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A meméria de Jodo Luiz LAFETA, leitor de poesia Gi Sobre alguns modes de ler poesia: memérias e reflexdes Alfredo Bosi Maia coisa tm de rer exuecida quando se deve conserar o esencial Comrtus ‘az quarenta anos e é como se fosse ontem. Eu tinha acabado de entrar no curso de letras ncolatinas da Faculdade de Filosofia da Universidade de So Paulo. A aula era de literatura italiana, Todos calouros, ea maioria inexperta no idioma do bel paese li dove il si suona. A Séo Paulo do segundo pés-guerra jd nfo era aquela ci- dade (talo-brasileira dos anos 20 que os modernistas cantaram ¢ contaram. Mas, desprezando solenemente as cautelas didéticas ¢ apostando tudo na palava do fildsofo e na forga maior da nossa Ansia de aprender, o professor Italo Bettarello abria 0 seu curso endo o perfodo inicial da Aesthetica in nuce de Benedetto Croce: Sesi prende a considerare qualsiasi poesia per determinare che cosa la faccia giudicar tale, si discernono alla prima, cos- anti e necessari, due elementi: un compleso d’immagini e un sentimento che lo anima. “Tiaduzindo: “Se nos dispomos a considerar qualquer poe- ma para determinar 0 que nos faca julgé-lo como tal, discern ‘mos a0 primeiro olhas, constantes e necessérios, dois elementos: lum complexo de imagens e um sentimento que 0 anima’. Turlo 0 mais pendia dessa visada ao mesmo tempo simples ¢ profunda (© exemplo que ilustrava a doutrina era titado de Virgilio. Diga-se de passagem, o poeta de Eneida repousa na mesma Napo- les onde viveram ¢ morreram Croce ¢ 0 seu mestre Vico. Croce analisa 0 trecho do Canto Terceiro em que Enéias conta como aportara no Epiro onde reinava 0 toiano Heleno com Andr6- maca. Desejoso de ver aqueles seus concidadios escapos ao de- sastre, Enéias vai ag encontro da rainha fora dos muros da cidade ‘em um bosque sagrado junto as Aguas de um arroio a que tinham dado 0 nome de Simoente em lembranga do tio que banha Tidia. Andrémaca esti celebrando ritos fiinebres diante de um ttimulo vazio onde erguera dois altares, um para Heitor, seu pri- meiro esposo, ¢ o outto para o filho Astianax, Ao vé-lo, é tomada de pasmo e desfalece. Enéias recorda as palavras truncadas com que, retornando a si, Andrdmaca o interpelara querendo saber se cle era homem ou sombra. Vem depois a resposta no menos conturbada de Enéias que, por sua vee, Ihe pede que tememore © passado. E a evocagio dolorosa e pudica de Andrémaca que revisita 0 seu destino de sobrevivente ao massacte, de escrava tirada em sorteio ¢ feita concubina de Pirro, que no entanto a rejeitara c a dera como escrava a Heleno; ea morte de Pirro por mio de Orestes ¢ a libertagéo de Heleno que se tornow rei. Segue-se a0 relato 4 procissio de Enéias com os scus pela cidade que, pequenina, cm tudo imita a Tréia gloriosa e derruida dos antepassados comuns (Canto III, 295-355). Finda a leitura do episédio, o que temos? Imagens de pes- soas, imagens de coisas, de gestos, de atitudes, nao importa se 8 ALFREDO BOS! historicamente reais ou apenas vigentes na fantasia do poeta. Ni imagens soltas nem avulsas, pois “através de todas elas corre © sentimento, ium sentimento que nao é mais do poeta que nosso, um humano sentimento de pungentes memérias, de arrepiante horror, de melancolia, de nostalgia, de enternecimento, e até de algo que € pucril e ao mesmo tempo piedoso, como aquela va restauracio das coisas perdidas, aqueles brinquedos forjados por religiosa piedade, da parva Troia: algo de inefével em termos I6- gicos, e que s6 a poesia, a seu modo, sabe dizer plenamente”!, Feito o comentétio ao texto virgiliano, Croce entregava-se 20 trabalho asséptico de afastar do reino encantado da leicura estética tudo quanto a desviasse para fins considerados estranhos A natureza da arte. E ficévamos sabendo que poesia nfo é discur- so verificével, quer histérico, quer cientifico; que poesia nao é dogma nem ensinamento moral; nem, na outra ponta, é “senti- meito na sua imediatidade”. Nem pura idéia, nem pura emogio, ‘mas expresso de um conhecimento intuitivo cujo sentido é dado pelo pathos que 0 provocou e o sustém. Nada mais, mas nada menos. Direi adiante da forga e dos impasses que essa doutrina continha em si. Entrévamos com outros mestres em outras érbitas: a esti- Uistica espanhola e a explication de texte. Alguns, mais afoicos, sal- tavam a barreira das linguas e se aventuravam pelos atalhos do new criticism anglo-americano to sagaz na descoberta das ten- ses ¢ das ambigtiidades da linguagem poétita. Creio hoje que, Se nos tivéssemos debrugado mais atentamente sobre as obras dessa corrente, terfamos alcangado uma visio mais matizada das telagées entre a camada sens{vel e o fio inteligivel do poema, Fora da universidade, scholars consumados como Augusto LEITURA DE POEStA 9 Meyer ¢ Sérgio Buarque de Holanda jé tinham assimilado com inceligéncia as conquistas desse movimento que renovou nos fundamentos a critica literdria ocidental. Dentro da universida- de, porém, o prestante manual de René Wellek e Austin Warren, ‘Teoria da literatura, que incorporava conceitos dos new critics ¢ dos formalistas, era lido, Aquela altura, de maneira rasa e didéti- casem que se discutissem a fundo as implicagées logicas das stias propostas. De resto, na academia nacional nunca houve uma firme tradi¢ao de estudos de teoria do conhecimento que, nos Estados Unidos ¢ na Inglaterra, sempre alimentaram as polémicas entre racionalistas ¢ empiristas. Um livro como The meaning of the meaning de Ogden e Richards, por exemplo, exerceu enorme influéncia nos cursos de literatura inglesa, envolvendo também a critica das artes visuais para a qual imagem ¢ idéia, {cone e sim- bolo, concreto ¢ abstrato so conc: Is cruciais No corpo do poema, segundo os peritos em close reading, a variedade das metéforas nao impede que um pensamento coeso ordene ¢ aclare as riquezas do fluxo verbal. Alids, ¢ precisamente essa marca de coeréncia intelectual que um Allen Tate admirava nna profusio imagistica da Divina Comédia, ¢ que seu mestreT. S. Eliot apontava em Donne ¢ nos metafisicos ingleses. Nesse Ponto os new critics contornavam a dréstica oposigio crociana entre conhecimento intuitivo e conhecimento racional. E aco- Ihiam como integrante do universo poético de Dante até mesmo © desenho doutrinal que sustenta a robusta arquitetura do poc- ma. Arquitetura que fora rotulada pelo pensador italiano como ngo-pocsia, ou seja, estrutura conceitual distinta dos momentos liticos ¢ figurativos que consticuiriam a verdadeira poesia dle cada episédio. Os new evities encareciam o valor das operagées intelectuais imanentes nos poemas fundadores. E afirmavam, sob a égide ora- cular de Pound e de Eliot, a existéncia de uma alianga tensa de 10 ALFREDO BOS! fantasia artistica ¢ rigor de pensamento. A combinagio valetia nio s6 para a obra de Dante como para todos os poemas que vém resistindo & usura do tempo, Foi essa inteligéncia moderna da forma — rede de fios sensiveis ¢ cognitivos — que permitiu a critica anglo-americana absorver elementos de anilise simbdlica c lgica da linguagem. E, de Faro, percorrendo a hist6ria licerdria, a presenga crescente de uma poesia auto-reflexiva ¢ metalingtits- tica 20 longo do século XX parece ter dado raxfo aos anticrocia- 105, aos quais porém o filésofo, imperturbével, sempre respon- deu que 0 erro destes no consistia em admirar as absteagées inseridas no poema, mas em admiré-las chamando-as poesia. Poesia-imagem? Poesia-conceito? O problema nfo é termi noldgico, Tem uma dimensio histérica e se formulou com sensi- bilidade e rigor na passagem do Neoclassicismo para o Roman- tismo. Esta a grande clivagem. Schiller na Alemanha e Leopardi na‘Ttdlia testemunharam, entee tantos outros, a ctise de uma pritica de pocsia que vinha dos antigos ¢ que fora revitalizada pela Renascenga. Chamaram a essa pratica poesia ingénua ou poe- sia da Natureea. Ambos assistiram & mudanga de uma forma solar de arte para outra, disfamos de segundo grau, em que a anilise do ex com todos os seus desvios de tédio e ironia, se dis- punha como tela mediadora ¢ complicadora entre 0 poeta ¢ as forgas ¢ imagens da vida. A nova poesia se dava como interpte- taco do sujeito em ver de figuracio da beleza césmica ou canto dos destinos dos povos; poesia sentimental, isto é, psicolégica, no dizer de Schiller; poesia mecafisica, segundo Leopardi. E ambos temiam que o progresso da auco-analise levasse a0 aftouxamento dos lagos milenares entre o homem ¢ o divino, o homem e a na- tureza, o homem e a sua comunidade, e daf a formagéo de uma literatura toda voltada para o seu prdprio emissor, saturada de in- tengies psicoldgicase intrusdes metalingltsticas. Meio século mais tarde, Nietzsche, que amava os pré-soctaticos, pensadores-poetas LEITURA DE POESIA n da matéria césmica, chegaria a sentenciar remeratiamente: “O de- senvolvimento do pensar consciente ¢ prejudicial & linguagem”... Ora, foi precisamente o vetor da andlise psicoldgica ou ideolégica que norteou parte considerivel da produséo litersria dos séculos XIX ¢ XX, quando, para bem e para mal, se deu 0 ascenso universal do modo de pensar burgués cada vez mais dis- tante da “ingenuidade” exaltada por Schiller. A sondagem dos mecanismos egéticos ¢ a reflexao sobre a atividade textual (Flau- bert ¢ Mallarmé ilustrem a afirmagio) obsedaram cada vez mais © sujeito da escrita, que s6 raramente pdde langar-se & aventura da incuigo pré-logica, aquele conhecimento auroral definido por Benedetto Croce como o passo primeiro da criacéo estética. AA lamina da autoconsciéncia fez uma cunha na superficie