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CAPITULO 4 BAIXA VISAO: (VER DE) UM MODO DIFERENTE Sobre o autor Sou Rafael Braz, estudante de psicologia e audiodescritor con- gultor. Latino-americano e brasileiro, nascido na cidade de Porto Alegre, vim ver 0 mundo pelo lado de fora em agosto de 1979. Crescido na periferia da regiao metropolitana da capital sul-rio- -grandense, aprendi, desde a infancia, a admirar e respeitar a beleza da diversidade humana. Sempre fascinado pelo conhecimento, levo os estudos como uma das principais atividades na minha vida. Sou amante da arte, em especial da musica, do teatro e da literatura. Aficionado por biografias, sou atraido por livros, representacdes e& conversas sobre histérias de vida. Ademais, me encanta viajar & conhecer diferentes lugares e culturas. Aprender, me (des)envolver e amar a vida constituem a esséncia dessa minha jornada. aK O come¢o... Lembro que na minha infancia, muito antes de ter baixa visdo, ja convivia com quest6es oftalmicas. Por volta dos meus cinco anos de idade, minha mae percebeu 0 quanto eu e meu irmao mais novo tinhamos a necessidade de ver de perto, tanto os objetos do ambiente, quanto as imagens da televisdo. A partir disso, em 1985, conversando com sua irma que também estava atenta aos comportamentos dos sobrinhos, minha mae decidiu nos levar ao oftalmologista para uma consulta. Com a avaliagdo oftalmolégica, fomos informados sobre o fato de termos miopia. Assim, estava “golucionada” a questao, ou seja, bastava criangas e pronto, resolvido. Feito providenciar éculos para ambas as isso, comegamos a usar 6culos sentindo um misto de estranheza e ON > admirac4o. Estranheza, por estarmos levando no rosto um de “adereco permanente”, € admiragao, Pelo “mundo” que — Spec, enxergar, maravilhados que estavamos, com a percepeaig de g 0s 3 de contomos precisos e de horizontes mais distantes, Staheg Entretanto, como meu irmao recém havia Completadg anos de idade, o uso de éculos, no inicio, foi bastante com Quatry para ele. O fato daquele dispositivo de corregao Pesado ma "Cad no rosto de uma crianga tao pequena foi algo que dificuttoy rar processo de adaptacao. E, mesmo usando hastes que ree toda a parte posterior de suas orelhas, com frequéncia, ja os 6culos durante suas brincadeiras. ava Eu, que recém havia completado seis anos de idade, y experiéncia diferente. Como ja estava lendo com fluéncig "i aproveitar de forma intensa a delicia das letras e sentir plenamens o sabor de aprender com os livros. E, como era maior que a imo e tinha preferéncia por brincadeiras menos agitadas, RS passei pelos percalgos que ele passava Com as quedas dos culos Durante todo o restante da nossa infancia, consultamos Period. camente com o mesmo oftalmologista. Houve uma ou outra Variacao no grau da miopia, mas sempre dentro do esperado para a realidade de criangas em desenvolvimento. Conforme cresciamos, atualizé. vamos 0 grau de corregao com a compra de novos dculos e tudo seguia bem, sem que tivéssemos qualquer dificuldade significativa, Até mesmo porque, a experiéncia de usar Oculos para corrigir eros de refrago (como na miopia) é totalmente distinta da experiéncia de ter uma deficiéncia visual, tendo esta um carater permanente e nao sendo passivel de corregdes ou melhora na acuidade visual. Em 1992, depois de sete anos usando éculos, em uma de minhas consultas rotineiras, o oftalmologista disse que havia verificado uma “alteraco de fundo de olho”. Ele orientou minha mae a marcar para mim uma consulta com outro oftalmologista, especializado em retina (a parte do olho na qual ele havia identificado a alteragao). E disse ainda que seria importante que meu irmao também consultasse 0° pecialista, visto que tinhamos praticamente o mesmo historico clin Em poucas semanas, estavamos no consultério do retino logo. Avaliagao clinica e exames complementares fizeram pal : da investigagao. Em seguida, 0 resultado: retinose pigm®” “ Bem, nunca tinhamos escutado esse termo e... as definigoes | ivi uma HISTORIAS DE