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Cestall- lerapia eabeibie, Tat b yaaa bas GP - Beast Catatogato na Publicaco ‘Sndrcato Nacional dos Editores de Livros, as Gestai-terapla + conceitas fundamentais / organtzacdo Lillan Meyer Frio e Kanna Qiasima Futumitsu, = 1, ed. ~ So Paulo : Sormus, 2014, (Gestalt-terapla: fundamentos e pidticas; 2) Inte prog af ISDN 975-95-123.0602 1. destassteravia 2, Pricclogua 3, Pskcologia infantil I, Fraxdo, (aur eye Th faust, Kanna Olina, TL Sie, (00-616.89143, (COU: 159,964.32 were Compre em lugar de fotocopir. Gants teal que voe dD por um Ino recompensa seus dutares feos coreids 4 pindumt may sobre o tema: ancectiva seus eitotes & evvsimendar trades € pubbiear ‘outtay obras sebee 0 anya: ce page fos bytes per estocar e levar até woe tivt0s Pata a sus informasay @.0 eu entreteniment Cada tea ae vad a pris ox ope no autora 3 ye i Hane 9 NE ‘ecopada a mutar a poco intelectual de seu pate, 2 Gestalt-terapia CONCEITOS FUNDAMENTAIS LILIAN MEYER FRAZAO- KARINA OKAJIMA FUKUMITSU. LORGANIZADORAS] 5. i Ulan Meyer Frazioe Kanna oy FERNANDES, M.A*Mas nés, quando é gue. Bica acerca da existénciar™ Unna mediacio, Lan Anais do XI Encontro oy feces fica, v, 1, 2005, p. 145-69, ° Houatss, A. Dicionério Hox ir ie oun 4 Te pots. sb ae, Mitten, A. © drama da crian i: is “vida emocional dos hos. So Paulin Seema 96 "ne PERLS, F Gestale-terapiaexplicads Sto Paulo: Sumas, 1974, re Gssaleterapia e potencialidades hamanas”. In: Stevens, 0, eto 4 G ‘ate Sio Paulo: Summus, 1977b,. 19.25, ee = “Quatro palestras”, In: Facan, Js ‘c0ria tdnicase aplicagées. Rio de jane » A abordagem, Bestiltica e testemunha, nabara Koogan, 1988, Perts, Fs Herrerin ' P. Gestalt-tenapia. Sao Paulo: Raneano, J. Vade-mécuum de Gestalt-terapia: conceitos basics. 2006. Yonter, G.M. Proceso, 162 9 uma Indiferen¢a crave ica ‘V0 sibilidade prag! aires Ponétodo fenomenolog FNS TUDEE A a S i da. Ele se dispoe para “O real ndo est4 nem na saida nem na chega\ gente é na travessia.” (Rosa, 1994, p. 53) dbola orien- Ha muitos anos me contaram uma pequena Baribo oo tal que até hoje guardo na lembranga. Agora mio me Precisar sua referéncia exata. uaa, mé ne Seno aa auardado apenas o sentido da historia € nada amas Temo in clusive que, por seu carter oral, eu va a a Ponto ao conto. Nesse sentido, cabe alertar q) S€ Segue tem partes inventadas. ; ‘navel diseussio sobre Certa vez, diante de uma incermind sroal, os diseipatos como chegar ao verdadeiro caminho esprit ce foram consultar seu mestre. Ele esr | ae ois da Sr anc a ai 163 ems ™m sua mente para © procedia ados” i Ge oes chaleira, fogo, agua, dis- n° haviao constrangimento luilidade da continuidade. Eis cf it ipulos, InterrogacGes e mesti re. da interrupcao, apenas a tranqi Se O mestre owe 10 esforgo que seguimos a ciam seu tral que a dguae es balho. Clic, clic, clic~a deuce a chaleira ini- fava em pequenas bolbinh: as é nines a fazer cécegas na chaleira; j4 chaleira 4gua), fazia seu trab; the mene ance & com alho. i gosto as miudezas desse inicio di vena apres fa € a dpua, El le conversa entre i: - Ele sempre pen: aches: trabalho di i Nene poe ete fa ona : fazia bem inane cudir a chaleira, por outro lado a chaleira wa anter-se em seu fi ie Pp u firme ésit i Seua brine b Propésito de d " leixar es livremente em seu interior. Diante desse cai Oo mes! , slo whom an ve estava pronto para responder ao discipulo: 40”. Nesse instante, o primeiro disci 1 mm rae , 0 primeiro discfpulo expir: G40, enquanto sorri. Porém, é da natureza das ren 1, inter- 164 ceitos fundamentals go Se insinuow “Mas, mestre, cer, que segui- ava . foi assim que ela lo inspirando, disse: 1 Ea ojo desapego, do deixar ACO8k 2” Choc, cloc, cloc — a agua ja est borbulhar, enquanto 4 chaleira dava pequenos pre o fogo. OS movimentos da chaleira faziam