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LER BRAUDEL YVES LACOSTE COORDENADOR MAURICE AYMARD ALAIN CAILLE FRANCOIS DOSSE FRANCOIS FOURQUET MICHEL MORINEAU PHILIPPE STEINER IMMANUEL WALLERSTEIN el paprur LER BRAUDEL por MAURICE AYMARD, ALAIN CAILLE, FRANCOIS DOSSE, FRANCOIS FOURQUET, YVES LACOSTE, MICHEL MORINEAU, PHILIPPE STEINER, IMMANUEL WALLERSTEIN Tradugéo BEATRIZ SIDOU Titulo original em francés: Lire Braudel © Editions la Découverte, Paris, 1988 Capa: Francis Rodrigues Tradugéo: Beatriz Sidou Equipe Editorial Coordenagéo; Maria Aparecida Balduino Cintra Copidesque: Niuza Maria Gongalves Revisdo: Josiane de Fatima Pio Romera Beatriz Marchesini Dados de Catalogagio na Publicagio (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro) Ler Braudel / Maurice Aymard ... [et al.] ; traducio de Beatriz Sidou. — Campinas, SP : Papirus, 1989. Bibliografia, 1, Braudel, Fernand, 1902-1985 1. Aymard, Maurice, CDD-907.202 Indices para catalogo sistemético: 1. Historiadores : Biografia e obra 907.202 ISBN 85-308-0040-0 DIREITOS RESERVADOS PARA A LINGUA PORTUGUES, ©M.R.Comacchia & Cia. Ltda. gw paprus EDITORA Av. Francisco Glicério, 1314 - 2.° and. Fone: (0192) 32-7268 - Cx. Postal 736 13013 - Campinas - SP - Brasil proibida a reprodugdo total ou parcial por qualquer meio de impressio, em forma idéntica, resumida ou modificada, em lingua portuguesa ou qualquer outro idioma. INDICE Prefécio: Um convite a histéria ...... O homem da conjuntura — Immanuel Wallerstein . Um grande projeto — Civilizacdo material, economia capita- lismo — Michel Morineau ......... ene “Uma certa paixdo pela Franca, uma certa idéia de histéria” — Maurice Aymard . Um novo espaco-tempo — Francois Fourquet ........-.+++ A dominancia do mercado — Alain Caillé .......... ce Capitalismo ¢ modernidade — 0 impasse sobre Max Weber Philippe Steiner . . Os herdeiros divididos — Francois Dosse ....... eeaetcee Braudel gedgrafio — Yves Lacoste .... Bibliografia Indice onoméstico .... Elementos biograficos de Fernand Braudel . Obras de Fernand Braudel Os autores ........ eee gee 31 63 19 97 137 161 175 221 227 - 231 - 233 . 235 PREFACIO UM CONVITE A HISTORIA “Para Deus, um ano nem conta, © um século ¢ como um piscar de olhos. Assim, aos poucos, por baixo da hist6ria das flutuacdes. por baixo Ua historia factual, da histGria de superficie, fui me inte- ressando pela histéria quase imdvel, a histéria que Se movimenta muito lentamente, historia que se repete.” Fernand Braudel disse isso em 1985, em Chateauvallon, durante um encontro em sua homenagem. Assim, em sua aula inaugural no Colégio de Franca, em 1950, ele ja evocava seu enorme interesse pela ritmica do tempo “Giardei a lembranca de haver sido envolvido por uma explosao de fogos de artificio de vagalumes fosforescentes, certa noite, na Bahia: as luzes palidas explodiam, se apagavam, acendiam de novo. sem romper a noite com luminosidades verdadeiras. Os acontecimen- tos sé assim —- mais além de seu clario, a obscuridade continua vitoriosa” Fle afirmava essa mesma visao. tao original © inovadora, em seu manual de historia (1963)> “A evidente multiplicidade de explicagdes da historia com sei distanciamento entre dois pontos de vista diferentes e suas proprias contradicées harmoniza-se realmente numa dialérica caracteristica da histGria, baseada na diversidade dos tempos histéricos — o tempo rapido dos acontecimentos, o tempo mais alongado dos episéiios © © tempo demorado © preguigose das civilizagoes.” falar da locatizagao que © tempo essa persor método e em seus diversos Waba Fo mesmo qu wem de muitas “. oCupd os. © tempo, ou mais precisamente os tempos, as duragdes (a longa tracdo tem 14 sua afinidade), os ritmos, os ciclos, todas essas mporalidades que se emaranham © que constituem a propria densi- de da historia Fernand Braudel nao hesita em falar sobre os autores que leu sobre os quais refletiv Vidal de La Blache, Frnest Lavisse angois Simiand, Marcel Mauss, Henri Berr, Mare Bloch e, claro. acien Febvre © ainda menciona mais de uma vez um filésofo sua geragdo a quem € aparentado: Jean-Paul Sartre. © Jean-Paul Sartre para quem a historia € “a socializagdo de das us multiplicidades praticas e de todas as suas lutas” (Critique la raison dialectique, p. 75). O Jean-Paul Sartre que demonstra carater inacabado de toda sociedade histGrica e o lado imperfeito. igil e hesitante das estruturas e de sua disposicAo instavel e varidvel. ele que clucida uma forca nova: a inércia. FE ele que introduz o pel da praxis em sua concepcdo da dialética “Sao as dialéticas individuais que. depois de haver criado ao 2smo tempo a antiphysis como reinp do homem sobre a natureza a anti-humanidade como reino da materialidade nao-organizada bre o homem ,criam pela unido sua prépria antiphysis para construir reino humano, ou seja — as relacdes livres dos homens entre si” 377) E incontestavel que existe ai um encontro intelectual. Dois gran- 8 talentos, embora pouco familiarizados um com 0 outro, enconiram- ; compartithando metodologia histérica bastante aproximada, ainda te Sartre desconhega os trabalhos dos historiadores de sua época que Braudel pareca freqiientar muito pouco as discussdes filoscficas. m toda certeza preferindo as das ciéncias sociais.' F isso, embor audel seja mais determinista do que Sartre, que acredita na acéo ‘re dos homens. Fm geral, a Fernand Braudel se atribui o mérito de haver con- zado a dimensao espacial A concepcao da histéria como uma combi ‘c20 de tempos diferenciados. Assim, © capitalismo so pode existir Ver. por exemplo, as polémicas com Georges Gurvitch. Note-se que ele for um dos primeiros a analisar o ensaio de Jean-Paul Sartre, Critica da. raza Mialética.e 9 indicar onde nao estava de word. Ver Disletique ct seers logic, publicado na colegso de F. Braudel. pela Flammarion {Franca}. ent com um certo espago que entra em sua constituigao. O capitalismo que se inicia no século XVI ja € mundial, mesmo que © mundo inteiro nao 0 seja completamente — longe disso. Na época coabitam inime- tas economias-mundos, ou, mais exatamente, elas coexistem, sem necessariamente sc conhecerem. Fernand Braudel retoma essa idéia do socidlogo alemao Werner Sombart, mas lhe d4 um corpo. Para Werner Sombart o capitalismo € “uma categoria histérica™, ou seja, um sistema que nasce em determinadas circunstancias (ou, mais precisamente, que determinadas circunstancias fazem mascer), desen- volve-se por ctapas ¢ periclita, transformando-se num outro sistema, cujos elementos essenciais ele produziu ao menos em parte. Braudel j4 distinguia trés tipos ou trés momentos nessa histéria do capitalismo “o capitalismo primitive” “o alto capitalismo” e “o capitalismo tardio”’.* Inspira-se também nos trabalhos do historiador francés Henri Hauser (um dos primeiros a se interessarem pela economia, junto com Henri Pirenne), que escreveu, a guisa de introducao a seu livro Débuts du capitalisme (1931): “Acreditamos que se possa falar do capitalismo como se fala de um fato, sem amor e sem 6dio”. Henri Hauser, que, ao contrario de W. Sombart, jamais foi marxista, cuida- va ao empregar a expressio “capitalismo” (alias, recente, popularizada ne inicio do século por esse mesmo W. Sombart) sem que ela esti vesse manchada por qualquer conotagao, pejorativa ou nao. © capitalismo nao é uma doenga vergonhosa, mas um periodo da histéria da humanidade a que estao ligadas grandes transformagses de todos os géneros: nas maneiras de trabalhar, de pensar, de viver, de amar, de sonhar etc. O importante é explicar 0 porqué eo como n&o apenas da possibilidade de tal sistema econdmico © social mas de sua realizagao e de sua hegemonia em nivel mundial. “[...] Para mim™, diz Fernand Braudel em Chateauvalion, “o capitalismo é um fenémeno de superestrutura, um fendmeno de mino- ridade, um fenémeno de altitude”, FE isso que magistralmente explicam os wés volumes de Civili- zation matérielle, économie et capitalisme. © titulo dessa obra contém uma outra nogdo essencial na terminologia braudeliana (¢ febvriana) = “civilizagio”® (deixemos de lado a da “economia” que ele distingue Ver Laporée du capitalisme, 2 tomos, Editions Payot, 1932, com um longo prefacio interessante de André FE. Sayots 3. Ver Lucien FEBVRE. Une histoire a part entiére, editade por Jean Touzot Paris, 1962 de “capitalismo”, amplamente estudada nos diversos textos deste volu- me). Se, por exemplo, a troca e a moeda pertencem a outras socie- dades que nao a nossa e se o capitalismo nao é 0 tnico sistema a utilizé-las, generalizando outras praticas, em compensagdo, € o tinico a cair na tentacao de transformar tudo em mercadoria -~ sem nece: sesimmente obter sucesso. Esses resultados imperfeitos alimentam uma sociedade especialmente complexa, formada de elementos diver sos. A industria (© seu processo de difusdv e inovacdo tecnoldgica, a industrializacdo) parece, entretanto, especifica de uma época deter- minada. Assim, a expressao “civilizacdo industrial” talvez encontre sua pertinéncia neste século XX que se encerra, Mas ele observa em sua Grammuire des civilizations: “No entanto, a ‘civilizagao indus- trial” exportada pelo Ocidente nao é sendo um dos tracos da civil zacao ocidental. Ao adota-la, 0 mundo nao esta aceitando ao mesmo tempo todo 0 conjunto dessa civilizacdo — av contrério, O passado das civilizages nao € sendo a histéria dos empréstimos constante- mente renovados que elas se fazem umas as outras no correr dos séculos, sem por isso perderem suas particularidades ou sua origi- nalidade”, Diversas contribuigdes foram reunidas neste livro para que se tenha a medida das contribuigdes de Fernand Braudel. De inicio a idéia nao era fabricar um “braudelianismo” ou reunir uma série de textos para “homenagear” um historiador fora do comum, mas mostrar 2 reflexdo de historiadores, economistas, socidlogos e gedgrafos susci- tada pela leitura de suas obras. Confirmacoes, reservas, desenvolvi- mentos e criticas (no sentido kantiano dessa palavra) acabaram surgindo dessa leitura, desordenada para uns ¢ sistematica para outros. Assim, Immanuel Wallerstein retraca rapidamente a biografia de Fernand Braudel, antes de estudar o lugar que ele d4 a conjuntura. Maurice Aymard mostra até que ponto L’identilé de la France (nem sempre bem acolhida pela critica, mas muito bem recebida pelo publi- co) é uma peca dominante na obra de Braudel. Michel Morineau retoma de modo considervel uma longa ¢ valiosa exposicio de Civi- lisation matérielle, économie et capitalisme, questionando-se a respeito de carater funcional de certos conceitos de Fernand Braudel. Francois Fourquet expressa com entusiasmo a importancia da dupla tempo/es- pago em Braudel que, segundo ele, de agora em diante nos obriga a uma leitura toda nova da historia do mundo. Alain Caillé, em compensacao, nio adota a anilise braudeliana do mercado e a elu opde a de Karl Polanyi. Philippe Steiner questiona a quase-auséncia de Max Weber nas referéncias de F. Braudel, existindo entre ambos 10 uma boa quantidade de aspectos em comum e algumas divergéncias teis de se conhecer. Francois Dosse mostra que a heranga de F. Braudel nao é uma sé © que seus herdeiros sio muitos, cada um fazendo frutificar apenas um aspecto das riquezas intelectuais legadas. Finalmente, Yves Lacoste analisa de maneira muito pessaal o lugar da geografia nos trabalhos do historiador do Mediterraneo, percebendo que ela varia segundo o ritmo do tempo estudado. A geografia em Braudel nao tem a mesma importancia a longo ¢ a curto prazo, mas serve também para fazer a histéria... Ler Braudel é um convite 8 historia através da obra de Fernand Braudel, uma obra aberta a todas as outras ciéncias sociais, apesar da preferéncia outorgada & histéria Que esta obra nao se torne um corpo indiscutivel, um santudrio, mo- numento que se visita com respeito tal, que se torna impossivel qual- quer comentario, Nao facamos de seu trabalho um absoluto; lem- bremos sempre de sua apreensdo quanto a esquemas, a pensamentos jé prontos: “Deverei acrescentar que 0 marxismo atual me parece a prépria imagem do risco & espreita de qualquer ciéncia social apai- xonada pelo modelo em estado puro, do modelo pelo modelo?” (Annales, 1958). Thierry Paquot O HOMEM DA CONJUNTURA * Immanuel Wallerstein Na tradigao dos Annales, todo escrito histérico deve apresentar- se como histéria-problema.? Portanto, uma avaliagio de Fernand Braudel e de sua obra histérica deverd iniciar pelo problema: como considerar sua vitéria — a vitéria da escola dos Annales — sobre a ideologia dominante no establishment da Franca (¢ do mundo) e, ainda, como avaliar o fato de que essa vitéria tenha resultado na criagéo de um novo establishment sobre 0 qual reina Fernand Braudel € contra o qual ele se insurge? * A historia dos Annales nos ensina que para responder a um pro- blema é preciso recorrer & “hist6ria pensada” ¢ ndo a “historia histo- rizante” (ou seja, a uma hist6ria analitica em vez de cronolégica), e, assim, pretendo organizar minha resposta em torno da trilogia dos tempos sociais enunciada por Braudel: estrutura, conjuntura e aconte- cimento [F. Braudel 1958].