outrora lisa inteira da linguagem mitica, que jé nfo pdde mais relaxer a simplicidade radiosa de Homero cujos versos semelhavam, na palavra de Schiller, “ordculos divinos na boca de uma crianca”. Os new critics, embora partilhassem 0 gosto poundiano pela poesia-imagem grega, latina, chinesa ¢ provengal, nfo po- diam deixar de ser homens de um tempo penettado até & medula pelo olhar introspectivo e pela consciéncia erftica: tempo em que a poesia virou aquela “coisa anfibia feita metade de imagem, metade de significado abstrato”, conforme constatava Coleridge nna sua Biografia literdria®, Dal a alternncia, nos seus ensaios, de observagdes sobre a/pujanca metafsrica e sobre 0 nervo légico dos poemas que analisavam. Nos seus estudos jé reponta, de modo virtual, a leitura pés-moderna do poema como pluralidade de discursos em tenso, Com a diferenga sabida de que os new critics ainda faziam critica sob o signo da unidlade do efeito estvico, inspi- rados que foram por E. A. Poe e Baudelaite, a0 passo que hoje... 2 ALFREDO Bost Na Estllstica, que se difundiu aqui nos anos de 1940 e 1950, ouviam-se profissies de fé no intuicionismo crociano. Mas 0 gosto eta outto, wim gosto espankol. A lirica de Géngora ¢ a sua frondosa descendéncia barroca foram reavaliadas com entusiasmo por Damaso Alonso, mas nao contavam com as sim- patias de Croce, refratério a qualquer complacéncia com 0 ma- neirismo, De todo modo, 0 procedimento pelo qual os mestres cspanh6is penetravam 0 texto poético, filiando sempre imagens e ritmos a suas matrizes existenciais, dependia, na raiz, da acei- tacio da formula idealista intuicio = expresso, que fora cunha- da pelo fildsofo da Extica. A diferenca residia na maior atengao que a andlise estilistica dedicava aos fendmenos lingiisticos, cor- rendo as vezes 0 risco de hipersimbolizar este ou aquele elemento fonético ou gramatical. Esta sobremotivagio do pormenor seria sempre um dos es- cothos da leitura estilstica para a qual a parvle do pocta pode concentrar-se e revelar-se no uso de uma figura retérica ou na reiterago de um determinado timbre vocdlico. A relagio das par- tes (ou de uma sé parte) com o todo é um problema renascente para o estudioso do estilo enquanto uso particular de um sistema universalizante como a lingua. Apesar dessas dificuldades de método, os ensaios de Dé- maso Alonso, em Poesia espafiola, de Amado Alonso, em Materia ) forma en poesia, ¢ de Carlos Bousofio, em Teoria de le expresién ;poética, lograram unificar, mediante a identificagéo de um “mo- tivo inspirador”, os méiplos tragos de estilo que caracterizam poemas ou obras inteiras de poeras. A busca do sistema expressivo € da unidade tonal (temple anfmico) conttabalanga o efeito de fragmentagio que poderia resultar da andlise fonética ou ritmica mitida, ¢ é responsdvel pelas sondagens certeiras que Démaso ‘Alonso fex nas Soledades de Géngora, e Amado Alonso nas sona- tas de Valle Inclén, A sua releitura parece-me ainda inspiradora LEITURA DE POESIA 13 alguns de seus procedimentos de andlise continuam freqiien- tando 0s nossos trabalhios académicos, embora nem sempre se dé ‘0 justo reconhecimento as suas matrizes teéricas, Aparentada com a Estilistica, a etura circular proposta por Leo Spitzer também nos chegava as mios nas sessbes informais de Bettarello com quem um reduzido grupo de fidis discipulos fazia a chamada “especializagio” no biénio 1959-60. De Spitzer amos a étima coletinea Critica stilistica e storia del linguageio cuja edicio fora sugerida ao autor pelo préprio Croce, seu dileto mestre ¢ amigo’, Spitzer atualizava a idéia do clrculo hetmenéutico, que Dilthey redescobtira lendo 0 teélogo roméntico Frederico Schleiermacher, Intexpretat o sentido de uma passagem biblica significava, para Schleiermacher, fazer um trabalho de ida ‘G40 abrangente para a andlise de dados particulares, e vice-versa. A atengio as partes leva & percepcio do todo, mas, como se tata de um conhecimento induzido por olhares parciais, deverd ser confirmado (ou infirmado, em caso de engano) pelo exame de outros aspectos ¢ assim sucessivamente até que a inteligéncia da tocalidade venha a iluminar de modo justo cada um dos par- ticulares. A dialética de sentido espiritual uno e formas sensiveis multiplas tinha em Schleiermacher uma inequivoca inspiragao platénica. -volta da ineui- O cfreulo hermenéutico, reproposto por Dilthey para a leitura compreensiva de textos histéricos, foi aplicado por Leo Spitzer & incerpretagio das produgées simblicas dentre as quais avulta 2 poesia, 14 ALFREDO BOSt © exercicio hermenéutico sup6e que vigore uma coeréncia intema entre as imagens que consticuem uma obra poética. Para Schleiermacher toda representagio dispoe de leis formais ima- nentcs, motive pelo qual nao € um esforco arbitrério do intér- rete rastrear as selagdes que os momentos de um texto ou de ‘uma composicéo musical entretém entre si ou com o todo. Essa Procura de relagoes significativas € alma da compreensio. Croce louva, no capitulo da Evética que dedicou a Schleiermacher, a intuigéo antecipadora deste filésofo romantico ue j4 comparava, no inicio do século XIX, © poema ao sonho. Um sonho elabora-se com os mesmos processos simbélicos de lum poema ao qual faltasse, porém, a tensio da vontade constru- tiva que s6 se mantém quando a consciéncia esté vigilante. No poema necessério que 20 momento da inspiragio, andlogo a0 dos fantasmas ontricos, se siga 0 momento da ponderagio, que traz’A consciéncia os eritérios de expressividade e beleza na esco- Iha ou no descarte desta ou daquela solugio verbal. A equacio poesia = muisica + légica, sugerida por Schleiet- machex, € acolhida por Leo Spitzer que a julga uma desctigao exata da dialética que o multiple das representagées ¢ 0 uno do conceito travam na fatura dos discursos simbélicos. Spitzer trabalhou galhardamente com diversos textos lite- férios tanto do perfodo cléssico quanto do século XX. Racine sstava entre as suas paixdes, E sempre com renovado prazer que leio 0 seu estudo sobre 0 famoso “récie de Therambne”. Trata-se da longa fala em que o velho servidor narra, na Phédve, 0 desastte fatal do seu amo, 0 jovem principe Hipélito, arrastado até A morte na praia de Trezena por seus prdprios corcéis contra os quais investira, de repente, um monstro safdo das ondas do mat, O ensaista parte de uma visio de conjunto, o que é uma das alternativas do méodo hermenéutico. A hist6ria de Fedra seria uma tragédia de desengano. Ensinam-se aos grandes deste LEITURA DE POESIA 15 mundo as amargas ligoes da crueza divina e da humana impo- téncia. Venus ¢ Netuno, 0 impulso erdtico e a forga do man uniram-se para levar a desgraca uma familia teal. Essa primeira abordagem, macroscépica, de sentido da obra, qu go do seu étimo espiritual, passaré depois pelas malhas da leitura microscépica, a qual poderé, ou ndo, ratifieé-la. Para tanto, 0 analista pée em relevo trés aspectos estilisticos da fala deThéraméne que lhe pareceram, 3 primeira vista, incrigantes, logo sintométicos de um Racine ainda mal compreendido pela ctitica francesa tradicional: um Racine sutpreendentemente barroco? primeiro trago observado ¢ a duplicidade semantica do verbo voir, empragado nao sé com a sua denotago neutra de “enxergar”, como também para exprimir 0 ato de perceber o mal que golpeou o rei/Teseu ¢ seus entes mais caros. Essa conotagao funesta enturva o odhar de Fedra que, influido por Venus, é peca- miinoso (adiiltero © quase incestuoso) desde 0 momento em que a rainha 0 volrou para o seu belo enteado, Hipdlito: Je le vis, je rougis je palis a sa vue. segundo trago € 0 uso da atenuacéo cléssica. © poeta precisa abafar ou sublimar a violéncia origindria dos conflitos inserindo nos momentos traumiticos certas expresses intelec- tuais ou morais. E um velho sfbio este Théraméne que comenta 03 fadlos das personagens. O sangue do principe derramado por ‘obra do monstro marinho & son géntreus sang, Do cacldver dilace- ado diz ce héros expiré. O espeticulo da motte ctuenta é qualifi- cado como ce désordre affieux, expressio na qual o epiteto emo- tivo (affieus) € neutralizado pelo termo abstrato, désordre, que nomeia e racionaliza. Por sua vez, o demonstrativo (ce) implica a disténcia entre o natrador eo fato narrado. Séo todos indices que 16 ALEREDO BOSI femerem a uma vontade-de-estilo clissica chamada a mediar a matéria trégica. Enfim, terceiro cago, a linguagem antropomérfica com que Racine descreve a natureza, A onda do mar reflui espantada ante a cena fatal O verso — "le flo, qui Vapporza, recule épouvanté” — que jf fora censurado por Kcitores académicos da tragédia como pre- ioso e retorcido, serve de pista ao exegeta moderno para sair 20 encalgo de outras imagens estranhas disseminadas na obra (o sol que enrubesce, a negra flama), reforgando a suspeita da presenca de um veio anticléssico subterrineo mas aqui e ali emergente no ‘mais harmonioso dos dramaturgos. O olhar. A morte. A natureza. O olhar que se abre a luz é trevoso. A morte, com ser terrivel, é exemplar, A natureza, que parece estar fora, esté dentro do homem. “Racine é claro, mas a sua dlarera & densa de mistério”. Nessa aleura Spitzer jé pode fechar o cfrculo da sua leitura Tendo partido de uma percepcao abrangente de Fedra como tra- gédia do desengano dos mortais por obra dos imortais, desceu a twagos particulares de estilo que deram consisténcia & sua hipé- ‘ese para, no fim, remontar & intuigio primeira, agora enrique- ida pelas sugest6es do percurso analltico. Ir e vir: do todo as partes, das partes ao todo. Note-se que a escolha das pistas nfo foi aleatsria. O