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2021 1

AGRURAS ENLUARADAS

Elenara Stein Leitão

2021 2
2021 3
Índice
Das agruras de sentir conforme a Lua..............................7
ADOLESCER...........................................................9
Doar sorrisos não tem preço............................................10
que se almeje o inalcançável..............................................12
Dedo de Da Vinci...............................................................14
Anos 90.................................................................................15
ENLUARAR..............................................................16
Dos Signos............................................................................17
Não abro não.......................................................................20
Ela toda maresia..................................................................22
Nós mulheres.......................................................................26
GOZAR...................................................................28
A outra..................................................................................29
Lilith.......................................................................................30
eu/espelho ...........................................................................32
alma erótica...........................................................................33
Puro vício..............................................................................34
Ardida....................................................................................35
Combinação perfeita...........................................................37
Farol me guia........................................................................39
Teias.......................................................................................40
Após.......................................................................................41
MATURAR................................................................42
Brasa Dormida.....................................................................43
Hoje é sábado.......................................................................45
Sigo........................................................................................47

2021 4
Os dias eram iguais.............................................................48
tenho alma de Cassandra...................................................50
Das areias do tempo que marcam a poesia.....................53
O beijo...................................................................................56
Ela pássaro............................................................................59
Melancolia rima com melancia..........................................61
Quando a vida vem de roldão...........................................62
DA FINITUDE..........................................................64
Eulália – a bem amante......................................................65
tic tac que não para.............................................................68
80 tiros...................................................................................70
Passageira..............................................................................71
Veja só a minha inveja........................................................73
Desapego NÃO de tudo....................................................75
Estranha realidade...............................................................77
MATE TE MÁTICAS..................................................79
Quatro rima com teatro.....................................................80
Sete caminhos inconstantes...............................................83
Fairy Tale..............................................................................86
A moça e seus mistérios.....................................................87
Mate TE maticas ................................................................89
sete notas dissonantes.........................................................90
FINAL MENTE.........................................................92
Existe vida na inquietação?................................................93
Sinônimos de alguma coisa que nem sei o que é...........94
Andorinhas ausentes...........................................................96
Leio poesias em um mundo em chamas.........................98
os descartáveis da pandemia...........................................101

2021 5
Haicai...................................................................................102
Sonhos de miragem..........................................................103
Fim do dia..........................................................................105

2021 6
DAS AGRURAS DE SENTIR CONFORME A
LUA
Às vezes se perguntava
o que era ser mulher.
Mais que vestir rosa
ou sangrar todo mês
Mais que os não devias
e os devias,
limiar muito estreito que ouvia,
seguia
desde que se entendia por gente.
mais que ser bela em alguma etapa da vida
disponível para ajudar em outra.

Das agruras de sentir conforme a Lua,


isso ela entendia.

Mulher se criava nas sombrias


luminosas veredas dos universo,
sob arranjo de deusas e anjas aladas
ruminando antigas rezas

Era uma vez uma mulher


que se sabia,
que se sentia,
que se amava

2021 7
Vez que outra se desamava,
se perdia,
Perecia

Era uma vez um conto sem ponto


Esgar de coisas sem sentido
Colchas tecidas por mãos alheias
Costuras que a mulher teimava reconhecer

Era um conto de faz de conta


Uma louca desvairada
Um sapato perdido num canto
mancha de rímel desbotada
Um olhar cintilante
Uma risada desbragada

Eram tantas coisas juntas,


esmagadas, retorcidas
Apenas um rascunho
Algo que anunciava

Amanhecia
A festa terminava
A mulher reinava
no seu reino de agruras enluaradas.

2021 8
ADOLESCER

2021 9
DOAR SORRISOS NÃO TEM PREÇO
Tinha vinte anos e sorria
De que sorria a menina de vinte anos?
vinte anos é tempo de sorrir mesmo
A menina crescia rápido
mulher em tempos inglórios já nasce velha
mal tem peito ou antes disso
já foge de olhares cobiçosos
nem sempre a tempo
às vezes a luxúria vem antes da boneca
a semente cresce nela antes de desabrochar
assim mesmo sorria a moça nos seus vintes anos
tinha por dentro uma felicidade clandestina
como daquela outra moça,
exilada de sua pátria,
casada com diplomata/separada/escritora
Leu algumas de suas frases nas nuvens
nem todas verdadeiras,
as dela também não,
Nem tudo o que se sorri é fato
versão é mais divertida
Moça vivida diziam dela
sorria ainda mais
que vale nessa vida refugiada
é ter dentes para sorrir
vida para lembrar

2021 10
mesmo que corram lágrimas
rios, comportas, labaredas
deuses e deusas sorriem também
é preciso ter jogo de cintura
nessa vida sem futuro/só presente
respirar doí
amar desespera

sorrir liberta

2021 11
QUE SE ALMEJE O INALCANÇÁVEL
Que se almeje o inalcançável.
Que se sonhe com quimeras,
que se construam utopias,
se viva com paixão.

Que se abram as comportas,


que se rompam as barreiras,
se viva em comunhão.

Que haja espaço para solidariedade,


para inteira liberdade de viver.
Cada um com sua essência,
olho no olho, coração.

Que se grite: Liberdade!


Que se brigue pela grande Revolução
 a de ser inteiro novamente
fazer parte da grande Criação.

Que se queira a impossibilidade,


que se busque o improvável,
que se chegue (ao menos por instantes)
ao mistério do incógnito,
magia de perder os sentidos,
Pois que a Razão nunca construiu sonhos

2021 12
nem vislumbrou paraísos.
Jamais pintou um grande quadro,
nem escreveu uma grande canção.
Nunca chorou desesperada,
nem gozou de um momento sublime.

é necessário que se peça um alto-falante


para gritar a todo instante
nossa dor e nosso amor.
Para que se saiba que sozinho não está
quem estende
a mão e o coração.

Que se busque a alegria,


que se encontre beleza,
que se queira a perfeição –
de ser imperfeito.

Que se ria com clareza,


que se chore de tristeza,
se brigue com presteza.

Que se peça o impossível, sim.


Que se peça por humanidade,
se grite: Liberdade.

