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Legitimacy control of private autonomy acts | Controle valorativo dos atos de autonomia privada View project
All content following this page was uploaded by Eduardo Nunes de Souza on 05 September 2016.
AUTORES:
Aline de Miranda Valverde Terra Gustavo Tepedino
Anderson Schreiber Heloisa Helena Barboza
Caio Mário da Silva Pereira Neto João Felipe Rocha P. Q. Conceição
Carlos Affonso Pereira de Souza Maria Celina Bodin de Moraes
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho Maria Teresa Moreira Lima
Carlos Nelson Konder Milena Donato Oliva
Cleyson de Moraes Mello Renata Vilela Multedo
Daniel Bucar Ronaldo Lemos
Daniele Chaves Teixeira Rosangela Maria de Azevedo Gomes
Eduardo Nunes de Souza Rose Melo Vencelau Meireles
Gisela Sampaio da Cruz Guedes Thamis Dalsenter Viveiros de Castro
Guilherme Calmon Nogueira da Gama
1. Introdução
O controle da autonomia privada pelo direito não constitui uma noção re-
cente para o civilista – conquanto muito controvertida seja sua extensão,
sobretudo quando implica a incidência de normas de direito público (e o
exemplo mais claro são as normas constitucionais) sobre as relações par-
ticulares, incidência ainda hoje resistida por certos setores da doutrina.
Como se sabe, a autonomia privada nunca representou um princípio ili-
mitado: consolidou-se, nos moldes liberais, com a primeira codificação, na
passagem entre os séculos XVIII e XIX, e já nasceu geminada com seu ba-
lizamento pela lei (muito embora a legalidade, em um primeiro momento,
tenha sido pretendida como um limite externo e excepcional ao exercício
de direitos subjetivos).3 A mudança de concepção a respeito do papel do
des choses de la manière la plus absolue, pourvu qu’on n’en fasse pas un usage prohibé par les
lois ou par les règlements”.
4 Passou-se de um modelo liberal – já denominado, por força de sua atuação mínima, État
veilleur de nuit (“Estado vigia-noturno”, também dito État gendarme ou État minimal) – para
um modelo de Estado prestacional e comprometido com a garantia de condições existenciais
mínimas para seus cidadãos.
5 Para um histórico dessa evolução, cf. TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para
a constitucionalização do direito civil. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
6 Alude-se difusamente a direitos “merecedores de tutela legal” ou a pretensões “merece-
doras de tutela judicial”. Vejam-se alguns usos da expressão em fragmentos de acórdãos do
Superior Tribunal de Justiça: “ausente a presença do consumidor, não se há falar em relação
merecedora de tutela legal especial [...]” (2ª S., CC 46747/SP, Rel. Min. Jorge Scartezzini,
julg. 8.3.2006); “embora seja uma abstração enquanto entidade jurídica [...] a empresa me-
rece tutela jurídica própria” (2ª T., REsp. 594.927, Rel. Min. Franciulli Neto, julg. 4.2.2004).
“A antevisão de possíveis atentados aos direitos de outrem é sempre merecedora de tutela
jurisdicional [...]” (5ª. T., HC 24.817, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, julg. 10.12.2002);
“Contrato de parceria rural [...] não tem por objeto, aliás, direito indígena, merecedor de
tutela através da Justiça Federal” (2ª S., CC 3585, Rel. Min. Athos Gusmão Carneiro, julg.
10.3.1993).
7 A respeito, seja consentido remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Abuso do direito:
novas perspectivas entre a licitude e o merecimento de tutela. Revista Trimestral de Direito
Civil, vol. 50. Rio de Janeiro: Padma, abr-jun/2012, pp. 66 e ss.
11 Fala-se em “juízos negativos” na medida em que tanto a consideração sobre a ilicitude
quanto aquela sobre a abusividade consistem em negar eficácia (ou, sem sentido lato, negar
tutela) a atos desconformes ao ordenamento. Trata-se de expressões da função repressiva
do direito – a respeito, v. item 3, infra.