deteti- ve recortou, de preferéncia, aspectos de algum modo desviantes, que lhe pareceram sintomas de uma forma interna viva, no caso tum complexo de sentimentos ¢ imagens mais rico e original do que o jf codificado pela fortuna convencional do autor. © orgae nizador da antologia citada, Alfredo Schiaffini, acena, em uma passagem do seu preficio, para o papel que a doutrina freudiana teria exercido na formagio do judew vienense Leo Spitzer. Embora faltem a0 vocabulério da sua hermenéutica mengées 2s LEITURA DE POESIA 7 categorias psicanaliticas, & bem provével que a leitura do desvio como sintoma aponte para uma afinidade com cettas visadas semiolégicas de Freud. De algumas hipéteses de Spitzer somos tentados a falar em verdadeiras incuigdes clinicas. Quando, por exemplo, ele detecta na escrita do militante pacifista Henri Barbusse uma freqtiéncia inesperada de imagens violentas que juntam sangue e sexo. Ou quando topa nos textos vanguardistas de Jules Romains com tuma ficita de palavras “pouco decorosas”, como “tragat”, “expecto- rar’, “cuspic”, “escarrar’, no caso, “cracher” na acepeao de parir — expresses que remetem a uma visio brutalista da sociedade burguesa onde corpos coletivos ¢ andnimos ora absorvern ora expelem os individuos. Certas metéforas néo s6 traduziriam esta- dos animicos habituais no autor como dariam forma a correntes ideolégicas supra-individuais © seriam portanto representativas de tenses que ocorrem no interior da sociedade. O circulo in- ‘erpretante € assim alargado pela forga das préprias significagées encontradas em dados particulares da leitura; € 0 todo a que se refere a leitura ciccular receberd qualificasbes psicossociais. Se uma hermenéutica exige previamente uma heutistica (arte de encontrar), € porque a heuristica é 0 melhor alimento do exercicio de compreensio, Técnica do clinico geral que testa com exames parciais miltiplos 0 seu primeito e intuitivo diagnéstico, Ou tacteio por ensaio e erro de um criptélogo diante de um hie- réglifo. Ou simplesmente aro de um Sherlock Holmes. Comparada com as sutilezas da Estilistica ou com as arg cias quase divinatsrias do circulo hermenéutico, a explication de texte, que nos era dada por um professor sufco, Alfred Bonzon, parecia uma técnica estreita saida de uma tradicao escolar em 18 ALFREDO nost que a raison raisonnante levara sempre a melhor sobre a intuigéo € 0 sentimento. Cartesiana primeiro, ilustrada em seguida, enfin positivista, a pedagogia liceal francesa seria pouco sensfvel & mtisica ondeante ¢ sugestiva do poema litico. Havia alguma verdade nesse juizo severo, mas cambém ‘uma boa dose de preconceito que o idealismo germinico, secun- dado pelo italiano € pelo espanhol, se comprazia em espalhar. Sabe-se que a hegemonia francesa era um fato visivel a olho nu na Faculdade de Filosofia entre os anos 1930 e 1950. Dai aemu- Iago com que outras culturas nacionais buscavam conquistar 0 seu lugar a0 sol no terreno das Letras e das Cigncias Humanas. E a explication de texte com seu didatismo &s vezes tigido era, sem diivida, um alvo bastante ficil de atingir... Comego pela justeza, ainda que esquemética, daquela apre- ciagio. De fato, na maioria das vezes, o que se pedia ao aluuno de liréracura francesa como objetivo iiltimo da leitura era explicar 0 modo pelo qual o poeta desenvolvera a idéia fundamental do texto, Presumia-se que todo poema devesse conter a apresentacio do tema, 0 seu desdobramento (em trés partes, de preferéncia) 4 conclusio, Salta aos olhos a analogia com o discurso argumen- tativo, Bom poema ¢ o que tem comego, meio e fim. O comego anuncia tema, 0 meio o enuncia, o fim o remata ou recapicula, A unidade semintica implicaria forte coesio sintatica. O analista deveria seguir, passo a passo, 0 encadeamento das ora- es e dos pesfodlos. Ex-plicar quer dizer desdobrar,estirar 0 que estf enrolado, explicitar 0 que parece implicito, Tarefa que 1e- quet 0 uso de conceitos claros e distintos: “ce gui nist pas clair nist pas francais”. Para tanto, nada no poema deve ficar obscuro, alusivo, lacunoso ou avulso do sistema. As mecéforas, por exem- plo, nada mais seriam do que comparagées &s quais faltaria 0 rnexo sintdtico da correlagao: “assim como” ou “tal qual”, Aristo- LEITURA DE POESIA 19 teles dixit. Bra preciso aclarar ¢ declarat, com todas as letras, esse Procedimento rerico mostrando qual termo semelha a qual, como ¢ por que. O plenuan inicial seria 0 discurso légico com todos os termos & sodas as junturas; faltando estas ou aqueles, cairfamos no metaférico. Note-se que a metéfora & apenas uma entre as vétiasfigu- ras catalogadas pela retérica tradicional. As outras também deve. ram ser desdobradas e vertidas para a linguagem inequivoca dos conceitos. As figuras fariam parte de uma linguagem que ndo & “propria”, pois os seus termos no se ajustam univocamente aos respectivos referentes: sio condensagbes ou deslocamentos, acrés- cimos ou decréscithos, redundéncias ou elipses, em suma, trapor dlitados pela forca perturbadora da imaginagio e das paixdes que sempre véern de mais ou de menos. A explication as tratava como efeitos de estilo on licengas pocticas, pois tais formagées im- Préprias seriam desvios (tese que sobreviveu longamente) de uma suposta norma lingliistica universal que regeria a comunicagio entre 0s homens. No limite: a linguagem prépria serviria > prosa; a linguagem figurada, & poesia Deixando de lado uma critica de fundo que merece essa concepgio de linguagem (que ¢ exatamente oposta a de Vico para quem a polissémia e as fedes anal6gicas precedem e prefor- mam 0 conceito), é razodvel reconhecer que os manuais franceses chamavam a atencio do aluno para a unidade (ideal) do texto ara, em seguida, treind-lo na andlise mitida das suas aticula- {$6es. Para bem e para mal, a explication era um exercicio de abs- tracio. Igualmente proveitoso era o empenho de identificar 0 significado literal e preciso de cada frase e de cada palavta, recor- rendo com freqliéncia aos diciondrios, as artes posticase, quando © mestre era erudito, as fontes do texto, que inclulam desde a iologia € os cléssicos até obras contemporineas lidas pelo autor do poema analisado, 20 ALFREDO Bost Em alguns casos operava-se uma combinagio de andlise semantico-sintética do poema (qual a sua idéia principal? como se divide?) com informagées de biografia ou de histéria literdria: €m que 0 autor € parnasiano? em que é simbolista? Esse ecletismo de método, que tamanho desdém provocaria na década de 1960 centre os estrutualistas puros, trafa talver 6 desejo de compensa © esquematismo retérico dle base pela busca de algum tipo de integracio do texto na esfera maior dos significados de valores, isto é a cultura literiria que viu nascer © poema e com a qual © poeta dialogara as vezes dramaticamente. A entio cdtedra de francés alternava aulas de leitura com exposigées de histéria Iterdria com o fito de ministrar-nos elementos para elaborar uma posstvel sintese. Na segunda-feira proced{amos & anilise dos tro- os constantes no poema Le lac; na quarta-feira éramos instru- dos sobre as correntes romanticas de gosto e de pensamenco que tefiam influfdo na eclosto da lirica de Lamartine. ‘Mas, forga convir, para que a imbricagao de texto ¢ con- texto se efetuasse com rigor metodolégico seria necessirio que o explicador relativizasse primeito as suas categorias de andlise em verde assumi-las como critérios de valoz, Dada, porém, a filiagao académica do método, essa perspectiva dialética raramente se Vislumbrava. Historiciando, pode-se dizer que o tempo da expl- cation era ainda o do Ancien Régime, entre cartesiano e neoclissi- €0, ao passo que o tempo da histéria literdtia jé era século XIX. Falamos em critérios de valor. Quais seriam estes para a tradi¢do didética francesa? A integridade necessétia do texto de- pendia da escolha ou invengao (no sentido latino de achamento) de um tema tinico. A disposigao linear das partes garantia a0 poema a virtude indispensivel da ordem. Enfim, a elocucio exata de cada significado daria A obra o mérito imprescindivel da clareza: LEITURA DB PoESIA 2 Jnventio: Integritas Dispositio: Ordo Elocutio: Claritas, Acontece, porém, que essas partes ¢ artes no convém 4 maioria dos poemas esctitos a partir da revolugio romintica. Daf 6 dilema: ou o intérprete enfientava 0 contraponto tantas vezes assimétrico mas fecundo de wadigio literdria e criagio pessoal que enforma o melhor da arte contemporéinea; ou, fixando-se no cénon das vireudes neocléssicas, rotulava anacronicamente como “defeitos’ de fundo ¢ de forma a pluralidade de motivos, as rup- turas de composigao ou a densidade imagistica dos poemas que submetia 20 seu esquadro. Porque unidade, ordem ¢ clareza so apenas equilibrios funcionais, que obedecem as necessidades da representagio ¢ da expresso, ¢ no atributos ontoldgicos a que © poema deva @ priori conformat-se. A tigidex. académica na hora do julgamento final no esca~ ava ninguém, nem mesmo o cléssico por exceléncia, Jean Racine. Como jé vimos, a narrativa de Théramene foi arguida de longa € ornada em demasia nao sé pelos zoilos dos Setecentos como também pelos comentadores didticos de Fedra em pleno século XX, Para entender 0s limites estéticos da explication de texte abra- se a edigio da tragédia preparada para os estimdveis Classiques Larousse, muito difundidos entre nds pelos anos de 1950. Nela se encontram questdes de critica literdria do seguinte teor: “Leitura dos versos 1498-1570, A narragao de Théraméne: a) é natural em si mesma? b) quais sao 6s seus defeitos? ©) 0 que pode explicar esses defeitos? d) acha-se alguma coisa de louvivel nessa narragao?”s 22 ALFREDO Bost Sugiro que se retome a ltima pergunta da série acima vol- tando-a para a prépria explication de texte: — Acha-se hoje algu- ma coisa de louvavel nessa forma de leitura? Que a resposta venha do mesmo Leo Spitzer que, inspira- do em outras fontes culturais, seguia uma direcdo aparentemente contriria & dos mestres-escolas franceses. Por duas vezes, entre tanto, 0 admirivel praticante do cfrculo hermenéutico fez um aberto elogio & explication. Lembro que 0 ensaio que dedicou & epistola “Les vous et les tu” de Voltaire, em que atribuiu aquela técnica mais, alvee, do que 2 sua rotina escolar nos dava: a capa- Cidade de “buscar, nos particulates lingiisticos do mais pequeno organismo artistico, 0 espirito ea natureza de um grande escti- tor”. Outta referéncia positiva lé-se no seu estudo sobre o poema de Keats, “Ode sobre uma urna grega’. Spitzer, cortigindo os “excessos metafisicos” de certo intéxprete alemio de Keats, reco- meida aos Icitores que adocem com simplicidade “a maneira francesa, pois esta sempre comega pela mais direta das pergun. tas: “de que é que trata todo 0 poerna?”s, Percebo agora, tarde mas em tempo, que onde ns, jovens, acusdvamos dristicas oposigGes, 0 amor & poesia trangava secre- tas afinidades. Quando o escruturalismo entrou em cena, nos meados da década de 60, a minha formagio de aluno de Letras jé tinha aca- bado. Restava percorrer 0 caminho das escolhas pessoais com todos 0s riscos que a liberdade traz consigo. ‘Uma estada em Florenga no ano letivo de 1961-62 me fize- ra conhecer de perro uma cultura histérica ¢ estética muito densa que estava substituindo o idealismo de Croce, hegeménico du- rante meio século, pelo pensamento marxista de Gramsci e pelos LEITURA DE PoESA 23 varios existencialismos de pés-guerra. Em vez de Espirito as cate- gorias supremas passaram a ser Histéria, Sociedade, Cultura, Existéncia, Pessoa, No terreno da critica literéria, essas correntes, entre si dispares, postulavam uma intcgragao do texto na histori- cidade concreta dos seus valores ou na subjetividade ctiadora que the dera origem, Escolhendo para assunto de tese a narrativa de Luigi Piran- dello, eu me langaya precisamente nessas diregbes, que me pare- ciam complementares, pois o conflico entre a forma piblica do individuo (a sua persona) e a sua vida interior e, das, 0 processo movido aos constrangimentos da méscara social me pateciam entio incompreensiveis sem 0 exame do contexto ideoligico € do erbos peculiar ao escritor siciliano, Andlise existencial e hist6- ria cultural cruzavam-se e 0 seu ponto de encontro acendia uma luz reveladora dos significantes produzidos pela escrita na sua busca de representagio ¢ expressio, Foi portant com perplexidade que, voltando ao Brasil, ‘me dei conta da virada neoformalista que a critica internacional estava dando sob a batuta de mestres franceses ou eslavos sediados em Paris, Entre a publicacao da engenhosa andlise de Les chats de Baudelaire, feita por Jakobson e Lévi-Strauss em 1963, ¢2 edigio da Rhétorique générale do Grupo de Ligge em 1970, a teoria lite- réria do eaimeno ficou literalmente tomada pela obsessio de des- cobrit, recortar ¢ classificar as estruturas lingtilsticas e retéricas de todos os textos jamais produzides pelo homo loquens. Roman Jakobson, Tzveran Todorov, Gérard Genette, Claude Bremond, uum certo Roland Barthes (anterior aos prazeres do texto), Julia Kristeva, A. J. Greimas ¢ algumas revistas prestigiosas como Poétique, Tel Quel e Communications dedicaram um intensissimo labor analitico ao projeto de identificar 0 caréter prdprio da lite- rariedade da literatura, por oposigao aos outtos modos ¢ usos da linguagem que suprem as necessidades da comunicagio entte os 24 ALEREDO BOS! homens. A poeticidade mesma teve que passar pelas apertadas grades (grilles) de cettos paradigmas cuja presenca lhe concedia registro de identidade. Hé paradigma projetado sobre a cadeia sintagmatica? H4 duplicagio? Hi hinarismos e paralelismos? A timacom_A, B com B, sendo que AA se opée a BB? Entio, segu- ramente, hd fungio postica. Onde estava o fundamento cientffico dessa busca universal ¢ sistematica de redundancias? Sem diivida, na lingiifstica estru- ‘ural fundada por Saussure e matizada por um lingiiista sensivel a poesia, Roman Jakobson. A linguagem verbal supée a vigéncia de um cédigo no qual alguns poucos elementos parassemanticos se combinam, logo voltam periodicamente, para formar unidades de significagao, os morfemas, os lexemas. Na cadcia de unidades significantes os elos iguais acabam repetindo-se necessariamente € com uma fiegiiéncia cada vez mais visivel e verificivel. Q que é,alids, 0 mecanismo de todos os eédigos: os elementos sto pou- €0s, 0s arranjos sio miltiplos e as repetigées sio fatais. E cha- mam-se paradigmas ou padrées os subconjuntos de elementos que se reiteram de modo regular. Até af, 0 abe da lingisstica estructural. (Ora, essa verificagao do caréter sistémico da linguagem foi liceralmente hipostasiada pela razdo estruturalista sobre os rctor- nos regulares ou mesmo eventuais que ocorrem forgosamente em todos os poemas de todos os povos do mundo, desde os hinos religiosos arcaicos, as cangdes de ninar e os provérbios até 6s experimentos cubo-futuristas dos vanguardistas russos. O cédigo poético levaria ao mais alto grau de util aquela marca inerente a todas as linguas naturais ou artificiais. E essa a base lingifstica do conceito-chave, generalissimo, da leitura estruturalista, a fungio poética: a projecio do cixo das similarida- des no cixo das contigilidades. A aceitagio da teoria rendew mirfades de exercicios escola- LEITURA DE POESIA 25 res que boravam de pé com ingénuo espanto o ovo de Colombo, De faro, que poema jamais conseguiria subtrar-se iquela cons. tatagio dbvia das regularidades lingisticas? Ritmo & repetigto. Metro ¢ repeticéo, Recorrem os morfemas de género, niimero ¢ grau ben wom as flexoes pronominais e verbais. A morfologia € um esquema de ¢lasses que necessariamente se repropdem e se combinam. O mesino se cli com a sintaxe: sujeito, predicado ¢ complementos integram todas ou quase todas as frases. Bastava por em realce este ou aquele item, mostrando a sua recorréncia, ¢ © analista provava, is vezes forca de diagrams ¢ flechas, que 0 que nio era igualdace (axa) era diferenca (ab), dia, para maior rigor do método, oposigio bindria, A parte 0 tom caricatural que este resumo poderd ter, 0 faro ¢ que o estruturalismo, quando alheado da dimensio antro. Polégica ¢ filoséfica que Ihe dera Lévi-Strauss, encrou por um beco sem safda onde s6 procurava 0 que jé havia de anteméo encontrado: a evidéncia dos paradigmas, 0 binarismo, o circulo do texto que remere a si préprio, do poema que a si préptio se Persegue ¢ espelha, A isto chamou-se rigor, A superposisao de padrdes da lingua e procedimentos poé- {cos foi um ato de reducionismo Idgico que favoreceu uma pré- ‘ica textual artficiosa e uma critica literdria carente da dimensio hermenéutica, Mas, como diz 0 povo, de onde menos se espera dat é que ver. Do mesmo estfuturalismo que supunha colher a esséncia do oético na ocorréncia de paradigmas, vitia, paradoxal e fecunda, & pista para sair do impasse a que o constrangiam os seus esque. matismos de base. @ mesmo Roman Jakobson, que estimulava tuma leicura intralingistica do texto, defendia com vigor a idéia dla motivagio do signo verbal, pondo em diivida a tese da sua arbitrariedade tal como fora enunciada por Saussure. ‘A motivasio é/a janela pela qual a palavra respira fundo 26 ALFREDO BOS! Se comunica com as energias da imaginacio e do sentimento, tornando-se expressiva, ou com as formas do mundo, tornando. se represencativa, A palavra motivada € pathos. A. palavra moti- vada & mimesis Seassim é, simbolismo e realismo voltam a ter voz no coro das teorias poéticas ¢ as suas verdades, parciais mas seminas,j io sero mais recalcadas em nome de uma visio autotélica, pre- tensamente radical, da escrita artistica. Lembro-me do encantamento com que li, nas péginas da revista Diogine, um ensaio de Jakobson intitulado “A la recher- che de Vessence du langage”. Nele acha-se a reconstituigdo das ‘irias teorias do signo elaboradas desde os extdicose Santo Agos- tinho até Peitce. As visadas do criador dla Semiética — como a sua triparticio dos signos em fcones, indices simbolos — sso retomadas por Jakobson & luz da Lingiiistica moderna. E a relagbes motivadas logo nao-arbitrrias, ence significant, sgn’- ficado ¢ referente sio ilustradas com um alto niimero de exem- blos persuasivos que cobrem rodos os niveis da linguagem. Fica evidence que a poesia arualiza e leva a maxima poténcia as virtua- lidades todas do signo e sobretudo a sua faculdade de dar nome a aspectos singulates da experigncia. A palavra poética, assim pen- sada, deixa de ser letrume opaco e intransitivo para tornar-se feixe de relagdes que prismatizam (vatha a metéfora de Mallarmé) 0 som pelos sentidos e o sentido pelos sons, a imagem pelas idéias a idéia pelas imagens, E 0 simbolo cumpre a sua voca¢éo mul milenar de dar inteligiblidade 4 relagéo do homem com o mundo, Essa vocacio para o sentido ainda estélonge de terse esgorado: no por acaso, Roman Jakkobson rematava o seu estudo com uma citagao de Khligbnikov: “Eu compreendi que a pétria da criacao «std situada no futuro; é de Ld que sopra o vento que nos enviam 8 deuses do verbo"”, Pergunto-me agora: de onde teria vindo a Jakobson a ins- LEITURA DE PoEsiA 27 piragio para transcender os limices do seu préprio escyuema didatico das fangées da