BAIXA VISAO 39 desdobramentos sentenciados pelo médico, qual um veredicto, foram por nés introjetados e repetidos por muitos anos. Viviamos tempos em que o discurso da suposta “normalidade” se mostrava absoluto. O atual entendimento da baixa visao como uma condigao que é parte de um modo legitimo de existir era inima- ginavel. Na época, 0 pensamento vigente tinha foco na “doenca”, com énfase no déficit da capacidade sensorial. Tudo isso, nos orientava e nos fazia acreditar que seriamos, eu e meu irmao, para sempre balizados por limitagdes. Algo como se o ser humano, seus projetos de vida e seus éxitos dependessem do funcionamento de um Unico sentido, em nosso caso, o da visdo. Aessa altura dos acontecimentos, eu tinha treze anos de idade. O cenério estava pronto: entrar na adolescéncia acompanhado do “carimbo” que todo diagnéstico impde. As perspectivas apontavam para uma perda progressiva da visdo, um processo lento e irreversivel acaminho da cegueira. Diante disso, eu nao poderia ter planos muito ambiciosos, a no ser, torcer para que descobrissem uma cura efe- tiva para a tal da retinose pigmentar. A realidade percebida era dura, implacavel e inexoravel. Tal percep¢do acompanhou e deixou marcas em quase todas as minhas vivéncias por longos e dificeis anos. As primeiras experiéncias com a baixa visao... O processo de “aquisicao” da baixa visao se iniciou no mesmo ano em que recebio diagnéstico da retinose pigmentar. Recordo que, ainda no final do ensino fundamental, na sala de aula, comecei a ter dificuldades para enxergar os contetidos que os professores escre- viam no quadro. Outra dificuldade inicial, também na escola, era ler as provas - na época mimeografadas - quando eu recebia cdpias de baixa qualidade (com pouco contraste entre as letras e 0 papel branco). Era cada vez mais comum pedir emprestado aos colegas os seus cadernos. Em casa, na maioria das vezes, minha mae me auxiliava, lendo em voz alta os contetidos para que eu os copiasse em meus cadernos. Essas praticas se mantiveram durante o ensino médio e, com o suporte que eu recebia, meu desempenho escolar foi muito pouco prejudicado. Assim, fui avancando nos estudos sem nunca ter precisado repetir nenhuma série, em nenhum nivel. > 40 Te No ambito escolar, quase sempre silenciei sobre a deficiéngis visual. Meus colegas e professores sabiam, mas néoa Entendian, Creio que eu mesmo nao a entendia, aliés, eu sequer me com re. endia. Agora, olho para tras e vejo 0 ‘duplo entrelugar” que ¢ um adolescente com baixa visdo, ocupava: estava entre o ver e a nao ver, e, ao mesmo tempo, entre a infancia segura Perdida ea temida adultez vindoura. Ser 0 que se consegue set... Em 1994, atraido pela tecnologia digital e por computadores, ingressei no ensino médio técnico em eletrénica. Estava comecando a estudar em Porto Alegre, vindo do ensino fundamental cursado em Viamao, municipio da regiao metropolitana, no qual residi dos meus 4 aos 28 anos de idade. A realidade de cursar o ensino mé- dio na capital, algo que eu ha muito desejava, me causava tensao € ansiedade. A quantidade de contetidos, o ritmo do ensino e o nivel de dificuldade eram muito superiores aos da minha escola anterior, 0 que potencializava as dificuldades enfrentadas em razao da deficiéncia visual. Nas primeiras semanas de aula, em uma disciplina técnica, eu Nao estava conseguindo ler os contetidos no quadro. Tal dificuldade me impedia de compreender bem as explicagdes da professora. Como ainda nao havia me aproximado dos Colegas, tinha vergonha de pedir cadernos emprestados, Porque precisaria, para isso falar a algum desconhecido sobre 0 “meu problema de visdo” (expressao inadequada, que usei por muito tempo para me referir baixa visdo) Apés uma das aulas dessa disciplina, sai da €scola sem com re. ender a matéria, confuso e frustrado. Cheguei em Casa sentinde, me muito triste e, chorando, procurei minha mae para conversarmes Disse a ela que nao retornaria a escola, afinal, de que adiantaria conseguir Cursar 0 ensino médio com toda aquela