12 Processo denominado por parte da doutrina constitucionalista como filtragem constitu-
cional (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 363).
13 Estes e outros pressupostos fundamentais da metodologia civil-constitucional podem
22 Um bom exemplo do raciocínio subsuntivo, ainda que superada a lógica exclusivamente
literal com a qual por vezes é caracterizado, pode ser encontrado em Karl ENGISCH, que,
após explicar o mecanismo da subsunção, indaga o que fazer quando a premissa menor não
pode ser enunciada, quer porque não é possível verificar quais são os fatos relevantes, quer
porque os fatos não se deixam subsumir à premissa maior: “é necessário que se retirem da lei
novas premissas maiores, com as quais se haverão de combinar as correspondentes premissas
menores, a fim de fundamentar a sentença sob a forma de uma conclusão” (Introdução ao
pensamento jurídico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 94-100).
23 A elucidar o papel mascarador do recurso à subsunção, Karl LARENZ: “O que o jurista
frequentemente designa, de modo logicamente inadequado, como subsunção, revela-se em
grande parte como apreciação com base em experiências sociais ou numa pauta valorativa
carecida de preenchimento” (Metodologia da ciência do direito, cit., p. 645).
24 Pré-compreensões estas que não devem (nem poderiam) ser extirpadas da interpreta-
ção, mas integradas a ela de modo consciente: “Aquele que quer compreender não pode se
entregar, já desde o início, à causalidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o mais
obstinada e consequentemente possível a opinião do texto – até que este, finalmente, já não
possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto,
em princípio, [deve estar] disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. [...] Mas essa
receptividade não pressupõe nem ‘neutralidade’ com relação à coisa nem tampouco auto-
-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões e preconceitos, apropriação
que se destaca destes. O que importa é dar-se conta das próprias antecipações, para que o
próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade” (GADAMER, H.G. Verdade e método.
Petrópolis: Vozes, 1999, p. 405).
25 Aduz Maria Celina BODIN DE MORAES: “ultrapassado o positivismo jurídico, o
sistema tem agora potencialidade para se tornar muito mais racional e coeso (rectius, pre-
visível), porque a ambiguidade intrínseca aos dispositivos normativos tende a diminuir ou
cumpre escolher qual deles irá prevalecer por meio da ponderação.37 O re-
conhecimento de que toda decisão judicial decorre de um complexo diálo-
go entre fato e norma, e de que toda aplicação do Direito é interpretação,
mostra-se essencial para garantir a adequada fundamentação dessa esco-
lha.
37 Por todos, cf. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo,
cit., pp. 333-334; e, ainda, BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade
jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 31-33, que afirma ser a ponderação uma
“alternativa à subsunção”.
38 Ou balanceamento, como é conhecida na língua inglesa (balancing) e italiana (bilan-
ciamento).
39 ALEXY, Robert. A theory of constitutional rights. New York: Oxford University Press,
2010, p. 47.
51 No original, “a government of laws not men”. A frase, publicada na obra Novanglus (or
A History of the Dispute with America from its Origin, in 1754, to the Present Time) em 1775,
seria inserida posteriormente na Constituição de Massachussets de 1779, da qual Adams
foi o principal redator.
52 Sobre a mitigação da dicotomia, v., por todos, o texto clássico de GIORGIANNI, Mi-
chele. O direito privado e as suas atuais fronteiras. Revista dos Tribunais, n. 747. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998.
53 A respeito da diferença de conteúdo do princípio da legalidade no direito público e no
direito privado, cf., dentre muitos outros, BARROSO, Luís Roberto. Apontamentos sobre o
princípio da legalidade. Temas de direito constitucional, t. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
pp.165-170.