linguagem? Veio da sua convivencia inci ma com o melhor da poesia russa do comego do século, néo excluida a lirica de feicdo simbolista. Veio dos tempos herdicos do formalismo de Moscou e de So Petersburgo. Como se sabe, uma perseguicéo feroz comandada pela censura stalinista fez calar a vor daqueles pesquisadores que, desde os anos da Primeira Guerra Mundial, vinkam dando contri- buigdes originais a teoria do poema. Mas, gracas a iniciativas como a de Todorov, que compilou os principais textos dos formalistas russos em Théorie de la littérature (Seuil, 1965), ¢, no Brasil, & dedicagio e comperéncia de um mestte dos estuclos russos, Boris Schnaiderman, pudemos enfim conhecer os trabalhos de Chiklovski sobre a arte como procedimentos de Tinianov sobre a nogio de construgdo € 0 conceit de evolugio literdtias de Ossip Brile sobre as relagbes entre ritmo e sintaxe; ou de Tomachevski sobre a cstrutura do verso © a questo da temitica. Nao cabe aqui mapear as teses do formalismo que foram amplamente tetomadas pelos estudiosos dos anos 60 ¢ 70. O texto de Brik, por exemplo, sempre me pareceu particularmente agudo ¢ tem-me valid muitas vezes nas aulas de andlise ritmica de poemas brasleitos. No terreno especifico da leitura de poesia creio que se de- vvam ressaltar alguns aspectos histdricos e rebricos daquele fecundo movimento cultural. Os formalistas eram, acima de tudo, escavadores da pala vra artistica, As suas primeiras ¢ mais audazes interveng6es foram ditadas pelo clima polémico que se difundiu na Russia no pri meiro quarto de século envolvendo simbolistas e anti-simbolistas entre os quais avultavam pela militancia os fututistas. Era uma luca nao sé literéria mas também ideoldgica, pois alinhava, de tuma parte, os defensores de um passado neo-romantico e espiri- 28 ALFREDO OST tualista ¢, de outra, os arautos de um futuro que apostava no fazer técnico ¢ nos moldes de um pensamento materialista. Este cardter futurista de ruptura com as poéticas do século XIX seria responsivel pelo tom radical ¢ irreverente dos manifestos do Circulo de Moscou e da OPOLAZ, Sociedade para o Estuclo da Linguagem Poética (1916), que foram as primeiras agremiagoes dos formalistas. E hipétese corrente na historiografia sobre o formalismo russo atribuir aquela sua disjungo cortante de linguagem poética versus linguagem de comunicagio ao projeto fururista de criar ‘uma arte inteiramente diversa tanto da tradicéo literétia quanto da fala cotidiana, “a arte libertada da vida? ou “a arte como artifi- Gio”, no dizer do jovem Chklovski. Em contrapartida, o conceito jakobsoniano de motivagio acabou reatando os dois termos, arte e vida, postos em contraste, ao afirmar que entre linguagem cotidiana e linguagem poktica no hé fosso intransponivel, apenas uma diferenca de grau ou de rensidade. O cédigo lingilistico de ambos afinal é 0 mesmo. A teoria da motivagao, cujos ascendentes estio no Crétilo platdnico, na Cabala, nos romanticos ¢ nos simbolistas, insere 0 leitor de poesia em um universo existencial amplo, o mundo-da- vida que, em iltima instancia, é 0 mesmo universo do leitor de obras ndo-literdrias. Enquanto 0 conceito de fungio poética te dia a deslocar 0 texto para 0 pélo da linguagem centrada em si ‘mesma, 0 conceito de motivaséo potenciava os procedimentos da fala corrente elevando-os 20 plano da expressio estética. O que a hipétese da existéncia de uma fungéo poética, em si isola- vae abstrafa, a idéia de motivagio dinamizava langando 0 poema no “gran mar dell exsere" invocado por Dante. A intimidade que os formalistas cultivavam com as fontes vivas da literatura petmitiu-lhes transitar de uma posigéo exclu- sivista (‘poesia no € vida") para uma posigo integeacionista LEITURA DE POESIA 29 (poesia também & vida), o que desnorteia o leitor de hoje preso a0 fraseado de efeito que ilustrava ora uma ora outra proposta. Temos hoje distancia para avaliar a densidade oculta naqueles paradoxos ¢ exploré-la em mais de uma dimenséo Cito, a propésito, a controvertida definigdo de Chklovski de arte como procedimento. Tomada em abstrato, é um lema ultraformalista e, como tal, serve de escudo a jogos maneitistas, No encanto, vista no seu contexto, essa férmula abre-se para o pprojeto maior de proximar linguagem poética e percepsao origi- nal de pessoas ¢ objetos. © procedimento do poeta-inventor ndo € um mero expediente retérico auto-ostensivo (“semostradeiro”, como diria a Emilia de Lobato), mas um modo da percepgio Pelo qual o olhar singulariza o objeto e o liberta das camadas con- vencionais ¢ do uso instrumental que dele se fez e faz. O novo em poesia nao é efeico de arranjos cetebrinos de fonemas ou de palavras: arranjos que, com graca ¢ propriedade, os italianos chamam de feddure,friolciras, dada a baixa temperatura poética que 0s ditou. Ao conttério, o novo depende de uma ingenuidade radical do olhar e do sentir que atenta para a coisa e a diz. como se 0 fizesse pela primeira vez. Ingenuidade no sentido que the atribuiu Schiller no extraordinério A poesia ingénua e sentimen- tal. $6 0 poeta ingenuo & génio, afirmava Schiller, ¢, enquanco sénio, capaz de criar novos procedimentos de expressio. Nessa ordem de idéias, 0 estramhamento que a grande poe- sia em geral provoca, longe de ser um artificio forjado paca com- plicar a frio a relagao do leitor com o texto (“E del poeta il fin la meraviglia”, dizia Marino), provém da agudeza de intuiggo e da intensidade de sentimento do eu Iirico em face de um mundo que ainda é novo ¢ imprevisto apesar de gasto por séculos ¢ sécu- los de uso e convengao. Futurismo e simbolismo — discordantes em quase tudo — convergem aqui para renovar por dentra o off- cio desautomatizador da palavra poetica. 30 ALFREDO 8051 Essa leitura transformalista que proponho dos conceitos afins de motivagzo, singularizagio e estranhamento é confortada pela interpretagio que Ihes deu 0 mais completo dos historia- dores da formalismo russo, Victor Erlich: Observemos também, sem invalidar as afirmagies de Chklowski, que 0 sew conceito de arte como redescoberta do mundo era visinho do conceite tradicional mais do que o er ico formalisea 0 admitivia. Como sublinharam Wellek ¢ Warren, a idéia de estranhamento nfo era absoluramente nova. Jd Aristoteles estava consciente do fto de que um estilo potrice perfeito nio pode dispensar certas palavras incomuns Também a esttica romantica, como Coleridge e Wordsworth, vviu no senso de novidade e de frescor uma das caracteisticas da verdadeira poesia. Do mesmo modo, para os surrealistas, arte éfundamentalmente um renascer da admiragio, um ato de renovagio’, Ainda segundo Erlich, a concecio de poesia de TS. Eliot, expressa em The use of poetry and the use of criticism, lembra de perto a tese da singulatizacao: A poesia, (exoreve Eliot), pode ajudar a romper o mode convencional de perceber e de julgar[...] e faz ver ds pessoas 2 mundo com olbos novos ou descobrir novos aspecos deste. De quando em quando, ela pode dar-nos uma consciéncia imatis ampla dos tntimentos profindes, ignotos, gue formam @ substrato do nosso ser, ao qual bers raramente acedemos; Porque a nossa vida é, em geral, uma continua evaiio de nbs mesmos ¢ do mundo vistvel e senstvel?, LEITURA DE POEStA 31 Maio de 68. Liam-se intensamente Jakobson e Todorov, Genette e Bar- thes, em 68, precisamente quando o radicalismo de esquerda es- pocava em Paris ¢ periferias 20 mesmo tempo que no Brasil a ditadura siiliar entrava pela fase do terror. © Apice do eseruturalismo coincidia com a explosio de todos os marxismos. Na Franca de maio de 68 uma revista como Fl Quel, obra coletiva de Sollers, Barthes, Kristeva e Derrida, engenhava meios e modos para fundir estrucuralismo lingiistico € materialismo, no que acompanhava, mutatis mutandis, 03 esfor- gos de Louis Althusser para reler O capital em uma chave reso- lutamente anti-historicista, Na Universidade de So Paulo o centro irradiador da teoria literéria, a personalidade rica e mediadora de Antonia Candido, se abria democraticamente ds novas correntes, embora sem perder de vista 0 horizonte social ¢ histérico que dissolvia toda rigidex formalista segundo a boa li¢éo dos professores franceses ativos hos primeiros anos da Faculdade de Filosofia. Fora da USP, 0 cstruturalismo vingou depressa e sem maiores contrastes. Virou propriamente moda, Nesse meio tempo, escapos ao nazismo, e jf naquela altura ‘mestres de mais de uma geragS0, Otto Maria Carpeaux e Anatol Rosenfeld continuavam a exercer o seu magistério que expunha € problematizava 0 idealismo, a sociologia do conhecimento, 0 existencialismo, © marxismo e a psicandlise, fazendo ver que 0 estruturalismo estava longe de responder as quest6es fundamen- tais da nossa cultura. E entre estas questées, as mais candentes ara nds, amantes da poesia em tempos ag6nicos, eram as que aprofundavam as relagdes entre Palavra ¢ Histéria, Palavra ¢ Sujeito. Seguindo o rastro da meméria pessoal, tantas vezes mistura- da com a histéria coletiva, vejo-me entio perseguindo as zonas de 32 ALFREDO Bost inersecgo de fantasia poética e imagindrio cultural: no caso, est dando os nexos de poesia e mito na obra de Giacomo Leopardi. O estruturalismo de ‘Lévi-Strauss lia 0 mito como uma sintaxe suprapessoal, uma bricolagcm de motivos ou “mitemas Peculiar 20 pensamento selvagem: 0 que era um convite pata o analista ater-se as relagoes formais e sincrOnicas verificaveis no texto, relegando ao plano das hipdteses incertas 2 compreensio dda sua génese hist6rica ¢ existencial. Em contrapartida, no cam. Po da reflexdo hetmentutica, Paul Ricoeur, etomando Dilthey em chave