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Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no direito civil

Chapter · January 2015

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1 author:

Eduardo Nunes de Souza


Rio de Janeiro State University
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2
Direito
Civil COORDENAÇÃO:
Carlos Eduardo Guerra de Moraes
Ricardo Lodi Ribeiro
ORGANIZAÇÃO:
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Rose Melo Vencelau Meireles

AUTORES:
Aline de Miranda Valverde Terra Gustavo Tepedino
Anderson Schreiber Heloisa Helena Barboza
Caio Mário da Silva Pereira Neto João Felipe Rocha P. Q. Conceição
Carlos Affonso Pereira de Souza Maria Celina Bodin de Moraes
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho Maria Teresa Moreira Lima
Carlos Nelson Konder Milena Donato Oliva
Cleyson de Moraes Mello Renata Vilela Multedo
Daniel Bucar Ronaldo Lemos
Daniele Chaves Teixeira Rosangela Maria de Azevedo Gomes
Eduardo Nunes de Souza Rose Melo Vencelau Meireles
Gisela Sampaio da Cruz Guedes Thamis Dalsenter Viveiros de Castro
Guilherme Calmon Nogueira da Gama

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MERECIMENTO DE TUTELA:
A NOVA FRONTEIRA DA
LEGALIDADE NO DIREITO CIVIL1 *

Eduardo Nunes de Souza2**

Sumário: 1. Introdução; – 2. A insuficiência da subsunção como


técnica decisória e a relevância da fundamentação das decisões ju-
diciais; – 3. Hermenêutica civil-constitucional e o espaço para a
ponderação no direito civil; – 4. O princípio da legalidade no direi-
to privado e no direito público: diferentes lógicas de controle valo-
rativo; – 5. A aferição do merecimento de tutela em sentido estrito;
– 6. Síntese conclusiva; – 7. Referências bibliográficas.

1. Introdução
O controle da autonomia privada pelo direito não constitui uma noção re-
cente para o civilista – conquanto muito controvertida seja sua extensão,
sobretudo quando implica a incidência de normas de direito público (e o
exemplo mais claro são as normas constitucionais) sobre as relações par-
ticulares, incidência ainda hoje resistida por certos setores da doutrina.
Como se sabe, a autonomia privada nunca representou um princípio ili-
mitado: consolidou-se, nos moldes liberais, com a primeira codificação, na
passagem entre os séculos XVIII e XIX, e já nasceu geminada com seu ba-
lizamento pela lei (muito embora a legalidade, em um primeiro momento,
tenha sido pretendida como um limite externo e excepcional ao exercício
de direitos subjetivos).3 A mudança de concepção a respeito do papel do

1  * O presente artigo, ora revisto e atualizado, foi originalmente publicado na Revista de


Direito Privado. Vol. 58. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr-jun/2014. Agradeço ao Rodrigo
da Guia Silva pela leitura minuciosa, presença incansável e valiosas ideias com que contribuiu
decisivamente para mais este artigo, bem como pela sempre gratificante reflexão conjunta.
2  ** Doutorando e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Professor contratado dos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de
Direito da UERJ. Assessor jurídico junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
3  Talvez a melhor prova desta limitação esteja na disciplina do Code Napoléon ao mais
emblemático dos direitos subjetivos: “Article 544. La propriété est le droit de jouir et disposer | 73

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Estado em sua intervenção nas atividades privadas4 culminaria, no Brasil,


no estabelecimento da ordem constitucional de 1988, marcada por um for-
te projeto personalista e solidarista, a provocar uma profunda reconfigura-
ção no próprio fundamento de legitimidade dos atos particulares.5
Na perspectiva do direito civil-constitucional, mais ainda, o exercício
da autonomia privada apenas se legitima perante a ordem jurídica quando
conforme à axiologia do sistema. A noção de controle valorativo dos atos
de autonomia, em outras palavras, revela-se um pressuposto intuitivo da
própria proteção conferida pela ordem jurídica a tais atos. Partindo-se de
tais premissas, o emprego corrente da expressão “merecimento de tutela”
não costuma causar estranheza ao jurista. De fato, afirma-se com frequên-
cia que certa pretensão é merecedora de tutela quando se deseja indicar sua
compatibilidade com o sistema e, assim, concluir que os efeitos jurídicos
pretendidos merecem ser albergados pelo ordenamento.6 Em sentido lato,
portanto, a noção de merecimento de tutela representa justamente o reco-
nhecimento de que a eficácia de certa conduta particular é compatível com
o sistema e, por isso, deve ser protegida; trata-se, como se vê, de uma con-
sequência necessária da constatação de que certo ato é lícito do ponto de
vista estático ou estrutural e, em perspectiva dinâmica ou funcional, não é
abusivo (não constitui o exercício disfuncional de uma situação jurídica).7

des choses de la manière la plus absolue, pourvu qu’on n’en fasse pas un usage prohibé par les
lois ou par les règlements”.
4  Passou-se de um modelo liberal – já denominado, por força de sua atuação mínima, État
veilleur de nuit (“Estado vigia-noturno”, também dito État gendarme ou État minimal) – para
um modelo de Estado prestacional e comprometido com a garantia de condições existenciais
mínimas para seus cidadãos.
5  Para um histórico dessa evolução, cf. TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para
a constitucionalização do direito civil. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
6  Alude-se difusamente a direitos “merecedores de tutela legal” ou a pretensões “merece-
doras de tutela judicial”. Vejam-se alguns usos da expressão em fragmentos de acórdãos do
Superior Tribunal de Justiça: “ausente a presença do consumidor, não se há falar em relação
merecedora de tutela legal especial [...]” (2ª S., CC 46747/SP, Rel. Min. Jorge Scartezzini,
julg. 8.3.2006); “embora seja uma abstração enquanto entidade jurídica [...] a empresa me-
rece tutela jurídica própria” (2ª T., REsp. 594.927, Rel. Min. Franciulli Neto, julg. 4.2.2004).
“A antevisão de possíveis atentados aos direitos de outrem é sempre merecedora de tutela
jurisdicional [...]” (5ª. T., HC 24.817, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, julg. 10.12.2002);
“Contrato de parceria rural [...] não tem por objeto, aliás, direito indígena, merecedor de
tutela através da Justiça Federal” (2ª S., CC 3585, Rel. Min. Athos Gusmão Carneiro, julg.
10.3.1993).
7  A respeito, seja consentido remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Abuso do direito:
novas perspectivas entre a licitude e o merecimento de tutela. Revista Trimestral de Direito
Civil, vol. 50. Rio de Janeiro: Padma, abr-jun/2012, pp. 66 e ss.

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Existiria, porém, um sentido estrito para a expressão merecimento de


tutela, independente das noções de licitude e não abusividade? Onde se po-
deria buscar esse sentido? O legislador brasileiro não faz uso da locução.
De fato, a principal referência que se tem dela repousa no Código Civil ita-
liano – diploma que, por seu turno, exerceu enorme influência sobre a co-
dificação brasileira de 2002 –, no âmbito da disciplina dos contratos atípi-
cos: “Art. 1.322. ‘Autonomia contrattuale’. [...] Le parti possono anche con-
cludere contratti che non appartengono ai tipi aventi una disciplina parti-
colare, purché siano diretti a realizzare interessi meritevoli di tutela secondo
l’ordinamento giuridico”.8 Não à toa, a menção ao merecimento de tutela se
encontra no dispositivo atinente a uma das manifestações mais simbólicas
da autonomia privada: o poder criativo que têm as partes de celebrarem
contratos não previstos em lei.
O dispositivo do Codice busca subordinar a possibilidade da celebra-
ção de contratos atípicos no ordenamento italiano à demonstração de que
tais contratos se prestam à realização de interesses merecedores de tutela.
Afirma-se, nesse sentido, que os tipos contratuais previstos em lei já teriam
sido aprovados em uma valoração prévia do legislador, ao passo que, se a
causa contratual não corresponder à previsão típica, esta valoração ainda
teria de ser feita, para que se pudessem tutelar os efeitos negociais.9 A dou-
trina italiana, no entanto, costuma atribuir usos mais diversificados à ex-
pressão. Ilustrativamente, Pietro Perlingieri, maior expoente da escola do
direito civil-constitucional na Itália, afirma: “Para receber um juízo positi-
vo o ato deve ser também merecedor de tutela. [...] não basta, portanto, ne-
gativamente, a não invasão de um limite de tutela, mas é necessário, positi-
vamente, que o fato possa ser representado como realização prática da or-
dem jurídica de valores, como desenvolvimento coerente de premissas sis-
temáticas colocadas na Carta Constitucional”.10
8  Em tradução livre: “Art. 1.322. Autonomia contratual. [...] As partes podem ainda concluir
contratos que não pertencem aos tipos detentores de uma disciplina particular, desde que
estejam dirigidas a realizar interesses merecedores de tutela segundo o ordenamento jurídico”.
9  Com efeito, os negócios atípicos apenas podem ser tutelados se forem “implicitamente
permitidos pelo sistema” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. A causa do contrato. Na
medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 293), afirmativa que pode ser
associada à noção de tipicità sociale de Emilio BETTI (Teoria do negócio jurídico. Campinas:
Servanda, 2008, p. 281).
10  PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Re-
novar, 2008, p. 650. Remata o autor: “Se o ordenamento italiano se colocasse como objetivo
apenas a tutela das situações adquiridas e das liberdades e os limites a tais liberdades fossem
considerados exceção, então as liberdades deveriam prevalecer de qualquer forma, como
expressões de um princípio-valor. [...] O ato negocial é válido não tanto porque desejado,
mas se, e apenas se, destinado a realizar, segundo um ordenamento fundado no personalismo
e no solidarismo, um interesse merecedor de tutela” (Ibid., pp. 370-371).

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De que espécie de merecimento de tutela (meritevolezza) se estaria


tratando, para cuja configuração não bastariam os controles negativos, vale
dizer, a licitude e a não abusividade?11 Seja qual for o conteúdo específico
da expressão, percebe-se que ela se dirige a alguma forma de juízo valorati-
vo sobre a autonomia privada. Assim, o estudo da evolução das formas de
controle axiológico sobre os atos particulares parece ser um bom ponto de
partida para a presente investigação. Trata-se de uma evolução que pode
ser apreciada sob ao menos dois pontos de vista: a partir das mudanças que
provocou na hermenêutica jurídica, ou da própria ampliação que represen-
tou para os limites impostos à autonomia privada. Em outros termos, esse
controle valorativo perpassa tanto a compreensão do processo pelo qual se
dá a interpretação e aplicação do direito (vale dizer, o meio de identificar
o conteúdo das normas que limitam os atos particulares) quanto a própria
evolução do direito (dos limites normativos à autonomia). Uma vez abor-
dados esses dois vieses, buscar-se-á propor um possível conteúdo estrito
para a noção de merecimento de tutela no ordenamento jurídico brasileiro.