dificuldade. S depois, nao conseguiria trabalhar, em razdo de nao enxergar o a , ciente para isso. Jamais esqueco desse dia, da postura acolhedora, Continente e afetuosa de minha mae e do quanto me senti compreen. dido e fortalecido para seguir em frente. As dificuldades continuarary, presentes, mas n&o desisti, em vez disso, resisti e avancei, HISTORIAS DE BAIXA VISAO at Aos poucos, fui me aproximando dos colegas e fazendo algu- mas poucas amizades. Como na escola anterior, retomei a rotina de pegar cadernos emprestados para copiar as matérias. Assim, fui melhorando meu desempenho e superando as médias com notas mais altas. Entretanto, lidar com a dificuldade de reconhecer as pessoas 4 distancia era muito mais dificil do que assumir que nem sempre enxergava 0 que estava escrito no quadro. Isso fez com que eu langasse mao de uma série de estratégias para ocultar dos colegas, as dificuldades que me constrangiam. Fingir amarrar os cadargos ou fingir telefonar para ter distan- cia e tempo de forcar a visdo para reconhecer os colegas eram as estratégias que eu mais usava. Como é esperado de um adoles- cente, eu temia nao ser aceito pelo grupo, ser visto como estranho ou diferente. Eu era um adolescente, eu apenas queria ser igual a todos. Queria me sentir parte do grupo e, na maioria das vezes, me senti assim. Afinal, nos identificavamos em varios aspectos, assuntos e preferéncias. Por vezes, um ou outro colega fazia alguma piada relacionada @ minha deficiéncia visual. Assim, tanto pelo desejo de aceitacao, quanto pela necessidade de me proteger desse tipo de piada é que eu silenciava sobre o assunto. Fazia de conta que nao era nada impor- tante, que era algo facilmente contornavel e, até mesmo, transitério, considerando que, por muitos anos, de fato, eu mesmo acreditava que um dia haveria uma “cura”, algo que me permitisse voltar a en- xergar plenamente. Posso afirmar que fui bem sucedido com minhas defesas, pois nunca sofri bullying. Piadas e situacdes discriminatorias foram quase sempre pontuais, jamais coletivas ou sistematizadas. Mais para o final do ensino médio, certa vez, no laboratorio, pedi ao professor que lesse para mim, os cédigos escritos num componente eletrénico. Eu estava sem meus colegas de grupo por perto e precisava concluir um circuito. O professor, que convivia comigo desde 0 inicio do curso e nunca havia percebido a minha deficiéncia visual, demorou para acreditar que eu nao enxergava aqueles caracteres minusculos. Pensou que eu estava brincando e Perguntou “como eu fazia isso”. Lembro que sorri e disse a ele que @ questao correta era “como eu ‘nao’ fazia isso”. Ele me atendeu No que eu precisava e depois pediu que eu 0 acompanhasse até uma determinada sala da escola. ae armos. aguardei na recep¢ao enquanto 9 10 4ria em uma espécie de Subsalg ** ee funciona! om uma ; ; cana iria conversar Comigo e vo m seguida, me disse que ela iria co! ig Itoy , laboratorio. Em poucos minutos a funcionaria me chamou, me jabor: arcas perguntas sem demonstrar qualquer interagge z Se e “me liberou”. Nada se originou dessa tentativa a de intervengo e essa escola, assim como a anterior, jamais - envolveu, se dispés ou ofereceu recursos humanos e tecnolégicos para tentar - ao menos - minimizar as dificuldades impostas Delo ambiente ao meu processo de aprendizagem e desenvolvimento, Experiéncias com o trabalho... No Ultimo ano do curso técnico, tive minha primeira experiéncia laboral. Era necessario realizar o estagio obrigatorio e ingressej em uma pequena empresa de informatica. A acuidade visual que eu possuia me permitia desenvolver, sem dificuldades, a grande maioria das atividades. Montava computadores, trocava placas, instalava softwares, fazia configuragdes, etc. Algumas atividades bastante familiares que, fazia dois anos, eu ja realizava em casa. Sobre a experiéncia em casa, lembro que, nas primeiras semanas usando meu computador, descobri que era possivel alterar as cores da tela, configurando um modo que me permitia uma excelente visu- alizagao dos