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ANDRE LEROI-GOURHAN OS CACADORES DA PRE-HISTORIA Titulo original: Les chasseurs de la Préhistoire © Editions A.-M. Métailié, Paris, 1983 ‘Tradugdo de Joaquim Joao Coelho da Rosa Reviso de Pedro Castro Henriques Capa de Edigdes 70, segundo desenhos do autor Depésito legal n,° 90577/95 ISBN 972-44-0072-7 Todos 0s direitos reservados para a lingua portuguesa por Edigdes 70, Lida, / Lisboa / Portugal . EDICOES 70, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 123-2.° Esq. — 1050 Lisboa Telefs,: (01}315 87 52-315 87 53 Fax: (01)315 8429 Esta obra est protegida pela lei, Néo pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que séja o mode utilizado, incluindo fotoc6pia e xerocépia, sem prévia antorizagiio do Editor. Qualquer transgressio & Lei dos Direitos de Autor seré passfvel de procedimento judicial. OS CACADORES DA PRE-HISTORIA edicdes 70 Mithares de anos mais tarde... as cenas pré-histéricas gozam novamente das boas gracas dos artistas, mas 0 gravador de 1870 carece de conhecimenios sobre os seus antepassados! Esta caverna, de tecto fino e rachado deve ser pouco habitdvel e um urso ndo seria ‘Go insensato que atacasse cinco homens ao mesmo tempo. Alids, ataca bastante mal e mais parece abencoar a assisténcia com a mao esquerda. Os adversdrios nao sao menos singulares: 0 homem grande é loiro prepara-se teatralmente para agredir o seu infeliz companheiro em vez de visar o urso. O seu aspecto é elegante mas falso; os homens da «idade do grande urso» usavam confortdveis vestes cosidas e nao este farrapo que condiz mais com Hércules ou com Tarzan do que com verdadeiros cacadores pré-histéricos. As suas armas, enfim, sao ainda mais curiosas. Pode-se admitir que, na sua pressa de auxiliar um camarada em dificuldade, o herdi central tenha pegado numa moca que 0 urso dfasta com um gesto irénico, mas um bom chuco seria mais indicado. Os machados dos outros dois séo brinquedos de carnaval: um bocade de silex atado a um cabo é, certamente, fonte de dissabores na caga grossa e os homens pré-histéricos contavam, mais prudentemente, com as suas terriveis zagaias de ponta de inarfim. Aprovemos o iltimo personagem que, na penumbra, contempla com um gesto de prudente reserva esta cena sem sentido! Desde hd cem anos, a ciéncia progrediu e jé sabemos melhor como viviam os homens pré-histéricos... (Foto Musée de ’ Homme, Louis Figuier, «L’ Homme primitif», Paris, 1870). Seat tt Bears go ei % a 2 Beek PBS a Seen eaness ah ee te ERP eer PREFACIO Hoje sabemos que a espécie apareceu sobre a terra em épocas muito anteriores Aquelas que nos deixaram testemunhos escritos ou orais. Os tempos histéricos; por muito longe que situemos o seu ponto de partida, ndo passam de uma pequena franja de alguns milhares de anos no extremo de um periodo muitas dezenas de vezes mais longo, durante o qual este mesmo pais de Pranga, que desdobra hoje aos nossos olhos a sua paisagem familiar de estradas, de cidades e de campoos cultivados, era ja habitado por homens, nossos longinquos predecessores. Quem eram eles? Que sabemos deles? A imaginacao, sem 0 auxilio da ciéncia, é mais pobre do que se julga. Os escritores e artistas que, no’século passado, tentaram reconstituir as épocas primitivas da humanidade contentaram-se muitas vezes em mostrar criaturas com formas puras de estatuas gregas, vivendo uma exist€ncia harmoniosa e pastoril no meio de paisagens pacfficas. Inversamente, alguns autores representam o nosso antepassado pré-histérico como uma espécie de gorila violento e cruel, quase desprovido de inteligéncia e de tradicao... 9 Os pré-historiadores, que trabalham sobre factos concretos e com métodos cientificos, substituem progressivamente estas fantasias por um certo ntiimero de conhecimentos seguros e hipéteses provaveis. Sem diivida que, como todos os especia- listas, acabam.por ver as coisas de uma forma um pouco particular. A forga de passar o tempo, desde a juventude, a vasculhar os arquivos da terra, julgam perfeitamente normal o facto que o homem de Mauer, de que apenas resta um maxilar encontrado em Heidelberg, tenha vivido ba duzentos ou qui- nhentos mil anos, enquanto que as pinturas da gruta de Lascaux datam, quando muito, de ha quinze mil anos, o mesmo é dizer de anteontem. Ao privar com o homem de Fontéchevade, os pré-historiadores chegam a esquecer que ele nao passa de um bocado de caixa craniana e, na nossa gruta em Arcy-sur-Cure, evocamos familiarmente «Augustine», sentada na pedra em que acabou de se instalar ha justamente uma glaciagio e meia. Augustine cuidou mal da casa e encontramos restos de mamute em todos os cantos onde ela nao passou a vassoura. S6 conhecemos Augustine através de uma metade de maxilar, mas que maxilar! Devia partir um fémur de rena com uma sé dentada. E quanto basta para Ihe conferir uma forte personali- dade. *Se um dia tiverem vontade de raspar o solo de uma gruta, espero que, tendo lido este.livrinho, se lembrem que nao se entra por arrombamento na intimidade de Augustine. As gentes pré-histéricas tem um modo particular de se fazerem compreen- der, nado desprovido alias de graciosidade. Nao desvendamos os seus segredos. Entregam-se por alusdes e, como num romance ~ policial, torna-se impossivel reencontrar a pista se, inadverti- damente, despejamos o cinzeiro que tinha a ponta de cigarro reveladora. Se tudo fosse tao simples como estas paginas por vezes sugerem, j4 h4 muito que nao haveria mistério e, por conse- guinte, nao haveria necessidade de pré-historiadores: Em con- trapartida, também nao nos devemos deixar enganar pela aparente complicac4o do resultado de uma escavagao moderna: numerosas plantas, centenas de paginas de notas, andlises 10 [982 da nossa era bl SiH HISTORIA, 200 nascimento de Cristo NEOLITICO E METAIS PROTO-HISTORIA, MESOLITICO, = ‘dade HOMO SAPIENS } ou f Homens \ diferentes dohomem y actual I HOMEM DE NEANDERTAL. fone Homem actual |- | | 9 < z 2 Ee 3] = 2 S| ,soo00 PITECANTROPO ko) 4 Chegada =] do Homem a Europa > 2000000 HOMO HABILIS 3500000 AUSTRALOPITECO Neste quadro pode-se ver a desproporgdo entre 0 tempo hist6érico “ (cerca de 5000 anos} e 0 tempo pré-histérico (cerca de 2 milhées de anos). Vé-se o tempo necessdrio para passar do fogo & panela, assim como a continuidade de uma ferramenta como a faca que, aperfeigo- ando-se lentamente, atravessa todos os tempos. ll quimicas, pedacinhos de ossadas e de silex, amostras de toda a espécie. Se nao existissem meios de orientagio no meio de todo esse material, a ciéncia pré-historica nao se teria podido formar progredir. Aquilo que nos interessa antes de mais é tentar compreender 0 que Augustine, o seu marido e os seus contemporaneos faziam com as maos durante as longas noites de inverno, no fundo da gruta. Certamente que trabalhavam duramente para conseguir 0 minimo vital de rinocerontes lanosos e de cavalos selvagens e trabalhavam melhor do que habitualmente se supde. Temos a Quando descobrimes o primeiro fragmento de homem musteriense, alguém no nosso grupo teve a ideia de o baptizar «Augustine», para nGo lermos que repetir constantemente: «o becado de mandibula do paleo-antropéide muito antigo da camada 20 do quadrado A9 da gruta da Hiena em Arcy-sur-Cure», 0 que se tornava fastidioso. Vemos aqui o maxilar e a mandibula e, & esquerda, as mesmas regides tiradas de um homem moderno para dar uma ideia das proporcées. Um maxilar é pouca coisa, mas jé hd anos que pesquisdvamos nesta caverna, sabiamos ja muito sobre os seus ocupantes pré-histéricos, faltando apenas um vestigio da antiga locatéria e um nome pitoresco para fazer reviver a nossa heroina (Foto A. Leroi-Gourhan). 