jd sentisse 0s efeitos de seu trabalho. leira, agua © fogo estavam “entre- + inexoravelmente A proposicao do mestre de fazer e ensinamento, o mestre olha para a ulo e da sua resposta: “Tens razao”. mas nao em sor- solavancos SO! aque 0 foR05 Por Sua VE%> Naq -lagados” cha. Diante de mais ess! interrogacao de seu discip © segundo discipulo expira a interropacao, tava ficando quente € 2 interroga- por sobressalto, inspira o terceiro ham uele momento, chal risos. Afinal, a conversa est gio jd era enorme, quando, discipulo: “Mas, mestre, nao € possivel que os dois ten! razao! Eles propdem coisas opostas!” Tendo feito seu traba- tho, 0 fogo agora precisava ser apagado. Jé a chaleira ¢ agua estavam prontas para receber um novo elemento e perfumar- -se em sabor capim-limao. Tudo corria bem, o mestre estava ¢ respondeu sorrindo “Tu também tens ra- ra hora de apreendendo mais esse ensinamento, definitivamente para a interroga¢ao: zi0”, Diante disso, a interrogaga° entendeu que ¢ noes. lugar ao perfume das inver a interrogacao sobre onde e deixou e acabei des- apagar-se para dar Durante a escrita deste texto, poderia estar a parabola original no my cobrindo sua procedéncia: ela esté descrira no livro Um cami- nho com o coragao, de Jack Kornfield (1993). Quando a en- contrei, j4 terminara de escrevé-la segundo minha meméria, titui-la, optei por manter a versio inven- mas, em vez de subs ado ocultar a versio original, que transcrevo a tada, sem cont 16s {an Meyer Haz%0 © Karina Okajima Fukumitsa (orgs) 0 fomar essa decisio, ctr segue ‘io havia percebido quanto tiga criativa, tema que vinhg estadand para preparar este texto, ja estavam em mim com ‘ 10 uma possibilidade metodoldgica = na qual as dife verea da indi as proposigdes enciagdes Antes de seguir com mais cost historta, compartilho a verso original da pardbolas podem habitar um mundo commun, Dor disciputos de um mestre discutiam sobre o modo correto de *wenclar a pritica, Como ni conseguiram resolver o conti, foram ao mestre, que estaya sentado entre um grupo de outros Aitscipulos. Cada um dos dois apresentou 0 seu ponto de vista, 0 Primciro falou sobre o caminho do esforso. — Mestre — disse ele —, no é verdade que precisamos fazer murto esforyo para abandonar nossos velhos habitos e modos in- sonsctentes de ser? Precisamos fazer um grande esforgo para falar com honestidade, para estarmos atentos ¢ presentes. A vida espiri- tual no acontece por acaso, mas apenas quando a ela dedicamos um esforgo de todo coragio. O mestre respondeu: —Tens razio. O segundo discfpulo perturbou-se e disse: — Mas, mestre, entio o verdadeiro caminho espiritual nio 0 do desapego, da entrega, de deixar que 0 TAO, 0 divino, se mostre Por si mesmo? Acho que nao é através do esforgo que progredimos, Pois nosso esforgo esti baseado nos nossos apegos € 0 NOSso €g0- A esséncia do verdadeiro caminho espiritual é viver. Segundo a frase: 1io se faga a minha vontade, mas a vossa”. No éesse ocaminho? E mats uma ver o mestre respondeu: — Tens raziio. Um terceiro discipulo, ouvindo a conversa, mnterveiot 166 i ae Gestalt-terapla ~ Conceltos fundamentais _ Mas, mestre, milo € possivel que ambos tenham razio, © mestre sorriu e The respondeu: —Também tu tens razdo. (Kornfield, 1993, p. 41) Ao ler as duas versdes, percebo que elas partilham alguns aspeetos, enquanto diferem substancialmente em ures Fara que apresenta-las no mesmo texto? O que é possivel apreen- der com 0 processo de acompanhar suas semelhangas ¢ suas diferencas? A primeira pergunta questiona a finalidade de vé- las lado a lado, enquanto a segunda interroga o que se apre- senta quando vemos versdes. Em poucas palavras, ouso res- ponder: ao vé-las em conjunto, é possivel perceber o que nelas se assemelha — permitindo-nos entender que partilham de uma mesma raiz - sem perder de vista