repetitividade, mu lt iplicação, interdependência dos corpos, anonimato fundamental
do agente. Entendida à luz da vida, a questão 'Tu quem és, tu que penas?' ( ... ) não saberia pôr-se,
porque uma s ingularidade ins ubstituível não poderia surgi r num processo cíc lico regido pela
repetição do mes mo.»
99
MOLOMB 'EBEBE, Munsya- Le Paradoxe, p.30
°
10
101
CH, p. 117
ESLIN, Jean-Claude- L 'Obligée du Monde, p. 59 : «Em Arendt, o homem é, antes de mai s, poder
de s e arrancar à naturalidade, de deixar a trad ição. Partici par, tomar parte no mundo não é nunca
natural, não é enraizar-se, mas arrancar-se. Mas este arrancamento é também uma pertença, não é
uma subjectivização, não visa um isolamento, mas prossegue no seio de um mundo co mum.»
KOHN, Jerome- Evil and Plurality, in Hannah Arendt, Twenty Years Later, p. 147: «Hannah Arendt
estava interessada no que as pessoas fazem e nos modos como o que fazem afecta o mundo, para o
melhor e para o pior. O centro, aqui , não é a terra natural mas o mundo humano, um artificio
erguendo-se entre os homens e mulheres, continuamente afectado pelo que eles fazem para flo rescer e
perdurar, e também pelos modos como pensam em ordem a reconciliarem-se com a sua existência. Os
seres mortais não pediram nem chegam preparados para viver neste mundo. É, antes, como se
emergissem de lugar nenhum, aparecendo primeiro como estranhos, depois comunicando e
56

do homem nao e 'humana' senão na medida em que se abre ao homem a


possibilidade de se tornar qualquer coisa não-natural, a saber, um
homem., 102
Do mesmo modo que homo laborans e homo faber dispõem do corpo
de formas inteiramente distintas- aquele em subordinação à necessidade,
este em liberdade criativa- também a não-mundaneidade do laborante
nada tem a ver com a fuga voluntári a e activa à publicidade do mundo que
as «boas obras•• requerem: «O animal laborans não foge do mundo, é
expulso dele enquanto está encerrado no privado do seu próprio corpo,
encurralado no cumprimento de necessidades que ninguém pode partilhar
e que ninguém pode comunicar plenamente.,, 103
Opor à necessidade a contingência é, finalmente, confrontarmo-nos
com o problema da temporalidade: enquanto imerso nos processos
naturais, sejam eles cósmicos- da physis- ou da Zoe, o ser humano está
perante o sem fim , pelo que, afinal, a distinção entre processos cósmicos e
terrestres não assume grande significação. Em ambos os casos, portanto, a
ausência da noção de relação, que resulta da t otal pertença a um
104
continuum material e atemporal.
Ora, escreve Arendt em A Condição Humana: " A vida é um
processo que em todas as partes consome o durável, desgasta-o, fá- lo

interagindo, até, ma is ou menos gradualmente, desaparecerem. Estas noções de aparecer e


desaparecer são relativas não à Terra mas ao mundo comum, tal como não são exactamente o mesmo
que viver e morrer. As vidas humanas passam-se à face da Terra, mas relacionam-se, distinguem-se e
recordadas congruentes com as condi ções e lim itações de um mundo sofrido[enduring] .
D iferentemente da terra natural, o artificio humano não pode ser entendido como se fosse, em algum
sentido, necessário, ou o seu curso determi nado.»
102
OT III, p. 194
103 CH, p.l 28 (o s ublinhado é meu e remete, como se verá, para a noção arendt iana do pária, de que

tratare i ad iante. Interessa apenas sublinh ar, neste momento, que tanto o pária como o animallaborans
representam aqueles a quem o mund o é tirado e a quem só resta a natureza, como preocupação, num
caso, como consolação, no outro).
104 MOLOMB 'EBEBE, Munsya- Op. ci t., pp.29: «Sem começo nem fim, poder-se-ia dizer, por

analogia ao tempo hum ano, que este campo pré-individual corresponde à eternidade, devendo esta ser
compreendida não como um a transcendênc ia metafisica, mas como uma etern idade puramente
materi al que a fin itude das nossas categorias humanas de conhecimento não pode integrar. Do mesmo
modo que não se pode falar aqu i, propriamente, de espaço, mas de puro continuum material, também
não há tempo enquanto temporalidade, mas puro continuum 'atemporal' .»
57

desaparecer, até que finalmente a matéria morta, resultado de pequenos,


singulares e cíclicos processos da vida, retorna ao total e gigantesco círculo
da natureza, no qual não existe começo nem fim e onde todas as coisas
naturais giram em imutável e imortal repetição. A natureza e o cíclico
movimento em que esta obriga a entrar todas as coisas vivas, desconhecem
o nascimento e a morte t al como os entendemos. >>105 O tempo, pois,
aparece como uma categoria exclusivamente humana, resultado da
afirmação do homem enquanto indivíduo distinto do que o rodeia. Neste
sentido, a natureza está fora do tempo, imersa numa periodicidade cíclica
a que Arendt chama imortalidade natural , imortal eternidade do humano
e das outras espécies animais, «duração, vida sem morte nesta terra, neste
mundo, tal como se concedeu, segundo o pensamento grego, à natureza e
os deuses do Olimpo. ,, 106 Já em O Conceito de História, Arendt salientava
que ,, todas as criaturas vivas, o homem incluído, estão contidas neste ser-
para-sempre, e Aristóteles assegura explicitamente que o homem,
enquanto ser natural e pertencente à espécie humana, possui
imortalidade; através do recorrente ciclo da vida, a natureza assegura o
mesmo tipo de ser-para-sempre tanto a coisas que nascem e morrem como
a coisas que são e não mudam. 'Ser para cri aturas vivas é Vida' e ser-para-
107
sempre (aEt Evm) corresponde a a EtyEvEç , procriação. ,,
É neste sentido que apenas os homens são mortais, porquanto
apenas eles se constituem como algo mais que membros de uma espécie , a
saber, como indivíduos. Assim, pois, " a mortalidade do homem radica no
facto de que a vida individual, com uma hist ória reconhecível desde o
nascimento até à morte, surge da biológica. Esta vida individual distingue-
se de tod as as outras coisas pelo curso rectilíneo do seu movimento, que,
por assim dizer, corta o movimento circular da vida biológica . A

105
CH, p. J IO
106
Op. cit., p. 30
107
BPF, p. 42
58

mortalidade é, portan to, seguir uma linha rectilínea num universo onde
tudo o que se move o faz numa ordem cíclica. ,, 108
O trabalho dos nossos corpos, por outro lado, assume-se, em rigor,
como um «misturar-se com,, uma vez que o reverso do labor é o consumo .
Por esta razão, " quando Marx definiu o labor como 'o metabolismo do
homem com a natureza' ( .. . ) indicava com clareza que 'falava
fisiologicamente' e que labor e consumo não são mais do que duas etapas
do sempre repetido ciclo da vida biológica. , 109
Na medida em que participa do ciclo vital, o labor produz para
consumir, produz apenas vida e só incidentalmente objectos, pelo que não
deixa atrás de si nenhum produto durável- neste sentido, «as coisas menos
duradouras são as necessárias para o processo da vida. O seu consumo
apenas sobrevive ao acto da sua produção . ( ... ) Após curta permanência no
mundo, retornam ao processo natural que as produziu ( ... ) em consonância
com o sempre repetido ciclo da natureza. , 110
É, pois, o puro funcionalismo dos bens de consumo que remete para
o Eclesiastes : «Não há nada de novo sob o sol ( ... )Não ficaram lembranças
de outrora,, 111 • Este aspecto devorador e destrutivo do labor, contudo, só
se evidencia de um ponto de vista outro que não o do labor mesmo, a
saber, do ponto de vista do mundo, do ponto de vista da história .
Ora, << o mundo, o lar levantado pelo homem na Terra e feito com o
material que a natureza terrena entrega às mãos humanas, é formado não
por coisas que se consomem, mas por coisas que se usam . Se a natureza e
a Terra constituem no geral a condição da vida humana, então o mundo e
as coisas dele constituem a condição sob a qual esta vida especificamente
humana pode estar no lar sobre a Terra. ,, 112 Esta passagem remete-nos,

108
CH, p. 3 1
109
Op. cit, p. 11 2
110
Op. cit., pp. I 09-11 O
111
BIBLIA, Eclesiastes 1-9; 11 in Op. cit., p. 227
112
Op. cit., p. 141
59

afinal, para aquele que é, de acordo com Arendt, o verdadeiro summum


malum, a saber, a privação dos seres humanos do seu mundo.
Compreender, finalmente, a pré-moderna perda de mundo (bem
como a mesma perda na modernidade e contemporaneidade, como
veremos nos pontos a seguir) requer, portanto, que explicitemos as
relações entre natureza e história, tal como a Grécia de Homero as
entendia, primeiro, e com as alterações que a partir de Parménides se
anunciaram, depois; e requer, também, uma referência ao papel
desempenhado, neste contexto, por Roma e pelo Cristianismo.
A preocupação pela grandeza, tão evidente na poesia e
historiografia gregas, remete-nos para a relação existente entre os
conceitos de natureza e história, que de modo algum constituiu uma
oposição, porquanto o seu denominador comum se encontra na
preocupação pela imortalidade . Assim, pois, " a história recebe na sua
memória aqueles mortais que, através de feitos e palavras provaram-se
dignos da natureza, e a sua fama perpétua significa que eles, apesar da sua
mortalidade, podem permanecer na companhia das coisas que duram para
sempre.,, 113
Aqui, entretanto, o paradoxo - porventura o mais relevante da
cultura grega - solicita uma reflexão adicional: para os gregos, tudo era,
por um lado, visto e medido por contraponto com as coisas que duram para
sempre e, por outro, a grandeza humana residia, precisamente- para os
gregos pré-platónicos, salientemo-lo- nas actividades mais fúteis e
perecíveis, os feitos e as palavras, de que Ulisses constituiria, para
sempre, a mais bela e mais eloquente expressão.
Ora, a inicial solução para este problema foi poética, e consistiu «na
fama imortal que os poetas podiam conceder à palavra e ao feito para os
fazer sobreviver ao fútil momento de discurso e acção e até à vida mortal

113
BPF, p. 48
60

do seu agente.,, 114 Quer dizer, para a Grécia dos poetas, é do compromisso
com a concreta realidade da esfera dos assuntos humanos, e com a vida
política em particular, é da assunção da contingência, da insegurança
efémera, da demasiado humana fragilidade de tudo o que à vida dos
homens sobre a terra diz respeito, é, enfim, do canto da finitude - e não
do poder do pensamento que encontrou na alienação do mundo a sua
grandeza - que pode surgir ainda um destino imortal.
Com Platão, contudo, e numa viragem já preparada por Parménides
e Sócrates, o desejo de imortalidade individual é abandonado: equiparando
o desejo de fama imortal ao natural desejo de ter filhos, o desejo de
imortalidade individual é substituído, na filosofia política de Platão, pelo
da imortalidade da espécie. E é neste sentido, enfim, que o original
sentido da grandeza dos mortais, distinta da dos deuses e da natureza, se
perdeu: o movimento histórico, entendido como a interrupção violenta
com que as actividade humanas ferem aquilo que, na ausência de mortais,
seria eterno, entendido, por outras palavras, como figura do
extraordinário, passara a construir-se à imagem da vida biológica.
O velho paradoxo, enfim, «foi resolvido pelos filósofos negando ao
homem não a capacidade de se 'imortalizar', mas a capacidade de se
medir a si mesmo e aos seus feitos contra a grandeza perpétua do cosmos,
de conciliar a imortalidade da natureza e dos deuses com uma imortal
grandeza dele próprio. A solução aconteceu claramente a expensas do
'fazedor de grandes feitos e orador de grandes palavras.' ,, 115 E foi também
o 'fazedor de grandes feitos e orador de grandes palavras'- e até a
imortalidade mental experimentada pelo filósofo - que o Cristianismo
sacrificou 116 • Com efeito, ,,a 'boa nova' cristã sobre a imortalidade da vida

1 14
Op. cit., p. 46
115
BPF, p. 47
116
BO WEN-MOORE, Patricia- Op. cit., p.Jl2: « a mundaneidade outra [otherworldliness] do
primeiro Cris tianis mo é uma fo rma de não-mundaneidade [worldlessness] que inverteu a antiga
crença num a imortalidade terrena ganha s omente através da grandeza de fe itos e palavras ou ating ida
através de um t ipo de imortalidade mental experimentada pelo filósofo. A não-mundaneidade inerente
61

humana individual inverteu a mais antiga relação entre o homem e o


mundo, e elevou a coisa mais mortal, a vida humana, à posição da
imortalidade, até então ocupada pelo cosmos." 117 Ora, com a sacralização
da vida - e, mais precisamente, da vida individual, que ocupa agora o posto
que tivera, outrora, a vida do corpo político - adviriam consequências
desastrosas para a dignidade da vida política, no que concerne,
concretamente, ao desiderato de imortalidade mundana que a
caracterizou. E foi, enfim, a ênfase cristã na sac ralidade da vi da, que
«tendeu a nivelar as antigas distinções e articulações dentro da vita activa;
tendeu a considerar igualmente sujeitos à necessidade da vida presente o
labor, o trabalho e a acção. Ao mesmo tempo, ajudou a libertar a
actividade laboral, quer dizer, qualquer coisa que seja necessária para
manter o processo biológico, do desprezo que por ela sentia a
118
antiguidade.,
A tradição Romana, enfim, concretamente a fil osofia Estóica,
resultara t ambém numa alienação do mundo - que os romanos haviam
experimentado em ruína, pelo colapso de todas as estruturas mundanas-,
não pela grega transcendência do mundo das aparências, certamente, mas
pela radical retirada do mundo e da própria contemplação, em direcção ao
«interior, da consciência, onde as «impressões, dos obj ectos se formam,
alheias ao mundo exterior, razão pela qual o pensador emerge, afinal, mais
real que o próprio mundo. Assim, «O pensamento tornou-se techné,
domínio técnico de um género particular que podemos talvez julgar o mais
avançado - em todo o caso aquele cuja necessidade é mais urgente, uma
vez que é com o que se retira dele que se organiza a vida. Não se trata de

a esta mundaneidade outra dos primeiros cristãos é tematicamente estruturada, primeiro, pela
consciênci a histórica que via o mundo como temporal e, como todas as coisas temporais, perecendo
com o tempo, e em segundo lugar, pela atitude abraçando o carácter profundamente sagrado da vi da
que enfatizava a importância da imortalidade individual. Ambas as atitudes devem a sua centralidade
e duração ao modo como o credo entendeu o nascimento, a vida, a morte e a ressurreição de Cristo.»
117
CH, pp. 338-339
118
Op. cit., pp. 340-341
62

vida no sentido de bios theoretikos ou politikos, de vida consagrada a uma


actividade particular, mas daquilo a que Epicteto chama 'acção' - acção
que não se faz em uníssono com o que quer que seja, que não modifica
senão o eu, que se não torna manifesta senão através da apatheia ou
ataraxia do 'sábio', quer dizer, a recusa de reagir bem ou mal ao que quer
que possa acontecer-lhe.» 119 E, portanto, se algo existe, depende da
decisão de o reconhecer ou não como real, sendo que esta possibilidade de
«pôr- entre- parêntesis» a realidade se deve, não à vontade, mas à
natureza mesma do pensamento, da consciência, que permite às
actividades mentais concentrarem-se em si próprias.
Neste sentido, "o truque descoberto pela filosofia estóica é o de se
servir do espírito de tal modo que a realidade não atinge aquele a quem
ele pertence; mesmo quando este homem não se retira da realidade; em
vez de se pôr, através do pensamento, longe de tudo o que está presente e
próximo, ele atrai a si todos os fenómenos e a sua 'consciência' torna-se
um substituto completo do mundo exterior, apresentado sob a forma de
impressão ou imagem. »120

Em suma, pois, " a queda do Império Romano demonstrou


visivelmente que nenhuma obra saída de mãos mortais pode ser imortal, e
essa queda foi acompanhada pelo crescimento do Evangelho cristão, que
predicava uma vida individual imperecíve l e que passou a ocupar o lugar de
religião exclusiva da humanidade ocidental. Ambos tornaram fútil qualquer
luta por uma imortalidade terrena. E conseguiram tão eficazmente
converter a vita activa e o bios politikos em assistentes da contemplação,
que nem sequer o surgimento do secular, na Idade Moderna, e a
concomitante inversão da hierarquia tradicional entre acção e
contemplação chegou para salvar do esquecimento a luta pela

119
VE I, pp.l 77- l 78
120
Op. cit. , p. 179
63

imortalidade, que originalmente tinha sido fonte e centro da vita


activa.,, 121
Pode compreender-se, enfim, quão distantes nos encontramos,
hoje, da original compreensão grega da relação entre natureza e história;
remetendo para Rilke [ Berge ruhn, von Sternen überprach tigt; I aber auch
in ihnen flimmert Zeit. I Ach, in meinem wilden Herzen nachtigtl
122
obdachlos die Unverganglichkeit] , escreve Arendt: « Se olharm os estas
linhas com olhos gregos, é quase como se o poeta tivesse tentado
conscientemente inverter as relações gregas : tudo se tornou perecivel,
excepto talvez o coração humano; a imortalidade já não é o meio no qual
os mortais se movem, mas levou o seu refúgio sem lar para o coração
mesmo da mortalidade; coisas imortais, trabalhos e feitos, acontecimentos
e até palavras - apesar de os homens poderem ainda exteriorizar, reificar a
recordação dos seus corações - perderam o seu lar no mundo; uma vez que
o mundo, uma vez que a natureza é perecível e uma vez que as coisas
feitas pelo homem, uma vez vindo a ser, partilham o destino de todos os
123
seres - começam perecendo no momento em que vieram à existência.,,
Ao recuperar a tensão entre o durável e o efém ero, o pensamento
arendtiano assume um perfil trágico que nos permite situá-lo, sem
124
nostalgia, na melhor tradição poética e historiográfica gregas •

121
CH, p.33
122
[ Aqui até as montanhas parecem apenas repousar sob a luz das estrelas; são lenta e secretamente
devoradas pelo tempo; nada é para sempre, a imortal idade deixou o mundo para encontrar um lar
incerto na escuridãodo coração humano que tem ainda a capacidade de recordar e dizer: para sempre]
- segui ndo a tradução da própria autora em BPF, p. 44
123
Op. cit., p. 44
124
Cf. Ricoeur, Paul- Lectures I, pp.43 -65
64

2. O Mal como irrealidade


Mundo e época Moderna

"Sem tirar as coisas das mãos da natureza, e sem se


defender dos naturais processos de crescimento e
decadência, o animal /aborans não poderia
sobreviver. Mas sem se sentir a gosto no meio das
coisas cujo carácter duradouro as torna adequadas
para o uso e para erigir um mundo cuja própria
permanência está em directo contraste com a vida ,
esta vida não seria humana. "

Hannah Arendt, A Condição Humana

O mundo é, antes de mais, o espaço que as mãos humanas resgatam


125
aos processos automáticos e, nesse sentido, ele é, primordialmente, uma
126
transcendência • Com efeito, " sem um mundo em que os homens nasçam
e morram, só existiria a im utável e eterna repetição , a imortal eternidade
do humano e das outras espécies animais. ( ... ) Só dentro do mundo
humano o cíclico movimento da natureza se manifesta com o crescimento e
decadência .,, 127
As coisas do mundo estão, também elas, condenadas a decair , mas o
seu fim não é a destruição inerente às coisas de consumo, até porque
podem substitui-se com a passagem das gerações, e assim, possuem uma
<< relativa independência por relação aos homens que as produzem e usam,
[uma] 'objectividade' que as faz suportar, 'resistir' e perdurar, pelo menos
por um tempo , às vorazes necessidades e exigências dos seus fabricantes e

125
MOLOMB'EBEBE, Munsya- Op. cit., p. 46: « O mundo objectivo não se li mi ta, para Arendt, ao
artificio humano material. Ele compreende igualmente o artificio humano imaterial: as leis, os
costumes, os tabus, ... em suma, todas as disposições inventadas pelo homem para estabi lizar e regular
as relações entre os indivíduos.»
126
ESLIN, Jean-Claude- Op. cit., p. 18 : «0 mundo é, evidentemente, uma noção anti -idealista, um
'anti-objecto' , uma noção que evita a 'objectividade'. A palavra diz da resistência de um espaço que é
mais que um a sociedade ou que um universo.»
127
CH,p.ll0
65

usuários. Deste ponto de vista, as coisas t êm a função de estabilizar a vida


humana. »128
Ora, o mundo, na sua permanência e durabilidade, é a condição da
existência humana enquanto, precisamente, humana. «Nós somos do
mundo- escreve Arendt- e não apenas no mundo. , _ o que implica, em igual
medida, que, tal como a existência humana não é possível sem coisas,
também as coisas se constituem como condição dessa existência, sob pena
de se reduzirem a um não-mundo de artigos não relacionados.
Assim , pois, " se o animal laborans precisa da ajuda do homo faber
para facilitar o seu labor e alivi ar o seu esforço, e se os mortais necessitam
da sua ajuda para erigir um lar sobre a Terra, os homens que actuam e
falam precisam da ajuda do homo faber na sua mais elevada capacidade,
isto é, da ajuda do artista, de poetas e historiadores, de construtores de
monumentos ou de escritores, já que sem eles o único produto da sua
actividade, a história que estabelecem e contam, não sobreviveria. Com o
fim de que o mundo seja o que sempre se considerou que era, um lar para
os homens durante a sua vi da na Terra, o artifício humano há-de ser o
lugar apropriado para a acção e o discurso. ( ... ) Não é necessário escolher
entre Platão e Protágoras, ou dizer se há-de ser o homem ou um deus a
medida de todas as coisas; o certo é que a medida não pode ser nem a
acossante necessidade da vida, nem o instrumentalismo utilitário da
129
fabricação e do uso.,
Este mundo , portanto, não é idêntico à Te rra ou à Natureza 130 : ,,

antes está relacionado com os objectos fabricados pelas mãos do homem,

128
Op. ci t., p. 158
129
Op. cit., p. 191
130
T AMINIA UX, Jacques- Op. cit., p.44 : « O mundo não é de nenhum modo a natureza como meio
de vida, e ainda menos o universo. Um mundo s ustem-se num conjunto de artefactos conquistados à
natureza, mas resistindo à torrente do seu ciclo. É neste ponto que se marca o desacordo mais nítido
entre Arendt e Marx. ( ... ) Com Marx, Arendt sustenta que os humanos se tornam tais inventando os
artefactos. Contra ele, ela sustenta que esta invenção não tinha como finalidade assisti r o ciclo da
vida. Tem por fim muito mais o resistir a este ciclo para opor ao seu eterno retorno a consistência, a
estabil idade, a permanência de um habitat no seio do qual o 'quem' pudesse aparecer.( ... ) É preciso
um mundo para que uma vida possa aparecer como vida de alguém.»
66

assim como com os assuntos dos que habitam juntos no mundo feito pelo
homem. ( ... ) O mundo, com tudo o que está no meio, une e separa os
homens ao mesmo tempo. A esfera pública, tal como o mundo comum,
junta-nos e, não obstante, impede que caiamos uns sobre os outros, por
assim dizer.,, 131
Ser privado de mundo equivale, consequentemente, a ser privado do
espaço da aparência, onde cada um é visto e ouvido por t odos, equivale,
nas palavras de Heráclito, a ser algo que «passa como um sonho, que não
tem qualquer real idade.,, 132

2.1 Da descoberta da América a Galileu

Ora, três eventos essenciais, considera Arendt no último capítulo de


A Condição Humana, estão no limiar da idade moderna e da perda de
mundo que lhe esboça o perfil: a descoberta da América, o movimento da
Reforma, a invenção do telescópio.
Mais do que pela abertura do Novo Mundo, da secularização ou da
confirmação da teoria copernicana, que estes acontecimentos,
respectivamente, determinaram, é o seu protagonismo na moderna
alienação do mundo que a Arendt interessa esclarecer.
Neste sentido, o que de mais significativo se pode recolher da
descoberta da América, consiste na possibilidade que ofereceu ao ser
humano de conceber a Terra como objecto, que circunscreveu, cuja
lonjura reduziu às dimensões da palma de uma mão, e da qual, portanto,
pôde alienar-se, em ordem à sua descrição que indicia, afinal, a sua