Que finalmente se tenha emoção.


E muito tesão (sem o qual, realmente, não há solução...)

2021 13
DEDO DE DA VINCI

o olhar matreiro fala de vida


o dedo aponta os céus
entre mares enluarados
Salaí reina Deus

Da Vinci aprontava quimeras


tantas que não dava conta
ideias mirabolantes
ainda hoje imaginárias

O dedo que aponta rumos


mostrava caminhos incertos
mundos que Leonardo via
ninguém mais percebia

2021 14
ANOS 90
Pouco importa a razão.
Pouco importa a solidão.
Pouco importa o motivo da separação.

A energia se impõe.
Emerge soberana e gaiata.
Exige satisfação imediata.
Não quer saber de educação.
Não se importa com senões.
Muito menos para associações.

A energia quer ebulições.


Se transformar em vulcões,
Em muitas erupções.
Simultâneas / Enormes.
A energia quer a gargalhada mais pura.
A mais obscena e sagra.
Aquela que se gera em dois corações
Duas concepções
Duas imensas atrações.

A energia quer fusões.


Que se fodam as limitações.

2021 15
ENLUARAR

2021 16
DOS SIGNOS

Áries
Branca, preta ou amarela
A ariana zela.
Tem caráter dominador
Mas pode ser convencida
E aí, então, fica uma flor:
Cordata… e nada convencida.
Porque o seu dominador
É o amor.
Eu cá por mim não tenho nenhum
Preconceito racial:
Mas sou ariano!
(Vinícius de Moraes )

Não nasceu nem em março


Muito menos em abril
Mas era toda ariana desde sempre

Nariz empinado de razão


A primeira a esquiar
Ralar joelho, nariz e alma
Nas escaladas fagueiras

Quando viu Miguel


Acercou sem piedade
Só acalmou no primeiro filho
Era mãe moleca
Das que crescem

2021 17
junto a piazada

Uma escada
Uma tripa
Dos mais velhos aos mais moços
Anos de risadas/lagrimas e busca

Miguel vinha como dava


Corria para alcançar o pique
Bufava, sorria e prosseguia

Um dia viraram avós


Vida feita, cama desfeita
Seria um paraíso
Não fosse a pandemia

Ser velho virou descarte


Pesava para o sistema
Logo eles que acreditaram nos mitos

Todos eles
Entre cada filho, um novo senhor
Entre cada orgasmo, uma nova benção
Restava agora olhar na janela
Já que nem velar seu Miguel poderia

Logo ela, tão ariana


Tão decidida labareda

2021 18
Restaram cinzas
Melhor aceitar
Que nascera geminiana.
Gêmeos
A mulher de Gêmeos
Não sabe o que quer
Mas tirante isso
É boa mulher.
A mulher de Gêmeos
Não sabe o que diz
Mas tirante isso
Faz o homem feliz.
A mulher de Gêmeos
Não sabe o que faz
Mas por isso mesmo
É boa demais…
( Vinícius de Moraes )

2021 19
NÃO ABRO NÃO
Não me vem com cara de neném
De garoto pidão
Não importa seus amo-te
Quando não quero
Não tem senão
Não abro não

Tem dias que sim


Pura vontade, precisão
Tem outros que não
Coisa de mulher
Repare não

Às vezes nem contigo é


Muitas sim
Coisa de hormônio
Vá lá se saber.
Fêmea é animal esquisito
Sangra com a lua
Tem amuos
Tem lassidão

Tem dias que abre não


Não é dor de cabeça
Não é má vontade

2021 20
Talvez falta dela
Talvez apenas
Outra coisa que se perca da vida

Coisa de mulher
Não tem explicação.

2021 21
ELA TODA MARESIA
Tinha gosto de mar.
Ela toda maresia.

Era daqueles verões de tempo escaldante,


onde a linha do horizonte se confundia
entre começo e fim.
Como ela
que se abria em dores, em rancores,
em maus humores.

Nem sempre fora assim.


Teve um tempo de descobertas.
Passou

Olhou em torno
tudo parecia ter gosto de fermento estragado,
desses que não vão fazer crescer o pão
por mais que se sove.
Dias ruins
de sentir o peso do mundo.

O corpo doía, a mente sofria.


Ela se ria.

Maldito senso de humor!

2021 22
Devia ter nascido mais vitoriana.
Menos barroca.

Que fosse, enfim.


Urgia engolir aquelas lágrimas
que teimavam em rolar.
Gosto de sal.
Menos mal que curtia salgados.
Imagina chorasse açúcares.

Pensou em abrir
a caixinha nova de pílulas
que fazem esquecer mazelas.
Seu lado mais trágico largou o gesto na metade.
Que fosse até o fim
com tudo o que tinha que sair.
Que mergulhasse de vez
no oceano que se abria,
que afundasse em águas,
em sargaços,
em conchas e pérolas.

Que virasse sereia


voltasse ao útero
de onde saem todas as mulheres.
Que partisse.

2021 23
Vestiu sua fantasia de luxo.
Nos olhos pura melancolia.
Nos lábios um vermelho
de corar satanazes.
Nos pés a areia que machuca.

Respirou fundo
como fazia nos momentos solenes.
Deixou que o vento percorresse seu corpo
como se fosse aquele amor
que demora e traz saudades.
Ou como se fosse a vez primeira.
Ergueu a cabeça
seus passos a guiaram para o mar.
Ela pura maresia.

Que houvesse então


um tempo de sangria.
Que expurgasse sal, suor e solidão.
Que irrompesse dela, de dentro dela,
cores, cheiros, vontades e desejos.
Que fosse.

Ela foi.

O mar gelado que era, acordou sua mente.


Sentiu um raio que vibrava e acordava.
A areia machucando menos.

2021 24
O abismo acolhendo.
Ela desnascendo.

O mar.
Ela.
O sol.
A maresia.

Os pés machucados da areia corriam mais firmes.


As asas cresciam em suas costas
como anjos rebeldes
despertando de um sono milenar.
Quanto mais afundava,
mais alto voava.

Viu o escuro das entranhas.