o que nelas varia ~ permitindo-nos acompanhar seus distintos modos de propor uma reflexdo. Vé-las como conjunto nos faz apreender que é possivel pensar em um estado germinal de onde ambas par- tem, ainda sem ter definido sua exata trajetdria. Esse estado de pré-diferenciagdo exige um continuo cultivo, requer que metodologicamente optemos por permanecer na travessia, ou, parafraseando Guimaraes Rosa (1994), no real. Em uma versao o mundo se apresenta a0 mestre eoquan- to este apreende dele as respostas precisas para seus discipu- los. Na outra, o mundo se apresenta na eloquéncia argumen- tativa dos discipulos explicitando com riqueza de detalhes 0 que haviam entendido. Colocando essas vers6es lado a lado, Poderfamos perguntar: de que forma devemos apreender 0 mundo? Em sua simplicidade? Em sua complexidade? O mes- tte responderia que temos razao, ele pode ser apreendido tan- to na simplicidade quanto na complexidade. © que de fato 167 tLihan Mayer Frnzdo e Karina Okayima Fukumitsu (orgs) importa para o presente capitulo €m conjunto nos faz interro, a 'espos- {as sio as mesmias. Ter set ni ter resposta nenhuma ~ estamos, ; Portanto, no vazio esté. Fil. Porém, 0 vazio que OS permite fabricar mais © mais per. tm vario féri, Para que as versdes pos, 3s como um todo foi preciso estabelece, — tM Ponto a partir do qual seia possivel sam ser contemplad um terceiro ponto vé-las florescer em Propor 0 conceito de indiferenga criativa, A historia do conceito de indiferenga eriativa = qual podemos acompanhar o processo de diferenes fendmenos em polaridades o (2002, p. 45-6) central em si Ponto do postas — é considerada por Perls uas formulagdes: {--] Fredlaender apresenta a teoria de que todo evento esté rela- Gonado a um ponto zero, a partir do qual ocorre uma diferencia- io em opostos. Esses opustos apresentam, 1 €M Seu contexto espe- cifice, uma grande afinidade entre si. Permanecendo atentos no centro, podemos adquinit uma habilidade criatva para ver ambos 0» lados de uma ocorréncia e completar uma metade incompleta, Esreando uma perspectiva unilateral, obtemos uma compreensio ‘muito mais profunda da esteurura ¢ da fungio do organismo. bora esse conccito seja muito mencionado como parte das bases conceituais da Gestalt-terapia, ele é descrito de ma- 4 ém, ct ‘ito Reira sucinta nos textos da area. Porém, creio que o conce 168 NA Gestalt-terapia - Conceitos fundamentais diferenca criativa é descrito de forma simples ¢ direta, e indifer d fon ¢ ‘s .y mistério ndo esta na proposicao que faz, e sim em is set : oo ie ‘ctivamente, cultivd-lo no processo terapéutico. a linhas gerais, o conceito de indiferenga criativa propée que dane da polaridade dos fenémenos se estabelesa um tr ceiro ponto = ponto zero ~ de onde seja possivel observar o sme da diferenciagio em seu momento seminal (Loffredo, 11994; D’Acri, Lima ¢ Orgler, 2007). Trata-se de construir um lugar de onde seja possivel vislumbrar as maltiplas verses de uum mesmo fendmeno. Em decorréncia disso, Perls (2002) fala dh possiilidade de trabalhar com 0 pensamento diferencial, modo esse que renuncia linearidade de uma reflexdo por causa € eftito € opta por pensar por opostos, nes proposigéo do pensamento diferencial ndo esté em per mmanscer nas polaridades, nem mesmo em descobrit os consed. “bs mas em eriar uma experiéncia concreta do lugar em que slas possam habitar um espaco reflexive comum. A aposta feita Lan Meyer Fraz8o e Karina Okajima Fukumitsu (orgs,) no interior do preto germina 0 branco, enquanto no interior do branco germina o preto. Essa poténcia que faz getminar uma polaridade no centro da outra pode ser considerada uma imagem da indiferenga criativa. Portanto, o ponto zero é uma proposi¢ao que nasce da reflexdo (Perls, 1979), Ele nao estd dado de anteméo: surge da recusa em tomar uma polaridade como 