12 tendéncia para renegar injustamente estes neandertalianos de cranio rebaixado e grandes maxilares, tal como um senhor de grande linhagem fingindo ignorar que o avé do primeiro barao trabalhava a gleba no tempo dos Merovingios. Estariamos mais dispostos a dar lugar na nossa 4rvore genealégica aos pintores que ornaram as paredes das cavernas famosas. Esquecemos que esses artistas teriam tido dificuldades para criar se os seus primos de testa curta nao Ihes tivessem reunido, durante milénios, um sério capital de conhecimentos legados em he- ranga. Admitimos sem dificuldade que a ciéncia do séc. XX saiu da do séc. XIX e assim sucessivamente, recuando até Platéo ou Arquimedes. Mas antes? Antes, era a Idade do Bronze e, antes da Idade do Bronze, era o Neolitico, o tempo dos primeiros agricultores. Ainda conse- guimos imaginar esses cultivadores como obscuros antepassa- dos dos filésofos gregos. Mas antes? Antes, era a Idade da Rena. Nao havia senio cacadores de rena e pescadores de salmao. Tinham um rosto semelhante ao nosso e sabiam esculpir bisontes na pedra. E no entanto parecem-nos j4 muito afastados sendo necessério fazer um esforgo para imaginar que 0 seu modo de vida teve a sua parte de influéncia determimante nas formas contemporaneas da socie- dade humana. Mas ainda antes? Antes, havia cagadores, mas estes nfo se assemelhavam de todo aos homens actuais. Os mais antigos s4o frequentemente descritos como espécies de simios superiores. E desta feita nao ousamos acreditar que Descartes, Lavoisier ¢ os cientistas da era atomica devam o que quer que seja ao pitecantropo. E no entanto assim é. Caso se tivesse verificado um corte minimo na lenta aquisigao das técnicas essenciais, tudo deveria recomegar. Nem sempre reflectimos suficientemente na continuidade da cadeia que nos une a um passado inacess¥el. Imaginamos vagamente os homens da pré-histéria batendo ao acaso em pedras para delas retirar utensilios miseraveis até que, um belo dia, o homem actual ‘teria entrado no palco da histéria e tudo 13 | 1 i 1 teria mudado. Nada de mais falso. O nosso mundo classico nao tem mais do que alguns milhares de anos, mas, para prepard-lo, o homem trabaihou durante pelo menos dois milhdes de anos. As maravilhas da ciéncia moderna so o fruto de uma longa maturagao € veremos nestas paginas que os britadores de sflex, de testa curta e grande queixada, sabiam j4, tao bem como nés, escolher a sua matéria-prima, tragar um plano de fabrico e produzir artigos em série. Capitulo I COMO SE ESCREVE A PRE-HISTORIA Existem poucas ciéncias de abordagem tao facil como a pré-hist6ria e cujos materiais sejam t&o correntes e acessiveis. Os homens de outrora abandonaram pelo chao, as dezenas de milhées, as pedras que tinham talhado. Em muitos sitios, basta cavar a terra para descobrir, sob a forma de ossadas ¢ cinzas, os vestigios dos antigos estabelecimentos humanos. E no entanto nao se faz pré-histéria apanhando machados talhados, tal como nao se faz botinica colhendo alfaces. A terra € um livro maravilhoso; infelizmente, 0 tempo esgravatou-o e roeu-o e ele esté escrito numa lingua diffcil, bem mais dificil que as dos velhos pergaminhos. Mas os pergaminhos ndo contam senao uma pequenissima parte da historia da nossa espécie. Para conhecer o resto, nao temos outro recurso sendo debrugarmo- -nos sobre os arquivos do subsolo ¢ tentar Ié-los. Ha pouco mais de um século que os pré-historiadores empre- enderam essa decifragio. O que hoje sabemos do passado longinquo da humanidade é considerdvel. Para chegar a este resultado, foi necesséria muita paciéncia e engenho. O registo dos arquivos da terra A superficie da terra é trabalhada por duas acgdes contrarias bem conhecidas pelos gedlogos. Por um lado, as rochas sao 15 Imagindmos aqui um belo local pré-histérico, tal como alids existe frequentemenie na realidade. Sob a actual paisagem jaz uma gruta de cuja existéncia nao se suspeita porque grande parte do tecto desabou e est recoberto por depésitos da vertente. O livro da terra esta at, protegido por uma espessura de metros de entulho. corroidas pelo vento, as intempéries e sobretudo a agua: 6 o que se chama erosdo. Por outro lado, os produtos da erosao, arrastados pelas 4guas depositam-se em certos locais em cama- das sucessivas: é a sedimentagao. “Para os dois ou trés milhdes de anos que nos interessam neste livro, nao temos que nos preocupar senfo com a parte mais recente dos fendmenos geoldgicos, como o nascimento de montanhas ou a formagéo de camadas sedimentares marinhas que podem atingir quilémetros de espessura. Estes factos nao pertencem & historia da humanidade, mas a da terra, que se conta em biliées de anos. Quando os primeiros homens apare- ceram neste planeta, os continentes e os mares j4 eram aproxi- madamente os mesmos de hoje. Mas a erosao continuou, desde entao, a escalvar as monta- nhas. O cascalho arrancado dos cimos encaminhou-se lenta- mente para os vales; os blocos transformaram-se em seixos, depois em gravilha, mais tarde em areia e, finalmente, em lodo impalpavel. O agente do transporte é a agua, a chuva que, de 16 rego em regato, de regato em riacho, em ribeiro e em rio, arrasta a cobertura do terreno para o mar,’milimetro a milimetro, para, finalmente, a enterrar nas profundezas. Se pudéssemos instalar uma camara diante de uma paisagem ¢ fazer uma fotografia todos os cem anos, a projecgio do filme mostraria bem como as partes méveis do solo escorregam pelas vertentes e desaparecem nos cursos de 4gua. O filme mostraria também que este deslocamento nao se opera de forma idéntica e continua. A erosdo deixa momentos de repouso aos materiais transportados: estes aproveitam para se depositar nas fendas, nos planaltos, nos fundos dos vales. Um dia, sfo apanhados de novo e arrastados para mais longe. O repouso pode ser curto; pode também durar séculos e parecer mesmo indefinido. Os sitios pré-histéricos encontram-se em locais onde as camadas sedimentares subsistiram sem estragos de maior. E nesses lugares privilegiados que foram registados os arquivos da terra. Imaginemos, por exemplo, um canto de falésia bem abrigado sob uma saliéncia, um pouco acima do nivel de uma ribeira. Alguns homens escolheram este abrigo pata morada. Comem animais, deitam fora os ossos rofdos, abandonam as facas de silex estragadas, acendem fogos para se aquecerem. Um dia partem. A falésia continua a desagregar-se lentamente sob as intempéries. Em poucos anos, os reduzidos vestigios dos cagadores so recobertos por uma camada de pedras e de lodo. Esta escrita a primeira pagina. Alguns séculos ou milhares de anos mais tarde, outros cagadores, ignorando tudo acerca dos seus predecessores cujos vestigios estéo enterrados sob os seus pés, descobrem 0 mesmo abrigo, af se instalando por sua vez. Partirao também, deixando outros restos, caracteristicos do seu modo de vida, em breve cobertos pelos sedimentos. E assim por diante, até ao dia em que uma ultima corrente de pedras nivelara definitivamente o abrigo, fechando a capa do livro do passado. Durante esse tempo, outros homens se instalaram nas mar- gens das ribeiras. Geragao apdés geragio, as inundagées reco- briram com uma camada de lama e areia as suas armas partidas, os objectos perdidos, as lixeiras. Em toda a parte onde viveram os nossos antepassados, camadas de sedimentos fixaram um pouco da sua histéria, desde W os capitulos mais antigos até aos mais recentes. Mas muitas vezes interveio a erosio, deslocando os sedimentos, arrastando ou baralhando tudo. Os arquivos da terra nao se parecem com um livro novo, mas sim com um velho manuscrito rasgado e amarelecido. Em parte alguma se encontra uma narrativa completa da aventura humana, da primeira 4 ditima linha: apenas, aqui e ali, uma folba arrancada, por vezes alguns capitulos que se sucedem, mas que € necess4rio ligar aos demais restos da obra. Os sitios pré-histéricos Entre os milhdes de locais onde o homem viveu, um sitio pré-hist6rico é, em suma, um lugar que escapou mais ou menos As destruigdes do tempo. Proporcionalmente 4 superficie da terra, estes locais sao pouco numerosos. Nao contém todos o mesmo tipo de documentos. Que documentos sGo esses? Para melhor compreender, olhe- mos para a casa em que estamos neste momento e imaginemos que é abandonada, tal como est4, durante alguns milhares de anos. Os materiais mais fracos desaparecerao muito depressa: a costeleta no aparador nfo passaré de um osso, as cortinas reduzir-se-Ao a um varao e as argolas. Depois apodrecera e desfazer-se-4 a madeira dos méveis; do aparador nao ficaré sendo um punhado de pregos e algumas ferragens ¢ da cama um monte de molas. Finalmente, a casa desabaré em cima de tudo. Imaginemos que esta pacifica familia de montanheses vietnamitas seja subitamente atingida por um cataclismo. Que restard deles para informacao dos pré-historiadores? (Foto Gabille}. Veja-se o plano da escavagao tal como o desenharia o arquedélogo. Esqueletos de uma galinha, de um porco, de um céo, os esqueletos de uma crianca, de uma mulher, de um homem e de dois adolescentes, vestigios deixados pelos postes cravados na terra, mas a tinica indicagdo acerca do seu modo de vida, 0 tnico objecto que subsiste, € 0 colar de prata da crianca. Se as ossadas tivessem sido assimiladas pelo solo, como acontece a maior parte das vezes, este quadro de camponeses eauipados de forma bastante satisfatéria reduzir-se-ia apenas ao colar. 