CAPITULO 4
BAIXA VISAO: (VER DE) UM
MODO DIFERENTE
Sobre o autor
Sou Rafael Braz, estudante de psicologia e audiodescritor con-
gultor. Latino-americano e brasileiro, nascido na cidade de Porto
Alegre, vim ver 0 mundo pelo lado de fora em agosto de 1979.
Crescido na periferia da regiao metropolitana da capital sul-rio-
-grandense, aprendi, desde a infancia, a admirar e respeitar a beleza
da diversidade humana. Sempre fascinado pelo conhecimento, levo
os estudos como uma das principais atividades na minha vida. Sou
amante da arte, em especial da musica, do teatro e da literatura.
Aficionado por biografias, sou atraido por livros, representacdes e&
conversas sobre histérias de vida. Ademais, me encanta viajar &
conhecer diferentes lugares e culturas. Aprender, me (des)envolver
e amar a vida constituem a esséncia dessa minha jornada.
aK
O come¢o...
Lembro que na minha infancia, muito antes de ter baixa visdo,
ja convivia com quest6es oftalmicas. Por volta dos meus cinco
anos de idade, minha mae percebeu 0 quanto eu e meu irmao mais
novo tinhamos a necessidade de ver de perto, tanto os objetos
do ambiente, quanto as imagens da televisdo. A partir disso, em
1985, conversando com sua irma que também estava atenta aos
comportamentos dos sobrinhos, minha mae decidiu nos levar ao
oftalmologista para uma consulta.
Com a avaliagdo oftalmolégica, fomos informados sobre o fato de
termos miopia. Assim, estava “golucionada” a questao, ou seja, bastava
criangas e pronto, resolvido. Feito
providenciar éculos para ambas as
isso, comegamos a usar 6culos sentindo um misto de estranheza eON
>
admirac4o. Estranheza, por estarmos levando no rosto um
de “adereco permanente”, € admiragao, Pelo “mundo” que — Spec,
enxergar, maravilhados que estavamos, com a percepeaig de g 0s 3
de contomos precisos e de horizontes mais distantes, Staheg
Entretanto, como meu irmao recém havia Completadg
anos de idade, o uso de éculos, no inicio, foi bastante com Quatry
para ele. O fato daquele dispositivo de corregao Pesado ma "Cad
no rosto de uma crianga tao pequena foi algo que dificuttoy rar
processo de adaptacao. E, mesmo usando hastes que ree
toda a parte posterior de suas orelhas, com frequéncia, ja
os 6culos durante suas brincadeiras. ava
Eu, que recém havia completado seis anos de idade, y
experiéncia diferente. Como ja estava lendo com fluéncig "i
aproveitar de forma intensa a delicia das letras e sentir plenamens
o sabor de aprender com os livros. E, como era maior que a
imo e tinha preferéncia por brincadeiras menos agitadas, RS
passei pelos percalgos que ele passava Com as quedas dos culos
Durante todo o restante da nossa infancia, consultamos Period.
camente com o mesmo oftalmologista. Houve uma ou outra Variacao
no grau da miopia, mas sempre dentro do esperado para a realidade
de criangas em desenvolvimento. Conforme cresciamos, atualizé.
vamos 0 grau de corregao com a compra de novos dculos e tudo
seguia bem, sem que tivéssemos qualquer dificuldade significativa,
Até mesmo porque, a experiéncia de usar Oculos para corrigir eros
de refrago (como na miopia) é totalmente distinta da experiéncia
de ter uma deficiéncia visual, tendo esta um carater permanente e
nao sendo passivel de corregdes ou melhora na acuidade visual.
Em 1992, depois de sete anos usando éculos, em uma de minhas
consultas rotineiras, o oftalmologista disse que havia verificado uma
“alteraco de fundo de olho”. Ele orientou minha mae a marcar para
mim uma consulta com outro oftalmologista, especializado em retina
(a parte do olho na qual ele havia identificado a alteragao). E disse
ainda que seria importante que meu irmao também consultasse 0°
pecialista, visto que tinhamos praticamente o mesmo historico clin
Em poucas semanas, estavamos no consultério do retino
logo. Avaliagao clinica e exames complementares fizeram pal :
da investigagao. Em seguida, 0 resultado: retinose pigm®” “
Bem, nunca tinhamos escutado esse termo e... as definigoes |
ivi umaHISTORIAS DE BAIXA VISAO 39
desdobramentos sentenciados pelo médico, qual um veredicto,
foram por nés introjetados e repetidos por muitos anos.