131
CH, p.62
132
KATEB, George- Op. cit., p. 173: «Ser alienado do mundo pode não querer dizer opressão, ou
violência física ou mental. Os párias podem estar confortáveis, embora normalmente o não estejam. O
que importa finalmente, contudo, é ter um mundo: o lugar das mais altas oportunidades existenciais
bem como dos maiores perigos. Dá aos indivíduos identidade e hipótese de reconciliação, mas pode
também pedir que se abdique de confortos e da própria vida.»
67

conquista. Com efeito, ,,nada poderia ter sido mais estranho ao propósito
dos exploradores e circumnavegantes da primeira Época Moderna do que
este processo final ; eles iam ampliar a Terra, não reduzi- la, e quando se
submeteram ao apelo do distante, não tinham a intenção de abolir a
distância. Só a sabedoria da percepção tardia vê o óbvio, que nada pode
permanecer imenso se se pode medi-lo, que toda a panorâmica junta
partes distantes,e portanto estabelece a contiguidade onde dantes
imperava a distância., 133 E assim, os mapas e as cartas de navegação
antecipavam as invenções posteriores, que reduziriam a Terra a um
pequeno espaço ao alcance da mão.
A Reforma, por seu turno, porquanto marcou o início do processo de
expropriação de propriedades, é também figura da alienação: privando
milhões de indivíduos do seu << lugar no mundo", preparou o terreno às
expropriações futuras e à acumul ação de riqueza típicas da economia
capitalista. Com efeito, é na Reforma que radica a depois irremediável
indiferenciação entre as esferas privada e política, que se deveu ao
aparecimento do social - é na sequência das expropriações, e da
concom i tante substituição da famflia e da propriedade pela solidariedade
social, que o modelo orgânico se instala, esboçando condições segundo as
quais a liberdade política não pode exi stir - <<a nova classe laboral ( . . . ) não
só permaneceu sob a urgência da necessidade, como ao mesmo tempo
ficou alheada de todos os cuidados e preocupações que não eram resultado
134
imediato do próprio processo da vida.,
Com a expropriação, em suma, as urgências inerentes ao processo
vital, e a essencial homogeneização que decorre da redução da actividade
humana à luta pela sobrevivência, esboçam as condições necessárias à
emergência da sociedade de massas. << A ascensão do social - escreve
Arendt em A Condição Humana - determinou o declínio simultâneo das

133
CH, p.279
13 4
Op. cit., p.283
68

esferas pública e privada. Mas o eclipse de um mundo comum público, tão


determinante na formação do solitári o homem de massa e tão perigoso
para a formação da mentali dade a-mundana [worldless] dos modernos
movimentos ideológicos de massa, começou com a muito mais tangível
perda de um lugar privadamente possuído no mundo.,, 135 Com a ascensão
do social, portanto, a tónica deslizou do mundo para a natureza, e é este
deslize, afinal, que está na base das críticas de Hannah Arendt à filosofia
de Marx. 136
Surpreendente, entretanto, é «a semelhança na mais distante
divergência. Porque esta alienação do interior mundano nada tem que ver,
em intenção e conteúdo, com a alienação da Terra inerente à descoberta e
posse da Terra. Mais ainda, a alienação do interior mundano ( ... ) não está
só presente na nova moralidade que surgiu das tentativas de Lutero e de
Calvino de restaurar a inflexível ultramundaneidade da fé cristã; também
está presente, se bem que a um nível completamente diferente, na
expropriação do campesinato que foi a imprevista consequência da
expropriação da propriedade da Igreja e, como tal, o maior factor do
137
derrube do sistema feudal. ''

A invenção do telescópio, finalmente , para além de demonstrar


quão fundamentado podia estar, afinal, o receio relativamente aos dados
dos sentidos, abria caminho a ponto de vista universal da ciência moderna,
definia a necessidade de se encontrar um ponto de vista fora do universo,
um ponto de vista que reduz a Terra, também ele, a apenas um objecto

135
Op. cit, pp. 285-286
136 Op. cit., p.284: «Este processo, que é o 'processo de vida da sociedade', como lhe chamava Marx,
e cuja capacidade de produzir riqueza só se pode comparar com a fertilidade dos processos naturais
nos quais a criação de um homem e de uma mulher bastará para produzir por multiplicação qualquer
numero dado de seres humanos, continua sujeito ao princípio da alienação do mundo, princípio do
qual surgiu; ( ... ) Por outras palavras, o processo de acumulação de riqueza, tal como o conhecemos,
estimulado pelo processo da vida e estimul ando, por sua vez, a vida humana, só é possível se se
sacrificam o mundo e a própria mundaneidade do homem.»
Cf. Cap. I, 3
137
Op. cit., pp. 280-28 I
69

mais . E a filosofia cartesiana, afinal, constituiria a resposta filosófica ao


padrão absoluto introduzido pela ciência, e completaria a retirada
arquimediana com o recolhimento ao eu, substituto possível da certeza -
perdida - de um mundo à medida dos nossos sentidos . Por outras palavras,
o cepticismo metódico do omnibus dubitandum est cartesiano, partilha
com as ciências universais a desconfiança relativamente à fiabilidade dos
sentidos e, portanto, a assunção de que o que é verdadeiro e
inquestionável deve a sua descoberta ao pensamento 138 • Em suma, «O
moderno ponto de vista do mundo astrofísico, que começou com Galileu, e
o seu desafio à suficiência dos sentidos para revelar a realidade, deixou-
nos um universo de cujas qualidades só conhecemos a maneira como
afectam os nossos instrumentos de medida. (... ) No lugar de qualidades
objectivas noutros mundos encontramos instrumentos, e em vez da
natureza ou do universo - copiamos as palavras de Heisenberg - o homem
só se encontra consigo mesmo.,, 139
Ora, e este é um ponto crucial no nosso percurso, uma vez que Ja
não é o mundo, nem sequer a relação do sujeito ao mundo ou dos sujeitos
entre si, que está em causa, a filosofia cartesiana introduz um ponto de
vista que proclama a vida e a sua fertilidade como o bem mais precioso.
Reflectindo o espírito da dúvida, a filosofia moderna manif esta --se como
perda de confiança na crença cristã da imortalidade individual e como
reconhecimento que a verificação da realidade e da verdade depende dos
processos cognitivos eles mesmos. É neste sentido que «a questão da
certeza seria decisiva no desenvolvimento da moralidade moderna. O que
se perdeu na Época Moderna não foi a apetência pela verdade, a realidade,
a fé, nem a concomitante e inevit ável aceitação do testemunho dos

138
BOWEN-MOORE, Patricia- Op. c it., p.ll8: «A introspecção cartesiana mantém o mais alto idea l
da ciência, a ponto de ambos exaltarem o modelo do raciocínio matemático: conhecimento produzido
pela mente independentemente da estimulação externa e também independente de um mundo definido
pelas suas aparências apreendidas primei ramente pelos sentidos. O senso comum era agora visto
como uma faculdade interna sem qualquer relação ao mundo e o raciocínio de senso comum foi
sujeito à estrutura do conheci mento matemático.»
139
CH, p.2 89
70

sentidos e da razão, mas a certeza que anteriormente vinha com elas. Na


religião não foi a crença na salvação ou no mais além o que imediatamente
se perdeu, mas a certitudo satutis, e isto ocorreu em todos os países
protestantes em que a queda da Igreja católica tinha eliminado a última
insti tuição que, onde a sua autoridade não foi desafiada, se manteve entre
o choque da modernidade e as massas de crentes.,, 140

2.2 Aparência e Mundo

Em A Vida do Espírito, escreve Arendt: " o mundo onde nascem os


homens engloba um grande número de coisas, naturais e artificiais, vivas e
mortas, provisórias e eternas que têm todas em comum aparecer e, por aí
mesmo, serem feitas para se ver, ouvir, tocar, serem senti das e saboreadas
por criaturas sensíveis dotadas de sentidos apropriados.,, 141 Estar vivo,
portanto, signifi ca ocupar um mundo em que aparecemos uns aos outros, é
ser movido pela necessidade de nos mostrarmos . Com efeito, '' na vida de
todos os dias, como para o estudo científico, o objecto é determinado pelo
seu breve intervalo de plena aparência, a sua epifania. A escolha [do que é
uma coisa viva], fundada no critério único de cumprimento e de perfeição
da aparência, seria completamente arbitrária se a realidade não fosse,
142
antes de mais, de natureza fenomenal.,,
É neste sentido, de resto, que o mundo das aparências é anterior a
qualquer região que o filósofo possa eleger como lugar onde se sente em
casa, uma vez que ,, quando o filósofo se despede do mundo oferecido aos
nossos sentidos e faz meia-volta (periagoge, em Platão) em direcção à vida
do espírito, é ainda a este que ele pede um fio condutor que lhe revelará a
verdade subjacente. Esta verdade- a letheia, o que é desvelado

140
Op. cit., pp. 304-305
141
VE l, p . 33
142
Op. cit., p. 37
71

(Heidegger)- nao se concebe senão como uma aparência mais, um outro


fenómeno escondido na origem mas sentido como de ordem superior, e
atesta por isso a predominância persistente da aparência., 143
É bem diferente, contudo, a perspectiva que a tradição nos oferece.
Com efeito, à mais antiga das questões colocada tanto peta filosofia como
peta ciência, a saber, «O que é que faz com que qualquer coisa ou qualquer
pessoa, eu incluído, apareça, e o que é que o faz aparecer com esta forma
144
e este comportamento e não outro?,, , a tradição filosófica respondeu
com a noção de uma causa, de grau ontologicamente mais alto do que
aquele que reconhecia à aparência.
Além disso, e mais recentemente, a ideia de um progresso sem fim e
o concomitante e vantajoso funcionalismo que favorece, não contraria a
dicotomia entre Ser verdadeiro e simples aparências, convertendo estas na
condição necessári a aos processos essenciai s que se desenvolvem no
organismo vivo.
Se há erro, entretanto, não é puramente arbitrário: uma vez que as
aparências não só não revelam de si mesmas o que está por trás, como,
além disso, dissimulam, não é linear considerar ilegítima a suposição dessa
função de protecção como a mais importante . Ainda assim, Arendt
considera haver, realmente, um erro: «O erro elementar de todas as
teorias que se apoiam na dicotomia Ser I Aparência é evidente e foi muito
cedo descoberto pelo sofista Górgias, que o resumiu num fragmento do seu
tratado agora perdido Sobre a natureza e o não-ser - refutação, ao que
parece, da filosofia eleática: 'Ser não tem nada de manifesto uma vez que
isso não aparece (aos homens: dokein); parecer (aos homens) é frágil,
porque não consegue chegar a ser.' ( ... ) Dir-se-ia que o Ser, uma vez
tornado manifesto, prevalece sobre as aparências- mas ninguém, até
agora, conseguiu viver num mundo que não se revela de si mesmo., 145

143
Op. ci t., p. 38
144
Op. cit., p. 40
145
Op. cit., pp. 40-41
72

Nesta medida, •• será possível que as aparências existam, não para


as necessidades da vida , mas, ao contrário, que a vida esteja aí para o
melhor bem das aparências? Uma vez que vivemos num mundo que
agarramos enquanto aparece, não seria mais plausível que o que ele tem
em si de significativo e de pertinente se situe, precisamente, à
superfície?>> 146
Os trabalhos de Adolf Portmann oferecem , a este respeito, uma
nova perspectiva; em poucas palavras, aventam a hipótese de que o não-
aparente tenha o papel de sustentar, engendrar e manter as aparências,
donde a inversão das prioridades levada a cabo pela sua ••morfologia'', e
que o próprio formula nestes termos: « Não é o que é uma coisa , mas a
maneira como aparece, que deve orientar a investigação.'' 147
Com efeito, a sua investigação reclama, pela tónica que põe na
superfluidade da ostentação daquilo a que chama as «aparências
autênticas'' , que se interprete a variedade animal e vegetal em termos que
vão para além do funcional. Estamos perante estruturas visuais (a
penugem de um pássaro, por exemplo), que têm como finalidade única
«produzir um certo efeito no olho do amigo ou inimigo . . . O olho e o
objecto examinado formam um todo disposto segundo regras tão rigorosas
quanto a nutrição ou os órgãos digestivos,, 148 , por oposição às quais
Portmann nos fala de ••aparências inautênticas,,, aquelas que só se
manifestam quando se manipulam as primeiras (é o caso das raízes das
plantas ou dos órgãos internos de um animal).
Ora, se ·as ··aparências autênticas,, se apresentam numa variedade
quase infinita, as •• aparências inautênticas,, chamam a atenção pela sua
flagrante semelhança. De algum modo, Arendt entende, na linha de
Portmann, que o exterior tem por função dissimular o equipamento
funcional do processo da vida, pelo qual todos nos assemelharíamos, e,

146
Op. c it. , p. 42
147
PORTMANN, Adolf- Das Tier als soziales Wesen, p. 127, in Op. cit., p.43
14 8
Loc. cit.
73

assim, " estas descobertas sugerem que o lugar dominante da aparência


exterior deixa supor uma actividade espontânea, ajustando-se ao carácter
puramente receptivo dos nossos sentidos; tudo o que vê, quer ser visto,
tudo o que ouve, grita para se fazer ouvir, tudo o que pode tocar avança
para ser tocado. É, na verdade, como se toda a coisa viva- além do facto
de que a sua superfície é feita para aparecer, digna de ser vista e
destinada a aparecer aos outros- fosse movida por uma necessidade de
aparecer, de se integrar no mundo das aparências apresentando, não o seu
'eu interior', mas o indivíduo que ela constitui. ,, 149
A condição humana da mundaneidade, portanto, o facto de sermos
tão feitos de mundo, consagra-nos sujeito que vê, ouve e toca, tanto
quanto objecto para o Outro, que é garante da sua realidade «Objectiva''·
Por esta razão, " aquilo a que chamamos habitualmente 'consciência' ( ... )
não bastaria nunca para garantir a minha realidade . ,, 150 Em Rahel
Varnhagen , das suas obras- porventura injustamente- a menos valorizada,
escreve: «Desejos que não são de antemão marcados pelo destino, que são
apenas expressões, convertidas em fantasias, de pretensões semi -infantis à
felicidade; sonhos de juventude, não importa a que ponto complementos
característicos da frustração e descontentamento, ou protestos legítimos
contra obstáculos ao desenvolvimento ou falta de alegrias, dissolvem-se,
vaporizam -se ao primeiro impacto da vida, o impacto que vem com a
experiência real, com a paixão ligada a algo específico. Por outro lado,
qualquer resposta ao apelo apaixonado que vem directo a nós do grande,
vasto mundo, que é dirigido a nós em particular, confirma-nos - esta
resposta absorve e concentra toda a fantasmagoria de desejos num dos
três desejos do conto de fadas , que tem de ser realizado se não quisermos
pensar-nos para sempre infelizes.,, 151

149
Op. cit., p. 44
150
Op. c it. , p. 34
15 1
RV , p. 122
74

Neste sentido, consequentemente, ,, a nossa sensação de reali dade


depende por inteiro da aparência e, portanto, da existência de uma esfera
pública. ( ... ) O termo ' público' significa o próprio mundo, enquanto é
comum a todos nós e diferenciado do nosso lugar possuído privadamente
nele., 152
Neste mundo em que entramos quando nascemos e que, com a
morte, deixamos para trás, «Ser e Aparecer coincidem» 153 , e é
significativamente adequada, pois, a frase de W.H . Auden com que Arendt
abre a secção ''Aparência", em A Vida do Espírito: '' Julga-nos Deus pelas
aparências? Tenho bem a impressão que sim .,, 154

Ora, ,, a vita activa, vida humana até onde se encont ra activamente


comprometida em fazer algo, está sempre enraizada num mundo de
homens e coisas realizadas por eles, que nunca deixa nem transcende por
completo. Coisas e homens fornecem o meio ambiente de cada actividade
humana que seriam inútei s sem essa situação. (... ) Nenhum tipo de vida
humana é possível sem um mundo que, directa ou indirectamente
155
testemunha a presença de outros seres humanos.,, O mundo,
consequentem ente, não se me apresenta nunca enquanto tal, dependente
que está da comunicação dos diferentes e particulares pontos de vista que
se formam a seu respeito, e é neste sentido, afinal, que o mundo só é
vi sível enquanto mundo comum. Por esta razão, enfim, se há uma
identidade da humanidade, ela manifesta-se enquanto dive rsidade de
indivíduos e povos 156 - ,,não é o homem mas os homens que habitam esta
terra>>- e é esta pluralidade de raiz que o proj ecto de uniformização do
humano põe em perigo.

152
CH, pp.61-62
153
VE I, p. 34
154
Op. cit., p. 33
155
CH, p. 37
156 ROVIELLO, Anne-Marie - Senso Comum e Modernidade em Hannah Arendt, p. 26: «A
s ingularização, e a di vers idade que ela implica, constituem a mediação necessária para que a ideia de
uma identidade do humano passe do invisível para o visível, ou seja, para a realidade do mundo.»
75

Indivíduo e mundo, portanto, enriquecem-se e complementam-se


mutuamente: daquele, depende a humanidade do segundo e, deste, a
mundaneidade do primeiro: «A experiência tinha tomado o lugar do seu
não-ser; agora sabia: A vida é assim.,, 157
Qualquer estratégia de retirada ou fuga do mundo deve ser, pois,
cuidadosamente equacionada, sob pena de estarmos renunciando à nossa
158
humanitas • Com efeito, «O mundo e os homens que o habitam são duas
coisas. O mundo estende-se entre os homens e este 'entre'- bem mais que
os homens ou o homem - é hoje o objecto da maior preocupação.,, 159 É
esta, precisamente, a questão que se coloca de cada vez que o indivíduo se
retira para a invisibilidade do pensar e do sentir, de cada vez que,
pervertido o mundo em não-mundo do totalitarismo, o indivíduo se refugia
numa ''emigração interior,,, porquanto «nenhum ser humano pode isolar-se
completamente; será sempre devolvido ao mundo se tem qualquer
esperança nas coisas que só o mundo pode dar: 'coisas vulgares, mas coisas
que temos que ter. ' No final, o mundo tem sempre a última palavra, porque
podemos apenas fazer introspecção em direcção ao interior do nosso eu ,
mas não para fora dele outra vez.,, 160

157
R V, p. 123
158
VILLA, Dana- Op. cit., pp. 200-20 1 :«É tentador rejei tar a tónica que Arendt põe na esfera pública
como um espaço de criação de sentido (e a sua crítica da era moderna como responsável pela 'perda'
ou ' destruição' deste espaço) como romântica sem emenda. Antes de o faze rmos, contudo, devemos
lembrar-nos da experiência sobre a qual Arendt construiu o seu pensamento político. Esta experiência
não era a de pares ' actuando juntos, concertadamente', como na polis grega; era, antes, a experiência
do terror sob o totalitarismo. A tónica, virtualmente de uma vida inteira, na esfera pública e na vi da
da acção cresceu do seu encontro com esta negação radical da realidade públ ica e da li berdade
humana. O seu interesse na liberdade ' positiva' da acção política (enquanto oposta à liberdade
'negativa' dos direitos civ is) nasceu de um co ntexto no qual as forças po líticas total itárias ti veram
pouca dificuldade em ultrapassar as fronteiras protectoras da lei positiva e em alistar massas 'sem
raízes' e 'sem lar' na sua causa.»
159
HTS, p. 19
160
RV, p. 93; e na página 90, escreve a inda: «se o pensamento se fecha em si mesmo e encontra o seu
obj ecto sol itário na alma- isto é, se se converte em introspecção- produz claramente (enquanto
permanece rac io na l) uma sem elhança de poder ilimitado pelo s imples acto de iso lamento do mundo;
deixando de estar interessado no mundo, monta um bastião frente ao único objecto ' interessante' : o
eu interior. No isolamento atingido pela introspecção, o pensamento torna-se sem limi tes, uma vez
76

2.3 Mundo e realidade


- a questão do Sionismo e dos Direitos do Homem

A questão está, pois, em saber ,, qual é a quantidade de realidade


que é preciso manter num mundo tornado inumano para que a humanidade
não fique reduzida a uma palavra vã ou a um fantasma ( ... ), até que ponto
continuamos obrigados para com o mundo, mesmo quando fomos
perseguidos ou nos retiramos dele.,, 161
Ora, uma vez que a retirada do mundo equivale a uma recusa em
responder por ele e pelo mal que, nele, tem lugar; uma vez que, pela
perda de mundo que cada retirada pessoal implica, somos cc-responsáveis
pela sua perversão, afigura-se paradigmática a questão do pária e as
concomitantes formas de relação ao mundo que, nesta condição, podem
ainda estabelecer-se.
Arendt, ela própria judia, ainda que despertada para essa realidade
sobretudo a partir de 1933 e, irremediavelmente, em 1943, quando pela
primeira vez ouve falar de Auschwitz e já marcada, nessa altura, pela
experiência dos sem pátria, é com o Holocausto que a revelação da sua
judaidade a assalta irreversível. Poderia, então, tomar para si as palavras
de Lazare: «Não me sentia judeu. Hoje, sinto que devo sê-lo (que é preciso
que o seja), que devo regressar ao lugar donde saí e que devo recriar a
minha pessoa intelectual e moral. Pertenço a um grupo, vou voltar a entrar
nele, servi-lo, servindo a humanidade.,, 162

É o sentido que lhe atribuiu Bernard Lazare que Arendt retoma no


seu conceito de pária; como tal, estamos perante uma categoria não
somente sociológica mas, sobretudo, política, designando três tipos, três

que já não é mo lestado por nada exteri or. ( ... ) A autonomia do homem torna-se hegemonia sobre
todas as poss ibilidades; a realidade só choca e ressalta.»
161
HTS, p. 32
162
LAZARE, Bernard- Le Fumier de Job , p. 8, in ROVIELLO, Anne-Marie- Op. cit., p. 50
77

distintas possibilidades de relação ao mundo: em primeiro lugar, designa o


indivíduo que permanece à margem da sociedade- o arrivista; depois,
aquele que se adapta à sociedade ao preço de uma situação degradante- o
assimilado; finalmente, o indivíduo que, assumindo-se como pária,
desenvolve um combate sem tréguas pela justiça- o pária consciente.
Dois traços caracterizam a situação de pária para um povo: o
isolamento/ reagrupamento forçado e a ausência de direitos do indivíduo.
Uma vez que Arendt faz remontar ambos os fenómenos à emancipação dos
judeus, no século XIX, impõe-se que descrevamos brevemente essa nova
situação, em ordem ao melhor esclarecimento deste aparente para_doxo.
Em Rahel Varnhagen, escreve: «Os judeus não tinham senão o mais
pobre entendimento da nova era e da nova geração na qual Herder tinha
tido uma influência crucial. Esta incompreensão era manifesta não só nos
poucos ,,Pais Judeus,, mas em quase todo o judeu individual, com poucas
excepções . Só compreendiam uma coisa se colava inexoravelmente a eles,
enquanto grupo; que só o podiam sacudir enquanto indivíduos. Os truques
usados pelos indivíduos tornaram -se mais subtis, os cami nhos individuais
muito mais numerosos, à medida que o problema pessoal se intensificou;
os judeus tornaram-se psicologicamente mais sofisticados e socialmente
mais engenhosos . A história dos judeus alemães evaporou-se por um breve
período - até ao primeiro Decreto de Emancipação de 1812- na história de
indivíduos que conseguiram escapar. ,, 163
O que sobressai da análise do segundo volume de As Origens do
Totalitarismo, consagrado ao anti-semitismo, é a afirmação arendtiana de
que a emancipação teria conduzido a novas condições de exclusão: ,,Qs
judeus sentiam simultaneamente o arrependimento do pária de não se ter
tornado arrivista e a má consciência do arrivista que traiu o seu povo e
trocou a igualdade de direitos por privilégios pessoais. Uma coisa é certa:
se se queria evitar todas as ambiguidades da vida em sociedade, era