18 Nao havera mais do que pedras, vidros quebrados, louga partida, ferrugem, uma quinquilharia informe que excitara a curiosidade dos arquéologos futuros, mas que Ihes causaré bastantes problemas caso queiram reconstituir a atmosfera de um serao familiar nessa ‘casa no tempo em que era uma casa viva. Para que serviriam aquele varao e as suas argolas? Seria um guizo, um jogo de sociedade? E aquelas estranhas molas. Seriam pulseiras de mulher, o 6rg4o principal de uma maquina que langava projécteis ou enfeites de um chapéu de ceriménia? Se pensou bem naquilo em que se tornaria a sua casa abandonada est4 em condigdes de compreender a pré-histéria, ciéncia apaixonante, mas onde é necessdrio ser-se muito pru- dente nas afirmagées; é capaz de imaginar o que se encontra num sitio pré-hist6rico e como se interpreta tudo 0 que ai se encontra. Nas camadas recentes — isto €, até cerca do ano 2000 antes da nossa era — encontram-se objectos de osso e de metal (ferro ou bronze), lougas, objectos de pedra, por vezes de madeira, raramente se encontram tecidos, ha grande abundancia de ossos dos animais consumidos e com menos frequéncia, sepulturas humanas. As camadas que remontam até oito mil anos antes da nossa era contém os mesmos vestigios, mas, em vez do metal, que era ainda desconhecido, encontram-se pedras lascadas ou polidas. Mais abaixo, isto é, mais antigamente, durante toda a idade da rena, a lista reduz-se aos objectos de osso, as pedras lascadas, as ossadas de animais e, As vezes, de homens. Em muitos depésitos, nao subsistem sendo os objectos de pedra ¢ uma quantidade, muitas vezes minima, de vestigios ém matéria 6ssea. A conservacao dos ossos é um fenémeno deveras excepcional. Se os ossos se conservassem indefinidamente, viveriamos no meio de milhdes de esqueletos de dinossauros, de mamutes e de baleias. Em condigdes normais, a matéria das ossadas, é rapidamente recuperada pela natureza. E a partir destes magros testemunhos que vamos tentar reconstituir a vida dos homens pré-histéricos... Ha diferentes tipos de sitios. Os mais frequentes sao os que se encontram nos aluvides dos cursos de Agua ou nos grandes depositos de lodos coluviais e edlicos que recobrem as verten- 20 tes. Muitos dos objectos de pedra lascada encontrados nos aluvides perderam qualquer ligagao com o seu meio de origem, mas, desde ha alguns anos, descobriram-se em Franga habitats de ar livre que escaparam a destruigao natural. Infelizmente, a maior parte destes testemunhos preciosos de todas as épocas da pré-histéria sao destrnidos pela extracgao de areias, lavouras profundas ou grandes barragens. As grutas e abrigos constituem locais néo menos preciosos. Uma gruta é como uma caixa que encerra e protege 0s sitios pré-histéricos. Esta proteccéo nao é absoluta, nem sempre impede as alteragGes, mas é muitas vezes eficaz e por vezes milagrosa. Infelizmente, as grutas agrupam-se num pequeno nimero de regides e muitas delas foram j4 saqueadas pelos coleccionadores ou pelos investigadores improvisados da pré- -histéria. Para a ciéncia, a protecgdo das grutas é tio importante como a protecgao dos manuscritos nos arquivos. Mas enquanto que nao passa pela cabega de ninguém querer ler um manuscrito antigo sem saber latim, muita gente julga que basta abrir a terra para saber o que ela contém. As turfeiras e os lagos tm o mérito excepcional de conser- varem os objectos de madeira, as folhas, as sementes. E sobretudo gragas aos objectos éncontrados nas turfas que ndés conhecemos a vida dos primeiros camponeses de ha quatro mil anos. As camadas recentes, na terra vegetal actual ou pouco mais fundas, nao respeitam propriamente a pré-histéria. Podem, no entanto, conter, em bom estado, as sepulturas, os fundos de cabana, os fornos de barro ou de fundigo de metal dos homens do Gltimo periodo que precedeu os tempos histéricos. B neste tipo de sitios que se encontram os délmenes e os menires. Os sitios pré-historicos de superficie sao intimeros. Quando a erosdo se processa suavemente, arrasta a terra para os cursos de Agua mas deixa as pedras a superficie do solo. Encontramo-las assim, nos campos, no momento da lavoura. De um modo geral estes sitios nao conservaram sendo as pedras talhadas e, muitas vezes, encontram-se misturados objectos de épocas diferentes. Por isso nao fornecem a ciéncia sendo documentos secundaérios, tal como num manuscrito onde sé se encontrassem letras recortadas e espalhadas ao acaso 21 Decifragao do manuscrito: as escavagées Completemos a nossa comparagio. Para ler um manuscrito antigo é preciso manused-lo lentamente, pagina a pagina, instalar-se diante de cada uma das folhas e, sem pressas, procurar compreender 0 texto dificil que se tem sob os olhos. O principio das escavacées pré-histéricas 6 o mesmo. E preciso pér.a descoberto a primeira camada tanto quanto possivel, sem nada deslecar. Quando abrimos diante de nés essa grande pagina de terra com tudo o que ela contém, é preciso anotar, fotografar, desenhar, tentar compreender tudo 0 que se vé. Cada gro de terra, cada bocado de carvao, cada pedago de pedra informe, contam tanto como as mais belas pontas de silex talhado. Raspar a terra ¢ tirar dela, a pouco.e pouco, os objectos que chaniam a ateng4o ou que agradam seria a mesma coisa que copiar um texto anotando apenas os substantivos e abandonando os artigos, os pronomes, os verbos, todos os acessérios da.- sintaxe. Por outras palavras, seria condenar-se a no compreen- der nada de nada. S6 quando se acabou de decifrar a primeira camada é que se podem reunir os objectos encontrados, pér de lado as amostras € os testemunhos necessarios 4s investigagdes e descer ao andar seguinte. Todo este trabalho exige muito tempo, muita pacién- cia e também algum material adequado. Para ler na terra nao basta uma picareta. A escavacao é uma verdadcira dissecagao do solo. Na maior parte das vezes, é armado com raspadores, pingas ¢ pincéis que o pré-historiador descobre, grao a grao, 0 solo sobre 0 qual andaram os seus antepassados. O que importa acima de tudo é nao deixar escapar o minimo indicio. Os planos e as fotografias devem permitir encontrar mais tarde os pormenores da posigao de cada um dos vestigios, balizando e marcando todas as parcelas dignas de interesse. Todas as amostras titeis devem ser recolhidas e classificadas: Aqui, a nossa comparacao deixa de ser completamente valida. Com um manuscrito, pode-se voltar atrés e considerar de novo uma passagem ja lida. A terra, porém, 6 um livro cujas paginas sao destrufdas 4 medida que se passam; s6 pode ser lido uma vez no texto original, quando uma camada de terra é retirada, tudo o que nao foi transcrito esta irremediavelmente perdido. 22 «Raspagem» de uma camada musteriense. Os vestigios séo lenta- mente postos a descoberto com instrumentos muito finos e deixados no seu lugar para ulteriores observagées. Descobrimos aqui restos de hienas das cavernas, de cavalo selvagem e de mamute. (Foto J. Vertut) Cada amostra recolhida sera objecto de um trabalho particu- lar. Os objectos fabricados pelo homem, tais como as pedras talhadas, serio entregues ao especialista da tipologia, que os compara com as descobertas anteriores. As ossadas humanas irfo para o antropélogo, que definiré o tipo racial dos homens a quem pertenceram. O paleontologista ocupar-se-4 das ossadas dos animais; ajudara, principalmente, a definir 0 clima do periodo em que viveram e determinara as diferentes espécies encontradas no depésito, esforgando-se por distinguir as que foram comidas pelo homem e as que ai foram morrer natural- mente. O polindélogo recolheré, em condigdes de absoluto 23 Nem todos os homens viviam em cavernas. Eis a localizagao de uma tenda de cacadores de renas magdalenenses em Pincevent (Seine-et- -Marne}. Vé-se a solo pejado de centenas de silices, de ossos e de pedras que estalaram nas lareiras. O grupo de pedras e de carvoes da esquerda é a lareira. A direita, as diferentes manchas negras correspondem as cinzas retiradas da lareira e misturadas a detritos damésticos. (Foto A. Leroi-Gourhan). isolamento, parcelas de terra para nelas procurar os pdlenes fossilizados das plantas da época. Amostras de terra mais yolumosas serao confiadas ao gedlogo, que fard a histéria da sedimentagao e da erosao do local exacto onde foram recolhidas; encontrara as particulas trazidas pela agua e pelo vento, os vestigios dos grandes frios, uma quantidade de pormenores que permitirao, também eles, compreender o clima e as condigdes de vida, enquanto o geomorfologista procedera a reconstituigao da paisagem da época. Os fragmentos de madeira carbonizada serao estudados pelo botdnico e pelo fisico; o primeiro indentifi- caré as plantas que serviam para aquecimento; o segundo, medindo a radioactividade, dara uma ideia da idade da camada. Tentar-se-4, por todos os meios, nado perder uma virgula do texto pré-histérico. Este sera submetido aos raios ultra-violetas 