Viu o clarão da iluminação.
Era duas.
Era múltipla.
Era toda maresia

2021 25
NÓS MULHERES
Das vezes que abriu os olhos
Janelas, sol, gritos
Noites insones
Mentiras ganhando vida
Suava e sentia

Chorava escondida
Como se fizesse diferença
Chorar na frente de alguém
Como se fosse feita de pedra
Não vento e ar

Num suspiro tudo mudava


O cenário abria e fechava
Deixava de ser Maria
Virava Anabela

Outras roupas,
mesmo corpo
Sangrava
Lua uterina todo mês
Era sina

Era herança
Era coisa de tantas outras

2021 26
Joanas, Luizas e Paolas
Umas sem nome
Rotas perdoadas
Em cruzes perdidas
Outras mais felizes
Viraram livro na memória

Barriga crescia
Nova cria
Novo suspiro
Teresas e Helenas
Fios em espera
Cios labaredas

Das vezes que abriu os olhos


Ávida vida a vida
Lambe margens
Entrega voragens

Virago
Desfiladeiro
Moira me habita
Nos habita
Nos mora
Nós moira
Nós mulheres

2021 27
GOZAR

2021 28
A OUTRA

A outra que me espreita


me habita sorrateira
me vive sem receita
Na fundura da ladeira

Tem cheiro de âmbar


Tem olhar de gazela
Deita na rua sem pensar
Abre as pernas, a cadela

Abocanha todo instante


Lambe os beiços com prazer
Molha a garganta leite quente
Mata a fome a se lamber

A outra que me mora


Cheira a mato, sobe em galhos
Vive de longa demora
Sonhando com caralhos

Devassa de ouvidos moucos


Uma santa de paus ocos

2021 29
LILITH
Envolve a lascívia
Pura quimera a sonhar
Pensar que seria,
podia/Queria,
Mistério do cio
A queimar

Coisa que dá em mulher


Vez que outra
Sabe-se lá de onde vem
Uma quentura
Que sobe as pernas
Adentra sem pedir
Requebra as entranhas

Uma falta de.

Te para, guria!
Falava a voz macia
Que ela teimava em calar
Mulher que quer dar
Ninguém consegue deter
Voragem de fêmea
É furacão,
É tempestade

2021 30
É coisa de lua cheia
É miragem

Bruxa, meretriz, Lilith


Olhar ofegante
Cheiro de sangue
Gruta sedenta
Saudade do falo
Da quentura que dá
Do encaixe perfeito
Da língua no peito
Do doce vibrar
Da fúria da entrega
Da calma ternura
Do cio de brincar
Gostosa lascívia
Molenga vontade
De muito ondular
Luta molhada
Dos dois sem vitória
Da morte a sonhar

2021 31
EU/ESPELHO
Debaixo de mil colchões
Princesa escondida
Amante perdida
Repleta de sensações

Caixa de surpresas
Às vezes devassa
Às vezes criança
Por certo espanta
Quem teima entender

Olhar que encanta


Voz que enfeitiça
Sou fêmea
Sou santa
Sou o que quiser ser

Decifra-me
Diz meu corpo
Decifra-me
Diz minha alma
Esfinge serena
Princesa pequena
Mulher Apenas

2021 32
ALMA ERÓTICA

Erótica é a alma
Leio por aí
Ser senciente
Almar-se-ia
Almar-te-ia
Amar sair-te
Amar almante
Sentir bastante
Pulsar conjunto
Sorrir no fundo
Brincar de fogo
Almar com gozo

2021 33
PURO VÍCIO
Eu com olhos de gazela
Ele passos de colibri
Andávamos sorrateiros
Uivando em frenesi

Eu com garras de lince


Ele manso ermitão
Voávamos círculos esquisitos
Feito puro furacão

Eu com patas de marmota


Ele faro de baleia
Fugíamos alucinados
Ele rei, eu sereia

Nossa dança desbragada


Iluminava os silêncios
Era mar/era deserto
Calmarias e suplícios

Puro vício

2021 34
ARDIDA
O que sabia
Era coisa de todo dia
É que ardia
gemia
E saía

Minha secreta danação


Vontade de te montar
Cavalgar
Feito doida
No teu regaço
Te ser inteira
Sem dó
Sem paixão
Puro tesão

Vontade de ficar
Mansa
Quieta
No teu braço
Dormir embalada
Acordar encantada

2021 35
No outro dia sumir
Tu ao acordar
Estranhar
Bater de ombros
Entender
Essa tua mulher

E de novo
me esperar
Homem meu
Sem perguntar
Sem cobrar

2021 36
COMBINAÇÃO PERFEITA

Você cheirava a alecrim


Eu com sede de vinagre
Lua quase nova em céu carmim
Um jeito de sorrir tão desbragado
Você cheirando a queijo frito
Eu com vinho na mão
Um não/sim jorrando de dentro

Você cheirava a almíscar


Eu com sede de comer
Sol queimando de pálido
Um livro por fazer
Você cheirando a capim em brasa
Eu sem fome de zoar
Labareda cantarolando

Você cheirava a gosto de amor


Eu com fome de ternura
A nuvem enrolando figuras
Caderno esperando descobertas
Você cheirava a desespero
Eu com medo do despertar
Chuva molhando jardins

2021 37
Você cheirava minha alma
Eu com fome de corpo
Terra se abrindo em flor-de-seda
Abismo engolindo espadas
Você cheirava a nada
Eu esperando tudo
Água correndo puro lamaçal

Você me cheirava verdades


Eu lambia mentiras
Fogo consumindo universos
Alecrins e vinagres
Combinação perfeita

2021 38
FAROL ME GUIA
Borrasquento
Lascivo jorro
Choro
Grito
Morro

Acordo luz
Teu farol em mim
Acende rotas
Acena caminhos
Aponta
Sigo

Acordo molhada
Envergonhada
Mentira
Apenas cansada

Chove miúda bruma


Cai em mim
Teu pranto brusco
Adormeço
Sonho
Busco quimeras
Acordo realidades

2021 39
TEIAS

Amar-te amante
Lamber-te cantante
Saber-te andante
Cavalar-te rinoceronte
Rimas esbanjar
Para tanto amor falar
Que se fodam as convenções
Querer-te
comer-te
Apenas tecer-te
Em minhas teias
De aranha gosmenta
Ciumenta
Peguenta
Pegar-te
Prender-te
Solenemente
Apenas
Olhar-te

E partir.