163
RV, p.I06
78

preciso resignar-se ao facto de que ser judeu consistia em pertencer ou a


uma classe superior privilegiada, ou a uma massa desfavorecida." 164
Assim, pois, tendo uma boa parte dos judeus abandonado o
particularismo ritual, nem por isso conseguiu integrar-se em nenhuma das
novas estratificações sociais do século XIX; a assimilação, por outro lado,
convida a uma situação impossível em que o indivíduo se esforça por, ao
mesmo tempo, ser e não ser judeu . A título individual, entretanto, o judeu
permanece fora da sociedade, mas esta situação reflecte , por si mesma, o
estatuto político do próprio povo. Cada vez mais, a questão da judaidade é
reduzida a um problema individual que «assombra a vida privada,, 165 dos
indivíduos: «O adágio 'um homem fora do lar, um judeu em casa' tornou-se
uma amarga realidade. ( ... )Como não parecer um 'judeu em geral',
permanecendo judeu? Como esforçar-se por não ser como os judeus e
mostrar, entretanto, com clareza suficiente que se é um deles? O judeu
médio, nem arrivista nem 'pária consciente'(Bernard Lazare), podia
quando muito acentuar uma alteridade sem significação. ( . .. ) Os judeus
assimilados, meio orgulhosos, meio envergonhados de serem judeus,
pertenciam visivelmente a esta categoria [de homens que a sociedade
simultaneamente admirava e punha de lado.], 166
A assimilação é, assim, um fenómeno social liminarmente rejeitado
por Arendt 167 : " Enquanto o D. Quixote continua cavalgando para con jurar
um mundo possível, imaginário, a partir do mundo real, é apenas um tolo,
e talvez um tolo feliz, talvez até um tolo nobre, quando se compromete a
conjurar do mundo real um ideal definido. Mas sem um ideal definido, sem
almejar uma imaginária revisão do mundo, ele tenta apenas transformar-se

164
OT II, p.!Sl
165
Loc. cit.
166
Op. c it., p.l5 2
167 BERNSTEIN, Richard J. - Op. cit., p. !03: «Ü que levou, então, Arendt ao Sionismo? Foi a sua

firme convicção de que o projecto de assimilação social dos judeus europeus era um completo
desastre. A aspiração à emancipação j uda ica t inha sido confundida com a tentativa desesperada de
assimilar, baseada na hi pocrisia e na auto-ilusão. A judiaria europeia estava a descobrir que a
ass imilação não era protecção contra o anti-semitismo - ou o extermínio.»
79

a si próprio numa espécie de possibilidade vazia do que poderia ser, torna-


se apenas um 'sonhador tolo' e, ainda por cima, oportunista, que tenta
destruir a sua existência em troca de algumas vantagens ., 168
169
Ainda na linha de Lazare , crê que a assimilação não só não dá uma
resposta consistente às injustiças sofridas pelos judeus, como tolda as
realidades políticas. A linguagem a recuperar é, assim, a que um retorno à
época dos Macabeus nos ensinaria : «não é a linguagem dos mártires que
não conhecem senão a glória de Deus, nem a dos desesperados que não
possuem senão a triste coragem do suicídio. É antes a linguagem do que é
hoje a vanguarda de um povo, a que pensa tomar amanhã a frente das
170
reivindicações políticas.,

Creio, finalmente, estarem agora reunidas as condições que


possibilitam a cabal compreensão de duas asserções distintas de Arendt:
primeiramente, a convicção de que, se atacado enquanto judeu, é
enquanto judeu que um indivíduo deve defender-se; a seguir, a crítica que
dirige aos Direitos do Homem.
Partindo da primeira, esclarece-se a ligação de Arendt ao sionismo,
pela mão de Kurt Blum enf eld, bem como os motivos que a levaram a
171
demarcar-se daquele movimento •

168
RV, pp. 92-93
169 COURT INE-DÉNAMY, Sylvie - Hannah Arendt, p.55: «De Lazare, Arendt guardará os conceitos
de arrivista e de pária e o desdobramento deste ultimo em pária consciente e pári a inconsciente.
Como ele, pensa que a emancipação transformou os judeus em párias. Como ele, denuncia os judeus
de excepção e o 'acosmismo' do pária, privilegiando a 'tradição oculta' ilustrada por Heine, Rahel,
Aleichem, Lazare, Kafka ou mesmo Chaplin, 'a tradição de uma minoria de judeus que não quiseram
tornar-se arrivistas, que preferi ram o estatuto de pária consciente'. Como ele, retira ensinamentos da
questão Dreyfus e empenhar-se-á num processo, o de Eichmann em Jerusalém. Talvez também
conserve, at ravés de Jaspers, o tema do cosmopolitismo e a ideia de uma federação entre Estados.
Finalmente, o tema da necessidade da rebelião, o apelo aos judeus para a acção.»
17o AJ, p. 66 .
171 BERNSTEIN, Richard J. - Op. cit., p. 25: «Arendt nunca subscreveu aqui lo a que chamava a

'ideologia Sionista' (ou qualquer outra ideologia). Não foi certamente movida por qualquer apelo
religioso ao retorno a Sião. Nem partilhava a atracção e entusiasmo emocionais de tantos sionistas
seculares. O Sionismo era o único movimento sério que dava valor à necessidade de uma solução
política para a questão j udaica. Contudo, Arendt era ambivalente em relação ao Sionismo, porque
80

Com efeito, o que inicialmente atrai Arendt ao Sionismo é o facto de


este movimento, como ela própria, rejeitar a visão apologética da história
judaica, quer dizer, o facto de propor uma leitura segundo a qual o povo
judeu é convidado a assumir-se, já não como vítima, mas como
responsável, construtor da sua própria história, autor do seu destino,
comprometido na acção política (já em Rahel Varnhagen, tinha escrito : «Se
nos li mitarmos a aceitar o destino, se pura e simplesmente não agirmos,
conseguimos uma segurança que nos permite oferecer a mesma resistência
passiva a qualquer infortúnio. , 172 ) E é esta leitura, ainda, que permite
compreender a comoção e o entusiasmo com que a nossa autora se refere
à sublevação armada dos judeus do gueto de Varsóvia: «aq uilo por que os
judeus do mundo inteiro, e antes de todos aqueles do yishouv da Palestina,
tinham reclamado há anos, a saber, a constituição de um exército judeu,
foi subitamente realizado por aqueles de que menos esperávamos que
agissem, e que não tinham outra saída senão ir povoar, no futuro, os asilos
e os sanatórios - mortificados na carne e no espírito - na qualidade de
beneficiários da caridade do judaísmo mundial. Aqueles que, no ano
anterior, desesperados, clamavam socorro e eram vítimas sem defesa da
barbárie, que estavam condenados a terminar um dia a sua existência na
qualidade de beneficiários da caridade estrangeira, decidiram-se, de um
dia para o outro, a ajudar-se a si próprios e, em todo o caso, a ajudar o
povo judeu. , 173
Ora, a possibilidade da constituição de um exército judeu - pela
qual Arendt sempre se bateu - foi, precisamente, um dos pomos da
discórdia, que se revelaria irreversível, entre Arendt e o movimento
sionista. Em 1942, escreve: ,, desde as negociações de Herzl com os
ministros da Rússia czarista ou do Im pério alemão, até a essa carta

tinha sérias reservas relativamente à política sioni sta. As suas dúvidas e reservas viriam a tornar-se
progress ivamente manifestas.»
172
RV, p. 120
173 AJ, p. 65
81

memorável que um Lorde inglês, Lorde Balfour, escreveu a um outro lorde


inglês, lorde Rothschild, e que tinha por objecto o destino do povo judeu,
os dirigentes sionistas puderam, sem grande suporte do povo judeu,
estabelecer negociações em favor deste povo com homens de Estado que,
também eles, agiam pelos seus povos e não enquanto representantes dos
seus povos. ( ... ) Os esforços em favàr de um exército judeu mostram muito
claramente que as simpatias e diligências das 'personalidades influentes'
não devem, uma vez mais, ser levadas a sério. En quanto um movimento
popular não emergir dos diferentes comités e comissões políticas, não
teremos a mínima hipótese., 174
Ora, o Sionismo tinha sempre seguido, na perspectiva de Arendt,
uma linha- que considerava ser indispensável aos seus objectivos- de
negociação com os grandes poderes e, mesmo, com os governos anti-
semitas, concretamente com os nazis. Chocada com o cinismo e o perigo
de uma colaboração sustentada em " interesses mútuos, (os sionistas, o de
quererem os judeus europeus na Palestina; os nazis, o de se quererem ver
livres dos judeus) , moveu-lhe uma crítica sem paralelo, que culminaria
com o desacordo, igualmente violento, relativamente à questão do conflito
175
judaico-árabe .

Com efeito, a partir de 1944, a cisão entre Arendt e aquele


movimento não podia, não mais, escamotear-se: ''A partir da sua última
convenção anual que se desenrolou em Atlantic City em Outubro de 1944,
os sionistas americanos, tanto de esquerda como de direita, adoptaram
unanimemente a reivindicação de uma Commonwelth judaica livre e
democrática, compreendendo 'toda a extensão da Palestina, sem divisão

174
Op. cit., p.SO
175
BERNSTEIN, Ri chard J.- Op. cit., p. 182: «Ela tinha uma reacção quase viscera l contra toda e
qualquer forma de ideologia, incluindo a ideo logia Sionista. Era absolutamente críti ca do que
detectava como uma dominação sinistra da ideo logia sionista revisionista. Castigou os seus
companheiros sionistas por falharem em encarar honestamente a necessidade de negociações e
cooperação judaico-árabe directa. Avisou contra o crescimento do nacionalismo e chauvinismo
judeus. Opôs-se à ideia de um estado-nação judeu porque baseado num perigoso e ultrapassado
82

nem diminuição'. Trata-se de um giro na história do sionismo porque isso


significa que o programa revisionista, tão longa e amargamente repudiado,
finalmente triunfou. A resolução de Atlantic City vai mesmo mais longe do
que o programa Biltmore (1942) , em que a comunidade judaica tinha dado
à maioria árabe direitos próprios da minoria. Desta vez, os árabes não são,
pura e simplesmente, mencionados na resolução . ( .. . ) Parece admitido
implicitamente que só razões de oportunismo tinham anteriormente
impedido o movimento sionista de enunciar os seus objectivos últimos .,, 176
Por razões políticas, Arendt comprometera-se com o sionismo; por
razões políticas, abandoná-lo-ia, sem retorno; compreender a
«dissidência,, de Arendt passa, assim, por esclarecer as objecções politicas
que colocava aos conceitos de Estado-nação e de soberania nacional, bem
como as alternativas que propôs .
O debate sobre o futuro da Palestin a estruturava-se em torno de
duas concepções políticas opostas: a que configurava a Pal estina enquanto
pátria judaica, e a que defendi a a constituição de um Est ado judai co
soberano.
Uma vez mais contra-corrente, escreve Arendt: «Os intelectuais
judeus de esquerda, que há relativamente pouco tempo olhava m para o
Sionismo como uma ideologi a para os fracos de espírito, e vi am a
construção de uma pátri a judaica como um empreendimen to sem
esperança que eles, na sua grande sabedoria, tinham rej eitado antes
mesmo que começasse; os homens de negócios judeus, cujo interesse pela
política judaica tinha sido sempre det erminado pela sempre importante

conceito de soberania nacional. Acusou os seus companheiros sioni stas de terem abandonado e traído
a promessa revolucionária do movimento Sionista.»
176
AJ, p. 97 (o sublinhado é meu)
BERNSTEIN, Richard J. - Op. cit., p. 105: «Como Bernard Lazare, Arendt ela própria (muito antes
de Eichmann in Jerusalem) estava a tornar-se pária entre o seu próprio povo. Estava perturbada, não
só pela viragem Sionista para o revisionis mo, mas também alarmada pelas pressões crescentes no
sentido de uma conformi dade ideológica, uma conformidade que não to lerava quaisquer opiniões
discordantes e em conflito. Na sua busca do sentido da política, realçou o papel da opin ião (doxa)-
especificamente a pluralidade e confli to de opiniões, que são debatidas em espaços públicos entre
pares. Isto era, para ela, o coração da política autênt ica e da liberdade púb lica .»
83

questão de como manter os judeus afastados das parangonas dos jornais;


os filantropos judeus, que tinham apresentado a Palestina como uma
caridade terrivelmente cara, fazendo desaparecer os fundos destinados a
outros propósitos 'mais válidos'; os leitores da imprensa yiddish, que
durante décadas estiveram sinceramente convencidos de que a América
era a terra prometida- todos eles, do Bronx a Park Avenue, até Greenwich
Village e Brooklyn, estão unidos na firme convicção de que um Estado
judeu é necessário., 177
Ora, o problema maior levantado por esta solução, de pendor
revisionista, constitui-se, na perspectiva de Arendt, como uma armadilha.
Em primeiro lugar, porque adopta um modelo político que a história
demonstrou já não ser viável- ,,não será fácil salvar os judeus nem a
Palestina no século XX e é altamente improvável que isso possa fazer-se
com a ajuda de categorias e métodos do século XIX. Se os sionistas
mantiverem a sua ideologia sectária e o seu 'realismo' de vistas curtas,
terão perdido todas as hipóteses de que os pequenos povos persistam no
nosso mundo, que está longe de ser belo» - depois, portanto, alimenta a
lógica segundo a qual as populações minoritárias constituem,
irre mediavelmente, um problema: a conversão dos seus elementos em
cidadãos de segunda classe; a sua exclusão do novo Estado na pior das
hipóteses, era o que se tinha verificado entre os Estados-nação europeus e
os judeus, e que estes estavam prontos a repetir, desta vez em relação aos
vizinhos árabes.
A possibilidade de uma federação parece-lhe, assim, a única
alternativa séria: <<De uma maneira geral, a verdade é que a Palestina,
como pátria nacional para os judeus (bem como de outros pequenos países
e outras pequenas nações) só pode ser salva se for incorporada numa
federação. Os sistemas federados têm muito futuro porque é provável que
ultrapassem os conflitos nacionais e possam, consequentemente, definir o

177
JP, p. I 80
84

fundamento de uma vida política em que os povos poderão reorganizar-se


politicamente. ,, 178
Enquanto vigorar o conceito de Estado-nação, portanto, seja sob a
forma de entidade isolada, seja sob a forma de aliança com outras, o
problema da maioria-minoria perdurará, com os problemas de direitos que
se lhe associam. Com efeito, ,, uma verdadeira federação é constituída por
diferentes elementos políticos, nacionais e outros, claramente
reconhecíveis, que no seu conjunto compõem o Estado . Numa tal
federação, os conflitos nacionais podem resolver-se pelo facto de que o
problema insolúvel maioria-minoria já não existe. Os Estados Unidos foram
o primeiro exemplo de uma tal federação. Neste tipo de união, nenhum
Estado tem supermacia sobre outro e todos os Estados governam o país em
conjunto. , 179

Em que medida, finalmente, pode toda a problemática respeitante à


condição de pária, explicar a rispidez com que Arendt aborda a questão
dos Direitos Humanos e das sociedades que se constituíram para a sua
defesa - que padecem, na sua perspectiva, de uma ,,inquietante
semelhança, em linguagem e composição, com as sociedades para a
prevenção da crueldade para com os animais,, 180 - é o que se pode, creio
que agora sem equívoco, compreender. A denúncia que leva a cabo, afinal,
é a de que ,, a concepção dos direitos humanos, baseada na suposta
existência de um ser humano enquanto tal, fracassou no momento mesmo
em que aqueles que professavam acreditar nela foram pela primeira vez
confrontados com pessoas que tinham de facto perdido todas as suas outras
qualidades e relações específicas- excepto que eram, ainda, seres

178 AJ, p. 61
179
Op. cit. , p. 62
180
PHA, p.33
85

humanos. O mundo não encontrou nada de sagrado na nudez abstracta de


não se ser senão humano., 181
Reconhecendo embora que, nunca antes da sua proclamação, nos
finais do século XVIII, teriam os Direitos do Homem sido tratados como um
tema político prático, certo é, contudo, que os fundamentos em que se
alicerçam (a emancipação do homem da tutela divina, a concomitante
soberania por relação à lei e, enquanto povo, soberania em questões de
governação, a identificação, enfim, dos direitos do homem com os direitos
do povo) , geram perplexidades difíceis de ignorar. A este propósito, afirma
Arendt: " o homem tinha acabado de aparecer como um ser
completamente emancipado, completamente isolado, que transportava a
sua dignidade no seu próprio interior, sem referência a uma qualquer outra
ordem mais ampla e envolvente, quando tornou a desaparecer enquanto
membro de um povo . ( ... ) Toda a questão dos direitos humanos,
consequentemente, foi rápida e inextricavelmente ligada à questão da
emancipação nacional. ,, 182
Além disso, a Revolução francesa impusera uma concepção de
humanidade que privilegiava o povo sobre o indivíduo, pelo que era
aquele- não este- que determinava a imagem do homem . Ora, os
acontecimentos, entretanto, tomariam um rumo nunca previsto : o
aparecimento de pessoas e povos sem Estado (a bem dos quais, porventura
mais do que de nenhuns outros, urgia clamar pela salvaguarda de direitos)
veio mostrar que, ao invés da suposta independência dos direitos do

181
Op. cit., p. 4 1
BERNSTEIN, Richard J. - Op. cit., pp.84-85 : «Üs reparos de Arendt têm relevância para recentes
controvérs ias a respeito do liberalismo e do comunitarismo. Uma das razões pelas quais est es
emaranhados debates podem parecer tão abstractos e académ icos é que os assuntos são
frequenteme nte discutidos sem relação a experiências políticas concretas, o tipo de experiências que
são tão manifestas nas reflexões de Arendt. Ninguém pode acusá-la de ser uma comunitária- ou, pelo
menos, o tipo de comunitário que atenua a irredutibilidade, conflito e pluralidade de perspectivas e
opiniões no interior da vida política comum. Mas a eterna suspeita de Arendt relativamente ao
liberalismo é, em parte, motivada pela sua própria experiência do que significa concretamente ser
tratado como um ser humano abstracto que presumivel mente tem (ou deveria ter) direitos, na sua
' nudez abstracta de não ser senão humano.'»
182
PHA, p.32
86

homem por relação a qualquer governo, eles deixavam de funcionar


quando a essas pessoas não restavam senão os direitos mínimos- "eles não
despertavam na sua humanidade nua, face à qual a única resposta é a
piedade, senão a estranha impressão de qualquer coisa totalmente
inumana,, 183 - que nenhuma autoridade ou instituição parecia, desde então,
disposta a garantir. Por outras palavras, " os Direitos do Homem,
supostamente inalienáveis, mostraram -se inaplicáveis - mesmo em países
cujas constituições se baseavam neles - sempre que apareciam pessoas que
já não eram cidadãos de nenhum estado soberano. A este facto, em si
mesmo suficientemente perturbador, acresce a confusão criada pelas
muitas e recentes tentativas de formular uma nova lista de direitos
humanos, que demonstraram que ninguém parece estar apto a definir com
alguma segurança o que estes direitos humanos gerais, enquanto distintos
dos direitos dos cidadãos, realmente são., 184
A perda de um lar ou da protecção de um governo, entretanto, não
e um fenómeno inédito; é dela que decorre, afinal, toda a tradição do
direito ao asilo político, tal como o conhecemos nos países civilizados.
Contudo, apenas se «OS milhares de homens aos quais o governo americano
assegurou um asilo temporário nos Estados Unidos, fossem indivíduos
perseguidos por governos da sua pátria, em razão da sua confissão religiosa
ou das suas convicções políticas, essa medida tomaria uma grande
significação. Ela significaria que um dos mais antigos e sagrados deveres
dos Estados ocidentais e que um dos mais antigos e sagrados direitos dos
homens do Ocidente, o direito de asilo, é honrado. Contudo, os milhares
de homens que devemos esperar, aqui na América, não são refugiados no
sentido antigo e sagrado do termo., 185 Inédita, então, é a circunstância no
âmbito da qual um vasto número de pessoas reclama essa possibilidade,
até então reservada a casos excepcionais. Mais grave, a preocupação pelo

183 AJ, p. 7
184
PHA, p. 34
lss AI, p. 77
87

reforço dos direitos humanos, só incidentalmente toca o verdadeiro


refugiado político, porquanto «OS novos refugiados eram perseguidos não
em virtude do que tinham feito ou pensado, mas pelo que
i rremediavelmente eram - nascidos na raça errada, ou tipo de classe ou
recrutados pelo tipo de governo errado (como no caso do Exército
Republicano Espanhol). ( ... ) Mas o facto de serem e parecerem apenas
seres humanos cuja própria inocência - de todos os pontos de vista, e
especialmente do ponto de vista do governo perseguidor- era a sua grande
desgraça. Inocência, no sentido de completa falta de responsabilidade , era
a marca da sua falta de direitos tal como era o selo da sua perda de
estatuto político. ,, 186
Não é a vida, portanto, nem sequer a liberdade, que constitui o
direito fundamental; antes delas, impõe-se o direito a um lugar no mundo
que torne signifi cativas as acções e as palavras, e é neste sentido que ••os
espíritos pragmáticos, demasiado zelosos, que acreditavam que se
salvavam primeiro os homens e que não se podia determinar senão a seguir
o seu estatuto político e jurídico, mostraram -se irrealistas e desprovidos de
sentido prático. Só quando os judeus europeus tiverem sido reconhecidos
como um dos povos confederados com os Aliados e a questão dos hóspedes
vin dos do país de ninguém , bem como o problema da salvação dos judeus
da Europa, tiverem encontrado a sua solução jurídica, é que teremos dado
um passo em frente. ,, 187
A pessoa ou povo privado de direitos humanos - em rigor, a não-
pessoa e o não-povo - é, assim, aquele que é excluído '' não do direito à
liberdade, mas do direito à acção; não do direito a pensar o que quiser,
mas do direito à opinião. Privilégios em alguns casos, injustiças na maioria
deles, bençãos e perdição são-lhes destinados acidentalmente e sem

186
PHA, p. 35
187 AJ, p. 79
88

qualquer tipo de relação com o que quer que façam, tenham feito ou
possam vir a fazer.» 188
Em suma, todas as actividades humanas são condicionadas pelo
facto de os homens viverem juntos; o artifício humano distingue a
existência humana da circunstância meramente natural; a existência de
uma esfera pública, simultânea presença de inumeráveis perspectivas que
conferem ao mundo a sua realidade, configura-se como transcendência,
como potencial imortalidade terrena e, assim, «Se a tragédia das tribos
selvagens é a de que habitam uma natureza intocada que não podem
dominar, e da qual, contudo, depende a abundância ou frugalidade da sua
vida; se é a de que vivem e morrem sem deixar rasto, sem terem
contribuído com coisa al guma para um mundo comum, então estas pessoas
sem direitos são realmente atiradas para um peculiar estado de natureza.
Não são bárbaros, certamente; algumas delas, até, pertencem aos estratos
mais educados dos seus respectivos países; ainda assim, num mundo que
quase liquidou a selvajaria, aparecem como os primeiros sinais de uma
189
possível regressão da civilização. »

188
PHA, p. 37
189
Op. cit., p. 42
BERNSTEIN, Richard J. - Op. cit., p. 78: «A experiência de Arendt enquanto judia sem pátria
proveu-a de uma análise aguçada dos ameaçadores paradoxos e instabilidade que acontecem quando
massas de refug iados e pessoas sem pátria são ' cri adas' por erupções políticas. Ela considerava a
súbita emergência de novas massas sem pátria um dos prob lemas mais intratáve is do sécul o XX- um
problema que sobreviveu aos regimes totalitários. O perigo deste novo fenó meno de massas de
ausência de Es tado [statelessness] era um dos temas que tinha em mente quando, na conc lusão de As
Origens do Totalitarismo, escreveu que ' as soluções totalitárias podem m uito bem sobreviver à queda
89

3. O Mal como ausência de pensamento

" O que tinha perante os olhos era totalmente


diferente [da concepção tradicional- literária,
teológica, filosófica]. (... ) Os actos eram
monstruosos, mas o responsável (... ) era
absolutamente vulgar (... ). A única característica
notável (... ) era de natureza inteiramente negativa:
não era a estupidez, mas uma falta de
pensamento."

