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TEORIA DA HISTORIA Uma teoria da historia como ciéncia JORN RUSEN Tradugao Estevao C. de Rezende Martins © Jem Rasen Histrit Theorie der Geschichiwisrenchaft Bochlaw Verlag, Colénia TEORIA DA HISTORIA Uma teoria da histérla como cléncia 1 reimpressio: 2016 Coordenagto editorial Rachel Cristina Pai Revisto Feanciele Carmo Lemes Revisho Técnica Ar Alfa Assis Projet grifico, editorasdoeletrdnica e capa Reinaldo Weber Imagem da capa Inge Ruse deo sobre tla Série Pesquisa, n. 270 Universidade Fedral do Paran. Sistema de Bibliotecas Biblioteca Central Coordenago de Processos Técnicos ROSIt Teoria dahistria: ua teria da hstria como cin, Risen, Je: radu de Esteve C. de Rezende Marts, Curia. Edina UFPR, 2015 324 pl (See Pesquisa; 270) ISBN 978.85-£480.04.9 Tradugo de: Histork Theorie der Geschichtswssenchaft | Histria, 2. Teorasmetodologia distri 3. Rasen, Jim. 1 Titulo. See cpp sot eDUu930 ISBN 978.85-8480-004.9 Ref. 793 Direitos desta edigho reservados & Editora UFPR Rua Jodo Negrto, 280, 2° anda, Centro Tel: (41) 3360-7449 0010-200 - Curitiba - Parana - Brasil wwweeditoraufpebe editora@utprbr 2016 Joocagto base a ores Untarras Capitulo VI: i Topica - formas e processos da historiografia 1, A peculiaridade do escrever A historiografia € um proce- dimento peculiar da constituigio histérica de sentido. Isso fica claro nfo apenas nas diversas formas ¢ maneiras como é tratada no ambi- to de uma teoria da histria, mas também no trabalho cotidiano das historiadoras e dos historiadores. — foie aso eane | bene ae serem fixados por escrito, tais re- sultados precisam ter sido obtidos. Isso no quer dizer, contudo, que esses resultados devam estar completos para assumir a forma de texto. E justamente o contririo que ocorte: 0s resultados s6 ficam completos © passam a ser vistos como tais por seus autores quando enfim devida- ‘mente formulados. Formular pertence também ao processo de conheces, embora se distinga da elaboracio metédica do saber histérico obtido 4a experiéncia do passado. O escrever insere nos resultados de pesquisa Algo que ainda ndo esta presente na interpretagao. agrega a0 pensar como algo ele uma continuagao do pen- cognitivos). Tampouco Excrever¢ pensar, © escrever no s ue Ihe seja extrinseco, Pelo contrério, é Samento por outros meios (que nio meramente uc S¢ pode dizer, inversamente, que a pesquisa apenas fornece os materials do conhecimento histérico, sua matéria prima, cuja forma s6 se dé com 2 apresentagdo escrita. Enfim, um dos resultados mais importantes da q ig ea i is no interpretacio consiste justamente em explicar processos temporas 189 Teoria da Historia: Uma teora da storia como ciéncle acontecer do mundo humano ~ € a explicagao é, ela mesma, uma for- ma (Iogica). Nisso tudo nao se esgota, entretanto, 0 trabalho intelectual decisivo, com 0 qual o passado humano se torna presente, pelo conhe- cimento, O pensar se estende da formulssio a apresentasdo € somente com esta se completa. Ao mesmo tempo, o formular esta determinado por crtérios e priticas mentais que nio possuem carter exclusivamente Cognitive. Com esses crtéros e priticas,o sentido historico do passado € determinado, mediante elementos ¢ dimensoes da significincia que estio aquém e além do pensamento conceitual e explicativo, Essa dualidade de elementos e fatores cognitivos © nao cognitivos tem de ser levada em conta. Leopold von Ranke formulou-a com precisio: 'A Historia se distingue das demais ciéncias por ser, também, arte, Ela é 9 odua ¢ | -nemar ersugiodwog | wi:03 woo opsesuouminy | peiodureadns apepyy, | -suowp anb ‘soxwaxg sedusoeg (,ordexqun,) opunu : ‘pts ap seus yau2s oquenbus op | op" sompad” sowuaw 20} sep 9 opumas op S01 ain 6 corsepy | eSuepnur vu orsemc, | -woureuspro sop su28uQ) eooprpesy, 2pepp paodw=3 oppuas 2p ¥2130351y ‘edu op oppuag | -voprap orsmunsuoy | orteoqunuos ap ewiog | oxy op oesesuassiday | o1uasasdor orsejry | oxSmunsuen ep od Teoria da Historia: Uma teoria da historia como ciéncia 6. Tipologia da narrativa histérica Ill: sentido e entendi mento No ambito de uma teoria da histéria, uma tipologia da narrativa nio pode deixar de abordar também 0 candter especificamente cientifico do conhecimento histérico™. Isso ocorre quando se demonstram ¢ ressaltam 0s principios determinantes do pensamento cientifico em cada tipo nar- rativo. O carater cientifico da narrativa histérica nao é um tipo em si, mas consiste em determinada configurago dos tipos. Embora a racio- nalidade cientifica esteja constituida neles em sua relag4o com 0 mundo da vida, ela carece ainda de uma elaboracao particular, que conduz a uma configuragao propria dos tipos. Os tipos de narrativa, cada um por si e todos juntos nas suas cons- telagdes cheias de variantes, tornam-se especificamente cientificos quan- do adotam elementos argumentativos na apresentacio histérica, baseados na pesquisa. A historiografia esta entio determinada pela conceituasao, pela relacdo a experiéncia, pela dindmica da pesquisa e pela controlabilidade intersubjetiva. Com essas propriedades, essenciais a0 pensamento cien- tifico, os tipos adquirem um perfil peculiar. Historia como ciéncia é um fendmeno da modernidade. O pen- samento histérico moderno esta determinado pela constituicao genética de sentido. No entanto, nem todas as formas genéticas de narrar sio modernas ou possuem carater cientifico. Ademais, os outros tipos no desaparecem do campo dominado pelo pensamento genético, mas arti- culam-se com 0 genético de modo tal que este thes permite assumir uma forma moderna. ‘Também o tipo critica de narrar possui alta afinidade com a ciéncia. Quando pretende ser cientifico, todo pensamento histérico est, sabida- mente, obrigado a apresentar como controlaveis seus enunciados sobre ‘© que aconteceu no passado. A narrativa de acontecimentos histéricos tem de deixar claro, por prinefpio, o quanto seu narrar possui fundamen- to confiavel, que diividas ainda persistem e que alternativas podem ser consideradas. Isso pode perturbar 0 duto narrativo, mas a coesio deste nao pode ser obtida as custas de excluir as incertezas do saber historico- A critica torna-se, assim, determinagio da forma. 215 Ver mais pormenores em RUSEN, J. Die vier Typen ds historichen Eraiblenn p. 219-230 22 Teoria da Historia: Uma teoria da historia como ciéncia Por mais que o pensamento critico seja determinante para a cién- cia, 0 tipo narrativo critica nao é automaticamente cientifico. Sua nega- sao das orientacdes historias prévias esta, usualmente, determinada de maneira fortemente normativa. Os acontecimentos histéricos narrados ‘no modo critico servem para tornar novas normas empiricamente plau- siveis, recorrendo para tanto a negagio de normas vigentes, que sio fra- gilizadas através da lembranca de experiéncias historicas contradizen- tes. A propria ciéncia versa criticamente sobre os elementos normativos prévios aqui em jogo. Ela rejeita uma selecio unilateral de conjuntos historicos de experiéncias, com respeito a sua coeréncia interna, com base em experiéncias nao tao claras, e quem sabe mesmo contraditérias ou relativizadas. Espera-se dela ponderar, em determinado contexto de acontecimentos, o significado de eventos particulares que possam rela- tivizar seu significado normativo para o esvaziamento de orientagdes histéricas. A unilateralidade das apresentagdes histéricas formatadas criticamente € notéria. Ela coloca em dtivida um principio metédico do pensamento histérico: 0 de que a apresentagao dos acontecimentos passados tem de corresponder a multiplicidade das determinagoes de sentido, neles presentes por causa dos protagonistas. Nesta perspectiva, uma neutralidade estrita nao ¢ alcangavel. A estrutura perspectivista das apresentagées hist6ricas diz respeito também a determinacio interpre- tativa da relagio entre posigdes diversas dos protagonistas. Por certo, quando - na construgio historiografica da perspectiva de apresentacdo— toma-se apenas uma das muitas posigdes dos protagonistas, entretecidas no acontecimento, tem-se uma unilateralidade digna de critica. Tradigdo e ciéncia. Em sua forma especificamente cientifica, a nar- rativa tradicional submete a validade dos legados da tradigao a um con- trole critico quanto a sua plausibilidade empirica. Ele despe de sua qua- lidade temporal mitica as origens valorizadas como fonte da tradigao, que conseguiram manter-se através de todas as mudangas histéricas. E fato que se mantém ainda a representagdo de uma duracdo das formas vinculantes de vida ao longo do tempo. A narrativa tradicional nao tem como escapar, contudo, da abordagem das transformagées temporais no contexto de cada duragio. Naturalmente ela ndo pode contentar-se, com respeito a suas fungdes orientadoras, em meramente motivar seus destinatarios a adotar uma atitude mimeética quanto as formas de vida humana apresentadas, Em perspectiva funcional, iso afinal suprimiria a atitude critico-reflexiva quanto ao passado, constitutiva do pensamento cientifico, inclusive em sua articulagao historiogréfica. 23 Teoria da Historia: Uma teoria da historia como ciéncia A qualidade de eternidade do sentido historico concebido tradicional mente, em principio, nio € suprimida pelo carater argumentative de uma forma narrativa especificamente cientifica, mas sim modificado em seu carter temporal. O pensamento histérico cientifico €0 pensamento histético moderno, e isso esté determinado, na tipologia da narrativa, elo narrar genético, A duracao intrinseca a0 tempo torna-se uma gran- deza antropolégica. A historiografia nao tem como excluir a mudanca temporal da qualificagao dos ordenamentos tradicionais da vida, Ela tem de evidencid-la neles mesmos. Somente assim é possivel entender plausivelmente os Principios tradicionais de ordenamento resistentes a mudanga, A dinamica da génese tem de Para dentro da prépria ordem tradicional. Isso é io se faz justiga a0 passado humano ‘contecimentos e as formas de compreensio dos homens que certamente, a validade supra- comportamento humano, obtido ‘da temporalmente, As estruturas quando nao se interpretam os a Vida considerados no horizonte da auto, agem ¢ sofrem. Com isso nao se suprime temporal do entendimento histético do cxemplarmente. Esta é, sim, dinamiza comportamentais gerais do homem sio maticamente, 214 Teoria da Histéria: Uma teoria da histéria como ciéncia A qualidade de eternidade do sentido histOrico concebido tradicional- mente, em principio, no € suprimida pelo caréter argumentative de uma forma narrativa especificamente cientifica, mas sim madificado em seu cardter temporal. O pensamento histérico cientifico é o pensamento histérico moderno, ¢ isso esta determinado, na tipologia da narrativa, pelo narrar genético. A duragao intrinseca ao tempo torna-se uma gran- deza antropolégica. A historiografia nao tem como excluir @ mudanga temporal da qualificagio dos ordenamentos tradicionais da vida. Ela tem de evidencié-la neles mesmos. Somente assim é possivel entender plausivelmente os principios tradicionais de ordenamento resistentes a mudanga, A dinamica da génese tem de ser projetada, reflexivamente, propria ordem tradicional. Isso € possivel, por principio, Ambito antropolégico para dentro da porque o acontecimento histérico se move em um que demonstra as determinagées normativas da qualidade cultural de ser humano, que se mantém em todas as transformages temporais. Pensamento exemplar e ciéncia. A narrativa hist6rica exemplar esté guiada pelo papel que desempenha nela a capacidade de julgar, funda- da em distanciamento reflexivo, e propria ao pensamento cientifico. Ela passa por uma alteragio de forma, decorrente da especificidade cientifica. Isso ocorre, sobretudo, quando se trata de extrair da miriade dos aconteci- mentos histéricos do pasado uma regularidade geral do comportamento humano. O pensamento histérico cientifico obedece, em sua configuragio moderna, a seguinte regra hermenéutica: nao se faz justiga a0 passado humano quando nfo se interpretam os acontecimentos ¢ as formas de vida considerados no horizonte da autocompreensio dos homens que agem e sofrem. Com isso nao se suprime, certamente, a validade supra- temporal do entendimento histérico do comportamento humano, obtido exemplarmente. Esta é, sim, dinamizada temporalmente. As estruturas ‘comportamentais gerais do homem sio conectadas a seus contextos, siste~ ‘maticamente,em sua apresentacdo exemplar. Com isso a generalidade das estruturas encontradas e as posigées normativas tornam-se abstratamente cognosciveis ¢ concretizaveis por articulages temporais abrangentes dos acontecimentos (representagées das evolugées). O pensamento histérico genético fornece o fio condutor narrati- vo (a estrutura da trama) das apresentagdes historicas especificamente cientificas. Isso, porém, nao basta para que todas as apresentagdes orga- = eee ee cientificas. Tal somente a Gas a ee entendimento humano se engaja ee ‘imento do passado e na descrigo presente. au | 216 Teoria da Historia: Uma teoria da historia como ciéncia Cientificidade ¢ riqueza de for- mas. Como todos 0s tipos estdo sistematicamente articulados, as modificagses da constituigéo de sentido, produzidas pela raciona- lidade do pensamento cientifico, relacionam-se para produzir uma complexa tessitura de possiveis \ \ modalidades da narrativa histori- ca. Cientificidade em nada significa empobrecimento da historiografia. Palo contririo, ela produz uma acentuacio de sua complexidade propria. Na demonstracdo, pela teoria da hist6ria, dessa complexidade, tem se no uma pretensao de regular as apresentag6es hist6ricas, mas a incita- tio a enffentar,efetivamente, essa complexidade, Tal corre em formas Frecdrias, que na teoria da historia nfo tem como regulamentar. Uma teotia da historia que se apresente como poética normativa da historior gnafia infringe 0 proprio principio de abertura para a argumentagao. A Fiqueza de formas da historiografia deve ser fundamentada e no res tringida normativamente. Nao se pode prescrever que formas literarias ¢ que meios da realizagao da forga propria de entendimento da consti- tuigdo histérica de sentido devam ser levados em consideragao. Pode-se apenas incitar a que sejam explicitadas as razdes de adogio ‘de formas ¢ aeeos, Abundam na literatura exemplos da possibilidade de narrativas, que possuam abertura as fundamentagoes argumentativas. Entretanto, no se encontra nela a estrutura de fundamentago que @ histéria, en- quanto ciéncia elaborou. E aqui que esta a oporvunidade de a histo- ¢ as inserir em uma riografia profissional abordar tais formas literdrias navativa historica. A historiografia no deve perder seu entendimento na estética e na retorica, mas fazé-lo valer.

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