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DIREITO CONSTITUCIONAL PREMISSAS METODOLOGICAS PARAA CONSTITUCIONALIZACAO DO DIREITO CIVIL' Gustavo Tepedino? J4 € 0 terceiro aniversario da Constituigdo da Republica e os civilistas permanecem com o dever inadidvel de compatibilizar o Cédigo Civil e a legisla- ¢ao especial ao texto constitucional. Embora proclame-se de maneira quase unanime a supremacia constitucional na atividade hermenéutica, o certo é que o direito civil brasileiro nao soube ainda incorporar o texto maior & sua praxis. Basta conferir os timidos resultados alcangados pela jurisprudéncia apds 5 de outubro de 1988 — ao menos no que concerne as decisdes que pudessem ser conside- radas diretamente informadas pela Carta constitucional — ou o estado contem- plativo de parte de nossos civilistas, cujas contribuigdes vém sendo editadas e teeditadas, apdés a Constituigao, sem revisdo profunda, limitando-se as indica- goes de dispositivos constitucionais pertinentes, uma ou outra maquiagem, al- guns retoques aqui ou acold. Parece, ao revés, imprescindivel e urgente uma releitura do Cédigo Civil e das leis especiais & luz da Constituigado. E as presentes reflexGes, sob titulo deselegante ¢ deliberadamente dibio, a provocar compreensivel suspeita quan- to. ao desapreco de seu autor pelas raizes histéricas do direito civil, querem sus- citar, ao contrario, resposta a duas indagagoes, com as quais pretendo me desin- 1 _Versao especialmente revista e atualizada para publicagdio na Revista de Direito do Estado — RDE. Aula inaugural do ano académico de 1992, proferida no saléo nobre da Faculdade de Direito do Estado do Rio de Janeiro, em 12 de margo de 1992, 4 qual foram acrescidas as referencias. bibliogrdticas essenciais. A republicagao do presente trabalho decorre da atualidade do debate sobre a eficdécia das normas constitucionais nas relagoes privadas, intensificada em face da agenda do direlto constitucional brasileiro @ da entrada em vigor do Cédigo Civil de 2002. 2_ Professor Titular de Direlto Civil da Faculdade de Ditelto da Universidade do Estado do Rio de Janelio — UERJ. Doutor pela Universidade de Camerino, Itélia. RADE | Revista de Direito do Estado Ano 1 n®2:37-53abrijun 2006 37 cumbir da honrosa tarefa que me foi confiada pela Congregagao de nossa que- ‘ida Faculdade de Direito. A primeira delas: qual o papel do Cddigo Civil nos dias aluais? A segunda: como compatibiliza-lo, do ponto de vista hermenéutico, com as leis especiais e com a Constituigaéo da Reptiblica? As respostas de certa maneira poderao servir para que melhor se com- preenda o exato significado dos adjetivos que vém acompanhando, cada vez com maior freqtiéncia, o direito privado, tido, por inimeras vozes, como sociali- Zado, publicizado, constitucionalizado, despatrimonializado. Tais designagoes estariam a significar, afinal, uma absorgao do direito privado pelo direito puiblico ou, muito ao contrario, indicariam tao-somente uma reformulagao conceitual dos institutos juridicos — do direito privado e do direito piblico —, a exigir do intér- Prete redobrado esforgo elaborativo para compreender o fenémeno? O direito privado tratava de regular, do ponto de vista formal, a atuagao dos sujeitos de direito, notadamente o coniratante e © proprietario, os quais, por sua vez, a nada aspiravam sendo ao aniquilamento de todos os pri légios feudais: poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como ex- Pansao da propria inteligéncia e personalidade, sem restrigdes ou entraves |e- gais. Eis af a filosofia do século XIX que marcou a elabora¢ao do tecido normativo consubstanciado no Cédigo Civil de 1916. Afirmava-se, significativamente — e afirma-se ainda hoje nos cursos juri- dicos — que o Cédigo Civil brasileiro, como os outros cédigos de sua época, era Eee De fato, cuidava-se da garantia legal mais ele- vada quanto a disciplina das relagdes patrimoniais, resguardando-as contra a ingeréncia do Poder Publico ou de particulares que dificultassem a circulagado de mindo 0 Cédigo Civil, portanto, o papel de estatuto unico e monopolizador das relagdes privadas. O Cédigo almejava a completude, que justamente o deveria distinguir, no sentido de ser destinado a regular, através de situagdes-tipo, todas OS possiveis centros de interesse juridico de que o sujeito privado viesse a ser titular. “ 3. Michele Giorgianni, Il diritto privato ed | suoi atuali confini, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1961, p. 899 ss., recentemente traduzida no Brasil por Maria Cristina De Cicco (0 direito Privado ¢ as suas atuais frontelias, Revista dos Tribunais 747-35, 1998), em sua bellissima aula inaugural de 1961 da Faculdade de Direito da Universidade de Napoles, cbserva que “esie significado ‘constitucional’ dos cédigos civis do inicio do século citocentista nao decorre das Normas individualmente invocadas, mas Ihes imanente, quando se tem presente que a proprie Gade privada ¢ 0 contrato, que constitulam as colunas do sistema, vinham, por assim dizer, a ‘constitucionalizar’ uma certa concepgao de vida econémica, ligada, como € notério, a idéia libera 38 Essa espécie de papel constitucional do Cédigo Civile a crenga do indi- vidualismo como verdadeira religido marcam as cadificagdes do século XIX @, portanto, 0 nosso Cddigo Civil de 1916, fruto de uma época que Stefan Zweig, em sintese feliz, designaria como “o mundo da seguranga”. Seguranga — é de sublinhar — no no sentido dos resultados que a atividade privada alcangaria. Esta era de estabilidade e seguranga, retratada pelo Cédigo Civil brasi- leiro de 1916, entra em declinio na Europa jé na segunda metade do século XIX, com reflexos na politica legislativa brasileira a partir dos anos 20. Os movimentos sociais € o processo de industrializagado crescentes do século XIX, aliados as vicissitudes do fornecimento de mercadorias ea agitagado popular, intensificadas pela eclosao da Primeira Grande Guerra, atingiriarn profundamente o direito civil europeu, e também, na sua esteira, o ordenamento brasileiro, quando se tornou inevitavel a necessidade de intervengdo estatal cada vez mais acentuada na economia. O Estado legislador movimenta-se ent&o mediante leis extracodificadas, atendendo as demandas contingentes e conjunturais, no intuito de reequilibrar o quadro social delineado pela consolidagao de novas castas econémicas, que se formavam na ordem liberal e que reproduziam, em certa medida, as situagdes de iniqhidade que, justamente, o idedrio da Revolugao Francesa visava debelar®. Pode-se dizer, portanto, que logo apés a promulga¢gao do Cédigo Civil de 1916 0 legislacor teve que fazer uso de leis excepcionais, assim chamadas por dissentirem dos principios dominantes do corpo codificado, O Codigo Civil man- linha a fisionomia de ordenador unico das relagées privadas, e as leis extrava- gantes, se contrariavam os principios do Cédigo Civil, o faziam de maneira ex- cepcional, de modo que nao desmentiam o sentido de completude e de exclusi- vidade pretendido pelo Cédigo. 