Viviamos tempos em que o discurso da suposta “normalidade”
se mostrava absoluto. O atual entendimento da baixa visao como
uma condigao que é parte de um modo legitimo de existir era inima-
ginavel. Na época, 0 pensamento vigente tinha foco na “doenca”,
com énfase no déficit da capacidade sensorial. Tudo isso, nos
orientava e nos fazia acreditar que seriamos, eu e meu irmao, para
sempre balizados por limitagdes. Algo como se o ser humano, seus
projetos de vida e seus éxitos dependessem do funcionamento de
um Unico sentido, em nosso caso, o da visdo.
Aessa altura dos acontecimentos, eu tinha treze anos de idade.
O cenério estava pronto: entrar na adolescéncia acompanhado do
“carimbo” que todo diagnéstico impde. As perspectivas apontavam
para uma perda progressiva da visdo, um processo lento e irreversivel
acaminho da cegueira. Diante disso, eu nao poderia ter planos muito
ambiciosos, a no ser, torcer para que descobrissem uma cura efe-
tiva para a tal da retinose pigmentar. A realidade percebida era dura,
implacavel e inexoravel. Tal percep¢do acompanhou e deixou marcas
em quase todas as minhas vivéncias por longos e dificeis anos.
As primeiras experiéncias com a baixa visao...
O processo de “aquisicao” da baixa visao se iniciou no mesmo
ano em que recebio diagnéstico da retinose pigmentar. Recordo que,
ainda no final do ensino fundamental, na sala de aula, comecei a ter
dificuldades para enxergar os contetidos que os professores escre-
viam no quadro. Outra dificuldade inicial, também na escola, era ler
as provas - na época mimeografadas - quando eu recebia cdpias de
baixa qualidade (com pouco contraste entre as letras e 0 papel branco).
Era cada vez mais comum pedir emprestado aos colegas os
seus cadernos. Em casa, na maioria das vezes, minha mae me
auxiliava, lendo em voz alta os contetidos para que eu os copiasse
em meus cadernos. Essas praticas se mantiveram durante o ensino
médio e, com o suporte que eu recebia, meu desempenho escolar
foi muito pouco prejudicado. Assim, fui avancando nos estudos
sem nunca ter precisado repetir nenhuma série, em nenhum nivel.>
40
Te
No ambito escolar, quase sempre silenciei sobre a deficiéngis
visual. Meus colegas e professores sabiam, mas néoa Entendian,
Creio que eu mesmo nao a entendia, aliés, eu sequer me com re.
endia. Agora, olho para tras e vejo 0 ‘duplo entrelugar” que ¢
um adolescente com baixa visdo, ocupava: estava entre o ver e a
nao ver, e, ao mesmo tempo, entre a infancia segura Perdida ea
temida adultez vindoura.
Ser 0 que se consegue set...
Em 1994, atraido pela tecnologia digital e por computadores,
ingressei no ensino médio técnico em eletrénica. Estava comecando
a estudar em Porto Alegre, vindo do ensino fundamental cursado
em Viamao, municipio da regiao metropolitana, no qual residi dos
meus 4 aos 28 anos de idade. A realidade de cursar o ensino mé-
dio na capital, algo que eu ha muito desejava, me causava tensao
€ ansiedade. A quantidade de contetidos, o ritmo do ensino e o
nivel de dificuldade eram muito superiores aos da minha escola
anterior, 0 que potencializava as dificuldades enfrentadas em razao
da deficiéncia visual.
Nas primeiras semanas de aula, em uma disciplina técnica, eu
Nao estava conseguindo ler os contetidos no quadro. Tal dificuldade
me impedia de compreender bem as explicagdes da professora.