dados. Passei a usar as telas com o fundo na cor preta e todas as letras na cor branca. O contraste propiciado por tal confi- guracao me possibilitava ler tudo, sem as dificuldades enfrentadas até entao, durante as leituras que realizava nas cores Padrao do sistema. / O aspecto da tela do computador despertava a curiosidade de amigos e parentes, Todos perguntavam o motivo daquela Configuracao tao diferente. Eu, sem qualquer dificuldade, Prontamente lhes expli cava. Contudo, somente em casa eu me sentia 4 vontade Para cal tal configuragao. No estagio, apenas nos momentos em que cure encontrava sozinho na sala de trabalho é que eu usava O alto contra = Eu sentia vergonha daquela estética diferente do “padrao”, Senti, necessidade de me proteger da exposigao que seria ser visto ae outros trabalhando com uma configuragao diferente. Preferia 4 dar a oportunidade de me perguntarem o porqué daquilo. Isso me faria ter de falar sobre a deficiéncia visual, algo que me fazia sentir HISTORIAS DE BAIXA VISAO 43 diminuido como pessoa. A alternativa que eu tinha, sempre que havia alguém presente, era trabalhar com a configuragdo padrao, mesmo tendo dificuldades para ler na tela. A marca do entrelugar da baixa visdo se mantinha presente, manifestando-se no meu desejo de aceitacdo e pertencimento ao grupo das pessoas sem deficiéncia. Depois de quase oito meses, conclui com éxito meu estagio. Aprendi muito e sentia que queria trabalhar com informatica. Eu tinha 19 anos, estava formado no curso técnico em eletrénica e queria trabalhar. N&o planejava cursar uma faculdade, pois sentia que seria impossivel, em razao da deficiéncia visual. O ensino médio ja tinha sido muito complicado e, com isso, eu estava convencido de que o nivel superior nao era para mim. Ademais, a situagdo financeira de minha familia era bastante complicada. Ainda que eu quisesse estudar mais, precisava 0 quanto antes trabalhar. Precisava de dinheiro e, assim, comecei a procurar uma ocupa¢ao. Com o suporte de minha mae, busquei 0 atendimento de uma agéncia publica de empregos. Relutei bas- tante para me cadastrar como candidato as vagas destinadas a pessoas com deficiéncia. Eu dizia que nao queria ser identificado pela deficiéncia visual. Eu nado queria “levar esse rétulo escrito na testa”, essas eram as minhas palavras na época. Uma vez cadastrado para concorrer as vagas reservadas as pessoas com deficiéncia, eu visitava a agéncia periodicamente. Nao tinhamos telefone e precisava me deslocar do municipio vizinho, onde morava, até Porto Alegre para saber se havia vagas. Foram quase trés anos fazendo entrevistas em diversas empresas. Nesse tempo todo, somente encontrei gente despreparada, preconceito e exclusdo. Foram quase trés anos participando de processos seletivos frustrantes. Escutei muitos “ndos”, muitas desculpas e justificativas que tentavam dar conta de que eu nao seria capaz de realizar atividades que me exigiriam o pleno funcionamento do sentido da visdo. Algo que eu nao compreendia na época, visto que as vagas eram oferecidas justamente a pessoas com deficiéncia. Durante esse tempo procurando emprego, fiz alguns cursos de informatica. Também estudei inglés por mais de dois anos. Em ambos os contextos, repeti a pratica de silenciar sobre a deficiéncia visual, fazendo atividades com bastante dificuldade e desgaste emocional. Segui me protegendo para que nao me perguntassem i 5 4S USA- informatica. EU tinha sobre a minha condigdo, usando estratégias semelhante: das durante o ensino médio e 0 estagio em i i oa com 22 anos de idade e ainda nao me reconhecia como pess' deficiéncia. Nao compreendia esse modo de serno mundo. Vinee presente imediato, apenas um dia de cada vez, sem perspt lanejar um futuro. ; “e rem 2001, no final do ano, fui chamado para mais ua vista de emprego. Dessa vez era diferente, pois se tratava uma cooperativa que oferecia vagas apenas para pessoas Se oe €ncia. O proceso seletivo era voltado para esse publico. As vagas eram para o servigo de teleatendimento de uma empresa Publica, Aatividade era parcialmente terceirizada. Por melo da cooperativa, as pessoas com deficiéncia ocupavam esses postos de trabalho. Passei pelos processos, entrevistas, testes e demais etapas. Em trés dias eu estava em treinamento. Em vinte, eu estava trabalhando. Nesse local de trabalho, permaneci por trés anos e meio. Cresci, me desenvolvi, conheci gente. Convivi com centenas de pessoas, atendi milhares de clientes. Interagi com dezenas de colegas com diferentes deficiéncias e, com isso, pude comegar a olhar com normalidade para a minha propria condig&o de pessoa com baixa visao. Esse olhar foi o ponto de partida para que eu pudesse me compreender e me reconhecer. Apartir disso, comecei a mudar a forma de interagir com as pessoas. Nesse ambiente de trabalho, conheci a pessoa que hoje é minha esposa. Construi amizades que levo por toda a vida. E, também nesse contexto, pela primeira vez, pude sonhar e planejar um futuro. Com o término do contrato entre a cooperativa e a empresa publica, eu e meus demais colegas com deficiéncia perdemos a nossa ocupagao. O ano era 2005, ja se falava um pouco mais nas vagas de trabalho para pessoas com deficiéncia. Eu tinha 25 anos, coragem e... alguma experiéncia profissional. No meu quarto dia de desempregado, fiz uma entrevista em uma grande empresa de telecomunicagdes. Em uma semana eu estava em treinamento. Em menos de um més, trabalhando. Nessa empresa, permaneci por dez meses. Pedi para sa emprego por ter passado em um concurso publico para trabalhe no mesmo local no qual trabalhei por intermédio da cooperative Prestei concurso concorrendo as vagas reservadas a pessoas a HISTORIAS DE BAIXA VISAO 45 deficiéncia. Fui aprovado, passei por todas as etapas e, em menos de dois meses, ja estava trabalhando. Em 2017, estou completando onze anos na empresa, realizando atividades diferentes daquelas que realizava na época da admissao. Mudangas na caminhada... Em 2008, uma avaliacao oftalmoldgica identificou a presenga de catarata em meus olhos. Passei pela cirurgia que, além da reti- tada do cristalino, corrigiu a miopia que eu trazia desde a infancia. Recuperado da intervengao médica, precisava me readaptar. As mudangas advindas da cirurgia, em interacao com a baixa visdo, transformaram significativamente minha percepeao visual. Passei a sentir uma forte inseguranca para me deslocar sozinho. Saia somente acompanhado, inclusive para ir ao trabalho. Estava casado ha um ano e, ha alguns meses, j4 estava morando em Porto Alegre. A falta de autonomia passava a me incomodar cada vez mais. Comecei a buscar informagées sobre o uso da bengala longa. Queria e precisava de uma alternativa que me propiciasse independéncia. Apés um ano de buscas e tentativas, consegui vaga para fazer aulas de orientagado e mobilidade. Em poucos meses, o uso da bengala me devolveu a possibilidade de sair sozinho. Era um recomego, uma gradual retomada dos meus préprios passos. Nos primeiros tempos, me sentia constrangido quando as pes- soas que me conheciam me viam usando a bengala. Afinal, 0 uso desse instrumento denuncia a deficiéncia visual. Ainda nao havia a bengala verde no Brasil. Assim, sem ser cego, eu precisava usar a bengala branca, um conhecido simbolo representativo da cegueira. Por vezes, me perguntavam se eu nao enxergava mais, o que me despertou para a importancia de falar sobre a baixa visdo e sobre o fato de que 0 uso da bengala nao é uma exclusividade das pessoas cegas. Naquela época, a despeito da solucao pragmatica trazida pela bengala, em se tratando de identidade, eu permanecia no entrelugar. Novas perspectivas de uma vida criativa... Depois de comegar a usar a bengala, j4 proximo dos meus 30 anos de idade, voltei a flertar com uma das maiores paixées da _~ — 4 oS minha vida: estudar. Na €poca, 0 QUE eU mais fazin \ | livre era ler. Eu devorava dezenas de audiolivros no Meu, interessar fortemente pela psicoterapia e, em espe, . Omega nalise. Com o total apoio de minha esposa, em 2 Pela graduacao em psicologia. Passei a fazer parte de am " Motes no qual a deficiéncia visual 6 uma possibilidade criati Ovo Cong um impedimento aos meus planos e realizagdes, Va e nag No principio, tive duvidas e inquietacdes acerca da a baixa viséo e a minha futura profissdo. Diante disso. 