** Tentarei manter na memoria que. * Texto traduzido do inglés por Lotfallah Soliman. ** As referéncias entre colchetes remetem & bibliografia reunida no final do volume, 1, Nao consegui retragar a origem dessa expressio. Provavelmente foi inven- tada por Lucien Febyre. Numa declaragao desse género, Febvre escreveu ‘olocar um problema é precisamente 0 inicio e © fim de qualquer hist6ris Sem problemas, néo hé histéria" [L. FEBVRE 1953, p. 22]. No editoriat inaugural dos Annales ESC, Febvre promete “oferecer uma histéria que nao € automatica, mas problemética [ibid., 1953, p. 42]. Discutindo os mé ritos da histéria narrativa, Frangois Furet afirma: “E uma histdria-promle ma(s) muito mais que uma histéria-descrigao" [F. FURET 1971, p. 71} 2. Outras referéncias a Braudel que colocam “problemas” diferentes poderao ser encontrdas em J. H. HEXTER [1972]. S. KINSER [1981] ¢ T STOIANOVICH [1976] 13 mesmo para uma biografia, os acontecimentos sao “poeira” * e, afinal de contas, a explicacdo vem de uma combinacao de estrutura e con- juntura. Nao esquecerei que um tempo muito longo (eterno, a-histé- rico) corresponderia muito pouco a um tempo real e prudentemente evitarei invocd-lo. O Mediterréneo, obra maior de Braudel, aborda as trés temporalidades, na seguinte ordem: estrutura, conjuntura, acon- tecimento. A meu ver, é ai que esté a tinica falha importante, num livro cujo poder de persuasao teria sido maior se Braudel houvesse comegado pelos acontecimentos para, em seguida, tratar da estrutura, terminando pela conjuntura. Estando eu disso convencido, € essa or- dem que manterei aqui, iniciando pelos acontecimentos marcantes da vida de Fernand Braudel. O tempo da vida Fernand Braudel nasceu em 1902 numa cidadezinha do Leste da Franga. Ele nos fala de sua “esséncia camponesa” [F. Braudel 1972, p. 449], mas seu pai era professor de matematica (0 que poder4 explicar por que, ao contrario da maioria dos historiadores de sua geracdo, ele jamais se espantou nem com os nimeros, nem com os cAlculos aritméticos). Em todo caso, sua “esséncia campo- nesa” parece refletir-se no interesse que sempre manteve pelos modos de producdo agricolas. Ele nos lembra que, junto com outros histo- riadores da escola dos Annales, € originario daquela regido da Franga préxima & Alemanha [F Braudel 1972, p 467]. Essa vizinhanga esta na origem do interesse cheio de simpatia que ao longo de toda sua vida ele teve pela erudic&o alema; é um interesse que nem os cinco anos passados num campo de prisioneiros parece haver alterado. Qualquer que seja a raz4o, o pensamento histérico alemao influenciou enormemente Braudel ¢ a escola dos Annales — mas é a Alemanha de Gustav von Schmoller, essa Alemanha que protesta, e ndo a de Leopold von Ranke, aquela que decreta. Ele foi um “apaixonado pelo Mediterraneo, sem divida porque vindo do norte...” [F. Braudel 1966, I, p. 10]. Simples poesia? Talvez. Mas talvez, também, em nivel psicolégico, seja a expressio dessa evasio para além de sua provincia natal que estabeleca o imaginario histérico de Braudel. Depois do exame de agrégation, Braudel teve a oportunidade de obter seu primeiro posto importante na Argélia, permanecendo ai 3 Na introducdo A terceira parte do Mediterraneo, Braudel escreveu: “Os acontecimentos sio poeira. ~ [F. BRAUDEL 1966, » 223] 4 por dez anos. Foi a partir dessa base argelina que seu estuco sobre a historia diplomatica de Filipe II de Espanha se ampliou, tornando-se um estudo mais vasto © completamente diferente sobre 0 Mediterraneo enquanto localizagao espago-temporal, onde ele pode situar a con juntura do século XVI. f na Argélia que Braudel chega a uma visao completamente diterente da Espanha e, talvez, ao mesmo tempo, da Europa. Depois de mais de de7 anos ua Argélia, Braudel passa alguns anos no Brasil; esse demorado distanciamento da Europa desenvolve sua tendéncia a considera-la como um todo. Ao voltar do Brasil, ocorre 0 maior acaso do mundo: ele viaja no mesmo navio de Lucien Febvre, co-fundador dos Annales, Esse encontro ira marear profun- damente sua vida. A camaradagem da travessia rapidamente se trans- forma em amizade e, de volta a Paris, leva-o a estabelecer ligagdes organizacionais diretas com a escola dos Annales. Também € dessa época a “proposta imprudente” de Febvre, sugerindo a Braudel recen- tar sua tese, colocando a énfase basicamente no Mediterraneo, em vez de em Filipe 11" [L. Febvre 1950] A queda da Franga em 1940 faz de Braudel, entao oficial. um prisioneiro. Durante toda a guerra ele fica encerrado numa prisao militar na Alemanha, mais precisamente em Liibeck. Mesmo ali ele se mostra um lider. Além do mais, a priso nao tem sé inconvenien tes. Ela garante a Braudel o tempo necessario & recagao de sua tese: ele ndo tem a sua disposicdo notas ou arquivos, mas Febvre Ihe envis livros e, no retorno, Braudel Ihe apresenta partes de seu manuscrito Anos mais tarde, ao saber que o Mediterraneo fora redigido na pris, um historiador italiano declara haver enfim compreendido por que tivera sempre a impressio de que era um “livro de contemplacao” [F. Braudel 1972, p. 453]. Seja como for, 0 proprio Bratidel nos explica como a vida no cércere influenciou sua obra: “Eu tinha de tomar meus distanciamentos, de rejeitar e de negar [os fatos]. Abaixo os fatos, abaixo os acontecimentos contraditérios! Fu tinha de ucre- ditar que a historia, o destino, estava escrita em um nivel mais pro fundo” [1972, p. 454] Depois da guerra, a exemplo de seu mesure Lucien Febyre, Braudel é, ao mesmo tempo, rejeitado pela Sorbonne e designado para o Collége de France. A honra sem o poder académico. Para 4. Lucien Febvre city uma carts que escreveu a Braudel: “Kilipe Me 0 Me diterraneo, belo assunto. Mas por que nio O Mediterraneo e Filipe U1, ainda outro assunto eacelente? Pois, entie esses dois. protagonistas. 0 Mar Interior. as partes no fo iguais Febvre e Braudel essa foi, mais uma vez, uma oportunidade, pois obrigou-os a buscar para seus trabalhos uma base organizacional fora da universidade. Os dois a encontram na Se¢o VI da Ecole Pratique des Hautes Etudes, uma estrutura jé estabelecida desde a década de 1870, que s6 sera reativada em 1948 por Febvre e Braudel. A secao VI amplia-se e, em 1963, Braudel funda uma instituiggéo complemen- tar, a Maison des Sciences de ’Homme. Quando a rebeliao de maio de 68 explode, Braudel e os Annales so, para seu espanto, encarados como establishment. Braudel consegue manobrar com relativo sucesso durante esses meses de crise. Contudo, pouco tempo depois, ele aban- dona duas das trés estruturas que constituem seu es/ablishment. Em 1969 cede o controle editorial dos Annales ESC aos “novos” Annales (pés-braudelianos). Em 1970, pede demissao da presidéncia da seco VI, que ndo tardaré em tornar-se uma nova universidade — a Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (EHESS). Conservando ape- nas o papel de administrador da Maison des Sciences de 'Homme, Braudel escapa ao “esmigalhamento” que muito se revela nos “novos” Annales e na EHESS.® Todas essas reviravoltas nao acabam restabelecendo aquela tnica oportunidade? Certamente nao. Fernand Braudel é homem de agarrar a sorte, ndo apenas uma vez, mas todas as vezes que ela se apresenta a ele. Uma pessoa nao se torna figura de proa no mundo das ciéncias sociais por puro acaso e, além disso, para agarrar a sorte, nao basta a vontade, € preciso também que ela se ofereca. A oportunidade a agartar esté na conjuntura e, para avaliar a conjuntura, devemos si 5. Exatamente como “hist6ria-problema”, “esmigalhamento” € uma expressiio que todo mundo utiliza, cuja origem nao é conhecida com muita certeza a nao ser por uns poucos. Em uma carta datada de 28 de setembro de 1979, Jacques Revel me apresentava seu ponto de vista “Vocé me pergunta a origem da expresso ‘esmigalhamento’. A versio 1. poder ser encontrada no pequeno texto publicado por Nora nos prospectos apresentando a Bibliotheque des histoires, editada pela Galli- mard, onde esta: ‘Vivemos a explosio da histéria’ “Vocé encontraré © texto nas costas dos livros dessa colegio. Essa forma, que pretendia caracterizar uma evolugéo de pesquisa em 1970, foi recebida negativamente tanto pelos defensores da histéria global (por Brau- del em particular) quanto pela esquerda universitéria (Chesneaux). Cr que foram eles que substituiram a expresso ‘esmigalhamento’ (ou ‘histéria em migalhas’) por ‘explosao’.” Ver também a discussio, passim, em The Impact of the Annales School on the Social Sciences, Review, 1, invetno-verdo de 1978, especialmente as contribuigdes de Jacques Revel © Traian Stoianovich. 