Hannah Arendt, A Vida do Espírito I

Eis o problema levantado pelo encontro de Arendt com Adolf


Eichmann, em 1961, e que a levaria à polémica reflexão sobre a
banalidade do mal- «A questão impossível de iludir é esta: a própria
actividade de pensar (... ) faz parte das condições que obrigam o homem a
evitar o mal e que o condicionam negativamente em relação a ele? (... )'' 190
191
A resposta é, como se verá, afirmativa •

Arendt afirma mais do que uma vez não ter qualquer pretensão a
que Eichmann em Jerusalém se constitua como algo mais do que uma

dos regimes totalitários sob a forma de fortes tentações que aparecerão de cada vez que pareça
impossível aliviar a miséria política, social ou económica de um modo digno do homem'.»
190
VE I, p. 20
191
BERGEN, Bernard- Op. cit., p. 49: « Arendt não queria dizer nem que o mal era banal, nem que a
Solução Final era apenas mais um dos males banais que afligem a humanidade; ela queria dizer,
antes, que Eichmann, como qualquer ser humano, possuía a capacidade comum de se ver a si mesmo
pensando no significado do que ele é. Mas ele é também incomum em que, não pensando sobre o que
é, tinha passado do tipo de mundo no qual os humanos geralmente vivem, para outro tipo de mundo
que era organizado à volta de um eixo de assassínio.»
Vinte anos mais tarde, de resto, em Thinking and Moral Considerations, p. 7, Arendt escrevia que por
banal idade do mal não queria referir-se a « teoria ou doutrina, mas a algo bastante factual, o
fenómeno de actos maus, cometidos numa escala gigantesca, que não podiam ser referidos a qualquer
fraqueza, patologia ou convicção ideológica no sujeito, cuj a única distinção pessoal era uma talvez
extraordinária superficialidade.»
VILLA, Dana R.- The Banality of Philosophy, in Hannah Arendt, Twenty Years Later, p. 180: «A
resposta de Arendt a esta questão, por meio de uma meditação sobre a natureza 'sem resultados'
('resultless'] do pensamento em geral e sobre a qualidade 'dissolvente' do pensamento de Sócrates
em particular, é um qualificado sim. Ao pôr fora de ordem a nossa dedução quotid iana de acções e
juízos de princípios prontos-a-usar, o pensamento interrompe todo o fazer e inicia um diálogo interno
entre mim e eu-própri o. Foi este o diálogo a que Sócrates tentou incitar e que Arendt remete para a
plura lidade interna da própria consciência.» Este aspecto será desenvolvido adiante.
90

reportagem. Esta obra, porém, inscreve-se e deve ser lida à luz do


trabalho de Arendt no seu conjunto, que a morte deixou por terminar.
Antes, portanto, de abordarmos a questão em epígrafe, há que
estabelecer, com Arendt, uma série de distinções, concretamente entre
pensamento e argumentação filosóficos e pensamento e juízo políticos,
porquanto se trata de mais uma distinção que o pensamento filosófico e
político ocidental obliterou, com as consequências nefastas que já
conhecemos.
Ora, " a distinção estabelecida por Kant entre Vernunft (razão) e
Verstand (entendimento) é crucial para o nosso percurso. ( . .. ) O que faz a
demarcação entre as duas faculdades de razão e intelecto coincide com
uma diferenciação entre duas actividades mentais absolutamente outras,
pensamento e saber, e dois tipos de preocupação totalmente distintos, a
significação para a primeira categoria, o conhecimento para a segunda. , 192
Mais ainda, é ainda o confronto entre solidão e pluralidade humana que
está em causa, pelo que estamos perante uma série de consequências que
o próprio Kant não anteviu. Com efeito, «ainda que insista sobre a
impotência da razão em alcançar o saber, sobretudo tratando-se de Deus,
da Liberdade e da Imortalidade- do seu ponto de vista, os objectos
supremos do pensamento- não pôde desembaraçar-se completamente da
convicção de que o fim último do pensamento, como do saber, é a verdade
e o conhecimento. ( ... ) Nunca se deu verdadeiramente conta de que tinha
libertado razão e pensamento, que tinha justificado esta faculdade e a
actividade correspondente, mesmo não podendo estas reivindicar
193
resulta dos 'positivos'. ,
Apoiando-se, portanto, na distinção kantiana de sentido e
verdade 194 , que leva às ultimas consequências, Arendt amplia o alcance da

192
VE I, p. 29
19 3
Op. cit., p. 80
194
KOHN, Jerome - Op. cit., p. 162: «As consequenc1as filosóficas do que Kant fez são
fundamentais para [Arendt]. Ao colocar severos limites ao alcance do conhecimento humano, Kant
tinha, para Arendt, libertado o pensamento daquilo a que ela chama por vezes a 'tirania' da verdade.
91

razão, que considera exercer-se sobre tudo o que acontece, numa


interpretação da significação segundo um modelo outro que não o da
195
verdade . Considera, com efeito, que «O obstáculo maior que a razão
(Vernunft) coloca no seu próprio caminho surge do lado do in telecto
(Verstand) e dos critérios perfeitamente fundados que ele estabeleceu
para o seu próprio uso, quer dizer, para estancar a nossa sede e satisfazer
a nossa necessidade de saber e de conhecimento. A razão pela qual Kant e
os seus sucessores não prestaram nunca grande atenção ao pensamento
enquanto actividade e, men os ainda, às experiências do eu pensante, é
que, a despeit o de todas as distinções, eles exigiam o mesmo género de
resultados e aplicavam o tipo de critérios de certeza e de evidência que
são os resultados e os critérios do conhecimento., 196
Ora, pensamento e razão transcendem- legitimamente, de resto- os
limi tes do conhecimento e do intelecto; o pensamento não antecipa o
conhecimen to, revela, ant es, a busca de significado que não atinge nunca
resultados tangíveis. Razão e pensamento, co nsequentemente, dirigem o
seu interesse a objectos que, incognoscíveis, não deixam por isso de ter um
alto interesse existencial. As questões últimas que o pensamento coloca,
não só não estão separadas da vida quotidiana, como a sustentam;
abandoná-las por impossibilidade de lhes dar resposta definitiva,
equivaleria a renunciar "à sua facu ldade de responder às questões às quai s
197
pode responder.··

Para ela, a importância de tal pensamento li berado não pode ser forçada, especialmente em tempos de
transição, quando os padrões morais tradicionais perderam a sua validade e o mundo humano já não é
estável, ainda que, como vimos, ele não traga ' resultados '.»
195
CANTISTA, Maria José- A Significação do bios po/itikós ou o regresso ao pensamento em
Hannah Arendt: «Na op inião da Autora, a significação auroral do agir e da genuinidade do sentido da
experiência marcam a autêntica pensabilidade, a significação primordial que desde cedo distingue do
sentido inerente ao quadro teorético da verdade lógico-veritativa, sempre secundário e relativo àquela .
Ass im sendo, o pensar é a própria teorização do agir, está em intrínseca re lação com ele. O pensar é a
actualidade mesma do agir humano, essência ek-sistente ou ek-staticidade, cujo horizonte é a
historicidade (daí o carácter narrativo do pensamento que se conta em stories e não na History) e cuja
morada é a linguÍsticidade. O pensamento regressa assim ao seu ethos, enraíza-se no seu lugar
natural- no seu ser no mundo: é palavra e é acção.»
196
VE I, p. 30
197
ARENDT, Hannah- Philosophie et Politique, in Cahiers du Grif, p.91
92

«Desejo de saber", preocupação pelo conhecimento, não e,


portanto, "necessidade urgente de pensar", preocupação pelo
incognoscível, pelo que ,, a manifestação do vento do pensamento nao e
saber; é a aptidão para di stinguir o bem do mal, o belo do disforme.
Aptidão que, nos raros momentos em que a parada [enjeu] é conhecida,
pode muito bem desviar as catástrofes, pelo menos para o eu., 198
Colocar a questão do senti do, corresponde, deste modo, a
const antement e recomeçar do zero, num movimento em que a
universalidade indeterminada do sentido e a particularidade concreta da
experiência se alimentam e definem reciprocamente. É nesta acepção que
<<OS homens, apesar de totalmente condicionados existencialmente-
limitados pelo intervalo de tempo entre o nascimento e a morte, sujeitos
ao labor de modo a viver, motivados para o trabalho de modo a sentirem-
se em casa no mundo, e impelidos para a acção em ordem a encontrar o
seu lugar na sociedade dos seus companheiros-homens - podem
transcender mentalmente todas estas condições, mas apenas
mentalmente, nunca na realidade ou na cognição ou no conhecimento, em
virtude do que conseguem explorar a realidade do mundo e a sua
199
própria. "
Assim, pois, os riscos que o estado de não-pensamento implica, em
assuntos políticos como morais, são claros: « Subtraindo as pessoas ao
perigo do exame crítico, ensina-se-lhes a agarrarem-se solidamente às
regras de conduta, sejam elas quais forem, de uma dada sociedade, numa
dada época. Aquilo a que elas se habituam, então, é menos ao conteúdo
das regras , cujo exame as mergulharia na perplexidade, do que à possessão
200
de regras nas quais se podem fazer entrar os casos particulares." Esta
possessão de regras, o que a permite é, em situação totalitária, a

198
VE I, p. 2!9
199
Op. cit., p. 95
200
Op. cit., p. 202
93

ideologia, e é ela, ainda, que convida a compreender as distorções de


Eichmann à luz de algo mais do que a simples mentira.

A ideologia, segundo Arendt, é precisamente o que o nome indica: a


lógica de uma ideia. Ora, " a 'ideia' de uma ideologia não é nem a
essência eterna de Platão, acessível aos olhos do espírito, nem o princípio
regulador da razão segundo Kant: ela tornou-se um instrumento de
explicação.( ... ) O que habilita a 'ideia' a ter este novo papel, é a sua
'lógica' própria, a saber, um movimento que é a consequência da própria
'ideia' e que não requer nenhum factor exterior para a pôr em
movimento. » 201
A dedução é o movimento de que aqui se trata, e o que importa
salientar é o facto de estarmos perante um movimento interno que evita, a
todo o custo, o confronto com o acontecimento, a factualidade, a
202
experiência • O que importa na ideologia não é, então, a ideia no sentido
de conteúdo, mas a coerência lógica, o seu poder constrangedor de tudo
explicar203 : " o constrangimento puramente negativo da lógica, a
interdição de contradições, torna-se 'produtiva' de modo que uma linha de
pensamento pudesse, de uma ponta à outra, ser instituída, e imposta ao
espírito, tirando dela as conclusões à maneira da simples argumentação.

201
OT III, p. 217
202
Não é por acaso, portanto, que nas alturas em que Eichmann se viu obrigado a confrontar-se com a
realidade dos campos, as suas 'convicções' vacilassem. Nas palavras do próprio: «Não podia; não
podia; era demais. Os gritos ... estava demasiadamente aborrecido ( ...) E fui-me embora ( ... ) Tinha
sido demais. Estava acabado.( ... ) Tinha que desaparecer.» ln EJ, p.88
203
ESLIN, Jean-Claude- Op. cit., p. 49: «Este desligamento do mundo, esta perda de pon tos de
ligação, que ameaça o sentido do interesse pessoal e o instinto de conservação, que conduz a que nos
contentemos com os resultados mais abstractos, conduz também a fugir da 'facticidade do mundo
real' a favor da coerência, bem ma ior, do mundo fictício. A fuga das massas perante a realidade é
uma condenação do mundo no qual elas são obrigadas a viver. Em suma: uma gnose. As massas
'sedentas de coerência' renunciam elas próprias à pluralidade por uma v isão conformista e
simplificada das coisas. ( .. .) Um círculo perverso cria-se entre os chefes totalitári os que, no seu
desprezo pelos factos, estão prontos a defender qualq uer tese, e a credulidade das massas, prontas a
acreditar em qu alquer mentira, desd e que seja melhor do que o mundo real.»
94

Este curso da argumentação não podia ser interrompido nem por uma ideia
nova ( ... ), nem por uma experiência nova.,, 204
Ora, na ideologia reúnem-se e reforçam-se mutuamente dois
aspectos essenciais ao desbravamento do caminho da banalidade do mal, a
saber, o abandono à necessidade e a fuga à realidade, a troca da liberdade
inerente à faculdade de pensar pela «Camisola lógica, com a qual o homem
pode constranger-se a si mesmo quase tão violentamente como é
constrangido por uma força exterior. ,, 205 A ideologia é, pois, o meio pelo
qual os seres humanos são privados da fonte da sua liberdade e
espontaneidade: interiorizando a necessidade lógica da 'ideia', tornam-se
dóceis e previsíveis.
É neste sentido que, " as oportunidades de Eichmann para se sentir
como Pôncio Pilatos eram muitas e, à medida que os meses e os anos
passaram, ele deixou de ter necessidade de sentir o que quer que fosse . As
coisas eram assim, ( ... )fizesse o que fizesse, fê-lo como cidadão obedi ente
à lei. Fez o seu dever (... ). Não só obedeceu a ordens, também obedeceu à
lei. Eichmann tinha uma suspeita confusa de que esta poderia ser uma
distinção importante, mas nem a defesa nem os juízes lhe pegaram. ,,206
Não lhe pegaram, também , os críticos de Arendt, e toda a controvérsia que
rodeou a reportagem sobre a banalidade do mal acabou por eclipsar o
verdadeiro problema que o caso Eichmann colocava: o que pode acontecer
à consciência numa situação de colapso moral, tal como a que o regime
nazi proporcionou, concretamente através da burocracia, cujo papel
solicita breves reflexões adicionais .
Com efeito, Arendt chama a atenção para o facto de o processo que
culminou na perpetração do Holocausto ter assumido, uma dentre muitas,
a figura de uma socialização burocrática, isto é, o tipo de socialização que
permite que um indivíduo entenda como o seu mais alto dever moral

204
OT III, p. 2 18
205
Op. c it. , p. 218
206
EJ, p. 135
95

obedecer às ordens do seu superior, e que resulta da conjugação de quatro


componentes fundamentais, a saber: vulnerabilidade económica, perda de
autonomia, instituição da lealdade como valor moral fundamental e
identificação da virtude e da consciência com o escrupuloso seguimento
das ordens dadas . Com mais pormenor: em regime totalitário, e por
circunstâncias institucionais, o indivíduo tem fortes razões para temer pela
sua permanência num trabalho, porquanto a insegurança económica se
constitui como a primeira forma de o levar a fazer o que quer que seja
para o manter. Consequentemente, a lealdade do paterfamilias para com
o seu núcleo familiar, rapidamente se transformará em lealdade para com
o seu empregador. Por outro lado, a engrenagem da burocracia é
caracterizada, nas palavras de Arendt, como animada pela «Lei de
207
Ninguém,, [«Rule of nobody>>] , segundo a qual cada indivíduo e apenas
uma pequena peça da maquinaria. Perdendo o controlo do processo
decisório, tanto quanto a capacidade de acompanhar o modo segundo o
qual as decisões serão executadas, a consciência do burocrata não chega a
temer pelas consequências das suas acções . A lealdade, enfim, pressupõe a
subordinação dos objectivos e valores individuais aos objectivos e normas
da instituição, decorrente da perda do sentimento de responsabilidade
pessoal, e encontra o seu expoente mais alto na transformação da própria
consciência, cumprida que foi, entretanto, a desumanização
burocrática208 . O moralmente errado é agora, e apenas, algo dificil de
209
suportar, um dentre os muitos deveres institucionais .

207
Op. cit. , p. 289
208
MA Y, Larry- Socialization and Jnstitutional Evil, in Hannah Arendt, Twenty Years Later, p. 89:
«Na minh a interpretação de Arendt, a socialização institucional nas burocracias transforma os
indivíduos em dentes de uma engre nagem; isto é, os ind ivíduos acabam por pensar em si próprios
como anónimos. Como tal, escapam às confrontações face-a-face consigo mesmos e com as
consequências das s uas acções, que são necessárias ao desenvolvimento do sentido da
responsabi Iidade.»
209
EJ, p. l 06 : «Ü problema era de como ultrapassar, não tanto a sua consciência, mas a pi edade
animal pela qual todos os homens normais são afectados na presença do sofrim ento fís ico. O truque
usado por Himmler- que aparentemente era, el e próprio, bastante afligido por estas reacções
instintivas- era muito simples e, provavelmente, muito eficaz; consistia em virar estes instintos do
avesso, diri gindo-os ao eu. Ass im, em vez de di zer: qu e coisas horríveis fiz às pessoas !, os assassinos
96

Neste sentido, a questão maior que a renúncia ao pensamento


coloca " não é uma questão de bondade ou de maldade, do mesmo modo
que não se trata de inteligência ou estupidez. Aquele que não sabe o que é
a relação silenciosa (na qual se submete ao exame crítico o que se diz ou o
que se faz) não teme contradizer-se, o que significa que não terá nunca
nem a possibilidade nem o desejo de justificar o que diz ou faz; do mesmo
modo que não se deixará parar pela ideia de um crime, pois que pode
contar esquecê-lo na hora seguinte. As pessoas más não estão 'cheias de
210
remorsos' ·''
Que relação silenciosa é esta, ao que parece capaz de nos
condicionar negativamente por relação ao mal, é o que se trata , agora, de
esclarecer, uma vez que ,, se existe alguma coisa que pode impedir os
homens de fazer o mal, deve ser uma propriedade inseparável da própria
211
actividade, qualquer que seja o objecto., Noutros termos, poderíamos
perguntar, com Arendt, ''o que é que nos faz pensar?,,
Percorrendo, com o propósito de responder a esta questão, a
história do pensamento filosófico, nota Arendt: ,, se desembaraçarmos
estas respostas [de Plat ão a Hegel] do seu conteúdo doutrinal ( ... )
confrontamo-nos com confissões de uma necessidade única: a de tornar
concretas as implicações do espanto platónico, a necessidade que
experimenta (em Kant) a faculdade de raci ocínio de transcender os limites
do cognoscíve l, ( ... )- em Hegel, sob a forma de ' necessidade da filosofia'

poderiam dizer: que coisas horríveis tive de fazer para cumprir os meus deveres, quão duramente
pesou a tarefa sobre os meus ombros!»
210
VE I, p. 216
BOWEN-MOORE, Patrícia- Op. cit., pp. 72-73: «Se a ausência de pensamento e o mal partilham
uma 'interdependência', então o pensamento e a moralidade estabelecem uma espécie de mutuali dade
exibida como a dimensão ética da vida do espír ito. Deste último comentári o não deve de modo algum
inferi r-se que o pensamento resulta sempre num local moral, porque o pensamento, por defi ni ção, é
uma busca de sentido e não de resultados. Devemos, antes, compreender esta última declaração
enquanto signi ficando que a actividade de pensar é tal que a sua experiência realça as sensi bilidades
hum anas sobre o bem e o mal, porque, enquanto o pensamento pode não produzir 'resultados', o seu
sub-produto é co nsciência. Inversamente, onde o pensamento atrofiou e o seu sub-produto
desapareceu, o resultado é a ausência de pensamento e isto, de acordo com Arendt, prepara o caminho
para o mal.»
2 11
VE I, p. 205
97

capaz de transformar os acontecimentos exteriores em pensamentos


próprios ao indivíduo ( .. . ). É esta incapacidade do eu pensante em dar
conta de si mesmo que faz dos filósofos , dos pensadores de profissão, uma
casta difícil de suportar,,, 212
Assim, pois, para que possamos abordar o problema colocado, há-de
ser possfvel encontrar um modelo da actividade de pensar na sua
realidade, ''em duas palavras, um pensador que saiba permanecer um
homem entre os outros, que não fuja da praça pública, que seja um
cidadão como os outros, que não faça nada e nada exija além do que cada
213
um, segundo ele, pode esperar e vir a ser. ,, Arendt refere-se, é já
evidente, à figura de Sócrates.
'' O que surpreende nos diálogos socráticos de Platão- escreve - é
que todos eles pregam o cepticismo. A argumentação não leva a lado
214
nenhum ou anda em círculos. » Tudo começa com termos por demais
conhecidos do discurso quotidiano- coragem, justiça, entre outros- mas
que, à tentativa de definição, escapam fugidias. Além di sso, não parece
que a vocação de Sócrates seja, como a dos pensadores profissionais, a de
decifrar enigmas ou proporcionar demonstrações; bem ao contrário, o seu
intuito é o de confirmar junto de outros as suas próprias incertezas, o do
exercício desinteressado da reflexão , à qual constantemente nos obriga.
Trate-se do Sócrates moscardo- que desperta os cidadãos do sono critico
em que, de bom grado, permaneceriam- da parteira- que traz à luz do dia
opiniões e juízos prematuros, nunca antes examinados- ou do Sócrates
torpedo- que se imobiliza a si próprio e tudo aquilo em que toca, em
ordem a um outro tipo de actividade e de vida, porventura a mais elevada-
o resultado não é nunca o de uma verdade que se substitui às más opiniões
entretanto denunciadas. Ao vento do pensamento, enfim , estamos
interditos de pedir resultados definitivos, porquanto ele ,, possui, a cada

212
Op. cit., p. 190
213
Op. cit., p. 19 1
214
Op. cit., p. 193
98

instante, um efeito de sapa, de destruição a respeito de todos os critérios


estabelecidos, os valores, os padrões de bem e de mal, em duas palavras,
em relação aos costumes e regras de conduta de que tratam os princípios
da moralidade e a ética. Estes pensamentos entorpecidos, parece dizer
Sócrates, são de tal modo práticos para o uso que nos podemos servir deles
a dormir; mas se o vento do pensamento, que vou agora levantar em vós,
vos arrancar ao vosso sono, vos acordar e encher de vida, vereis que não
t endes senão incertezas, e que o melhor que há a fazer é partilha-las com
os outros., 215
Destroçar crenças sem, por si só, dar origem a outras; subverter o
estabelecido, vaporizar as referências segundo as quais os homens se
orientam, tal é o poder corrosivo do pensamento. Na medida em que nada
substitui ao que faz desmoronar, esta actividade não pode encontrar o seu
sentido senão no seu próprio âmbito, segundo um critério que não pode
ser- não mais- o da verdade. Como se verá a seguir, o critério e o sentido
do pensamento crítico- ou socrático- é a busca da conformidade do eu
consigo mesmo. No caminho que leva a esta conclusão , a análise
arendtiana de duas proposições de Sócrates - «Cometer uma injustiça é
pior que sofrê-la» e «Mais valeria servir-me de uma lira dissonante e
desafinada, dirigir um coro mal regrado ou encontrar-me em desacordo e
em oposição como toda a gente do que está-lo comigo, totalmente só, e
contradizer-me» - revela-se fundamental.
Relativamente à primeira , Arendt começa por esclarecer que,
enquanto cidadãos, a nossa preocupação é a de evitar que' o mal aconteça,
porquanto é o mundo em que vivemos todos - autor do crime, vítima e
espectador- que está em causa. Neste sentido, portanto, «não é o cidadão
que fala aqui pela boca de Sócrates, porque o cidadão é suposto
preocupar-se primeiramente com o mundo, mais do que consigo mesmo; é

215
Op. cit., p. 200
99

o homem que se consagra antes de mais ao pensamento. ,,216 Não é, pois, a


moral, mas a própria experiência do pensamento enquanto tal; não é o
mundo, mas a necessidade de tudo submeter ao exame crítico, o amor da
sabedoria e da filosofia, que parece implicar - na realidade é condição
sine qua non - que, «por pouco que o mundo seja como tu [Cálicles] o
descreves, dividido entre fortes e fracos ( ... ) de tal modo que não há outra
possibilidade senão fazer o mal ou sofrê-lo, saberias então que mais vale
sofrer do que fazer. , 21 7
No que à segunda proposição concerne, é o seu carácter altamente
paradoxal que obriga a um exame mais profundo. Com efeito, «Sócrates
diz ser um e, consequentemente, incapaz de correr o risco de não estar em
harmonia consigo próprio. Mas nada de idêntico a si mesmo, realmente e
absolutamente Um, como A é A, pode estar em harmonia ou em desacordo
consigo mesmo; é preciso sempr·e pelo menos dois tons para produzir um
som harmonioso. ( ... ) O 'ser um' de Sócrates não é tão evidente como
parecia; não sou somente para os outros, mas para mim, e, neste caso, não
sou manifestamente um. Insinua-se uma diferença na minha unicidade. » 218
A diferença - quer dizer, a pluralidade - não é do exterior que se
apresenta, mas uma dualidade inerente a qualquer entidade, pelo que o
pensamento, actividade solitária embora, não é, contudo, isolada. A
consciência que o homem tem de si mesmo, introduz a dimensão plural, dá
origem ao diálogo interior em que, simultaneamente, sou quem coloca as
questões e lhes responde 219 • Assim, pois, «não é a actividade de pensar que

21 6
Op. cit., p. 207
217
Loc. cit.
218
Op. cit., p. 208
2 19
KOHN, Jerome- Op. cit., p. 169: «Para Arendt, isto é a descrição das personalidades morais num
senti do filosófico, daqueles que, confrontados com o errado, d izem simplesmente 'não posso' . Para
estas pessoas, que vivem consigo própri as, as proposições mora is são de si mesmas evidentes,
'evidentes para si mesmas' . Mas este ' não posso' é inteiramente negati vo, e, no que ao agir
erradamente no mundo diz respeito, aqueles que o dizem sobretudo retraem-se de agir. Um dos
aspectos mais marcantes que Arent marca nestas Iições é que as proposições morais reflectem o eu ao
eu, e por isso são tudo menos 'selfless'. ( .. .) Há uma experiência de pluralidade interi or em tal
moralidade, mas não é o mund o de outros seres humanos que está 'entre', ou que é de interesse
primordi al para alguém ser al guém. Para os fil ósofos e para a filosofi a em geral, de aco rdo com
100

instaura a unidade, que unifica o dois-em-um; bem ao contrário, o dois-


em-um torna-se Um quando o mundo exterior se impõe ao pensador e
interrompe bruscamente o processo de pensamento., 220
O ego mental só vive, portanto, em dualidade; a diferença e a
pluralidade são as condições da sua existência e, «tal como a metáfora
preenche o fosso entre o mundo dos fenómenos e as actividades mentais
que aí se desenrolam, o dois-em-um socrático traz um bálsamo para a
solidão do pensamento; a sua dualidade inerente deixa entrever a
pluralidade infinita que é a lei da terra. ,, 221
O pensamento, em suma, enquanto actualização da diferença
presente na consciência de si, constitui-se como faculdade constantemente
presente em qualquer indivíduo, mas da qual qualquer indivíduo, em
determinadas circunstâncias (e circunstâncias às quais a inteligência ou
estupidez são alheias), pode fugir. Não se trata, saliente-se, de concluir
pela possibilidade de um «Eichmann em cada um de nós, 222 , mas t ão só de
assumir que a incapacidade de pensar, a fuga à relação de si a si mesmo
que Sócrates descobriu, a permanência no ··lch bleibe mir aus,, (falto-me,
não compareço a mim mesmo) de Jaspers, é a ameaça que paira, sem
descanso, sobre qualquer ser humano.