fenomenolégica, mostrava que 0 mito podera ser pen. sado no interior de um contexto de sentido e valor contexto que variava conforme os momentos histérico-culeurais, Pela abor. agem hermenéutica, o mito poderia se revivido e ganhar novos significados no interior da obra de arte. Essa possibilidade de remodelagem dos antigos mitos na histéria viva da poesia jé fora contemplada na obra mestra de Ernst Robert Curtius, Literatura europdia e Idade Média latina, com a sua selva de tépicos renascentes; ¢ jé alicercara a ptoposta enciclopédica de Northrop Frye que, na Anatomia da critica, classifica os mitos e os arquétipos recorrentes na literatura oci- dental. Na estcira de certas sugestdes de Ricocur, que se encon- tram na Symbolique du mal, procurci compreender tanto os mo- tivos idicos e elegiacos quanto os motivos heréicos da poesia de Leopardi. Do ponto de vista do significado, Leopatdi reelabora- va mitos centrais da tradigio greco-latina e biblica: a [dade de Ouro, o Paratso Terrestre, a Queda, o Prometelsmo utdpico, Daf @ nome do ensaio: Mito poesia em Leopardi, A tentativa de imbricar 0 texto poético no processo de longa dluragao da histéria mltica era sedutora, mas eriava mais de um Problema. E 0 mais agudo consistia no aspecto remissivo do mé. ‘odo: explicar uma obra do comego do século XIX pela retomada LEITURA DE poEsiA 33 de rope’ de um passado que a antecedera de, 20 menos, trés mile- nos. Para enfrentar a dificuldade do anactonismo era necessétio, primeito, demonstrar a permanéncia e a pregnancia de um ima gindrio que acravessara tempos culcurais diversos e que subsistia na memétia das representagdes; depois, historicizar, 0 quanto posstvel, a temdtica do poeta moderno colocando-a em sirwecdo: © que era vidvel gracas 4 aberta polémica de Leopardi contra os idedlogos do seu cempo. Leopardi era movido por um amargo inconformismo em relagio a duas vertentes culturais que permeavam os cfrculos cul- tos da Europa ocidental entre a conquista napolednica e os anos da restauraco: 0 passadismo medievista dos antigos nobres (de que seu pai era paladino nas Marcas pontificias) ¢ o discurso superficial dos liberal-burgueses que, certos do seu promissor futuro econdmico ¢ politico, afirmavam a vigéncia de um pro- stesso fécil que em breve estaria ao alcance de toda a humanida- de, Leopardi, como fariam Schopenhauer e 0 jovem Nietzsche, seus grandes admiradores na Alemanha, valorizava extremada- mente a poesia grega arcana, com seus mitos vita, sobretudo os titinicos, afrontadores da prepoténcia olimpiana. Nem pesado passadismo nem leviano progressismo. A situasio existencial de Leopardi, que inclufa os trabalhos da memeéria cultural, nele precoce, levava-o a extiait da tradigzo simbélica aqueles temas miticos que melhor figurassern o seu préprio mundo-de-vida. Como leitor moderno de Leopardi cabia-me compreender como aqueles mitos tinham sido abso dos pela sua concepgio de histéria em fungéo contra-ideolégica Ora, repensar 0 imaginario de tempos remotos trazendo-o Alua da consciéncia atual dos conflitos era também um dos alvos da visio dialética da cultura centrada na idéia de um desenvolvi- mento da prdpria consciéncia através dos tempos. Nao me bas- tava, para tanto, recorrer 2o culturalismo, que apenas consrata a Br ALFREDO BOSI Permanéncia do passado na meméria literéria. Eu precisava de uma teoria da cultura que desse conta da escolha leopardiana de resists forgas ideol6gicas do seu presente mediante a refacgao das imagens miticas do passaclo em registro anticonformista, Em utras palavras, eu precisava de uma teoria da cultura que soubes. se lidar com a commadizéa entre consciéncia poéica (que incon, ora em si a meméria) ¢ presslo ideolégica. Uma teoria da culeura, Verificou-se, ao longo dos anos 60, um processo de cliva: em no pensamento de inspiragdo hegeliana. Do lado italiano, auc me era familia, Benederco Croce, hegeliano de centro, jé formulara a “dialética dos distintos”, pela qual arte efilosofta sao formas diversas do Espirito que no dependem mecanicamente das condigfes econémicas de vida do artista e do fildsofo, pois, a seu modo, as fepresentam ¢ as julgam, 0 que dava 3s criagbes simbélicas uma considerivel margem de liberdade. Quanto 20 Pensamento de Gramsci, corrigia polemicamente 0 idealismo manifesto nas posigdes crocianas, mas, como estas, nuttia um, respelto profundo pela capacidade idealizadora e projetante da cultura e das atividades “poiéticas” que nao deveriam ser redusi. das a0 jogo nu ¢ cru des interesses. Ambos, Croce e Gramsci, carreavam dgua para o moinho de uma diferenciagio das prét cas ¢ dos valores culturais. Do lado alemao, a polémica da era Pés-stalinista era dspera. O matetialsmo histrico ce Lukics (de quem eu admirava e admiro os ensaios sobre‘ romance de for. masio, 0 heréi problemético, o simbolo e a alegoria) vinculava resolutamente ponto de vista narrativo e ideologia de classe, mow. trando a eficécia € a posiividade operante das relagées de pro- dso no mundo burgués: @ que evidentementelimitava aquela ampla margem de liberdade que Croce atribula 3 intuigdo litca, Mas era precisamente ess positividade ubiqua e coercitvs, pré. Pria das estrueuras burguesas hegeménicas, que a dialética nega. lética LEITURA DE PoESiA 35 tiva de Adorno e Horkheimer contrastava em nome da liberdade revoluciondtia, da inteligéncia critica ¢ da imaginacao estética E, por erés da Escola de Frankfurt, iluminando e desafiando 0 determinismo sociol6gico linear, assomava a figura atfpica e pro- fética de Waleer Benjamin, que viria a ser 0 nume do marxismo em crise. A leitura dialética da poesia encontrava em Adorno um texto canénico, 0 “Discurso sobre lirica e sociedade”, que eu fazia lec a todos os alunos de pés-graduacio desde 1970. Particular- mente feliz me parecia o techo em que o pensador augurava uuma interprecagdo social da litica que Fosse capaz de dizer “até {que ponto fica a obra de arte condicionada a sociedade, e em que medida ela a ultrapassa”. Outro momento forte do ensaio: “A grandeza das obras de arte consiste unicamente em revelar 0 que 2 ideologia oculta’™®, Leopardi fizera solirariamence esse percurso, conseguindo superar na sua lirica madura tanto 0 arcadismo erudito, dominan- te nos meios provincianos que freqiientara adolescente, quanto o medievismo de importagio alema que, por volta de 1820, se inclinava para uma arte gética, abertamente anticlissica. Leo- pardi rompera as malhas do tecido ideolégico que oprimia o seu ambiente literério ¢ escavara a prépria dicgéo até produzit uma forma que convertesse em imagem ¢ ritmo os seus impasses exis- tenciais. Softendo o presente insoftidamente, ansiando pelo in- finito, Leopardi valeu-se dos Antigos para arrancar dos materia- 05 um titanismo que, afinal, daria o timbre da listas e dos est sua voz 20 coro dos romfnticos mais radicais. Comegou entio a gestar dentro de mim um conceito para © qual tendia a minha formagio espiritual, mas que demorou al- guns anos a vir a luz: o conceito de poesia como resistencia, Nele reconheso hoje presengas ora difusas, ora pontuais, do existen- alismo além de estimulos do pensamento dialético de linhagem me ALFREDO BOS! hegeliana. Do existencialismo recebi largamente, desde os seus Precursores, como o Kierkegaard de Aut Aut e 0 Max Scheler dos nsaios sobre a intencionalidade dos movimentos afetivos, até os seus pensadores eristios (vs personalistas Mounier ¢ Pareyson) ¢ incréus: ¢ como teria sido possivel naqueles anos permanecet alhcio 4s palavras de fogo que vinham de Sartre, de Camus, de Merleau-Ponty? No campo do pensamento dialético Croce me emetera diretamente a Hegel cuja Butea e a Pequena ligica tomei por livros de cabeceira. Ea paixo politica daqueles mes- mos tempos de opgbes radicais me levava a bater em outtas por- fas: Gramsci, Benjamin, Adorno, Emnst Bloch, Mas ainda falta dizer a fonte principal: a leitura assidua de Giambattista Vico. Para este pensador original, anticartesiano em pleno século XVIIL, 0 mito precedeu & razio assim como 2 linguagem poética preformou e enformou a prosa do conceito. Na Scienza nuova 0 mito ea poesia sobrevivem nos tempos “eivs” “racionai ” de aparente morte da arte, assumindo entio regis- tros novos, quando néo estranhos. E ndo terd sido essa estranhe- %2 qué as vanguardas formalistas advertiram na grande poesia moderna, dando-the o nome de “estranhamento” sem atinar tal. ¥e2 com os motivos histéricos das suas marcas de singularidade © marginalidade? A idéia de que a poesia (mitica, intimista, satrica ou ut6- Pica) nio é liso espelho da ideologia dominante, mas pode ser 0 Seu avesso e contraponto, nao me conduziu a retornos irracions, lists. Tratava-se de entender a riqueza imanente do simbalo poético em uma perspectiva realista pela qual a poesia faz parte do movimento histérico, é um dos seus mods de manifesar-se € no um seu epifenémeno, LEITURA DE PoEStA 37 Quando me pus a redigir O ser e 0 tempo da poesia, entre 1972.e 1976, o estruturalismo ea dialética hegeliano-marxista jé estavam cedendo lugar a um enfoque pluralista, descentrado, 4 erno”, do texto, viséo que a andlise dos discursos pro- hee strva. Foucault tino Barches, Lyotard e Derrida desconstruiam) prazerosamente as teses sistémicas que tinham sido pacientemente construidas por Lévi-Strauss, Jakobson ¢ Al- thusses, ainda que nem sempre uma polémica driistica de tudo- ou-nada mostrasse a divisto das éguas. A mudanga de perspectiva, ou melhor, de perspectivas ainda est em curso, Confesso que, envolvido nos problemas que a dialética dos distintos e a dialética negativa propunham & teoria