24 vcpinanrr eet tas ma ‘ace iiinniin nit i TMT 3 eet i isieenraeyjtl] raNMNAAGITTANTTT 19 WW 12 13 Pratt O «livro da terra» visto em corte... O desenho representa esquema- ticamente um corte de depdsito onde se véem camadas de aluimento progressivo do tecto da caverna, lareiras (marcadas com cruzes), grandes depésitos de ossos na camada 5 e na camada 10, as presas de mamute da p, 129. ou infra-vermelhos para descobrir o que a vista talvez nao descubra com a iuz ordinaria. Quando, finalmente se tomar a decisio do gesto fatal, quando se destruir a camada para 25 descobrir a que esta por baixo, ter-se-4 feito tudo para salvar o texto desta primeira pagina dos arquivos. E mesmo assim apenas se explora uma parte do sitio; conserva-se como «teste- munho» o mais que se pode, para que, dentro de vinte anos ou de varios séculos, com meios cientificos mais aperfeigoados, os futuros pré-historiadores possam retomar a decifracao. Como é utilizado 0 texto Eis-nos de posse de informagGes acerca dos instrumentos de pedra, dos animais, das plantas, do clima, dos homens de varias camadas de terra sobrepostas. Nao temos nenhuma referéncia escrita e muito poucas nogdes sobre a localizagao das diferentes massas de documentos no tempo, sobre o nimero de anos, de séculos ou de milénios que os separam. Ignoramos os nomes desses povos, dos seus chefes, dos seus deuses. Nada nos sobrou da sua lingua, das suas ideias, da sua misica. Mesmo para reconstituir a sua vida mais material, 0 pouco que nos chegou apenas fornece uma pobre informagao;, € como se nos pedissem para desenhar © traje de gala de um granadciro do Império tendo, por tmico testemunho, o botao de um dos bolsos. Simplificando um pouco, vejamos como se conseguiu deci- frar o passado longinquo a partir de elementos, a primeira vista desencorajadores. Foi em meados do séc. XIX que se comegou a reflectir seriamente no que poderiam significar estes silices talhados que se encontram no solo. Eis a primeira visio dos factos, tal como apareceu aos precursores da ciéncia pré-histérica. Os silices nao podem ser sendo instrumentos que pertenceram a homens; ¢ dado que est&o enterrados a uma certa profundidade, € porque s4o muito antigos. Por outro lado, essas pedras estao, acompa- nhadas por ossadas de mamute, de rena, de varias espécies de animais desaparecidos ou nao vivendo j4 no nosso clima. Conclui-se entéo: o homem, numa alta antiguidade, vivendo num clima diferente do da Franga actual, talhava armas e instrumentos de pedra. Estes primeiros resultados abriam horizontes completamente novos sobre as origens da humanidade, e foram suficientes para pér os espiritos em ebulic&o durante todo o tltimo tergo do séc. XIX, : 26 \ Mas a segunda visio dos factos, a nossa, é mais complexa. Suponhamos que temos para estudar varios grupos de pedras talhadas escalonados no tempo. Cada lote difere do anterior. HA varios «estilos» que parecem ter-se sucedido. Cada estilo foi baptizado com um nome que lembra, em geral, a localizacio geografica de um sitio pré-hist6rico francés. Temos assim, por exemplo, trés lotes que pertencem aos estilos seguintes: 1. Acheulense, de Saint-Acheul (Somme); 2. Solutrense, de Solutré (Saéne-et-Loire); 3. Chassense, de Chassey-le-Champ (Saéne-et-Loire); Temos, por outro lado, lotes de animais encontrados nas épocas correspondentes. No exemplo dado, sao: 1. Elefante antigo, rinoceronte de Merck, gamo gigante; 2. Mamute, rinoceronte lanoso, rena; 3. Cervo, castor, porco doméstico. Estes animais representam aproximadamente os seguintes climas: 1.-Temperado com animais j4 desaparecidos; 2. Frio com animais parcialmente desaparecidos; 3. Temperado com animais em parte domesticados. Por outro lado, o estudo dos pélenes fossilizados fez-nos descobrir para os trés lotes as seguintes plantas: 1. Vinha selvagem, buxo; 2. Bétula, salgueiro; 3. Carvalho, faia. As amostras de terreno também trouxeram informagées: 1. Uma antiga praia de um curso de Agua; 2. Uma vertente de lodo argiloso e de fragmentos de calcario estilhagados pelas intempéries; 3. Saliéncia, rochosa cortada por um fosso em meio florestal. Possuimos, enfim, documentos sobre os homens das épocas correspondentes ou pr6ximas: esqueletos, esculturas, gravuras €mM ossos ou em rochas. Trata-se apenas de um exemplo sumério. Mas j4 mostra como lemos 0 texto dos nossos arquives pré-histéricos: coordenando os documentos de cada época, comparando as épocas entre sie confrontando todos estes factos parcelares com factos equiva- lentes no mundo actual. 27 Capitulo I OS CLIMAS E A NATUREZA Nos principios do século passado, o grande naturalista francés Cuvier, estudando os ossos encontrados no solo, provou que pertenciam a animais de espécies desaparecidas. Fez mais: a partir de alguns fragmentos de que dispunha, conseguiu recons- truir inteiramente esses estranhos animais. Mostrou ainda que tinham vivido certamente no meio de uma vegetagio e em condigdes gerais muito diferentes daquelas que hoje se conhe- cem nas mesmas regides. Assim, quando os pré-historiadores edificaram a sua nova ciéncia, j4 estavam familiarizados com a ideia de que a natureza e os climas tinham sofrido profundas mudangas num passado longinquo. Comegavam nao s6 a ser conhecidas as grandes faunas desaparecidas, isto é, as espécies que existiram em conjunto em épocas sucessivas, como classificadas na ordem cronolégica em que viveram. O que parecia mais impressio- nante era o facto dos animais que povoaram as nossas regides nas eras primaria, secundéria e terciaria apresentarem caracte- risticas de animais de um clima quase tropical. Quando Boucher de Perthes e os seus discipulos mostraram que outrora em Franga tinham vivido homens desde o principio do quaternério, ao mesmo tempo que os elefantes ¢ os rinoce- trontes, defrontaram-se com o cepticismo dos adversdrios da pré-histéria. Estes admitiam que tais animais tivessem existido nas nossas regides, pois o facto era aceite, mas admiraram-se com a fabulosa antiguidade que semethantes companheiros 29 [ i conferiam 4 espécie humana, até ento tida como muito mais recente. Depois dos vestigios de elefantes lado a lado com os silices talhados nos depdsitos de aluvides, as pesquisas nas grutas revelaram uma fauna nado menos estranha, composta por renas, bisontes, raposas polares, bois moscados. A Franga conhecera, portanto, alternadamente uma temperatura quase tropical e um clima vizinho do da Lapénia. Impés-se rapidamente a ideia de que o homem nio s6 havia sido contemporaneo de varios grandes animais desaparecidos mas também que atravessara mudangas considerdveis de clima. Como se. produziram essas mudangas? Os progressos da geologia no principio do séc. XX mostraram que a evolucao dos climas tinha sido muito complicada. Desde os comegos da vida na terra, os climas sofreram importantes mutagdes periddicas, principalmente caracterizadas por aquecimentos e arrefecimen- tos sucessivos. Para a era quaterndria ou Plistoceno e para a Ultima parte da tercidria ou Plioceno, os pré-historiadores supuseram primeiramente que as variagdes de clima tinham sido enormes. Aperceberam-se finalmente que em regides de zona temperada e de relevo acidentado, como a Franga, desvios de menos de dez graus sobre as médias de temperatura anual podem ter sido suficientes para modificar completamente a dimensao dos glaciares e a posigéo das espécies animais e vegetais. Quando.a temperatura média se eleva ou abaixa, modifica-se o regime das chuvas. Quando aumenta a pluviosidade a erosio é naturalmente mais répida; quando chove menos, abranda. As modificagdes do regime das chuvas implicam modificagées do ritmo da eros#o, de modo que as diferengas de clima se inscrevem, por assim dizer, automaticamente nas camadas de sedimentos. E por isso que vamos, primeiramente, interessar- -nos pela terra que envolve os sitios pré-histdricos. As camadas e os periodos glaciarios Para compreender como é que se constituiam os arquivos da terra, € preciso imaginar a historia de um grande curso de agua, pois a erosao intervém primeiro que qualquer outra coisa. 