0 todo, langando o desafio de construir uma posi¢ao de onde seja possivel fazer germinar aquele fenémeno em outra polaridade - trata-se de experimentar 0 vazio fértil. Como observa Petzold, 0 conceito de vazio fértil utilizado por Perls, uum vazio prenhe de criatividade, vem diretamente de Friedlaendes. “Meu primeiro encontro filoséfico com o nada foi o nada em forma de zero. Descobri-o sob o nome de indiferenga criativa, através de Salomon Friedlaender” O conceito de nada deve ser bem compreen- dido: na terapia trara-se de facilitar a0 individuo transformat 0 va- zio estéril - experienciado como nada — em vazio fértil experiencia do como algo que emerge. (Loffredo, 1994, p. 47) Em sintese, cada fechamento carrega a abertura para em preender uma nova travessia rumo a outra polaridade. Esse ato continuo nos permite ir além das dicotomias, escapar da cilada de estarmos capturados por uma polaridade sem pe der a riqueza de versdes que podem surgir pelo encontro das bipolaridades em processo: “[...] qualquer coisa se diferencia em opostos. Se somos capturados por uma dessas forgas opostas, estamos em uma cilada ou, pelo menos, desequilibra- dos. Se ficarmos no nada do centro zero, estamos equilibrados © temos perspectiva” (Perls, 1979, p. 96). 170 pp en~CT Gestalt-terapia - Concertos fundamentais Vale lembrar que quando estamos de pé, em equilibrio, nosso corpo est fazendo micromovimentos para ajustar for- gas em desequilibrio. Nesse sentido, podemos pensar no equi- librio que germina no desequilibrio. Por esse viés, possivel dizer que 0 cultivo da indiferenga criativa no processo tera- péutico se dé pelo método fenomenoldgico. Retomando essa proposig¢ao metodolégica como a tra- vessia de Guimaraes Rosa: 0 desenrolar de um processo, que ndo se esgota em um ponto de chegada nem em um ponto de partida. Estamos impregnados pela continuidade, plena de mistério, jé que ela s6 se dé no devir, no porvir. Sem diivida, estar em travessia nao € tarefa facil: a possibilidade metodolégica de habitar o lugar da indiferenga criativa nos faz partilhar com os pastores, descritos por Heidegger (1994), da serenidade diante da situagao de corresponder 20 mundo. Uma serenidade que combate um pensamento que calcula enquanto cultiva um pensamento que medita, consi- derando o medirar a entrega do ser aquilo que jé é - abertu- ra ao mistério. Vale lembrar que 0 método fenomenolégico, em sua rela- iio com a prética clinica, é fazer da travessia uma opgao co- tidiana, Para isso é preciso contemplar tanto o “método feno- menolégico” quanto a “pratica clinica” em sua multiplicidade, haja vista a impossibilidade de consider4-las no singular. Des- sa forma, nao se trata de defender o que vem a ser de fato a fenomenologia, mas de pens4-la antes de tudo como método. Isso acarreta consideré-la um meio, cuja decorréncia bésica é que ela ndo tem nada a dizer previamente sobre o mundo; trata-se antes de tudo de uma forma de deixar que o fenéme- no se mostre ele mesmo. 171 Lilian Meyer Frazao e Karina Okayma Fukumitsu (orgs) © movimento contemporiineo da pragmatica fenomeno- logica proposto por Depraz, Varela ¢ Vermesch (2003) fala da Possibilidade de considerar a reduciio fenomenolégica — ché ~ uma agio efetiva. Os autores propdem olhar pa Praticas de meditagZo oriental como processos que ma epo- ra as teriali- zam a epoché tal como apresentada por Husserl. Nessa dire. so, trabalham com a ideia de acolher o fendmeno em suas semelhangas 20 mesmo tempo que o acompanhamos em suas variagdes. Muito embora nao discutam 0 conceito de indife- renga criativa, é absolutamente claro, seguindo pela trilha der xada pelas palavras do préprio Perls (1979, p. 96), que esta- mos tratando do mesmo campo pratico: “Mais tarde percebi que este [conceito de indiferenga criativa] é 0 equivalente oci- dental do