2. A insuficiência da subsunção como técnica decisória e a


relevância da fundamentação das decisões judiciais
O fenômeno da constitucionalização do direito civil compreendeu a trans-
posição dos princípios constitucionais para o centro do ordenamento jurí-
dico, com a sua consequente irradiação para todos os setores da ordem ju-
rídica, a incidir inclusive sobre relações privadas (seja por intermédio da
norma infraconstitucional interpretada à luz da Constituição – fala-se em
eficácia indireta –, seja pela eficácia, dita direta, desses princípios sobre a
atividade particular, criando direitos e valorando condutas). Na perspecti-
va civil-constitucional, esse processo não apenas levou à releitura de todo o
sistema pelo prisma da Constituição,12 como também permitiu a restaura-
ção do caráter unitário do ordenamento – outrora garantido pela centrali-
dade do Código Civil, mas posto em xeque com a posterior proliferação de
estatutos e leis especiais.13

11  Fala-se em “juízos negativos” na medida em que tanto a consideração sobre a ilicitude
quanto aquela sobre a abusividade consistem em negar eficácia (ou, sem sentido lato, negar
tutela) a atos desconformes ao ordenamento. Trata-se de expressões da função repressiva
do direito – a respeito, v. item 3, infra.
12  Processo denominado por parte da doutrina constitucionalista como filtragem constitu-
cional (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 363).
13  Estes e outros pressupostos fundamentais da metodologia civil-constitucional podem

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Compreendido como um todo unitário (embora composto por fon-


tes legislativas potencialmente conflituosas), entende-se que o ordena-
mento exige um tratamento uno também no que tange à sua interpreta-
ção e aplicação.14 A cada momento em que o intérprete se põe diante de um
caso concreto, cumpre-lhe aplicar, não esta regra ou tal princípio, mas a or-
dem jurídica como um todo (o que equivale a afirmar que nenhuma nor-
ma pode ter seu sentido apreendido isoladamente sem a consideração glo-
bal do sistema). Nessa perspectiva, aplicar a norma implica interpretá-la
de modo tão inexorável que se tem afirmado que aplicação e interpretação
constituem um “momento único”.15 De outra parte, a interpretação torna-
-se um processo ainda mais complexo por um segundo fator: os elementos
do caso concreto, ao contrário do que por muito tempo se sustentou, não
permanecem estáticos à espera da incidência da norma – ao contrário, in-
fluenciam esta última e compõem necessariamente a construção da solu-
ção jurídica a que chegará o intérprete.16 Em outros termos, na metodolo-
gia civil-constitucional, o ordenamento apenas se completa quando encon-
tra os próprios elementos do caso; só existe o Direito à luz de certa hipóte-
se fática concreta, com suas peculiaridades e características – ideia que se
costuma designar como ordenamento do caso concreto.17
ser encontrados em BODIN DE MORAES, Maria Celina. A caminho de um direito civil-
-constitucional. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, passim.
14  Na síntese de Pietro PERLINGIERI, “L’unitarietà dell’ordinamento postula una meto-
dologia unitaria [...]. La ricerca-interpretazione della normativa da applicare al caso con-
creto è attività che coinvolge sempre l’intero sistema normativo” (Applicazione e controllo
nell’interpretazione giuridica. Rivista di Diritto Civile, Ano LVI, n.1. Padova: CEDAM,
jan-fev/2010, p. 322).
15  Nesse sentido, Eros GRAU: “não há dois momentos distintos, mas uma só operação.
Interpretação e aplicação se superpõem” (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação
do direito. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 284).
16  A relevância de elementos do caso concreto para além da norma positivada é destacada
pelos mais diversos juristas. Por todos, cf. Karl LARENZ: “A norma, que tem de se simpli-
ficar, porque quer abarcar uma série de situações fáticas, apreende em cada situação fática
particular apenas alguns aspectos ou elementos. E descura todos os outros. Mas isto conduz
não raramente à questão de se alguns dos elementos descurados na norma são, no entanto,
tão relevantes no caso concreto, que a sua consideração seja aqui ineludível, se não se quiser
(a partir da noção do Direito) tratar o desigual como igual e assim resolver injustamente”
(Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2012, p. 294). Talvez por
esse motivo a metodologia civil-constitucional raras vezes recorra à declaração tout court da
inconstitucionalidade de normas em abstrato, dando preferência, em vez disso, à interpre-
tação conforme ou à declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, de índole
eminentemente hermenêutica.
17  “O ordenamento realmente vigente é o conjunto dos ordenamentos dos casos concretos,
como se apresentam na vigência do dia-a-dia, e vive, portanto, exclusivamente enquanto
individualizado e aplicado aos fatos e aos acontecimentos” (PERLINGIERI, Pietro. O direito

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Tais pressupostos põem em xeque o clássico brocardo segundo o qual


in claris non fit interpretativo18 e propõem um novo adágio: in claris semper
fit interpretatio – ou, talvez fosse mais adequado dizer, nenhum caso jamais
será, de fato, “claro”. Porque o caso concreto não permite conduzir imedia-
tamente a uma norma abstrata que o discipline (mas, ao contrário, é a con-
sideração da integralidade do ordenamento que autoriza concluir por tal
ou qual normativa aplicável), e porque o próprio ordenamento somente se
considera completo após sua fusão aos elementos do caso concreto (igual-
mente relevantes para a identificação da normativa), nenhuma hipótese de
aplicação do direito dispensa o processo interpretativo. O encaixe entre as
fattispecie abstrata e concreta nunca é, em uma palavra, automático, como
sugeria a dogmática tradicional – na verdade, ambas constituem aspectos
de uma única realidade.19
Nesse cenário, afirma a metodologia civil-constitucional a insuficiên-
cia da subsunção como método interpretativo (e, por via de consequência,
como forma de fundamentação das decisões judiciais). Em sua formulação
mais clássica, o mecanismo subsuntivo implicava o encaixe mecânico en-
tre uma premissa maior (a norma) e outra menor (o fato), na estrutura de
um silogismo. Se é certo que tal concepção, em moldes tão rígidos, apenas
prevaleceu pelo exíguo período histórico em que sobreviveu a dita escola
da exegese,20 fato é que a subsunção, ainda que temperada por mecanismos
menos literais21 aos quais a doutrina precisou recorrer (como as interpreta-
ções histórica, sistemática e teleológica), não logrou impedir que o herme-

civil, cit., p. 201).


18  Máxima, aliás, originalmente dirigida apenas à interpretação de testamentos (para os
quais sua lógica literal mostra-se mais adequada) e depois degenerada em regra geral de
hermenêutica (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro:
Forense, 1980, pp. 33-34).
19  Conforme observa Pietro PERLINGIERI, com base em HABERMAS, a factualidade e
a normatividade “compõem problematicamente o objeto da interpretação” (Applicazione
e controllo, cit., p. 333).
20  E esta já teria sido superada, ao final do século XIX, pela escola científica de autores como
Raymond SALEILLES e François GÉNY, conforme anota Henri DE PAGE, que registra ter
sido a exegese “um parêntese” na história do desenvolvimento das ideias jurídicas e alude
mesmo à “nécrose de l’exegese” (Traité élémentaire de droit civil belge. Volume I. Bruxelles:
Émile Bruylant, 1948, p 12).
21  Karl LARENZ, ao analisar o método subsuntivo na evolução da ciência jurídica, destaca
a insuficiência do critério literal: “A problemática do procedimento silogístico referido reside
principalmente, como desde há muito se reconheceu, na correta constituição das premissas,
especialmente da premissa menor. No que respeita à premissa maior, não se pode, decerto,
admitir que possa ser retirada simplesmente do texto da lei. Ao invés, toda a lei carece de
interpretação e nem toda proposição jurídica está, de modo algum, contida na lei” (LARENZ,
Karl. Metodologia da ciência do direito, cit., p. 383).

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neuta continuasse a buscar uma identificação automática da norma aplicá-


vel ao caso concreto, desconsiderando na prática a unidade lógica e valora-
tiva da ordem jurídica. Após essa identificação, qualquer esforço para o en-
quadramento sistemático da norma escolhida apenas servia a adaptar sua
literalidade ao caso concreto, i.e., a justificar a escolha feita previamente.22
O inconveniente nesta tradição hermenêutica em torno da subsun-
ção consiste em permitir ao intérprete ocultar-se por trás de determina-
do enunciado normativo, encontrando nele uma fundamentação definiti-
va e inquestionável para a sua decisão.23 Ao conseguir localizar uma nor-
ma que “claramente” se dirigisse ao caso em julgamento (ou ao localizá-la
por meio de algum dos mecanismos interpretativos tradicionais), bastava-
-lhe usar essa norma como fundamento para a decisão. Em outros termos,
todo o esforço hermenêutico se voltava, na prática, para justificar a esco-
lha da normativa, e não propriamente para demonstrar as consequências
jurídicas dela extraídas. A aparente neutralidade do mecanismo silogístico
permitia ocultar ou mesmo negar a existência de pré-compreensões24 e es-
colhas políticas do intérprete – tudo isso sob a justificativa de uma supos-
ta “clareza”, diante da qual não seria necessário, alegadamente, interpretar.25

22  Um bom exemplo do raciocínio subsuntivo, ainda que superada a lógica exclusivamente
literal com a qual por vezes é caracterizado, pode ser encontrado em Karl ENGISCH, que,
após explicar o mecanismo da subsunção, indaga o que fazer quando a premissa menor não
pode ser enunciada, quer porque não é possível verificar quais são os fatos relevantes, quer
porque os fatos não se deixam subsumir à premissa maior: “é necessário que se retirem da lei
novas premissas maiores, com as quais se haverão de combinar as correspondentes premissas
menores, a fim de fundamentar a sentença sob a forma de uma conclusão” (Introdução ao
pensamento jurídico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 94-100).
23  A elucidar o papel mascarador do recurso à subsunção, Karl LARENZ: “O que o jurista
frequentemente designa, de modo logicamente inadequado, como subsunção, revela-se em
grande parte como apreciação com base em experiências sociais ou numa pauta valorativa
carecida de preenchimento” (Metodologia da ciência do direito, cit., p. 645).
24  Pré-compreensões estas que não devem (nem poderiam) ser extirpadas da interpreta-
ção, mas integradas a ela de modo consciente: “Aquele que quer compreender não pode se
entregar, já desde o início, à causalidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o mais
obstinada e consequentemente possível a opinião do texto – até que este, finalmente, já não
possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto,
em princípio, [deve estar] disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. [...] Mas essa
receptividade não pressupõe nem ‘neutralidade’ com relação à coisa nem tampouco auto-
-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões e preconceitos, apropriação
que se destaca destes. O que importa é dar-se conta das próprias antecipações, para que o
próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade” (GADAMER, H.G. Verdade e método.
Petrópolis: Vozes, 1999, p. 405).
25  Aduz Maria Celina BODIN DE MORAES: “ultrapassado o positivismo jurídico, o
sistema tem agora potencialidade para se tornar muito mais racional e coeso (rectius, pre-
visível), porque a ambiguidade intrínseca aos dispositivos normativos tende a diminuir ou