16 tué-la na estrutura. Portanto, comecemos pelo exame da estrutura antes de nos voltarmos para a conjuntura. A prolongada estagnacao do mundo da economia européia que vai de 1600 a 1750 resulta numa grande transferéncia geografica dos papéis econdmicos. A partir de 1689, o fim da hegemonia holandesa € seguido por uma segunda “guerra dos Cem Anos” que opde a Gra- Bretanha & Franca, visando 20 controle j4 bastante articulado do co- mércio mundial, uma rede que ligue, mais estreitamente do que nunca, todos os processos integrados de produgdo. Embora se possa dizer que desde 1763 a Gra-Bretanha tenha vencido essa guerra de con- corréncia, é preciso esperar até 1815 para que a Franca admita sua derrota. Garantida a hegemonia briténica, econémica, militar e tam- bém politica, esboca-se, a partir de 1815, uma nova ofensiva que visa a estender essa hegemonia aos dominios da cultura e da ideologia, a fim de consolid4-la e justificé-la. E assim que a década de 1850 vé © triunfo daquilo que se poderia chamar pensamento “universalizante- setorizante”. Naturalmente, ha muitas varidveis dentro dessa corrente de pensamento. Mas a idéia central, comum a todas essas variantes. depende de dois principios: a estrada do conhecimento tem inicio no detalhe e desemboca no abstrato (pensamento universalizante); os diferentes “setores” do saber tém cada um sua via propria e separada dos outros, refletindo processos e paralelos de mundo real (pensa- mento setorizante) O “pensamento universalizante” divide-se em duas correntes principais, aparentemente opostas, mas na verdade estruturalmente idénticas. O argumento da primeira é dizer que, iniciando-se pela descricéo da realidade empirica, é possivel, por indugao, chegar-se a formulagao de leis abstratas, verdades validas em todos os tempos € em todos os lugares. Essa corrente fundou a ideologia da ciéncia social moderna, (E também a das ciéncias fisicas © biolégicas modernas, mas isso ndo vem ao caso.) No século XIX, essa ideologia encontra seu dominio no pensamento inglés, que Ihe € favoravel, pois a Gra- Bretanha de entao centraliza as principais redes organizacionais do mundo. A segunda corrente do “pensamento universalizante” também est4 vinculada A descricdo da realidade empirica. Mas ela para por ai, negando com maior ou menor vigor a possibilidade de ir além dessas descrigdes, Essa corrente é “universalizante”, na medida em que, sendo iguais todas as particularidades, nao podem existir entre clas diferencas exdgenas estruturadas, Essa abordagem estabeleceu a ideologia da maioria dos historiadores modernos (e de uma parte dos \7 antrop6logos). No século XIX, seu dominio é a Alemanha, 0 grande sacerdote é Ranke, e sua divisa é: “Por uma histéria wie es eigentlich gewesen ist”. Esse domicilio na Alemanha é muito adequado — o pensamento dependente esté situado fora da metrépole, mas necessita das bases organizacionais de um Estado semiperiférico poderoso para sustentar seu pleno desenvolvimento, No final do século XIX e mesmo no inicio do século XX, os defensores dessas duas correntes de “pensamento universalizante” ar- mam um grande espetaculo. Estimulam um debate, considerado fun- damental, entre as disciplinas nomotéticas idiograficas. Na verdade, sso é apenas um desvio da atencio. O segundo principio, dizendo que o saber é setorial e paralelo, 44 origem, no campo das ciéncias sociais, & diversas pretensas “disci- slinas”. Enquanto no século XVIII a filosofia, a economia moral ¢ 3 economia politica eram termos descritivos que se sobrepunham e se sonfundiam (ou seja, faziam todos parte de um mesmo corpo de saber), no século XX nao apenas se faz a distingao entre “histéria” 2 “ciéncias sociais”, como estas ainda esto divididas em pelo menos sinco “disciplinas” diferentes: antropologia, economia, geografia, cién- sia politica e sociologia. A distingdo € ao mesmo tempo intelectual > administrativa. & justificada em termos de “pensamento universali- ante”. A partir do momento em que estamos em busca de leis gerais, jevemos procurar as mais apropriadas a cada setor do mundo real. 3ntretanto, sendo formalmente semelhantes, essas leis sio distintas : distinguiveis. Os defensores da variante idiografica contentam-se em sorrigir essa proposta: como € impossivel livrar-se das leis gerais, levem-se restringir as descrigdes estritamente aos dominios do saber mediato. Dai resulta nao apenas uma “setorializacdo” do saber mas ambém uma hiperespecializacao em cada “disciplina” e, mais espe- sialmente, na hist6ria e na geografia. A vantagem de doutrinas como essas est evidente para os bene- icidrios da hegemonia britanica. O “pensamento universalizante” d4 > direito a interpretacao vulgar (vulgar, mas muito influente), segundo t qual 0 modelo britnico constitui um modelo universal. Essa tese em duas implicagdes: os britanicos merecem as vantagens de que yozam e, se outros que nao eles quiserem ter acesso a elas, deverdo mité-los, imperativamente. Essa “interpretagdo Whig da histéria” pe- letra por toda parte, mesmo entre os que ela implicitamente denigre. 3 uma ideologia a tal ponto euforizante e eficaz, que, quando os Es- & tados Unidos sucedem & Gra-Bretanha em seu papel hegeménico, ja no século XX, os sdbios americanos terdo apenas de adotar mui simplesmente a ideologia “lock, stock and baril". A proposta do “pensamento setorizante” € negativa. Ela impede a andlise de jamais levar em consideragio 0 conjunto € jamais ava- liar-se 0 curso dialético do mundo histérico real. Sendo assim, ela torna mais dificil para todo o mundo a percepgdo das estruturas sub- jacentes que sustentam o sistema mundial ¢, portanto, mais dificil organizar a mudanga desse sistema Dificil, mas nao impossivel. Pois, na verdade, surgem trés mo- vimentos de resisténcia ao pensamento “universalizante-setorizante” Os trés movimentos de resisténcia O primeiro, que vai de List a Schmoller, é a Staatswissenschaften, na Alemanha. Sua mensagem é muito simples: a Gra-Bretanha do liberalismo e do livre-comércio nado ¢ um modelo que todos os outros paises possam ou devam adotar. O tecido social das diferentes partes do mundo é 0 produto de suas diferentes hist6rias, determinando de- senvolvimento sociais contemporaneos diferentes Esse movimento assume o nome de Staatswissenschaften exata- mente por enfatizar o papel central que as estruturas de Estado de- sempenham no mundo moderno. Nisso admite-se implicitamente que o Estado na verdade constitui o elemento central do mecanismo de detesa de regides nao-hegemonicas da economia-mundo contra a do- minagao econémica, politica e cultural do centro (nesse caso, essen- cialmente a Gra-Bretanha). Esse raciocinio leva seus partidarios a procurar a identificagdo das particularidades, ao mesmo tempo nacio- nais e estruturais, e a, conseqiientemente, atacar o “pensamento uni- versalizante” em suas variantes. Suas palavras-chaves — Nationalo- konomie (economia nacional) e Volkswirtschaft (economia tradicio- nal) — refletem esse cuidado Nao foi por acidente que a principal discussao intelectual suscitada por essa escola (uma discusso bem mais profunda que a bastante capciosa batalha nomotetica-idiografica) tenha sido « Me- thodenstreit onde, em 1870, Carl Joseph Menger, um tunciondrio do gabinete do primeiro-ministro do Império Austro-Htngaro, acusou a escola historiogratica alema de Schmolier. Nessa discussio (em que 19 simbolicamente os austriacos langaram seu peso para o lado dos bri- tanicos indo contra os prussianos —- como j4 o haviam feito na Guerra de Sucessio da Austria, basicamente pelas mesmas razées), Menger defendeu os principios “universalizantes” contra o que, por evidéncia, era um assalto muito importante de parte da ciéncia alema. O segundo movimento de resisténcia, surgido pouco mais tarde, € aquele que nos acostumamos a chamar a escola dos Annales. Em 1876, com a criacéo da Revue historique, uma revista conscienciosa- mente baseada no modelo de Ranke e centrada nos dados empiricos, nas fontes primérias e na hist6ria politica e diplomitica, a historio- grafia francesa tornou-se uma “disciplina”, no moderno sentido da expresso. Febvre iré descrevé-la mais tarde como uma “hist6ria es- crita pelos vencidos em 1870”, cuja inclinagdo pela historia diplo- matica refletia 0 sentimento do “Ah, se houvéssemos estudado mais atentamente, nao estariamos aqui onde estamos hoje!” [L. Febvre 1953, p. VII}. Exatamente como Gabriel Monod e Emile Bourgeois haviam tirado seu modelo historiografico de Leopold von Ranke, Lucien Febvre e Marc Bloch em 1929 adotam para sua revista o nome de Annales d'histoire économique et sociale, uma tradugio quase literal do titulo da principal revista alema na tradicdo de Schmoller: Vierteljahrschrift fur Sozial und Wirtschaftsgeschichte. A “tradicfio dos Annales” era naturalmente anterior & fundacao da re- vista; em geral se admite que ela remonta a Henri Berr e & Revue de synthase historique. A escola dos Annales se torna a advogada da totalidade contra © “pensamento segmentério”, dos fundamentos econémicos ¢ sociais contra a fachada politica, da “longa durac4o” contra o “eventual”, do “homem global” contra o “homem fracionado”.¢ Contra 0 “pensa- mento universalizante”, ela concentra seu fogo na variante idiografica, muito divulgada na Franca. Ela favorece o estudo da hist6ria quanti tativa em detrimento da narracdo cronolégica, a fusio da histéria e das “ciéncias sociais” contra a crenga na unicidade hist6rica e a “his- t6ria estrutural” contra a “hist6ria historizante”. Embora a escola dos Annales passe menos tempo atacando a variante nomotética do “pen- samento universalizante”, ela ndo 0 considera menos ilegitimo que o 6. Esta Ultima antitese nao esté nos escritos de Febvre, mas nos de Ernest Labrousse, “En survol sur l'ouvrage” [F. BRAUDEL e E, LABROUSSE t. Il, “Des derniers temps de lage seigneurial aux préludes de Page industriel, 1660-1789, 1970, p. 740]. 20 outro, 0 que resulta em diversas criticas feitas por Braudel a Lévi- Strauss’ [F, Braudel 1958, p, 744-745; 1978]. Pensando bem, ha uma grande dose de nacionalismo no pensa- mento rebelde da escola dos Annales — nacionalismo que a sustentou que, no final das contas, ajudou seu desenvolvimento. Esse nacio- nalismo, que ali ndo € sentido com menor sinceridade e que € gene- rosamente expresso, explica as etapas de transmissdo cultural distin- tamente francesas de sua penetracio internacional. Isso também explica por que os grandes prdticos continuam franceses até hoje [ver G. Huppert 1978]. (Podem-se fazer observacdes semelhantes a respeito de Staatswissenschaften.) Em geral, nao se julga respeitavel © nacionalismo enquanto motivacdo cultural, mas essa avaliacdo ne- gativa do nacionalismo cultural faz parte da dominaco cultural das forgas hegeménicas no sistema mundial. O nacionalismo da escola dos Annales dota-a com a paixdo subjacente que sustenta sua capaci- dade de servir de ponto de resisténcia ao sistema dominante. O terceiro grande movimento de resisténcia é 0 marxismo que surge € se desenvolve (pelo menos até a tiltima década) fora da uni- versidade e dentro dos movimentos anti-sistémicos (anticapitalistas) das classes operdrias. Marx ataca desde o inicio uma idéia fundamental do “pensamento universalizante”, 0 conceito de natureza humana [ver B. Oliman 1971]. Para ele, 0 comportamento humano é social e nao individual, est enraizado na hist6ria, nao sendo trans-histérico, e é estruturalmente analisdvel: “Toda histéria € uma histéria de luta de classes”. Os marxistas consideram as afirmagées do “pensamento se- torizante” como a quintesséncia do pensamento burgués, que € preciso substituir por um verdadeiro pensamento proletario global. Esses trés movimentos de resisténcia — Staatswissenschaften, Annales e marxismo — tém em comum alguns principios derivados da luta contra o pensamento universalizante-setorizante, sendo, é claro, quase inteiramente separados em termos organizacionais. Ha, nos pri- meiros analistas, um certo sentimento de parentesco com a tradicao da Staatswissenschaften, embora isso jamais tenha sido enfatizado em seus textos; pode-se até duvidar de que as geragdes posteriores dos sdbios da escola dos Annales tenham chegado a ler Schmoller. A partir do momento em que o marxismo se situa fora da universidade, 7. Braudel escreveu em Reviews “Lévi-Strauss estava totalmente fechado a histéria. Fle nao sabe ¢ nao quer saber o que ela é,.. Nao ha uma sociedade, primitiva ou nao, que ndo tena uma evolucdo € uma historia". 