30 A 4gua desce das montanhas e traga um sulco até ao mar. Se movimentos amplos da crusta terrestre ndo vierem modificar a altitude das montanhas e das planicies, o nosso ribeird no cessa de aprofundar o seu vale e de abaixar pouco a pouco o seu nivel, aproximando-se do do mar. ~, Suponhamos que a temperatura média diminui. Os glaciares expandem-se de imediato. Os Alpes, os Pirinéus, todo o norte da Europa sao recobertos de um inlandsis, de uma pesada calota de gelo como a que cobre a Gronelandia actual. A massa de Agua assim retida basta para abaixar de algumas dezenas de metros 0 nivel do mar. Precipitado mais para baixo, o curso de 4gua aumenta a sua velocidade de escavacao, varrendo um vale de vertentes inclinadas. Mas eis que, milhares de anos depois, a temperatura média se eleva de novo. Os glaciares fundem ¢ recuam, © nivel do mar eleva-se de novo. A ribeira, progressi- vamente travada, corre mais devagar ¢ abandona pelo caminho uma parte dos aluvides que, com uma forga maior, arrastava até ao mar. Aterra assim a parte inferior do vale, formando largas planfcies aluviais. Se vier de novo um longo periodo de frio, o mar baixa, a descida acelerada recomega com uma escavacdo rapida e as planicies aluviais permanecem como um terraco suspenso por sobre o curso de agua. As oscilagées de clima podem reproduzir-se um certo nimero de vezes. A ribeira continua a descer, abandonando nos flancos terragos escalona- dos. Cada tetrago corresponde_a um perfodo de _clima mais quente, a um periodo_interglacidrio. Os terragos mais antigos estio em cima, os mais recentes 4 beira da agua. Por seu lado, o glaciar, que é um rio de gelo, inscreve'os seus avangos € recuos alternados abandonando depésitos de moreias, longos declives de sedimentos grosseiros. Enfim, a beira-mar também conserva o testemunho destes movimentos sob a forma de praias antigas, umas debrugadas sobre © litoral actual, outras pelo contrario escondidas debaixo das 4guas. Os gedlogos ocuparam-se de todas estas camadas ou estratos de materiais muito diferentes, grossos, médios ou finos, rolados pela agua ou estriados pela progressao lenta do glaciar, destrui- dos pela intempérie, polidos pelo vento. Tentaram compreender a subtil orquestragao de mudangas de clima inscritas- nos 31 estratos. A leitura desses tragos é muito dificil, pois as coisas nao se passaram de forma tao simples como no nosso esquema teérico. Outros fenémenos intervieram, muitos acidentes locais complicaram o quadro. Aqui, a terra levantou-se lentamente, provocando um aprofundamento em periodo de preenchimento; além, a eroso levou todo um episédio; acolé, um meandro do rio deslocou-se e os estratos no correspondem sendo a esta deslocagio lateral sem relagio com uma mudanga de clima. Enfim, como toda esta evolugao se deu antes dos tempos historicos, ndo dispomos de um critério para saber se os cortes de tal regio correspondem temporalmente aos cortes de uma outra. O resultado que os cientistas ainda discutem para decidir com seguranga acerca do numero de periodos glaciarios ¢ das pequenas oscilagées secundarias de clima. No entanto, criou-se 0 habito de considerar que houve quatro grandes periodos durante os quais os glaciares cobriram uma grande parte da superficie dos continentes. Baptizaram-se essas quatro glaciag6es sucessivas com Gs nomes de quatro pequenos afluentes do Dantibio, onde os seus vestigios foram estudados pela primeira vez: Giinz, Mindel, Riss e Wiirm. Compararam-se as observa- des feitas nos terragos dos cursos de 4gua com as das praias maritimas, de modo a estabelecer uma correspondéncia entre as praias € os terragos, que proviriam das mesmas flutuagdes de clima. Para as glaciagGes de Giinz e de Mindel, que séo as mais antigas, as aproximagées sfio problematicas. Para a de Riss, séo um pouco mais seguras. Para a de Wiirm, as concordancias estado relativamente bem estabelecidas. Ora o tempo que dura a glaciagio de Riss, o periodo interglaciério Riss-Wirm e a glaciagio de Wiirm, talvez 200.000 anos, corresponde ao periodo de desenvolvimento dos antepassados directos da nossa cultura: o homem de Neandertal e o homo sapiens actual. Este corte de terreno de Pincevent foi escothido pela sua extensao e porque se encontra numa parte do depésito em que os diferentes niveis esiao bem representados. As camadas finas alternadas de lodo arenoso e de areia lodosa constituem uma imagem da estratigrafia, isto 6, da idade relativa dos documentos que ai se descobrem. (Documento M. Orliac). 32 \. GALO-ROMANO ‘ PROTO-HISTORICO NEOLITICO MESOLITICO VXY\\ MEDIEVAL EPIPALEOLITICO MAGDALENENSE fodo das cheias _ |iveis de phabitat << areias e calhaus 33 O testemunho das plantas Os graos de pélen, microscépicos, resistem maravilhosa- mente as forgas de destruigio. Quando esto depositados nas melhores condig6es, por exemplo, num solo turfoso, transpdem sem alteragio dezenas de milhares de anos. Todos os anos, muitos bilides destes graozinhos espalham no solo, ao sabor dos ventos, a sua poeira impalpdvel. Um botanico, examinando-os ao microscépio, pode facilmente identificar a planta de onde provém. Os graos de pélen indicam, quase com toda a segu- ranga, qual o clima da época em que se depositaram sobre uma camada de terreno. Com efeito, a vida de cada espécie de planta selvagem est4 estreitamente ligada ao clima propicio a essa espécie; as plantas nao tém, como os animais, a possibilidade de fugir ao frio no inverno e de mudar de regio consoante as estagdes. Basta conhecer as espécies vegetais que se sucederam numa regido determinada para reconstituir com exactidéo as variagées do clima nessa regio. Por exemplo, para estabelecer os diagramas polinicos, é preciso fazer, numa camada, recolhas de centimetro em centime- tro se for necessdrio, tomando muito cuidado para que os pélenes recolhidos nao se misturem com os pdlenes actuais. Ao micros- c6pio, para cada amostra, estabelece-se a proporgdo exacta dos pinheiros relativamente as bétulas ou as aveleiras, por exemplo, ou das gramfneas relativamente aos fetos ou & plantas compos- tas, como dente-de-leao. De camada em camada, vé-se bem como uma destas espécies desapareceu ou, pelo contrario, se sobrepés As restantes. As diferentes associagées de plantas que se descobrem em cada camada de terreno nao indicam somente as mutagdes de clima. Revelam também o aspecto das paisagens corresponden- tes: num sitio a floresta hamida, noutro a estepe, noutro ainda os prados entrecortados por bosques (chama-se a este Ultimo género de paisagem 0 parque). Assim, gracas a geologia e a botanica, que se completam uma a outra, j4 dispomos do meio de, nos locais favoraveis a este tipo de investigagdes, reconstituir de forma muito precisa as antigas condicdes de vida dos animais e dos homens. As investigagées sobre as plantas da época quaterndria 34 an mostraram primeiramente que, a excepcdo de certas pontas verdadeiramente muito frias, o clima nao apresentou variagées tao extremas como primeiramente se supusera ao descobrir que as mesmas regides tinham sido sucessivamente habitadas por renas e por elefantes. Por exemplo, a temperatura média de Orléans durante os periodos glacidrios era mais ou menos a que hoje vigora em Copenhague; e nas épocas mais quentes dos periodos interglaciarios, nao deve ter ultrapassado a temperatura actual de Sevilha. Ha ainda, porém, que corrigir a importancia deste tipo de comparagées, lembrando-nos que, se a temperatura média de uma regiao variou, a sua latitude, em contrapartida, manteve-se igual; para retomarmos o nosso exemple, o sol subiu sempre mais alto no céu de Oriéans que no de Copenhague. Em muitas regides, as diferengas de clima ligadas as variagdes de temperatura e de humidade devem ter sido menos acentuadas do que as aproximagées com a geografia actual poderiam fazer crer. Em contrapartida, produzia-se evidentemente um arrefe- cimento considerdvel nas regides vizinhas dos glaciares quando estes desciam para os vales. Foi o relevo muito acentuado da Franga que desempenhou o papel principal nos periodos glacia- rios; imagina-se, mesmo com verdes soalheiros, o abaixamento de temperatura que as enormes massas de gelo que avangavam até 4 beira do Rédano podiam provocar. Durante os grandes frios da glaciagao de Wiirm, que conhe- cemos um pouco melhor que as outras, a Franga deveria oferecer um quadro botanico muito complicado. As plantas dos Alpes desciam até as planicies baixas e vastas extensdes de estepe fria cobriam regides inteiras, enquanto as plantas do periodo interglaciério, semelhante as plantas actuais, continua- vam a agarrar-se ao solo nas regiées distantes do glaciar. Veremos que 0 mesmo se passava com as espécies animais; em certas épocas, a camurga coabitava em Franga com a renae com o cavalo selvagem. Os animais Nos periodos anteriores & glaciagao de Wiirm, a distribuigao das espécies animais s6 nos € conhecida nas suas grandes linhas. Pelo contrario, a partir da glaciagao de Wirm, é possivel representa-la de modo relativamente preciso. Sabemos quais os 35 i | | | clima era semelhante ao clima actual, com as mesmas plantas biotando nas mesmas regides. . Bem ao norte, pela Escandindvia e Russia setentrional, reinam a tundra, pradaria fria coberta de liquenes, e a taiga, floresta