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Com efeito, já se observou que o raciocínio subsuntivo, talvez o mais


conhecido aspecto do positivismo formalista, abrigava uma ampla mar-
gem de discricionariedade do intérprete, na medida em que, no interior da
“moldura normativa” aludida por Kelsen, caberia qualquer preenchimen-
to que aprouvesse ao juiz.26 Todos os significados comportados pela norma
eram justificados pela simples existência dela: a legitimidade democrática
do legislador salvaguardava qualquer sentido que coubesse no texto positi-
vo. O reconhecimento do papel das escolhas pessoais do hermeneuta afasta
o escudo do raciocínio silogístico e redimensiona a tão propalada necessi-
dade de fundamentação das decisões à luz dos valores e da lógica do orde-
namento.27 Afirmar que o limite da interpretação reside no dever de funda-
mentação à luz da legalidade constitucional significa, sem dúvida, ampliar
a moldura normativa – que deixa de se prender ao texto da norma e passa a
remeter à axiologia de todo o sistema –, mas também permite lançar o foco
da discussão sobre o aspecto discricionário (mas não arbitrário) que sem-
pre existiu na decisão, oculto pela suposta neutralidade silogística.28
Evidentemente, não se pode supor que o intérprete, em seu primeiro
contato com o caso concreto, não reconheça, ainda que involuntariamen-
te, a proximidade da espécie fática em exame com alguma norma jurídica.
Diante de um contrato em que uma das partes se obriga a entregar certa
coisa e a outra a pagar preço correspectivo, seria humanamente improvável
desaparecer se, ao interpretar a regra, o juiz é capaz de motivar sua aplicação mediante a
explicitação do princípio jurídico que serve a justificá-la naquele caso concreto” (Prefácio.
Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. iv).
26  Lênio STRECK reputa a principal característica do positivismo “a discricionariedade,
que ocorre a partir da ‘delegação’ em favor dos juízes para a resolução dos casos difíceis
(não abarcados pela regra)” (Hermenêutica, Constituição e autonomia do direito. Revista
de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, jan-jun/2009, p. 69).
27  Previsto pela própria Constituição em seu art. 93, IX, o dever de fundamentação con-
substancia-se no grande elemento de legitimação da sentença, sobretudo em um contexto
no qual se reconhece progressivamente a falência da técnica legislativa regulamentar diante
de uma sociedade multifacetada e infensa à previsão geral e abstrata da norma, o que tem
conduzido a uma cada vez maior atuação criativa do intérprete – não raro fazendo esco-
lhas de ordem política, naquilo que se costuma denominar “ativismo judicial”. A respeito,
cf. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.
Seleções jurídicas, n. 5/2009, que define esse fenômeno como “uma participação mais ampla
e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais” (p. 35).
28  Aduz Maria Celina BODIN DE MORAES que a subsunção “traduz uma segurança ilu-
sória e uma neutralidade falsa, por trás das quais apenas se mascaram as escolhas políticas
existentes no processo. [...] Ao que parece, todavia, parte do Judiciário não percebeu que a
derrubada do limite externo, formal, que restringia o intérprete – o dogma da subsunção
– não significou a consagração do arbítrio, mas, ao contrário, impôs um limite interno,
– metodológico – a exigência de fundamentação (argumentativa) da sentença” (Do juiz
boca-da-lei à lei boca-de-juiz. Revista de Direito Privado, vol. 56, out-dez/2013, pp. 27-28).

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que o intérprete se furtasse a pensar no tipo normativo da compra-e-ven-


da.29 A metodologia aqui proposta simplesmente postula que não se pode
conferir qualquer relevância jurídica a essa primeira identificação (de mol-
des silogísticos), uma vez que em nenhuma hipótese se admite que a inter-
pretação esgote-se nela;30 ao contrário, é necessário que o julgador (re)co-
nheça suas pré-compreensões, justamente para impedir que seu convenci-
mento se forme apenas com base nelas.31 O entendimento que o magistra-
do adquire sobre o caso concreto forma-se no processo que a filosofia de-
nomina círculo hermenêutico, um movimento dialético constante que faz
com que ele se reporte do fato à norma e da norma ao fato, até alcançar a
solução.32
Em outras palavras, como a aparente combinação entre o fato e a nor-
ma jamais pode servir de justificativa a uma decisão – considerando-se que
a clareza normativa deve ser considerada sempre um posterius no proces-
so interpretativo33 –, exige-se do hermeneuta que reconheça a necessidade
de interpretação e que, reportando-se à legalidade constitucional, explicite
o raciocínio que o conduziu à sua decisão, fundamentando-a.34 É também
29  Com efeito, sabe-se na psicologia que os estímulos são processados pela mente humana
de forma a se extrair deles uma impressão imediata o mais coerente possível, de modo auto-
mático e com mínimo esforço cognitivo. Em geral, a mente aceita essa primeira impressão
como verdadeira com pouca ou nenhuma modificação; apenas diante de casos difíceis
exige-se um esforço mental mais intenso para a identificação do estímulo (e, mesmo assim,
é possível treinar a mente para identificá-lo de modo automático). A respeito, v. KAHNE-
MAN, Daniel. Thinking – Fast and Slow. New York: Farrar, Stratus and Giroux, 2011, passim
e, especialmente, pp. 24 e ss.
30  Destaca Carlos KONDER a complexidade da qualificação dos contratos, que não pode ser
segmentada “em etapas preclusivas, uma vez que tais etapas – rectius, aspectos – imiscuem-se
uns nos outros. Em oposição à visão clássica do trajeto único, subsuntivo, do fato à norma, a
atitude do intérprete constrói-se em um constante ir-e-vir entre a reconstrução da realidade
e seu diálogo com os enunciados normativos” (Qualificação e coligação contratual. Revista
Forense, vol. 406. Rio de Janeiro: nov-dez/2009, p. 65).
31  GADAMER ressalta o “caráter essencialmente preconceituoso de toda compreensão” e
alerta: “são os preconceitos não percebidos os que, com o seu domínio, nos tornam surdos
para a coisa de que nos fala a tradição” (Verdade e método, cit., p. 406).
32  O conceito de círculo hermenêutico, baseado no pensamento heideggeriano, é aludido
por Michele TARUFFO, que o considera o método inevitável de aplicação do Direito, mesmo
quando se afirma tratar-se de subsunção: “o que se usa chamar de sussunzione do fato [à]
norma, ou correspondência entre fato e norma, é somente o resultado final de um particular
círculo hermenêutico que liga, dialeticamente, o fato e a norma até chegar a uma correspon-
dência entre o fato, juridicamente qualificado e a norma interpretada como referência ao
caso, no qual ela é concretamente aplicada” (Legalidade e justificativa da criação judiciária
do direito. Revista da EMASPE, vol. 6, n. 14. Recife: jul-dez/2001, p. 435).
33  PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional, cit., p. 616.
34  Conforme anota GADAMER, o fato de o próprio juiz estar jungido à ordem jurídica

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nesse sentido que se pode afirmar que interpretação e aplicação constituem


um “momento único”: não se trata, por evidente, de um instante cronológi-
co único – como se fosse possível esperar que a solução jurídica decorren-
te da integralidade do ordenamento se materializasse diante dos olhos do
intérprete em um átimo de segundo –, mas sim do reconhecimento de que
fato e norma se influenciam mutuamente e, por isso, nenhum momento do
processo decisório deixa de consistir em uma interpretação.35 O raciocínio
subsuntivo seguia lógica oposta, propondo que a interpretação era necessá-
ria apenas para a identificação da premissa maior, mas que a aplicação des-
ta à premissa menor representava um mecanismo lógico neutro – a dispen-
sar, por isso, fundamentação, que estaria suprida pela norma positivada.
A metodologia da interpretação e a fundamentação de decisões ju-
diciais mostram-se especialmente relevantes para o desenvolvimento das
formas de controle valorativo de atos da autonomia privada.36 Isso porque,
como juízo de valor que é, a noção de merecimento de tutela pode impli-
car (e é este o sentido estrito que se pretende atribuir a ela, como se verá
mais adiante) a necessidade de escolha pelo intérprete entre dois exercícios
particulares igualmente fundamentados por valores do sistema, mas que se
tornam antagônicos no caso concreto. Um raciocínio subsuntivo impedi-
ria, nessas hipóteses, que o ordenamento fornecesse solução à controvérsia,
pois tais posições contraditórias são ambas protegidas, à primeira vista, por
valores do sistema. Quando se trabalha com princípios em colisão, afirma
usualmente a doutrina constitucionalista, não se pode aplicar a subsunção:

torna insustentável o recurso à subsunção: “A tarefa da interpretação consiste em concretizar


a lei, em cada caso, isto é, em sua aplicação. A complementação produtiva do direito, que
ocorre com isso, está obviamente reservada ao juiz, mas este encontra-se por sua vez sujei-
to à lei [...]. Entre a hermenêutica jurídica e a dogmática jurídica existe pois uma relação
essencial, na qual a hermenêutica detém uma posição determinante. Pois não é sustentável
a ideia de uma dogmática jurídica total, sob a qual se pudesse baixar qualquer sentença por
um simples ato de subsunção” (Verdade e método, cit., pp. 489-490).
35  Ao binômio interpretação-aplicação poder-se-ia adicionar um terceiro termo, o da
qualificação. De fato, é a noção de qualificação que permite a aproximação entre fato e nor-
ma, e também este aspecto, na perspectiva civil-constitucional, não pode ser separado em
um momento estanque (PERLINGIERI, Pietro. Applicazione e controllo, cit., pp. 320-321).
36  De fato, Pietro PERLINGIERI ressalta que a noção de controle valorativo deve ser
compreendida como “componente estrutural da interpretação”, propondo um “controle em
sede aplicativa das soluções propostas”, que não se reduza a apenas evitar consequências
absurdas, “mas que envolva a axiologia do sistema, em toda a sua potencialidade adequa-
dora”. Complementa o autor: “Si che l’interpretazione non soltanto non può essere assurda
ma deve essere sempre ragionevole. E la ragionevolezza non si esaurisce né si identifica
con l’astratta razionalità ma si conota di aspetti valutativi desunti dai principi normativi
di valenza assiologica” (Applicazione e controllo, cit., pp. 333-334).

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cumpre escolher qual deles irá prevalecer por meio da ponderação.37 O re-
conhecimento de que toda decisão judicial decorre de um complexo diálo-
go entre fato e norma, e de que toda aplicação do Direito é interpretação,
mostra-se essencial para garantir a adequada fundamentação dessa esco-
lha.