21 ele no poderd ter ligagbes com as outras duas escolas de pensamento, que sao realmente muito académicas. Por outro lado, ele também nao deseja, na verdade, estabelecer essas ligacdes. Na virada do século XX, os herdeiros da Staatswissenschaften provocam discussdes polé- micas com o marxismo, enquanto na Franca (pelo menos até a Se- gunda Guerra mundial) os Annales e os marxistas preferem ignorar- se mutuamente. Depois da Segunda Guerra, a Staatswissenschaften praticamente desaparece, na Alemanha e em outros cantos, como escola de pensa- mento identificdvel. Sua carreira esté encerrada. Em compensagio, a escola dos Annales chega ao apogeu, e 0 marxismo entra em nova fase enquanto perspectiva intelectual. E nessa conjuntura particular, que vai de 1945 a 1967-1973 que devemos situar a obra e a influén- cia de Fernand Braudel. Antes de 1945, a escola dos Annales j4 tinha grandes idéias, tendo chegado a produzir grandes obras. Entretanto, ela permanecia essenciaimente fora das vistas. Os assinantes da revista ndo passavam de algumas centenas, a grande maioria na Franca. Entre 1945 e 1968 a escola atinge um renome internacional (no santuario interior do mundo anglo-saxdo esse renome se estender aié os anos 70). Esse quarto de século é precisamente o de uma “curiosa confluéncia através da histéria econdmica” [E. Hobsbawm 1978], entre 0 marxismo ¢ a escola dos Annales — sendo em toda parte, pelo menos em muitos paises. A escola dos Annales se torna um establishment depois de 1968. E entio que sobrevém o “esmigalhamento” (segundo alguns) e 2 davida sobre si mesma, que a pergunta resume: “Haveré uma escola dos Annales?” [G. Huppert 1978]. Os Annates vitoriosos Que haver no periodo 1945-1967/1978 que possa explicar tanto a subida vertical da escola dos Annales, quanto a “curiosa confluén- cia” com o marxismo? Qual teria sido o papel de Braudel em tudo isso? ‘Como se sabe, embora os Aliados tenham ganho a Segunda Guerra mundial, a Franca teve de sofrer uma derrota humilhante de parte da Alemanha, com a instalagdo de um regime de colaboragao em Vichy. As facanhas da Resisténcia e das forgas francesas livres do general de Gaulle nao sao uma compensagao suficiente, pois nem os Estados Unidos nem a Gra-Bretanha ficaram especialmente im- pressionados pela importincia real do papel que elas tenham desem- penhado na vitsria. A Franga ¢ considerada pelos Estados Unidos e Inglaterra ¢ considera a si mesma como “uma grande Poténcia pox tolerancia”, 0 que significa que ela deve Iutar por seu lugar ao sol AO mesmo tempo, os anos que se seguiram imediatamente a Segunda Guerra sao os anos da guerra fria e do apogeu do estalinis- mo em sua forma mais endurecida. As forgas que encarnam 0 nacio- nalismo francés diante dos Estados Unidos estio nessa €poca envol vidas na oposicéo a politica exterior da Unido Soviética. Para sair desse impasse ¢ preciso encontrar a expresso de uma “terceira forca” que possa opor-se @ URSS, sem que isso implique uma subordinagao direta aos Estados Unidos. A questio de saber onde colocar a énfase nesse dificil equilibrio suscita muitas discuss6es politicas no Pais. Um dos campos que a Franca se pode mais facilmente diferenciar tanto dos anglo-saxdes quanto dos soviéticos € 0 da cultura e das idéias, A escola dos Annales proporciona um meio especialmente fayo- ravel & expressdo do equilibrio que se busca nesse contexto. Fla é uma escola de resisténcia a hegemonia anglo-saxénica que também esta nitidamente distanciada do Partido Comunista trancés (quaisquer que sejam, analiticamente, as afinidades que se possa descobrir entre seu ponto de vista e determinados principios do marxismo classico ) Portanto, nao ¢ wma surpresa ver “toda a juyentude universitaria voltar-se para a abordagem da historia feita pela escola dos Annales’ {F. Braudel 1972, p. 462]. Sua ideologia naturalmente nao € a tinica a atrair 4 juventude universitaria, O existencialismo também é muito popular — essencialmente, pelas mesmas razées. Mas se a escola dos Annales & bem sucedida onde o existencialismo malogra, é porque Febvre e Braudel tiveram a sabedoria de criar estruturas institucionais durdveis para sustentd-la: a secao VI ¢ a Maison des Sciences de YHomme. Além do mais, se eles conseguiram criar tais estruturas, € que suas tomadas de posigdes intelectuais haviam encontrado eco na fungdo publica ¢ nos gabinetes ministeriais, que terminaram por conceder-lhes 0s créditos ¢ os apoios politicos necessdrios. Quem sabera? Os existencialistas talvez fossem bem sucedidos, se houvessem tentado fazer 0 mesmo Nessa época e em uma escala mundial, 0 marxismo esi nc paroxismo de sua esclerose. Sem levar-se em consideragao o fato de ser de outra idcologia, a época de Stalin, que vai de 1923 a 1956, & ista € gradual e irremediavelmen a Gpoca em que a teoria m transformada numa série de dogmas simplistas a servigo de um Esta- do-partido especial, resultando na eliminacao de quase toda ciéncia marxista criativa, tanto na URSS quanto em outras partes do mundo. Ou se € stalinista (ou trotskista — havendo 0 trotskismo se tornado um contradogma dogmatico) ou se deve parar de declarar aberta- mente o marxismo. Sem divida haver4 aqui e ali alguns pequenos bolsGes onde se faz um bom trabalho, mas, de maneira geral, a situa- cdo é morna. A situagdo precdria da ciéncia marxista é um problema especialmente alarmante nos paises ocidentais onde existe uma tra- digdo marxista de razodvel importancia, embora limitada, como a Franga, a Itdlia e, em menor escala, a Inglaterra. Existiro também nesses paises alguns marxistas que procuram os meios suscetiveis de por termo a esclerose, sem por isso romper abertamente com os mo- vimentos politicos marxistas. A “curiosa confluéncia” nao € dificil de explicar nessas condi- goes. Fernand Braudel escreve, em 1957: “O marxismo € uma imensa variedade de modelos. Sartre pro- testa contra a rigidez, 0 esquematismo, a insuficiéncia do modelo, em nome do particular e do individual. Protestarei como ele (com quase as mesmas nuangas), nado contra o modelo, mas contra a uti- lizagdo que se faz dele, que se acredita estar autorizado a fazer dele. O génio de Marx, o segredo de seu poder prolongado, se atém ao fato de haver sido ele 0 primeiro a construir verdadeiros modelos sociais, ¢ a partir de um longo espacgo de tempo histérico. Congelamos esses modelos em sua simplicidade, dando-lhes o valor de uma lei, de uma explicacdo preliminar, prévia ¢ automatica, aplicavel a todos os luga- res e a todas as sociedades. Quando eles sao sujeitados aos fluxos cambiantes do tempo, sua trama seria colocada em evidéncia, pois cla é sélida bem tecida, ela sempre reapareceria, cheia de nuancas, sucessivamente velada ou avivada pela presenca de outros modelos. Assim limitamos 0 poder criador da mais poderosa andlise social do século passado. Ela nao saberia reencontrar forca e juventude seno em longa duragao de tempo... Deverei acrescentar que 0 marxismo de hoje me parece a propria imagem do perigo que espreita qualquer ciéncia social possuida pelo modelo em estado puro, 0 modelo pelo modelo?” [F. Braudel 1958, p. 752]. A mio esta estendida assim, intelectual ou talvez politicamente. Os Annales “nao mantiveram [0 marxismo] a distancia” [F. Braudel 1978, p. 249}. Seu apelo esta voltado a todos esses marxistas preo- cupados com o real, 0 mundo empirico, todos os que se interessam 24 a0 mesmo tempo pelas estruturas e pela conjuntura e desejam, em troca, colaborar com 0s Annales. Os marxistas que nao cairam na armadilha do dogmatismo esta- linista ou trotskista, membros antigos, atuais ou estranhos aos diversos partidos, respondem de mao estendida — as vezes tacitamente, as vezes abertamente. Falando em nome dos marxistas ingleses, Hobsbawm escreveu: “Em geral viam-se lutando do mesmo lado dos Annales...” [1978]. A resposta € especialmente importante em pai- ses como a Polénia ¢ a Hungria, onde é dificil ser marxista ndo-esta- linista [ver K. Pomian 1978]. Mas ela também é importante em outros lugares, como Quebec, onde € dificil declarar-se marxista, estando todas as tendéncias confundidas [ver A. Dubuc 1978] A resposta € desigual nos principais paises ocidentais como a Franga, a Inglaterra e a Itdlia. Alguns acham aceitavel a confluéncia, enquanto outros julgam-na desconfortavel e a rejeitam. Os marxistas ingleses, sendo 0s mais isolados, sio os mais dispostos a aceité-la. Os marxistas italianos, com suas tradigdes crocceanas nao-empiricas (0 que diminui sua concordancia com a escola dos Annales) e sua possibilidade de recorrer a Gramsci como que para estar legitima- mente nao-dogmaticos (0 que torna sua ligagéo com os Annales menos necessaria), so os que respondem menos favoravelmente.* A resposta francesa € mais diversificada. Pierre Vilar pode ser consi- derado um analista, mas nao Albert Soboul, O préprio Partida Co- munista francés passa da hostilidade para uma posigdo menos incisiva de ceticismo. Nos dois epicentros da guerra fria, os Estados Unidos e a URSS e, entre seus aliados mais dependentes ideologicamente, a Alemanha Ocidental e a Oriental, nao existe nenhuma “curiosa con- fluéncia”. Com a détente, isso ira mudar. Entretanto, ser preciso es- pera muito tempo antes que a escola dos Annales tenha o direito de cidadania. A conjuntura dos anos 1945-1967 é, portanto, favoravel A escola dos Anales, pelo menos em determinadas regides do sistema mundial 8. Ver Maurice AYMARD [1978] ¢, em “Discussion”, K. POMIAN [1978, p. 121]. Ver também a discussio em que os editores de Storia d'Italia si0 apresentados por alguns como pertencentes a escola dos Annales, hipétese que eles contestam, dizendo que deveriam antes ser considerados marxistas “Carattrioriginali e prospective di analisi: encora sulla ‘Storia d'Italia’, Einaudi, discussione” (participantes: A. Caracciolo, G. Giarrizzo, E. Man. selli, E. Ragionieri, R. Romano, R. Villari, C. Vivanti, em Quaderni storici, 26, maio-agosto de 1974, p. 523-558) Ela € especialmente favoravel @ tendéncia braudeliana que preconiza mais a economia do que a histéria social, uma historia que favorece © periodo da “histéria moderna”, uma histéria baseada na anélise das intimeras temporalidades sociais — uma historiografia que nao “mantém o marxismo a distancia” Novos Annale: A conjuntura muda por volta de 1967. Primeiro, a fase-A (a da expansao econédmica) terminou, e a fase-B (a da estagnagao econd- mica) comeca, com tudo o que essa passagem de uma fase a outra comporta necessariamente em matéria de mudangas econémicas € po- liticas no mundo da economia. Uma das expressdes dessa passagem € a crise politica que submerge 0 mundo em 1968, cujos aconteci- mentos do més de maio na Franca sao as mais graves. Nessa fase-B, comecam a se cristalizar os “novos” Annales e um “novo marxismo”; a “curiosa confluéncia” diverge um pouco. Em determinados campos, esses “novos” Annales nao sio tio novos assim. Apoderaram-se dos assuntos de interesse tradicionais dos Annales ¢ os levaram mais longe. Os Annales sempre deram énfase & importancia de uma série de dados, e esse interesse os levard a desenvolver um sentimento sempre maior de afinidade com uma nova corrente académica que surge nos Estados Unidos e que preconiza uma hist6ria sociologicamente quantitativa: € 0 neo-positivismo, na medida em que se retomam as técnicas da sociologia estrutural-fun- cionalista, para aplicé-las aos dados histéricos.” Os Annales sempre enfatizaram a necesséria andlise do conjunto do tecido social; essa preocupacao iré lev-los a desenvolver um sentido crescente de afini- dade com a antropologia estruturalista e suas andlises detalhadas das estruturas formais das interacdes sociais cotidianas — 0 que &, a longo prazo, tende contudo a tornar-se a-histérico, sendo anti-histé- rico."