4 Sobre a influéncia deste periodo histérico ¢ dos valores do liberelismo nas relagOes contratuais, v.N. Iti, L'eta della decodificazione, 1976, p. 9 € ss., 0 qual se vale da expressao, citada no texto. O ambiente cultural, politico € filoséfico que antecedeu o Codigo Napolego, fundamental para a compreensao histérica da codificag2o moderna, é analisado por G. Tarello, Le ideologie della coaiificazione nel secolo XIX, s.d...Ct., sobre o tema, objeto de conceituadisssima doutrina, dentre outtes, G. Ripert, Le régime démocratique et le droit civil moderne, 1948; P. Rescigno, L’autonomia dei privati, Justitia, 1967, p. 3 e ss,. No cireito patrio, v., por todos, Criando Gomes, Ralzes histéricas. © sociolégicas do Cédigo Civil brasieito, Direito privado (Novos aspecios), 1961, p. 77 e ss.. 5 O momento histérico, que assinalaria, na Europa, a faléncia do individualismo jurfdico, substi- \uldo, através de portentosa legislagao extracocificada, por uma generalizada socializago do direito, é retratado pelo saudoso prof. Michele Giorgianni, II diritto privato ed i suol atuall confini, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1961, p. 399 € ss. ADE | Revista de Direito do Estado Ano 1 n22:37-53 abrjun 2006 39 Assim concebidas, tais leis extracodificadas corroboravam o papel cons- titucional do Cédigo no que concerne as relagdes privadas, como lecionava a dogmética tradicional, permitindo que situagées nao previstas pudessem ser re- guladas excepcionalmente pelo Estado. Dai por que ter-se também designado como “de emergéncia” esse conjunto de leis, locugéo que, de modo eloqtente, a um sé tempo exprimia a circunstancia historica justificadora da interven¢ao le- gislativa e preservava a integridade do sistema em torno do Cédigo Civil: 2 legis- lagéo de emergéncia pretendia-se episédica, casuistica, fugaz, néo sendo ca- paz de abalar os alicerces da dogmatica do direito civil. Delineia-se assim 0 ce- nario dessa primeira fase intervencionista do Estado, que tem inicio logo apés a promulgagao do Cédigo Civil de 1916, sem que fosse alterada substancialmente a@ sua centralidade e exclusividade na disciplina das relacdes de direito privado® Assim é que se contabiliza, a partir dos anos 30, no Brasil, rabusto con- tingente de leis extravagantes que, por sua abrangéncia, j4 nado se compadece- riam com 0 pretendido cardter excepcional, na imagem anterior que retratava uma espécie de lapso esporddico na completude monolitica do Codigo Civil Cuida-se de uma sucessAo de leis que disciplinam, sem qualquer carater emer- gencial ou conjuntural, matérias ndo previstas pelo codificador’. Pode-se registrar assim uma segunda fase no percurso interpretativo do Cédigo Civil, em que se revela a perda do seu carater de exclusividade na regu- lag&o das relagées patrimoniais privadas. A disciplina codificada deixa de repre- sentar © direito exclusivo, tornando-se o direito comum, aplicavel aos negécios juridicos em geral. Ao seu lado situava-se a legislagdo extravagante que, por ser destinada a regular novos institutos, surgidos com a evolu¢ao econémica, apre- sentava caracieristica de especializagdo, formando, por isso mesmo, um direito especial, paralelo ao direito comum estabelecido pelo Cédigo Civil. Através de tais normas, conhecidas como leis especiais — justamente por sua técnica, ob- jeto e finalidade de especializagao, em relagdo ao corpo codificado —, 0 legisla- dor brasileiro levou a cabo longa intervengao assistencialista, expressdo da poli- tica legislativa do Welfare State que se corporifica a partir dos anos 30, tem as- 8 Tal situagao se intensifica com o impacto causado, na economia mundial, pelas duas grandes guertas. Sobre a legislagdo de guerra e sous efeitos econémices ¢ juridicos, v. Filippo Vassalli, Della legislazione di guerra e dei nuovi confini del diritto privato (1918), Stud/ giuridici, v. I, Rorna, 1999, p. 43 @ ss.; Francesco Ferrara, Influenza giuridica della guerra nei rapporti civill (1915). Scritti giuriaici, v. |, 1954, p. 33 e ss. e, especificamente, Diritto di guerra e diritto di pace, p. 63 @ §s., para uma interessante classificagdo da normativa promulgada durante o perfodo bélico, em tormos de técnica legislativa; Emilio Betti, Problemi dello sviluppo del capitalismo e della tecnica di guerra, Studi in onore di A. Cicu, v. li, 1951, p. 589 € ss.. 7 Cf. Amoldo Medeiros da Fonseca, Caso fortuito e teoria da imprevisdo, 1943, p. 193 e ss., para uma minuciosa resenha da intervencdo legislativa. 40 nto constitucional em 1934 e cuja expressdo, na teoria das obrigagées, se constituiu no fenédmeno do dirigismo contratual. Tal modificagao no papel do Cédigo Civil representa uma profunda alte- ragao na prépria dogmatica. Identificam-se sinais de esgotamento das catego- rias do direito privado, constatando-se uma ruptura que bem poderia ser defi da, conforme a preciosa analise de Ascarelli, como uma crise entre o instrumen- tal tedrico e as formas juridicas do individualismo pré-industrial, de um lado; e, de outro, a realidade econdémica industrial ou pés-industrial, que repelem o indivi- dualismo. Os novos fatos sociais dao ensejo a solugées objetivistas e nao mais subjetivistas, a exigirem do legislador, do intérprete e da doutrina uma preocupa- Gdo com o contetido e com as finalidades das atividades desenvolvidas pelo su- jeito de direito®. Esse estado de coisas enseja uma abrangéncia cada vez menor do Cé- digo Civil, contrapondo-o a vocagao expansionista da legislagao especial. A par- tir do longo processo de industrializagao que tem curso na primeira metade do século XX, das doutrinas reivindicacionistas e dos movimentos sociais instigados pelas dificuldades econémicas, que realimentavam a interven¢ao do legislador, verifica-se a introdugao, nas Cartas politicas e nas grandes Constituig6es do pds-guerra, de principios e normas que estabelecem deveres sociais no desen- volvimento da alividade