3. Hermenêutica civil-constitucional e o espaço para a


ponderação no direito civil
A exposição realizada até aqui conduz à seguinte perplexidade: se a sub-
sunção não se reputa mais uma forma legítima de fundamentação das de-
cisões, que metodologia se deve aplicar à interpretação-aplicação do direi-
to? A doutrina constitucionalista tem difundido, nos últimos anos, uma
possível resposta: afirma-se usualmente que, nos casos em que não se pode
aplicar a subsunção, deve-se proceder à técnica da ponderação.38 O termo
não corresponde a um conceito unitário, mas, na formulação mais difundi-
da no Brasil, a ponderação consiste na técnica adequada à solução de con-
flitos concretos em que princípios de mesma hierarquia entram em rota de
colisão, indicando soluções antagônicas para o mesmo caso concreto. Em
tais hipóteses, faz-se preciso ponderar os princípios em questão, para que
se torne possível identificar qual deles deve prevalecer e qual deve ceder es-
paço para o outro; não se trata da supressão de nenhum dos dois princípios
na solução do caso concreto, mas sim da preferência a um em face do ou-
tro, apenas na medida em que são incompatíveis.
Um pressuposto para essa técnica consiste na distinção, atribuída aos
estudos de Ronald Dworkin e Robert Alexy, entre regras e princípios. Afir-
ma-se das primeiras que consistem em enunciados normativos de textura
menos aberta, aplicados segundo um princípio de “tudo ou nada” (quan-
do uma regra prevalece para certo caso concreto, outra, antagônica a ela,
deve ser necessariamente eliminada da disciplina do mesmo), sendo por
isso denominadas por Alexy “mandados definitivos”.39 Os princípios, por
sua vez, ditos “mandados de otimização”, aplicar-se-iam de modo diferen-

37  Por todos, cf. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo,
cit., pp. 333-334; e, ainda, BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade
jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 31-33, que afirma ser a ponderação uma
“alternativa à subsunção”.
38  Ou balanceamento, como é conhecida na língua inglesa (balancing) e italiana (bilan-
ciamento).
39  ALEXY, Robert. A theory of constitutional rights. New York: Oxford University Press,
2010, p. 47.

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ciado, permitindo a ponderação que um princípio prevalecesse sobre ou-


tro que lhe fosse antagônico sem a necessidade de eliminar nenhum deles.40
Um princípio, assim, cede espaço ao outro, mas ambos incidem sobre a fat-
tispecie concreta.41
Por força dessa distinção, convencionou-se afirmar que a pondera-
ção seria a técnica de solução adequada aos chamados hard cases42 (casos
que apenas podem ser solucionados pela aplicação de princípios coliden-
tes). A todos os demais casos, considerados simples, seria possível chegar
a uma solução por meio da tradicional subsunção. É justamente esse cabi-
mento restrito da técnica da ponderação que se mostra dissonante da me-
todologia acima exposta de interpretação-aplicação do direito. Partindo-se
do pressuposto de que o ordenamento, complexo em suas fontes, deve ser
sempre compreendido de modo unitário e aplicado como um todo coeren-
te ao caso concreto, necessariamente compreender-se-á que todos os casos
exigem a harmonização dos muitos valores, princípios e regras potencial-
mente conflituosos do sistema. Afirmar a unidade e a coerência de um or-
denamento complexo implica um esforço diuturno (e não esporádico) de
compatibilização das normas que o compõem.
Assim, pode-se afirmar que, para a metodologia civil-constitucional,
todos os casos são casos difíceis.43 Na prática, a solução do caso não é ob-
tida exclusivamente pela aplicação de uma regra ou de um princípio, mas
pela construção do ordenamento do caso concreto. Perde o sentido, assim,
a dicotomia entre casos fáceis solucionáveis por regras que se subsumem e
casos difíceis solucionados por princípios que se ponderam. No mínimo,
seria necessário dizer que é preciso ponderar princípios sempre, uma vez
40  Em interessante metáfora, afirma Luís Roberto BARROSO: “A subsunção é um quadro
geométrico, com três cores distintas e nítidas. A ponderação é uma pintura moderna, com
inúmeras cores sobrepostas, algumas se destacando mais do que outras, mas formando uma
unidade estética” (Curso, cit., p. 334).
41  A doutrina especializada registra que a decisão oriunda da ponderação deve respeitar o
núcleo dos direitos fundamentais envolvidos (suas prerrogativas essenciais), embora persista
controvérsia quanto à existência a priori de um núcleo duro e intangível ou a flexibilidade
desse núcleo, definido apenas após ponderação em concreto (BARCELLOS, Ana Paula de.
Ponderação, cit., pp. 139-146).
42  A respeito, cf. DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard Uni-
versity Press, 1978, pp. 81 e ss.
43  Mesmo na filosofia a noção de casos fáceis é reputada artificial. Cf. Lênio STRECK: “casos
fáceis [...] são aqueles que demandam respostas corretas que não são discutidas; casos difíceis
são aqueles nos quais é possível propor mais de uma resposta correta ‘que se situe dentro das
margens permitidas pelo direito positivo’. Mas pergunto: como definir ‘as margens permitidas
pelo direito positivo’? Como isso é feito? A resposta que a teoria da argumentação jurídica
parece dar é: partir de raciocínios em abstrato, a priori, como se fosse, primeiro, interpretar
e, depois, aplicar...” (Hermenêutica, Constituição, cit., p. 70).

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que todo ordenamento do caso concreto é composto por princípios poten-


cialmente colidentes. Portanto, “ponderação”, no sentido de compatibiliza-
ção de princípios, é algo presente em qualquer hipótese de interpretação-
-aplicação do direito.44
De outra parte, a noção de ordenamento do caso concreto leva a crer
que a ordem jurídica, ao final do processo hermenêutico, fornecerá sempre
uma única solução adequada ao caso.45 A crença na possibilidade de mais
de uma solução decorria, para muitos autores positivistas, do simples reco-
nhecimento da complexidade do ordenamento46 – e é justamente por força
dessa complexidade que se tem afirmado contemporaneamente que apli-
car o direito corresponde a interpretá-lo. Sob a ótica da subsunção, na qual
a aplicação do Direito acontecia em momento posterior à interpretação e
dispensaria fundamentação, era possível cogitar de mais de uma solução
extraível da norma e à escolha do julgador; quando se compreende que o
ordenamento se interpreta de modo unitário, a solução juridicamente ade-
quada surge ao final do processo hermenêutico; só se pode identificar, as-
sim, qual é a resposta “certa” no exato momento de sua aplicação, porque
esta não acontece em separado da interpretação.
Nessa perspectiva, aliás, resta claro que a técnica da ponderação como
mecanismo de solução de casos em que dois princípios indicam soluções
antagônicas corresponde, mutatis mutandis, a uma espécie de subsunção
qualificada: tratar-se-ia de um procedimento para harmonizar a complexi-
dade do ordenamento (em casos não solucionáveis pelo mecanismo do “tu-
do-ou-nada”) após o qual seria possível aplicar ao caso concreto o equilí-
brio encontrado entre os princípios originalmente colidentes como se fosse

44  A viva discussão doutrinária sobre a possibilidade de se ponderarem regras parece,


nessa perspectiva, um falso problema. Talvez por essa razão afirme Humberto ÁVILA: “a
ponderação diz respeito tanto aos princípios quanto às regras, na medida em que qualquer
norma possui um caráter provisório que poderá ser ultrapassado por razões havidas como
mais relevantes pelo aplicador diante do caso concreto” (Teoria dos princípios: da definição
à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 50).
45  A crença em uma única resposta certa apenas se torna possível em uma hermenêu-
tica unificada pelos valores constitucionais: “é a partir da hermenêutica filosófica que
se falará da possibilidade de respostas corretas ou, se assim for almejado, de respostas
hermeneuticamente adequadas à Constituição (portanto, sempre será possível dizer que
uma coisa é certa e outra é errada [...])” (STRECK, Lênio. Hermenêutica, cit., p. 69). O
positivismo, por outro lado, vinculava-se à possibilidade de múltiplas respostas (o.l.u.c.).
46  Ilustrativamente, LARENZ associava o termo “ponderação” à impossibilidade de se
obter uma resposta única por subsunção: “Que se recorra pois a uma ponderação de bens
no caso concreto é na verdade, como se fez notar, precisamente consequência de que não
existe uma ordem hierárquica de todos os bens e valores jurídicos em que possa ler-se o
resultado como numa tabela” (Metodologia, cit., pp. 575-576).

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uma premissa maior – lógica que não dista do raciocínio silogístico.47 Em


outras palavras, a ponderação funciona como uma forma mais complexa
de se encontrar a premissa maior, exigida por determinados casos, ditos di-
fíceis. Semelhante postura hermenêutica não corresponde, como se vê, a
uma superação da subsunção, padecendo das mesmas críticas que o direito
civil-constitucional dirige à técnica subsuntiva.
Não significa, cumpre ressaltar, que a ponderação não ocorra na me-
todologia civil-constitucional, mas, ao contrário, que ela ocorre, a rigor, o
tempo todo.48 Não são, em outros termos, excepcionais ou especiais as hi-
póteses em que é necessário compatibilizar princípios – o intérprete o faz
o tempo todo.49 Reconhecida essa ressalva, toda a técnica relacionada ao
balanceamento revela-se de grande utilidade ao hermeneuta.50 Tampou-
co significa que a metodologia civil-constitucional não conheça, por ana-
logia à teoria da ponderação, casos mais difíceis (no sentido de ensejarem
um tipo ainda mais árduo de fundamentação a ser realizada pelo intérpre-
te). Simplesmente a dificuldade nunca consistirá na impossibilidade de re-
solução de determinado caso por subsunção (uma impossibilidade perma-
nente), mas em características de outra ordem.

