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CAPITULO 8 AS CORES DA MINHA VISAO Sobre a autora Meu nome é Franciele Brandao, tenho 30 anos e sou uma essoa com deficiéncia visual desde os 18 anos, devido ao des- colamento de retina que se gerou em fungao da miopia muito alta. Durante muitos anos fui uma pessoa com baixa visdo, mas com o decorrer do tempo minha visao foi gradativamente se “apagando”. Atualmente, consigo perceber apenas a diferenca do dia e da noite. Nasci e resido em Porto Alegre, local que proporcionou recursos por meio do contato com outras pessoas com a deficiéncia visual. Sou graduanda do curso de psicologia e assim materializo um sonho, que jamais achei ser possivel. tee Avisao é um dos cinco sentidos do ser humano e é conside- rada a mais importante, pois é com ela que temos a representacao do mundo ao nosso redor. A construgao de nossas memorias é a jungdo de uma experiéncia marcante com a simbologia existente do que enxergamos. Hoje, o mundo esta preso ao visual, tudo que podemos imaginar esta relacionado a visao. Empresas de publicidade e propaganda nao economizam recursos visuais para chamar a atengao de seu publico, por essa razo, as pessoas sao bombardeadas de informacées a todo o momento, podendo prejudicar sua concentracao e atencao. Todavia, quando “perdemos” esse sentido, ficamos desorientados e sem saber o que fazer. Como sera o mundo de quem nao consegue enxergar da mesma forma que a maioria das pessoas? As barreiras do luto Aadaptacao nao é tdo simples e rapida. Toda a perda passa Por um processo de luto, a morte simbdlica daquilo que nao temos mais. Esse processo passa por algumas fases: primeiro a negacgao, ralva do acontecimento, perguntando-se “por que comigo?”; depois 76 ss vem a fase do desejo, que é imaginar 0 que irg fazer se perdeu voltar; em seguida vem 0 desespero, uandg Og Ue percebe que nao vai adiantar criar falsas esperan Cas §9 ' Passo, foi “perdido” e por ultimo a aceitagao de uma a Nova con re rn Cada pessoa tem sua particularidade em relaco ao i luto. Contudo, existem pessoas que vao passar pelo proces. rn rapido do que outras, devido sua estrutura emocional e bean aig Entretanto, devemos respeitar o tempo de cada um, Seja 8p gio a0, Minha aceitagao Quando minha visao reduziu devido ao descolame permaneci enxergando apenas de um dos olhos e ain de perto, nao foi facil aceitar essa nova condicdo: se com baixa visao. Nesse momento da minha vida, que ter baixa visdo era condi¢&o de nao poder fazer Quando precisava ir a algum lugar, pedia para alguém me acom. panhar e nunca largava o braco de quem estava me Conduzindo, Machuquei-me varias vezes por achar que estava enxergando 0 suficiente para desviar dos obstaculos. Forgava muito meus olhos para tentar ler colocando o papel encostado nos olhos, eu ficava muito triste por nao conseguir visualizar todas as palavras. Chorei muito nesse periodo, pois nado queria me entregar ao ensino do Braile, afinal eu ndo era uma pessoa cega. Demorei trés anos para buscar recursos e vivenciar o proceso de aceitagao. A falta de conhecimento em relacao do possivel foi um dos fatores que nao permitiu a busca pelos recursos. Ficar em casa ouvindo a televisao o dia inteiro fazia parte da minha rotina, sem ter outras atividades para fazer dedicava minha atencdo em programagées da TV. . Outro fator que contribuiu para a demora em buscar autonomia e independéncia, foi a superprotecdo da familia. E natural ae familia tenha um cuidado maior com o seu familiar que possu! a guma deficiéncia. Porém, essa protecdo faz com que a pessoa ee tem suas dificuldades e limites, se acomode. Desta forma, rs motivagao para mudanga. Comigo também houve essa protes a Entretanto, quando percebi que podia realizar atividades ne mente, precisei mostrar confianga e provar para minha familia Nto de retina da tudo Muito Tuma pessog CU acreditaya nada sozinha, oe ts REE pisTORIAS DE BAIXA visko 7 eu conseguia fazer aquilo que eu queria, sem ter preocupagao de e machucar ou até mesmo de me perder em algum lugar. E ne- cessario que tenhamos voz ativa para descrever nossas vontades e assim poder criar adaptagdes de acordo com cada limitacao. Tropecar, cair, esbarrar, pegar dnibus errado, fazem parte da re- alidade de uma pessoa com deficiéncia visual. A grande diferenca é a maneira que cada um vai lidar com o seu interior, diante a diversidade. Avergonha que tomava conta O uso da bengala foi uma das maiores conquistas para mim, pois eu sentia muita vergonha