econémica privada. Assumem as Constituigées compro- missos a serem levados a cabo pelo legislador ordinério, demarcando os limites da autonomia privada, da propriedade e do controle dos bens. A Constituigaéo brasileira de 1946 é um bom exemplo desta tendéncia, expressa nitidamente na Constituigdo italiana de 1948. (© Codigo Civil perde, assim, definitivamente, o seu papel de Constituigah GEARED ©: textos constitucionais, paulatinamente, definem principios relacionados a temas antes reservados exclusivamente ao Cédigo Civil e ao im- pério da vontade: a fungdo social da propriedade, os limites da alividade econ6- mica, a organizagao da familia, matérias tipicas do direito privado, passam a in- tegrar uma nova ordem ptiblica constitucional. Por outro lado, 0 préprio direito civil, através da legislagdo extracodificada, desloca sua preocupagao central, que ja n&o se volta tanto para o individuo, senao para as ati senvolvidas e os riscos delas decorrentes. & Tullo Ascarelli, Norma giuridica e realt& sociale, I! Diritto delfeconomia, 1955, p. 1.179 e ss. Ascarelli, a rigor, rejeita a idéia de crise do direito, afirmando (p. 1.220) que “ai crisi (..) si pud parlare in riferimento el contrasto tra categorie giuridiche anteriori alla produzione industriale di massa e lo sviluppo invece di questa’. Sobre o tema v., também, Michelle Giorgianni, II ciritto privato ed i suoi atuali confini, Rivista trimesirale di dirtto e procedura civile, 1961, passim, mas espec. p. 391 e ss., para o qual as “transformacdes" do direito privado *impoem uma urgente obra de controle de validade dos conceitos tracicionais em face da transtormade realidade econémica”; © Roserio Nico’, Diritto civile, Enciclopedia def diritto, XII, 1964, p. 907 e ss., que se refere a uma profunda ¢ inelutdvel “fratura entre a sitvacao social e as formas juridicas do privado’. RDE | Rovistade Diteitodo Estado Ano1 n?2:37-53 abr/un 2008 A O percurso evolutivo dos institutos do direito privado é a demonstragao eloquente desse processo. A exagerada ateng&o do vetusto Cédigo Comercial para com o comerciante da lugar & énfase central em relagdo ao atos de comér- cio e a empresa. A t6nica excessiva do Cédigo Civil em torno do sujeito de direito cede a atengao do legislador especial para com as atividades, seus riscos e im- pacto social, e para a forma de utilizagdo dos bens dispontveis, de maneira a assegurar resultados sociais pretendidos pelo Estado. A legisiagao especial é o instrumento dessa profunda alteragao, avaliza- da pela Constituigdo da Republica. O Cédigo Civil preocupava-se em garantir as regras do jogo (a estabilidade das normas); ja as leis especiais as alteram sem- ceriménia, para garantir objetivos sociais e econémicos definidos pelo Estado. O Poder Publico persegue certas metas, desenvolve nesta direg&o programas as- sistenciais, intervém conspicuamente na economia, vale-se de dirigismo contra- tual acentuado. O legislador trabalha freneticamente para atender 4 demanda setorial crescente, fala-se mesmo em uma “orgia legiferante"?. Configura-se, assim, de um lado, o direito comum, disciplinado pelo Cé- digo que regula, sob avelha otica subjetivista, as situag6es juridicas em geral: e, de outro, 0 direito especial, cada vez mais relevante e robusto, que retrata a inter- vengdo do legislador em uma nova realidade econémica e politica. A intensificagaéo desse processo intervencionista subtrai do Codigo Civil inteiros setores da atividade privada, mediante um conjunto de normas que nao se limita a regular aspectos especiais de certas matérias, disciplinando-as inte- gralmente. O mecanismo é finalmente consagrado, no caso brasileiro, pelo texto constitucional de 5 de outubro de 1988, que inaugura uma nova fase e um novo papel para o Cédigo Civil, a ser valorado e interpretado juntamente com inime- ros diplomas setoriais, cada um deles com vocagéo universalizante. Em relagao a esta terceira fase de aplicagao do Codigo Civil, fala-se de uma “era dos estatu- tos”, para designar as novas caracteristicas da legislagao extravagante. Ne as relagoes juridicas privadas, sobre um direito civil repleto de leis especiais, chamadas de estatutos, que disciplinam exaustivamente inteiras matérias extrai- das da incidéncia do Cédigo Civil. O Estatuto da Crianga e do Adolescente, o Codigo de Defesa do Consumidor, a Lei de Locagées, na megina esteira de ou- tras leis anteriores & Constituigéo, como o Estatuto da Terra, todos esses univer- Sos legislativos apresentam-se radicalmente diversos das legislagoes excepcio- nal e especial de outrora. Tais diplomas nao se circunscrevem a tratar do direito substantivo mas, no que tange ao setor tematico de incidéncia, introduzem dispositivos proces- 9 Mauro Cappelletti, Riflessioni sulla creativita della giurisprudenza nel tempo presente, Rivista trimestrale di diritta @ procedura civile, 1982, p. 774. 42 suais, ndo raro inslituem tipos penais, veiculam normas de direito administrativo e estabelecem, inclusive, principios interpretativos. Fixam, assim, verdadeiro ar- cabougo normativo para inteiros setores retirados do Cédigo Civil. Nao se tem aqui, do ponto de vista técnico, uma relagdo de género e espécie, ou de direito comum e especial, sendo a subtracao verdadeira e propria de institutos — ou porque ndo alvitrados pelo Cédigo Civil ou porque revogados por leis especiais, © que sucedeu em relagdo a um ntimero cada vez maior de matérias. Em primeiro lugar, nota-se uma alterago profunda na técnica legislativa. Cuida se de leis que definem objetivos concretos; uma legislag&o de objetivos, que vai muito além da simples garantia de regras estaveis para os negocios. O legislador fixa as diretrizes da politica nacional do consumo; estabelece as metas a serem atingidas no tocante a locagao de iméveis urbanos; define programas e politicas plblicas para a protegao integral da crianga e do adolescente. O legislador vale- se de clausulas gerais, abdicando da técnica regulamentar que, na égide da co- dificagdo, define os tipos juridicos e os efeitos deles decorrentes. Cabe ao intér- prete depreender das clausulas gerais os comandos incidentes sobre indmeras situag6es futuras, algumas delas sequer alvitradas pelo legislador, mas que se sujeitam ao tratamento legislativo pretendido por se inserirem em certas situa- ¢6es-padrdo: a tipificagdo taxativa da lugar a clausulas gerais, abrangentes e abertas. Em segundo lugar, verifica-se uma alteragdo radical na linguagem em- pregada