Arendt, esta é uma experiência 'marg inal ' ou de 'fronteira', mas em Sócrates atingiu uma validade
exemplar. Sócrates sofreu efectivamente em vez de cometer o mal: tendo apostado a sua vida na sua
crença na bondade do diálogo interior de pensamento, escolheu morrer pela sua convicção.»
220
VE I, p. 2 10
221
Op. cit. , p. 2!3
222
VILLA, Dana R.- The Banality of Philosophy, in Hannah Arendt, Twenty Years Later, p. 184: «
Numa conferência sobre o seu trabal ho em Toronto, em 1972, Arendt repudi ou violentamente a ideia
de que a sua análise da ' banalidade do mal ' demonstrava que 'Eichmann está em cada um de nós'. O
seu objectivo não era sugerir que, dadas as circunstâncias certas, somos todos Eichmanns potenciais
(nada, do seu ponto de vista, podia estar mais longe da verdade). Antes, o sentido segundo o qual a
sua descrição da personalidade de Eichmann t inha mais relevância, tem a ver com a atrofia geral nos
nossos poderes de juízo. À medida que a distância da ' participação no juízo e na autoridade'
(Aristóteles) aumenta na sociedade de massas, há um declínio claro da nossa capacidade de 'pensar
sem regras', isto é, de julgar assuntos morais e políticos. Com este declíni o, vem uma crescente
confiança nos vários· ' pilares' (princípios e j uízos de valor prontos-a-usar) que nos permitem navegar
na vida quotidiana sem termos de parar e pensar. ( ...) O que Arendt teme não é o 'Eichmann em cada
um de nós', nem sequer a 'perda de valores', mas a crescente qualidade automática dos nossos
juízos.»
lO!

Deste modo, enfim , «Uma vida desprovida de pensamento nada t em


de impossível; não chega a desenvolver a sua própria essência, é tudo - não
é somente desprovida de significação; não é, realmente, viva. Os homens
que não pensam são como sonâmbulos. , 223

Compreender, portanto, em que sentido Eichmann se declarava


«inocente no sentido da acusação, e apenas «Culpado perante Deus, 224 ,
depende, em ultima análise, da nossa capacidade de acompanharmos o
modo de funcionamento dessa consciência 225 , e de resistirmos à tentação -
compreensível embora- de a considerar, sem mais, ausente: ,, Atrás da
comédia dos peritos em almas permanece o duro facto de que o seu caso
não era, obviamente, de moral, para não falar de insanidade legal . ( ... )
Pior, o seu não era obviamente um caso de ódio insano aos judeus, de
fanático anti-semitismo ( ... ) . Infelizmente, ninguém acredi t ou nele. ( ... ) E
os juízes não acreditaram nele porque eram bons demais para admitir que
uma pessoa medianamente 'normal'( ... ) podia ser perfeitamente incapaz
de distinguir o certo do errado ( ... ) e perderam o maior desafio moral e
até legal de todo o caso. , 226
Se a voz da consciênci a não perturbou Eichmann - ,,Quem era ele
para julgar? Quem era el e para ter os seus próprios pensamentos sobre a

223
VE I, p. 217
224
BERGEN, Bernard- Op. c it. , p. 40: « Arendt ouviu esta dec laração de E ichmann não como uma
declaração sem originalidade, que os nazis faziam desde Nurem berga, mas como levantando a
questão de quem e le pensava que era naquele tribunal de Jerusalém- uma questão que abri u o
caminho para a compreensão de quem ele era quando cometera os seus actos mortíferos mais de uma
década antes.»
225 VILLA, Dana R. - Politics, Philosophy, Terror, p. 46: « De facto, o tema primordial de Arendt

[em Eichmann in Jerusalem] é a inadequação da consciência tal como foi concebida tradicionalmente
(e popularmente), pelo menos quando se trata de compreender o ' novo t ipo de criminoso'
representado por E ichmann. Este tema faz de Eichm ann in Jerusalém um trabalho de fi losofia moral,
pelo menos imp licitamente. Não é de modo algum uma preocupação meramente teóri ca, uma vez que
lida directamente com o tema de como preservar a responsabilidade por acções naque las
ci rcunstancias em que a luta da consciência com ' motivos de base' já não pode ser honestamente (o u
ri gorosamente) invocada. E, como a natureza do mal político no século vinte demonstra, essas
circunstancias tornaram- se cada vez menos excepciona is.»
226 EJ, p . 26
102

227
matéria?,, - isso deveu-se, ainda, a um outro factor : não havia ninguém,
absolutamente ninguém, que fosse realmente contra a Solução Final, e por
isso «não precisava de fechar os ouvidos à voz da consciência porque a sua
consciência falava com uma 'voz respeitável', com a voz respeitável da
228
sociedade à sua volta. ,, O povo alemão, portanto, tinha aprendido a
proteger-se da realidade exactamente com os mesmos meios que
impregnavam a mentalidade de Eichmann. Por isso ele não era um
monstro, mas um «idealista,,, e por isso insistia que os seus actos não
eram, na altura, criminosos229 •
Mais - e este é, porventura, o ponto mais sensível de toda a
reportagem - ,,onde quer que · vivessem judeus, havia líderes judeus
reconhecidos, e esta liderança, quase sem excepção, cooperou , de uma
maneira ou de outra, por uma razão ou por outra, com os nazis. A verdade
é que se o povo judeu tivesse estado realmente desorganizado e sem
liderança, t eria sido o caos e a miséria, mas o número total das vítimas
dificilmente teria est ado entre os quatro milhões e meio e os seis milhões
de pessoas.,, 230 Além disto, escreve, na mesma obra, que quando oficiais
da Gestapo e das SS estavam destacados noutros países - na Dinamarca, na
Bulgária - as coisas já não se passavam com a crueldade que todos
conhecemos; surpreendentemente, tornavam-se inseguros de si mesmos e
já não eram de confiar, porque " tinham conhecido a resistência baseada

227
Op. cit., p. 114
228
Op. cit., p. 123
229
BOWEN-MOORE, Patrícia- Op. cit., p.74: «A ausência de pensamento de Eichmann testemunha
o facto de que ele nem tinha um companheiro no pensamento, nem tentou fazer do pensamento ou do
pensar um amigo. Se a mente é de facto a própria 'sensação de estar vivo', Eichmann é um dos seus
mais patéticos representantes. Nele, a actividade de pensar tinha atrofiado, permitindo ass im uma
reali dade ficcionada completada com uma nova linguagem de clichés, truísmos, vulgaridades e
slogans vazios, para se afi rmar a si mesmo como um novo código de julgamento. No momento em
que Eichmann permitiu a possibilidade de os seus instintos maus ditarem o exercício das suas acções,
( ... ) tornou todos os juízos pessoais sobre a realidade dada inteiramente vazios de significado e
despidos de todo o conteúdo moral. Eichmann, por isso, não só não era adequado para a exper iência
do político tal corria Arendt o descreve, como o não era para as aspirações da vida teorética.
Ei chmann traiu a sua natalidade enquanto dimensão política e ética da existência humana. Para o
dizer do modo mais desagradável possível, Eichmann era um pigmeu mental e moral.»
230
EJ, p. 125
103

em princípios, e a sua 'dureza' derreteu como manteiga ao sol, foram até


capazes de mostrar uns tímidos princípios de genuína coragem. ,, 23 1
Decido deter-me na primeira passagem, pela seguinte razão: foi,
talvez, a mais controversa e mal entendida, não só porque não veicula um
JUlZO moral sobre os membros dos Conselhos Judaicos, como é
frequentemente afirmado, como não insinua que os seis milhões de judeus
assassinados o não teriam sido, se esses mesmos conselhos não existissem.
Para evitar um discurso de pendor apologética - alcançada a empatia que o
estudo mais cuidado de um autor naturalmente pode facilitar, é difícil
aceitar os epítetos que Arendt suscitou aquando desta e de outras questões
(foi desacreditada e vilipendiada como sofrendo do "complexo de 'enfant-
terrible' ,, , foi considerada «desalmada», "mal i ciosa», «arrogante»,
" colaboracionista,, , «traidora,, e " leviana,, ... )- limitar-me-ei a chamar a
atenção para o seguinte: o que Arendt diz era, não só conhecido, como
232
sustentado por vários estudiosos do Holocausto ; a explicação que a
própria dá da razão que a levou a fazer referência ao " mais negro capítulo
de toda a história negra», não deixa dúvidas: " Insisti neste capítulo da
história, que o julgamento de Jerusalém não conseguiu mostrar ao mundo
nas suas verdadeiras dimensões, porque oferece a mais impressionante
perspectiva da totalidade do colapso moral que os nazis provocaram na
respeitável sociedade europeia - não só na Alemanha, mas em quase todos
233
os países, não só entre os perseguidores, mas também entre as vítimas. ,,
O que Arendt põe em causa, finalmente, é que a conduta moral se
dê por costume, convicta de que «ninguém no seu perfeito juízo pode

23 1
Op. cit., p. 175
232 Ri chard Bernstein faz referência a, pelo menos, dois deles: Isaiah Trunk, na sua ob ra Judenrat
(New York: Stein and Day, 1972) e Walter Z. Laqueur, um dos mais severos críticos de Arendt, que
na s ua obra Hannah Arendt in Jerusalem: The Controversy Revisited, escreve: « Mas se em m uitos
casos circunstâncias atenuantes podem ser encontradas, se alguns líderes, de facto, se comportaram de
manei ra heróica, o fenómeno Judenrat, como um todo, adquiriu uma conotação negat iva, e bem. A
partir do momento em que os Conse lhos Judaicos fo ram usados pelos nazi s para aj udar na 'solução
fina l', a s ua acção tornou-se indefensável.» in BERNSTEIN, Richard J.- Op. c it. , p. 163
233
EJ, pp. 125- 126 (o sublinhado é meu)
104

continuar a acreditar nisto .,, 234 Trata-se, com efeito, da re]elçao do


tradicional e clássico entendimento da virtude e, em A Vida do Espírito,
escreve: " só os hábitos e os costumes podem ser ensinados, e sabemos
bem demais com que alarmante velocidade eles são desaprendidos e
esquecidos, quando novas circunstâncias reclamam uma mudança nos usos
e padrões de comportamento.,, 235 E esta era a grande lição que podíamos
tirar dos acontecimentos do século XX236 •
Eichmann - dizia eu - não precisava de fechar os ouvidos à voz da
consciência, porque ela falava «com a voz respeitável da sociedade à sua
volta", e, nesta medida, começam a clarificar-se as relações entre terror e
ideologia: o terror nasce do medo perante a acção e a humana
potencialidade de renovados começos, pelo que aniquila as relações entre
os homens; a ideologia, do medo da liberdade do pensar, pelo que corta as
relações com a realidade: " a preparação [levada a cabo pela propaganda]
é coroada de sucesso a partir do momento em que as pessoas perderam

234
BERNSTEIN, Richard J. - Op . cit., p. 159: «Acredito, também, que a razão pela qual a
reportagem de Arendt é perturbadora é porque nos obriga a confrontar questões dolorosas acerca do
signifi cado do mal no mundo contemporâneo, o colapso moral da sociedade respeitável, a facil idade
com que o assassínio em massa se torna um comportamento 'normal' e 'aceitável', a frag il idade da
d ita voz da consciênci a, as fo rmas subtis de cumplicidade e cooperação que acompanham os actos
mortíferos. Estes, infelizmente, não são aspectos exclusivos do horror nazi. Permanecem connosco, e
exigem que lutemos contra eles uma e outra vez.»
235
VE I, p. 19
236 COURTINE-DÉNAMY, Sylvie - Op. cit., p. 62: «Demonstramo-lo suficientemente: Hannah

Arendt não fo i uma judia assimilada e, apesar de referências frequentes à tradição grega ou à tradição
cristã, já não é permitido por em causa a sua relação com o judaísmo, com a Shoa e com a criação do
Estado de Israel; ela conheceu o exílio, pertence à tradição oculta dos Heine, Lazare, Chaplin, Kafka
'q ue, como ela, não fo ram nem homens de gueto, nem assimilados, mas antes palhaços, párias na
praça púb li ca'(J-C. Eslin). Tendo-lhe sido recusado o acesso ao domínio público enquanto j ud ia,
atacada enquanto judia, ela defendeu-se enquanto judia e procurou uma lei, um domí nio público com
valor para a humanidade inteira, sem excluir ninguém. Os seus primeiros livros foram, precisamente,
dedicados à vida de uma judia, Rahel, e ao anti-semitismo e é por isso que as acusações de 'má
judia', contra ela pronunciadas após a publicação de Eichmann à Jerusalem, em 1963, merecem que
nelas nos detenhamos: não só porque nos parecem erradas e tendenciosas, mas igualmente porque
estiveram na origem da perda, provisóri a ou definitiva, de amigos caros a Hannah Arendt, como Hans
Jonas ou Kurt B lum enfeld, sem fa lar de Gershom Scholem, ela que não vivia senão para a amizade, o
falar-conj unto.»
E, já em Rahel Yarnhagen, podia ler-se: «um pedaço de realidade está escondido nas respostas
inteligente das outras pessoas. Ela [Rahel] precisava da experiência dos outros para suplementar a sua
própria. Para esse propósito, as qual ifi cações particulares dos indivíduos eram indiferentes. Quantas
mais pessoas houvesse que a compreendessem, mai s real ela se tornaria.» (Rahel Varnhagen, p.98)
105

todo o contacto com os seus semelhantes tanto quanto com a realidade


que as rodeia; porque na perda destes contactos, os homens perdem
também a faculdade de experimentar e de pensar. O sujei t o ideal do reino
totalitário não é nem o nazi convicto nem o comunista co nvencido, mas o
homem para quem a distinção entre facto e ficção (isto é, a realidade da
experiência) e a distinção entre verdadeiro e falso (isto é, as normas do
pensamento) não existem mais. , 237
Esta incapacidade para distinguir facto e ficção, verdadeiro e falso,
tem consequências ainda a um outro nível - o da linguagem.
A respeito de Eichmann, Arendt escreve: " a sua i ncapacidade de
falar estava estreitamente ligada a uma incapacidade de pensar,
nomeadamente do ponto de vista de outra pessoa . ( . .. ) Estava rodeado da
mais fiável escolta contra as palavras e a presença de outros, e por isso
contra a realidade enquanto ta[. ,,238
«Amtssprache é a minha única língua,,, declarou Eichmann,
frequentemente, e a sua «conversa oca, , denunciada pelos juízes, devia-se
ao facto de ser totalmente incapaz de construir uma frase que não
constituísse um cliché. O próprio sistema, de resto, favorecia esta
circunstância, ao obrigar os seus colaboradores a rígidas «regras de
linguagem, : com efeito, termos como «extermínio,, ou «liquidação,, são
raramente encontrados na correspondência do regime, mas o ponto capital
é que " a armadilha deste sistema de linguagem não era para manter as
pessoas ignorantes acerca do que estavam a fazer, mas para prevenir que
não o comparassem com o seu velho, 'normal' conheciment o de assassínios
e mentiras. A grande susceptibilidade de Eichmann em apanhar palavras e
frases comuns, combinada com a sua incapacidade para o discurso vulgar,
239
fez dele, é claro, um sujeito ideal de 'regras de linguagem' ."

237
OT III, p. 224
2Js EJ, p. 49
239
Op. cit., p . 86
106

Um último aspecto a considerar: a enfática e inesperada declaração


de Eichmann de que teria vivido de acordo com o imperativo categórico de
Kant.
Como Arendt relata, Eichmann era capaz de formular o imperativo
de uma forma surpreendentemente adequada; sofria, contudo, de uma
distorção que viria a revelar-se crucial. Com efeito, Eichmann passara do
«Age de tal modo que o princípio da tua vontade possa torna-se o princípio
de leis gerais» ao " Age como se o princípio das tuas acções fossem os
mesmos do legislador ou da lei do país- ou, na formulação de Hans Frank
( ... ) 'Age de tal modo que o Führer, se soubesse da tua acção, a
aprovasse ., 240
Ora, se é certo que o princípio kantiano põe a tónica na razão
prática e na sua concomitante autonomia, e por isso consagra o · homem
como legislador moral mais do que como sujeito de deveres
heteronomamente dados, também o é que a distorção de Eichmann
concordava realm ente como o que «ele próprio denominara versão de Kant
'par:a uso caseiro do homenzinho ': neste uso caseiro, o que resta do
espírito de Kant é a exigência de que um homem faça mais do que
obedecer à lei, vá além da mera chamada à obediência e identifique a sua
própria vontade com o princípio por trás da lei- a fonte de onde a lei
brotou. Na filosofia de Kant, essa fon te era a razão prática; no uso caseiro
241
de Eichmann, era a vontade do Führer. » Eichmann não podia, portanto,
ter-se apercebido do que fazia- em termos morais, não factuais- uma vez
242
que o fazia em circunstâncias de crime legalizado pelo Estado . Lealdade

240
Op. cit., p. 136
241
Op. cit., p. 137
242
VILLA, Dana- Op . cit., p. 52 : « O 'novo tipo de criminoso' representado por Eichmann não é nem
um fanático do partido nem um robot doutrinado. Antes, é o indivíduo que participa so licitamente
nestas activi dades de um regime criminoso, enquanto vendo-se a si mesmo como isento de qualquer
res ponsabilidade pelas suas acções, quer pela estrutura organizacional, quer pela lei. Através desta
auto-ilusão (e do 'distanciamento da realidade' que e la pro move), um indivíduo pode evitar com
sucesso confro ntar-se alguma vez com a moralidade das s uas acções. Como o caso E ichmann
amplamente demonstra, onde 'a lei é a lei'- onde, por outras palavras, a ausência de pensamento
reina- as faculdades do juízo e de imaginação moral atrofi am e, depois, desaparecem.»
107

ao regime era, portanto, lealdade a Hitler, corporização da própria


vontade de cada um : " O facto perturbador no sucesso do totalitarismo é
( . .. ) a verdadeira ausência do eu a si próprio [selflessness] dos seus
adeptos ... Para espanto de todo o mundo civilizado, ele pode estar pronto
a ajudar na sua própria perseguição e a assinar a sua própria sentença de
morte para que a sua posição como membro do movimento não seja
tocada ... Identificação com o movimento e conformismo total parecem ter
destruído a própria capacidade para a experiência, mesmo as mais
extremas como a tortura ou o medo da morte. ,, 243
Entretanto, Arendt nunca deixa de estabelecer a distinção entre
pensamento, acção e juízo, ainda que se possa vislumbrar o juízo como
uma ponte entre o primeiro e a segunda. Certo, contudo, é qu·e nem o
pensamento é juízo, nem o juízo é acção, pelo que o ideal da união entre
teoria e prática é rejeitado e, além disso, considerado perigoso, uma vez
que reforça a concepção instrumental da acção enquanto um meio pelo
qual um determinado fim posto pela razão seria realizado.
Eichmann nunca alterou a sua história. Provavelmente não o podia
fazer. A sua memória era alheia à experiência, à razão, à informação de
qualquer tipo. Assim, " era como se naqueles últimos momentos estivesse
a recapitular a lição que este longo caminho de humana perversidade nos
tinha ensinado- a lição da terrível, desafiadora- das- palavras- e- do-
244
pensamento, banalidade do ma[.,,

Se alguma resposta existe para a violenta polémica que Eichmann


em Jerusalém suscitou, ela encontra-se em Verdade e Política: «O seu
objectivo é clarificar dois problemas diferentes, ainda que intimamente
ligados, de que não tivera consciência antes, e cuja importância parece
ultrapassar as circunstâncias daquela polémica. O primeiro diz respeito à

243
OT fii, p.205
244
EJ, p. 252
108

questão de saber se é sempre legítimo dizer a verdade- acreditaria, sem


reservas, no 'fiat veritas, et pereat mundus'? O segundo nasceu da
espantosa quantidade de mentiras utilizadas na ' polémica'- mentiras sobre
aquilo que eu escrevera, por um lado, e sobre os factos que relatara, por
outro. »245
São duas as questões maiores com que nos confrontamos: a de
saber, por um lado, que espécie de realidade tem a verdade se não tem
poder no domínio público, esse domínio que, mais do que qualquer outro,
garante a realidade da existência dos humanos que nele nascem, vivem e
morrem; a de avaliar, por outro, se uma verdade impotente é ou não tão
desprezível como um poder despreocupado com a verdade.
É política a questão que anima Arendt, mais do que filosófica ou
moral e, nesta medida, interessa deslocar o debate para o terreno das
verdades de facto , porquanto «OS factos e os acontecimentos- que são
sempre engendrados pelos homens vivendo e agindo em conjunto-
246
constituem a própria textura do domínio político.,
«Historicamente- escreve Arendt- o conflito entre a verdade e a
política surge de dois modos de vida diametralmente opostos- a vida do
filósofo tal como foi inicialmente interpretada por Parménides e em
247
seguida por Platão, e o modo de vida do cidadão. » Daqui decorreu, por
um lado, que a ve rdade tenha sido tradicionalmente entendida como
apanágio do filósofo que, conviva das ideias eternas, fazia derivar delas os
princípios susceptíveis de estabilizar os assuntos humanos; e, por outro,
que ao cidadão, absorvido nos assuntos humanos, deles mesmos em
constante mudança, cabia apenas a opinião. Os traços deste conflito entre
verdade e opinião far-se-iam observar muitos séculos passados sobre o
Górgias , de Platão, que no-lo apresentava enquanto «antagonismo entre
comunicação sobre a forma de 'diálogo' , discurso apropriado à verdade