° Os Annales sempre deram énfase importancia de apreender 9. Nos Estados Unidos, a histéria “sociolégica” tem suas préprias novas revis- tas, como 0 Journal of Interdisciplinary History € Social Science History Para a versio dos “novos’ Annales, ver a discussio em F. FURET (1971, p. 63-751. 10. Ver Charles TILLY [1978]. Ver também Jean COPANS [1977] para ve- rificar ai por que se estabeleceu uma nova “curiosa confluéncia” entre 0 ‘marxismo estrutural” ¢ a “antropologia estrutural” durante o periodo p6s-stalinista as mentalidades, ou seja, 0 conjunto das idgias e das pressuposicbes em que grupos particulares foram socializados em dados momentos; essa aten¢do ird leva-los a desenvoiver um sentimento de maior afi- nidade com o movimento crescente da psico-historia [ver J. Le Gotf 1974; R. Elmore 1978}, cuja abordagem tende a reduzir nas estrutu- ras econémicas e sociais a longo prazo, em beneficio de uma forma nova, sotisticada, de biografia e de consideracao pelo individuo como unidade de anilise Assim, 08 “novos” Annales econtram-se em todos esses campos na orla de uma nova atitude intelectual, em todas as discussdes inte- lectuais que se desenrolam no sistema mundial. De escola de pensa- mento oposta ao sistema dominante — de que certos marxistas se beneficiam para cobrir seu anti-sistemismo (seja pelos motivos rela- tivos 4 Polénia, seja pelos de Quebec) — ela corre o risco de tor- nar-se uma escola de pensamento mais de acordo ¢ tendo mais pontos em comum com o pensamento mundial dominante — atitude essa que certos marxistas utilizaréo para mascarar o fato de pertencerem ao sistema. Aquilo que ocorre com 0 “novo” marxismo € de uma ordem totalmente diversa. A era stalinista nado terminou com a morte de Stélin em 1953, mas em 1956, quando Krutchev pronuncia seu discurso secreto no vigésimo congresso do Partido. As revelacdes oficiais rompem de tal maneira a crosta, que ela jamais podera ser reconsti- tuida. Isso € acompanhado pela cisdo entre URSS e China, a “revo- lugao cultural” chinesa e, depois da morte de Mao Tsé-Tung, pelo retorno de Deng Xiaoping ao poder. Em termos de posicées ideolégicas e de formas organizacionais, a ascenso da “nova esquerda” nos paises ocidentais — cujo ponto culminante ocorre durante ¢ imediatamente apés os levantes estudantis de 1968 — podera nao ser mais que transitéria. Acima de qualquer outra coisa, esse movimento marca o fim da dominagao indiscutivel € indiscutida da ideologia liberal em paises-chaves, como os Estados Unidos, a Alemanha Federal e a Inglaterra. Ele volta a legitimizar a esquerda, depois dos andtemas da guerra fria, tornando possivel, mais ou menos pela primeira vez, a entrada do marxismo nas univer- sidades e na corrente do discurso legitimo. Por um lado, abundam as heresias marxistas: ja nio existem apenas um ou dois marxismos, o estalinista e 0 trotskista. Por outro lado, os marx tas ndo-esclerosados ja no precisam mais da cober- 27 tura nem da ajuda da escola dos Annales ou de qualquer outra para dar seguimento a sua empresa. Com muitas escolas annalistas* e muitas escolas marxistas, havera ainda algum sentido em falar-se de “confluéncia” ou até de divergéncia nessa nova conjuntura. As gene- ralizagdes de uma conjuntura anterior nao seraéo mais faceis de aplicar-se. Enquanto durar a atual conjuntura, 0 que poderdo tornar-se os Annales ¢ o marxismo? A escola dos Annales sobrevivera? Nao estou bem certo e, caso ela sobreviva, nao estarei muito certo de que sua relagio com os Annales de Febvre e de Bloch e principalmente os de Braudel poderia ser outra que nao formal. Se hoje podemos escre- ver que a Staatswissenschaften teve 14 seus grandes dias, nao sera pos- sivel que alguém escreva o mesmo a respeito dos Annales daq vinte anos? £ provavel que sim. Em todo caso, nao é evidente que devéssemos estar enlutados. Para responder a esses problemas, natu- ralmente reais mas em geral mais conjunturais do que estruturais, movimentos intelectuais como a Staatswissenschaften e os Annales so movimentos parciais partidaristas. Quando a conjuntura passa, preservar-se um nome nao serve para muita coisa. Além do mais, a preservagao do nome muitas vezes choca a meméria. O marxismo é completamente diferente. Ele foi concebido como uma ideologia, nao de conjuntura mas de estrutura. Ele se atribuiu a pretenso de ser a ideologia de todas as forcas anti-sistémicas do mundo da economia capitalista e de ser a ideologia da transigao mun- dial do capitalismo para o socialismo. Sua causa parece bem defen- dida. A medida que se desenvolverem as forcas politicas anti-sistémi- cas, 0 marxismo se expandir4, enquanto ideologia. Um dia talvez descubramos que o marxismo subitamente tornou-se 0 Weltanschauung universal do capitalismo defunto e do sistema que 0 suceder4, exata- mente como o cristianismo foi o Weltanschauung do falecido Império Romano e do periodo que o sucedeu a partir da proclamagao de Constantino. Quando isso acontecer, ¢ poderd acontecer logo, assistiremos ao verdadeiro esmigalhamento. Pois se todos (ou quase todos) se torna- rem marxistas, haver4 ainda alguém para sé-lo? Teremos marxistas, de esquerda, de centro e de direita... Jé os temos. Teremos alguns marxistas pregando a determinacdo e outros pregando o livre arbitrio. * De Annales (N. da T.) 28 J os temos. Teremos alguns marxistas empiricos e outros raciona- listas. J4 os temos. Teremos marxistas “universalizantes-setorizantes” e marxistas de resisténcia. Jé os temos. O tumulto politico da trans- formacao no préximo século ira revelar-se uma enorme confusao inte- lectual — confusao para a qual o rapido triunfo do marxismo como sistema de pensamento tera contribuido em grande parte, sem a menor duvida. Talvez entéo a lembranga da escola dos Annales como escola de resisténcia ajude-nos a preservar um marxismo de resisténcia entre os marxistas. Foi assim que Fernand Braudel, o historiador, surgiu como homem da conjuntura, a conjuntura que coincidiu exatamente com © periodo de sua preeminéncia intelectual e organizacional. Ele assu- miu a responsabilidade da continuidade das tradigdes de resisténcia em um grau importante numa conjuntura que, de outra maneira, teria sido desfavoravel a essas tradigdes. Ele foi responsavel tanto pelos temas que desenyolveu, quanto pelo quadro que criou. Ele teria assim contribuido, e de modo bastante importante, para a transicio em diregéo a uma reavaliagao dos principios das ciéncias hist6éricas no periodo a vir, uma reavaliagéo que poderia mostrar-se tao importante quanto a que houve.no periodo 1815-1873. Acima de tudo, Braudel nos proporciona o exemplo de uma paixdo intelectual e de um envol- vimento humano a que, nos momentos dificeis, poderemos referir-nos como um chamamento as possibilidades de integridade. UM GRANDE PROJETO: CIVILIZACAO MATERIAL, ECONOMIA E CAPITALISMO (DO SECULO XV AO XVIII) Michel Morineau Fernand Braudel ainda vivia quando foi redigida e publicada a tesenha critica de seu livro, cujo resumo vem a seguir. Eramos liga- dos o bastante para que eu a enviasse a ele assim que apareceu. Ele leu me respondeu quase na mesma hora. Nao estava perturbado: durante todo 0 tempo em que nos conhecemos ele sempre me permitiu a liberdade de expressao — encorajando, quando fosse 90 caso, ou resmungando e avisando que eu me arriscava a colocar os outros “de costas” (como dizia) por excesso de franqueza. Homenagem Ihe seja rendida, ele tinha realmente uma certa classe, embora algumas desa- vengas muito inoportunas tenham feito com que se indispusesse com homens por quem eu tinha a mesma estima que dedicava a ele, como Robert Mandrou. Neste caso (conservei sua carta), ele defendeu mui- tas posicdes, contestou algumas das minhas, reconheceu que se tivesse de escrever ou apenas revisar sua obra levaria em consideragéo outras observagées minhas, mas, terminava cle, estava trabalhando em sua Histoire de France e, enquanto nao estivesse acabada, nao iria voltar a um texto escrito h4 longa data, 0 qual j4 ndo tinha mais uma pers- pectiva para julgar. Depois dessa troca de idéias, voltamos a nos en- contrar algumas vezes. A acolhida continuou sendo a mesma que sempre teve para comigo — amistoso, afavel e sempre ansioso por saber 0 que eu me tornaria quando estivesse s6, 4 mercé desses “outros” tao famigerados. Se debulho estas recordagdes antes de chegar a meu artigo pro- priamente dito, é para deixar bem clara a intencdo e a forca. Nao 1. Revue d'histoire moderne ct contemporaine, 1981, pp. 624-668. O Teitor que desejar saber mais e consuitar as notas de referéncia esté convidado a repor larse a esse trabalho 31 pretendi em momento algum fazer desta exposigao critica de fatos uma arma de ressentimento ¢ vinganga, a qual nao teria nenhume razdo de ser. Por outro lado, expressei-me sobre Civilization maté- rielle, économie et capitalisme & minha maneira habitual. Para come- car, pensando nos leitores para quem o livro poderia ser um primeiro contato com uma “autoridade” j4 quase legendaria, que se arriscavam, sem perceber, a perder o pé numa erudicdo com a forca de sessenta anos de leituras assiduas (no minimo) e movimentando-se com verti- ginosa liberdade através dos séculos. Depois, refletindo sobre as pro- postas enunciadas e fazendo uma abstracao (na medida do possivel) do preconceito monumental facil de escorregar pelo intersticio que separa o cérebro que soletra ¢ 0 texto que se impie, € preocupando-se com a coeréncia, tanto a interna quanto a externa, em,{ungao dquilo que se saiba e daquilo que se leia. Tomando a distancia, enfim ncia essa que, a meu ver, nao tem o sentido de obrigatério recuo, de rejeicéo ou de repulsa, mas de uma acomodagao, como a de um otho para um objeto visto de longe ou de perto: mutatis mutandis, naturalmente, pois trata-se de uma operacdo intelectual e, sendo im- perativa lei do critico lembrar-se de que esta, por sua vez, diante de outros leitores, desempenhando o papel de alguém que fala, estando ao mesmo tempo a servigo do autor que ele critica e daqueles que iro ler, sera preciso tomar essa “distancia”, deixando-a tao aparente, que todo aquele que quiser ultrapassd-la possa fazé-lo com conheci- mento de causa, sem remorsos mas também sem omissio. Onde a toga renuncia av doge Civilisation matérielle, économie et capitalisme (XV°-XVIIl si cle) nao € um livro para principiantes. Para tomar contato com 0 pensamento de Fernand Braudel, sem a menor diivida o melhor sera comecar por La Méditerranée ct le monde méditerréen & 'épogue de Philippe I. Eu até me sinto tentado a aconselhar a edigao princeps de 1949 para esse primeito encontro — aquela edicao que sé teve um relativo sucesso na Franca, até que a traducdo inglesa e depois a italiana e a espanhola fizeram-na voltar para um pais onde santo de casa jamais fez milagre (com raras excecdes). Escrevendo isto e lembrando minha aprendizagem do pensamento de Fernand Braudel (em 1950, quando eu me preparava para o exame de agrégation e cle presidia o jiri), percebo que provavelmente é impossivel que um jovem ou uma jovem de vinte anos tenha a mesma experiéncia que eu tive. Isso, por duas razées contraditérias, que vale a pena apresentar. A primeira iré parecer escandalosa aos incensadores de Bouvard-et-pé- 32 cuchétant * como ocorre sempre dez ou vinte anos depois que um livro se torna classico (quando sua reputacao ja esta solidificada), mas ja estavamos preparados para sua leitura: 0 ensino que recebéra- mos, mesmo em uma faculdade provinciana, Rennes, nao era assim tdo antiquado ou tao mediocre, que nao tivéssemos 14 nosso programa, fosse em histéria ou em geografia, cujo barco era comandado pelo falecido André Meynier com mao segura, era o ensino de um André Siegfried e de um Charles Parain, de um Charles-André Jullien e de um E.