do poema e & histéria cultural, mantive-me a9 largo das formulagdes ditas pés-modernas, em- bora pressentisse, no sem angtistia, a sua forca ambivalente de atragio e desagregacéo. Quisesse alguém mapear as correntes cruzadas ou parale- las da critica recente, deveria fazer o trabalho de um cartégrafo de meandtos. As éguas, mal divididas, fluem umas nas outras. O que parecia por um momento unido est prestes a apartar-se. O que, tempos atrés, corria em leito préprio agora se espalha ala gando as margens ¢ impedindo que o desenkista separe com taco nitido 0s cursos principais ¢ os seus afluentes. Tudo se con- funde quando a matéria tende ao estado de magma. Estruturalistas ¢ marxistas, por tanto tempo desavindas, podem aproximar-se buscando miisuo apoio em face do adverss- tio comum, que é a retérica do irracionalismo e do narcisismo sem limite. Subsiste, é verdade, um modo de ler © poema, ou 0 romance, como se este fosse uma rede de representagées que teria sempre a ver com o sistema social abrangente ¢ com os seus 38 ALFREDO BOS! conflitos ideolégicos: leitura que a alguns ji parece levemente anacrOnica, mas que nasce de um esforco metitério de criticos que ainda apostam no sentido do uno-todo em devie gracas &s contradicdes que o constituem, Em paralelo, hermeneutas e psi- cocriticos di 56, As Vezes, as mdos sempre que o tema lembre o mito € as pulsGes inconscientes que 0 mito reapresenta e subli- tna, Se 0 fantasma do reducionismo sociolégico ou psicanalitico ronda essas leituras, deve-se lembrar que tudo depende da sabe- dotia do intérprete. Quando este se abeita respeitoso da densi. dade do objeto extético,reconhecendo que a sua teoria, por mais cientficae rigorosa que paresa, no vai “explici-lo” uma vee por todas, mas apenas tentaré compreender alguns dos seus signif- caddos ¢ dos seus processos de expresso, 0 risco de determinismo serd esconjurado desde o primeiro olhar do analista, Como o clima geral é de pluralismo de visadas, que 0 vale- tudo.do consumo cultural favorece e multiplica,o historiador de idéias poderd encontrar, & sua disposigdo, exemplos das mais va. Fiadas cendéncias quer puras quet misturadas. Mas sempre ser posstvel divisar no meio do labirinco alguns corredores mais fre- ‘QUentados que, provisoriamente, nos dio a impressio de valerem, como sinais dos tempos. Pensando cxploratoriamente: o que esté acontecendo neste final de século é um fendmeno de coabitacio de extremos. Ditao 08 socidlogos que a civilizagio de massas andnimas tem por neces- sitio complemento a emergéncia do mais agudo individualism, O eclipse do sujeito (a morte do autor preconizada por Barthes) coexiste hoje com a reivindicacio de que sé 0 sujeito empirico importa. No interior desse campo de polaridades expande-se uma critica literétia meio académica, meio jornalistica, estimulada Pelo mercado cultural em crescimento. A abordagem do texto oético oscila entre um enfoque biogréfico, as vezes brutalmente LEITURA DE POESIA 39 projetivo, ¢ uma leitura erudita saturada de remissoes ¢ media~ ges de todo tipo. © que entendo por um enfoque brutalmente projetivo? Exatamente 0 oposto de uma das proposigées capitais de Croce pela qual “a poesia nao é sentimento na sua imediagio”; jutzo que se completa quando o fildsofo pede que se distingam com cuidado a personalidade pottica do autor e a sua personalidade empirica ou pritica. Ora, a visada projetiva diz 0 contrétio: a poesia vale como pura imediacio, explosio do desejo, da paixao, do capricho individual, do sexo a flor da pele, do instinto de morte, dos lances do acaso ¢ das contingencias a que se teduz 2 maior parce de uma biografia, “Poesia”, diz um desenvolto pés- moderno da Califérnia, “é tudo quanto eu quero chamar de poc- sia". Descarta-se com uma penada a funcio simbdlica, univers zante ¢ mediadora, da palavraliterdtia e das redes culturais, tudo em favor da gestualidade selvagem da voz ou da letra. Serfamos tentados 2 falar em “novo surrealismo” ou em “novo expressio- nismo”, caso nao tivéssemos consciéncia plena de que se tratatia de um abuso, de uma extrapolacio: o surrealismo francés ¢ 0 cxpressionismo alemio propuseram a arte inquietacbes filoséfi- «as e politicas de longo alcance que nfo se reconhecem nas ati- tudes pés-modernas violentamente projetivas. A histéria culeural no se repete, apesar das aparéncias em conttitio, \ Mas a critica pés-moderna nio é s6 impudente biografismo autocomplacéncia sem medida. Inclui, no outro extremo, alta dose de sofisticagao, que se revela pela prética de uma leitura hipermediadora, Valendo-se da histéria dos motivos e dos temas na litera ura universal, essa leitura persegue os simulzcros crrantes de uma tradigéo que precederia, no curso dos séculos, esta ou aquela metéfora, este ou aquele ropes. Curtius, no epflogo que escrevett para a sua gbra monumental, opds a crenga na tabula rasa, 40 ALFREDO BOSt segundo a qual o poema obedeceria apenas 3 inspitacéo imediata do poeta, & idéia do thesaurus, de barroca meméria, de que 0 e5- ‘riba enciclopédico extrairia imagens ¢ conceitos inserindo-os ‘maneirosamente na sua composicio!!, A andlise hipermediadora ou hipercultural prefere sempre esta ultima opgao. De fato, a meméria letrada, avolumando-se fatalmente com o passar dos tempos, parece dar boas razdes ¢ velhas armas & metéfora do cesouro. Tudo jé foi dito, inclusive esta mesma sentenga. Nihil nowum sub sole, Assim sendo, é tatefa do eritico descobrit de qual poema antigo ou moderno 0 poema novo é re- facséo, glosa ou parifiase. Retrocede-se a concepgées retdricas seiscentistas para banir de vex a idéia de pligio. “O senhor sabe que todo texto é um intertexto?” — perguntou-me glacialmente em Paris uma especialista na marginalia de Flaubert, Prudente ouvi e nada respondi. Quando o tom muda, mas 0 velho frascio se mantém, diz-se que 0 poema é parddia ou catnavalizagto de outro poema. Ou pastiche ou centio. As teorias de Bakhtin apli- cadas pontualmente a Rabelais sao extrapoladas desabusadamen- te, A literatura nada mais seria do que um continuo espetéculo, variamente encenado, da prépria literatura, Textos gerariam tex- tos por partenogénese. A imagem Lirica j4 nao mais revelaria a abertura da palavra 3 existéncia como postulavam Croce ou, com diversa filosofia, os fenomendlogos ¢ scus discipulos existencia- listas; mas se resumitia na re-efetuagao de padrées tropolégicos produzidos alhures e reencendveis ad libitum. (Desculpe o leitor © involuntério pedantismo, aqui inerente ao método em causa.) Na hora da interpretagao do texto a andlise hipermediado- ra vale-se do trabalho de pesquisa que hoje se faz intensamente no arquivo da histéria das representagées e das mentalidades, & uma saida contextualizante que me parece saudével, E muito provavelmente 0 computador ligado & Internet deveré colaborar cada vex. mais eficazmente nessa busca detetivesca de exempla LEITURA DE POESIA 41 bem reparticos em temas, tépicos ¢ esteredtipos. Tudo 0 que é classificavel deverd ser arquivado e posto & disposiggo dos consu- lentes, ditos acessantes ou usustios. As figuras retricase grama- ticais, que tanto serviram nos anos de 1960 para calyar leituras sistémicas, passam agora a ser instrumentos cortantes na obra de desmontagem textual e do correlativo fraccionamento do eu au- toral. Tudo isso faz sentido na estranha l6gica do caos contempo- Fineo diante do qual devertamos reagir como o est6ico Espinosa: no rir nem chorar mas compreender. A morada de duas portas: breve homenagem & meméria de Gaston Bachelard Entre os extremos do narcisismo sem raizes ¢ da cultura sem sujcito, é grato saber que ainda atrai mais de um leitarcritico uum modo de perceber as imagens do poema capaz de abracar genetosamente corpo ¢ historicidade, maréria e significagio. Falo da experiéncia pottico-filoséfica de Gaston Bachelard que vem resistindo & atual erosio das propostas modernas e se dé como alternativa a todo pensar destrutivo, A formulagao crociana de que partitam estas reflexdes identificava na alianga de imagem e sentimento o ato fuandante da pocsia. Bachelard dé 2 ambos os termos um dinamismo novo quando chama para 0 campo magnético da significagio a ima- gem ¢ 0 som, o corpo humano e a matétia do cosmos. Estamos em face de um pensamento monista fecundo que nada subtrai 3 formacao do texto poético: nem a materialidade da vor, nem a fusio de corpo e mente peculiar & imagem, nem o mével do de- 42 ALFREDO Bost scjo em transformacio, nem os fantasmas do sonho e do deva- ncio, nem a energia unificadora do pensamento, nem enfim a pertenca do simbolo & meméria cultural Com perspectiva original e nao-idealista Bachelatd traba- haa idéia da uni-toralidade césmica e histérica que Croce havia, em registro hegeliano, postulado no seu admiravel ensaio “O ca- rater de totalidade da expressio artistica’, escrito em 1917 e inse- tido mais tarde no Breviério de Estéviea. Cito uma das suas passa- Dar ao contetido do sentimento a forma artstica édar-lhe 20 mesmo tempo o slo de totalidade, 0 sopro (aflatol cdsmico: 6, neste sentido, universalidade e forma arvstica ndo sto duuas «coisas, mas uma. O ritmo e 0 metro, as correspondéncias e as rinas, as metéforas que se abracam com as coisas metaforiza- "das, 05 acordes de cores de tons, as simetrias, as harmonias, todos esses procedimentos que os retbvicos eream quando estu- dam de modo abstrato, tornando-os assim extrinseces, aci- ensaise faltos, sao outros tantos sinbnimos da forma artisti- ca que, individualixando, harmoniza a individualidade com 4 universalidade e, por iss0, no mesmo ato, universaliza'? Segundo Bachelard, a