54 Cf. JOSSERAND, Louis. De L’esprit des droits et de leur rélativité. Paris: Dalloz, 1927.
cato controlo di meritevolezza che abbia conto particolarmente della sua pre-
cipua funzione e del suo oggetto”.57
Que sentido se poderia atribuir a este significado contemporâneo de
legalidade? O próprio autor sinaliza, no trecho citado, que a noção de le-
galidade passa a levar em conta também o aspecto funcional, para além da
perspectiva simplesmente estrutural que era associada à noção de “confor-
midade à lei”. O desenvolvimento da teoria do abuso do direito, porém, já
havia realizado esta evolução, ao demonstrar que é vedado pelo ordena-
mento o exercício disfuncional de situações jurídicas subjetivas, ainda que
tal exercício se apresente em conformidade com uma estrutura legalmente
válida. A atual definição da legalidade como merecimento de tutela, por-
tanto, sugere uma nova evolução conceitual, que vá além da vedação ao ilí-
cito e ao abuso.
Essa evolução parece ser justamente aquela que acrescentou à função
repressiva do direito uma função promocional. Em outras palavras, afirmar
que a legalidade corresponde, hoje, ao merecimento de tutela indica que
não se preveem apenas limites à autonomia privada na forma de vedações,
mas também preferências conferidas aos atos de autonomia que promovam
especialmente valores juridicamente relevantes – eis aí o mérito, maior que
a simples conformidade (estrutural e funcional) ao direito, que pode apre-
sentar o ato negocial.58 Tal mudança de perspectiva foi sentida inclusive
no sentido atribuído à legalidade pelo direito público. De fato, o reconhe-
cimento da relevância de uma análise funcional do direito e da migração
dos princípios constitucionais para o centro axiológico do sistema reper-
cutiu no entendimento de que à Administração Pública cumpre realizar os
atos permitidos ou determinados (não mais pela lei, mas) pela legalidade
constitucional. O comando ou a autorização legal não bastam para balizar
a atuação do administrador; há que se atentar para a totalidade do ordena-
mento. A essa mudança de sentido tem-se designado pelo termo juridici-
dade, para identificar o estágio atual do princípio da legalidade no âmbito
do direito público.59
57 PERLINGIERI, Pietro. Il diritto di legalità nel diritto civile. Rassegna di diritto civile.
Anno 31, n. 1. Milano: ESI, 2010, p. 187.
58 Com efeito, a própria semântica da expressão “merecimento de tutela” permite inferir
que não se trata do simples não descumprimento da lei; um ato merecedor de tutela deve
trazer um significado adicional, um mérito a mais, promovendo ativamente valores em vez de
apenas não violá-los. Segundo o Dicionário Houaiss, “merecimento” significa, dentre outros
sentidos, “aquilo que empresta valor a algo; aquilo que há de bom, vantajoso, admirável ou
recomendável” em algo. Entre o antigo conceito de legalidade e o atual merecimento de tutela
há, assim, uma distância semelhante àquela entre o correto e o recomendável.
59 A respeito da juridicidade, afirma Luís Roberto BARROSO: “O administrador pode e
deve atuar tendo por fundamento a Constituição e independentemente, em muitos casos,
embora seja certo que ele não possa violar tais interesses e que, se vier a
promovê-los ao lado de seus próprios interesses, seu ato terá um mérito es-
pecial – será, em sentido estrito, merecedor de tutela. Os interesses priva-
dos são protegidos pela ordem jurídica na medida em que não se contrapo-
nham aos valores que o ordenamento associa a eles (tem-se aí um controle
de abusividade, e não por acaso se afirma usualmente que a função social e
outros princípios de matriz solidarista conformam “internamente” as situ-
ações jurídicas patrimoniais); mas um ato particular que consiga promover
tanto interesses individuais quanto outros interesses juridicamente rele-
vantes receberá ipso facto tutela prioritária em face de outros atos que ape-
nas promovam os interesses das partes. Eis por que a expressão merecimen-
to de tutela se adapta com particular exatidão ao direito privado, no qual os
interesses primariamente perseguidos não são necessariamente públicos.
há um dever positivo de promover tais interesses (ou, de modo mais simplificado, que as
partes não são movidas a contratar por força de interesses sociais, mas sim por interesses
próprios, que não podem ser contrários aos primeiros). “Quando muito, é o Estado que es-
taria obrigado a prever em seus contratos administrativos esses deveres promocionais, o que
reduziria significativamente a pretendida eficácia do princípio da função social” (RENTERÍA,
Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato.