-F, Gautier, para citar apenas alguns nomes que tinham relacdo com o mundo mediterrneo; aprendéramos a ler com largueza de visio com a climatologia, com o estudo das grandes invasées, 0 mundo do extremo oriente, até mesmo as grandes etapas do primeiro império colonial francés, o dos reis; quem quisesse estaria pronto para entrar em outra reflexao, dando uma continuidade. A segunda razao e que, apesar dessa espécie de propedéutica ou mesmo por causa dela, a obra de Braudel poderia parecer-nos nova, espantosamente estimu- lante, como uma agulha imantada organizando em torno de si o campo magnético — ou melhor, o campo histérico. Se, trinta anos depois, eu falei de um grande projeto, a propdsito de Civilisation matérielle, économie et capitalisme, é pela continuidade que resgato entre os im- pulsos dados agora pelo Mediterraneo e 0 novo livro. Continuidade essa que era a da vida do autor, pois as licées que ele distribuia no Collége de France, por volta de 1950, mal acabado o primeiro, cons- tituiriam a base do segundo, principalmente do volume I: “Les struc- tures du quotidien”. Duvido que um estudante em nossos dias possa experimentar essa mesma alegria ao ver a histéria ordenando-se em todos os planos (pelo menos potencialmente), respirando a esteva e o alecrim, vivendo o ritmo das caravanas do deserto, dos pescadores de coral, dos agricultores das pequenas lavouras e dos pastores que iam e vinham entre as montanhas e o mar, sub-repticiamente, ao mes- mo tempo debaixo dos acontecimentos da “politica importante” ¢ majoritariamente (muito majoritariamente!), pois aqueles cuja exi téncia outrora era precéria e mesquinha e foi ressuscitada ou reabili- tada eram a massa. Ou essa apreensao do real — passado e presente — tornou-se hoje imediata, a ponto de as vezes voltar a escorregar no insignificante e no folclérico; ou, como evolucdo que nao esteja em oposigdo com a precedente, substituiu-se tudo aquilo por boas bonitas equagdes, formulas de economia politica mal digeridas (cien- * (N. do E.) — Nome derivado do romance de Flaubert, Bouvard et Pécuchét Nova Fronteira, 2.4 ed. SP. 1981 33 ti-fi-cas, como dizem) e, para concluir. fantasmagorias a grandes pas- sos em progressao geométrica. Assim, toda a obra vai, com o tempo, derivando de seu estado natural, perdendo o frescor de algumas de suas pginas, de algumas rétalas espantando menos. F. Braudel tinha consciéncia do envelheci- mento inevitavel comandado pela propria amplitude das pesquisas produzidas por sua iniciativa; sabe-se que ele voltou a trabalhar nesse Méditerranée que ele tanto se preocupava em suprir de novas edicbes totalmente reformuladas em seu interior com a informagéo que ia sendo sucessivamente adquirida. Também procedeu assim com 0 vo- lume I de Civilisation matérielle, économie et capitalisme, que apareceu em 1967 e foi profundamente modificado em 1979. Seria um excelente exercicio de iniciagdo para os jovens historiadores (e traria novos recursos aos menos jovens, j4 meio adormecidos sobre seus magros louros) comparar as duas obras, para descobrir um pensamento que nao se detém. F. Braudel era um devorador de livros e também, mais até por vocagao, um cliente dos arquives e um curioso de museus Para o leitor avisado, que nao hesita em voltar as paginas para en- contrar as notas no final do volume, sera um prazer descobrir a referéncia exata desse ou daquele fato enunciado, a assinatura que Ihe proporciona autenticidade e que emana, aqui, de um intrépido viajante do século XVI cujo relato foi minuciosa e cuidadosamente investigado e, ali, de um documento ristico tirado do sono de antigos papéis preservados pelas grandes instituigdes de Paris. Napoles, Si- mancas, Veneza, Cracévia ou Moscou... Nao creio que ele tenha chegado a visitar os arquivos de Nova Delhi, Pequim ou Téquio, a nao ser ocasionalmente, como visitante — ha limites para tudo, mes- mo para © poliglotismo, mas, quando ele nao “sabia”, como disse, esforcava-se em aprender junto a especialistas, uns de passagem, com quem se podia cruzar pelos corredores da Ecole des Hautes Etudes onde mantinha algum semindrio, outros, que se transformavam em amigos e vinham entreté-lo com seu assunto preferido na hora do café da manha, com o pao debaixo de um brago, um enorme volume debaixo do outro, Mas o que faz 0 encanto do connaisseur ou daquele que de boa fé recusa-se a fazer afirmaces sem provas — (que nao faltam!), cada vez mais obras de segunda ou terceira mao que arre- bentam em maremoto na vitrine das livrarias — esse desembarago em passar da Albania a Zimbdbue (de A a Z) e do século XIV A aurora do século XIX pode significar para 0 novigo a exposig4o aos riscos uma espécie de embriaguez do espaco, que aniquila as faculdades cri 34 ticas, um consentimento & disperso ja sem controle (como a do autor) e sofrida (como a do leitor absorto). Notei, por exemplo, no volume I, na segao “Nourritures quotidiennes: laitages, matiéres grasses, oeufs”, uma verdadeira odisséia comegando na Franga, correndo ao Mediter- rineo, voltando subitamente do século XVII a 1572, depois 1543, para retornar a 1750, com um desvio pela Suica, voltar mais uma vez a uma seqiiéncia francesa quase homogénea de 1698 a 1718 € terminar por uma inspecao das leiterias e laticinios (incluidos os iogur- tes) da Pérsia e da Turquia... Retomado nos outros volumes, em que a demonstracao exige rigor, 0 processo passa a oferecer incon- venientes mais graves, principalmente quando é necessdria uma data- ao mais apurada para acompanhar uma evolugdo complexa — como a sorte de Amsterda nos séculos XVII e XVIII. F, Braudel muito contribuiu para colocar o nimero em lugar de honra entre os historiadores, embora nao tenha sido o primeiro a fazé-lo. Em Civilisation matérielle, économie et capitalisme ha um brilhante exercicio, que j4 inspirou a outros: a avaliagao da poténcia energética da Europa no final do século XVIII. Belo exemplo do que ser depois chamado de “esforco global”, que visa a dar uma medida aproximativa de um fenémeno, um meio de avaliar sua forga. Nesse caso, sem o saber, éle colocava seus passos nos de um velho autor, contemporaneo de Karl Marx e, até, um de seus mentores: Wilhelm Schulz, 0 Schulz-Bodmer, que no inicio do século XIX propusera quadros sindticos para a Prassia, a Franga e a Inglaterra, recapitu- lando conscienciosamente: Menschenkraft, Thierkraft, Wasserkraft, Windenkraft auj Mihlen, auf Schiffen e, 0 mais novo, Dampfkraft. A originalidade absoluta, rara de obter-se, nao € em si um ideal puro, e 0 reencontro assinalado € divertido, nada depreciativo. De resto, um historiador tem a necessidade de utilizar-se de trabalhos de seus colegas paralelamente a seus proprios cdlculos, dada a diversidade das pesquisas, a abundancia em avalanche e a dispersdo freqiiente dos dados elementzres. F. Braudel aproveitou os trabalhos de Paul Bairoch para fornecer um quadro das variagdes do PNB de diversas nagGes, um de seus cavalos de batalha (vol. III, p. 254-268), e ainda o tra- balho de outros para a avaliacdo dos lucros industriais (vol. I, p. 199-201). Essa dependéncia quase inevitavel impde sujeicbes resut- tantes do grau de adeso aos dados que se utiliza. Nesse ponto, F. Braudel confiou, complacente demais, em fontes nao muito confidveis * “Alimentacao cotidiona laticinios, matérias wraxas, ovos"” (N. da To Rd ou até duvidosas, como o testamento do doge Mocenigo em 1423, peca importante do desenvolvimento sobre a poténcia da Serenfssima * em seu apogeu, € que especialistas de Veneza criticaram violentamente (J. Georgelin em especial). Em outros casos, talvez porque o tivesse 4 mao no momento de redigir, ele deu preferéncia a um grafico em vez de outro que teria sido melhor mas que nesse instante estaria exa- tamente debaixo de pesados documentos que nao poderiam ser retirados naquela hora — foi o que aconteceu com a restituig&o dos carrega- mentos de ouro trazidos do Brasil no século XVIII. Terceiro — 0 apego exagerado a propostas antigas de cuja elaboragdo cle pdde participar ou cuja ligdo outrora havia acompanhado muito de perto € que sao insustentaveis: neste niimero, evidentemente, colocarei 0 excessivo respeito por E. J. Hamilton, mesmo se corrigido — de Charybde em Scylla — por um exagero no volume € no tempo do contrabando; o cémputo da reserva monetaria na Europa do final do século XV (adequada, naturalmente); um aval dado com pressa de- mais a certas conclusdes de F. C. Spooner em seu excelente livro sobre Frappes monétaires en France de 1493 4 1650 ou de B. H. Slicher van Bath sobre a progresséo dos rendimentos cetealistas da Tdade Média a 1840__ Enumero casos sobre os quais posso me referir com certeza, porque eu os estudei e contribui para corrigir as versdes precedentes, de maneiras as vezes drdsticas. Contra minha vontade, vejo-me aqui obrigado a contar o que foi para mim uma surpresa um tanto inex- plicdvel. F. Braudel acompanhou realmente 0 avanco das minhas pes- quisas sobre a produtividade (por hectare ou por tipo de produto), tanto a da agricultura, quanto a dos metais preciosos americanos que entravam na Europa. E a ele que devo a publicacio de Faux-Semblants d'un démarrage économique, que voltou a questionar a nogao mais do que repisada e falsa de uma “revolucao agricola” na Franca; a publicagao de Allergico cantabile c, mais recentemente, de Incroyables gazettes et des fabuleux métaux, que enfim substituiam um tréfico em torno do qual haviam esvoagado muitas teorias e muito papel escrevinhado em uma perspectiva acabada (em termos cronolégicos) © ponderada (em fungdo das outras atividades econémicas). Por que entdo essa espécie de reprovacao através do siléncio, em contradi¢ao com toda sua atitude, e tanto mais inoportuna quando pesquisas pos- teriores, conduzidas com independéncia por outros, vieram a confir- Veneza (No da f) 36 mar a justeza das conclusées a que eu havia chegado, complicando- até (como, por exemplo, no congresso de historiadores de economia em Stuttgart, em 1985)? Nao discutimos assunto. Talvez esses aspec- tos pertencessem a setores cuja estrutura ele teria revisado, numa com- pleta mudanca? Quando redigi meu relatério, sé pude formular algu- mas hipéteses: fidelidade a um credo juvenil a que ele quase retornara sem perceber? Influéncia “perniciosa” de certos “principiantes” por demais sedutores, em muito boa situagao na corte ¢ muito conhecidos no cenério internacional? Ninguém ignora que Emmanuel Le Roy Ladurie aferrou sua bandeirola & “revolugdo agricola” na Franca e que jamais quis abandonar, nos seus zigue-zagues através do Hexa- gono,* sua alegre... Arlésienne, apesar dos muitos encontros mar- cados. Foi 0 mesmo que desencaminhou F. Braudel na partilha da Franca em dois, acima e abaixo da famosa célebre linha Saint-Malo- Genebra, relegando a Bretanha, primeira provincia