2021 40
APÓS
Depois do amor
Cansaço / Regaço
Mais que isso
Pura camaradagem
De quem se sabe saciado
De quem se descobre
Preenchida de vida
Repleta de alegria
Brincante / Bacante
Toda tua, todo meu
Instante roubado
Cantante / Amante

Catatônica
Afônica
Zumbi mutante
Errante
Caminho sem prumo
Mal sabendo o rumo
Desfeita / Refeita
Me desfaço perdida
Longa despedida

Louca vida

2021 41
MATURAR

2021 42
BRASA DORMIDA
Tomo cálices de vinho
Ouço músicas portuguesas
sotaque acarinha
minha alma lusa

te chamo
acabas não vindo

viro fado
dessas lusitanas coisas
tão doces rudes
tão alma brasileira
ariana/doce/molenga

acabo o vinho
sinto calafrios
ardejantes calafrios
como brasa dormida
que acorda num repente

Nunca voltes ao lugar


onde ardeu tua paixão
diz a canção
O lume apagado não acende
Regras da sensatez diz a música

2021 43
Bobagem, sussurro
chama acesa vira fogo eterno
danação que volta
não vira cinza
brilha a paixão

Não existem regras sensatas


Só mais uma vez.

2021 44
HOJE É SÁBADO

Tua escolha nas horas cruciais


Nunca foi dizer meu nome
Eu era da tarde corrida
Amor com reticências
Minha escolha, ao contrário
Tinha o sabor das urgências
Me sabia passageira
Mesmo assim tinha querencia
Nunca fui vítima
Cada um com suas rotas
Tome tenência
Tu me servia
Era desculpa de não mergulho
Segurança dos nunca vai ser
Tesão dos sonhos impossíveis
Nossa entrega nunca foi mentira
Cada trouxe duras verdades
Das cumplicidades traiçoeiras
Tu com tuas ausências
Eu com minhas desconfianças

Só que o mundo mudou


As segundas viraram sábados
Aprendi a colher de mim

2021 45
Segurança que vinha de fora

Saudade risonha da amizade


Do riso explodindo de vereda
Amor tem desses mistérios
Feito de medo e carências
Fica tu com tuas escolhas
Teus mitos, tua bolha
Fico eu com minha miséria
Minhas dúvidas, meu recreio.

2021 46
SIGO

Acordo molhada
Envergonhada
Mentira
Apenas cansada

Chove miúda bruma


Cai em mim
Teu pranto brusco
Adormeço

Sonho
Busco quimeras
Acordo realidades

2021 47
OS DIAS ERAM IGUAIS
O raio de sol na parede
O gato na cama
O fio dental que teima em prender o dente
O medo

O barulho da rua que acorda


A vida vivida/vívida
O amor que não se dá

O homem negro morto por nada


O homem branco que mata e daí?

Almas ditas humanas calando com medo


Bocas que gritam por pressão social
Pés que marcham por que não aguentam mais
Menina gritando que seu pai mudou o mundo
Mudou?

Discórdias na parede
Ódios na cama
Indiferença que teima em prender gente
O medo

Barulho que incomoda


Vida vívida/mal vivida

2021 48
70 tiros que matam famílias
Mulheres sendo mortas
Almas dissonantes

Bocas gritando verdades/mentiras


Pés machucados dos que apenas andam
Filhos sem pais nem mães

Um mundo que não muda

Um gato que olha o nada


Um angolano baleado por engano
"Vai sangrar até morrer"

Sobrevive por sorte


No mundo onde a cor da pele define
Morte/vida dos que deviam proteger

A cama vazia
A nova notícia
O novo esquecimento
O sol na parede
A morte
A vida
O vírus
O ódio

Carpe diem

2021 49
TENHO ALMA DE CASSANDRA
Das coisas mundanas e humanas
tenho fé
tenho esperança
que caibam voragens
que sobrem estrelas
que nada embolore
a alma
a calma
a paz.

Tenho dias de explosão


tenho dias de quietude
tenho sonhos de solidão
tenho desejos de juventude

Tenho tanto e tão pouco


que mal me cabe
a danada da esperança
tenho alma de Cassandra

As pedras do caminho
são pedras, são pedras, são pedras
Me dificulto bani-las
São cortantes
São rolantes
São brutas
São

2021 50
As rosas que são rosas
apenas rosas
As rosas acenam
As rosas exalam
As rosas são fênix

Os mitos não me fascinam


Não acredito em gurus
Não me sinto no rebanho
o humor me salva
O humor me transborda

Sei rir de mim


Sei rir em conjunto
Sei ser feliz sozinha
Sei ser feliz acompanhada

A liberdade me acompanha
Nos acompanha
Nos revigora
Nos torna diferentes

Nada nos domina


Muito menos o garrão
O egoísmo
A coisa velha
que se agarra ao carcomido
Para tentar sobreviver

2021 51
A sibilina
gosma da serpente

Tenho alma de Cassandra


Tenho sede de verdades

Sou

2021 52
DAS AREIAS DO TEMPO QUE MARCAM A
POESIA
Cabeça esmagada,
tanta areia jogada
minutos correm
minutos galopam
velocidade supersônica
Tempo é bicho ingrato
não perdoa
nem santos nem pecadores
muito menos a gente

Cabeça esmigalhada
bagaço de fruta chupada
cuspida no asfalto quente
daqueles que frita ovo
queima sola do pé
afasta poesias

Cabeça vazia
complexa mistura de repentes
Docemente cantadas
nos instantes fugidios
Senhora descoberta
sem mantos
sem encantos

2021 53
Poetas socorrei-me
tragam a musicalidade das rimas simples
angustiantes/ herméticas
labirínticas construções
do emaranhado de vida lambida

Amantes vinde!
Me amparem em sua paixão
ousadias e desejos
ardentes sílabas
rimadas de vontade e sincronia