47  A convertibilidade da ponderação de princípios em uma subsunção é reconhecida, dentre


outros, por José Juan MORESO, que considera a racionalidade subsuntiva “um pressuposto
necessário” à justificação das decisões (Confliti tra princìpi costituzionali. Diritto & questioni
pubbliche, n. 2, ago/2002, p. 33).
48  O que se poderia afirmar, aliás, de quase toda metodologia de interpretação, como
ressalta Giorgio PINO: “è possibile affermare che una simile logica di bilanciamento sia
sottesa a qualunque attività interpretativa, posto che ogni tecnica interpretativa presuppone
una ricostruzione (attuale, ipotetica, controfattuale, ecc.), o una proposta di individuazione,
di una possibile ratio legis” (Diritti fondamentali e ragionamento giuridico. Torino: G. Gia-
ppichelli, 2008, p. 100).
49  O reconhecimento da força normativa dos princípios, neste ponto, talvez tenha apre-
sentado à hermenêutica constitucional um problema semelhante àquele que o direito civil
há muito enfrenta com os conflitos entre regras contemporâneas que apresentem igual
hierarquia e especialidade. Nesses conflitos, já observava Norberto BOBBIO, “poderíamos
quase falar de um autêntico poder discricionário do intérprete, ao qual cabe resolver o
conflito segundo a oportunidade” (Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: UnB, 1995, p.
100). Em tais casos, “aquilo a que tende o intérprete comumente não é mais à eliminação
das normas incompatíveis, mas, preferentemente, à eliminação da incompatibilidade” (p.
102). Essa solução, que o direito constitucional tem alcançado com a ponderação, parece,
na verdade, mais simples em matéria de princípios, justamente porque sua textura aberta
facilita sua compatibilização.
50  Afirma Pietro PERLINGIERI que, em um sistema “caratterizzato assiologicamente,
l’interpretazione e la conseguente qualificazione non possono più prescindere dai normali
strumenti di integrazione, di adeguamento e di bilanciamento” (Applicazione e controllo,
cit., p. 321).

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Alguns exemplos concretos permitirão esmiuçar quais seriam estes


hard cases na perspectiva civil-constitucional; antes, porém, de analisá-los,
cabe esmiuçar, com um pouco mais de cuidado, o conceito de legalidade,
igualmente útil para determinar os valores que permitem considerar legí-
tima a fundamentação das sentenças judiciais e os parâmetros para a va-
loração dos atos de autonomia privada – portanto, o elemento que une os
dois eixos do presente estudo. De fato, se, como se afirmou anteriormente,
o dever de fundamentação das decisões se torna cada vez mais relevante no
direito contemporâneo, justamente nestes casos, abertos à escolha do juiz,
os limites impostos pela legalidade constitucional ao julgador mostram-se
imprescindíveis.

4. O princípio da legalidade no direito privado e no direito


público: diferentes lógicas de controle valorativo
Como é sabido, o ambiente revolucionário especialmente favorável ao ad-
vento do Código Civil francês em 1804 identificava na codificação a possi-
bilidade de criar um espaço de atividade negocial privada infensa às inter-
venções estatais. A aspiração de reunir toda a disciplina das relações civis
em um único corpo normativo, para além de sua base filosófica iluminista,
buscava isolar as atividades privadas em um setor específico (consolidando
a summa divisio entre direito público e privado, que perduraria de forma
inflexível por mais de um século), de modo a demarcar um âmbito de auto-
nomia individual tão amplo quanto possível, sobre o qual o Estado liberal
não deveria intervir, salvo em momentos patológicos.
Da maior relevância para a consolidação deste cenário foi a concepção
que se convencionou denominar princípio da legalidade. De um lado, a ga-
rantia de uma legalidade oponível ao Estado contribuía para restringir seu
espectro de atuação ao que determinara a vontade majoritária da classe que
gozava de participação política à época – justamente, o homem burguês,
contratante e proprietário, ao qual se dirigia o próprio Código Civil como
sujeito de direitos. Delineava-se, nesta lógica, aquela consequência das re-
voluções liberais que resultaria, na célebre síntese de John Adams, em um
governo de leis, e não de homens.51 Por outro lado, o desenvolvimento da
noção de legalidade contribuiu para o fortalecimento da distinção entre di-
reito público e privado, na medida em que se atribuíram ao princípio con-

51  No original, “a government of laws not men”. A frase, publicada na obra Novanglus (or
A History of the Dispute with America from its Origin, in 1754, to the Present Time) em 1775,
seria inserida posteriormente na Constituição de Massachussets de 1779, da qual Adams
foi o principal redator.

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teúdos distintos conforme se tratasse de relações entre particulares ou rela-


ções com a participação do Estado.
Mesmo atualmente, quando a clássica summa divisio já se considera
há muito relativizada,52 a dicotomia conceitual do princípio da legalidade
permanece vigente. No controle dos atos da Administração Pública, a le-
galidade determina que o Estado apenas pode agir nas hipóteses em que a
lei o exija ou autorize (princípio previsto no caput do art. 37 da Constitui-
ção). Já nas relações em que predominam interesses privados, a legalidade
implica afirmar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer al-
guma coisa senão em virtude de lei” (como, aliás, consignou o constituin-
te de 1988 no art. 5º, II).53 Floresceram, sob a égide deste princípio, noções
tão fundamentais ao direito civil como a autonomia privada (emblemática
manifestação do princípio da liberdade nas relações particulares) e o direi-
to subjetivo (que, em sua configuração oitocentista, e para além das diver-
gências entre as correntes da vontade e do interesse juridicamente protegi-
do, era tido como uma prerrogativa quase ilimitada do sujeito).
A legalidade no direito civil constituía, assim, a afirmação de uma li-
berdade apresentada na forma de controle. Afirmar que a atividade parti-
cular encontrava limites apenas na ilicitude (vale dizer, na contrariedade à
expressa disposição legal) implicava afirmar, por via de consequência, que
nenhum outro limite além da própria lei se aplicava a ela. A segunda me-
tade do século XIX e o começo do século XX trariam, porém, uma signi-
ficativa mudança a este panorama. O reconhecimento (pioneiramente fei-
to pelos tribunais) de que certas condutas estruturalmente lícitas contra-
riavam, na locução de Louis Josserand, o espírito do direito no momento de
seu exercício, permitiu a construção da figura do abuso do direito e criou
uma nova instância de controle valorativo das atividades privadas.54 A con-
cepção de abuso seria, assim, a grande responsável por inaugurar no direi-
to civil uma nova forma de análise das prerrogativas individuais, não mais
estática e estrutural como aquela pressuposta pela licitude, mas dinâmica
(aplicada ao momento do exercício da situação subjetiva) e funcional.
Esta parece ser, aliás, uma boa demonstração da utilidade da figura
do abuso do direito, mesmo diante do notável avanço de princípios como

52  Sobre a mitigação da dicotomia, v., por todos, o texto clássico de GIORGIANNI, Mi-
chele. O direito privado e as suas atuais fronteiras. Revista dos Tribunais, n. 747. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998.
53  A respeito da diferença de conteúdo do princípio da legalidade no direito público e no
direito privado, cf., dentre muitos outros, BARROSO, Luís Roberto. Apontamentos sobre o
princípio da legalidade. Temas de direito constitucional, t. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
pp.165-170.
54  Cf. JOSSERAND, Louis. De L’esprit des droits et de leur rélativité. Paris: Dalloz, 1927.

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a boa-fé e a função social. De fato, se a autonomia privada continua sen-


do um princípio basilar do direito civil, seu controle negativo (repressivo)
apenas se justifica com a demonstração de que certo ato de autonomia cau-
sou uma afronta ao ordenamento.55 Essa afronta pode ser detectada por
uma análise estrutural (e o ato ilícito tem sido, tradicionalmente, a figura
responsável por conferir tratamento unitário a tais hipóteses) ou por uma
análise funcional (respondendo o abuso pelo tratamento uniforme dos ca-
sos de violação aos valores e princípios que orientam e legitimam o exercí-
cio das situações subjetivas). Afirmar, assim, que a figura do abuso perdeu
relevância diante da possibilidade de aplicação direta dos princípios seria
tão impreciso quanto afirmar que a qualificação de certo ato como ilícito
seria desnecessária diante de uma proibição normativa expressa.
De todo modo, certo é que os juízos de licitude e não abusividade pas-
saram a constituir, em conjunto, o conteúdo da noção de legalidade (enten-
dida como o limite imposto pelo direito para o exercício de prerrogativas
particulares). Estas duas instâncias valorativas construíram um sistema de
controle predominantemente negativo, compatível com a lógica tradicio-
nal que sempre visualizou no direito uma função repressiva e prescritiva de
condutas. A evolução do pensamento jurídico exigiria, porém, uma nova
mudança nesse sistema, para acomodar o que se passou a denominar fun-
ção promocional do direito.56 De fato, com a afirmação dos direitos sociais e
a superação do Estado liberal clássico, passou-se a compreender que o di-
reito também poderia funcionar como um veículo de promoção de valores
socialmente relevantes, incentivando e, muitas vezes, postando-se à frente
de importantes mudanças sociais em direção aos valores do ordenamento.
Nesse contexto, não basta mais que certo ato se apresente conforme
ao Direito, sendo igualmente necessário que se revele merecedor de tutela
– o que equivale a dizer que as situações jurídicas subjetivas não se encon-
tram mais limitadas apenas por critérios negativos (repressivos) de contro-
le, mas são valoradas positivamente pelos princípios do ordenamento (em
uma perspectiva promocional). Não à toa, afirma-se contemporaneamente
que o conceito atual de legalidade no direito privado corresponde à noção
de merecimento de tutela. Sustenta Pietro Perlingieri: “Per l’atto di autono-
mia negoziale, il controlo di legalità assume quindi i contorni di un diversifi-

55  Contemporaneamente, poder-se-ia dizer, simplesmente, uma afronta à legalidade


constitucional.
56  A expressão foi consagrada por Norberto BOBBIO: “Nas constituições pós-liberais, ao
lado da função de tutela ou garantia, aparece, cada vez com maior frequência, a função de
promover” (A função promocional do direito. Da estrutura à função. São Paulo: Manole,
2007, p. 13).