pelo legislador. As leis passam a ter uma linguagem menos juridica e mais setorial, uma linguagem que, nado obstante os protestos dos juristas, atende a exigéncias especificas, ora atinentes a quest6es da informatica, ora relaciona- das a inovagées tecnoldgicas ou a novas operagdes contratuais, ora a assuntos financeiros ou econémicos, suscitando muitas vezes dificuldades para o intér- prete. Em terceiro lugar, quanto aos objetivos das normas, o legislador, além de coibir comportamentos indesejados — os atos ilicitos —, em atuagdo repressiva, age através de leis de incentivo, propée vantagens ao destinatario da norma ju- ridica, quer mediante financiamentos subsidiados, quer mediante a redugao de impostos, taxas ou tarifas publicas; para com isso atingir objetivos propostos por tais leis, as chamadas leis-incentivo, com finalidades especificas. Revela-se, en- tGo, o novo papel assumido pelo legislador, argutamente identificado por Nober- to Bobbio como “a fungao promocional do direito”, consubstanciada exatamente na promogao de certas atividades ou comportamentos, almejados pelo legisla- dor, através de normas que incentivam os destinatarios, mediante o oferecimento de vantagens individuais’®. 10 A superagao da viséo meramente estrutural dos direitos subjetivos (limitada a andlise dos mecanismnos de poder postos a disposi¢ao do titular e voltada, por isso mesmo, tfo-somente para a sua estrutura formal), através da funcionalizagao do direito aos valores conticos no ordenamento 6a pronesta central de diversos textos reunides de Norberto Bobbio, Dalla sirutiura alla funzione, RDE | Revista de Direitodo Estado Ano 1 n®2: 37-53. abr/jun 2006 43, steira do texto constitucional, que impée inumeros deveres ex- las relagdes privadas, tendo em mira a realizacao da personali- dade e a tutela da dignidade da pessoa humana, 0 legislador mais e mais condi- ciona a protegao de situagdes contratuais ou situagGes juridicas tradicionalmen- te disciplinadas sob otica exclusivamente patrimonial ao cumprimento de deve- res nao patrimoniais. Bastaria passar em revista as indmeras normas introduzi- das pelo Codigo de Defesa do Consumidor, algumas delas relacionadas a me- Ihoria de sua qualidade de vida; ou aquelas relativas aos deveres do locador, no exercicio do direito de propriedade regulado pela lei do inquilinato; ou ainda as regras que disciplinam as relagées entre pais e filhos, nos terrnos inovadores do Estatuto da Crianga e do Adolescente. Mais ainda, como quinta caracteristica na nova forma de legislar, nota-se © caréter contratual de tais estatutos. As associagdes, os sindicatos, os grupos interessados na regulagéo dos respectivos setores da sociedade negociam e debatem a promulgacao de suas leis, buscam a aprovagao de normas que aten- dam a exigéncias especificas, setorialmente localizadas. Aquele legislador do Cédigo Civil que legislava de maneira geral e abstrata, tendo em mira 0 cidadao comum, da lugar a um /egislador-negociador, com voca¢ao para a contratagao, que produz a normatizacao para determinados grupos — locador e locatario, for- necedores e consumidores, e assim por diante!’. “ton arpeniisnaiaLes maneira estavel e duradoura, no Cédigo il de 191 A teoria geral dos contratos j4 ndo atende mais as necessidades préprias da so- ciedade de consumo, da contratagdo em massa, da contratagao coletiva. A teo- ria da propriedade jé nao responde a pluralidade de situagdes juridicas em que se da 0 exercicio do dominio que, por isso mesmo, se fragmenta, No &mbito do direito comercial, o direito de propriedade, unitariamente concebido, nado é sufi- ciente para abranger a cisdo operada entre o controle da empresa e a titularide- de das agées. Em matéria de responsabilidade, o mesmo se percebe, tornando-se evi- dente a insuficiéncia da responsabilidade aquiliana para explicar e solucionar os problemas ha muito emergentes, e que se intensificam com o passar dos anos, com 0 desenvolvimento industrial e tecnolégico. Diante de tais ciréunstancias, 1977, €, espec., Verso una teoria funzionale del diritto, p. 63 e ss... Na pagina introdutérla, Premessa, © autor entrevé un “passaggio dallo stato ‘garantista’ allo stato ‘dirigista’ @ conseguentemente [a metamorfosi del diritto da strumenio di ‘controio sociale’ nel senso stretto della parola in strumento aii direzione sociale”. 1.N. Intl, Veta della decodificazione, 1976, p. 29, a propésito, afirma que ‘La crisi de! codice civile, come disciplina generale dei rapporti privati, fa tutt'uno con il trarnonto del ‘citoyen’ @ con laftermarsi di gruppi social, cavaci, di determinare o indirizzare le scelte dei poteri pubblici e cos! di raggiungere, nella forma della legge negaziata, gli scopi prima perseguiti mediante lo strumento del contratto’ 44 que se reproduzem em diversos paises europeus, 0 Professor Natalino Irti, da Universidade de Roma, anunciou a chamada “era da descodificagdo”, com a substituigéo do monossistema, representado pelo Cédigo Civil, pelo polissiste- ma, formado pelos estatutos, verdadeiros microssistemas do direito privado, po- sigao metodolégica logo aderida, no caso brasileiro, pelo saudoso Professor Or- lando Gomes, mas que deve ser, no entanto, examinada com enorme cautela!?. Nao ha duvida de quea aludida relacdo estabelacida entre o Cédigo Civil eas leis especiais, tantonafase da excepcionalidade quanto na fase da especia- lizagao, constituia uma espécie de Monossistema, em que a Codigo Civil de 1916 era o grande centro de referéncia e as demais leis especiais funcionavam como satélites, ao seu redor. Com as modificagdes aqui relatadas, vislumbrou-se 0 cha- mado polissistema, onde gravitariam universos isolados, que normatizariam intei- ras matérias a prescindir do Cédigo Civil. Tais universos legislativos foram identi- ficados pela mencionada doutrina como microssistemas, que funcionariam com inteira independéncia tematica, a despcito dos principios do Cédigo Civil. O Co- digo Civil passaria, portanto, a ter uma fungao meramente residual aplicavel tao- somente em relagdo as matérias nao reguladas pelas leis especiais. Nesse estado de coisas, segundo a mesma corrente doutrinaria, estar- se-ia diante de um direito civil fragmentado. Em face dos microssistemas, o Cé- digo Civil perderia mais e mais a sua posigao hegeménica, em nada servindo, por conseqliéncia, as propostas de uma nova codificagao, desesperada e va tentativa de unificar interesses juridicos miltiplos, dispares, insuscetiveis de re- condugao a um nticleo normativo monolitico. Afinal, a proliferagao das leis espe- ciais, segundo a mesma analise, seria reflexo da inelutavel multiplicagao de gru- Pos sociais em ascensao, de corporag6es, e de centros de interesses novos e diversificados que passaram a habitar o universo jurfdico. A conclusdo do mesmo raciocinio, em sede interpretativa, 6 que, diante de lacunas do legislador especial, o intérprete devera aplicar tanto a analogia legis (0 recurso & norma que regule situagao andloga, com identidade de ratio em relagdo a situagao nao prevista) como a analogia iuris (0 recurso aos princi- pios gerais de direito) no Ambito das normas do proprio estatuto, esgotando no assim chamado microssistema a atividade interpretativa. 