exportadora no Antigo Regime, a nivel de uma desmazelada... Nao compreendi tam- bém, nas avaliacdes dos portos, os niimeros fornecidos para Anvers por W. Brulez, para Amsterda fornecidos por mim, para Londres (mas esses so inéditos), muito superiores, apesar das probabilidades de ganho ou perda de sua reconstituigéo, aos do doge Mocenigo para Veneza (ver acima) e, a nosso ver, indispensdveis para estabelecer a tese, defendida no volume III, de haver uma sucessao no tempo das metrépoles econémicas e das hegemonias... Teria dessa vez a resis-~ téncia vindo desse participante em uma conferéncia franco-holandesa, mal inspirada, que reclamava que se contasse no movimento do porto de Amsterda os navios que passassem ao largo? Nao insistamos nisso. Dariamos sem razio injustamente a im- pressio de discutir ninharias e de entrar em uma briga de vizinhos (como se diz) ou, pior, de langar descréditos cheios de perfidia em cima de Civilisation matérielle, économie et capitalisme. Deve-se ape- nas saber que, fora de qualquer prurido de maquiavelismo ou de diz-que-diz, se pode e se tem o direito, 0 dever, de discordar, seja com um homem por quem em geral se tem amizade (e a quem nao e “caluniou” como alguns, em congressos em Paris, Budapeste, Madri, antes de aplaudir em Chateauvallon), quando se tém sérias razdes para esperar um resultado diferente. Cedat toga factis... Entretanto, acho que havia algo no mais profundo da natureza de F. Braudel, por baixo de sua atitude diante dos nimeros e também diante da narrativa, algo que o aproximava bastante de Lucien Febvre e que este havia * Hexdgono: ‘Trata-se do mapa da Franga devido 4 sua forma, (N. da T.) 37 deixado muito claro em sua primeira grande obra, 0 Mediterranée — quando talava do “vigor de um estilo cheio de nuangas” (a énfase é nossa) e, mais adiante, “de uma opiniao preconcebida que se afirma com muita clareza, elegancia e uma precaucdo inteligente” (idem). Entre seus materiais e ele, ¢ entre ele e seu texto, estendia-se o espaco da reflexdo e da avaliagao, Em geral, F. Braudel mantinha-se 4 es- preita dos fatos de todos os géneros que pudessem entrar em sew caldeirao (guardada ai a devida reveréncia), idéias surgidas nos pon- tos mais distanciados as vezes de seu proprio horizonte (ele assim iré revelar um carinho secreto por J.-P. Sartre), conclusdes cheias de tiligranas. Era circunspecto. Ele observava a novidade ~~ eu ia escre- vendo: ele a pressentia. Nao a adotava em seguida, brincava com ela, como um gato brinca com uma bolinha de la. Casualmente, ele pode- ria renunciar a ela ou langar um “Nao vamos mais longe”; mas, de maneira mais geral, ele a deixava de lado, aguardando, como estivesse ou modificada in petro, transformada em parte de si mesmo. As cor- respondéncias percebidas de modo fugaz entre fatos distantes, seqi cias inesperadas © fascinavam, divertiam-no, deixavam-no interessado. Ele fez uma ligagao entre a prosperidade de Veneza € a agonia de Constantinopla, essa cidade colossal na escala da Idade Média, sitiada em trés quartos pelos turcos; a cidade tinha necessidade de se alimen- tar, de se aprovisionar de armamentos, de tocar a mao de um aliado — tudo isso recompensava muito bem sua disposicao. Mas ele nao levou até o fim a demonstracdo da gigantesca transferéncia de fundos insinuada, o retorno dos tesouros do Império do Oriente para 0 Oci- dente, uma transfusdo vampiresca (vol. III, p. 101-102). Entretanto, isso foi, ex-ante, uma espécie de repeticao premonitoria dos deslo- camentos do pélo econédmico que ele defenderia no ultimo volume Sem davida F. Braudel nao se sentia suficientemente bem apoiado por argumentos (Bizncio era um mundo quase desconhecido no Ocidente, por nao haver sido bem sucedido) para sustentar a discussio que os especialistas provocariam, se fosse 0 caso. Ele precisava de uma de- morada maturacao, uma longa meditagao, quase uma reflexdo 4 moda de Bachelard, antes de envolver-se, de optar e de encerrar-se na trin- cheira do escrito, que fixa para outros e para si mesmo as idéias, em prejuizo dos reflexos multicoloridos e das imagens conservadas em seu foro intimo. Mas o que ele expde nao abandona facilmente. Sabe- se que sua Histoire de France é um prolongamento, uma defesa e uma coroacao de sua maneira de ver como se deve fazer a histéria Para 6s, que apenas estamos no limiar da tese, no limiar do rande projeto” € que até ese momento sO apresentamos observacdes 38 ¢ adverténcias de prudéncia para um primeiro contato, seria conve- niente, antes de abordar o fundamento, reunir todas essas impressées de exuberdncia, de clegancia e de uma certa magia, as quais o pre- paro, a maneira de construir ¢ 0 estilo de F. Braudel nao deixam de infundir até mesmo naqueles que the tém maior resisténcia. Para restituir a vibracdo percebida na revelacao da arte de F. Braudel, Lucien Febvre, comparativamente, depois de excluir Georges de La Tour, evocava “a luz um tanto baca dos holandeses — aquilo que faz de suas telas uma espécie de meditacdo humana e sensivel”. Nos adjetivos empregados podem-se reconhecer as tonalidades comuns que um pablico mais amplo iré saborear. Mas sera que a referéncia aos holandeses € a mais pertinente? Nao concordamos. A que pintor, entdo, poder-se-ia relacionar F. Braudel? A uma legido. Hobbema para a técnica, Beuckelaer para os alimentos da terra expostos em cima das mesas, Job Berkheyde para a Bolsa de Amsterda e o capi- talismo? Nenhuma paleta satisfaz inteiramente. Afinal de contas, falta a amplidao, e a luz nao é a mesma. F, Braudel é mais marcial. Fur- temos nossas analogias em outros cantos: por que nao Claude Gellée, © chamado Lorrain? O estilo de F. Braudel tem seu volume, sua pers- pectiva © a luz, principalmente essa luz herdica e clara, herdica e sedosa, herdica e pintoresca, que se demora sobre 0 mar, os grandes navios ¢ os palacios dos comerciantes. Sim, 0 Lorrain € © retorno as fontes e ao Mediterraneo Ler o “cavedal” Trés volumes para Civilisation matérielle, économie et capitalisme — um esquema composto de trés elementos a que F. Braudel era tao afeigoado, trés etapas: 0 térreo, com a vida cotidiana no conjunto de suas manifestacies; 0 primeiro andar, com as relacées estabelecidas entre as “particulas elementares”, a sintaxe das trocas; no tiltimo, uma espécie de volta ao continuum da histéria, com a descrigéo dos sis- temas econdmicos, cada um dominado por uma cidade-farol, que se foram sucedendo desde 0 século XV até 0 inicio do século XX. A necessidade de abreviar esta nossa exposigao leva-nos a sacrificar 0 vol. II, que, entretanto, oferece tantos temas para reflexio, quanto o primeito e quanto a “sabedoria” do autor nos distinguos inevitaveis entre as formas antigas, algumas das quais se tornaram incompreen- siveis em nossos dias e outras, que, ao contrario, ainda persistem, sem a menor divida. sob nomes diferentes. Diante de uma superabundancia de material, © responsivel por uma resenha é obrigado a ir ao essen. 38 cial e, seguindo os conselhos da Ecole de guerre em confluéncia com ‘os de um tedlogo dominicano, abandonamos a palavra textual indo- européia para procurar e atualizar, se possivel, 0 projero geral de F. Braudel ao escrever seu livro. Acreditamos que no fundo ele se apdie na leitura de Allgemeine Wirtschaftgeschichte de Kulischer e de Das moderne Kapitalismus de Sombart, 0 autor mais citado depois de K. Marx. A intencao foi proporcionar uma inteligibilidade a um conjunto — a vida econémica, apreendida sob uma forma definida e batizada por seus padrinhos, com todas as possiveis adverténcias ¢ modos de emprego: 0 capitalismo. Provavelmente ele foi concebido desde sua origem em toda sua amplitude panordmica e, com © tempo, ganhou uma tal envergadura — sob determinadas reservas, embora de im- portancia. Se F. Braudel subiu alegremente a corrente dos séculos até chegar ao XIII, mostrou-se muito mais timido na descida, como se © advento definitive do capitalismo 0 houvesse desorientado, desarran- jando seus instrumentos de medigao. Fle esta 4 vontade no periodo intermedidrio, como seus predecessores, a quem tomou emprestada grande parte da viséo de um capitalismo que se instalava desde uma época remota, sem ruptura ou quase nenhuma — a problematica de um certo atraso que regularmente surpreende os pensadores, inclusive Karl Marx, em relagéo & evolucdo de seu tempo poderd explicar, mas @ posteriori justifica mal e se sobrecarrega de obsolescéacia 4 medida que passa 0 tempo ¢ 0 capitalismo desenvolve suas potenci lidades, estende sua influéncia, até muda de rosto... e muda de ombro o fuzil. F. Braudel teve a intuicao de um ajuste conceitual que teria sido necessério. Nao chegou realmente a assumir a tarefa de leva-lo a fundo, de onde a possibilidade de ambigiiidade para um leitor de 1986, habituado a outros usos. Ha um inegavel choque com a temética marxista que recusa falar de capitalismo “enquanto nao se trata da sociedade moderna (nota: desde a grande industrializagao do século XIX) em que a producao macica de mercadorias esté apoiada na exploragao do trabatho assalariado do nao-possuidor pelo possui- dor dos meios de produgao (P. Vilar)”. Com certeza seri possivel aproximar determinados textos de F. Braudel e K. Marx para chegar 4 conclusdo de haver uma inspiracao quase comum aos dois. Por exemplo, isso ocorre quando se avalia 0 papel do comércio na distincia aberta pelas descobertas geogrificas dos séculos XVI € XVII no desenvolvimento da atividade econémica mundial. Mas F. Braudel concede ao “capitalismo” comerciante um poder, uma independéncia e uma autoridade que Marx nio teria con- 40 sentido. De modo simétrico, enquanto para o Filésofo de Tréves o capitalismo industrial € 0 dnico digno desse nome, para F. Braudel ele nio € sendo um capitalismo entre outros, chegando aes (sinal sintom4tico) a subestimar a indistria na riqueza antiga de um pais, como ilustra seu comentario sobre 0 frontispicio de W. Hollar para 0 livro Britannia (1675), de John Ogilvy. Para ele o capitalismo surge quando hé utilizacao sui generis de um capital. Mas ele ndo se encerra num esquematismo grosseiro. Tacitamente ele admite e defende, quase de forma explicita, o principio de uma densidade minima de capital em suspensao na vida econémica para que se possa realmente falar de capitalismo. Encontramos aqui uma das mais refinadas articulagdes da obra, de que o aparecimento tardio da palavra “capitalismo” em suas paginas (vol. II, p. 199 e, principalmente, 329) é testemunha. Tudo o que é dito no primeiro tomo sobre as quantidades de homens, alimentos, bebidas, vestimenta, descobertas técnicas e transportes; tudo 0 que € dito no segundo sobre a estruturacao do espago econé- mico em relacdo a cidades, mercados e feiras, sobre o trabalho ¢ os tormentos do mercado especulador entre dois lugares, 0 empresdrio de fabricacio com o Verlagssystem, o emissor de letras de cambio, © que tomava emprestado, o que debitava ¢ o credor — tudo isso servira para trazer para a frente da cena o capitalista e 0 capitalismo, impersdveis antes que uma economia de mercado tivesse criado as proprias bases de sua existéncia. Mas no momento em que ela poe de pé o capitalista, que muitas vezes se atribui o titulo de negociante, ele abandona as velhas roupas do simples comerciante que foi no inicio, Ele esté no andar superior. Nao esta ligado a apenas uma especulagdo — ele toca em tudo e tateia com Ansia os empréstimos aos