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cato controlo di meritevolezza che abbia conto particolarmente della sua pre-
cipua funzione e del suo oggetto”.57
Que sentido se poderia atribuir a este significado contemporâneo de
legalidade? O próprio autor sinaliza, no trecho citado, que a noção de le-
galidade passa a levar em conta também o aspecto funcional, para além da
perspectiva simplesmente estrutural que era associada à noção de “confor-
midade à lei”. O desenvolvimento da teoria do abuso do direito, porém, já
havia realizado esta evolução, ao demonstrar que é vedado pelo ordena-
mento o exercício disfuncional de situações jurídicas subjetivas, ainda que
tal exercício se apresente em conformidade com uma estrutura legalmente
válida. A atual definição da legalidade como merecimento de tutela, por-
tanto, sugere uma nova evolução conceitual, que vá além da vedação ao ilí-
cito e ao abuso.
Essa evolução parece ser justamente aquela que acrescentou à função
repressiva do direito uma função promocional. Em outras palavras, afirmar
que a legalidade corresponde, hoje, ao merecimento de tutela indica que
não se preveem apenas limites à autonomia privada na forma de vedações,
mas também preferências conferidas aos atos de autonomia que promovam
especialmente valores juridicamente relevantes – eis aí o mérito, maior que
a simples conformidade (estrutural e funcional) ao direito, que pode apre-
sentar o ato negocial.58 Tal mudança de perspectiva foi sentida inclusive
no sentido atribuído à legalidade pelo direito público. De fato, o reconhe-
cimento da relevância de uma análise funcional do direito e da migração
dos princípios constitucionais para o centro axiológico do sistema reper-
cutiu no entendimento de que à Administração Pública cumpre realizar os
atos permitidos ou determinados (não mais pela lei, mas) pela legalidade
constitucional. O comando ou a autorização legal não bastam para balizar
a atuação do administrador; há que se atentar para a totalidade do ordena-
mento. A essa mudança de sentido tem-se designado pelo termo juridici-
dade, para identificar o estágio atual do princípio da legalidade no âmbito
do direito público.59

57  PERLINGIERI, Pietro. Il diritto di legalità nel diritto civile. Rassegna di diritto civile.
Anno 31, n. 1. Milano: ESI, 2010, p. 187.
58  Com efeito, a própria semântica da expressão “merecimento de tutela” permite inferir
que não se trata do simples não descumprimento da lei; um ato merecedor de tutela deve
trazer um significado adicional, um mérito a mais, promovendo ativamente valores em vez de
apenas não violá-los. Segundo o Dicionário Houaiss, “merecimento” significa, dentre outros
sentidos, “aquilo que empresta valor a algo; aquilo que há de bom, vantajoso, admirável ou
recomendável” em algo. Entre o antigo conceito de legalidade e o atual merecimento de tutela
há, assim, uma distância semelhante àquela entre o correto e o recomendável.
59  A respeito da juridicidade, afirma Luís Roberto BARROSO: “O administrador pode e
deve atuar tendo por fundamento a Constituição e independentemente, em muitos casos,

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A mudança comum de perspectiva, por outro lado, não impede evi-


dentemente que entre a juridicidade no direito público e o merecimento de
tutela no direito privado existam relevantes diferenças. De uma parte, por-
que o administrador tem, muitas vezes, sua atuação vinculada, o que tor-
na mais graves eventuais indefinições quanto à compatibilidade ou não de
certa lei com a principiologia constitucional, em comparação à insegurança
que essa indefinição surte no âmbito da (por natureza discricionária) ativi-
dade privada.60 De outra parte – e esta é a distinção mais marcante –, por-
que na atuação do Estado já se encontra pressuposta a persecução de valo-
res juridicamente protegidos e socialmente relevantes (basta observar, por
exemplo, que a doutrina há muito denomina interesse público primário o
interesse social promovido pela atuação estatal, reservando ao interesse fi-
nanceiro do erário público a denominação interesse público secundário).61
Em outras palavras, é de se esperar que a atuação legítima do administra-
dor se dê sempre em função de valores sociais relevantes (e, por isso, tute-
lados pelo direito), ainda que se possa debater, na comparação entre dois
atos estatais, qual deles promove melhor tais interesses. No âmbito do di-
reito privado o conceito de merecimento de tutela é pintado de cores muito
mais vivas, pois os particulares são movidos à atividade negocial, eviden-
temente, por interesses individuais próprios, e apenas mediatamente seus
atos buscarão promover interesses sociais.
Não existe em tal constatação antagonismo, mas apenas diversidade
de funções. A expectativa de que a autonomia privada fosse exercida pelo
particular na persecução de interesses alheios seria ao menos ingênua,62

de qualquer manifestação do legislador ordinário. O princípio da legalidade transmuda-se,


assim, em princípio da constitucionalidade ou, talvez mais propriamente, em princípio da
juridicidade, compreendendo sua subordinação à Constituição e à lei, nessa ordem” (Curso,
cit., pp. 375-376).
60  Justamente porque em muitos casos o administrador deve agir sob pena de respon-
sabilidade (inclusive criminal), não lhe assistindo esperar até que, suscitado o controle
concentrado de constitucionalidade de certa lei, reste solucionada a dúvida quanto à sua
adequação ao sistema, parte da doutrina tem sustentado que os chefes do Executivo podem
negar aplicação (com auto-executoriedade) à lei que entendam inconstitucional, mesmo
após a Constituição de 1988 (que, ao conferir legitimidade para a propositura de ação direta
de inconstitucionalidade aos chefes do Executivo federal e estadual, teria, segundo outra
corrente, extinto essa prerrogativa). “O descumprimento da lei reputada inconstitucional
era – e é – uma decorrência, ou antes, uma exigência do princípio da supremacia da Cons-
tituição” (BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro:
Renovar, 2014, p. 275).
61  Trata-se da clássica distinção formulada por Renato ALESSI. A respeito, do autor, v.
Principi di diritto amministrativo. Milano: Giuffrè, 1974, p. 295.
62  Exemplificativamente, embora o particular não possa violar os interesses socialmente
relevantes tocados por uma relação contratual, parte da doutrina tem entendido que não

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embora seja certo que ele não possa violar tais interesses e que, se vier a
promovê-los ao lado de seus próprios interesses, seu ato terá um mérito es-
pecial – será, em sentido estrito, merecedor de tutela. Os interesses priva-
dos são protegidos pela ordem jurídica na medida em que não se contrapo-
nham aos valores que o ordenamento associa a eles (tem-se aí um controle
de abusividade, e não por acaso se afirma usualmente que a função social e
outros princípios de matriz solidarista conformam “internamente” as situ-
ações jurídicas patrimoniais); mas um ato particular que consiga promover
tanto interesses individuais quanto outros interesses juridicamente rele-
vantes receberá ipso facto tutela prioritária em face de outros atos que ape-
nas promovam os interesses das partes. Eis por que a expressão merecimen-
to de tutela se adapta com particular exatidão ao direito privado, no qual os
interesses primariamente perseguidos não são necessariamente públicos.

5. A aferição do merecimento de tutela em sentido estrito


Como proceder à realização do juízo valorativo denominado merecimen-
to de tutela? Conforme se buscou evidenciar acima, este tipo de valoração
dos atos de autonomia privada não pode, por sua própria natureza, restrin-
gir-se à lógica negativa que pauta os juízos de licitude e não abusividade. A
uma, porque estas duas últimas formas de valoração encontram seu fun-
damento na função repressiva do direito, ao passo que o merecimento de
tutela surgiu no bojo do reconhecimento de uma outra função, de cunho
promocional. A duas, porque, embora seja certo que o particular não possa
violar, em sua atividade negocial, interesses juridicamente relevantes (e, se
o fizer, não há dúvidas de que deve ser reprimido na medida de sua contra-
riedade – estrutural ou funcional – ao direito), de outra parte não se pode
afirmar que ele deva necessariamente promover tais interesses. E, se não há
dever ou proibição propriamente ditos (no plano estrutural ou funcional) a
se respeitar, não se pode falar, de modo técnico, em sanção negativa ou re-
pressão de condutas.
Com efeito, a função promocional do direito lança mão das chama-
das sanções positivas, consubstanciadas em incentivos ou privilégios pro-

há um dever positivo de promover tais interesses (ou, de modo mais simplificado, que as
partes não são movidas a contratar por força de interesses sociais, mas sim por interesses
próprios, que não podem ser contrários aos primeiros). “Quando muito, é o Estado que es-
taria obrigado a prever em seus contratos administrativos esses deveres promocionais, o que
reduziria significativamente a pretendida eficácia do princípio da função social” (RENTERÍA,
Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato.
In BODIN DE MORAES, Maria Celina (coord.). Princípios do direito civil contemporâneo.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 305-306).

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porcionados pela ordem jurídica, em lugar das sanções negativas, de cunho


repressor.63 Assim também o merecimento de tutela se revela uma instân-
cia positiva de controle dos atos particulares, que não visa diretamente à
repressão de violações ao direito (papel já desempenhado pelos juízos de
licitude e não abusividade), mas sim a conferir uma proteção privilegiada
a determinado ato pelos valores que promove – ainda que a consequência
indireta dessa proteção acabe por resultar na repressão a outro exercício
particular conflitante com ele. De fato, pode acontecer que dois atos par-
ticulares sejam indubitavelmente lícitos e não abusivos, mas, ainda assim,
encontrem-se, no caso concreto, em rota de colisão, de tal modo que o
exercício de um não se compatibilize com o de outro. É justamente neste
ponto, quando já se verificou que não há ilicitude nem abuso de nenhu-
ma das partes, e ainda assim um novo juízo valorativo precisa incidir so-
bre tais atos (de modo a decidir qual deles irá prevalecer), que se revela es-
pecialmente útil o juízo de merecimento de tutela. Trata-se de verdadeiros
hard cases, nos quais a decisão buscará proteger primordialmente o ato que
se reputar mais promovedor dos valores do ordenamento, e apenas por via
transversa negará tutela jurídica ao outro ato, apenas na medida em que for
inevitável que ambos convivam.
Vale ressaltar que tais casos não se reputam “difíceis” porque suas so-
luções adviriam de princípios e não de regras (como na terminologia alu-
dida pela doutrina sobre ponderação de princípios). Tais hipóteses são
difíceis porque, enquanto na maior parte dos casos o recurso à axiologia do
ordenamento permite alcançar uma resposta definitiva para a controvér-
sia (a partir da identificação de uma posição particular ilícita ou abusiva a
ser reprimida), aqui não há contrariedade a reprimir e, portanto, o regular
exame dos limites à autonomia privada não oferece uma solução. A função
do Direito predominante para dirimir esses casos, por isso, deixa de ser a
repressiva e passa a ser outra, ainda pouco usual: a função promocional.
Como essa função do Direito visa mais a estimular condutas do que deses-
timulá-las, tem-se nela um âmbito muito maior de discricionariedade para
o julgador – eis aí a dificuldade que caracteriza tais casos.
Note-se que a solução conferida ao ato que não se considera merece-
dor de tutela não dista daquela direcionada ao exercício abusivo das situa-
ções jurídicas: a partir de uma análise funcional, identifica-se em que me-
dida o ato precisa ser reprimido. A diferença está essencialmente no fun-
damento pelo qual se nega tutela ao ato. Em caso de abuso, verifica-se uma
desconformidade à função que caracteriza e legitima a própria situação ju-
rídica, aos valores e interesses que o sistema associa a ela. Trata-se de um
juízo que prescinde da existência de uma pretensão antagônica: o ato é abu-