fantasia artistica, que é imaginagéo formal combinada com a imaginagio material, desdobra a0 nosso olhar atribucos préprios da matéria viva, inconsciente, corpérea. Mas nem por isso a imagem sesultante deixa de integrar um determinado “complexo de cultura” ¢ de pertencer & histéria das ctiagdes estéticas da humanidade. © poema transita da cultura para a natureza. A palavra motivada semantiza a natureza e, de torna-viagem, far a cultura re-emergir das suas fontes vitais. O som da linguagem & matéria — aérea corrente saida do organismo humano — que os proces- LEITURA DE POESIA 43 805 mentais da significagio assumiram, Sensagées, sentimentos, imagens, idéias, tudo interage com tudo. E necesstria a unito de wma atividade sonbadona ¢ de uma atividade ideativa para produir uma obra pottica. A arte é natureza enxertada'>, Bachelatd insiste na metifora: o enerto se far porque 0 pocma participa tanto da natureza, terra-dgua-ar-fogo, suporte das imagens, quanto da cultura, que é afinal a préptia natureza Que milénios de operagses simbdlicas trabalharam e afeicoaram, Essa dupla participaglo, que se reconhece na materia sig. nata da palavra, abre ao nosso olhar duas portas. Uma porta comunica com os labirintos do inconsciente onde se gestam as metamorfoses do desejo. Porta do sonho. A outra porta da para os tesouros da meméria formados por mais de trés mil anos de tradigéo letrada. Porta da cultura. Por amor & coeréncia de método hé intéxpretes do poema que se eréem obrigados a abrir somente uma porta. Deixam entrar assim uma cortente homogénea de dados e relagdes, mas pagam caro o prego dessa uniformidade de vistas, pois terdo em mios sé tum elo da cadeia, Se abo apenas a porta que dé para a génese sensivel das figuras do poema, arrisco-me a perder tudo quanto neste se deve 2o estilo de época, ao gosto literdtio, & poética em que se formou 0 autor, as convengoes de géncro e de metro a que © texto obedece, a tépica e ao vocabulirio que tradicionalmente s¢ associaram ao tema, & ideologia que ordenou 0 seu ponto de vista; enfim, deixarei de ver as dimens6es sociais a que nenhum pocma jamais se subtraiu. Se, porém, eu abrir s6 esta outra por- &, fechando a primeira, a minha interprecagio acabari desprovi- da de todo entendimento das operagdes que converteram 0 pathos em. insjgem (nesta imagem tinica, e néo em qualquer 44 ALFREDO 8051 outra tirada de um tepertério) € nada saberei das motivagSes cxistenciais que forjaram a sua expressio neste ritmo, e no em qualquer dos metros que a histéria do verso oferece ao poeta culo, Bachelard ensina a ver no coragzo de um tema cléssico, como, por exemplo, o carpe diem recortente dos gregos aos drca- des, nfo tanto a retomada de um cliche ilustre quanto a ineuigzo sempre renovével de um momento de felicidade amorosa en- sombrado pela certeza da finicude e da morte que espreita toda carne, Entio cada imagem — a chama que diz.o ardor de Eros, © arroio que lembra 0 tempo em fuga, ou a terra fria sob a qual jazerio os amantes — nos revelaré um sentimento delicioso ¢ Pungente, o sentimento que chamou o poeta e os seus leitores para um presente denso,tinico, ierepetivel, embora a sua aparés- cia possa coincidir com as mil e uma versGes que do mesmo tema derim poetas de outros tempos e lugares. André Chénier, bizantino de nascenga, neogrego por vo- cago, derradeito dos clissicos franceses, assim reconstrufa a sua livre conversagio com os antigos: Tantht chez un auteur jladopte une pensée, Mais qui revés chee moi, souvent entrelacte, Mes images, mes tours, jeune et frais ornement; Tantbs je ne retiens que les moss seulement; Jen désourne le sens, et Vare sait les contraindre Vers des objets nouveauc quis sétonnent de peindre's, A porta que abre para a tradigio literdtia, por mais pistas de intertextos que faculte a0 critico, néo deverd fazé-lo esquecet que cada poema novo, forte ¢ belo é um ato diferenciado de clocusio, ato de conhecimento, ¢ no mero re-conhecimento do que jé foi sentido, imaginado e dito. LEITURA DE POESIA 4 Que Mnemosyne, mae das musas, nao barre a entrada epifania: 20 contrério, evocando-a ¢ invocando-a, abra-lhe a porta, Bachelard acalenta a idéia de uma afinidade arcana entre a matéria, tal como a concebiam os velhos alquimistas crentes na coincidentia oppositorum, a sensibilidade humana, as fantasias oniricas ¢ as imagens poéticas: 0 que é outta maneira de pensar as relagGes de contigitidade ¢ de semelhanga que unem o natural ¢ © cultural. O respeito a0 fogo, matriz da vida e agente da morte, advém de um aptendizado social encetado na primeira infincia; © que ndo cancela o fato de cada nova queimadura set uma ex- petiéncia corporal irredutivel. A cultura, no caso, a educacio, pode preceder a natureza na vida da crianga, mas quanto ainda de selvagem e de misterioso continua & espreita no curso da sua existéncial A ‘psicandlise da matéria”, que Bachelard inaugurou com La prychanalyse du feu em 1937, traca a rota que vai do onitico 20 poético, mas © nosso pensador quis it mais fundo ¢ tocar a prépria substincia de que ¢ feito © mundo: aqueles elementos primordiais, tera, dgua, ar ¢ fogo, que iro depois compor-se no imagindrio do texto. Reaparece a metifora do enxerto: Os complexos de cultura estéo enxertados em complexos mais profiandss que foram trazidos & uz pela psicandlic. Como sublinkou Charles Baudouin, um complexo é essen- cialmente umm transformador de energia priquica. O complexo de ‘cultura continua essa transformagii. A sublimagao cultu- val prolonga.a sublimagéo natural’, O filésofo prossegue insistindo na sobrevivencia (dirfa- ‘mos, na resistencia) dos sonhos e das imagens que se formam sempre, de novo, depois que se converteram em poemas ou se 46 ALFREDO Rost fixaram em alegorias ou em conccitos. Como Vico, Bachelard cré no rebrotar das palavras miticase simbslicas mesmo quando tuma rajada de racionalizagées parece té-las varrido para sempre da linguagem dos homens. © encontro da imagem com 0 pensa- ‘mento, do corpo com a cultura, dé-se no instante poético, aque- Je momento de plenitude que faz da poesia uma metafisica instantanea!6, Bela ¢ a filosofia que nao teme a diferenga nem a contra- dlicao; antes, as convoca ¢ as agasalha & sua sombra, Mas, para tanto, deverd também acolher corajosamente 0 momento no raro ingrato da identidade, Sore Sead Notas "B. Croce, Breviario di Bnetica. Aesthtica in nuce, Milano, Adelphi Pa., pp. 193-4. A redacio do original italiano ds Aestetica in nuce é de 1928. 7E Schiller, Poesia ingénua e sentimental, estudo e tradugio de Marcio Su. 2utki, Séo Paulo, Ilaminuras, 1991. A redasao do original data de 1995-96, G. Leopardi, “Discorso di un Italiano intorno alla poesia romantice”, ems Opere, tomo I, Milano, Riccardo Ricciardi Ed., 1956, pp. 772843. A redagio do “Discorso” remonta a 1818, °S.T. Coleridge, Poemas « exerts da "Bigrafia literria’, introduo,sele- 0, tradugio ¢ notas de Paulo Viol, Sio Paulo, Nova Alexandra, 1995, B. 129. A Biognafialiterdria foi redigida em 1815. 4 Spitzer, Critea siti e toria del linguageo, 0s cuidados de Alfredo Schiaffni, Bari, Latera, 1954 * Racine, Pde — magéie, ac de Henti Chabor, 44, ed, Pars, Clasiques Larousse, 1954, p. 87. L, Spitzer "A Ode sobre uma urna grega", em Luiz Costa Lima, Tenia de Siteraara em suas fone, Rio de Janciro, Francisco Alves, 1975, p. 125. 7R. Jakobron, “A la recherche de Iessence du langage”, Dingene, Paris, 2 51, jul-set. 1965, p. 38. LEITURA DE PORSIA a7 BV. Etlich, Wformaliima nuso, Milano, Borpiani, 1966, pp. 195-4 ® Apu Erlich, op. ci. p. 194 1° Theodor W. Adomo, "Discurso sobre lticae sociedade", em Luiz Costa Lima, op. cit, p. 344. O texto original de Adorno é de 1958, 1 E.R. Curtius, Literatura européia e [dade Média latina, erad. de Teodoro Cabral, revista por Paulo Rénai, Rio de Jancro, Instituto Nacional do Li, 10, 1957, pp. 397-419, PB. Croce, Breiari di Exotica, cit, p. 155. 2G. Bachelard, Lean er les ve. Esai sur limagination de la matbre, Psi, José Con, 1942, p14, 4 pine IM, 3 Le Brun, citado em La poesia de Croce para nos adverie do guided com que se deveria prascara excica das fontes Traducto literal “Ora em um autor eu adoto umm pensamento, mas que em mim, cancas vez entrelarado, revece minhas imagens, meus torneios, jovem « vigoso ‘ormamento; ora retenho tio s6 as palavras; desvio-thes 0 sentido, ¢ a arte sabe constrangé-as a objecos novos que els se surpreendem de pinta", 15G, Bachclard, Leau eles rvey, cit, p. 26 "6G. Bacheland, “Instante podtico ¢ instante metaisico”, In: O direio de sonbar, trad, de José Américo Motta Pessanha, Sio Paulo, Difel, 1985, Pp. 183-9. O original francés & de 1939, 48 ALFREDO Bast Nota ‘0 € um conjunto de andlises e interpretagdes de textos poéticos brasileiros. Aos seus colaboradores pedin-se que escolhessem livremente fanto os poemas a serem estudados quanto os métodos de andlise liveréria que Ihes parecessem mais convenientes a0 seu objeto. Nada hd, porranro, de exaustivo na composicao da obra: hd ape. nas alguns poemas, alguns poctas, alguns modos de ler 0 poema, O resultado foi um encontro de leituras que representam alguns dos caminhos percorridos arualmente pelo ensino universitério de tcoria ¢ andlise literéria O projeto do liveo tem uma dupla dimensio: critica, isto é valorativa, enquanto os ensafstas se deriveram em textos que Ihes areceram dignos de atengio; e pedagégica, na medida em que Se constata um esforco de tornar acessivel a jovens iniciantes nas Letras a linguagem complexa da andlise ¢ da interpretaggio do poema. O organizador 49

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