245 VP, p.8


246
Op. cit., pp.14-15
247
Op. ci t., p. 17
109

filosófica, e a comunicação sob a forma de 'retórica', at ravés da qual o


demagogo, como o diríamos hoje, persuade a multidão .,, 248
Passar da verdade à opinião coincide, assim, com a passagem do
singular - a filosofia política platónica, de pendor francamente tirânico
assenta na desconfiança relativamente à possibilidade da verdade poder vir
das massas- ao plural. Hoje, numa época em que, como nunca antes, é
tolerada a diversidade da opinião, poderíamos ser levados a concluir pela
resolução desse conflito . «Estranhamente, no entanto, não é esse o caso,
pois o conflito entre a verdade de facto e a política ( ... ) tem- pelo menos
sob certos aspectos- traços muito semelhantes . ( .. . ) A verdade de facto,
quando l he sucede opor-se ao lucro e ao prazer de um dado grupo, é hoje
acolhida com uma hostilidade maior do que alguma vez foi. ( .. . ) O que
parece ainda mais perturbante é que as verdades de facto incómodas são
toleradas nos países livres, mas ao preço de serem muitas vezes,
249
consciente ou inconscientemente, transformadas em opiniões. »
Estamos, pois, perante um problema político de primeira ordem,
uma vez que é a realidade comum e efectiva que está em jogo. De algum
modo, insinua-se a suspeita de que a submissão à verdade de facto pode
constituir-se como uma atitude anti-política, o que, como se verá a seguir,
não surpreende senão aparentemente.
Com efeito, "considerada de um ponto de vista político, a verdade
tem um carácter despótico. Por isso ela é odiada pelos tiranos, que
temem, com razão, a concorrência de uma força coerciva que não podem
monopolizar; e goza de um estatuto relativamente precário aos olhos dos
governos que repousam sobre o consentimento e que dispensam a coerção.
Os factos estão para além do acordo e do consentimento, e toda a
discussão acerca deles- toda a troca de opiniões que se funda sobre uma
informação exacta- em nada contribuirá para o seu estabelecimento. Pode

248
Op. cit., p.l8
249
Op. cit., pp. 21-22
11 0

discutir-se uma opinião importuna, ( .. . ) mas os factos importunos têm a


exasperante tenacidade que nada pode abalar a não ser as mentiras puras
e simples. »250
Assim, pois, aquele que diz a verdade encontra-se, diz Arendt, numa
posição mais difícil do que o filósofo de Platão: pode não chegar a estar
em causa a sua sobrevivência, mas a sobrevivência da sua verdade, ao
contrário, está em risco, uma vez que «não apenas as afirmações factuais
não contêm princípios a partir dos quais os homens possam agir tornando-
os assim manifestos no mundo, mas também o seu próprio conteúdo se
recusa a esse género de verificação. Aquele que diz a verdade de facto, na
improvável eventualidade de querer arriscar a vida por um facto
particular, cometeria apenas uma espécie de erro. O que se tornaria
manifesto no seu acto seria a sua coragem, ou talvez a sua tenacidade,
mas não a verdade do que ele tinha a dizer, nem mesmo a sua boa fé. ,, 251
Com efeito, só a mentira é uma forma de acção, porquanto
pretende mudar a narrativa da história e, assim, de certo modo, o próprio
mundo. A simples narração dos factos, em contrapartida, não leva a
nenhum tipo de acção a não ser na situação extrema de uma comunidade
inteiramente submersa pela mentira organizada: «Onde toda a gente
mente sobre tudo o que é importante, aquele que diz a verdade, quer o
saiba ou não, começou a agir; também ele se envolveu no trabalho
político, pois, no improvável caso de sobreviver, deu um primeiro passo
para a mudança do mundo. ,,252
Há, ainda assim, uma diferença sensível entre a mentira t radicional
e a mentira moderna : aquela implicava apenas particulares e não
pretendia enganar senão o inimigo; esta, por seu turno, assenta no engano
de si próprio como instrumento indispens~vel à fabricação de imagens, que
é, em si mesmo, pior do que o engano dos outros, uma vez que << O

250
Op. cit., p. 28
251
Op. cit., p. 39
252
Op. cit. , p. 42
II I

resultado de uma substituição coerente e total de mentiras à verdade de


facto não é as mentiras passarem a ser aceites como verdade, nem que a
verdade seja difamada como mentira, mas que o sentido através do qual
nos orientamos no mundo real- e a categoria da verdade relativamente à
falsidade conta-se entre os recursos mentais para prosseguir esse
objectivo- fique destruído. ,, 253
A experiência deste estremecimento é o que encontramos sob a
dominação totalitária e, assim, "a atitude política em relação aos factos
deve seguir o caminho muito estreito que existe entre o perigo de os tomar
como resultado de qualquer desenvolvimento necessário que os homens
não podem impedir, e sobre o qual não podem ter, pois, qualquer
influência, e o perigo de os negar, ou tentar eliminar do mundo,
manipulando-os. » 254
Em suma, a função política do historiador, do romancista, do
contador de histórias, é a de ensinar a aceitar as coisas como elas são. Só
numa concepção puramente utilitária da política, portanto, que desvirtua
a humanidade desta forma, porventura a mais excelente, de acção, pode a
men tira estabelecer ou salvaguardar as condições da procura da verdade;
só numa concepção utili tá ria da política, enfim, podem as mentiras,
"precisamente porque são muitas vezes utilizadas como substitutos de

253
Op. cit., p. SI
ROVIELLO, Anne-Mari e- Op. c it. , pp. I 38-139: «A fé na veracidade dos testemunhos, que parte do
pressuposto de que esses testemunhos têm sentido, deve ser considerada uma razão suficiente para as
verdades de facto qu e não podem ser submet idas à veri ficação dos sent idos ou à demonstração
racional. Arendt recupera a ideia escoti sta de uma fides acquisita ideia que, aliás, também
encontramos no jovem Kant, e que prefigura a ideia transcendental do Gemeinsinn que o fi lósofo
define como o pressuposto de um 'contrato originário' no qual cada indivíd~o se te ria comprometido
a respeitar a máx ima da com unicabili dade e, portanto, da veracidade. (...) E essa fé adqu irida que é
arruinada pelo sistema t otali tário, o qual torna real aquilo que não tem sentido para o homem. A
própria fiabilidade do real, condição para os testemunhos sobre o real, é destruída. E só
aparentemente existe uma contradi ção entre essa dúvida radical e a 'fé' ingénua na rea lização de
todas as profec ias dos chefes totalitários. Esta fé no poder de uma qualquer ficção se tornar real, é o
reverso da perda da fé num a realidade capaz de res isti r ao poder da pu ra ficção.»
254
VP, p.53
112

meios mais violentos, ( ... ) ser consideradas como instrumentos


relativamente inofensivos do arsenal da acção política .,/55
Assim , portanto, «nenhum mundo humano destinado a durar mais
tempo que a breve vida dos mortais nele, poderá alguma vez sobreviver
sem homens que queiram fazer o que Heródoto foi o primeiro a
empreender conscientemente- a saber, ÀEyEtv •a wv'ta, dizer o que é., 256

Termino, enfim, com o comentário de Arendt sobre Peter Bamm,


um médico alemão, que afirmara: ,, 'Nós sabíamos disto. Não fizemos
nada. ( ... ) Está entre os refinamentos dos governos totalitários do nosso
século não permitirem aos seus oponentes morrer uma morte grande,
dramática de mártir, pelas suas convicções. (.. . ) Nenhum de nós tinha uma
convicção tão arraigada que nos levasse a um sacrifício inútil em nome de
um significado moral mais alto.' Escusado será dizer- escreve Arendt- que
o autor continua a leste do vazio da sua muito enfatizada 'decência' na
falta do que chama 'um significado moral mais alto'. É verdade que a
dominação totalitária tentou estabelecer estes buracos de esquecimento
em que todos os feitos, bons e maus, desapareceriam (...). (Mas] os buracos
de esquecimento não existem . Nada humano é tão perfeito e há pessoas
demais no mundo para tornar o esquecimento possível . Um homem ficará
sempre vivo para contar a história . Por isso, nada pode ser alguma vez
'inútil do ponto de vista prático' , pelo menos não a longo prazo. (... )
Politicamen te falando , sob condições de terror quase todos vão obedecer,
mas alguns não. Humanamente falando, não se pede mais para que este
257
planeta continue um lugar próprio para a habitação humana . »

255
Op. cit., p.ll
256
Op. cit., p.1 2
257
EJ, pp.23 1-32
113

4. Os campos como mal radical

'' Se é verdade que os campos de concentração são a


mais consequente instituição da regra totalitária,
'insistir nos horrores' pareceria indispensável para a
compreensão do t otalitarismo. Mas a recolha não
pode fazer isto, tal como o não pode o relato
incomunicativo das vítimas. Em ambos os géne ros há
uma tendência inerente para fugir da
experiência . .. ,

Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo

Instituição decisiva, os campos desafiam o senso-comum, corporizam


um fenómeno que não se deixa circunscrever pelas categorias tradicionais
de explicação 258 e cuja essência - o terror ele mesmo - importa analisar.
Inenarrável por definição, o universo concentracionário «Serve de
laboratório em que a crença fundamental do totalitarismo- tudo é possível-
se encontra verificada. >> 259 O pior dos males, mostrá-to-ei, não consiste no
assassínio em massa - « a morte não é senão um mal menor. O assassino que
mata um homem ( ... ) move-se ainda no domínio da vida e da morte que
nos é familiar. ( ... ) O assassino deixa um cadáver atrás de si e não finge
que a sua vítima nunca existiu ( ... ). Ele destrói uma vida, mas não o facto
da própria existência. >> 260 O summum mal um é, então, a demonstração de
que não há limites para o poder humano, nem nada de permanente no que

258
CHAUMONT, Jean-Michel- A singularidade do universo concentracionário segundo Hannah
Arendt, in Hannah Arendt et la Modernité, p. 89 «Pode-se dizer que para ela, não é tanto o
extermínio, e ainda menos o genocídio dos judeus, que representa um acontecimento sem
precedentes, senão a própria instituição concentracionária, tanto na Alemanha nazi como na Rússia
comunista. A partir daí o problema da 'si ngularidade do extermínio dos Judeus pelo regime nazi' não
constituía verdadeiramente um problema: nem esta singularidade, nem mesmo a dos 'crimes e
genocídio nazis' mas antes a dos 'crimes totalitários' parecia-lhe à época cientificamente pertinente e
~oli ticam ente importante de estabelecer.»
59
OT III, p.l73
260
Op. cit., p. 179
114

toca a dignidade humana 261 . Com efeito, " se levarmos a sério as


aspirações totalitárias, e se nos recusarmos a deixar levar pelo que afirma
delas o bom senso- que são utópicas e irrealizáveis- vere mos que a
sociedade da morte instituída nos campos é a única forma de soci edade em
que se torna possível dominar inteiramente o homem. ,, 262

Ora, «dominar inteiramente o homem ,, implica, antes de mais, a


eliminação, tão sistemática quanto metódica, dos espaços de liberdade
que a capacidade para a acção - enquanto decorrente da pluralidade
humana mesma - solicita. Só «Um Homem de dimensões gigantescas,, pode
dar livre curso à lógica da ideia que os campos concretizam , na sua
máxima expressão. Com efeito, " em comparação com a demência do
resultado final- a sociedade concentracionária- o processo pelo qual os
homens são preparados para este fim, os métodos usados para adaptar os
indivíduos a este estado de coisas, são límpidos e lógicos. A fabricação
massiva e demencial de cadáveres e precedida pela preparação
historicamente e politicamente inteligível de cadáveres vivos. ,, 263

A dominação total, o mal radical sem ,,grandeza satânica,, 264 ,


efectua-se em três momentos:

261
VILLA, Dana R.- Op. cit., p. 31: «A li ção a retirar dos campos não é a de que o homem animal
moral nunca existiu realmente( ... ) mas a de que não existe uma natureza indelével em que possamos
apoiar-nos como garantia de que experiências semelhantes não acontecerão no futuro.»
262
OT III, p. 195
263
Op. cit., p. 185
264 BERNSTEIN, Richard J. - Op. cit., p. 150: «Porque 'grandeza satânica' é, ela própria, uma

categoria humana - demasiado humana. O mal radical do total itarismo não pode ser nem mitificado,
nem esteticizado. (... ] Jaspers cri tica Arendt por chegar quase a enveredar pelo 'caminho da poesia'
ao descrever os crimes nazis. 'Da maneira como o exprime, quase toma o camin ho da poesia. E um
Shakespear nunca seria capaz de dar forma adequada a este material - o seu sentido estético instintivo
fa ls ificá-lo-ia -e é por isso que não o podia tentar.'(C, 62) A referência de Jaspers a Shakespear é
esclarecedora, porque foi Shakespear que criou alguns dos maiores e irresistíveis personagens
exemplificadores de 'grandeza satânica'. [ ... ] Porque as construções retóricas [de Arendt] s ugerem
que a alternativa à banalidade do mal é o mal que é teológica e esteticamente caracterizado como
'grandeza satân ica', podemos ser enganosamente levados a pensar que ela identifica mal radical com
grandeza satânica. Assim, numa das suas primeiras tentativas de explicar e clarifi car o que quer dizer
quando fala de banalidade do mal, escreveu: ' Eichmann não era lago nem Macbeth. [... ] Era pura
11 5

homicidio da pessoa jurídica: pela abolição dos direitos civis e políticos de


toda a população, muito antes dos campos, esta primeira fase caracteriza-
se pela produção de apátridas, pela colocação de categorias inteiras de
pessoas fora da protecção da lei, e culmina com a prisão de indivíduos
inocentes 265 , cobaias ideais para a experiência de abolição da pessoa
jurídica, pelo que " à amálgama dos det idos políticos e crim inosos, pela
qual começaram os campos de concentração na Rússia e na Alemanha, se
juntou muito rapidamente um terceiro elemento, que em breve se tornaria
maioritári o (... ): pessoas de que nenhum acto podia motivar a prisão, nem
aos seus próprios olhos nem aos olhos dos seus carrascos.,266 . Deste modo,
só o aparecimento deste terceiro elemento torna o contraste entre os
campos e o sistema penal evidente, porquanto a inicial presença de
criminosos e prisioneiros políticos- «Ultima concessão ao senso comum,,- o
diluía. Estas duas categorias de prisioneiros, com efeito, favoreciam a
impressão de que os campos puniam comporta mentos susceptíveis de
castigo, e só a presença dos inteiramente inocentes ma rca os campos como
a verdadeira instituição central do totalitarismo267 . Como se pode ler em
La Nature du Totalitarisme, ,, O medo torna-se sem objecto a partir do
momento em que a escolha das vítimas se encontra total mente liberta de
qua lquer re lação com os pensamentos ou acções dos indivíduos. Se o medo
e, inequivocamente, a tonalidade absoluta domi nante dos países
totalitários, já não pode servir de guia para acções partic ulares: deixou de

ausência de pensamento - algo de modo algum semelhante à estupidez - que o predispôs a tornar-se
num dos maiores criminosos daquele período(EJ, 287)'»
265
CHAUMONT, Jean-Michel- Op. ci t., p. 93: «Este princípio de des-ligação sistemática entre os
actos e os acontecimentos será uma das constantes mais intoleráve is da ex istência no seio dos campos
( .. .) Erigida em lei suprema de existência, este arbitrário pressupunha a destru ição dos verdadeiros
d ire itos dos homens, por um lado, e permitia, por outro, assegurar a renovação do 'stock de pessoas
susceptíveis de serem enviadas para os campos' .»
266
OT III, p.l86
267
ROV IELLO, Anne-Marie - Op. cit., p.l66: « A ameaça fu ndamental que pesa sobre esses
indivíduos cuja existênc ia, actos e palavras, não dependem de nenhuma jurisdição, reside no facto de
a sua exclusão do niundo jurídico-politico 'ser como um convite ao homicíd io'. Efect ivamente, esse
hom icídio é sem consequências para o assassino, visto que ele mata alguém cuja existência não é
reconhecida por nenhuma lei . Do ponto de vista jurídico, o homicídio pura e simplesmente não
aco nteceu.>>
116

ser um princípio de acção. A tirania totalitária é sem precedente na


medida em que introduz um imenso movimento na calma dos cemitérios e
confunde os homens no deserto do isolamento e da atomização. , 268
O sistema concentracionário constitui, pois, um universo separado do
sistema penal norma l, condição de possibilidade da afirmação da
arbitrariedade mesma, característica do poder absoluto269 • Assim, pois, «O

objectivo de um sistema arbitrário é destruir os direitos civis de toda uma


população, que em última instância se torn ou tão fora-da-lei nos seus
próprios países como os sem-Estado e os sem abri go. A destruição dos
direitos do Homem e o assassínio, nele, da pessoa jurídica, são o pré-
requisito para o dominar totalmente (... ) e isto aplica-se a qualquer270
habitante de um Estado totalitário., 271 Antes, pois, de vermos o direito à
vida ameaçado, há todo um longo e razoavelmente lento processo a
percorrer.
Com efeito, " até os Nazis começaram o seu extermínio dos judeus
privando-os, primeiro, do seu estatuto legal (o estatuto de cidadãos de
segunda classe) e cortando-os do mundo dos vivos agrupando-os em guetos
e campos de concentração; e antes de terem posto as câmaras de gás em

268
NT, p. 106
269
VILLA, Dana R.- Op. cit., p.23: « Há e tem de haver um abismo entre o sistema dos campos de
concentração e o sistema penal; de outro modo, uma irredutível remanescência do sujeito jurídico é
preservada e a poss ibilidade de poder incontido vedada.»
270
É de salientar- a nota e o sublinhado são meus- a insistência de Arendt, não tanto na especificidade
das vítimas, mas na s ua comum inocência. Com efeito, mais do que reflectir sobre os grupos
particulares escolhidos para a experiência da dominação total, interessa-lhe acentuar q ue o uni verso
concentracionário determ ina a possibilidade de um mundo que se abre ao disen franchisement do
homem, continuado e total. Esta insistência, recorrente em O Sistema Totalitário, encontramo-la
também em Eichmann em Jerusalém, quando recusa a denúncia dos 'crimes contra os Judeus',
sustentada pela acusação.
CHAUMONT, Jean-Michel - Op. cit., p. 106-1 07: « Quando Arendt diz temer os efeitos de uma
focali zação sobre o facto dajudeidade das vítimas, é verosím il que ela esteja a reagi r nomeadamente
contra esses banalizadores que, no próprio interior da comunidade j udaica, inscrevem sem mais as
câmaras de gás como um novo episódio numa história sempre repetida de perseguições. Ora, Arendt
tinha neste ponto argumentos fortes a opor. Primeiro, dizia ela, os judeus não foram as únicas víti mas
das câmaras de gás( .. .). Seguidamente, Arendt acred itava firmemente que se a Alemanha naz i tivesse
sido vitoriosa, outras categorias de vítimas teriam sido exterminadas. ( .. .) Fina lmente, ela insistia com
justiça em di stinguir o extermínio dos judeus pelos nazis de outros crimes sofridos pelos judeus
anteriormente faze ndo valer o carácter sem precedente das suas práticas extermi nadoras.»
27 1
OT III, p. l90
117

acção, testaram cuidadosamente o chão que pisavam e descobriram, para


sua satisf ação, que nenhum país reclamaria est as pessoas. O ponto é que
uma condição de completa ausência de direitos foi criada antes que o
direito à vida fosse desafiado.,, 272 ;
273
homicídio da pessoa moral "Aí procede-se tornando de um modo geral,
:

e pela pri meira vez na história, o martírio impossível, 274 ; determinante no


processo de prod ução de mortos-vivos, esta segunda fase organiza o
esquecimento, e «O verdadeiro horror dos campos de concentração e de
ext ermín io reside em que os prisioneiros, mesmo se l hes acontece escapar,
são cort ados do mundo dos vivos muito mais claramente do que se
estivessem mort os; é que o terror impõe o esquecimento. , 275
Inviabilizando o martírio, torna-se a morte anónima e in-
signi ficante276, como se fosse possível prolongá -la indefinidamente e assim
esvazi á-la, tanto quant o ao próprio facto de estar vivo, de sentido . Escreve
Arendt: " Os campos de concentração, tornando a própria morte anónima
(fazendo com que seja impossível saber se um prisioneiro está morto ou
vivo), despem a morte da sua significação: o termo de uma vida cumprida.
Em ce rto senti do, eles despossuiam o indivíduo da sua própria morte,
provando que a partir daquele momento nada lhe pertencia e que ele não
pertencia a ni nguém. A sua morte limitava-se a confi rmar o facto de que
277
não tinha nunca verdadeiramente existido. ,

272
PHA, pp.36-37
273
VILLA, Dana R.- Op. c it., p.24: «A 'pessoa moral ' não é nem o sujeito lega l de direitos, nem o
concreto, único ind ivíduo humano. Talvez a aproximação mais correcta do que Arendt quer dizer seja
dada pela ideia de actuação conscienciosa ou moral. Ser um agente consciencioso requer um
ambiente no qual a acção moral não é nem suicida nem sem sentido. Mas o mundo dos campos
destrói os pressupostos de um tal ambiente.»
274
OT III, p. 191
275
Op. cit., p.1 80
276 VILLA, Dana R.- Op. cit., p. 19: « A morte no mundo conduz à recordação da aparência

distintiva, em palavras e actos, do fa lec ido. Viver e morrer nos campos, contudo, é ser privado da
aparência no mundo, é ser absolutamente apagado da esfera das aparências e (portanto) da memória.
Aqui , a morte já não é nossa.»
277
OT III, p. 191
118

Caminhamos, nesse momento, para o adormecimento da consciência,


que se tornou inadequada ou irrelevante: " um homem é confrontado com
a alternativa de trair e, portanto matar os seus amigos, ou de mandar a
sua mulher e fil hos, pelos quais é, em todos os sentidos, responsável, para
. E e' es t a com bmaçao
278 . - d e d esesperança e anommato
.
t . .. "
a more que,
inelutavelmente , co ntri buirá para o aniquilamento do indivíduo enquanto
sujeito de juízo e de iniciativa. A radical solidão marca, portanto, este
segundo passo, determinando a singular atmosfera de i rrealidade a que já
se referiu279 •
Em grande medida graças ao princípio da delegação de poder a
certos detidos, a solidariedade torna-se impossível; impedidas de escolher
entre o bem e o mal, as vítimas sentem-se culpadas e cúmplices dos feitos
dos carrascos - " o importan t e não é somente que o ódio seja desvi ado dos
culpados (os kapos eram mais odiados do que os 5.5.) mas que a linha de
demarcação entre perseguidor e persegui do, entre o assassino e a sua
vítima, seja constantemente esbatida.,
28
° Conseguida a resignação
absoluta, só uma questão se coloca ainda- a da sobrevivência;
homicídio da identidade única de cada um 281 : fase final de
desumanização, engendra-se neste ponto «Um horror que eclipsa
largament e o atentado à pessoa jurídica e o desespero da pessoa moral, 282
e desvela-se a demência radical de todo o processo283 : ,, Trata-se de

278
Op. cit., p.l92
279
ROVIELLO, Anne-Marie- Op. cit., p. 126: «A pluralidade é deste modo pervertida, transforma-se
numa atomização; o indivíduo deixa de receber dos o utros a revelação de 'quem' ele é. A ruptura do
contacto com o mundo, a ruptura da com unicação com os outros, provoca a ruptura do contacto
consigo próprio ( ...) tendo como pano de fundo a sua inserção no mundo comum, que lhe garante a
integridade pessoal.»
280
OT III, p.l 92
281
YILLA, Dana R.- Op. cit., p. 27: « Seguindo a destruição dos direitos e da consciência, a
experiê ncia totalitária na dominação total foca as suas energias disciplinares no materia l reca lcitrante
do próprio indivíduo. ( .. .) Desde o uso de carros de transporte de gado até à raspagem das cabeças,
falta de roupa suficiente, descanso ou comida, e labor fis ico extenuante, os campos eram máquinas
g igantescas para a manipu lação do corpo hu mano , apelando às ' infinitas possibilidades de
sofrimento' como meio para demolir as últimas reservas de personalidade e espontaneidade.»
282
OT III, p. 194
283
YILLA, Dana R.- Op. cit., p. 20: «Porque só quando os seres humanos interiorizaram a sua própria
superfluidade, quando se submeteram em silêncio ao poder, é que a aspiração totalitária se torna
119

manipular o corpo humano, com as suas infinitas possibilidades de sofrer,


de modo a destruir a pessoa humana tão inexoravelmente como certas
doenças mentais de origem orgânica. » 284 A dor assume aqui, de resto, uma
relevância que não podemos descuidar. Com efeito, "a sensação mais
intensa que conhecemos, intensa a ponto de apagar todas as outras
experiências, quer dizer, a experiência da dor física agu da, é ao mesmo
tempo a mais privada e a menos comunicável de todas . Talvez não seja só
a única experiência que somos incapazes de transform ar num aspecto
adequado para a apresentação pública, mas além disso tira-nos a sensação
da realidade [em extremo] ., 285
O indivíduo é, agora, apenas um «feixe de reacções,, momento de
triunfo do sistema, uma vez que «destruir a individualidade é destruir a
espontaneidade, o poder que o homem tem de começar algo de novo a
partir dos seus próprios recursos, algo que não se pode explicar a partir de
reacções ao meio ambiente e aos acontecimentos., 286 Com efeito, e como
se mostrou, a individualidade, entendida como capacidade para iniciar algo
de novo287 , está para além do automatismo dos processos naturais e do
mero comportamento. É, pois, a capacidade humana para a liberdade
moral, para a espontaneidade mesma, que está em causa 288 : " O que torna
ridículas e perigosas quaisquer convicções e opiniões, em situação
totalitária, é que os regimes totalitários tiram o seu maior orgulho do facto

realizável. Assim, os campos de concentração e o doutrinamento ideológico são 'experi ênc ias' em
dominação que apontam a uma forma qualitativamente nova. São experi ências não no medo em si,
mas em pôr à prova os limites da plasticidade humana.»
284
OT III, p. 193
285
CH, p. 60
286
OT III, p.l95
287
VILLA, Dana R.- Op. cit.; p.1 3: « Privados desta capacidade, atirados para um mundo onde
experienciavam a sua própri a superfluidade como uma realidade diária, horária mesmo, as vítimas do
terror totalitário apresentavam-se a Arendt como a mais palpável evidência imaginável de que os
seres humanos podiam ser transformados em 'animais pervertidos' através das novas artes da
dom inação total. »
288
ROVIELLO, Anne-Marie- Op. cit., p. 165: « Criar um homem novo equiva le portanto a criar o
não-humano, destru indo aqui lo que em cada indivíduo excede a 'espécie humana'. No sistema
totalitário esse mais torna-se demasiado. É o próprio indivíduo que está a mais.»
120

de não terem necessidade delas, nem de nenhuma forma de apoio humano.