63  Cf. BOBBIO, Norberto. A função promocional do direito, cit., p. 19.

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sivo porque exercido de modo contrário aos valores associados àquela si-
tuação subjetiva.64 As consequências são várias: a antijuridicidade do ato
permite advogar por sua nulidade;65 o dano eventualmente causado enseja-
rá responsabilidade civil como se decorresse de ato ilícito; os interessados
podem pedir o desfazimento do ato ou o suprimento judicial de declaração
de vontade abusivamente negada pelo titular do direito. A conduta será, em
resumo, reprimida e seus efeitos negados na medida necessária para que o
exercício volte a ser compatível com a função da situação jurídica subjetiva.
Por sua vez, um ato que não se considere merecedor de tutela o será
sempre em termos relativos (ou seja, não será merecedor de tutela em rela-
ção a outro exercício particular que lhe seja contraposto). No plano funcio-
nal, esse ato é plenamente conforme aos valores associados à sua tutela jurí-
dica (i.e., à sua função); sua repressão decorre tão somente de uma incom-
patibilidade com outro ato, também obediente à respectiva função, mas
que, à luz da totalidade do sistema, merecerá tutela preferencial. A medida
da repressão do primeiro ato, assim, não será a sua própria função, mas a
medida necessária para a tutela do outro, dito merecedor de tutela em sen-
tido estrito. Não se pode afirmar, assim, que o primeiro ato seja antijurí-
dico (ao menos, não no mesmo sentido em que se fala do ilícito e do abu-
so); não existisse uma posição particular contraposta que promovesse me-
lhor os valores do sistema, esse ato teria sua eficácia reconhecida. Em suma,
todo ato lícito e não abusivo será, em sentido amplo, merecedor de tutela:
o merecimento é, em regra, uma consequência da licitude e não abusivi-
dade do exercício; excepcionalmente, porém, exigir-se-á do intérprete um
terceiro e último juízo valorativo para determinar se o ato terá seus efeitos
protegidos.
Em geral, as hipóteses desse juízo de merecimento de tutela em sen-
tido estrito envolverão direitos absolutos (tais como os direitos reais e os
chamados direitos da personalidade), que, por serem oponíveis erga omnes,
sempre se contrapuseram a outros interesses juridicamente tutelados, oca-
sionando a necessidade de juízos valorativos capazes de solucionar a coli-
são entre eles. A questão se põe com menor frequência no âmbito dos di-

64  Pense-se, por exemplo, no exercício do direito à resolução pelo credor que ainda tem
interesse útil na execução do contrato, no exercício do poder familiar por um dos pais ape-
nas com intuito emulativo em relação ao outro genitor, ou no exercício do proprietário que
não cumpre a função social de seu bem. Nestes casos, a desconformidade do exercício se
relaciona à própria função da situação jurídica abusada (respectivamente, a causa negocial
que objetivamente determina o interesse contratual; o melhor interesse da criança, que deve
sempre guiar o exercício do poder familiar; e a função social da propriedade, que conforma
internamente o domínio e contra a qual este jamais pode ser exercido),
65  Trata-se da chamada nulidade virtual ou não cominada – aquela que, embora não prevista
pelo legislador, resulta da vedação do ato pelo ordenamento.

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reitos relativos justamente porque a contraposição, na prática, a interesses


diversos dos perseguidos pelas partes é pouco usual66 e, quando ocorre, em
geral já conta com norma específica, o que permite resolver a questão com
o recurso aos juízos negativos de controle (licitude e não abusividade).67
Pense-se no clássico embate entre o direito à privacidade e a liberda-
de de expressão, caracterizado inclusive pela própria doutrina constitucio-
nalista como um caso difícil.68 Entre o jornalista, por exemplo, que preten-
de noticiar fatos relativos à vida íntima de certa celebridade e a pretensão
desta a impedi-lo de divulgar tais informações pode não existir qualquer
traço de ilicitude ou abusividade: basta imaginar que se trate, ilustrativa-
mente, de dados sensíveis69 da pessoa (a justificar seu pedido de não divul-
gação), porém de inegável interesse público (como no caso do político que,
tendo arregimentado eleitores por defender certos valores religiosos, man-
tém secretamente hábitos privados frontalmente contrários a tais valores).70
Ainda no âmbito da mesma discussão, ganhou repercussão o tema, le-
vado ao Supremo Tribunal Federal em sede de ação direta de inconstitucio-
nalidade, da publicação de biografias não autorizadas.71 Os melhores argu-
mentos contrários à publicação se relacionam com a tutela da privacidade
do biografado, sobretudo no que tange à divulgação de dados sensíveis ou
informações íntimas, que se prestariam apenas à satisfação da curiosidade

66  Decorrência do princípio res inter alios acta, hoje mitigado por novos princípios como a
boa-fé objetiva, mas ainda bastante característico desta espécie de relação.
67  Exemplo característico é a difícil identificação de efeitos da função social do contrato que já
não se encontrem previstos em outras normas, o que tem levado parte da doutrina a sustentar
que o princípio coincide, no momento atual, com a função negocial (v., por todos, BODIN
DE MORAES, Maria Celina. A causa, cit., p. 316). O esforço jurisprudencial e doutrinário
tende a especificar, com o tempo, novas decorrências do princípio, identificando interesses
em colisão que talvez demandem uma aplicação mais frequente do juízo de merecimento de
tutela também nas relações contratuais. O tema foi previamente desenvolvido em SOUZA,
Eduardo Nunes de. Função negocial e função social do contrato: subsídios para um estudo
comparativo. Revista de Direito Privado, vol. 54, abr-jun/2013, pp. 83-84.
68  Cf., por exemplo, BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão versus direitos da
personalidade. Temas de direito constitucional, t. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, passim.
69  Designam-se dados sensíveis os dados pessoais, em geral relacionados à saúde ou à opinião,
que, se divulgados, poderiam gerar discriminação (RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade
da vigilância. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 79).
70  O caso aconteceu com o senador americano Roy Ashburn (que, tendo-se destacado
como forte opositor dos homossexuais junto aos seus eleitores, foi detido ao sair dirigindo
embriagado de um bar GLS) e é comentado por SCHREIBER, Anderson. Direitos da per-
sonalidade. São Paulo: Atlas, 2012, p. 154.
71  Trata-se da ADIn. 4.815, proposta em 2012 pela Associação Nacional dos Editores de
Livros (ANEL), pretendendo a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto
dos arts. 20-21 do Código Civil.

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popular, e não a interesse público objetivamente aferível.72 De outra par-


te, os melhores argumentos em favor da dispensa de autorização aludem à
historicidade social que pode estar contida na vida do biografado, a justifi-
car o interesse coletivo na publicação, já que aspectos dos mais íntimos da
vida particular poderiam refletir-se na própria história do país ou influen-
ciar seus rumos políticos, culturais etc.73
A perspectiva de que casos semelhantes são solucionáveis apenas em
sede de um juízo valorativo positivo e promocional parte ainda de uma
premissa: se para a generalidade dos casos já não cabem soluções abstra-
tas (pois o ordenamento apenas se concretiza à luz do caso concreto), nes-
ta espécie de casos seria impossível até mesmo prever alguma solução. Não
cabe, assim, aludir a uma suposta prevalência prima facie da liberdade de
expressão, ou a uma tutela menos rígida da privacidade de pessoas notó-
rias, assim como não há critérios que definam a priori quais informações
devem ser protegidas em todos os casos e quais podem ser eventualmente
publicadas.74 Se este é, como parece, um caso que exige uma avaliação me-
ritória, apenas à luz das circunstâncias do caso concreto é possível ponde-
rar qual das pretensões promove melhor os valores do ordenamento e me-
rece tutela jurídica privilegiada.75

72  Segundo Maria Celina BODIN DE MORAES, os argumentos favoráveis à publicação


associam a exigência de autorização prévia ao já superado ambiente ditatorial brasileiro
de décadas atrás. Entende a autora que a publicação das biografias não autorizadas busca
“garantir um pretenso ‘direito fundamental da sociedade’ a conhecer as fofocas e os detalhes
picantes”, “sendo isso, como se sabe, o que influencia diretamente a quantidade de exemplares
vendidos” (Biografias não autorizadas: conflito entre a liberdade de expressão e a privacidade
das pessoas humanas? Civilistica.com. Ano 2, n. 2. Editorial).
73  Considera Gustavo TEPEDINO: “As biografias revelam relatos históricos descritos a
partir de referências subjetivas, isto é, do ponto de vista dos principais protagonistas da
cadeia de eventos cronológicos que integram a história” (Opinião doutrinária. Disponível
em: <migalhas.com.br>. Acesso em 24.10.2013). Rebeca GARCIA lembra que esse papel
histórico normalmente estimula o interesse na publicação da obra, tanto pelo autor quanto
pelo público (Liberdade de expressão e privacidade na história da vida privada. Revista de
direito privado, vol. 52. São Paulo: RT, out-dez/2012, p. 41).
74  Em sentido contrário, sustenta-se que “as pessoas que ocupam cargos públicos têm o
seu direito de privacidade tutelado em intensidade mais branda. [...] O mesmo vale para as
pessoas notórias, como artistas, atletas, modelos e pessoas do mundo do entretenimento”.
Considera-se, ainda, que “o interesse público na divulgação de qualquer fato verdadeiro se
presume, como regra geral”, e que “as liberdades de informação e de expressão servem de
fundamento para o exercício de outras liberdades, o que justifica uma posição de preferência
– preferred position – em relação aos direitos fundamentais individualmente considerados”
(BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão, cit., pp. 105-116).
75  Rebeca GARCIA destaca “o fundamental papel da ponderação e a necessidade de
superação de armadilhas conceituais, como a de supor mais importante, abstratamente, o
valor da liberdade de expressão”, ressaltando a necessidade de “critérios interpretativos que

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Exemplo ainda mais característico consiste nos casos de conflito pos-


sessório entre proprietário e possuidor direto de determinado bem. Como
se sabe, a simples não promoção da função social da propriedade não acar-
reta automaticamente a perda do domínio.76 No conflito, porém, entre pos-
suidor direto e titular da propriedade, admite-se contemporaneamente a
tutela da posse inclusive contra o título dominial, sobretudo em conside-
ração ao cumprimento da função social do bem.77 A questão apenas pode
ser resolvida com atenção ao momento dinâmico da relação de direito
real, vale dizer, valorando-se os exercícios em concreto do proprietário e
do possuidor quanto ao seu potencial de promoção da função social.78 O
exemplo da função social revela-se especialmente adequado porque a gran-
de maioria dos casos em que a doutrina menciona o merecimento de tutela
consiste em hipóteses de aplicação desse princípio.79 De fato, a função so-
cial tem contribuído bastante para propagação da análise funcional do Di-
reito; além disso, a confusão entre os termos “função social” e “funciona-
lização” não é rara.80 Todos esses fatores têm acarretado que a mais usual
aplicação do juízo meritório nas relações patrimoniais corresponda à afe-
rição do cumprimento da função social. Em matéria de relações existen-
ciais, por outro lado, nas quais é de se questionar a verificação de uma fun-

guiem, além do magistrado, os demais agentes envolvidos nesse tipo de situação (editoras,
autores etc.)” (Liberdade, cit., p. 67).
76  Não obstante a Constituição Federal preveja o não cumprimento da função social como
fundamento legítimo para a desapropriação do bem (arts. 182, § 4º e 184).
77  A respeito, v., por todos, TEPEDINO, Gustavo. In AZEVEDO, Antônio Junqueira de
(Coord.). Comentários ao Código Civil, vol. 14. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 58.
78  Na verdade, se a posse corresponde à exteriorização do domínio por meio do exercício
de uma ou algumas de suas faculdades, muito embora tenha prevalecido a expressão “função
social da propriedade”, parece mais adequado entender a questão como um simples conflito
entre as funções sociais de duas posses. Isso porque uma tal valoração deve necessariamente
levar em conta o exercício concretamente realizado pelas partes e, no caso sui generis do direito
de propriedade, esse exercício recebeu historicamente designação e disciplina específicas (a
posse). Tal perspectiva permitiria também superar a clássica controvérsia sobre a natureza
da posse (fato ou direito): trata-se do exercício de um direito, analisado autonomamente
porque apenas sobre ele se pode realizar uma análise funcional do domínio.
79  Embora não se restrinja a noção de merecimento de tutela a este único princípio, tal
parece ser a aplicação mais frequente. Afirma-se, por exemplo, que a função social “impõe
aos contratantes a obrigação de perseguir, ao lado de seus interesses privados, interesses
extracontratuais socialmente relevantes, [...] sob pena de não merecimento de tutela do
exercício da liberdade de contratar” (TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos
contratos. Temas de direito civil, t. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 153).
80  Sobre a confusão entre os termos função, funcionalização e função social, seja consen-
tido remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Função negocial e função social do contrato,
cit., pp. 67-73.