In BODIN DE MORAES, Maria Celina (coord.). Princípios do direito civil contemporâneo.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 305-306).
sivo porque exercido de modo contrário aos valores associados àquela si-
tuação subjetiva.64 As consequências são várias: a antijuridicidade do ato
permite advogar por sua nulidade;65 o dano eventualmente causado enseja-
rá responsabilidade civil como se decorresse de ato ilícito; os interessados
podem pedir o desfazimento do ato ou o suprimento judicial de declaração
de vontade abusivamente negada pelo titular do direito. A conduta será, em
resumo, reprimida e seus efeitos negados na medida necessária para que o
exercício volte a ser compatível com a função da situação jurídica subjetiva.
Por sua vez, um ato que não se considere merecedor de tutela o será
sempre em termos relativos (ou seja, não será merecedor de tutela em rela-
ção a outro exercício particular que lhe seja contraposto). No plano funcio-
nal, esse ato é plenamente conforme aos valores associados à sua tutela jurí-
dica (i.e., à sua função); sua repressão decorre tão somente de uma incom-
patibilidade com outro ato, também obediente à respectiva função, mas
que, à luz da totalidade do sistema, merecerá tutela preferencial. A medida
da repressão do primeiro ato, assim, não será a sua própria função, mas a
medida necessária para a tutela do outro, dito merecedor de tutela em sen-
tido estrito. Não se pode afirmar, assim, que o primeiro ato seja antijurí-
dico (ao menos, não no mesmo sentido em que se fala do ilícito e do abu-
so); não existisse uma posição particular contraposta que promovesse me-
lhor os valores do sistema, esse ato teria sua eficácia reconhecida. Em suma,
todo ato lícito e não abusivo será, em sentido amplo, merecedor de tutela:
o merecimento é, em regra, uma consequência da licitude e não abusivi-
dade do exercício; excepcionalmente, porém, exigir-se-á do intérprete um
terceiro e último juízo valorativo para determinar se o ato terá seus efeitos
protegidos.
Em geral, as hipóteses desse juízo de merecimento de tutela em sen-
tido estrito envolverão direitos absolutos (tais como os direitos reais e os
chamados direitos da personalidade), que, por serem oponíveis erga omnes,
sempre se contrapuseram a outros interesses juridicamente tutelados, oca-
sionando a necessidade de juízos valorativos capazes de solucionar a coli-
são entre eles. A questão se põe com menor frequência no âmbito dos di-
64 Pense-se, por exemplo, no exercício do direito à resolução pelo credor que ainda tem
interesse útil na execução do contrato, no exercício do poder familiar por um dos pais ape-
nas com intuito emulativo em relação ao outro genitor, ou no exercício do proprietário que
não cumpre a função social de seu bem. Nestes casos, a desconformidade do exercício se
relaciona à própria função da situação jurídica abusada (respectivamente, a causa negocial
que objetivamente determina o interesse contratual; o melhor interesse da criança, que deve
sempre guiar o exercício do poder familiar; e a função social da propriedade, que conforma
internamente o domínio e contra a qual este jamais pode ser exercido),
65 Trata-se da chamada nulidade virtual ou não cominada – aquela que, embora não prevista
pelo legislador, resulta da vedação do ato pelo ordenamento.
66 Decorrência do princípio res inter alios acta, hoje mitigado por novos princípios como a
boa-fé objetiva, mas ainda bastante característico desta espécie de relação.
67 Exemplo característico é a difícil identificação de efeitos da função social do contrato que já
não se encontrem previstos em outras normas, o que tem levado parte da doutrina a sustentar
que o princípio coincide, no momento atual, com a função negocial (v., por todos, BODIN
DE MORAES, Maria Celina. A causa, cit., p. 316). O esforço jurisprudencial e doutrinário
tende a especificar, com o tempo, novas decorrências do princípio, identificando interesses
em colisão que talvez demandem uma aplicação mais frequente do juízo de merecimento de
tutela também nas relações contratuais. O tema foi previamente desenvolvido em SOUZA,
Eduardo Nunes de. Função negocial e função social do contrato: subsídios para um estudo
comparativo. Revista de Direito Privado, vol. 54, abr-jun/2013, pp. 83-84.
68 Cf., por exemplo, BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão versus direitos da
personalidade. Temas de direito constitucional, t. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, passim.
69 Designam-se dados sensíveis os dados pessoais, em geral relacionados à saúde ou à opinião,
que, se divulgados, poderiam gerar discriminação (RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade
da vigilância. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 79).
70 O caso aconteceu com o senador americano Roy Ashburn (que, tendo-se destacado
como forte opositor dos homossexuais junto aos seus eleitores, foi detido ao sair dirigindo
embriagado de um bar GLS) e é comentado por SCHREIBER, Anderson. Direitos da per-
sonalidade. São Paulo: Atlas, 2012, p. 154.
71 Trata-se da ADIn. 4.815, proposta em 2012 pela Associação Nacional dos Editores de
Livros (ANEL), pretendendo a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto
dos arts. 20-21 do Código Civil.
guiem, além do magistrado, os demais agentes envolvidos nesse tipo de situação (editoras,
autores etc.)” (Liberdade, cit., p. 67).
76 Não obstante a Constituição Federal preveja o não cumprimento da função social como
fundamento legítimo para a desapropriação do bem (arts. 182, § 4º e 184).
77 A respeito, v., por todos, TEPEDINO, Gustavo. In AZEVEDO, Antônio Junqueira de
(Coord.). Comentários ao Código Civil, vol. 14. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 58.
78 Na verdade, se a posse corresponde à exteriorização do domínio por meio do exercício
de uma ou algumas de suas faculdades, muito embora tenha prevalecido a expressão “função
social da propriedade”, parece mais adequado entender a questão como um simples conflito
entre as funções sociais de duas posses. Isso porque uma tal valoração deve necessariamente
levar em conta o exercício concretamente realizado pelas partes e, no caso sui generis do direito
de propriedade, esse exercício recebeu historicamente designação e disciplina específicas (a
posse). Tal perspectiva permitiria também superar a clássica controvérsia sobre a natureza
da posse (fato ou direito): trata-se do exercício de um direito, analisado autonomamente
porque apenas sobre ele se pode realizar uma análise funcional do domínio.
79 Embora não se restrinja a noção de merecimento de tutela a este único princípio, tal
parece ser a aplicação mais frequente. Afirma-se, por exemplo, que a função social “impõe
aos contratantes a obrigação de perseguir, ao lado de seus interesses privados, interesses
extracontratuais socialmente relevantes, [...] sob pena de não merecimento de tutela do
exercício da liberdade de contratar” (TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos
contratos. Temas de direito civil, t. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 153).
80 Sobre a confusão entre os termos função, funcionalização e função social, seja consen-
tido remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Função negocial e função social do contrato,
cit., pp. 67-73.
81 A suposta função social de situações existenciais é negada, dentre outros, por Maria
Celina BODIN DE MORAES (Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa
humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 148).
82 Por força da marcante coincidência prática entre o merecimento de tutela e o cum-
primento da função social (e enquanto ela perdurar), já se sustentou, em outra sede, que
o controle de abusividade (mais restrito que o juízo meritório, pois não busca promover
valores positivamente) seria, em certo aspecto, mais abrangente que o merecimento de tutela,
pois considera outros aspectos funcionais além da própria função social (SOUZA, Eduardo
Nunes de. Abuso do direito: novas perspectivas, cit., p. 84).
83 Ainda assim, autorizada doutrina não nega o entendimento de que o não uso seria uma
forma legítima de exercício do domínio. Este é, assim, mais um aspecto a ser valorado à luz
do caso concreto. Para Gustavo TEPEDINO, “a inação apenas merecerá tutela do ordena-
mento se e enquanto atender à função econômica e social da propriedade” (Comentários
ao Código Civil, cit., p. 472).
84 Assim, por exemplo, caso o pedido de indenização caracterizasse litigância de má-fé
(art. 17 do CPC), não seria preciso cogitar do juízo meritório sobre o pedido de indenização.
85 Cf. GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In
DI FRANCESCO, José Roberto Pacheco (Org.). Estudos em homenagem ao professor Silvio
Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1989, pp. 293 e ss.
86 Verbis: “Art. 2.043. Qualunque fatto doloso o colposo, che cagiona ad altri un danno
ingiusto, obbliga colui che ha commesso il fatto a risarcire il danno”.
87 A natureza de cláusula geral evidencia como o dano injusto é um bom exemplo de
hipótese solucionável apenas por um juízo meritório – bastante semelhante ao da ponde-
ração de princípios no que tange ao sopesamento de interesses (a serem equilibrados, mas
não suprimidos). Leciona Guido ALPA que a expressão ingiustizia apresenta as funções e
problemas de uma cláusula geral: “è tendenzialmente indefinibile, ha connotati storicamente
relativi, costituisce una valora che tempera la rigidità dell’ordinamento, consente all’interprete
elasticità di apprezzamento, e così via” (I principi generali. In IUDICA, Giovanni; ZATTI,
Paolo (a cura di). Trattato di diritto privato. Milano: Giuffrè, 2006, p. 486).
88 De se destacar a concepção de Stefano RODOTÀ, que caracteriza o dano injusto a
partir de uma lesão à solidariedade social (Il problema della responsabilità civile. Milano:
Giuffrè, 1967, p. 89).
89 Explica Pietro TRIMARCHI que a atipicidade do sistema italiano de responsabilidade
civil exige do intérprete que especifique o conceito de injustiça do dano: “La soluzione di
questo problema dipende principalmente dalla valutazione comparativa di due interessi con-
trapposti: l’interesse minacciato da un certo tipo di condotta e l’interesse che l’agente con quella
condotta realizza o tende a realizzare” (Istituzioni di diritto privato. Milano: Giuffrè, 2011,
p. 110). Na doutrina pátria, v. Maria Celina BODIN DE MORAES: “O dano será injusto
quando, ainda que decorrente de conduta lícita, afetando aspecto fundamental da dignidade
humana, não for razoável, ponderados os interesses contrapostos, que a vítima permaneça
irressarcida” (Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 179).
90 Entende Pietro TRIMARCHI que esta valoração tem grande peso em sede legislativa,
na definição de particulares figuras de ato ilícito, mas também grande importância “per
l’interprete, quando deve integrare la disciplina legislativa dove questa è incompleta o generica”
(o.l.u.c.). No mesmo sentido, PINO, Giorgio. Diritti fondamentali e ragionamento giuridico,
cit., p. 99.
91 Interessante caso de identificação de dano injusto é o do dano moral por rompimento de
noivado. A respeito, Maria Celina BODIN DE MORAES afirma que, sopesadas a liberdade de
96 Tal noção não é nova, tendo sido aludida pela doutrina sob variadas formulações. Louis
JOSSERAND, por exemplo, previa que uma das possíveis consequências do abuso do direi-
to, para além da cessação do exercício abusivo, era a negativa de tutela ao direito exercido
disfuncionalmente que fosse depois desrespeitado por terceiros. No exemplo do autor, hoje
extemporâneo, um produtor de teatro que anunciasse com cartazes um espetáculo “licencioso
e desonesto” não poderia pedir perdas e danos contra quem viesse a dilacerar os referidos
cartazes (De l’esprit des droits, cit., p. 415).