pantanosa de amieiras, bétulas e pinheiros. S40 povoadas por mamutes, renas e bois moscados. Alcateias de lobos e de glutées vivem & custa destes animais, quando nao se viram para presas mais mitidas: pequenos roedores, lebres brancas e perdi- zes da neve — que j4 so vitimas habituais da raposa azul ¢ do mocho da neve. A excepgdo do mamute, todos estes animais ainda hoje existem na Sibéria ou no Canada. A sul desta regiéo comecam as grandes florestas de 4rvores resinosas e folhosas. Os principais habitantes dos resinosos sio os alces, as martas, os esquilos da Russia; a floresta de folhosas abriga os veados, os bisontes, alguns rinocerontes lanosos, que também se chamam rinocerontes de narinas separadas. Rinoce- rontes lanosos e mamutes parecem, alids, ter circulado entre a tundra e a floresta. Se continuarmos para o sul, a paisagem diferencia-se. Na Europa ocidental, é ainda a floresta de folhosas cortada por prados (a que chamamos pargue), na Europa Central comegam as grandes estepes que se prolongam até ao norte da China. As estepes € 0 parque sao percorridos por grandes manadas de bois selvagens ¢ de cavalos, aos quais se juntam, para o norte, mamutes, rinocerontes lanosos, as vezes renas. Nas estepes frias vivem © antilope saiga e um pequeno leirao, 0 espermofilo. E a Franca? Pois bem, a Franga durante o periodo intergla- ciério dividia-se, como hoje, em florestas, em prados, em montanhas, com uma vegetacgio semelhante 4 actual. Nas florestas viviam os veados, os gamos, os cabritos monteses, os javalis; nos prados, os cavalos e os bois selvagens, grandes elefantes antigos e rinocerontes de Merck, mais préximos do rinoceronte actual que do rinoceronte lanoso. No Midi e até a Borgonha existiam os burros selvagens. As montanhas eram povoadas por cabras montesas e camurgas, por marmotas. No extremo sul talvez sobrevivessem os tltimos hipopétamos. Todos estes herbivoros eram cagados por muitos carnivoros: lobos mais pequenos que os do norte, caes selvagens, ledes, panteras e, nas florestas, linces. Existiam muitos ursos casta- 38 4h CARVALHAL FAIAL, % % igo [A ESTEPE E O PARQUE TUNDRA-TAIGA, legen Nesta imagem, referente ao sudoeste da Franga, figuram os diferentes grupos de animais caracteristicos de diferentes climas, desde a rena e o boi moscado, que vivem actualmente no Arctico, até aa hipopdtamo. 39 nhos, semelhantes aos actuais, e ursos das cavernas, hoje desaparecidos. Estes dltimos eram de estatura muito varidvel. Alguns n&o eram maiores que um cao dinamarqués, enquanto os gigantes da espécie, em pé sobre as patas traseiras, teriam podido farejar um objecto a quatro metros de altura. Estes ursos das cavemas, que nao deviam ser muito carnivoros, viviam em grupos nos macigos calcdrios e retiravam-se para as grutas para hibernar. Retomando tudo o que acabamos de dizer, vemos portanto que os animais do periodo intermédio entre as glaciagées de Riss e de Wiirm inciuiam, em climas comparaveis aos actuais: 1.° a fauna boreal, especialmente com renas, mamutes e bois moscados; 2.° a fauna da floresta e da estepe setentrional, com alces, mamutes, rinocerontes lanosos e bisontes; . 3.° a fauna das florestas e¢ das estepes temperadas, com cavalos, bois, veados ¢ cabritos monteses; 4.° para os lados do Mediterraneo, os mesmos animais, além dos elefantes antigos, dos rinocerontes de Merck, dos gamogs.e dos burros. Mais de cem mi] anos decorreram desde entao e, no entanto, a maior parte destas espécies ainda existe. Apenas desapareceram o mamute, 0 elefante antigo, o rinoceronte de narinas separadas, o rinoceronte de Merck e o urso das cavernas. O homem é provavelmente responsavel pela sua desaparigao; estes grandes animais ofereciam um alvo facil aos cagadores cada vez mais numerosos e melhor armados. Quanto aos pequenos mamiferos — arganazes, ratazanas, esquilos, raposas, texugos — a sua lista praticamente nao se alterou, assim como a dos muitos péssaros — da 4guia ao abutre e acarriga. O pinguim gigante s6 foi exterminado ha um século. Isto nao quer dizer que todos estes animais tenham sido exactamente iguais aos seus descendentes actuais. No espago de mil séculos, os ledes, os cavalos, as renas evoluiram, mas tao pouco que, se pudéssemos ver lado a lado um auroque anterior a glaciagio de Wiirm e um touro espanhol actual, talvez hesitas- semos seriamente antes de os distinguirmos. Vimos mais acima que, ao longo do quaterndrio, as variagées climatéricas,- foram menos sensacionais do que primitivamente 40 Be Ng O cavalo selvagem foi a caga por exceléncia em todas as épocas da pré-histéria. Havia varias ragas adaptadas aos diferentes climas, de modo que, quer nos periodos temperados quer nas épocas mais frias, o cavalo se encontra praticamente em toda a parte. Lascaux, Dordogne. se supunha aquando da descoberta dos vestigios dos periodos glacidrios. No entanto nfo deixaram de determinar movimentos na reparticio das espécies vegetais ¢ esses movimentos tiveram como consequéncia migragdes animais. Quando certas plantas se deslocavam para 0 norte ou para o sul, arrastavam consigc os animais que delas se alimentavam. Se, miraculosamente dota- dos de uma existéncia prolongada, tivéssemos podido permane- cer sentados nas margens do Loire desde o fim da glaciagao de Riss até ao fim da glaciagfio de Wiirm, teriamos visto passar, com milhares de anos de intervalo, e subindo para o norte, primeiro, as renas e os mamutes, depois, os alces, a seguir os cavalos e os bois ¢, finalmente, os gamos gigantes e os elefantes antigos. Apés algumas oscilagées, tendo o frio regressado rapidamente no comego da glaciagio de Wim, todos estes animais teriam tomado o caminho do sul ¢ as renas ter-se-iam reinstalado por muitos séculos nas margens do Loire. Apenas dez mil anos antes da época actual, terminada a glaciagaio de Wiirm, teriamos podido ver a grande migracao partir de novo para o norte. Mas no momento em que os veados, os bois, os cavalos reaparecem no Loire, j4 ndo sao acompanhados pelos grandes representantes da antiga fauna: os clefantes e os 4 SY \s / aoe Se a rena nGo viveu em Franca em todos os momentos da pré-historia, cada arrefecimento do clima trouxe ds nossas regides as suas grandes manadas. Laugerie-Basse, Dordogne. rinocerontes. Cavalos e bois estéo, alids, muito perto do momento em que o homem os arrancar4 da grande pradaria para os conduzir a cavalariga e ao estébulo. O verdadeiro rosto do passado Reunindo pacientemente milhares de pormenores exactos, retirados do exame das pedras, das areias dos rios, da argila das cavernas, das marcas das plantas ou dos pélenes fossilizados; do mais pequeno dente do mais pequeno dos animais, contando uma a uma as frégeis folhas de argila que os glaciares abando- nam em cada estagao, desenhando mapas, conjugando todos os resultados obtidos, eis que a pré-hist6ria, essa ciéncia que, a principio, estavamos a ponto de considerar quase impossivel, acaba j4 de nos oferecer o verdadeiro rosto do passado da espécie humana. Que sabemos nés? Ao longo deste ultimo meio século, a duracao da histéria geolégica do homem e dos seus precursores no cessou de aumentar. Gragas aos esforcos dos fisicos (medidas de radioac- tividade), dos paleontologistas e dos gedlogos (estratigrafia), a 42 | idade dos primeiros antropianos atingiu um milhio e talvez trég milhdes de anos. Nao podemos ser precisos, mas duzentos ou trezentos anos a mais ou a menos nfo mudam nada 4 sensagao de maravilhosa amplitude da aventura humana. Sabemos também que os nossos longinquos antepassados, em Franga, viveram por vezes entre elefantes e renas. Mas estes elefantes nao conheciam as bananeiras; mastigavam ramos de carvalho. E essas renas nunca conheceram a grande noite polar. Os contrastes de clima nao foram extraordinarios. Bastou que a temperatura média de todo o ano baixasse dez ou doze graus para que os elefantes cedessem o lugar aos mamutes, para que as florestas de carvalho recuassem até a Italia e a Espanha, para que os glaciares do Monte Branco viessem bloquear o Saéne perto de Lyon. Os pré-historiadores hesitam ainda sobre os comegos da era quaternaria; a sucessao dos climas e das espécies animais permanece obscura. Mas a partir da glaciaciio de Riss, podemos apresentar a situag#o com mais clareza. Salvo alguns grandes mamifferds, todos os animais que entao existiam ainda hoje se encontram na zona compreendida entre o circulo polar e a latitude da Argélia. Durante o periodo intermédio entre as glaciagdes de Riss e de Wiirm, as espécies que viviam em Franga eram as que se encontram agora na metade sul desse zona; durante a glaciagio de Wiirm, estavam as espécies que agora encontramos na metade norte. As delimitagdes, bem entendido, nunca sao tao exactas na realidade. Consoante as regides, houve misturas entre as duas faunas e é preciso ter em conta as diferengas de latitude no nosso préprio pais; os ultimos elefantes antigos podiam viver na Céte-d’ Azur a0 mesmo tempo que as vagas de mamutes e de renas invadiam o norte da Franga. O nosso cenario pré-histérico esta agora bem instalado. Apenas falta fazer entrar em cena o actor principal: o homem. 