Navegantes, abram seus mares


areias e tempestades
Balanço de cavalos-marinhos
Ímpeto de tubarões
profundezas de mistérios
da alma Atlântica
do poeta português

Deusas e Deuses
Toquem-me com seus dons
Façam-me divina e mortal
acendam a centelha
mistura de afronta e medo
Tornem-me imortal
em ousada desobediência

2021 54
Sai de mim falta de inspiração
Deixa-me morna quietude das poucas palavras
Foge-me indiferença
Acendam-se as luzes
Abram-se as cortinas
Revele-se o que tem de vir

Horas, minutos, segundos


Jogados na areia do deserto
dispersos em confusão
aleatória
Qual peças de lego amealhadas
formando protótipos de criações
esperando a mão harmônica
que vai uni-las
em chama ardente
de possibilidades

Areias de um tempo recém escrito


marcantes em rima
ausentes em trinos
cantantes em gemidos
amores esquecidos
Tempo que urge
passando a galope

2021 55
O BEIJO
Quando nasci era projeto de gente.
Era sonho de casal.
Era pedido de irmão.
Era união de óvulo e espermatozoide feito gente.
Devo ter chorado.

Mas foi quando te conheci


que realmente desci do útero.
Foi teu beijo que me fez andar.
Foi teu olhar que me despertou.
Foi teu amor que me fez melhor.

Abri os olhos e sentei na cama.


Rápido como fazia toda manhã.
E sentindo a mesma tontura que sentia
que revelava que já não tinha
a mesma juventude de antes.

Tinha fome
antes passar no banheiro.
antes ainda pensar em ti.

Décadas de desejo.
Pela mesma pessoa.
O segredo? Sei lá.

2021 56
Deve ser dádiva da vida.
Encontrar a pessoa certa para a gente.
Não a que pensa igual.
Não a que traz só tranquilidade.
Mas aquela que encaixa.
Aquela que traz para fora o melhor da gente.

Acordei apaixonada.
De novo e mais uma vez.

Lembrei do beijo da despedida.


Não era o mais apaixonado.
Mas era o mais companheiro.
Dos beijos beijados na vida,
o da despedida o mais sincero.
Não tinha desejo, mas tinha.
Não tinha volúpia, mas tinha.
Não tinha entrega, mas tinha.

Acordei ligeira.
Era dia do aniversário.
O único em que não podia dispor de mim.
Era dos outros meu dia.
Pisquei com alegria para o espelho.
Amanhã haverá de ser novo dia.

2021 57
Liberdade não é luxo que se usufrua todo dia.
Mas quando....

Sorri
Peguei meu casaco e saí.

2021 58
ELA PÁSSARO
Sonhou que era um pássaro.

Naquele dia tudo foi da maneira que sempre foi.


Só que não.
Acordou sem pressa.
Bocejou profundamente
se espreguiçou feito gata manhosa.
Fez o café cheiroso.
(Até a pitada de canela colocou no pó para dar aquele sabor
especial de coisa amada.)
O jornal deixou de lado
porque já sabia as notícias que traria.
Não eram as que esperava ler.
Não mais.

Não mais a tranquilidade.


Não mais o tempo correndo
suave feito chuva no milharal.

Agora tudo era corrido.


Agora tudo era dolorido.

Os ponteiros pareciam correr, doidos.


Giravam para trás numa velocidade estonteante.
Décadas se passaram com sofreguidão.
O tempo voltou.

2021 59
Ela sonhando que era pássaro.
Desses que podiam voar.
Voo de sonho doido.
Voo de volúpia de vida.

O tempo voltando.
Ela sonhando.

Dentro dela,
milhares de sinapses se esfacelando.
Asas soltando uma a uma
penas dolorosamente esculpidas.
Era Ícaro.
Chegou muito perto do sol.

Foi derretendo devagar.


Sonhando que era pássaro.

A janela acenando com uma saída.


O tempo girando ao contrário.
As respostas findando sem perguntas.

Ela deixando de sonhar.


As asas derretidas.

A janela aberta.
Ela pássaro.
O tempo parando.

2021 60
MELANCOLIA RIMA COM MELANCIA

Melancolia rima com melancia


Fruta que se delicia
Sem sentir que adormecia

Melancolia rima com agonia


Talvez seja nossa apatia
Que traga tanta Paralisia

Melancolia rima com letargia


Aquela que tudo anestesia
Te deixando sem nenhuma simpatia

O tempo corre em sua roda implacável


Às vezes brincaste de mocinha.
Outras o espelho mostra
que a princesa virou rainha.
Ou bruxa.
Ou fada.

Ou ainda apenas uma mulher que fantasia.

2021 61
QUANDO A VIDA VEM DE ROLDÃO

Quando a vida vem de roldão


Traz memórias de outras eras

Sigo rumos já traçados


Sofro angústias tão batidas

Quando a vida me vem de roldão

Bato cabeça
Nas paredes tortas

Respiro águas passadas


Aperto histórias vencidas

Cabelos, cheiros, cores


Tudo amalgamado
tão igual / tão diferente

Ainda bem que a roda passa


sorrisos voltam
tão pungentes/ tão sem sentido

Tão pouco Clarice

2021 62
No rolar das páginas
me dizia o velho mestre de obras
as histórias se refazem
Sabedoria que invejava
Simplicidade de ter respostas

Eu nunca

Eu só perguntas

2021 63
DA FINITUDE

2021 64
EULÁLIA – A BEM AMANTE
Eulália servia doces
não quaisquer
ambrosias divinas
de conto de fadas
servidos em cálices bem pequenos
Eu era pequena
loira e calada
Eulália, a bem-falante
era muda em seu cantar
não recordo sua voz
mas enxergo seu andar
se movia docemente
com a leveza dos pássaros
parece que tinha um ar antigo
dessas de histórias mágicas
sua casa, perto da minha
tinha tesouros que nunca esqueci
abria sua caixa de pandora
e me dava
um por vez
por mais que meus olhinhos gulosos
pedissem mais
um cálice bem pequeno
puro cristal colorido
todo talhado com arte

2021 65
dentro dele
o mais divino manjar
uma quantidade ínfima
de doces de ovos
nada mais que aquilo
bastava para saciar
fomes
desejos
anseios
sonhos
Eulália sentava elegante
devia conversar com minha mãe
não lembro
só pensava em degustar
meus primeiros prazeres da gula
Eulália, só fui descobrir
seu nome de batismo
muito tempo depois
foi sempre Vó Lalica
um nome em tudo
apropriado para ela
Um dia sumiram os doces
ninguém falava alto
fui juntando os cacos e retalhos
Vó Lalica voara para sempre
do alto da sacada
seu corpo frágil foi tragado
pela vida que ela repelia

2021 66
A Eulália
que só mais tarde também
soube que nasceu no mesmo dia
que eu.