80 ene permiti experimentar e aprender. Assim, além das inves, Pre ng quais me dedico permanentemente dentro do mey as coterapéutico pessoal, também busquei conhecer mate deficiéncia visual. Encontrei pessoas com experiéncia; diversas, escutei suas historias e aprendi muito com cada um, is | Nesse novo caminho, vivencio raras situagées de prem | e discriminagao, principalmente devido a minha atual relacao | a deficiéncia visual. O entendimento dessa condigdo, oy aaa | ressignificagao do que é ter baixa visdo, foi algo determinant | para que eu modificasse a forma de me relacionar com 0 na a forma de me relacionar com a vida. Tudo isso me aproxima ¢: | muitas pessoas e novas portas seguem se abrindo. | Profissionalmente, além do meu profundo envolvimento coma | psicologia, passei a estudar e trabalhar com audiodescrigéo. Com | audiodescritor consultor, tenho atuado, principalmente, na revisdode roteiros de audiodescricdo para teatro e cinema. A deficiéncia visual se relaciona diretamente com esse trabalho, sendo um dos requisites para a atuagdo como consultor. Dentro desse contexto, assim como na psicologia, busco me desenvolver continuamente. Afinal, essa é uma area profissional pela qual também me encanto cada vez mais. Para encerrar essa breve narrativa, me dedico a escrever sobre uma das mais significativas experiéncias da minha vida: a patem dade. No ano de 2010, ainda durante o periodo gestacional, aque pessoas me perguntavam se eu nao temia que meu filho Bee deficiéncia visual. Algo que sempre respondi negativaments . razdo de entender que a vida é muito maior do que essa condi Ademais, as incertezas sobre as caracteristicas de um 5 a nascer nao sdo uma exclusividade de genitores com alg vis €ncia. Nao tive pais com deficiéncia e... ca estou! Tenho ba? Sag logos S das ma | HISTORIAS DE BAIXA VISAO 47 Em 2011, meu filho veio ao mundo. A partir de entao, realiza- mos, juntos, uma série de descobertas. Confesso que nunca tive qualquer receio em vivenciar a paternidade. Mantenho-me aberto a experiéncia. Meu envolvimento com as fungdes parentais sempre foi pleno. Algo bastante diferente do que muitas pessoas pensam, ao acreditar que minha esposa, por nao ter deficiéncia, precisa dar conta, sozinha, de todo o cuidado com nosso filho. Certa vez, minha esposa escutou de uma colega: - “ Que bom que tu ta aproveitando para fazer tuas caminhadas durante a gra- videz. Depois ficara dificil, ainda mais para ti, que tem o Rafael”. Essa fala revela uma profunda distorgao de conceitos. O senso comum infantiliza as pessoas com deficiéncia. Algo que esta pre- sente nesse discurso, que tenta igualar as reais necessidades de um bebé e as interagdes cotidianas com um sujeito adulto, pelo fato deste Ultimo possuir uma deficiéncia sensorial. Essa e tantas outras crengas s4o absolutamente incompativeis com a realidade. Meu envolvimento com a paternidade nao é bali- zado pela deficiéncia visual. A baixa visao é uma caracteristica que possuo. Portanto, tal caracteristica esta, evidentemente, presente em todas as interagdes com meu filho. Contudo, isso jamais represen- tou impedimentos. Em vez disso, experimentamos um aprendizado continuo, algo que pode ser comum a qualquer relacao parental. Meu filho tem a oportunidade de se desenvolver reconhecendo as diversas formas de existir no mundo. Desde 0 inicio, ele vivencia a saudavel diferenga existente entre os seres humanos. Para ele, antes de ser uma pessoa com baixa visdo, eu sou seu pai. E é dessa maneira que ele percebe as tantas outras pessoas com deficiéncia com as quais convivemos: como pessoas comuns. De minha parte, € claro que aprendo muito com o seu olhar, em todos os sentidos. Afinal, crescemos juntos nessa jornada criativa!

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