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ção social,81 parece melhor fornecer outros parâmetros de merecimento de


tutela, para que não se inviabilize sua aplicação.82
Evidentemente, pode acontecer que um dos interessados (seja o pro-
prietário, seja o possuidor direto) descumpra, por exemplo, no uso de sua
propriedade, regras atinentes aos direitos de vizinhança, caso em que será
simples a identificação da ilicitude do exercício. Outro proprietário, que
mantivesse o bem sem qualquer utilização produtiva, por outro lado, po-
deria ter sua posse caracterizada como abusiva, uma vez que disfuncional.83
Se, porém, tanto o proprietário quanto o possuidor apresentarem usos ple-
namente lícitos e funcionais do bem, apenas um juízo meritório poderia
permitir identificar qual deles deve ser premiado com uma tutela privile-
giada em face do outro. Do mesmo modo, nos casos de colisão entre priva-
cidade e liberdade de expressão, a dificuldade não está nos casos em que as
pretensões do biógrafo ou do biografado se revelassem ilícitas ou abusivas,
mas sim nas hipóteses em que as instâncias de controle negativo não per-
mitam indicar a qual pretensão será negada a tutela jurídica.84
Vale citar um terceiro exemplo, desta vez em matéria de responsabili-
dade civil. Como se sabe, a concepção contemporânea da responsabilida-
de aquiliana foi fortemente modificada por aquilo que Orlando Gomes de-
nominou um “giro conceitual”:85 a substituição do ato ilícito pelo dano in-
justo como fonte de responsabilidade. A noção de dano injusto, desenvol-
vida pela doutrina italiana à luz do art. 2.043 do Codice,86 após se despren-

81  A suposta função social de situações existenciais é negada, dentre outros, por Maria
Celina BODIN DE MORAES (Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa
humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 148).
82  Por força da marcante coincidência prática entre o merecimento de tutela e o cum-
primento da função social (e enquanto ela perdurar), já se sustentou, em outra sede, que
o controle de abusividade (mais restrito que o juízo meritório, pois não busca promover
valores positivamente) seria, em certo aspecto, mais abrangente que o merecimento de tutela,
pois considera outros aspectos funcionais além da própria função social (SOUZA, Eduardo
Nunes de. Abuso do direito: novas perspectivas, cit., p. 84).
83  Ainda assim, autorizada doutrina não nega o entendimento de que o não uso seria uma
forma legítima de exercício do domínio. Este é, assim, mais um aspecto a ser valorado à luz
do caso concreto. Para Gustavo TEPEDINO, “a inação apenas merecerá tutela do ordena-
mento se e enquanto atender à função econômica e social da propriedade” (Comentários
ao Código Civil, cit., p. 472).
84  Assim, por exemplo, caso o pedido de indenização caracterizasse litigância de má-fé
(art. 17 do CPC), não seria preciso cogitar do juízo meritório sobre o pedido de indenização.
85  Cf. GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In
DI FRANCESCO, José Roberto Pacheco (Org.). Estudos em homenagem ao professor Silvio
Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1989, pp. 293 e ss.
86  Verbis: “Art. 2.043. Qualunque fatto doloso o colposo, che cagiona ad altri un danno
ingiusto, obbliga colui che ha commesso il fatto a risarcire il danno”.

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der, em um primeiro momento, da violação a uma norma ou direito sub-


jetivo, passou a significar a lesão a qualquer interesse juridicamente tutela-
do. A fórmula, considerada verdadeira cláusula geral,87 já foi interpretada
das mais diversas formas.88 Em uma perspectiva contemporânea, a noção
de dano injusto tem sido considerada uma oportunidade oferecida ao in-
térprete para, ponderando os interesses em jogo, identificar qual deles será
considerado merecedor de tutela no caso concreto.89 Assim, pode aconte-
cer que de determinada conduta, lícita e não abusiva, decorra dano.
Nesses casos, se a responsabilidade estiver prevista em lei, a ponde-
ração terá sido feita previamente pelo legislador; caso contrário, caberá ao
julgador decidir se a pretensão da vítima ao ressarcimento merece tutela, a
caracterizar, por via transversa, a injustiça do dano, ou se, em vez disso, de-
verá prevalecer o interesse do agente que deu causa ao evento danoso, caso
em que o dano será considerado irressarcível.90 Assim como se esclareceu
nos exemplos sobre o direito à privacidade e o direito de propriedade, se-
melhante ponderação apenas será necessária nos casos em que ambas as
pretensões em conflito não se mostrarem ilícitas ou abusivas.91

87  A natureza de cláusula geral evidencia como o dano injusto é um bom exemplo de
hipótese solucionável apenas por um juízo meritório – bastante semelhante ao da ponde-
ração de princípios no que tange ao sopesamento de interesses (a serem equilibrados, mas
não suprimidos). Leciona Guido ALPA que a expressão ingiustizia apresenta as funções e
problemas de uma cláusula geral: “è tendenzialmente indefinibile, ha connotati storicamente
relativi, costituisce una valora che tempera la rigidità dell’ordinamento, consente all’interprete
elasticità di apprezzamento, e così via” (I principi generali. In IUDICA, Giovanni; ZATTI,
Paolo (a cura di). Trattato di diritto privato. Milano: Giuffrè, 2006, p. 486).
88  De se destacar a concepção de Stefano RODOTÀ, que caracteriza o dano injusto a
partir de uma lesão à solidariedade social (Il problema della responsabilità civile. Milano:
Giuffrè, 1967, p. 89).
89  Explica Pietro TRIMARCHI que a atipicidade do sistema italiano de responsabilidade
civil exige do intérprete que especifique o conceito de injustiça do dano: “La soluzione di
questo problema dipende principalmente dalla valutazione comparativa di due interessi con-
trapposti: l’interesse minacciato da un certo tipo di condotta e l’interesse che l’agente con quella
condotta realizza o tende a realizzare” (Istituzioni di diritto privato. Milano: Giuffrè, 2011,
p. 110). Na doutrina pátria, v. Maria Celina BODIN DE MORAES: “O dano será injusto
quando, ainda que decorrente de conduta lícita, afetando aspecto fundamental da dignidade
humana, não for razoável, ponderados os interesses contrapostos, que a vítima permaneça
irressarcida” (Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 179).
90  Entende Pietro TRIMARCHI que esta valoração tem grande peso em sede legislativa,
na definição de particulares figuras de ato ilícito, mas também grande importância “per
l’interprete, quando deve integrare la disciplina legislativa dove questa è incompleta o generica”
(o.l.u.c.). No mesmo sentido, PINO, Giorgio. Diritti fondamentali e ragionamento giuridico,
cit., p. 99.
91  Interessante caso de identificação de dano injusto é o do dano moral por rompimento de
noivado. A respeito, Maria Celina BODIN DE MORAES afirma que, sopesadas a liberdade de

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Para fins de aferição do merecimento de tutela de determinado ato, as


ideias de proporcionalidade, razoabilidade e adequação costumam ser in-
vocadas como parâmetros da maior relevância,92 assim como também já
afirma a doutrina constitucionalista em matéria de ponderação de princí-
pios.93 Sinteticamente, uma noção de legalidade atenta aos valores juridica-
mente relevantes em jogo exige do intérprete uma harmonização razoável
e proporcional de eventuais interesses em colisão.94 A notável abertura de
tais parâmetros, nesse contexto, permite concluir que a fundamentação das
decisões assume um papel fundamental na realização desta espécie de juízo
meritório. De fato, a necessidade de fundamentação já se faz sentir, como
ressaltado anteriormente, em todos os setores do direito, como decorrên-
cia da superação da subsunção e como pressuposto para o imprescindível
reconhecimento das escolhas políticas do juiz e seu adequado balizamento
pela legalidade constitucional.95
Em última análise, no sentido aqui proposto, o juízo de merecimento
de tutela se presta aos casos em que é preciso escolher entre duas preten-
sões lícitas e não abusivas, porém antagônicas. Neste caso, a solução a ser

casar e a integridade psíquica da pessoa abandonada, a depender das circunstâncias concretas


(por exemplo, caso o nubente desista do casamento no altar, durante a cerimônia), pode
haver espaço para a reparação (Dano moral: conceito, função, valoração. Revista Forense,
vol. 413. Rio de Janeiro: Forense, jan-jun/2011, p. 373).
92  Cite-se, novamente, Pietro PERLINGIERI, a respeito do merecimento de tutela do
conteúdo negocial: “la verifica di conformità a Costituzione e quindi il respetto del principio
di legalità costituzionale si realizzano con il controllo di meritevolezza (art. 1322 c.c.), inspi-
rato a ragionevolezza, proporcionalità e adeguatezza [...]” (Il principio di legalità nel diritto
civile, cit., p. 184).
93  Afirma Luís Roberto BARROSO que a ponderação “socorre-se do princípio da razo-
abilidade-proporcionalidade” para promover a máxima concordância entre direitos em
conflito (Curso, cit., p. 338).
94  Esta legalidade decorrente de ponderação modifica os contornos da autonomia privada
tanto no exercício dos direitos quanto nos setores em que a lei limita a criação de direitos.
Enrico CATERINI ressalta que, em matéria de direitos reais, a legalidade “é o momento de
síntese e de unidade do sistema jurídico-social onde as diferentes instâncias merecedoras
de tutela encontram um ponto de equilíbrio”, a justificar que a autonomia privada também
possa “ocupar legitimamente um posto na complexa regulamentação das relações reais” (Il
principio di legalità nei raporti reali. