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A Construção Do Caso Clínico em SM-coringa 2000
A Construção Do Caso Clínico em SM-coringa 2000
Carlo Viganò
ção de outra maneira. Não era mais um lugar de onde fugir. Teve de se pergun-
tar: o que estaria fazendo ali? Até então ele sabia por que estava ali: estava ali para
fugir.
A essa altura, a certeza havia desaparecido. Começou, então, a traba-
lhar. Esse exemplo é para mostrar que a construção acontece bem antes da inter-
pretação. A interpretação vai acontecer quando o sujeito começar a colocar a sua
pergunta para alguém. Nessa instituição, chegou-se ao ponto de se dizer que lá
dentro é proibido interpretar. Isso numa instituição que é mantida por psicana-
listas... A interpretação tem um outro lugar; não aquele da instituição. É o lugar
onde o paciente deseja, caso queira apresentar a sua demanda de análise.
Chegamos ao quarto ponto: a construção como sendo um eixo impor-
tante do trabalho de equipe. Porque, de fato, se abandonarmos o saber do mes-
tre sobre a saúde mental, como vamos substituí-lo? Acontece geralmente, den-
tro do âmbito da saúde mental, que o saber do mestre é substituído pelo debate
democrático. Vários profissionais – enfermeiros, médicos, psicólogos, assisten-
tes sociais, psiquiatras e também, eventualmente, os educadores e a família – se
submetem à autoridade do mestre, que diz o que deve ser feito. Esse caminho é
inevitável; nós não podemos regredir ao saber do mestre. Só que a construção é
um tipo de trabalho que pode levar, por meio desse debate democrático, a um
ponto de orientação, a uma autoridade, a um ponto que faça a equipe tomar uma
decisão. Minha proposta é que seja a construção do caso a produzir uma nova
autoridade, que eu chamaria de autoridade clínica.
A construção do caso, dentro do grupo, é um trabalho que tende a tra-
zer à luz a relação do sujeito com o seu Outro, portanto tende a construir o diag-
nóstico do discurso e não do sujeito. A construção que foi feita por aquele
grupo, que resolveu ir até a cidade e tomar aquela atitude, foi um diagnóstico de
discurso. Percebeu-se que a relação do sujeito com o Outro estava presa à ideia
de ter que fugir. Não é um diagnóstico do sujeito, mas é um diagnóstico do dis-
curso daquele momento. Não é um diagnóstico que afirma que ele é neurótico,
psicótico, etc.. A construção serve para operar o deslocamento do sujeito dentro
do discurso. Quando aquele rapaz se pergunta sobre o que os operadores que-
rem dele, está dentro do discurso. Há, portanto, uma ligação entre ele e os ope-
radores.
Antes, o sujeito não estava no discurso, o seu Outro era somente os
muros da Instituição. Essa construção é escandida em dois tempos: num primei-
ro momento, ela tem que situar em qual discurso do sujeito se é colocado. Num
segundo tempo, procura-se, então produzir um projeto que tenha objetivo. No
primeiro momento, declara-se o seguinte: percebemos que não existimos para esse
rapaz; para ele só existem os muros. No segundo tempo, o projeto é: vamos até a cida-
de procurá-lo e mostrar que nós existimos. Há, portanto, uma escansão lógica do
tempo, do ver para compreender, onde o saber não precede a construção, mas
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A construção do caso clínico em Saúde Mental
se segue à construção. Seria um saber que precede o saber do mestre, que teria
declarado: Esse rapaz é um psicótico perigoso; por favor, corram e tragam-no de volta.
Esse tema da construção tem pelo menos dois aspectos: o primeiro
considera os sujeitos com os quais lidamos; o segundo é inerente ao tema das
várias profissões que eu citei antes. Em relação ao primeiro, os sujeitos com os
quais lidamos nos serviços, em sua grande maioria, não têm condições de se
representar dentro do próprio discurso; eles são privados mesmo de uma pala-
vra elementar. A palavra, para eles, serve somente para designar as identificações
imaginárias, sendo isso que constitui o seu mal-estar fundamental. O problema,
então, é: como os sujeitos, partindo de uma posição tão pouco autêntica, pode-
riam construir uma relação na qual haja a implicação de uma representação? É
necessário reativar a relação do sujeito com o Outro, de tal forma que essa rela-
ção possa se sustentar na realidade. Estamos, agora, dentro de um campo que
não é previsível a priori. Estamos, também, num tempo que precede o ato.
De fato, a construção permite uma margem de previsão, mas o efeito
das intervenções só poderá ser avaliado depois das coisas realizadas. Portanto,
construir escansões que considerem esses resultados é já um primeiro processo
de avaliação ou, se quiserem uma primeira avaliação do processo. Ela se caracte-
riza pela intersubjetividade que apresenta, joga a interrogação do grupo de tra-
balho sobre o paciente, sem reificá-lo, como um objeto conhecido, mas procu-
rando sempre os caminhos de uma possível subjetivação.
Em relação ao outro aspecto, o das profissões, gostaria somente de
sublinhar que esse trabalho de construção opera um corte transversal em todas
as figuras profissionais. Ele interroga o lugar que elas ocupam em relação ao
paciente, alarga as fronteiras profissionais e os lugares de saber fundam-se com
o trabalho, onde o trabalho constrói um saber possível em torno daquele sujei-
to, naquele momento.
Esse corte vai ativar o desejo, o de ocupar aquele lugar, para aquele
sujeito, que não é garantido pelos papéis, mas que pode ser ocupado somente
com o próprio risco, com o desejo de se arriscar. Trata-se de um novo percurso
profissional que, a partir do coletivo, tem a função de motor, para lançar nova-
mente o desejo de cada membro da equipe, evitando, inclusive, a segregação –
que, desta vez, é das profissões – em relação àquilo que juridicamente, estamos
autorizados a fazer. Não gostaria, com isso, de lhes trazer uma visão idílica da
equipe, mas somente de sublinhar possibilidades que, certamente, no momento,
ainda detêm muitos problemas, tais como as diferenças hierárquicas ou as dife-
renças de remuneração. Não se trata de subestimar esses últimos aspectos, mas
evitar que se tornem álibis paralisantes, em vez de problemas a serem enfrenta-
dos. A partir dessa forma de se pensar a construção do caso, dentro do grupo
de trabalho, acredito que tenha então respondido ao tema da democracia. A deci-
são não é tomada pela maioria, mas se impõe a partir do saber que é extraído do
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Carlo Viganò
NOTAS
1 Conferência proferida no Seminário de Saúde Mental, Psiquiatria e Psicanálise; na AMMG, em
20 de ago 1997.
2 Precludere (ital): bloquear, barrar; preclusão (port): perda de uma determinada faculdade processual
civil, ou pelo não exercício dela na ordem legal, ou por haver-se realizado uma atividade incompa-
tível com esse exercício, ou ainda por já ter sido validamente exercitada. (Novo Dicionário
Aurélio).