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P oruma dramaturgia

que não seja uma liturgia da dança

H elena Katz

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Jean-Marc Adolphe conta que, no primei- ateliê sobre dramaturgia, a partir do estabeleci-
ro SKITe,1 realizado em Paris, em 1992, mento de um acordo de que uma possível dra-
Corrado Bertoni, que, na ocasião, traba- maturgia da dança estaria ligada ao movimen-
lhava com Caterina Sagna,2 sugeriu um to. O objetivo era pensar sobre a existência de
jogo de substituições para a palavra dra- uma dramaturgia do movimento que fosse re-
maturgia: dramasurgia (para priorizar o surgi- sultante de forças mais ou menos visíveis, e cujas
mento da ação), dramapurgia (para enfatizar a tensões configurariam a pertinência desse mo-
purgação ou a depuração da ação) e, ele mesmo vimento. Aí estaria a dramaturgia. Traduzindo:
propôs outra, drama-urgia (destacando a urgên- o movimento de dança que um corpo faz seria
cia da ação). o fiador da dramaturgia de dança.
Como se vê, a palavra muda, mas seu foco Posta deste modo, fazendo do movimento
permanece. O que conta é a ação que o corpo de dança um fiador de uma dramaturgia de dan-
realiza, ou seja, o que vale é o que está aconte- ça, a discussão que começou a se fortalecer no
cendo nele. No caso da dança, essa ação remete final do século 20, remete a Noverre. Segundo
diretamente aos passos e aos gestos e ao modo Levinson 3 (São Petersburgo, 1887 – Paris
como eles são mostrados. 1933), Noverre4 foi o criador da dança como
No segundo SKITe, acontecido em Lis- espetáculo independente. Apresentou uma dan-
boa dois anos depois, Adolphe coordenou um ça autosuficiente, que rejeitava o uso da pala-

Helena Katz é professora do Curso Comunicação das Artes do Corpo e do Programa de Pós-Gradua-
ção em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.
1 Promovido por Jean-Mark Adolphe, o SKITe é uma plataforma de encontro de pesquisas artísticas sem
obrigação de resultar em produção. No primeiro SKITe, destacaram-se Alain Platel e Meg Stuart, e no
segundo, acontecido em 1994, em Lisboa, Jerôme Bel fez a sua primeira apresentação pública.
2 Coreógrafa italiana que se tornou conhecida pela exploração dança-literatura.
3 Andre Levinson, vigoroso defensor dos princípios acadêmicos do balé, mesmo sendo um entusiasta de
Isadora Duncan, atacava as renovações de Fokine e Diaghilev. Escreveu muitos artigos e nove livros,
dentre os quais, La vie de Noverre (1925). Deixou a Rússia em 1918, tornou-se professor na Sorbonne,
e um dos mais respeitados críticos de Paris dessa época.
4 Para situar a importância de Jean-Georges Noverre (1727-1810), basta lembrar que, para Lincoln
Kirstein (1907-1996), ele está para a dança como Shakespeare para o teatro.