Como ainda nao havia me aproximado dos Colegas, tinha vergonha
de pedir cadernos emprestados, Porque precisaria, para isso falar
a algum desconhecido sobre 0 “meu problema de visdo” (expressao
inadequada, que usei por muito tempo para me referir baixa visdo)
Apés uma das aulas dessa disciplina, sai da €scola sem com re.
ender a matéria, confuso e frustrado. Cheguei em Casa sentinde, me
muito triste e, chorando, procurei minha mae para conversarmes
Disse a ela que nao retornaria a escola, afinal, de que adiantaria
conseguir Cursar 0 ensino médio com toda aquela dificuldade. S
depois, nao conseguiria trabalhar, em razdo de nao enxergar o a ,
ciente para isso. Jamais esqueco desse dia, da postura acolhedora,
Continente e afetuosa de minha mae e do quanto me senti compreen.
dido e fortalecido para seguir em frente. As dificuldades continuarary,
presentes, mas n&o desisti, em vez disso, resisti e avancei,HISTORIAS DE BAIXA VISAO at
Aos poucos, fui me aproximando dos colegas e fazendo algu-
mas poucas amizades. Como na escola anterior, retomei a rotina
de pegar cadernos emprestados para copiar as matérias. Assim, fui
melhorando meu desempenho e superando as médias com notas
mais altas. Entretanto, lidar com a dificuldade de reconhecer as
pessoas 4 distancia era muito mais dificil do que assumir que nem
sempre enxergava 0 que estava escrito no quadro. Isso fez com
que eu langasse mao de uma série de estratégias para ocultar dos
colegas, as dificuldades que me constrangiam.
Fingir amarrar os cadargos ou fingir telefonar para ter distan-
cia e tempo de forcar a visdo para reconhecer os colegas eram as
estratégias que eu mais usava. Como é esperado de um adoles-
cente, eu temia nao ser aceito pelo grupo, ser visto como estranho
ou diferente. Eu era um adolescente, eu apenas queria ser igual
a todos. Queria me sentir parte do grupo e, na maioria das vezes,
me senti assim. Afinal, nos identificavamos em varios aspectos,
assuntos e preferéncias.
Por vezes, um ou outro colega fazia alguma piada relacionada
@ minha deficiéncia visual. Assim, tanto pelo desejo de aceitacao,
quanto pela necessidade de me proteger desse tipo de piada é que eu
silenciava sobre o assunto. Fazia de conta que nao era nada impor-
tante, que era algo facilmente contornavel e, até mesmo, transitério,
considerando que, por muitos anos, de fato, eu mesmo acreditava
que um dia haveria uma “cura”, algo que me permitisse voltar a en-
xergar plenamente. Posso afirmar que fui bem sucedido com minhas
defesas, pois nunca sofri bullying. Piadas e situacdes discriminatorias
foram quase sempre pontuais, jamais coletivas ou sistematizadas.
Mais para o final do ensino médio, certa vez, no laboratorio,
pedi ao professor que lesse para mim, os cédigos escritos num
componente eletrénico. Eu estava sem meus colegas de grupo por
perto e precisava concluir um circuito. O professor, que convivia
comigo desde 0 inicio do curso e nunca havia percebido a minha
deficiéncia visual, demorou para acreditar que eu nao enxergava
aqueles caracteres minusculos. Pensou que eu estava brincando e
Perguntou “como eu fazia isso”. Lembro que sorri e disse a ele que
@ questao correta era “como eu ‘nao’ fazia isso”. Ele me atendeu
No que eu precisava e depois pediu que eu 0 acompanhasse até
uma determinada sala da escola.ae
armos. aguardei na recep¢ao enquanto 9 10
4ria em uma espécie de Subsalg **
ee funciona!
om uma ; ;
cana iria conversar Comigo e vo m
seguida, me disse que ela iria co! ig Itoy ,
laboratorio. Em poucos minutos a funcionaria me chamou, me
jabor: arcas perguntas sem demonstrar qualquer interagge z
Se e “me liberou”. Nada se originou dessa tentativa a
de intervengo e essa escola, assim como a anterior, jamais -
envolveu, se dispés ou ofereceu recursos humanos e tecnolégicos
para tentar - ao menos - minimizar as dificuldades impostas Delo
ambiente ao meu processo de aprendizagem e desenvolvimento,
Experiéncias com o trabalho...
No Ultimo ano do curso técnico, tive minha primeira experiéncia
laboral. Era necessario realizar o estagio obrigatorio e ingressej
em uma pequena empresa de informatica. A acuidade visual que
eu possuia me permitia desenvolver, sem dificuldades, a grande
maioria das atividades. Montava computadores, trocava placas,
instalava softwares, fazia configuragdes, etc. Algumas atividades
bastante familiares que, fazia dois anos, eu ja realizava em casa.
Sobre a experiéncia em casa, lembro que, nas primeiras semanas
usando meu computador, descobri que era possivel alterar as cores
da tela, configurando um modo que me permitia uma excelente visu-
alizagao dos dados. Passei a usar as telas com o fundo na cor preta
e todas as letras na cor branca. O contraste propiciado por tal confi-
guracao me possibilitava ler tudo, sem as dificuldades enfrentadas até
entao, durante as leituras que realizava nas cores Padrao do sistema.
/ O aspecto da tela do computador despertava a curiosidade de
amigos e parentes, Todos perguntavam o motivo daquela Configuracao
tao diferente. Eu, sem qualquer dificuldade, Prontamente lhes expli
cava. Contudo, somente em casa eu me sentia 4 vontade Para cal
tal configuragao. No estagio, apenas nos momentos em que cure
encontrava sozinho na sala de trabalho é que eu usava O alto contra =
Eu sentia vergonha daquela estética diferente do “padrao”, Senti,
necessidade de me proteger da exposigao que seria ser visto ae
outros trabalhando com uma configuragao diferente. Preferia 4
dar a oportunidade de me perguntarem o porqué daquilo. Isso me
faria ter de falar sobre a deficiéncia visual, algo que me fazia sentirHISTORIAS DE BAIXA VISAO 43
diminuido como pessoa. A alternativa que eu tinha, sempre que havia
alguém presente, era trabalhar com a configuragdo padrao, mesmo
tendo dificuldades para ler na tela. A marca do entrelugar da baixa
visdo se mantinha presente, manifestando-se no meu desejo de
aceitacdo e pertencimento ao grupo das pessoas sem deficiéncia.
Depois de quase oito meses, conclui com éxito meu estagio.
Aprendi muito e sentia que queria trabalhar com informatica. Eu
tinha 19 anos, estava formado no curso técnico em eletrénica e
queria trabalhar. N&o planejava cursar uma faculdade, pois sentia
que seria impossivel, em razao da deficiéncia visual. O ensino médio
ja tinha sido muito complicado e, com isso, eu estava convencido
de que o nivel superior nao era para mim.
Ademais, a situagdo financeira de minha familia era bastante
complicada. Ainda que eu quisesse estudar mais, precisava 0
quanto antes trabalhar. Precisava de dinheiro e, assim, comecei
a procurar uma ocupa¢ao. Com o suporte de minha mae, busquei
0 atendimento de uma agéncia publica de empregos. Relutei bas-
tante para me cadastrar como candidato as vagas destinadas a
pessoas com deficiéncia. Eu dizia que nao queria ser identificado
pela deficiéncia visual. Eu nado queria “levar esse rétulo escrito na
testa”, essas eram as minhas palavras na época.
Uma vez cadastrado para concorrer as vagas reservadas as
pessoas com deficiéncia, eu visitava a agéncia periodicamente. Nao
tinhamos telefone e precisava me deslocar do municipio vizinho,
onde morava, até Porto Alegre para saber se havia vagas. Foram
quase trés anos fazendo entrevistas em diversas empresas. Nesse
tempo todo, somente encontrei gente despreparada, preconceito
e exclusdo. Foram quase trés anos participando de processos
seletivos frustrantes. Escutei muitos “ndos”, muitas desculpas e
justificativas que tentavam dar conta de que eu nao seria capaz
de realizar atividades que me exigiriam o pleno funcionamento do
sentido da visdo. Algo que eu nao compreendia na época, visto que
as vagas eram oferecidas justamente a pessoas com deficiéncia.
Durante esse tempo procurando emprego, fiz alguns cursos
de informatica. Também estudei inglés por mais de dois anos. Em
ambos os contextos, repeti a pratica de silenciar sobre a deficiéncia
visual, fazendo atividades com bastante dificuldade e desgaste
emocional. Segui me protegendo para que nao me perguntassemi
5 4S USA-
informatica. EU tinha
sobre a minha condigdo, usando estratégias semelhante:
das durante o ensino médio e 0 estagio em i
i oa com
22 anos de idade e ainda nao me reconhecia como pess'
deficiéncia. Nao compreendia esse modo de serno mundo. Vinee
presente imediato, apenas um dia de cada vez, sem perspt
lanejar um futuro. ;
“e rem 2001, no final do ano, fui chamado para mais ua
vista de emprego. Dessa vez era diferente, pois se tratava uma
cooperativa que oferecia vagas apenas para pessoas Se oe
€ncia. O proceso seletivo era voltado para esse publico. As vagas
eram para o servigo de teleatendimento de uma empresa Publica,
Aatividade era parcialmente terceirizada. Por melo da cooperativa,
as pessoas com deficiéncia ocupavam esses postos de trabalho.
Passei pelos processos, entrevistas, testes e demais etapas. Em trés
dias eu estava em treinamento. Em vinte, eu estava trabalhando.
Nesse local de trabalho, permaneci por trés anos e meio. Cresci,
me desenvolvi, conheci gente. Convivi com centenas de pessoas,
atendi milhares de clientes. Interagi com dezenas de colegas com
diferentes deficiéncias e, com isso, pude comegar a olhar com
normalidade para a minha propria condig&o de pessoa com baixa
visao. Esse olhar foi o ponto de partida para que eu pudesse me
compreender e me reconhecer. Apartir disso, comecei a mudar a
forma de interagir com as pessoas. Nesse ambiente de trabalho,
conheci a pessoa que hoje é minha esposa. Construi amizades
que levo por toda a vida. E, também nesse contexto, pela primeira
vez, pude sonhar e planejar um futuro.
Com o término do contrato entre a cooperativa e a empresa
publica, eu e meus demais colegas com deficiéncia perdemos a
nossa ocupagao. O ano era 2005, ja se falava um pouco mais nas
vagas de trabalho para pessoas com deficiéncia. Eu tinha 25 anos,
coragem e... alguma experiéncia profissional. No meu quarto dia
de desempregado, fiz uma entrevista em uma grande empresa de
telecomunicagdes. Em uma semana eu estava em treinamento.
Em menos de um més, trabalhando.
Nessa empresa, permaneci por dez meses. Pedi para sa
emprego por ter passado em um concurso publico para trabalhe
no mesmo local no qual trabalhei por intermédio da cooperative
Prestei concurso concorrendo as vagas reservadas a pessoas
aHISTORIAS DE BAIXA VISAO 45
deficiéncia. Fui aprovado, passei por todas as etapas e, em menos
de dois meses, ja estava trabalhando. Em 2017, estou completando
onze anos na empresa, realizando atividades diferentes daquelas
que realizava na época da admissao.
Mudangas na caminhada...
Em 2008, uma avaliacao oftalmoldgica identificou a presenga
de catarata em meus olhos. Passei pela cirurgia que, além da reti-
tada do cristalino, corrigiu a miopia que eu trazia desde a infancia.
Recuperado da intervengao médica, precisava me readaptar. As
mudangas advindas da cirurgia, em interacao com a baixa visdo,
transformaram significativamente minha percepeao visual. Passei
a sentir uma forte inseguranca para me deslocar sozinho. Saia
somente acompanhado, inclusive para ir ao trabalho.
Estava casado ha um ano e, ha alguns meses, j4 estava morando
em Porto Alegre. A falta de autonomia passava a me incomodar cada
vez mais. Comecei a buscar informagées sobre o uso da bengala
longa. Queria e precisava de uma alternativa que me propiciasse
independéncia. Apés um ano de buscas e tentativas, consegui vaga
para fazer aulas de orientagado e mobilidade. Em poucos meses, o
uso da bengala me devolveu a possibilidade de sair sozinho. Era
um recomego, uma gradual retomada dos meus préprios passos.
Nos primeiros tempos, me sentia constrangido quando as pes-
soas que me conheciam me viam usando a bengala. Afinal, 0 uso
desse instrumento denuncia a deficiéncia visual. Ainda nao havia a
bengala verde no Brasil. Assim, sem ser cego, eu precisava usar a
bengala branca, um conhecido simbolo representativo da cegueira.
Por vezes, me perguntavam se eu nao enxergava mais, o que me
despertou para a importancia de falar sobre a baixa visdo e sobre o
fato de que 0 uso da bengala nao é uma exclusividade das pessoas
cegas. Naquela época, a despeito da solucao pragmatica trazida pela
bengala, em se tratando de identidade, eu permanecia no entrelugar.
Novas perspectivas de uma vida criativa...