Os homens, na medida em que são mais do que a reacção animal e que a
realização de funções, são absolutamente supérfluos para os regimes
totalitários . O totalitarismo não tende para um reino despótico sobre os
homens, mas para um sistema no qual os homens estão a mais . O poder
total não pode ser atingido e preservado senão num mundo de reflexos
condicionados, de marionetes que não apresentam o mínimo sinal de
espontaneidade. ,, 289
Ora, é precisamente na condição de conseguir reduzir o indivíduo a
essa «marionete de rosto humano, , a «animal pervertido,, a simples coisa,
290
que se cumpre o objectivo da dominação total : organizar a pluralidade
291
dos seres humanos como se estes não constituíssem senão um indivíduo
- «O problem a é fabricar qualquer coisa que não exi ste: a saber, um tipo
de espécie humana que se assem elha às outras espécies animais e cuja
292
t liberd ade' consisti ria em t conservar a espécie' .,

Um último aspecto merece a nossa atenção : a aparente2 93 inutilidade


dos campos. Por um lado, porque não foram criados com o objectivo da
produtividade - " qualquer que seja o trabalho aí realizado, el e t eria sido

289
OT III, p. 197
290
ROVIELLO, Anne-Marie- Op. c it., p. 167: « Aqui lo que é consumado com a destruição da
personalidade psíquica, mas que já se inicia com a destruição da personal idade juríd ica, é a destruição
do que Arendt des igna noutro texto por 'q uem ': a fonte interior própria a cada ind ivíduo, que se
m anifesta por meio de actos e palavras, mas também por comportamentos e, talvez, antes de m ais
nada, por uma fis ionomia, pela express ivi dade de um rosto.»
BER.i"'STEIN, Richard J. - Op. c it., p. 97: «A dominação total envolve matar a pessoa juríd ica, a
pessoa moral e obliterar a co nsciência. Mas há um sentido segundo o qual a própri a expressão
'dominação total' é enganadora. Porque sugere que a dom inação total é dom inação sobre seres
humanos. Mas o tot alitari smo não para no 'domínio despótico sobre os homens' . A ' lógica' do
tota litaris mo luta pela produção de um sistema no qual os homens são supéifluos.»
29 1
VILLA, Dana- O p. cit., p. 187: « Por outras palavras, o 'aperfe içoamento ' da espécie humana
impli ca a destruição da humanidade, como concei to, tanto quanto como a real idade fenomenol ógica
de indivíduos ún icos.»
292
OT III, p. l 73
293 Os campos são, convém insistir, a institui ção centra l dos regimes totali tári os e condi ção da sua

p erm anência. Tal como escreve em Op. cit., p. 196: « A inutilidade dos campos, a co nfi ssão cínica da
sua ant i-uti li dade, não são senão uma aparência . Na real idade, e les são mais úteis à salvaguarda do
poder do regime do que qualquer uma das suas outras instituições.»
121

bem melhor e com menos custos em condições diferentes. ,, 294 E é também


em virtude da sua inutilidade no plano económico que os horrores aí
cometidos adquirem contornos verdadeiramente inacredi táveis - " por
outras palavras, não é só o carácter não-utilitário dos próprios campos - o
absurdo de 'punir' pessoas totalmente inocentes, a incapacidade de lhes
extorquir trabalhos úteis em certas condições de vida , a inutilidade de
aterrorizar uma população já completamente submetida - que confere aos
campos as suas qualidades particulares e perturbadoras, mas sim a sua
função anti-utilitária, o próprio facto de que as urgências prioritárias das
actividades militares não pudessem interferir com estas 'políticas
demográficas '. Tudo se passava como se a gestão dest as fábricas de
extermínio importasse mais aos nazis do que o facto de ganhar a guerra.
( . .. ) A extraordinária dificuldade que experimentamos em compreender a
instituição dos campos de concentração e em encontrar-l he um lugar na
memória da história humana, vem precisamente da f alta de tais critérios
utilitários, falta que , mais do que qualquer outra coisa, é responsável pelo
aspecto irreal que rodeia esta instituição e tudo o que se lhe relaciona. ,, 295
É a esta global atmosfera de irrealidade e delírio, portanto, que se
furta à tentativa de descrição, que parecem adequar-se as metáforas
usadas na caracterização da vid a post mortem: o Hades, onde se
aglomeram refugiados, apátridas e desempregados; o Purgatório, onde
penam os condenados ao trabalho f orçado na União Sovi ética, e o Inferno,
com os campos nazis. Pel a sua dramática eloquênci a, pelo esforço de dizer
o «mundo da agoni a,, que escapa, pela sua natureza mesma, ao domínio do
discurso humano, remeto para as palavras da nossa autora: " Eis os factos :

294
Op. c it., p. 182
295
AJ, pp. 204-205
BE RNSTEIN, Richard J.- Op. cit., p. 92 : «Para indicar quão anti- utilitária e irracional a maquinaria
de extermínio parece ser, podemos cons iderar o exemplo dos judeus húngaros. Na Pri mavera e Verão
de 1944, era bastante c laro que os nazis estavam a perder a guerra. Não só est avam a perder a guerra
como necessitavam desesperadamente de todas as fo ntes di spon íveis para se defenderem a si próprios
em duas frentes. Contudo, nenhum esforço foi poupado para transportar j udeus húngaros para os
campos de extermínio. No Outono de I 944, 400.000 j udeus tinham sido enviados para a morte.»
122

seis milhões de judeus, seis milhões de seres humanos foram arrastados


para a morte sem que pudessem defender-se. O método utilizado foi o
aumento do te rror. Houve, antes de mais, a negligência calculada, as
privações e a humilhação, quando aqueles que eram de frágil constituição
física morriam ao mesmo tempo que aqueles que eram suficientemente
fortes e rebeldes para se matarem. Veio a seguir a fome , à qual se juntou
o traba lho forçado: as pessoas morriam aos milhares, mas a um ritmo
diferente, segundo a sua resistência . Depois vieram as fábri cas da morte e
todos morreram juntos: jovens e velhos, fracos e fortes, doentes e sãos;
morreram não na qualidade de indivíduos, quer dizer, de mulheres e de
homens, de cri anças ou adultos, de rapazes e de raparigas, bons ou maus,
belos ou feios, mas foram reduzidos ao mais pequeno denominador comum
da vi da orgânica, mergulhados no abismo mais sombrio e profundo da
igual dade primeira; morreram como animais, como coisas que não tinham
corpo nem alma, nem mesmo um rosto sobre o qual a morte poderia ter
posto o seu sinal. É nesta igualdade monstruosa, sem fraternidade nem
humanidade, - uma igualdade que os gatos e os cães poderiam ter
partilhado - que vemos, como se aí se reflectisse , a imagem do lnferno ." 296
Um Inferno, portanto, que já não é metáfora dos nossos piores receios,
mas antes a constatação de que a experiência concreta de um inferno
terreno deixou de ser, precisamente, uma metáfora.

Cabe lembrar, enfim, que o processo de dominação total, enquanto


sistema que estabelece a absoluta superfluidade humana, encontra a sua
diferença específica no facto de ser continuamente repetível e não se
dirigir a nenhum grupo particular, pelo que se encontra plenamente

296
AJ, p. l 52
BERNSTEIN, Richard J. - Op. cit., p. 99: «Foi descendo ao Inferno, para o abismo que se ti nha
aberto, foi 'insisti ndo nos horrores' dos campos de concentração, que Arendt pôde ver tão
lucidamente o que é fu ndamental e vital para a acção,para a política e para viver uma vida humana. A
isto era o que o seu mentor, Karl Jaspers, teria chamado uma desses 'experiências-limite' que nos
permitem quebrar com os clichês, os preconceitos do senso-comum e por aí descobrir o que de outro
m odo não discerniríamos- o que é constituti vo da nossa humanidade.»
123

justificada a reflexão arendtiana sobre as condições que, no mundo


contemporâneo, podem proporcionar a sua reactivação 297 : ,, [Há uma
possibilidade] bastante desconfortável, mas dificilmente negável, de que
crimes semelhantes possam ser cometidos no futuro. As razões desta
sinistra possibilidade são gerais e particulares. Está na própria natureza das
coisas humanas que qualquer acto que tenha aparecido uma vez e gravado
na história do género humano, fique com o género humano como uma
potencialidade muito depois da sua actualidade se ter tornado uma coisa
do passado. ,, 298 Disto se dará conta no capítulo a seguir.

297
KATEB, George- Op. cit., p. 150: « Podemos insistir no carácter único do totalitarismo enquanto
genocídio metód ico e legal e ainda assim compreender que nas experiências que lhe prepararam o
caminho, e nas experiências que as suas vítimas sofreram, podemos encontrar semelhanças com
outros horrores da vida moderna. Arendt não insiste no facto de que as experiências que prepararam o
caminho são terríveis apenas porque prepararam o caminho. Nem sugere que as experiências da
desumanização podem acontecer apenas nos campos de morte ou numa vida diária aterrorizada pela
ditadura totalitária. Apesar do totalitarismo ser uma resposta sistemática a uma dada situação
histórica, elementos dessa situação estão por todo o lado, à nossa vo lta, e são passiveis de continuar e
até piorar. De modo similar, elementos da resposta totalitária podem emanci par-se do sistema e
aparecer e reaparecer em várias combinações. Arendt sustenta que o totalitarismo não poderia ter
surgido a não ser que um grande numero de pessoas civilizadas sentissem profundamente que eram
s upérfluas, ou abandonadas e perdidas, ou perdidas e sem significado. Mas certamente estes
senti mentos nunca estão fora de causa ou da consciência no mundo moderno.»
298
EJ, p. 273
124

CAP. 11
DO DESERTO

Em jeito de conclusão

É possivel, neste momento, dizer com Arendt: « Conclusão: o que


observámos poderia igualmente ser descrito como a perda crescente de
mundo, a desaparição do entre-dois. Trata-se da extensão do deserto, e o
deserto é o mundo nas condições do qual nos movemos. ,, 299
O deserto é, então, o espaço politicamente desorganizado, senão
mesmo vaporizado, não só pelas formas de dominação totalitária, como
também - e de uma forma porventura mais inquietante - pelas actuais
democracias de massa 300 •
Como Arendt salienta em A Condição Humana, ,,vivemos numa
sociedade de consumidores e, posto que ( .. . ) labor e consumo não são mais
do que duas etapas do mesmo processo, imposto ao homem pela
necessidade da vida, trata-se somente de outra maneira de dizer que
vivemos numa sociedade de laborantes., 301 Ora, como já se mostrou neste
trabalho (Capítulo 11 , 1.) , a capacidade humana para a vida no mundo
implica, sempre, a possibilidade de transcender os processos da vida, e,
neste ponto, a técnica tem tornado mais fácil a fadiga do labor, menos
penosa a necessidade. Com efeito, o que domina o processo do labor- a

299 QLP, p. IJ6


300
VILLA, Dana R. - Arendt and Heidegger,The Fale of the Politicai, pp. 269-270: «Desperta para
os perigos de um mundo pos-totalitário, tecnológico ( ... ) [Arendt] acentuou as profund as e
irrevogáveis consequências da perda de real idade da esfera pública. Esta perda é moldada pela
estrutura emergente da própria modernidade (a 'ascensão do soc ial'), e torna qualqu~r apelo d irecto à
praxis, o u à 'esfera pública', infi nitamente problemática, senão mesmo irónica. E precisamente a
impossibi lidade de uma esfera pública genuína da pos-modernidade ( ... )que leva Arendt a sublinhar o
agonismo sobre o consenso, a resistência sobre a docilidade, e as 'causas perdidas' do 'e spírito
revolucionário' sobre as políticas normalizadoras da democracia representativa. O seu ponto, como
críti ca do liberalismo (e da modernidade) é semel hante ao de Foucault: não é que tudo seja mau, mas
tudo é perigoso.»
301
CH, pp. 135-136
125

coordenação rítmica dos movimentos individuais, a noção mesma de


processo- encontra o seu expoente máximo nas máquinas, que
automatizam o processo do labor, entendamos, o processo da vida.
Contudo, " diferentemente da sociedade esclavagista, onde a
'maldição' da necessidade continuava a ser uma vívida realidade ( ... ), esta
condição já não está plenamente manifesta e a sua não-aparência tornou-a
mais difícil de observar e recordar. O perigo é claro. O homem não pode
ser livre se não sabe que está sujeito à necessidade, devido a que ganha
sempre a sua liberdade com as suas tentativas, nunca conseguidas por
inteiro, de se libertar da necessidade. , 302
É certo que a emancipação do labor e das classes laborantes
significou um progresso sensível em direcção à não-vio lência. Não se tirem,
ainda assim, conclusões precipitadamente optimistas: esse progresso não
abrangeu a liberdade e " nenhuma violência exercida pelo homem, excepto
a empregue na tortura, pode igualar a força natural que exerce a própria
necessidade. ,, 303
Ora, o perigo da automatização consiste, precisamente, em que o
processo da vida, no seu sempre repetido ciclo natural, se intensifique
enormemente, desta vez «sem dor nem esforço,, tornando mais mortal '' o
principal carácter da vida por relação ao mundo, que é desgastar a
durabilidade. ,, 304
A questão, por conseguinte, «não é tanto a de saber se somos donos
ou escravos das nossas máquinas, mas se estas ainda servem o mundo e as
suas coisas ou se, pelo contrário, ditas máquinas e o movimento
automático dos seus processos começaram a dominar e até a destruir o
mundo e as coisas . ,, 305

302
Op. c it. , p. 130
303
Op. cit., p. 137
304
Op. cit., p. 139
305
Op. cit., p. 170
126

A emancipação do labor, que devemos ao mundo moderno, teve por


consequência a nefasta usurpação da esfera pública pelo animal laborans;
ora, «enquanto o animal laborans continuar na posse dessa esfera, não
pode haver autêntica esfera pública, mas actividades privadas
abertamente manifestas. O resultado é aquilo a que chamamos com
eufemismo cultura de massas. , 306
Mais, a esperança marxista de que, conquistado o tempo livre, o
animal laborans pudesse finalmente tornar-se produtivo, dedicar-se a
actividades «mais elevadas·· 307 , revelou-se, afinal, uma ilusão: «O tempo de
ócio do animal laborans gasta-se sempre no consumo, e quanto mais tempo
livre lhe resta, mais ávidos e veementes são os seus apeti tes. ·· 308 A nossa
actual economia, em que a voracidade do consumo faz desaparecer as
coisas tão rapidamente como aparecem no mundo, é disso a mais
preocupante expressão.
A divisão do labor, por outro lado, ,,baseia-se no facto de que os
homens podem unir a sua força laboral e ' comportar-se mutuamente como
se fossem um'. Esta unidade é exactamente o contrário da cooperação,
indica a unidade da espécie a respeito da qual todo o membro é o mesmo e
309
intercambiável. ••
A superfluidade é, portanto, uma tendência das sociedades
modernas e, nesse sentido, o perigo sobrevive aos totalitarismos de Hitler
ou de Estaline 310 . «Em situação de radical alienação do mundo - escreve
em O conceito de História - nem a história nem a natureza são de algum

306
Op. cit., p. 140
307
BOWEN-MOORE, Patrícia- Op. cit., p. 127: «Em poucas palavras, Arendt argumenta, Marx não
só falhou em distinguir consistentemente entre labor e trabalho, como também indicou que a
'verdadeira esfera da liberdade' consistia no tempo de lazer no qual a criatividade de cada um pode
aparecer apenas após as exi gências da vida terem s ido superadas. Na perspectiva do homem
socializado a verdadeira liberdade é actividade produtiva entendida como actividade criativa.»
308
CH, p. 140
309
Op. cit., p. 132
°
31
CHAUMONT, Jean-Michel -Op. cit., p. 1O1« A sociedade de consumo de massa tende,
exactamente como os campos de concentração mas com uma notável economia de violência, a
transformar os indivíduos em espécimes indiferenciadas da espécie animal homem.»
127

modo concebíveis. Esta dupla perda de mundo - a perda da natureza e a


perda do artifício humano no seu sentido mais amplo, que incluiria toda a
história - deixou atrás de si uma sociedade de homens que, sem um mundo
comum que, ao mesmo tempo os unia e separava, ou vivem em solitária e
desesperada separação, ou são comprimidos numa massa. Porque uma
sociedade de massas não é senão aquele tipo de viver organizado que se
estabelece automaticamente a si próprio entre os seres humanos que ainda
estão relacionados uns com os outros, mas que perderam o mundo, outrora
comum a todos eles. » 311
E é por isso, afinal, que "a assustadora coincidência da moderna
explosão de população com a descoberta de aparatos técnicos que, através
da automatização, farão de grandes secções da população 'supérfluas' até
em termos de labor, e que, através da energia nuclear, tornam possível
lidar com esta dupla ameaça através do uso de instrumentos em
comparação com os quais as instalações de gaseamento de Hitler parecem
312
brinquedos, deveria ser suficiente para nos fazer tremer.,,
Em termos arendtianos, dir-se-ia que, tal como o fenómeno
totalitário obrigou à suspensão da categoria da tentação na abordagem do
conceito de mal, também a era nuclear se alicerçou no triunfo da ciência,
no abandono da busca de significação e de liberdade política, da acção e
do discurso, em favor de um pensamento calculi sta. E é do
restabelecimento da esfera política enquanto tal, do seu carácter
revelador, inerente, ele mesmo, à sua capacidade de produzir histórias; é,
enfim, da sua libertação da esfera sócio-económica, que parecem
depender as frágeis esperanças de reabilitação do mundo
313
contemporâneo •

3 11
BPF, pp. 89-90
312
EJ, p. 273
313 VILLA, Dana R: -Op. cit., p. 189: «Tudo o que Arendt tem a dizer sobre a acção e a esfera
pública é enquadrado nos termos de uma análise da des-mundanização [de-worldling] do mundo
públi co na era moderna. O facto de onde começa é a perda desta realidade específica, aquilo a que
chama 'o ec li pse do mu11do comum público'. Isto não quer dizer qu e Arendt negue q ue nós,
128

Em suma, a substituição do múltiplo pelo Uno, e a concomitante


destruição da possibilidade de agir, é o que, como se vem mostrando, pode
fornecer uma chave para a inteligência do deserto.
É chegada a altura, então, de se concentrarem esforços na
interpretação de mais um tema caro a Arendt: o da desolação.
Desolação e isolamento não são o mesmo: «posso estar isolado- quer
dizer, numa situação em que não posso agir porque não há ninguém para
agir comigo- sem estar 'desolado': e posso estar desolado, quer dizer,
numa situação em que, enquanto pessoa, me sinto à parte de toda a
sociedade humana- sem estar isolado .» 314
O isolamento tem, além disso, um carácter positivo no que às
actividades produtivas do homem diz respeito. Assim, o homo faber, o
filósofo, o poeta, estão em companhia de si mesmos e, por aí
precisamente, em contacto com os outros homens. É, de resto, o que nos
revela a frase de Catão: ,,nunca estava menos só do que quando estava
SO.»

Deste modo, portanto, ,,no isolamento, o homem permanece em


contacto com o mundo enquanto obra humana; não é senão quando a
forma mais elementar de criatividade- quer dizer, o poder de juntar
qualquer coisa de si ao mundo comum- é destruída, que o isolamento se
torna absolutamente insuportável. » 315 E é quando se tornou insuportável
que o isolamento deu lugar à desolação, a que Arendt não atribui -
saliente-se - qualquer sentido psicológico; a desolação é, antes, a solidão
do homem desenraizado, privado do chão que o mundo constitui; diz
respeito à vida humana no seu todo, e não apenas ao domínio político da
vida, como nas tiranias . Por aí mesmo, afinal, se vislumbra o carácter

modernos tard ios, tenhamos uma esfera pública; antes, o seu ponto é que esta esfera 'perdeu o seu
poder' de nos reunir, de 'relacionar e separar' como um mundo deveria. Na nossa esfera pública, ser e
aparência difici lmente coincidem: a p luralidade de perspectivas necessária para um tal espaço de
revelação fragmentou-se e enfraqueceu na uniforme da sociedade de massas.»
314
OT III, p. 225
315
Op. cit., p. 226
129

inteiramente novo da dominação totalitária, que se funda «na desolação,


na experiência de absoluta não-pertença ao mundo, que é uma das
experiências mais radicais e desesperadas do homem., 316
A inutilidade experimentada pelas massas modernas, o
desenraizamento, pode ser a condição preliminar da superfluidade; do
mesmo modo, a solidão pode tornar-se desolação, ainda que apenas na
circunstância em que o meu próprio eu me abandona («lch bleibe mir aus,,
na formulação de Jaspers) .
O que torna, então, a desolação insuportável "é a perda do eu que,
se pode tomar realidade na solidão, não pode, entretanto, ser confirmado
na sua identidade senão pela presença confiante e digna de fé dos meus
iguais. Nesta situação, o homem perde a fé que tem em si mesmo como
companheiro dos seus pensamentos e esta elementar confiança no mundo,
necessária a qualquer experiência. A única faculdade que não tem
necessidade nem do eu, nem de outrem, nem do mundo para funcionar
seguramente, e que é tão independente do pensamento como da
experiência, é a aptidão para o raciocínio lógico cuja premissa é evidente
por si.,,317
Isto pudemos aprender com a experiência da dominação totalitária;
não é tão certo que consigamos evitar que se converta na experiência
quotidiana das massas do nosso século.
Conduzidos por Arendt, recordemos a interpretação heideggeriana
da palavra de Nietzsche «O deserto cresce,,: «O que significa, a desolação
(Verwüstung) estende-se. Desolação é mais do que destruição (Zerstorung).
Desolação é mais sinistro (Unheimlicher) que aniquilamento (Vernichtung).
A destruição abole somente o que cresceu e foi edificado até aqui. Mas a
desolação impede o futuro ao crescimento e impede toda a edificação
[ ... ] . O Sahara em África não é senão uma forma de desert o. A desolação

31 6
Loc. cit.
3 17
Op. cit., p. 229
130

da terra pode acompanhar-se do mais alto nível de vida do homem e


também da organização de um estado de felicidade uniforme de todos os
homens. A desolação pode ser a mesma coisa nos dois casos e tudo
assombrar da maneira mais sinistra, a saber, escondendo-se. , 318
É, enfim, em circunstâncias de desolação que ocorrem crimes sem
castigo e sem perdão. Em A Condição Humana, escreve : ,,Q descobridor do
papel do perdão na esfera dos assuntos humanos foi Jesus de Nazaré. ( .. . )
Só mediante a mútua exoneração do que fizeram, os homens continuam a
ser livres, só pela constante determinação de mudar de opinião e começar
outra vez se lhes confia um poder tão grande como o de começar algo de
novo. Neste aspecto, o perdão é o extremo oposto da vingança. ( ... ) A
alternativa ao perdão ( ... ) é o castigo, e ambos têm em comum o facto de
tentarem finalizar algo que, sem interferência, prosseguiria
interminavelmente. Portanto é muito significativo, elemento estrutural da
esfera pública, que os homens não sejam capazes de perdoar o que não
podem castigar, e incapazes de castigar o que se tornou imperdoável. Esta
é a verdadeira marca distintiva dessas ofensas a que, desde Kant,
chamamos 'mal radical'. ( ... )Aqui, quando o próprio acto nos despossui de
todo o poder, podemos apenas repetir com Jesus: teria sido melhor que
uma pedra pesada lhe tivesse sido atada ao pescoço, e que f osse deitado
ao mar.>> 319
Pode considerar-se sati sfatoriamente explicada, parece-me, a
posição de Arendt relativamente à condenação de Eichmann : não se trata,
como alguns insinuaram , de branquear os crimes nazis- muito menos de
boicotar o seu castigo 320 ; trata-se, antes, da constatação de que foi
possível cometerem-se ofensas que nem os Dez Mandamentos nem as

318
HEIDEGGER, Martin- Qu 'appel/e-t-on penser? , p.36
319
CH, pp. 25 8-260
320
BOWEN-MOORE, Patrícia- Op. ci t., p. 147: «0 perdão, para Arendt, funciona politicamente
quando é dirig ido tanto ao actor quanto à acção. ( ... )A noção arendtiana de perdão aplica-se àqueles
que agem inadvertidamente, quer dizer, àqueles que realizam acções que prejudicam relações
po liticamente estabelecidas, mas sem intenção criminosa ou mal propos itado.>>
131

nossas molduras legais estavam prontos a enquadrar, e que, deste modo,


deixam sempre a desconfortável sensação de desproporção entre o mal
cometido e o castigo aplicado.

Em suma, a ameaça maior da desolação é a de devastar o mundo, a


de aniquilar a possibilidade, que lhe é inerente, de novos e infinitos
começos. Ora, o começo, ,,antes de se tornar um acontecimento histórico,
é a suprema capacidade do homem; politicamente, é idêntico à liberdade
do homem. lnitium ut esset homo creatus est - 'para que houvesse um
começo, o homem foi criado' , diz Santo Agostinho. Este começo é
garantido por cada novo nascimento; ele é, na verdade, cada homem. , 321

32 1
OT III, p.232
132

CONSIDERAÇÕES FINAIS

•• Na sua avidez de conhecer as coisas do céu,


ele [Tales] perdia de vista o que se encontrava
aos seus pés. ( .. . ) Quem quer que consagre a
sua vida à filosofia é objecto deste escárnio. A
multidão aliar·se-á à camponesa para rir
dele."

Platão, Teeteto

" A filosofia é este pensamento com o qual


não se pode empreender essencialmente nada
e a propósito do qual os serviçais não podem
deixar de rir. "

Heidegger, Die Frage nach dem Ding

Este trabalho - é-me hoje evidente - está ferido de falta , de falha e


322
de ausência . Uma - a de Heidegger - reclama, dado o seu carácter
ostensivo, uma justificação.

Não está em causa o reconhecimento da influência do filósofo no


percurso e na moldura conceptual de Hannah Arendt - ela é bem
conhecida, no fascínio do seu inicio, na mágoa com que terminou - e, ainda
assim, a leitura arendtiana do seu mestre primeiro parece ter-se saldado
em apropriações a tal ponto pessoais que, pela originalidade que lhe é,
nessa medida, inerente, tornar-se-ia quase espúrio, ao menos no contexto
deste trabalho, o esforço da genealogia. Refiro-me, concretamente, aos
lugares - diferenciados - a que aparta o comum trajecto fenomenológico de
«regresso à origem ,,, às coisas mesmas, e de que os conceitos de mundo,

322
Não apenas um a, certamente; porventura - no âmbito dos objectivos do presente trabalho - apenas
a mais relevante.
133

de individuação, de público, de existência autêntica/inautêntica,


oferecem inequívoco testemunho 323 •

Com efeito, a estratégia de Arendt concretiza-se no movimento de


desconstrução fenomenológica , tal qual a Introdução de Ser e Tempo a
caracteriza - " o que se mostra, tal como se mostra de si mesmo, fazê-lo
ver a partir dele mesmo. Eis o sentido formal da investigação que dá pelo
nome de fenomenologia . Mas o que se exprime assim não é senão a máxima
formulada antes: 1 0 direito às coisas mesmas! ',, 324
É também a Ser e Tempo que Arendt, de algum modo, regressa - aos
temas da contingência, do desvelamento, da mundaneidade como
dimensão estrutural da existência humana - e de que na sua ontologia da
esfera pública, nos seus conceitos de acção e liberdade política, na
hierarquia das actividades humanas, na relação que estabel ece entre
significado e instrumentalidade, entre o político e o social, se sente ainda
o pulsar.
E, contudo, a herança do mestre acabaria por desenvolver-se numa
direcção claramente anti -heideggeriana. É este desvio que «desculpa, a
ausência, é este o desvio, ainda assim, a esclarecer.

Em Heidegger, '' a ~mundaneidade' é um conceito ontológico e


designa a estrutura de um momento constitutivo do ser-no-mundo. ( ... ) A
mundaneidade é, ela mesma, um existencial. ( ... ) Ontologicamente,
~ mundo ', longe de ser uma determinação do sendo que, essencialmente,
325
não é, é, ao contrário, uma característica do próprio Dasein.» Quer
dizer, distinguindo claramente entre a quotidianeidade (inautêntica) e o
sentido ontológico (autêntico) do mundo, este aparece, em Heidegger,

323 Não darei conta, portanto, senão dos conceitos que ma is imediatamente importam à temática de
que este trabalho pretendeu oferecer uma leitura.
324
HEIDEGGER, Martin- Être et Temps, pp. 61-62
325
Op. cit., § 14, pp. 99-IOO
134

enquanto totalidade de relações «em-ordem-a", pré-teoreticamente dada;


enquanto, pois, espaço de inteligibilidade, e, nessa medida, como
condição histórico-transcendental da possibilidade de sentido. Mais, este
mundo autêntico em que o Eu se encontra só face a si mesmo, anuncia-se
no momento em que a estabilidade do quotidiano ruiu e a disposição
fundamental da angústia se expôs à experiência do nada [néant], do face a
face com a morte - e constitui-se como estranheza, não como lugar que
habitamos em comum. A resposta à questão «Quem?,, («Quem é o
Dasein?, ), não passa, pois, pela partilha de actos e palavras .
Ora, em hostilidade aberta a esta viragem do eu sobre si mesmo, A
Condição Humana não pretende senão, precisamente, questionar a
demarcação entre um mundo público dito inautêntico e esse mundo
autêntico solipsista. Para Arendt, com efeito, a individuação só pode
ocorrer no contexto da pluralidade e da acção na esfera pública, pela
partilha da palavra e dos actos num mundo comum de aparências, e é esta
inversão do considerado autêntico e inautêntico, é este repúdio da
reificação do pensamento como única acção genuína, que abre o abismo,
irreversível, entre uma fenomenologia do ser-para-a-morte e a do elogio da
natalidade, condição ontológica do actor enquanto começo 326 •
A este propósito, uma referência breve ao «elitismo,, de Arendt. A
hierarquia do labor, do trabalho e da acção refere-se a actividades, não a
grupos ou tipos. O que interessa à nossa autora, por outro lado, não é
tanto o conteúdo inerente a cada uma das esferas - a pública e a privada -
mas a preservação da sua integridade e da sua diferenciação. A excelência
da actividade política - não será excessivo sublinhá-lo - reclama a
luminosidade da esfera pública, tanto quanto a sombra do privado. E é no
recolhimento do oculto, lugar originário do Mistério, que a liberdade e a
acção desveladora encontram , afinal, a sua mais elementar condição.

326
TAMINIAUX, Op. cit., p.30: «Aí, onde Heidegger separa a praxis autênti ca de toda a
comunicação e cuja manifestação reserva à ciência íntima e si lenciosa do Gewissen, Arendt insiste,
inversamente, no elo essenc ial entre práxis e Iexis .»
135

Finalmente - e esta é, porventura, a inais ousada ambição deste


trabalho - se algum tributo me fosse permitido prestar à nossa autora, ele
passaria, irremediavelmente, pelo esforço do compromisso com esse
mundo comum , que encontra na luminosidade da intervenção política a
confirmação pública. Por outras palavras, elaborar um trabalho que, mais
do que um exercício de erudição de perfil académico, pudesse contribuir,
sem equívoco, para a busca de significação, e por isso para reconciliação, a
um tempo crítica e piedosa 327 , com a nossa época, constituiria o mais fiel
assentimento à aventura humana para a qual, nos termos de Arendt, o
Mundo mesmo permanentemente nos convoca e à qual Arendt tão
magistralmente respondeu 328 •

O Compromisso - com a vida, com os outros, com o mundo, com a


humanidade a mais humana - é o convite que a vida e obra de Hannah
Arendt insistentemente nos renova . Soubéssemos todos responder-lhe tão
bem.

327 Quero referir-me, aqui, ao papel atribuído por Arendt ao perdão.


328 CANTISTA, Maria José- O Político e o Filosófico no pensamento de Hannah Arendt, in Separata
da Revista da Faculdade de Letras, Filosofia, II Série, Vol. XV-XVI, I998-99, p.45: «Pensar o
político com um o lh ar purificado de toda a filosofia, e is, em síntese, o propósito de H. Arendt: reaver
esse grande dom socrático, por oposição a Platão que pensa sempre o político a partir de um fracasso,
isto é, da condenação do Mestre que não soube persuadir, nem os mestres, nem mesmo os amigos.
Ressuscitar o interesse pela polis, sem medos da fragilidade do agir humano, sem recurso às pseudo-
seguranças de uma fi losofia es peculativa.»
136
137

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

DA AUTORA

Para uma bibliografia exaustiva, remeto para For the Love of the World, de Elisabeth
Young- Bruehl

1. LIVROS

ARENDT, Hannah - Les Origines du Totalitarisme (1951 ), [ Vol. I -


1'/mpérialisme, 1982; Vol. 11- l'Antisémitisme, 1984; Vol. III - Le Systeme
Totalitaire, 1972], Paris, Seuil

ARENDT, Hannah - La Nature du Totalitarisme (1953), Paris, Payot, 1990

ARENDT, Hannah - Rahel Varnhagen , The Life of a Jewish (1957) , John


Hopkins, Baltimore and London, 1997

ARENDT, Hannah - La Condición Humana (1958), Barcelona, Paidós, 1993

ARENDT, Hannah - Between Past and Future (1961 ), Middlesex, Penguin,


1993, trad. francesa por La Crise de la Culture, Gallimard, 1972

ARENDT, Hannah - Sobre la Revolución (On Revolution , 1963), trad. Pedro


Bravo, Madrid, Alianza Editorial, 1988

ARENDT, Hannah - Eichmann in Jerusalem, A Report on the Banality of Evil


(1963), Middlesex, Penguin, 1994

ARENDT, Hannah - Verdade e Política (Truth and Politics, 1967), trad.


Manuel Alberto, Lisboa, Relógio d'Água, Col. Sophia, 1995

ARENDT, Hannah - Homens em Tempos Sombrios (Men in Dark Times,


1968), trad. Ana Luísa Faria, Santa Maria da Feira, Relógio d'Água, 1991

ARENDT, Hannah - On Violence (1970), Harcourt Brace & Company, 1970


138

ARENDT, La Vie de l'Esprit ( The Life of the Mind, 1978), [Vol. I - la


pensée, trad . lucienne lotringer, Paris PUF, 1981 ; Vol. 11 - le vouloir,
1983]

ARENDT, Hannah - Qu'est-ce que la Politique (Was ist Politik ?1993), trad .
Sylvie Courtine-Dénamy, Paris, Seuil, 1995

ARENDT, Hannah - O Conceito de Amor em Santo Agostinho, (Der


Uebesbegriff Bei Augustin, 1929), trad. Alberto Pereira Dinis, Lisboa,
Instituto Piaget, Col. Pensamento e Filosofia,

ARENDT, Hannah - Crisis de la Republica (Crises of the Republic, 1969),


trad. Guillermo Solana, Madrid, Taurus, 1973

ARENDT, Hannah - Lectures on Kant's Politicai Philosophy, University of


Chicago Press, 1982

2. ARTIGOS

ARENDT, Hannah - Die jüdische Armee- der Beginn einer jüdische Politik?
(1941 ), trad. francesa de S.C.-Dénamy, l'Armée juive, le début d'une
politique juive? in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce,
1991

ARENDT, Hannah - Des Teufels Redekunst (1942), trad. francesa de S.C.-


Dénamy, L'éloquence du diable, in Auschwitz et Jérusalem, Agora,
Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah - Die Sogenannte jüdische Armee (1942), trad. francesa


de S.C.-Dénamy, La 'prétendue armée juive', in Auschwitz et Jérusalem,
Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah - me Krise der Sionismus(1942), trad. francesa de S.C.-


Dénamy, La crise du Sionisme, in Auschwitz et Jérusalem, Agora,
Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah - Can the jewish-arab question be solved? (1943), trad.


francesa de S.C.-Dénamy, La question judéo-arabe peut-elle être
résolue ?, in Auschwitz et Jérusalem, Agora, Deuxtemps Tierce, 1991
139

ARENDT, Hannah - Für Ehre und Ruhm des jüdischen Volkes (1944) , trad.
francesa de S.C.-Dénamy, Pour l'honneur et la gloire du peuple juif, in
Auschwitz et Jérusalem, Agora , Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah - Balfour Declaration und Palestina Mandat (1944), t rad.


francesa de S.C.-Dénamy, La déclaration Balfour et le mandat sur la
Palestine, in Auschwitz et Jérusalem, Agora , Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah - The Stateless People (1944), trad . francesa de S.C.-


Dénamy, Des hôtes venus du pays de personne, in Auschwitz et Jérusalem,
Agora, Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah- Neue Vorschliige für jüdische-arabischen Verstandigung


(1944), trad. francesa de S.C. -Dénamy, Nouvelles propositions pour une
entente judéo-arabe, in Auschwitz et Jérusalem, Agora , Deuxtemps
Tierce, 1991

ARENDT, Hannah - Zionism Reconsidered(1944), trad. francesa de S.C.-


Dénamy, Réexamen du Sionisme, in Auschwitz et Jérusalem , Agora,
Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah - Die Entrechten und Entwürdigten (1944), t rad. francesa


de S.C.-Dénamy, Sans droits et avilis, in Auschwitz et Jérusalem, Agora ,
Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah - The lmage of Hell (1946), trad. francesa de S.C.-


Dénamy, L'image de l'Enfer, in Auschwitz et JérusaLem, Agora , Deuxtemps
Tierce, 1991

ARENDT, Hannah - About Collaboration (1948), trad. francesa de S.C.-


Dénamy, Sur La 'Collaboration ', in Auschwitz et JérusaLem, Agora,
Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah - Peace or Armistice in the Near East? (1950), trad.


francesa de S.C.-Dénamy, La paix ou l'armistice au Proche-Orient ?, in
Auschwitz et Jérusalem, Agora , Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah - Social Science Techniques and the study of


Concentration Camps (1950), trad . francesa de S.C.-Dénamy, Les
techniques de La science sociale et l'étude des camps de concentration , in
Auschwitz et JérusaLem , Agora , Deuxtemps Tierce, 1991

ARENDT, Hannah- Introdução a Auschwitz de Bernd Naumann (1966), trad.


francesa de S.C.-Dénamy, Le proces d 'Auschwitz, i n Auschwitz et
Jérusalem, Agora , Deuxtemps Tierce, 1991
140

ARENDT, Hannah - The Portable Hannah Arendt, Penguin, 2000

ARENDT, Hannah - De la Historia de la Acción, trad . Fina Birulés,


Barcelona, Paidós, 1998

3. CORRESPONDÊNCIA

ARENDT-JASPERS- Correspondência (1926-1969), Paris, Payot, 1995

ARENDT-McCARTHY - Entre Amigas, Correspondência ( 1949-1975),


Barcelona, Lumen, 1998

ARENDT-BLUMENFELD - Correspondência (1933-1963) , Paris, Desclée de


Brouwer, 1998

SOBRE A AUTORA

ALLONES, Myriam Revault- Amor Mundi. La Persévérance du Politique, in


Politique et Pensée- Colloque Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

AMIEL, Anne - Hannah Arendt : Politica e Acontecimento, Lisboa, Instituto


Piaget, Cal. Pensamento e Filosofia, 1996

BENHABIB, Seyla - The Reluctant Modernism of Hannah Arendt, Sage


Publications, Califórnia, 1996

BERGEN, Bernard J . - Hannah Arendt and the Final Solution, Rowman &
Littlefield Publishers, lnc., 1998

BERNSTEIN, Richard J . - Hannah Arendt and the Jewish Question , Polity


Press, 1996

BOWEN-MOORE, Patricia - Hannah Arendt's Philosophy of Natality, St.


Martin's Press, New York, 1989
141

BOELLA, Laura - Hannah Arendt: Agire Politicamente , Pensare


Politicamente , Feltrinelli, 1995

CANTISTA, Maria José- O Politico e o Filosófico no Pensamento de Hannah


Arendt, Separata da Revista Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, 11 Série, Vol. XV-XVI, Porto, 1998-1999

CANTISTA, Maria José - A Significação do bios politikós ou o regresso ao


pensamento em Hannah Arendt, no prelo, 2000

CASSIN, Barbara - Grecs et Romains. Les Paradigmes de l'Antiquité chez


Hannah Arendt et Heidegger, in Politique et Pensée- Colloque Hannah
Arendt, Paris, Payot, 1996

CHALIER, Catherine- Radicalité et banalité du mal, in Politique et Pensée-


Colloque Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

COLLIN, Françoise - N'Être, in Politique et Pensée- Colloque Hannah


Arendt, Paris, Payot, 1996

COLLIN, Françoise - Agir et Donné, in Hannah Arendt et la Modernité,


Paris, Vrin , 1992

COURTINE-DÉNAMY, Sylvie - Hannah Arendt, Instituto Piaget, Col. História


e Biografias, 1994

CHAUMONT, J.-M. - La singularité de l'univers concentrationnaire selon


Hannah Arendt, in Hannah Arendt et la Modernité, Paris, Vrin, 1992

EVEN-GRANBOULAN, Genevü~ve- Une Femme de Pensée, Anthropos, 1990

ESLIN, Jean-Claude - Hannah Arendt : L 'Obligée du Monde, Michalon, Col.


Le bien Commun, 1996

ETTINGER, Elzbieta - Hannah Arendt - Martin Heidegger, Jorge Zahar


Editor, 1996

HEUER, Wolfgang - Hannah Arendt, Éd. Jacqueline Chambon, 1987

KATEB , George - Hannah Arendt: Politics, Conscience, Evil , Rowman &


Allanheld , 1984

KOHN , Jerome ·_ Evil and PluraUty, in Hannah Arendt, Twenty Years Later,
ed. Larry May e Jerome Kohn , London, MIT Press, 1997
142

LEIBOVICE, Martine- Le Paria chez Hannah Arendt, in Politique et Pensée-


Colloque Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

LYOTARD, Jean-François - Le Survivant, in Politique et Pensée- Colloque


Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

MAY, Larry- Socialization and lnstitutional Evil, in Hannah Arendt, Twenty


Years Later, ed. Larry May e Jerome Kahn , London, MIT Press, 1997

MOLOMB'EBEBE, Munsya - Le Paradoxe comme fondement et horizon du


politique chez Hannah Arendt, DeBoeck Université, 1997

PEETERS, R. - La vie de l'Esprit n'est pas contemplative. Hannah Arendt et


le démantelement de la 'vita contemplativa', in Hannah Arendt et la
Modernité , Paris, Vrin, 1992

PIRET, J. -M. - Entre Origine et Avenir. Tradition, histoire et mise en forme


de ['espace publique chez Hannah Arendt et Hermann Lübbe, in Hannah
Arendt et la Modernité, Paris, Vrin , 1992

PORÉE, J. - Le Mal. Homme Coupable, Homme Souffrant, Armand Coli n,


Paris, 2000

RICOEUR, Paul - Soi-même comme un autre, Seuil, Paris, 1990

RICOEUR, Paul - Lectures 1- Autour du Politique, Seuil, Paris, 1991

RICOEUR, Paul - Le Juste, Ed . Esprit, Paris, 1995

RICOEUR, Paul· La Critique et la Conviction, Calmann-Lévy, Paris, 1995

RICOEUR, Paul- Le Mal. Un défi à la philosophie et à la théologie, Labor et


Fides, Geneve, 1986, trad . brasileira de Maria da Piedade "Eça de Almeida ,
O Mal, Papirus, S. Paulo, 1986

ROVIELLO, Anne-Marie -Senso Comum e Modernidade em Hannah Arendt ,


Instituto Piaget, Col. Pensamento e Filosofia, 1987

ROVIELLO, Anne-Marie - Les intellectuels modernes. Une pensée an-


éthique et prétotalitaire, in Politique et Pensée- Colloque Hannah Arendt,
Paris, Pauot, 1996

TAMINIAUX, Jácques - La Fille de Thrace et le Penseur Professionnel :


Arendt et Heidegger, Payot, 1992
143

TASSIN, Étienne - La question de L'Apparence, in Politique et Pensée-


Colloque Hannah Arendt, Paris, Payot, 1996

VILLA, Dana R. - Arendt and Heidegger: The Fate of the Politicai,


Princeton University Press, 1996;

VILLA, Dana R. - Politics, Philosophy, Terror: Essays on the Thought of


Hannah Arendt , Princeton University Press, 1999

VILLA, Dana R. - The Banality of Philosophy, in Hannah Arendt, Twenty


Years Later, ed. Larry May e Jerome Kohn, London, MIT Press, 1997

YOUNG-BRUEHL, Elizabeth - Hannah Arendt: For the Love of the World,


Yale University Press, 1982
ERRATA

Onde se lê Deve ler-se

p. 15 Amor Mundi Amor Mundi

p. 1 7 percorre- -a percorre-a

p. 29 (NR) Assumpção assunção

p. 35 Cf. Nota 38 Cf. Nota 47

p. 35 (NR 52) lay waste devastar

p. 47 xenofobia; ora «OS factos ... xenofobia: «OS factos...

p. 48 Eichmann em Jerusalém Eichmann em Jerusalém

p. 50 Cf. Nota 34 Cf. Nota 41

p. 55 (NR 99) Molomb'Ebebe Cf. Molomb'Ebebe

p. 56 physis
physis

p. 63 (NR 124) Lectures 1 RICOEUR, Paul- Lectures 1

p. 68 Cf. Cap.l, 3 Cf. Parte I, Cap. I, 3

p. 69 manifesta- -se manifesta-se

sobre
p. 71 Sobre

p. 80 Rahel Varnhagen Rahel Varnhagen

p. 81 lorde Lorde

p. 124 (capítulo 11, 1.) (Parte 11, capítulo I. 1 .)

Você também pode gostar