ensinamento de Lao-tsé”. Ji de inicio notamos que a proposta fenomenolégica tem profundas implicagées tanto no que concerne A apreensio cognitiva do mundo (Kasteup, 2007) quanto no que se refere a pratica clinica (Tsallis, 2009). Utilizar 0 método fenomeno- légico — suspender 0 juizo a priori ~ significa fazer a aposta de debrugar-se ininteruptamente sobre o fendmeno tal qual ele se apresenta, Essa atitude pode ser mantida infinitamente, 0 que significa tomar o fenémeno em sua dindmica e no como uma realidade estética. Afinal, como ensina Merleau-Ponty (1999, p. 10), “O maior ensinamento da redugao é a impossi- bilidade de uma redugio completa”. Segundo Depraz (2007), um importante conceito para que Husserl conceba a fenomenologia é 0 da intencionalidade da consciéncia, proposto por Brentano em sua psicologia do ato. “A palavra intencionalidade nada significa sendo essa particularida- de fundamental e geral que a consciéncia tem de ser consciéncia 72 | Gestalt-terapia ~ Conceitos fundamentais. de alguma coisa, de portar em sua qualidade de cogito, seu cogi- tatu nela mesma” (Husserl apud Depraz, 2007, p. 35). Portan- to, a consciéncia é sempre consciéncia de alguma coisa, como ja vimos. Nesse sentido, nao é possivel falar em uma consciéncia pura; ao contrério, trata-se de uma consciéncia langada ao mun- do, a0 mesmo tempo que permanece na carne. Com isso, a epoché se constitui como um método descri- tivo rigoroso que visa abordar as vivéncias, superando assim as dicotomias/polaridades. Trata-se objetivamente de uma agio concreta em diregéo ao ponto zero, A inventividade do vazio férvil que emerge da vivéncia. Vale destacar o modo pelo qual se define a palavea “vivéncia”, Segundo Depraz (2007, P.27),€ possivel dizer que 0 projeto fenomenoligico propos. to por Husserl se erige sobre essa concepsio. Nem conteiidos, nem estados, nem atos da consciéncia, as vivéncias de um sujeito formam a textura imanente de sua con qual € capaz de se apropriar dos objetos do mundo, percebendo-os ‘ Prinefpio em sua qualidade sensorial, material e sensivel, sciéncia, pela __ Para chegar a descricio das vivéncias, Husser! decalca seu Imétodo com base na redusio (epoché), © Que a consciéncia faga uma conversa sobre si mesma ~snio se ences NO cogito cartesian na qual o primeiro passo (0 reflexiva — que se volte trando de maneira conclusiva {como 0), mas na forma de uma espiral, uma mola do realista. A Palavra alema 173 Lian Meyer Frazdo e Karina Okajima Fukumitsu (orgs.) “ dinge”, ambas poder se refer & coisa, contudo, “sache” desig nna coisa no sentido de questo, problema, enquanto “dinge” se refere & coisa no sentido material, Isso permite tomar a proposi- gio husserliana como “volrar 4s questes mesmas.” Dessa forma, na conversio reflexiva, a consciéncia retor- na A questo, o que permite escapar simultaneamente tanto do subjetivismo absoluto quanto do objetivismo contingen- cial, “E 0 paradoxo segundo 0 qual eu posso voltar delibera- damente minha atengao para o interior, nao para ir buscar alguma coisa, mas para acolher 0 que pode se manifestar, ou © que sou capaz de deixar-se manifestar” (Depraz, Varela e Vermesch, 2003, p. 83). E nesses termos que se parte para a variagio eidética, para a qual ndo importa apreender de cada vivéncia factual, mas descrever “esséncias de vivéncias que permanecem singulares e concretas sem, entcetanto, ser particulares” (Depraz, 2007, p. 37). Portanto, almeja-se ultrapassar as po- laridades para atingir a singularidade presente na “multipli- cidade concreta dos encontros contingentes” (idem). Nesses termos, a variagdo eidética no pretende uma indugdo capaz de generalizar o fendmeno dado, que, ao contrario, deve permanecer singular, Por fim, é possivel falar da epoché como um gesto suspen sivo que germina tanto na conversao reflexiva quanto na var riagdo eidética. Trata-se de suspender os jutzos, de colocé-los entre parénteses a fim de permitir que se retorne as on abrindo a possibilidade para uma nova doagdo ae se e para corresponder ininterruptamente. Na concepgio mer! oe -pontiana, operando uma dialética sem sintese, eee vez q! cla assegura o movimento, o permanecer em movimento. 78 gf Gestalt-terapia ~ Conceitos fundamentais Assim, entendendo 0 colocar entre parénteses como um ato suspensivo central e passivel de ser mantido ininterrupta- mente, perguntamo-nos como isso se opera do ponto de vista da psicologia em agio. Ou, nos termos da metéfora inicial, como entender esse movimento na travessia da reflexio psi coterdpica? “O ato refletinte parte de um relacao ‘silenciosa’ ou no ‘vazio’ no que se refere a experiéncia, £ mais da ordem do acolhimento, da escuta, da impregnagao, da contempla- g40, que da busca predeterminada” (Depraz, Varela e Ver- mesch, 2003, p. 83). Nesse sentido, o impacto do método fenomenolégico na pratica clinica altera de maneira fundamental a forma de con- ceber o ato refletinte, seja o do terapeuta, seja o do paciente. Do ponto de vista do terapeuta, trata-se de suspender/colocar entre parénteses uma visdo prévia do que seja 0 psiquismo e volrar-se & contemplagao, ao acompanhamento estrito do tnundo vivido daquele que esté A sua frente. Segundo Ellen- berger (1967), busca-se descrever, explicitar os modos como aquela pessoa que estd A sua frente vive; em outras palavras, de que forma expressa sua temporalidade, espacialidade, cau. salidade, materialidade e tudo que se fizer luz na viggncia da- duela relagao. Talvez se possa dizer que a novidade desse pro- cesso € que o paciente pode tornar-se aquilo que jé é, tal como Proposto pela teoria paradoxal da mudanca de Beisser (1971), Entreranto, quando falamos em invengio, treat, g Tecorremos a sua Simologia latina — invenire ~, que significa compor com res- = arqueolégicos, Inventar é garimpar o que restava escondi- © oculto, mas que, ao serem removidas as camadas histéri- Sas que © encobriam, revela-se como jd a ‘ id estando 1d” (K. 2005, p. 1278), “tenn 175, Livan Meyer Frazao @ Karina Okajima Fukurmtsu (orgs) Jé do ponto de vista do paciente, suas histérias e questies Passam a ser cendrio para o ato refletinte, Abre-se uma fenda, estabelece-se um recuo diante do ja sabido para ir em dizegao As novas possibilidades de doacao de sentido. A reflexao faz vislumbrar outros horizontes de ser, 0 que significa encarnar um processo de escolha que emerge da vivéncia. “O mundo fenomenolégico nao é a explicitagao de um ser prévio, mas a fundagio do ser; a filosofia nao é o reflexo de uma verdade prévia mas, assim como a arte, é a realizagdo de uma verda~ de” (Merleau-Ponty, 1999, p. 19). Para articular de modo real a proposta dessa travessia - indiferenga criativa rumo ao método fenomenolégico -, rela- to um acontecimento. A palavra “acontecimento” tem aqui 0 sentido proposto por Despret (1999): trata-se de uma situa- cao a partir da qual o mundo ja no pode ser visto como an- tes. A leitura pode ser entendida como um acontecimento, uma yez que, se se aprende a ler, jf ndo € possivel nao ler (salvo alguma intercorréncia atipica). Porém, ndo entendo que 0 acontecimento seja algo extraordinario; muito ao con- trario, ele pode ser ordindrio. O que permite que o tomemos ‘como acontecimento é 0 cultivo cotidiano da aposta de mul- tiplicar o vivido. Passemos & aposta, entdo: hé alguns anos, eu estava caminhando, por volta do meio-dia, na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janciro. Naquele dia em particular, re solvi andar pela calgada contigua aos edificios em vez de ir na pista 4 beira d’agua, Havia poucas pessoas por ali, mas dizem que a nica vantagem do lobo na cagada é ser aquele que ve primeiro. Pois bem, eu