particulares e aos Estados. Ele tem principalmente uma graga especial, ligada a sua situacdo: esta disponivel. Ele nunca (ou quase nunca!) se envolve demais em um negécio que imobilize seus fundos — seu “privilégio mais importante [...] continua sendo a liberdade de escolher [. ..] Como pode escolher, o capitalismo tem a capacidade de mudar a qualquer instante: € esse 0 segredo de sua vitalidade”. . . Pata maior confusio daqueles a quem faz sucumbir, acrescentarfamos, concordando no essencial com F. Braudel, pois, em 1970 e em 1977, jé haviamos dito, em outras palavras, 0 mesmo que ele. Se Marx foi prisioneiro de sua teratologia ao reduzir o capitalis- mo apenas ao capitalismo industrial em gestagdo de seu tempo, seria licito perguntar se F. Braudel, apesar de suas precaugdes, nao teria caido na incerteza inversa, apostando numa certa continuidade, como 41 ja o haviam feito Kulischer e Sombart. Levando-se o raciocinio até a caricatura, uma pessoa com malicia poderia chegar a declarar que a Revolucaéo Industrial, como a Revolugao Francesa, nao aconteceu — ou, pelo menos, que ela nao teve uma incidéncia fundamental sobre a natureza do capitalismo. F. Braudel sai dessa dificuldade, adotando uma idéia do economista norte-americano S. Kuznetz — haveria dois tipos de crescimento, um tradicional e outro moderno. O moderno seria caracterizado por um desenvolvimento continuo em profundidade, apesar de crises superficiais até graves. O tradicional, ou antigo, ao contrério, passaria por altos e baixos, em periodos mais ou menos longos, periodicamente sofrendo um aumento de populagdo que de- voraria seus-ganhos magros. Mas F. Braudel no se explica sobre 0 mecanismo que teria permitido a passagem de um a outro tipo de crescimento. Pior: ao recuar a data dessa etapa para 1850 ou 1870, sem penalizar-se pelo direito que Ihe conferem os bens de um estran- geiro falecido em suas terras, ele puxa a Revolugdo Industrial inglesa para sua fogueira de “modernista”. E no dltimo instante ele ainda se liga ao evangelho de uma certa continuidade que j4 anunciava sua adesao as longas ondas de Kondratieff, cujo odor ele sente estar res- pirando nas dificuldades da crise iniciada em 1973. “O milagre dos milagres, (les Trente Glorieuses de J. Fourastié),? deveu-se apenas a um concurso de citcunstancias ou invengdes que permitiriam a cada momento propicio ou crucial 0 destampamento do teto do ‘possivel’.” O que nao significa, conclui ele com razoavel sadismo, que um dia © teto no venha a se reconstituir. Civilisation matérielle, économie et capitalisme esta quimicamente limpo de qualquer messianismo. Subsistem problemas nao-soluciona- dos e um contraste bastante evidente entre a imagem do capitalismo resistente, combativo e vencedor que varre F. Braudel e os revezes que fica obrigado a reconhecer nele a mezza voce. A causa dessa dissonancia nfo esta em um abandono das nuancas, 0 que de sua parte surpreenderia. Nos dois capitulos do volume II que tratam do capitalismo in essentia e in existencia — primeiro nos outros e depois nele mesmo — est4 ¢laborada toda uma descricéo e toda uma con- cepeao do fendmeno, cuja abstracao ele faria com rapidez, pois elas contam muito no desenvolvimento do texto. Ali o capitalismo € tomado em sua relagdo com cada categoria de negécios. O pensamento de Braudel orienta-se em direcao a meias-tintas, opcdes, transicbes. Num primeiro painel, ele observa a robustez da independéncia da economia de mercado ¢ das atividades produtivas comuns, 0 desdém do capital em relagao ao ramerrao do cotidiano e das trocas monétonas, havendo sua intervengdo apenas quando alguma perturbagdo (uma escassez de grios, por exempls) cria uma oportunidade de ganhos excepcionais — taxas de rendimento e rapidez de entrada de caixa. Porque o capitalismo € origindrio, embora distinto, da economia de mercado. Tem seus setores privilegiados, setores quase feudais. Em geral, a especulacao é 0 comércio A distancia, o crédito bancario, a tentativa de monopolizacéo de um produto. Lembrando a promessa da reserva e da quase-retirada do capitalismo no primeiro painel — “Toda evi- déncia mostra que nesses terrenos o balango do capitalismo pré-indus- trial é mais negativo” —, F. Braudel nem por isso diminui sua pre- dilegdo. Esté fascinado por seu poder, quase uma soberania: sua “posigao elevada, no pice da hierarquia do comércio provavelmente, € a realidade maior do capitalismo, dado o que ele autoriza — o monopélio de direito ou de fato, a manipulagdo dos pregos”. Ele transpde a esse capitalismo as palavras de um economista norte-ame- ricano que fala de seu pais no século XIX: “[...] A classe capita lista sempre soube dirigir e controlar as mudangas, a fim de preservar sua hegemonia”. O capitalismo esta a parte (vol. H, p. 327, 329 e 382). Na conclusZo das conclusdes, ao final da obra, a pintura serd retomada, retocada ¢ reavivada. F. Braudel, em relagdo ao capitalis- mo, ndo tem a ternura de Henriette Martineau, a romancista inglesa do inicio do século XIX, pelo rigorismo social entremeado de efusdes paternalistas. Ele percebeu o tom abaixado que acompanhou o glo- rioso percurso das transformages econémicas, a medida que a voz das vitimas do “crescimento” péde fazer-se ouvir. Distancia-se dos lisonjeadores e dos denunciadores do capitalismo de hoje por nao acreditar numa absorco total da vida econdmica por este ultimo. Sustenta que uma economia de mercado — no sentido em que a en- tende em seu livro e que, salvo engano, Sismonde de Sismondi o entendia no inicio do século XIX — subsiste ainda, mesmo em paises industrializados, “garantindo até 30 ou 40% das atividades”. Evoca os complexos relacionamentos estabelecidos entre o Estado e o capital, unido livre de dois velhos amantes, dos quais 0 segundo nao passa mal € ainda ameaca o setor dos empresdrios, dos inventores e dos eternos trocistas, enquanto nos paises socialistas a iniciativa, fonte inesgotavel do progresso, esta paralisada na base pelas estruturas auto- ritéries do poder e da decisao 43 Essa prosografia do capitalismo ¢/ou essa prosopopéia de Braudel deveriam dissipar todas as davidas, reticéncias e ambigilida- des, Mas ndo € 0 que acontece. Afinal de contas, F. Braudel faz Tauitas concesses a0 capitalismo, muitas ao capitalista, muitas 20 capital. Demais? © que incomoda em sua exposicao ¢ que ele nao ve ou vé muito poucas possibilidades de malogros ¢ nenhum 0» quase nenhum Angulo morto. A falha quase sempre € uma questao de inadverténcia, um golpe da sorte, uma antecipacao abusiva a res- peito da situacao do mercado ou dos costumes econdmicos. Ela nao evexiste do interior com 0 capitalismo, mesmo potencialmente, Sabe-se muito bem de onde vém as crises, palavra que figura apenas wna vec nos trés sumarios. E assim, apesar das precauges tomadas in extremis, a impressao que fica ainda é a do dinamismo, do otimismo, do salto sdiatte e sem othar para trés. Nisso ele mistura & forga wma grande dose de fatalismo e de abandono das coisas @ sua sorte, A esse res- peito poder-se-d ler a passagem a respeito do preco pago & Revolucao Tndustrial pelas classes trabalhadorus na Inglaterra. Tipico. Admira~ velmente equilibrado, animado por testemunhas oculares, fazendo os papéis do fogo ¢ da gua, de uma guerra entre 05 outros ingredientes, fle parece dar uma volta completa a toda a questao. Mas, terminado © inventario (faltando um importante fator: a carestia do prego do trigo naquele periodo, devido as mas colheitas), a conclusio fogs da investigagia sobre as responsabilidades — “De quem € a culpa?” De todos, o que torna a diluir o problema. E neste ponto que se pode comecar a ficar decepcionado. Esperar-se-ia de uma anélise que ela superasse os dilemas expostos © trouxesse uma série de causas, Wm Giagnéstico mais circunstanciado, mesmo & custa de simples aprox: magdes (todas as aproximacSes acabam sendo afinadas). ‘Admitamos que nosso tiltimo exemplo remeta a uma época “rea justada” a sua esséncia por F. Braudel, uma espécie de anexo, como a dissemos. O problema que circunda a apresentacdo ¢ 0 elogio que fle faz do capitalismo, a virtude que Ihe empresta, talvez nao se deva apenas a uma aplicacdo temporal neste caso delicado. Atém-se tam- bem 2 um fundo mais geral, as proprias definigdes do capital ¢ do capitatismo que j4 foram apreendidas ¢ que ocultam determinados as- pectos para valorizar outros, mais resplandecentes. F. Braudel come- tou por investigar os diferentes sentidos dessas palavras segundo 0 Mestodo preconizado por Lucien Febvre — fez uma lista, experimen tou ¢ escolheu. Quais? Tentando respeitar seu pensamento (¢, por tanto, sem muita simplificagio) digamos que para cle o capital seja uma soma de dinheiro acumulada e€ jntroduzida na economia para ser 4A reproduzida © aumentada por um sujeito que se chama capitalisea cuja vocacio ou natureza essencial & precisamente servir-se de seus meios financeiros para promover a economia e receber vantagens. Dissemos “promover a economia” de propésito. Depois que F. Braudel abandonou a prospeccao seméntica e a listagem das figuras historicas, para ele o capitalista € 0 empreendedor — esse aventureiro dos tem- pos modernos, como disse Charles Péguy — © © capital, o instru- mento essencial do progresso. Ele esquece sentido provavelmente mais antigo, usado em Veneza desde o século XII, sem prejuizo de uma possivel anterioridade por ali mesmo ou em outros cantos. O cavedal na cidade dos doges ¢ 0 cavedal do Monte Velho (mais tarde, do Monte Novo) era essa importancia em dinheiro constituida pelos pagamentos dos cidadéos ao Estado nas necessidades urgentes deste Giltimo, importdncia essa que Ihes era subtraida de seu uso livre, mas que Ihes trazia de volta algum interesse, um pro, a nao ser quando se tratasse de um dizimo perdido. O sentido da palavra “capitalista” na Holanda, onde parece haver surgido pela primeira vez na Europa, também pede para ser rememorado. Ela vem das leis do fisco dos Estados, dos impostos sobre 0 “capital” — ou seja, sobre o haver total de um particular® — especialmente do 1/200 de penning, ou seja 0,5%, que era levantado de vez em quando, principalmente du- rante as guerras € nos grandes apuros do Tesouro Piblico, que as Veues ocorriam no mesmo ano. No final do século XVII, eram con- siderados “‘capitalistas” os que se impunham pela propriedade de 10.000 florins ou mais e... “semi-capitalistas” aqueles cujos bens ram menores que isso, indo até a metade. . No vocabulrio corrente em Veneza e Amsterda, esses dois mer- cados magistrais, capital e capitalista aparecem em sua forma mais passiva, mais sombria, a mais obtusa (como somos tentados a dizer) vv em todo caso, a menos criativa — na dependéncia do fisco. Seria © caso de excluirem-se essas acepgdes do léxico? Um risco feito com a caneta nao custa nada, mas a que razao filolgica dever-se-ia ape- lar? Seria necessdrio, a bem da exatidao e da atualizagao sociolégica, retomar a discriminacao colocada por Vilfredo Pareto e titi quanti yiviam de rendimentos ¢ empresdrios, reservar apenas a estes ulumos a nobre € esfuziante dendminacao de “capitalistas”? Isto seria dirigit- se a peticao de principio e na dianteira de muitos inconvenientes. Sera que nao se deveria realmente nesse impulso excluir do grupinho in 3. A definicdo desse “total”, que nao € realmente um total, exigiria discussdes técnicas em que nfo podemos entrar aqui.

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