12 A expresso di 0 titulo a coleténea @ 6 recorrente nos trabalhos reunidos em N. Inti, L’eta della Gecodtiicazione, 1976. V. também, Orlando Gomes, A agonia do Cédigo Civil, Revista de Dircito Comparado Luso-brasileira 7:1, 1888. Ci., em sentido contrario: A. De Cupis, A proposito di codice © di decodificazione, Rivista di dlritto civile, 1979, ll, p. 47 @ ss,; Rodolfo Sacco, Codificare: modo Superato di legisferare?, Rivista 0} oiritto civile, 1983, II, p, 118 e ss.: G. Azzariti, Codificazione ¢ Sistema giuridico, Poltica de! diritto, 1982, p. 537 e ss.: e as diversas contribuigdes reunidas em Temi della cultura giuridica contemporanea, Prosettive sul dirito privato. Il iramonto del codice olvile, It giurista nella societa industriale — Atti del Convegno di studi svoltosi a Roma il 27 ¢ 28 ottobre 1979, 1981. V., ainda, na perspectiva metodolégica do texto: Carmine Donisi, Verso la ‘Cepatrimonializzazione’ del diritto privato, Rassegna di diritto civile, 1980, p. 644 € ss; e, princi- paimente, Pietro Perlingieri, Le ragioni di un Convegno. Le leggi ‘speciall’ in materia civile: tecniche legislative e individuazione della normativa, Scuole, tendenze e meiodi, 1989, p. 251 e ss. e, na mesma coleténea, Un parere sulla decodificazione, p. 307 € ss. ROE | Revista de Direito do Estado = Ano 1 ni? 2:37-53 abr/jun 2006 45 Nao obstante a extraordinaria analise historica oferecida por Natalino Irti, o fato é que tal doutrina, levada as Ultimas conseqiléncias, representa uma grave fragmentago do sistema, permitindo a convivéncia de universos legislativos iso- lados, responséveis pela disciplina completa dos diversos setores da economia, sob a égide de principios e valores dispares, nao raro antagénicos e conflitantes, ao sabor dos grupos politicos de pressao'?. Tal cenério, além de politicamente indesejavel, nao parece possa ser ad- mitido diante da realidade constitucional, tendo em conta o cuidado do consti- tuinte em definir principios e valores bastante especificos no que concerne as relagdes de direito civil, particularmente quanto trata da propriedade, dos direi- tos da personalidade, da politica nacional das relagdes de consumo, da ativida- de econémica privada, da empresa e da familia. Diante do novo texto constitucio- nal, forgoso parece ser para o intérprete redesenhar 0 tecido do direito civil a luz da nova Constituigéo'*. De modo que, reconhecendo embora a existéncia dos mencionados uni- versos legislativos setoriais, 6 de se buscar a unidade do sistema, deslocando para a tabua axiolégica da Constituigao da Repuiblica o ponto de referéncia an- tes localizado no Cédigo Civil. Caso 0 Codigo Civil se mostrasse incapaz — até mesmo por sua posigao hierarquica — de informar, com principios estaveis, as regras contidas nos diver- sos estatutos, nao parece haver duvida de que 0 texto constitucional poderia fazé-lo, j4 que o constituinte, deliberadamente, através de principios e normas, interveio nas relagdes de direito privado, determinando, conseguintemente, os critérios interpretativos de cada uma das leis especiais. Recuperar-se-ia, assim, oO universo desfeito, reunificando-se o sistena’®. 1a Nesta diregao, v. Piatto Perlingieri, Norme costituzionali e rapporti di cititto civile, Scuole, tendenze e metodi, 1989, p. 109 ss., e espec. p. 134: "L'insidiosa eacessiva divisione del diritto in branche ed in specializzazioni che, prevalendo, inevitabilmente ferebbero de! giurista, chiuso nel suo microsisteme, un competente specifico, dotato si di raffinati benché settoriall strumenti lecnici, ma acritico, insensibile verso il progetto complessivo della societa anche quando questo, tragotto nella massima legge dello Stato, é chiaramente in contrasto a gruppi di potere o di Pressione". 14 Segundo Carmine Donisi, Verso la ‘depatrimonializzazione' del diritto privato, Rassegna di diritto civile, 1980, p. 684, *si giunge. infine, (...) ad auspicare [a rifondazione di un sistema di dirtto civile cosiituzionale, imperniato sulla ‘funzionalizzazione’ delle sittuazioni soggettive patrimoniall alle Situazioni esistenziall, cui si riconosce, per /appunto, in ossequio ai canoni costituzionall, una indiscutibile preminenza’. 18 Sublinha Pietro Perlingieri, Un parere sulla decodificazione, Scuole, tendenze e metodl, 1989, p. 207: “la tecnica legislativa, contrastata dai grand’ gruppi organizzati, non va considerate € valutata come una variabile indipendente dal quadro costituzionale e non é suscettibile di autolegittimare legislazion! di settore tall da assumere il ruolo net diritto generale di un 'intera materia, com peraita ai un disegno complessivo. Disegno che, se non appare a livello legisiativo, deve essere colto nel costante ¢ tenace lavoro dellinterprete volte a cogliere i prinofpi portenti della legisiazione c.d, speciale, riconducendoli, anche sul piano della loro legittimita, all'unita del sistema garantita dai principi costituzionali gerarchicamente superior" (grifou-se). 16 Pietro Perlingieri, Norme costituzionali e rapporti di diritto civile, Scuole, tendenze @ metodi, 46 Poderiamos entéo, rapidamente, examinar alguns exemplos da integra- ¢40 hermenéutica do Cédigo Civil com as leis especiais ¢ a Constituigao No caso da propriedade privada, as normas do Estatuto da Terra pode- ro ser consideradas recepcionadas pela Constituigao naquilo que, evidente- mente, ndo a contrariar. Mas como interpretar tais normas hoje? E que alcance deve ser dado ao texto constitucional? Sabe-se que a Constituigao prevé a pro- priedade privada e a fungao social da propriedade como direitos @ garantias in- dividuais, no art. 5°. Sabe-se também que no art. 170 da Constituigao Federal a propriedade e a fungao social da propriedade ganham relevo como principios gerais da ordem econémica. A Constituigdo anterior ja previa a fungao social da propriedade como um principio geral. © que diferencia o texto atual em relagéo ao anterior 6 que a propriedade e a fungao social tornaram-se principios funda- mentais do ordenamento, garantias individuais, e nado apenas principios da or- dem econémica. Pois bem: a Constituigaio da Republica prevé programas de acgao no que tange a propriedade rural e a propriedade urbana. Tais programas nao podem ser interpretados como programas politicos, deslocados da normativa concreta e atual. Ao contrario, devem ser lidos como formas de dar conteudo a0 Cédigo Civil e as leis especiais. Se o Codigo Civil de 1916 nao tratou da fungao social da propriedade, limitando-se a cuidar da estrutura dos poderes do titular do direito, se as leis especiais parecem acanhadas quando interpretadas isoladamente, 6 preciso que nés consigamos reler tal conceito a luz da Constituigao, dando-lhes um conteudo de maior eficacia. Examine-se, com este intuito, 0 polémico art 185, II, da Constituigao Federal, que torna insuscetivel de desapropriagao a pro- priedade produtiva. A expressdo “propriedade produtiva", da prépria Constitui- Gao, n&o pode ser interpretada isoladamente, sendo permeada pelos demais preceitos constitucionais. Com efeito, 0 art. 186 da Lei Maior vincula o cumprimento da fungao so- cial da propriedade ao atendimento de interesses extraproprietarios, relaciona- dos ao meio ambiente equilibrado, as relagdes de trabalho, entre outros. A mes- ma Constituigéo, por outro lado, assegura, em seu art. 5%, a fungao social da pro- priedade como principio fundamental, condicionando a protegdo do direito de propriedade ao cumprimento de sua fungao social, objeto de protegao auténo- ma, no mesmo patamar do interesse individual do proprietdrio. No art. 3°, inciso III, 0 constituinte inseriu entre os objetivos fundamentais da Republica a erradica- ao da pobreza, introduzindo no sistema o principio da igualdade substancial, pelo qual o Estado se compromete a reduzir as desigualdades sociais e redistri- buir a riqueza — impondo, portanto, ao lado do principio da isonomia formal, 0 principio de isonomia substancial; ¢ ao lado do principio da justiga retributiva, o 1989, p. 109 e ss., e, do mesmo autor, Perfis do direito civil (wad. Maria Cristina De Cicco), 1997. Na doutrina brasileira, v. Maria Celina Bodin de Moraes, A Caminho de um direito civil constitucional, Revista de Direito Civil 6521. DE | Revistade Direito do Estado Ano 1 n®2:37-53 abr/jun 2008 a7 principio da justica distributiva. Finalmente, a dignidade da pessoa humana esta também incluida nos objetivos da Republica, pelo art. 1°. Tais dispositivos fazem com que a fung&o social da propriedade tenha contetido constitucionalmente determinado, a guiar o intérprete nos conflitos de interesse. Ou seja, a propriedade produtiva, a que se refere o art. 185, torna insus- cetivel de desapropriagéo nao a propriedade apenas economicamente produti- va, meramente especulativa — nao a propriedade com a qual talvez tenham so- nhado os autores desse dispositivo; mas a propriedade que, sendo produtiva, estoja efetivamente cumprindo a sua fun¢ao social, cujo exercicio possa ser as- sociado a redistribuigao de riqueza; que promova com a sua utilizagao os princi- pios fundamentais da Republica. Portanto, a ordem econémica prevista na Cons- tituig&o n&o pode ser interpretada sendo interligada aos seus principios funda- mentais, sob pena de aniquilar-se a técnica constitucicnal de fixagao de princi- pios. Da mesma forma, 0 tecido normativo do Codigo Civil ¢ toda a legisiagao infraconstitucional dever&o ser informados pelos mesmos principios, Teremos, assim, em tema de propriedade, uma funcionalizagdo da propriedade privada aos principios fundamentais da Republica, a erradicagao da pobreza, a distribui- gao de renda. Nao se trata, portanto, de ler a normativa especial através de seus proprios principios — como se fora um microssistema —, encontrando-se tais preceitos setoriais condicionados, vinculados, instrumentalizados, ao projeto constitucional. ALei de Locagées de Iméveis Urbanos (Lei n?8.245, de 18 de outubro de 1991) néo péde prever todos os contlitos entre locador e locatario, mas fixou prin- cipios, no intuito de compatibilizar a iniciativa econémica privada, tutelada na Constituigdo, com os valores extrapatrimoniais, ou existenciais, da moradia, do trabalho, da estabilidade do homem em seu habitat. Na operacionalizagao da Lei de Locag6es nao sera consentido ao intérprete deixar de levar em conta os prin- cipios constitucionais que informam o legislador especial, em particular o princi- pio da dignidade da pessoa humana, de modo que a estabilidade do inquilino na comunidade familiar, em seu local de trabalho e em sua moradia adquire valor prioritario na solugao dos conflitos de interesse. Ha aqui um exemplo sintomatico. A Lei de Locagées, em sewart. 30, fixa como critério de desempate na hipétese de miiltiplos locatarios, com contratos iniciados na mesma data, que queiram igualmente exercer o direito de preferén- cia, a idade do inquilino, decidindo o legislador em favor do locatario mais idoso. Alguns magistrados ja se pronunciaram no sentido da inconstitucionalidade des- se dispositivo, que feriria o direito a isonomia. Entretanto, ha uma enorme diferenga entre a discriminagao arbitraria e o tratamento legitimamente diferenciado. Se a Constituigéo determina o dever do Estado em amparar idosos, conforme dicg&o expressa do art. 230, esse dever ndo pode ser interpretado apenas coma um estimulo a construgdo de asilos. O tratamento diferenciado do legislador das locagées corresponde justamente ao 48 ditado constitucional que, expressao do principio da dignidade da pessoa huma- na, imagina ser tormentoso para 0 localario mais idoso a mudanga de residéncia, dai decorrendo o desempate a seu favor no exercicio do direito de preferéncia. Muitos exemplos poderiam ser oferecidos no sentido de construir uma interpre- tagdo que reunifique o direito privado, fornecendo revigorado félego a norma or- dinaria através dos principios constitucionais. O Cédigo de Defesa do Consumidor (Lei n°8.078, de 11 de setembro de 1990), em seu art. 4°, determina que a politica nacional das relagdes de consumo (informada pelos arts. 5°, XXXII, e 170, V, da Constituigao) “tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, satide e seguranga, a protegao