A bem-falante das palavras mudas,


a bem amante dos carinhos delicados,
a mulher passarinho
agora alada

2021 67
TIC TAC QUE NÃO PARA
porra de vida, pensou baixo
seu tempo se esgotando
a vida se ajeitando
a família já vivendo a expectativa do não ter
não mais eu
a vida é uma grande merda, na verdade
tenho vida
meu sangue ainda corre
nas veias cheias da quimio
meu cérebro ainda pensa
no meio do tumor que o corrói
o tic tac maligno
canceroso
implacável
vai me tornando algo tão diferente do que sou
minha alma ainda a mesma
tento dizer aos que amo
vejo nos seus olhares
medo
pena
o choque da imprevisibilidade
Todos temos data de validade
porque a minha tão cedo?
tantos sonhos
tanto amor

2021 68
tanta esperança
tudo adiado para sempre
porra
mil vezes porra
melhor cerrar os olhos
não pensar
voltar
Para onde afinal?
Descartável o que sou
um corpo que não reconhecem
uma agilidade que falta
um outra eu
a mesma eu
maldito relógio!

2021 69
80 TIROS
Enquanto você gozava a vida
o músico levou 80 tiros
gente achava que era bandido
foi engano
80 tiros
um pai
um filho que chora
um carro crivado de balas
80 tiros
"sobre" forte emoção
um erro
uma vida a menos
quem há de se importar?
Vira estatística
Notícia esquecida
Sobra tristeza
do filho sem pai
da mulher sem marido
dos amigos da alegria
Engano
80 tiros
tem quem faça arminha
e ache normal
na missa ou no culto
Deus perdoa

2021 70
PASSAGEIRA
Tantas certezas absolutas
Hoje só dúvidas
Perplexidades melhor definição
Olhos abertos e ouvidos moucos
Corpo cansado
Saudades de um tempo de sonho
Vontade de quero mais
Não portas que se fecham
mas horizontes em flor
Quero clichês
Quero perfumes de cítricos
quero mãos me descobrindo
quero arrepios e risadas
dor de cotovelo
bolero miando
pernas entrelaçadas
mãos bobas/espertas
alertando que a vida urge
Quero futuro pela frente
Quero brincar com minha amiga
dizer a vida vai ser bonita
isso tudo é só um pesadelo
vamos acordar
ainda adolescentes
fazendo dietas malucas
contando historias
imaginando paqueras

2021 71
vestindo roupas novas
para a saída de sábado
Agora as portas se fecham
não quero dizer adeus
não quero entender
não quero sofrer
Minhas certezas,
mesmo as sectárias,
me davam firmeza
a certeza da solidão que me aguarda
me fragiliza
a vida é um sopro
dizem todos
com razão
quero dormir
acordar ontem

2021 72
VEJA SÓ A MINHA INVEJA
Invejo os poetas
Ganas de quem
Reinventa
Brinca
Transforma realidades
qual alquimista
transmutante

Eu não
Eu migalha
eu quebrada
eu normal

Poetas sabem
metralhar horizontes
sol poentes
e nascentes
com revolucionária
comunhão

Tenho inveja
Veja

Tenho
Escuto mantras

2021 73
Pesquiso o passado
leio
mergulho
bebo

e nada

Nado sem rumo


sem inspiração
as palavras são falsas
a vida não faz sentido
a energia burla
um non sense
absoluto

Tenho inveja
dos que voam
dos que combatem
dos que ainda sentem
algum sentido
em alguma coisa

2021 74
DESAPEGO NÃO DE TUDO
Percorro cada pedaço
do quarto cheio da vida
Poeira/tempo insano
Paralisada no tempo

Acordo
Descasco cascas
agruras e passado
Desapego
Não de tudo

Espano memórias
jogo no lixo muito de mim
Decanto
Me re-encanto

Despertando enfim
do longo inverno paralisante
ataúde sem portas
onde me escondi da luz
Meu tempo/Minha história
Minhas regras

Não me peça pressa


Certezas que já não tenho

2021 75
fui me deixando partir

me parindo
de minúsculos pedaços
de gigantes melancolias

brilhantes raios de fé na vida


eterna otimista que teimo ser

2021 76
ESTRANHA REALIDADE
um ano de pós verdades
de lógicas hiperbólicas
paixões adormecidas
ano de ficar em casa
ou se atrolhar
sem pensar no amanhã
sem pensar
sem empatia
sem vergonha
de botar a cara na rua
brigar por espaço
comer/beber/lambuzar
escarnecer de deuses e deusas
molhar de chuva, de gozo, de lambuzagem
raízes sem fundo
gritos gemidos
brasas em fogo
gente morrendo
chuva caindo
gente olhando da janela
expectando uma realidade
sem lógica/sem philos
Pactuar com ela
também não faz sentido
Virar estatística

77
muito menos
Chove lá fora
aqui dentro não mais

78
MATE TE MÁTICAS

79
QUATRO RIMA COM TEATRO
quatro gatos encantados
travestidos de loucuras
correm telhados/poleiros
miram lonjuras

quatro mirantes abertos


cheirando a flor de mel
trazem visões discordantes
girando feito carrossel

quatro planetas inertes


guardam promessas de vida
planícies sempre desertas
à espera de gente sofrida

quatro vacas pastando


ruminando ideias dissonantes
propagam teorias esdruxulas
seguem sempre ruminantes

quatro livros intocados


guardados solitários
intocados sem olhares
parecendo sacrários

80
quatro rimas engraçadas
sumidas no pó da vida
virando lembranças
eta vida estagnada