vi primeiro! Passei por um rapaz ¢ percebi que seria assaltada. Nao saberia dizer 0 que me fez concluir isso, mas segui caminhando na certeza de que iss0 176 Ny Gestalt-terapia ~ Conceitos fundamentals. aconteceria. Dito e feito, alguns minutos depois, em uma cur- vaum pouco mais deserta, ele me encurralou contra um muro de pedrast “Passa tudo, anda, passa logo tudo ¢ nao grita!” Seu tom de voz e seu gestual nao deixavam diivida de que eu estava sendo assaltada, Ele falou enquanto me mostrava o que seria uma arma escondida sob a camisa. Néo me sur- preendi, pois eu previra o assalto, mas havia algo ali que eu nao vira: o proprio rapaz. Ele tinha olhos de menino, e isso me surpreendeu a ponto de me fazer dizer, em tom tranquilo: “Eu nZo vou gritar”. Em um instante estava claro que ndo gritaria diante daquele rapaz-menino. Minha tranquilidade de quem viu primeiro, somada ao enunciado de que nao gri- taria, o fez perder o pé da situagdo. Eu, por minha vez, ao me dar conta disso, me permiti seguir andando. Ele e eu ja nao estivamos encutralados no assalto, abria-se um horizonte para novos sentidos. Ele andow ao meu lado ainda tentando restaurar © assalto: “Nao adianta, passa tudo...” Contudo, sua conviegao jé nao era a mesma. Perguntei: “Vocé nao tem vontade de fazer outra coisa?” Caminhévamos, e pelo que parecia 0 assalto havia ficado passos atrds, li no muro. “Te- nho, mas é dificil sair, Nao é assim facil.” Nossa caminhada adquitia um ritmo amigavel, o que me fez confiar nessa prosa. “Tenho uma amiga que trabalha justamente com isso.” Ele me contou sobre as dificuldades ¢ eu insisti nas possibilidades. A essa altura, a conversa de fato tinha tomado novos rumos: eu Ihe passei o endereco onde poderia receber ajuda, enquanto cle me contou sobre os desafios dessa decisdo. Nesse momen- to, ele parou e disse: “Eu preciso voltar. Aqui jé nfo € minha tea”. Tinhamos andado por meia hora, o muro de pedras jé estava muitos passos atrés. Parei para que pudéssemos nos 77 Lian Meyer Frazao e Karina Okajima Fukumitsu (orgs) despedir. Enquanto apertévamos as maos, mais uma vez vi os olhos do rapaz-menino e perguntei: “Como vocé se chama?” Ele respondeu: “Alexandre”. Naquele instante residia um mundo. “Nossa, eu me chamo Alexandra, somos xards!” Nossos olhos marejaram, naquele momento entendemos que nossa caminhada nos permitira habitar um mesmo mundo, um mundo comum. Soltamos as mos, havia chegado o mo- mento em que cada um de nés seguiria uma direcdo diferente, © acontecimento tinha feito seu trabalho, Quando demos os primeiros passos, um para cada lado, ele disse: “Olha, vai com cuidado, essa area é perigosa”. Agradeci, sorri. Ha me- nos de uma hora ele era o perigo, agora ele era a pessoa que me cuidava. Esse acontecimento me habita até os dias de hoje. Nele percebo que Alexandre ¢ Alexandra partilharam do pon- to zero, esse lugar onde a indiferenga é criativa, Diante disso, temos um encontro que vira arte - essa arte como expressao genuina, vivéncia ultima e primeira, tinica e principalmente intransferivel, reservada ao mistério. A arte como experiéncia de estar no mundo, que anseia pelo “como” de cada um viver, onde a singularidade é cultivada em um vazio capaz de germinar. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS [BEISSER,A.“A teoria paradoxal da mudanga™. In: Facan, Ju SuerHteeD, 1. L- Gestalt _ferapia:teoria téenicas e aplicagdes. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. D'Ackt, Gs Liss, Ps ORGLER, S. Diciondrio de Gestalt-terapia — Gestaltés. do Pau lo: Summus, 2007, DiPkaz, N. Compreender Huser, Perr6polis: Vozes, 2007, Dereaz, Nis VaneLa, Vs VerMesci, P. On becoming aware: a pragmancs of expert encing, Amsterdi John Benjamins, 2003, Desrner, V. Ces emotions qui nous [abriquent. 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