de seus interesses econdmicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparéncia e harmonia das relagdes de consumo’, fixando entéo uma série de principios a serem atendidos. O excerto, diga-se entre parénteses, confirma cabalmente a ruptura do legislador especial para com a técnica regulamentar e patrimonialista do Cédigo Civil, como antes mencionado. Pois ai esta: os preceitos do Cédigo de Defesa do Consumidor pa- recem, as vezes, esquecidos pelos operadores e, no entanto, dao expressao, dao corpo e déo vida ao ditado constitucional, em favor da dignidade do consu- midor, em favor de valores extrapatrimoniais que devem proteger o contratante em situagao de inferioridade. O Codigo do Consumidor chega inclusive a utilizar a expressao “hipossuficiente”, a propiciar a inversao do 6nus da prova, segundo 0 art. 6°, inciso VIII, em favor do consumidor que, econémica ou tecnicarnente inferiorizado em relag&o ao fornecedor, venha a juizo desprovido de provas con- tundentes. Note-se que essa circunstancia, a hipossuficiéncia, nao tem conota- go restrita a deficiéncia econémica, abrangendo aspectos culturais e técnicos, além de ser conceito relativo, compreendendo as caracteristicas pessoais que tornam o consumicor inferiorizado em relagdo a determinado fornecedor. Em tais casos, 0 Codigo do Consumidor prevé a inversdo do 6nus da pro- va, a ser determinada com base na ordinaria experiéncia do juiz, como maneira de privilegiar os valores constitucionais tutelados prioritariamente pelo ordena- mento. O respeito a dignidade, a satide, 4 seguranga; a protegdo de interesses existenciais; a qualidade de vida e também os interesses econdmicos, a ativida- de econémica livre e concorrencial, sao alguns dos aspectos que devem guiar o magistrado para dirimir os conflitos no Ambito das relagdes de consumo. No que concerne ao direito de familia, o Estatuto da Crianga e do Adoles- cente (Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990), ao consagrar a igualdade de todos os filhos, prevista no art. 227, § 6°, da Constituigao, determina que a filho deva se inserir na relagdo familiar como protagonista do proprio processo educacional. Vale dizer, o filho esta autorizado a discutir os critérios de avaliagdo educacional e pedagdgica, sendo estimulado ao controle do exercicio do patrio poder. As- suntos atinentes a fixagao do domicilio familiar, a viagens com os filhos, a altera- ¢ao de escolas, devem ser decididos com base no interesse de todos os mem- bros da familia e, em particular, em consonancia com o interesse das criancas, alvo de tutela especial da Constituigaéo que visa, assim, o melhor desenvolvimen- to de sua personalidade. RDE | Revista de Direitodo Estado Ano 1 n° 2: 37-53 abriiun 2006 49 fegra, imagina como é dor ordinario, fixando os limites da reserva legal, de tal sorte que nao se sente diretamente vin- culado aos preceitos constitucionais, com os quais s6 se preocuparia nas hipo- teses — patologicas e extremas — de controle de constitucionalidade. Tal pre- conceito o faz refaém do legisiador ordindrio, sem cuja atuagdo nao poderia rein- terpretar e revisitar os institutos de direito privado, mesmo quando expressamen- te mencionados, tutelados e redimensionados pela Constituigao. Em segundo lugar, nao se pode concordar com os civilistas que se utili- zam dos princfpios constitucionais como principios gerais de direito. Os princi- pios gerais de direito sao preceitos extraidos implicitamente da legislagao, pelo método indutivo. Quando a lei for omissa, segundo a dicgao do art. 4° da Lei de Introdug4o, 0 juiz decidira o caso de acordo com a analogia e os costumes; e 86 entZo, na auséncia de lei expressa e fracassada a tentativa de dirimir 0 conflito valendo-se de tais fontes, decidira com base nos principios gerais de direito. No caso dos principios constitucionais, esta posigéo representaria uma subversdo da hierarquia normativa e uma forma de prestigiar as leis ordinarias e até os costumes, mesmo se retrogrados ou conservadores, em detrimento dos principios constitucionais que, dessa maneira, s6 seriam utilizados em sede in- terpretativa na omissdo do legislador, e apés serem descartadas a analogia e a fonte consuetudinaria. Em terceiro lugar, ainda no que tange a técnica interpretativa, nao pode o operador manter-se apegado a necessidade de regulamentacéo casuistica, j4 que 0 legislador vem alterando a sua forma de legislar, preferindo justamente as clausulas gerais, como ocorre repetidas vezes na Constituigao, no Cédigo de Defesa do Consumidor, no Estatuto da Crianga e do Adolescente e mesmo no Cédigo Civil de 2002. Acostumado ao estilo linear e elegante dg Cédigo Civil de 1916, no qual todas as situagdes-tipo eram previstas pormenorizada e detalha- damente, corre-se o risco de relegar a ineficdcia as clausulas gerais — nao s6 aquelas introduzidas na Constituigéo, mas as inumeras normas com a mesma técnica de que se valem os estatutos. Vale dizer: segundo 0 raciocinio ainda dominante, como determinada si- tuagdo concreta nao esta prevista expressa e casuisticamente, nado se reconhe- ceria legislag¢ao aplicavel, mesmo na presenga de clausulas gerais que, versan- do sobre a espécie, seriam consideradas mero programa de agao legislativa, en- deregadas ao legislador futuro. Trata-se de grave equivoco de rota, incompativel com a politica legislativa atual. As constituigdes contemporaneas e o legislador especial utilizam-se de clausulas gerais convencidos que estao da sua propria incapacidade, em face da velocidade com que evolui o mundo tecnologico, para regular todas as inti- meras e multifacetadas situag5es nas quais 0 sujeito de direito se insere. Clausu- las gerais equivalem a normas juridicas aplicaveis cireta e imediatamente nos casos concretos, néo sendo apenas clausulas de intengao. Por fim, © Ultimo preconceito a ser abandonado nessa tentativa de reuni- ficagao do Direito Civil 4 luz da Constituigao relaciona-se a summa divisio do di- feito publico e do direita privado. A interpenetragao do direito puiblico e do direito privado caracteriza a sociedade contemporanea, significando uma alteragao profunda nas relagdes entre o cidaddo e o Estado, O dirigismo contratual antes aludido, bem como as instancias de controle social instituidas em uma socieda- de cada vez mais participativa, alteram o comportamento do Estado em relagao. ao cidadao, redefinindo os espagos do ptiblico € do privado, a tudo isso deven- do se acrescentar a