Mistérios da matemática
Surgem brincalhonas na mente
gemendo espaços
somando semente
multiplicando espaços

quatro ferrolhos encantados


reluzentes a carmim
saudades do tempo eterno
portas de querubim
rimas soltas/delicadas
cheirando a alecrim

quatro pássaros voejantes


partindo céleres
suas sinas buscantes
Portam penas coloridas
qual cavaleiros andantes

quatro ânsias libertárias


quatro mortes anunciadas
quatro vidas prisioneiras
quatro modos de morrer

81
Teatro de vida pensada
Rima com quatro
dois mais dois
matemática insana
de querer se libertar
da lona abjeta
da sina tirana

Voa pássaro de mel


Voa cavaleiro andante
Voa sonho de chuva
Voa palhaço e malabarista
Voa vida cantada

Vai ser equilibrista pela vida

82
SETE CAMINHOS INCONSTANTES
Sete histórias inconclusas
Nuvens borradas no ar
Miragens de quereres
esperando para findar

Guardo a garrafa
Fecho as contas
Faço as malas
Choro
Respiro

Sete margens passageiras


Abismos tórridos
Cachoeiras
Muros
Murros
Gritos

Sete navios singrantes


Sete mares sangrantes

Sete contas que não fecham


Furacão amanhecido
aragem
mansidão

83
Sopra ventos
Sopro cantos

Sussurro
Pego
Ataco
Percorro

Sete caminhos inconstantes


vontades percorridas
saudades gemidas
Partos
Parto

Sete possibilidades
Sorrio
Engulo
Afago
Cheiro
Escuto

Sete sentidos eriçados


pele a pele
Se saio/se fico
retorno
pura vertente

84
Mulher tem disso
É sábia inconsequente
Conta contos
Perde contas
Corta

85
FAIRY TALE
três cavaleiros inquietos
entrantes pela madrugada
curiosos com seus corcéis
audaciosos em seus cordéis

cinco donzelas solitárias


orando pela salvação
mirantes no coração
suspirosas em seus dosséis

contas que não se fecham


homens procurantes
mulheres solicitantes

universo gira e rola


de alguma maneira conforma

sempre surgem sete andarilhos


com seus pés calejados
mentes delirantes
que roubam os encantos
das donzelas instigantes

86
A MOÇA E SEUS MISTÉRIOS
Eram sete gatos pardos
Paridos em noite de lua cheia
Riscando telhados de zinco
Suas unhas entranhadas na madrugada

Eram sete vaga-lumes errantes


Libertos do vidro transparente
Voejando em noites sem luz

Eram quatro peixes mourejantes


Vindos de águas turbulentas
Cansados e arquejantes
Como reinos dissolutos
Todos e nenhum
Cada um de um reino
Foram mortos na fogueira
Feita de sarças moribundas

Sobreviveu a moça
Que naufragou na viagem
Em busca do seu tempo perdido
De cada um e a seu tempo
Foi recolhendo pedaços

Dos gatos trouxe o orgulho de dengo

87
Dos vaga-lumes, a leve dança da luz
Dos peixes trouxe a certeza das marés
Do fogo sobrou a rebelião que tudo transforma

A moça
Ela sorriu
E seguiu
Destino nenhum
Mergulhou atrás da espada
Na lagoa enluarada

Dizem os magos
Que é vista uivando
Em desbragada correria
Outros que emerge de repente
Arrastando quem se arrisca

A verdade é
Que gatos, vaga-lumes, peixes e labaredas
Amanhecem cantando
A moça e seus mistérios

88
MATE TE MATICAS
Nove pontes sem retorno
Nove mãos sem rumo
Nove vezes de vereda
Nove naves perigosas
Nove teias de encantos
Nove retalhos no lixo
Nove esperanças fugitivos
Nove vozes maltratadas
Nove rotas sem volta
Nove encontros sem destino

Noves fora sem retorno


Nunca fora boa em números exatos

Mil vezes as nuvens sem forma


Mil vezes o vazio infinito
Mil vezes o abismo abrupto
Mil vezes a coisa que não se explica
Mil vezes o recomeço
Mil vezes a promessa não cumprida
Mil vezes a alma corrompida
Mil vezes a vida vivida
Mil vezes tu
Noves fora eu
A soma é

89
SETE NOTAS DISSONANTES

Eram sete notas dissonantes


Naquele castelo de magias

Uma sabia à águas


Águas mansas que corriam
Também redemoinhos
Arrastando grilhões

A segunda parecia abraço


Vó embalando canção
Mãe cuidando ferida
Amor depois da paixão

A outra lembrava fogo


Brincadeira de criança
Mansidão de ver chamas
Calor de multidão

A quarta nota diferente


Estranhava pela ausência
Uma coisa de urgência
Aquele aperto sentido
Mais vazio que presença

90
A quinta era nuvem no céu
Fumacinha de aniversário
Era aquilo que fica
Depois que tudo evapora

A sexta era concreta


Feita de aço e coragem
Tinha o dom das decisões
Daqueles que tomam peito
Era dos práticos a nota

A última era impronunciável


Não tinha forma nem definição
Talvez fosse o que se chama
Pura intuição

Sete notas dissonantes


No castelo de magias
Formavam uma corrente
Na vida que fulgia

91
FINAL MENTE

92
EXISTE VIDA NA INQUIETAÇÃO?
Abrir-me ao mundo
Querer-me inteira
Saber-me perdida
Achar-me cabeça
Perder-me na lama
Sumir, sumir, sumir
Quem sabe sôfrega
Descobrir que nada importa
Que a vida é niilista
Que a saudade é letra-morta
Que tanto faz
Como tanto fez

O sol vai continuar no céu


Que a morte vai vencer
Que os quês predominam
Não importam as certezas
O pó será o final
Que termine então
Em um grande barato
Entupir-me de magias
Encharcar-me de ousadias
Enxergar-me nua
Entregar-me tua

93
SINÔNIMOS DE ALGUMA COISA QUE
NEM SEI O QUE É
Nevoso tempo em que
cabeça não arde
Enigmaticamente indecifrável
Brumal de incoerências
Nevoentas
Impenetráveis
Absurdamente insondáveis

Brumaceiro medonho
Cérebro confuso
Imundo
Catatônico
Misterioso
Até para mim
que o habito
ou ele a mim
Obscuro
miúda água
líquida cabala
esfumada realidade
Cadê o senso brusco
Desassossego brumal

94
Procuro nos sinônimos
alguma parecença
com a vida que se esvai
Ficam palavras imersas
Aflitas
torturadas
sem sentido

Vai, vai fundo


Vai buscar o encaixe
traz de volta a ligeira
sintonia que se perde
eu me perco
eu me desfaço
eu me desencaixo
eu que já não
me reconheço mais

95
ANDORINHAS AUSENTES
No meio da quarentena conheci Manoel de Barros.
Podem achar graça ou até perguntar quem é.
Há os que vão sorrir gritando: o poeta!