97 Conforme observa Giorgio PINO, os defensores do bilanciamento caso per caso não
sustentam que dois casos concretos com os mesmos elementos relevantes possam ou devam
ser decididos de formas diversas (daí a impossibilidade de solução abstrata), mas sim que
nunca haverá, de fato, dois casos concretos idênticos (Diritti fondamentali e ragionamento
giuridico, cit., pp. 120-121).
98 Veja-se, a respeito, a síntese de Pietro PERLINGIERI a respeito do merecimento de tutela
dos contratos: “Il controllo di meritevolezza ha ad oggetto l’atto tenuto conto delle peculiarità
del caso specifico, collocandolo nel contesto politico-economico: soggetti, materia-oggetto del
contratto, tempi, modalità di conclusione concorrono alla precisazione del regolamento nego-
ziale. Il controllo esige una valutazione inspirata al bilanciamento degli interessi e dei valori, sí
che il contratto risulti ragionevole (senza che necessariamente vi sia una perfetta equivalenza
di diritti e di obblighi o di prestazioni!)” ( Il principio di legalità nel diritto civile, cit., p. 189).
6. Síntese conclusiva
Em uma perspectiva promocional do direito, o princípio da legalidade pas-
sa a apresentar como conteúdo, em sua incidência entre particulares, não
mais apenas limites negativos, mas também uma forma positiva de contro-
le. Embora, sem dúvida, o dever que tem um particular de promover valo-
res socialmente relevantes seja diferenciado daquele atribuído à Adminis-
tração Pública, de tal forma que não se possa falar em uma suposta repres-
são de posições particulares lícitas e não abusivas por não perseguirem in-
teresses extra-individuais, por outro lado o ordenamento pode deixar de
tutelar, nas hipóteses em que se verifiquem duas pretensões particulares
antagônicas, aquela que promover menos intensamente tais valores.
Tais casos, de difícil resolução pelo intérprete, devem necessariamen-
te ser apreciados à luz dos elementos do caso concreto, de tal modo que a
pretensão que se considerar menos merecedora de tutela ceda espaço à ou-
tra, que promove melhor os valores do ordenamento. Trata-se de um pro-
cedimento bastante semelhante, nesse aspecto, à ponderação de princípios,
muito difundida pela doutrina constitucionalista brasileira; esses casos não
podem ser considerados difíceis, porém, apenas com base na necessidade
de sua resolução mediante a ponderação de princípios (a compatibilização
de valores potencialmente antagônicos que compõem o sistema é enfren-
tada pela metodologia civil-constitucional para a resolução de todo e qual-
quer caso, na medida em que o ordenamento deve ser aplicado sempre de
modo unitário). Sua real dificuldade reside no fato de ambas as pretensões
particulares estarem amparadas por valores do ordenamento, o que gera a
necessidade de se resolverem tais questões tendo a função promocional (e
não a função repressiva) do direito como principal parâmetro.
Os juízos de licitude e não abusividade partem da premissa de proi-
bir condutas desconformes ao Direito. Assim, o merecimento de tutela em
sentido amplo é a natural consequência da conformidade (estrutural e fun-
cional) de certo ato ao direito (afinal, se um ato não é contrário ao orde-
namento, merecerá proteção jurídica). Por vezes, porém, atos particulares
que não apresentam fundamento para sua supressão podem sujeitar-se a
outra espécie de valoração, baseada em seu potencial de promover valores
7. Referências bibliográficas
02-Direito
ViewCivil.indd
publication stats106 21/10/2015 09:50:53