natureza hibrida dos novos temas ¢ institutos vindos a lume com a sociedade tecnoldgica. Daf a inevitavel alteragao dos confins entre o direito publico e o direito privado, de tal sorte que a distingao deixa de ser qualitativa e passa a ser mera- mente quantitativa, nem sempre se podendo definir qual exatamente 6 0 territério do direito publico e qual 0 territério do direito privado. Em outras palavras, pode- Se provavelmente determinar os campos do direito piiblico ou do direito privado pela prevaléncia do interesse publico ou do interesse privado, nao ja pela inexis- léncia de intervengéo publica nas atividades de direito privado ou pela exclusao da participagao do cidadao nas esferas da administragao publica. A alteragaéo tem enorme significado hermenéutico, e 6 preciso que venha a ser absorvida pelos operadores. Algumas matérias, em particular, retratam esse preconceito por parte de alguns autores. Apregoa-se com freqliéncia a migragao de certos institutos do direito civil para © direito administrativo por forga da intervencao estatal na sua regulamentagao, ou pela perda da referéncia individualista da disciplina legal. Assim ocorre, por exemplo, no caso da responsabilidade objetiva, com a consa- gragao da teoria do risco, prevista constitucionalmente na hipdtese de responsa- bilidade estatal. A matéria é tipicamente do direito civil e nao do direito adminis- trativo, como sustentam alguns. Nao é porque se substituiu a responsabilidade aquiliana pela teoria do risco que 0 civilista deverd lavar as mos, considerando- Se estranho a tematica. Cuida-se, na verdade, de uma dualidade de fontes — ato ilicito e leis especiticas —, intraduzida no estudo da responsabilidade civil, que nem por isso deixa de se integrar 4 dogmatica do direito civil. Apropriedade com a sua fungao social, as limitag6es do solo urbano eas festrigdes ao dominio dao um novo contetido a senhoria, limitando internamente oO conteudo do direito de propriedade. Nao se trata, a evidéncia, de deslocamen- to para 0 direito publico de certos tipos de propriedade, como se ao direito civil coubesse a disciplina de uma propriedade sem limites, no espaco que lhe res- lou, onde fosse possivel expandir o mesmo individualismo pré-constitucional, NDE | Revista de Direitodo Estado Ano 1 n®2:37-53 abr/jun 2006 51 podendo, entao, finalmente, o titular, exercer a senhoria livremente, sem interven- cao estatal. Ao contrario, todo o conteudo do Gireito subjetivo de propriedade encontra-se redesenhado. O mesmo fenémeno verifica-se no direito de familia. O fato de os princi- pios de ordem publica permearem todas as relagées familiares nao significa ter 0 direito de familia migrada para o direito pdblico; devendo-se, ao reverso, sub- meter a convivéncia familiar, no Ambito do proprio direito civil, aos principios constitucionais, de tal maneira que a familia deixe de ser valorada como institui- 40, por si sé merecedora de tutela privilegiada, como quisera o Cédigo Civil de 4916, em favor de uma protegao funcionalizada a realizagdo da personalidade e da dignidade dos seus integrantes, como quer 0 texto constitucional. Veja-se, ainda, a disciplina dos contratos de massa, regulada pelo Codi- go do Consumidor, permeada mais uma vez por principios de ordem publica, expressao do dirigismo contratual, sem que com isso se justifique uma distingao temética entre os contratos de consumo e a tearia contratual do direito civil, como. se as relagdes de consumo, pela intensidade da intervengao estatal que atraem, se esiremassem do dircito civil. Pode-se dizer, a rigor, que em todos esses exemplos a critica se move contra um ponto de vista comum e extremamente perigoso, que pretende cot servar um espaco de liberdade, por menor que seja! em tema de propriedade, familia, responsabilidade, teoria ne| es. de “ultima praia", como alguém, com fina ironia, designou, para a salvagao dos postulados subjgiivi i lente dominantes em todo o ito civil codificado. A rigor A intervencao direta do Estado nas relagdes de direito privado, por outro lado, nado significa um agigantamento do direito ptiblico em detrimento do direito civil que, dessa forma, perderia espago, como temem alguns. Muito ao contrario, a perspectiva de interpretagao civil-constitucional permite que sejam revigora- dos 08 institutos de direito civil, muitos deles defasados da realidade contempo- ranea e por isso mesmo relegados 20 esquecimento e a ineficacia, repotenciali- zando-os, de molde a torna-los compativeis com as demandas sociais e econd- micas da sociedade atual Uma ultima adverténcia se faz indispens4ve (iE EEaaamEED 17 A expressdo ('approdo ad un'ultina spiaggia) € de Pietro Rescigno, Disciplina dei ben! & situazioni dolla persona, Quaderni Fiorenti, 1976-7, ll, p. 877, referindo-se ao “aggancio che cercano la proprieta e Ie situazioni ‘real’ nella tutela della persona’. 52 reservando, evidentemente, a sua autonomia dogmatica e con- Ceitual, por outro lado poderia parecer desnecessaria e até errénea. — eee que Tons a nna a r , pura € simplesmente? Afin: ireito civil ad- jetivado poderia suscitar a impressdo de ee ele proprio cote Gane ces servindo os adjetivos para colorir, com elementos externos, categorias que, ao contrério do que se pretende, permaneceriam imutaveis. A rigor, aobjecdoé p er tinente, ea tentativa de adjetivar o direito civil tem como meta apenas real er 9 trabalho &rduo que incumbe ao intérprete. Ha de se advertir, no entanto, desde logo, que os adjetivos nao poderdo significar a superposigao de elementos exd- genos do direito publico sobre conceitos estratificados, mas uma interpenetra- ga do direito publico e privado, de tal maneira a se reelaborar a dogmatica d direito civil. Trata-se, em uma palavra, de e: aiecuaae definigdéo de ordem publi. . Gostaria de concluir esta aula agradecendo a atengado ea paciéncia dos carissimos professores e alunos aqui presentes, com votos de um proficuo ano académico e deixando para a reflexdo de todos, juntamente com este delibera- damente provocativo apelo a uma releitura do nosso direito civil, a invocagao de um itreverente personagem, Lord Henry Wotton, de um dos mais irreverentes au. tores da literatura inglesa, Oscar Wilde: "Our proverbs want rewriting. Th made in winter, and it is summer now"'8, ao. 1" The picture of Dorian Gray, Plays Prose Writings and Poems, p. 126. AIDE | Revista de Direitodo Estado Ano 1 n®2:37-83 abrijun 2006 53

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