Tenho meus dias de poesia.


São momentos em que preciso
de lírios verdejantes na insolente monotonia.
Oscilo entre o mergulho na janela que me fascina
ao voo da andorinha que brinca com as nuvens.

Delicado meu equilíbrio.


Uma tecitura delicada que conforme o ponto, desanda.
Ou sublima.

Sempre fui dos cá dentro.


Ficar reclusa nunca me aborrecia.
Até quando deixou de ser escolha.
Virou prisão.
Precisão de cuidados.
A vida mata.
O amor vira navalha
como disse outro poeta
que outra peste levou mais cedo.

96
Nem as nuvens se mexem
em um céu congelado.
Meu sangue-frio parece ferver
Algo em mim se fez tristeza.

Recomeço o delicado equilíbrio de me re-erguer.


Cada um de nós oscilantes, procurantes,
barrosos de poesia.
Carentes de colo e vida na rua.

Olho ruas vazias e sinto um aperto.


Olho ruas com gente e sinto outro aperto.

O amanhã nunca pareceu tão distante.


Palavras ferem como punhal.
Palavras acalmam como sonrisal.
Palavras fazem rir sem mal.

Cato pecinhas de mim me sabendo apertadinha de perguntas


sem respostas.
Todas as certezas no chão.

Andorinhas, apareçam de dentro de mim!

97
LEIO POESIAS EM UM MUNDO EM
CHAMAS
E como tudo o que é farto e não sacia
Tropeço nos raios de sol,
ofuscada pelos ecos que ficaram.
Sede- Adriana Mayrinck

O mundo em chamas e eu leio poesia.

Acordo, meio entorpecida


Noite insone com sonhos oníricos,
quase porém reais em suas impossibilidades
Reação imediata:
Conexão

Saudade de tempos em que só acordava e olhava o sol


ouvia pássaros e lia jornais que eram tão atuais

Hoje acordo assustada


por vezes apenas irritada
são guerras de informações,
ganha quem lacra mais
Hoje o mundo pega fogo
literalmente
jornadas de descontentamentos
é daqui, gritam uns
é dali, vociferam outros

98
Analistas tecem complexas teorias
para explicar o inexplicável
o imponderável
o estopim

O mundo é um barril fervente


E eu leio poesias

Versões estapafúrdias sobre tudo


o mundo está pegando fogo
eu assistindo
expectadora
espectadora
Ao mesmo tempo que teço considerações
tenho expectativas,
olho

Leio poesias
minha forma de sobreviver
enquanto assisto
tento entender

Serão assim as revoluções?


Não as de papéis fardados
que brincam de mudar
fazendo mais do mesmo.
MAS
As de verdade

99
que assopram mudanças estruturais,
que marcam eras,
que germinam
sementes ancestrais

Talvez o fogo seja o parto de novas eras


como os místicos apregoam
talvez seja apenas o fim
de algo que não presta mais
Talvez até não tenha nenhum sentido

Por isso
enquanto o mundo pega fogo

eu sento
e leio poesia

100
OS DESCARTÁVEIS DA PANDEMIA
Desculpem a falta de ânimo
Desculpem a falta de abraços
Os dias eram assim
As mortes se sucediam
Muitos riam
Andavam impunes
Como se nada lhes tocasse
Talvez fosse fuga
Que viesse logo
Que o descarte
O pouco caso
Os e daí da vida
Tornavam tudo sem sentido
São dois pra lá
Nós pra cá
Equilibristas entre notinhas de repúdio
E a vida real dos que teimam em sobreviver
Numa esperança fugidia
De um amanhã
Cada dia mais longe de nós

Os descartáveis da pandemia

101
HAICAI

102
SONHOS DE MIRAGEM

Um a um foi ticando
os sonhos não realizados
As viagens que não fez
Os amores que não vingaram
Humores esquecidos
Fluídos
Sementes jogadas ao breu
Nuvens, furta cor, formando desenhos
O estomago chorando de falta

A falta
A falta
A falta
Doída falta

O cachorro destroçado
falta de liberdade
bandeira rota
falta de diálogo

A gente vive da melhor forma.


Convive / Troca.
Explode de emoção.
Chora de alegria.

103
As outras lágrimas,
as de raiva, de frustração, de tristeza e cansaço,
essas a gente extravasa em palavras.
Cria contos,
forma sentidos como as nuvens
formam desenhos no céu.
Ao léu.
Ao breu.

A voz que chama por pessoas que já foram.


A idade que teima em apagar da mente
um presente sem sentido.
O fim.
A gente vai apagando devagarinho,
chama por chama,
fica velinha miúda
tentando fazer de conta
que a vida ainda tem algum sentido.

Vai ver que tem e nos falta coragem.


Vai ver que tudo no final
não carecia de precisão,
apenas de sentimentos.
Fossem de explosão,
fossem apenas miragens
a nos acenar de algum ponto
perdido no universo.

104
FIM DO DIA

No fim do dia
Sofria
Sorria

Pensava que seria


Da vida
Da lida

Do tanto que podia


Sentia
Poderia

Quem sabe um dia


Anoitecia
Amanhecia
A rima acabava

Restava a vida
Sem poesia

105
poemas e fotos de Elenara Stein Leitão

106
107

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