de usa-la na rua. Perturbava-me imaginar 0 que as pessoas iriam pensar de mim. Sentia-me dife- rente dos outros. Pensava que deixaria de ser mais mulher, ja que 0 uso da bengala nao era nenhum acessorio comum de uma menina vaidosa. Como pode um simples objeto gerar tantas frustragdes em uma pessoa? Acreditar que sendo usuaria da bengala, ira diminuir suas qualidades e desejos, mas esse sentimento é vivenciado por muitas pessoas que perdem a visao. Por vezes achei que poderia ser excluida das reunides de amigos. No entanto, a presenga da minha familia e o apoio de meus amigos videntes que nao me abandonaram nesse momento, foram funda- mentais para a aceitagao da condicao de baixa viséo. O manejo com abengala se deu com a aproximagao e 0 incentivo de outras pessoas que também possuiam a baixa visdo ou a cegueira, desmistificando o pensamento de ser incapaz, aumentando a autoestima e a motiva- (40, fazendo acreditar em meu préprio potencial. A autoconfianga foi de extrema relevancia para perder 0 medo de andar nas ruas sem estar enxergando direito. O medo de bater em alguma coisa ou cair era prevalente até o momento em que na pratica, indo nas ruas e caminhando, fui percebendo que nao era tao ruim assim. A rientacdo e mobilidade 6 um recurso para o manuseio da bengala, também foi um fator de importancia para o meu desenvol- vimento, visto que aprendi técnicas para facilitar minha locomogao. Com o passar do tempo fui aprendendo a construir referéncias nos trajetos, como por exemplo, saber que quando passar por cima do buraco eu tenho que dobrar a esquina. Bem como, nao deixar de aceitar a ajuda das pessoas na rua. Be jogia ampliando meus horizontes Atecno! os toes de ra de tudo 0 que est escrito, Abn ram computador a7 que eu nunca tinha percebido. Quando 3 ren olhos de uma a ganhei o mundo, Posso dizer que mi a lidar com ae independente, pois eu ndo precisarig mi : vida ficou ones ficassem lendo textos e livros no computador, as pe: amo acessal red les sociais e realizar pesquisas na internet, A tecnologia que sd vozes sintetizadas e istalaga bem facilitou também minha privacidade ao elular, possibilitando-me ter autonomia para realizar qualquer no el cari no aparelho, como mandar mensagens © acessar i agenda de contatos, através do aplicativo leitor de tela, Mexer 0 vildo que se tornou minha paixao O Braile foi um grande marco em minha vida. No entanto, re. sisti muito para fazer as aulas, pois sentia vergonha de aprender, Para mim ele tinha a conotagdo de cegueira, nao imaginava que uma pessoa com baixa visao iria necessitar desse recurso, Toda- via, cada aula que assistia, ficava encantada em aprender algo tao diferente, desconstruindo preconceitos. Gostei tanto que ao termino do curso comecei a dar aula de Braile em uma associagao da regiéo metropolitana. Hoje em dia, uso o método para anotar tudo o que preciso lembrar, para isso eu utilizo uma agenda onde €screvo compromissos e lembretes. Querer é poder Atualmente, deixei de ser que nO momento enxergo ape Cegueira total, Entretanto. na Mm funcao de nado Pp Cursando 9 Ensino s Nalcancave| uma pessoa com baixa visao, visto Nas a claridade, sendo considerad@ 0 deixo de fazer nada que eu gosto xergar. Continuei estudando e estou He uperior em Psicologia, um sonho que achava » POF nao ter o conhecimento de recursos benéficos pa’ iiculdades @ ajuda e a boa vontade dos professores: ©m fazer o Curso, 4 cat as regiseg a uma aula de neuroanatomia, precisava ident ° °&rebro, porém, 9 material era disponibiliza®? oder en A gTORIAS DE BAIXA VISAO 79 HI nas em imagens. Com a dedicagao e a sensibilidade de minha sora, ela teve a ideia de pedir para todos os alunos levarem massinha de modelar para a sala de aula, e ela solicitou que fi- zessem as regides do cérebro com o material, valendo nota para o semestre. Ao final dessa aula pratica avaliativa, ela me entregou todos 0S trabalhos realizados pelos colegas. Com um sorriso imenso no rosto, disse-me que estava pronto o meu material de estudo. al profes Usando outros sentidos Como passar do tempo, alguns conceitos foram se modificando para mim, passei a n&o ter medo de altura. Dessa forma, posso dizer: “o que oS olhos nao veem o coragao nao sente”. Gostei mais de esportes radicais, pois posso sentir a adrenalina com os outros sentidos. Patinagao no gelo, rafting, rapel, tirolesa, arvorismo e trilha a cavalo sao esportes e atividades que ja pratiquei e amei a experiéncia. Com certeza quando houver outra oportunidade farei