43 i ‘ 5 i ' Capitulo Wt OS HOMENS Os restos de esqueletos de animais pré-histéricos nao abun- dam: de uma manada de elefantes nao ficou, muitas vezes, senao a metade de um molar. Ora, os homens eram menos numerosos que os elefantes e o seu esqueleto mais fragil. Em toda a Europa, o conjunto de vestigios humanos descobertos num século de pesquisas é realmente pequeno. Embalados cuidadosamente, todos os restos anteriores 4 glaciagdo de Riss, encheriam uma maleta de fim-de-semana. Para 0 periodo intermédio entre as glaciacdes de Riss e de Wiirm, uma mochila de soldado chega de sobra. Para a primeira parte da glaciagao de Wiirm, seria precisa uma mala, para a segunda, trés ou quatro caixas. Além disso, os restos que se encontram nao estéo completos. Quando, num golpe de sorte, surge um maxilar, falta todo 0 cranio; se, por acaso, se encontra uma caixa craniana, falta a face. Para o perfodo anterior 4 glaciagao de Riss, néo ha um tnico cranio que se possa reconstituir total- mente. Até a glaciacgao de Wirm, nem um esqueleto para acompanhar os trés ou quatro cranios quase inteiros que possui- mos. Para a glaciacéo de Wiirm, estamos um pouco mais ricos: temos verdadeiros esqueletos quase completos. Este material tao restrito 6, no entanto, eloquente. Estudan- do-o a fundo, conseguimos conhecer, pelo menos nas suas grandes linhas, 0 aspecto dos primeiros homens. As primeiras descobertas levaram a imaginar os nossos antepassados como seres de testa curta e focinho saliente, muito 45 proximos da bestialidade. Surgiram discussdes inflamadas acerca desses restos. Uns viam no homem um macaco que tinha conseguido transpor brilhantemente os diferentes escal6es zo- olégicos; outros pensavam que essas pobres criaturas de testa curta nao eram completamente homens e que os nossos antepas- sados estavam por descobrir. A discuss40 colocou-se no plano do ataque ou da defesa da religiao: 4 voz dos que conheciam verdadeiramente os documentos outras se juntaram, menos competentes, 0 que nao ajudou a considerar o problema da origem do homem com 0 sangue-frio ¢ o discernimento neces- sarios. Quando, num vale do Reno, se descobriram os primeiros restos do homem de Neandertal, com o seu cranio curto e érbitas salientes, julgou-se ter encontrado o intermedidrio perfeito entre o gorila e o homem contemporaneo. Mas 4 medida que as descobertas se sucediam, este lugar de intermedidrio foi atri- buido ao pitecantropo c, mais recentemente, ao australopiteco. Encontraram-se seres mais antigos que 0 homem de Néandertal , no entanto, ‘mais préximos de nds! E veremos, mais longe, que o pobre homem de Neandertal valia mais do que aquilo que © seu cranio achatado faz pensar. Os documentos que permitem o estudo dos antepassados do homem sfo os restos fossilizados do seu esqueleto. _Esses vestigios reduzem-se muitas vezes a um s6 dente, a fragmentos do cranio ou outras partes do esqueleto. Desde h4 algumas dezenas de anos, as descobertas de muitos fsseis na Africa meridional e oriental revolucionaram as ideias sobre as origens do homem; em vez daquele macaco de cérebro grande que teria adquirido progressivamente a postura vertical, encontraram-se homens de cérebro pequeno mas que eram bipedes como o homem actual, os australopitecos, cujos vestigios mais antigos datariam de ha trés milhdes de anos. Estes australopitecos ja britavam seixos para obterem aparas cortantes. Dispunham de mos independentes da marcha. Nao eram, nem quadripedes como o cavalo, nem quadrtimanos como os macacos, mas andavam em pé e fabricavam instrumentos. Descobriu-se mesmo uma pista de pegadas, num terreno que, na época, era mole. Ha cerca de 2,5 milhées de anos, coexistiram com um antropiano cujo cranio foi encontrado. Este féssil € muito mais 46 humano que o australopiteco, é 0 homo habilis. O seu cérebro é muito mais desenvolyido que o dos australopitecos e os seus utensilios mais evoluidos. Linhas gerais da evolucéo humana Sabemos que, durante a era primaria, certos vertebrados se libertaram do elemento marinho original. Adquiriram pulmées que lhes permitiram respirar no ar. Chegaram A terta firme e tomaram-se quadripedes. Nao conhecemos as formas interme- didrias que permitiram tal passagem. Mas ainda hoje existem muito peixes que podem assimilar o oxigénio do ar e passar longas horas fora do elemento liquido, arrastando-se de um pantano para outro durante a estagdo seca. Estes primeiros habitantes da terra firme diferenciaram-se em dois ramos: os anfibios, ou batraquios, e os répteis. A era secundaria foi a dos répteis enormes, como 0 brontossauro e o diplodoco; no entanto é necessdrio nao perder de vista que estes gigantes bem conhecidos nio atingiam as dimensées das gran- des baleias actuais. Ao lado destes monstros viviam, durante a segunda metade da era secundaria, outros répteis mais modes- tos, do tamanho de ratos ou de cies... Os seus membros eram compridos, alguns tinham pelos e, provavelmente, uma circula- gdo de sangue quente; os dentes dividiam-se em incisivos, caninos e molares. Em suma, as suas caracteristicas biolégicas e © seu aspecto geral aproximavam-nos bastante dos mamiferos primitivos. Foi sem divida deste grupo de répteis que sairam, nos finais da era secundaria, os primeiros mamiferos propria- mente ditos, que vio dominar a natureza durante toda a época terciaria. Estes mamiferos primitivos, ao principio muito pequenos e mal definidos nas suas caracteristicas, diversificam-se desde o inicio da era tercidria e orientam-se para os grandes grupos actuais dos herbivoros, camivoros, etc. Algumas linhas genea- légicas parecem dirigir-se por etapas para os cavalos ou os ruminantes; outras culminam nos felinos ou nas hienas. Conce- bemos a existéncia de tais linhagens quando, partindo dos tipos actuais, recuamos no tempo. O antepassado do cavalo aparece- -nos assim como o animal que, numa certa época, dele mais se aproximava pela sua adaptagao a corrida e a alimentagéo dos 47 cavalos. A adaptacao pode ser explicada de diferentes maneiras, mas é um facto indiscutivel Um mamifero do principio do tercidrio, cujo regime alimentar e modo de vida (herbivoro nao ruminante, habitando os grandes espagos da estepe) tendia para os dos futuros cavalos, na sua descendéncia, normalmente deveria culminar no actual modelo de cavalo. Um facto verda- deiramente impressionante é que as miltiplas condigées neces- sarias para chegar aos cavalos aparecem pelo menos duas vezes, em duas linhagens animais diferentes: os préprios cavalos e um curioso mamifero da América do Sul, o Thoathérium, que, saido de um ramo completamente diferente, se extinguiu depois de ter adquirido quase todas as caracteristicas do cavalo. Este tiltimo exemplo é muito precioso. Ajuda a compreender uma das dificuldades do problema da origem do homem. Entre os fésseis de seres que tenderam para a humanidade, nao distinguimos com exactidao os que a ela chegaram realmente, e 840, assim, nossos verdadeiros antepassados, e os que poderiam ter seguido vias paralelas, sem terem atingido o estado humano. Entre os mamiferos primitivos que iriam progressivamente conduzir as espécies actuais, encontram-se os primeiros repre- sentantes dos primatas. No comego da era terciaria ainda se parecem muito com todos os seus congéneres. Como eles, tm uma dentigéo prépria para tudo, que convém ao seu regime alimentar variado, de frutos, de rebentos de plantas, de insectos; como eles, tem cinco dedos em cada membro, uma estatura pequena, um esqueleto que, também ele, esta pronto para tudo, nem especialmente adaptado 4 corrida, nem adaptado 4 vida exclusiva nas arvores. Mas as outras linhagens vao progredir especializando-se em direcgdes diferentes. Os dentes tornar-se-io trituradores de ervas, moedores de grao, limas, facas para carne. Os membros adptar-se-fo 4 corrida rapida ao salto; os seus dedos vao-se reduzir, fundindo-se, dai resultando as patas de cavalo, de boi, de porco. 