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vra, tanto nos recitativos quanto nos cartazes. “imitar as paixões da alma” e, por isso, necessi-
Uma dança que se apoiava na movimentação tavam da pantomima.
dos corpos – configurando, desde então, que A solução proposta por Noverre deveria
dependia do tipo de movimentação a possibili- nos estimular a buscar um caminho diferente
dade de criar um espetáculo de dança. E, para para lidar com a questão da dramaturgia, sem
Noverre, essa movimentação não deveria acon- que continuemos a buscar determinar que tipo
tecer somente com passos de dança (insufi- de movimento legitima a dança. A mistura (pas-
cientes para comunicar emoção), mas sim em so + pantomima) é a forma de fazer o movimen-
um processo de associação entre passos de dan- to tornar-se movimento de dança, e esse fato
ça e pantomima, essa “tradutora por imitação” produz consequências que se dilataram tão efi-
capaz de expressar significados que o passo não cientemente no tempo, que alcançaram os dias
conseguia. de hoje.
Pode-se eleger como ponto inicial para a
Graças ao vosso radicalismo, foi possível rom- compreensão dessa história a relação entre balé
per com velhas fórmulas e modelos, inuaugu- e baile. Ou seja, precisamos voltar ao século 17,
rando-se um novo modo de representação em época em que a dança artística se misturava com
dança. Quando todo e qualquer recurso ex- a dança de sociedade, sendo ambas realizadas
terno ao corpo foi definitivamente banido de pelos membros da corte. Nessa época, dança e
vossos espetáculos, entendidos pelo Sr.como ópera comungavam uma mesma noção de es-
obstáculo para os progressos e perfeições da petáculo, cunhada no Renascimento, que advo-
artes, estavam ampliadas as possibilidades de gava a fusão de diferentes artes em uma só. A
significação da própria peça coreográfica Ópera encontrou seu modo de atender a essa
(Hercoles, 2005, p. 58). demanda e a dança, para configurar o seu, pre-
cisou apartar-se das produções líricas.
A hipótese aqui proposta é que a conversa Noverre entendia que o espetáculo de dan-
sobre dramaturgia de dança deve reconhecer a ça deveria reunir gestos pantomímicos e passos
sua hereditariedade, dentro da história, à época formais em um único ato, com um único enredo
da consolidação da dança como arte autônoma. unificando todos os seus elementos. Cabe desta-
Quando se compreende que essa autonomia foi car uma outra relação forte sustentando a sua
condicionada à reunião, até então inexistente, proposta – a do movimento com a palavra –,
entre expressão (pantomima) e técnica (passos uma vez que cabe ao enredo (portanto, ao texto,
de dança), fica claro que é a necessidade de co- ao verbal) operar como o guia para a composi-
municar que guia o menu da autonomia. ção coreográfica. Todavia, trata-se de um enredo
Com um curto alcance de significação, o que se apresenta na forma de uma ação do cor-
vocabulário dos passos codificados carecia ser po, e assim, construindo significado. O que une
unido ao repertório da pantomima. Desde o é a palavra transformada em movimento.
início, portanto, põ-se como questão o que cabe A inquietação que resulta no balé de ação,
ao corpo fazer para configurar uma obra de dan- esse que junta pantomima e passo de dança, não
ça: ser capaz de expressar emoção. Esta hipótese começa em Noverre. Nele, continua uma li-
carrega, na sua formulação, embora não de for- nhagem que, dentre outros, conta com Franz
ma explícita, a compreensão de que os traços Hilfering (1710-1768), Gasparo Angiolini
iniciais do percurso em direção à autonomia (1723-1793) e John Weaver (1673-1760), e,
passam pela expressividade: 1) para ser autôno- depois dele, se replica em Salvatore Vigano
ma, a dança deveria ser uma arte expressiva; e (1769-1821), Carlo Blasis (1797-1878),
2) o tipo de movimento feito pelos corpos que Philippe Taglioni (1777-1871), Arthur Saint-
dançavam não se mostravam adequados para Léon (1821-1870), Charles Le Pick (1744-

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1860), Jules Perrot (1810-1892), Marius Petipa tada como criação divina. Depois de 17 séculos
(1818-1910) e Michel Fokine (1880-1942). de contemplação, a natureza torna-se um fenô-
Todos se dedicaram a explorar a verosimilhança meno explicável e explorável.
e a imitação da natureza – temas que, desde os A reforma de Noverre em direção ao balé
gregos, são caros às artes da cena. de ação buscava levar a dança para as belas artes
José Sasportes discorda de André Levin- e, para ser lá aceita, ela precisaria imitar a natu-
son. Vê Noverre como alguém que trabalhou reza. É preciso cuidado em não supor que as ca-
para integrar melhor o balé ao espetáculo lírico, racterísticas que viriam a definir o balé de ação
e não para retirá-lo de lá. Para ele, somente bem se inauguram com Noverre, porque não se pode
depois, no período iniciado em 1883, com as esquecer que já nos balés de corte existia a pre-
primeiras críticas de Mallarmé, e encerrado em ocupação com a ação dramática, envolvendo os
1928, com a criação de Apollon Musagète mesmos temas da verossimilhança e da imita-
(Balanchine/Stravinsky), pelos Ballets Russes, ção da natureza.
surgiu o “momento em que o Bailado se liber- O que nos cabe é distiguir a imitação da
tou do quadro do espetáculo lírico e em que a natureza no balé de corte da imitação da natu-
dança se tornou uma arte em si mesma, uma reza no balé de ação. Como desenvolver uma
arte autônoma” (1983, pg.9). Dedica seu livro cena de dança, no palco, de modo que ela pu-
Pensar a Dança a uma reflexão estética sobre essa desse ser entendida como um quadro pintado
“nova arte”, à qual atribui grande influência no por ação de um sentimento humano? Para dei-
pensamento artístico do início do século XX. xar de ser somente uma sucessão de passos, a
A discordância entre Levinson e Sasportes dança precisaria juntar a dança mecânica com a
nos importa por se dar em torno do que estava dança de expressão. Essa união é que tornaria a
em jogo no processo de autonomização da dan- dança capaz de imitar com verossimilhança a
ça. Sem precisar escolher entre o Noverre-cria- natureza (humana) para poder vir a emocionar.
dor-do-espetáculo- autônomo e o Noverre-con- O balé de corte havia sido um passo nes-
solidador-da-ópera-balé, o que conta aqui é sa direção, ao integrar os elementos já presentes
compreender o que era entendido como neces- nas mascaradas e intermédios, criados nas festas
sário para que o balé se tornasse uma arte inde- e bailes do Renascimento italiano e francês. As-
pendente. Porque somente sendo independen- sim, também com relação ao balé de corte, é
te, poderia ter uma dramaturgia esepecífica. possível identificar, já no século 17, o uso de
Noverre, primeiro coreógrafo a usar nar- enredo estruturado (que lhe confere unidade
rativas dramáticas em suas composições, man- dramática) e da imitação da natureza6 no senti-
tém-se dentro do entendimento aristotélico de do que o balé de ação viria a empregar. A dife-
interpretação, e usa a pintura como referência rença está no fato desse enredo ainda estar liga-
para o que se passa na representação cênica. do à música cantada e aos recitativos que seriam
Caberia ao movimento conferir naturalidade às eliminados no balé de ação, mais adiante. O
situações dramáticas e aos climas psicológicos. balé de corte reunia dança, recitativos e cantos
Mas o conceito de naturalidade vinha se trans- em um enredo dramático e usando alegorias.
formando, pois, no século 17, a natureza5 deixa Noverre as desprezará:
de ser pensada como divindade e passa a ser tra-

5 Não se pode esquecer da existência de duas noções distintas para o conceito de natureza: para Rameau,
a natureza era a natureza das coisas, e para Rousseau, trata-se da natureza humana, de emoções e senti-
mentos.
6 Vale lembrar que essa imitação da natureza é a pleiteada por Aristóteles para a poesia dramática.

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(...) não se pinta mais nem se dança os Ven- Associar a dramaturgia a um “ponto de
tos com um fole na mão, com moinhos de vista” significa dizer que essa estruturação põe
vento na cabeça, com roupagens de plumas, em cena uma certa visão de mundo. E que aque-
para caracterizar a leveza. Não se pinta mais le que a realiza, o dramaturgo, liberta-se do pa-
nems se dança o Mundo com um penteado pel de guardião da voz do autor e passa a ser
em forma de monte Olimpo, com um traje um colaborador. Segundo Pais, nas artes do es-
representando um mapa geográfico, com uma petáculo do século XX, dois momentos foram
roupa guarnecida de inscrições onde se leem, marcantes com relação à dramaturgia do teatro:
em letras garrafais, no seio e na altura do co- quando Bertold Brecht (1898-1956) abando-
ração, Galia; no ventre, Germânia; na perna, nou a representação ilustrativa do texto em fa-
Itália;, nas costas, Terra australis ingógnita.; vor da adaptação, nos anos 1930-1950, e quan-
em um dos braços, Hispânia etc. (Noverre, do a performance fortaleceu-se como um espaço
in Monteiro, 1998, p. 44). coletivo (1960-1970).

Depois de se separar das festas, o balé sai Apesar de manter uma certa primazia, na
da corte e vai para os teatros da cidade. Lá, en- medida em que se mantém como elemento-
contra um público pagante, desconhecidos mis- base do espetáculo, o texto da dramaturgia
turados a conhecidos, uma vez que a plateia dei- brechtiana vê-se desobrigado de uma autoria
xa de ser formada somente pelos convidados dos intocável, passando a ser apropriado por ou-
patrocinadores. Com o surgimento desse tipo tra voz, que nele projecta a sua visão (idem,
de plateia instala-se a necessidade de passar a p. 37).
oferecer um mesmo tipo de entendimento de
expressividade para um público heterogêneo. A adaptação abre um outro caminho por-
Isso implica em que a concepção de drama pre- que não se detém somente nos conteúdos do
cisaria se transformar. A necessidade de comu- texto, envolvendo sobretudo o modo como es-
nicar-se com a nova plateia pedia um tipo de tes são colocados em cena, ou seja, a adaptação
espetáculo capaz de ser aceito por um público promove uma autonomia dos elementos cons-
dessa natureza. O modo de construí-lo é o que tituintes da obra. Além dela, a montagem e a
a maioria nomeia de dramaturgia. colagem, vindas do discurso cinematográfico de
Eisenstein (1898-1498), também instalam um
Fazer a dramaturgia de um espetáculo signifi- outro modo de organizar os conteúdos, isto é,
ca frequentemente estruturá-lo, dar um eixo uma outra dramaturgia.
organizador ou uma concepção particular ao O modo de nomear quem realiza essa
que se quer dizer, ou dar a ver, podendo se- estruturação muda, ao longo do tempo. Autor
guir os mais variados critérios (desde a do texto dramático (Aristóteles, sec. V a.C.),
narratividade aristotélica à fragmentação, à olhar exterior (G.E. Lessing, sec. 18), adaptador
sobreposição de cenas simultâneas etc. Estru- ou organizador do espetáculo a partir de um
turar entende-se aqui como uma tomada de conceito pré-definido (Brecht, 1930-1950), co-
consciência de que o modo como se dá a ver o laborador participante que estrutura o sentido
espetáculo determina os seus efeitos perante do espetáculo (performance, 1960-1970), res-
um público. Ao escolher ou fazer opções rela- ponsável pelo enquadramento dos materiais cê-
tivamente aos materiais cênicos e à sua articu- nicos, do ponto de vista e do sentido (pós-mo-
lação na cena, o olhar artístico estrutura-os dernidade, 1980-1990).
dramaturgicamente, fundamentando essas O conceito de dramaturgo foi caminhan-
opções e criando uma lógica e uma coerência do, mas em todos eles, percebe-se que a associa-
própria a cada espetáculo (Pais, 2004, p. 35). ção da dramaturgia com a encenação faz parte

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do discurso do teatro. Na dança, corresponderia uma direção mais adequada para se lidar com a
a associá-la com a coreografia. “A “coreografia” dramaturgia sem precisar delimitar um campo
é intrinsecamente a dramaturgia da dança”, diz apoiado em um tipo de movimento exclusiva-
Jean-Marc Adolphe (1997, pg.32), que chama mente de dança.
a atenção que buscar entender a dramaturgia
como sendo o modo como a obra se apresenta Considerar o movimento não como uma sim-
a aproxima do papel que a liturgia ocupa em ples função do corpo, mas como um desen-
relação à religião. volvimento do pensamento. Da mesma for-
Para ele, a dramaturgia “interroga a ação ma, considerar a palavra não como um de-
que se representa e a própria ação de represen- senvolvimento do pensamento, mas como
tar” (1997, pg.32). No caso da dança, em que a uma função do corpo (in Neddam, 1995,
ação se dá no corpo, significaria delimitar qual p. 50).
ação/movimento pertence exclusivamente à
dança e, ao mesmo tempo, quais os materiais Inevitável reconhecer os ecos de Noverre
com os quais esse movimento entra em acordo. e das querelas do século 17, lá trabalhadas como
Em países com a história do nosso, mestiços de passo e pantomima, movimento e palavra, e
partida, não faz muito sentido buscar pelas pu- aqui deslocadas para a proposta de que tudo o
rezas anteriores às contaminações. Em dança, que está no corpo é pensamento, esteja na for-
isso significa não optar pela descoberta e ma de movimento ou na forma da palavra.
enunciação do “verdadeiro” e exclusivo movi- Como hoje a dança pode abrigar tanto uma
mento de dança. quanto a outra, a tarefa passa a ser a de buscar
Lembrar de Paul Auster (1995) em Espa- identificar não mais uma, mas as variadas manei-
ces Blancs, livro no qual escreveu: “uma dança ras que diferentes pensamentos de dança em-
para ser lida em voz alta”, talvez nos inspire em pregam para serem abrigados em obras de dança.

Referências bibliográficas

ADOLPHE, Jean-Marc. “La dramaturgie est un exercice de circulation pour tenir le monde à
l’écart”, in Nouvelles de Danse, n. 31. Contredanse, 1997, p. 31-4.
HERCOLES, Rosa Maria. Formas de Comunicação do Corpo – Novas Cartas sobre a Dança. Tese de
doutorado defendida no Programa em Comunicação e Semiótica, PUC-SP, 2005.
KIRSTEIN, Lincoln. Dance. A Short History of Classic Theatrical Dancing. Dance Horizon, 1969.
MONTEIRO, Marianna. Noverre. Cartas sobre a Dança. Edusp, 1998.
NADDAM, Alain. “Une dramaturgie de l’insaisissable”, in Nouvelles de Danse, n. 31. Contredanse,
1997, p. 44-50.
PAIS, Ana. O Discurso da Cumplicidade. Dramaturgias Contemporâneas. Editora Colibri, 2004.
SASPORTES, José. Pensar a Dança. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983.

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