Depois de comegar a usar a bengala, j4 proximo dos meus 30
anos de idade, voltei a flertar com uma das maiores paixées da_~
—
4 oS
minha vida: estudar. Na €poca, 0 QUE eU mais fazin \
|
livre era ler. Eu devorava dezenas de audiolivros no Meu,
interessar fortemente pela psicoterapia e, em espe, . Omega
nalise. Com o total apoio de minha esposa, em 2 Pela
graduacao em psicologia. Passei a fazer parte de am " Motes
no qual a deficiéncia visual 6 uma possibilidade criati Ovo Cong
um impedimento aos meus planos e realizagdes, Va e nag
No principio, tive duvidas e inquietacdes acerca da
a baixa viséo e a minha futura profissdo. Diante disso. 80 ene
permiti experimentar e aprender. Assim, além das inves, Pre ng
quais me dedico permanentemente dentro do mey as
coterapéutico pessoal, também busquei conhecer mate
deficiéncia visual. Encontrei pessoas com experiéncia;
diversas, escutei suas historias e aprendi muito com cada um, is |
Nesse novo caminho, vivencio raras situagées de prem |
e discriminagao, principalmente devido a minha atual relacao |
a deficiéncia visual. O entendimento dessa condigdo, oy aaa |
ressignificagao do que é ter baixa visdo, foi algo determinant |
para que eu modificasse a forma de me relacionar com 0 na
a forma de me relacionar com a vida. Tudo isso me aproxima ¢: |
muitas pessoas e novas portas seguem se abrindo. |
Profissionalmente, além do meu profundo envolvimento coma |
psicologia, passei a estudar e trabalhar com audiodescrigéo. Com |
audiodescritor consultor, tenho atuado, principalmente, na revisdode
roteiros de audiodescricdo para teatro e cinema. A deficiéncia visual
se relaciona diretamente com esse trabalho, sendo um dos requisites
para a atuagdo como consultor. Dentro desse contexto, assim como
na psicologia, busco me desenvolver continuamente. Afinal, essa é
uma area profissional pela qual também me encanto cada vez mais.
Para encerrar essa breve narrativa, me dedico a escrever sobre
uma das mais significativas experiéncias da minha vida: a patem
dade. No ano de 2010, ainda durante o periodo gestacional, aque
pessoas me perguntavam se eu nao temia que meu filho Bee
deficiéncia visual. Algo que sempre respondi negativaments .
razdo de entender que a vida é muito maior do que essa condi
Ademais, as incertezas sobre as caracteristicas de um 5 a
nascer nao sdo uma exclusividade de genitores com alg vis
€ncia. Nao tive pais com deficiéncia e... ca estou! Tenho ba?
Sag
logos
S das ma |HISTORIAS DE BAIXA VISAO 47
Em 2011, meu filho veio ao mundo. A partir de entao, realiza-
mos, juntos, uma série de descobertas. Confesso que nunca tive
qualquer receio em vivenciar a paternidade. Mantenho-me aberto
a experiéncia. Meu envolvimento com as fungdes parentais sempre
foi pleno. Algo bastante diferente do que muitas pessoas pensam,
ao acreditar que minha esposa, por nao ter deficiéncia, precisa dar
conta, sozinha, de todo o cuidado com nosso filho.
Certa vez, minha esposa escutou de uma colega: - “ Que bom
que tu ta aproveitando para fazer tuas caminhadas durante a gra-
videz. Depois ficara dificil, ainda mais para ti, que tem o Rafael”.
Essa fala revela uma profunda distorgao de conceitos. O senso
comum infantiliza as pessoas com deficiéncia. Algo que esta pre-
sente nesse discurso, que tenta igualar as reais necessidades de
um bebé e as interagdes cotidianas com um sujeito adulto, pelo
fato deste Ultimo possuir uma deficiéncia sensorial.
Essa e tantas outras crengas s4o absolutamente incompativeis
com a realidade. Meu envolvimento com a paternidade nao é bali-
zado pela deficiéncia visual. A baixa visao é uma caracteristica que
possuo. Portanto, tal caracteristica esta, evidentemente, presente em
todas as interagdes com meu filho. Contudo, isso jamais represen-
tou impedimentos. Em vez disso, experimentamos um aprendizado
continuo, algo que pode ser comum a qualquer relacao parental.
Meu filho tem a oportunidade de se desenvolver reconhecendo
as diversas formas de existir no mundo. Desde 0 inicio, ele vivencia
a saudavel diferenga existente entre os seres humanos. Para ele,
antes de ser uma pessoa com baixa visdo, eu sou seu pai. E é dessa
maneira que ele percebe as tantas outras pessoas com deficiéncia
com as quais convivemos: como pessoas comuns. De minha parte,
€ claro que aprendo muito com o seu olhar, em todos os sentidos.
Afinal, crescemos juntos nessa jornada criativa!