86 os primatas vao permanecer estranhamente estaciondrios, quase nao evoluindo em nenhum dos seus tragos.essenciais. Esta estagnacao aparente é um dos tragos mais impressionantes da sua natureza. Conservaraéo até ao homem a possiblidade de comer de tudo, de mover os membros em todos os sentidos, de 48 3 dedos 2 dedos 4 dedos wor \\ por Hs Vg q Mamitero primitive 1 dedo 5 dedos N. fo _—" Cavalo cao Homem Ao centro, a mao de um mamifero do princtpio da era tercidria. A volta estéo dispostas as patas anteriores de mamiferos actuais cada vez mais especializadas na marcha, desde o cdo, que ainda tem cinco dedos, mas com um polegar initil, até ao porco, com quatro dedos, ao rinoceronte, com trés dedos, ao boi, com dois dedos, e, enfim, ao cavalo, que sé tem um dedo efectivo. No fundo, a mdo humana parece estranhamente préxima da do mamifero primitivo, mas, conservando embora esse tipo que jé possuiam certos répteis da era primdria, aperfeigoou e tornou maledveis todas as articulagées para se tornar. a fiel servigal do cérebro. 49 dispor dos vinte dedos, de endireitar o tronco ao sentar-se ou ao Jevantar-se sobre os membros traseiros. E que a evolugdo dos primatas far-se-4 num sentido muito particular: o aumento do volume do cérebro. Gragas a este cérebro, utilizaraéo o melhor possivel um corpo que nao esta perfeitamente adaptado a qualquer acgio particular, mas conserva os meios para as exercer todas. Nem todos os primatas seguirao com igual sucesso esta via. Ainda hoje se encontram exemplares de formas diferentes, desde os lemurianos de cérebro pequeno até aos chimpazés. Mas por meados da era tercidria aparecem os primeiros representan- tes de um vasto grupo que vai servir de origem as formas superiores dos primatas: isto €, aos antropdides, aos australopi- tecos, aos antropianos. Os antropéides correspondem provavelmente a diversos tron- cos cujos ramos terminam hoje no gorila, no chimpazé, no orangotango e no gibaéo. Todos apresentam um importante desenvolvimento do cérebro, mas (pelo menos para as formas até hoje conhecidas) conservam uma atitude semiquadripede e muitas caracteristicas dos verdadeiros macacos. Em 1924, foi descoberto na Africa do Sul o primeiro australopiteco. Da Abissinia ao Cabo, multiplicaram-se as descobertas € actualmente possuimos varios cranios e partes de esqueleto, como a bacia, que é muito diferente num antropdide & no homem. N4o somente o seu cérebro é proporcionalmente mais desenvolvido que o dos antropéides, como a sua dentigao é praticamente semelhante 4 do homem, com pequenos caninos, ¢, caso unico entre os primatas, anda de pé, como o homem. OQ australopiteco coloca-se do lado do homem. Qualificado como «macaco austral» (pithecus € o termo greco-latino para designar macaco) no comego da sua carreira, os nomes que, posterior- mente, se deram aos diferentes individuos descobertos sao reveladores da consideragdo crescente dos paleontologistas para com eles: Paranthropus (Préximo do homem), Zinjanthropus (homem de .Zinj), homo habilis (homem habil). Nao sabemos até que ponto da era tercidria é que remonta o australopiteco. Certamente, 4 segunda metade do Plioceno (que dura de 2 a 12 milhées de anos). Serio os nossos antepassados directos? A questao é supérflua, pois seja qual for o modo como 30 Me Véem-se aqui os cranios de dois dos grandes antepassados do homem, A esquerda, reconstituigao de um australopiteco de Sterk- Jontein, G direita, 0 cranio de homo habilis de Koobi Fora, que representa um dos individuos mais antigos da espécie humana. Apesar das miiltiplas caracteristicas primitivas, este fossil é jd um antepas- sado muito préximo dos arqueantropianos (Pitecantropo, etc.). se organiza 0 processo de filiago, o resultado é 0 mesmo: na cadeia de um espago-tempo idealizado, os fésseis apresentam-se como, etapas de um desenvolvimento continuo. Contestar a sua imagem de antepassados equivaleria a contestar o valor paleon- tolégico de um peixe da era primaria, o celacanto ou Latimeria, encontrado vivo no oceano [ndico. A sua posigdo sistematica é a dos outros celacantos da era priméria, cuja natureza conservou. Os australopitecos possuem uma personalidade que lhes confere uma posi¢éo de antepassados do homem pois apresentam, num estado ainda muito primitivo, a associagao de trés caracteristicas que partilham exclusivamente com o homem: uma dentadura anterior comparativamente fraca, uma face pouco proeminente e a marcha na posigéo vertical. Os australopitecos tiveram, também eles, antepassados; estes s4o tao mal conhecidos como eles préprios o eram h4 uma geracio. Homens ou gorilas? Os antropianos Designam-se assim todos os primatas fdsseis que nado. sé andavam de pé e tinham um cérebro desenvolyi também deixaram tragos indiscutiveis da ¢ 51 BISLIOTECA PORTS fabricar utensflios: todos parecem ter gozado de um desenvol- vimento mental suficiente para permitir a transmissao dos processos de fabrico de um individuo para outro. A produgao de utensilios supde, com efeito, vé-lo-emos em breve, 2 conserva- ao de um capital técnico que ja nao tem nada de comum com os habitos dos animais. Os antropianos dividem-se em trés grupos: os arqueantropia- nos, os paleantropianos e os neantropianos. A sucessdo destes grupos no tempo nao foi clara; os seus periodos de presenga sobre a terra sobrepS6em-se mesmo uns aos outros. Membros muito antigos da familia dos homens: os ar- queantropianos (homo erectus) Os seus vestigios correspondem a um nimero restrito de descobertas, mas em regides muito afastadas umas das outras: por ordem de descoberta, o Pitecantropo, em Java; o Sinan- tropo, perto de Pequim; o Atlantropo, na Argélia; na Alemanha, o maxilar de Mauer; na Hungria, o occipital de Vertesz6llés; em Franga, 0 cranio de Tautavel. Uma distancia consideravel separa no tempo e no espago estes diferentes fésseis que testemunham da vasta difusio do estédio arqueantropiano. Frequentemente aplicou-se a estes seres 0 epiteto de «pré-hominianos» , designa- g4o que deve ser substituida pela de arqueantropianos, que significa «membros muito antigos da familia dos homens». Pois é muito dificil dizer onde comega a humanidade e nés nao sabemos 0 suficiente acerca destes seres para decidir se eram «pré-humanos» ou « teve como consequéncia o desaparecimento do termo «piteco» (ma- caco) que servia de etiqueta a criaturas j4 muito inseridas na hominizagao. Quis-se fazer qualquer coisa para melhorar a imagem de marca do homem de Neandertal: concedeu-se-lhe o direito de se chamar doravante homo sapiens neandertalensis. Relativamente a nés, isso tornou-o uma espécie de primo direito, o que, certamente, lhe teria agradado muito. Mas o termo homo sapiens qualifica-nos de forma imodesta, «homem de sabedoria». Decidiu-se que nos chamarfamos doravante «homo sapiens sapiens» , algo como «o homem da sabedoria das sabedorias», denominagao muito honrosa mas incémoda. Ha um periodo ainda mal conhecido, 0 que, volta de 30 000, marca 0 inicio do Paleolitico superior. Em Franga, a sucesséo do Musteriense ao Paleolitico superior, isto é, ao Aurignacense, é assegurada em muitas regides por uma cultura cujo nome € «chatelperronense», de Chatelperron (Allier). Esta particularmente bem representada em Arcy-sur-Cure. Os homens viviam 4 entrada da gruta da Rena, onde construiam cabanas circulares com pedras e presas de mamute, trabalhavam o marfim e © osso com vista ao seu equipamento de caga e de actividade doméstica (pontas de dardo, agulhas de coser, picareta,..). Tiravam do silex laminas talhadas segundo a técnica do Paleolitico superior, mas uma parte do seu silex era moldado «& musteriense» e dele tiravam utensflios de tradigéo antiga (raspadores). Além disso, usavam imensamente 0 ocre, talhavam penduricalhos no osso ou no marfim e perfuravam a raiz dos dentes de raposa, de marmota, de urso... Para enfeite. No Chatelperronense tudo concorre para 0 considerar como primeiro testemunho da cultura do Paleolitico superior e pen- sa-se que «Paleolitico superior» corresponde ao «homo sa- 58 bee x Petralona sdorf SS) Bilzingsteben Y 9 sae & fae, 2 go, s Biv 3 é 7 2 Baty ~MESE 2S NG | O48 BEV-8 3a4S ek eb g Sree S O'S gtsz Begs ce go3ge ese 8 Sitey & By dase . § Fy ee. 3 Ss 8 i ST e Ante-neandertalianos Gibraltar © Neandertalianos a Arqueantropianos. Carta das principais descobertas de paleantropianos no Ocidente, Vemos que os vestigios se distribuem de maneira desigual. No norte da Alemanha, e da Inglaterra, assim como nos grandes macigos montanhosos, nao é provdvel encontrd-los; as condigées climatéricas talvez tenham sido desfavordveis & instalagao de homens. Quanto as outras regiées, sao sobretudo as grutas cavadas no calcdrio que garantiram a conservagdo das ossadas, de modo que, se tivermos em conta as condicées favordveis ou desfavordveis, verificamos que os paleantropianos, provavelmente muito numerosos, ja ocupavam a maior parte da Europa Ocidental. 59,

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