novamente. Nao tem prego. Sentir o friozinho do gelo na patinagao; a cor- renteza do rio levando o bote no rafting; sentir que esta suspenso por uma corda no rapel; a velocidade na tirolesa; os obstaculos e aaltura no arvorismo; a emogao de subir e descer 0 morro; a ca- beca batendo nas folhas das arvores, sentindo o respingar da agua quando o cavalo atravessava um lago sao sensa¢des maravilhosas. O contato com o cavalo foi para mim uma das experiéncias mais significativas, por estar guiando o animal sozinha, percebi que naquele momento a confianga precisava ser mutua, para nao haver nenhum problema. Confesso que quando ele andava mais rapido eu sentia um medinho de cair no chao, porém o sentimento de conquistar e realizar o esporte era mais forte, dando motivagao para ir em frente no trajeto. Sonho de mulher _ No inicio do ano de 2017, realizei mais um dos meus sonhos, 0 to esperado casamento. Toda mulher tem o desejo de se casar Vestida de noiva e com tudo o que tem direito. Comigo nao foi diferente, apesar de ndo poder enxergar meu vestido, nao foi tao Simples escolhe-lo, pois sou muito detalhista. Com as mos eu fazia » — 80 ee a selagio dos que eu gostava o. na, ale due finalmente enon o vestido dos meus sonhos, todo branco de cetim bordag i rej uma cauda enorme. Casei com meu namorado que tem baixg ‘a 0 fato de sermos pessoas com deficiéncia visual nao nos ipa de realizarmos nossos desejos. de Atividades de dona de casa também fazem parte de minh vida. Com o tempo fui buscando sozinha algumas adaptacdes ban realizar atividades rotineiras. Para ligar o fogdo, aproximo mina mao do bico, para perceber o calor da chama quando acender 9 fogo, deste modo eu consigo cozinhar normalmente. Passar roupa também precisou ter um manejo diferente, para encontrar o ferro de passar quando ele ja estava quente, vou seguindo 0 fio até chegar ao pegador — desta forma eu nado me queimo. Servir uma xicara de café nao era uma tarefa muito facil, pois na maioria das vezes derramava, foi entaéo que descobri que: se colocar o dedo na borda da xicara e o café encostar é a hora certa de Parar de despejar dentro. Em meu tempo livre gosto muito de fazer tric. Com os dedos da mao vou sentindo os pontos do tric na agulha e vou tricotando e dando forma ao acessorio ou roupa desejada. O colorido de nao enxergar A experiéncia de nao enxergar me remete a inumeras poss bilidades que eu nunca iria saber se nao tivesse vivenciado. Nao precisamos enxergar com os olhos para ver alguma coisa, po's podemos enxergar de outras formas. Temos a capacidade de nos apropriar de tudo o que nos rodeia, desde que haja uma pessoa vidente ao nosso lado para nos descrever aquilo que se pode vel. Com isso é despertado o nosso imaginario e podemos construr imagens a partir de uma meméria simbélica. Costumo dizer q@ meu mundo é muito mais bonito que os demais, pois imagino tudo do jeito que eu quero, rico em cores e detalhes. 0 Hoje, acredito que as dificuldades podem ser encaradas © a "im impulso para a superagao de obstaculos, como a resilien Aresiliéncia € a capacidade de 0 individuo adaptar-se a mudanee lidar com o problema resistindo a situagdes adversas, encontran Solugdes estratégicas para enfrentar e superar obstaculos, busca” uma forga interior Para ultrapassar limites. RIAS DE BAIXA viSAO 81 4st da é feita de escolhas. Ou ficamos _uzados jamentando com as dificuldades que temos, de bracos 70888 ‘orga de vontade como combustivel para i a6 ou usamos nariO- Entretanto, cada pessoa tem o seu tempo Sek do imagi- er O momento de buscar recursos e adapta: 3 juto, tempo nor desenvolvimento e aprendizado. Respeitar ese para um fundamental Pare consolidar a confianga em si mesmo me é aautoestina € 2 motivagdo em querer fazer algo comega vam isso regados de expectativas. aser A influencia da interagaéo Avi 16 com outras pessoas com deficiéncia igual, facilita o processo de confianca, principalmente no momento que voce percebe que outras pessoas com as mesmas condi- jes que voce, ou até mesmo mais graves, fazem mais atividades. Alem de a interagdo servir como uma fonte motivacional, ela tam- pem gera conhecimento na troca de informacées. A convivéncia ao trazem seguranga para a familia das pessoas com is percebem as inumeras possibilidades de realizar rido do meu sentimento, em qualquer atividade. eu desejar, basta querer e or podera pintar o colo fazer tudo aquilo que saber Que posso ar o sonho. irabusca de reali

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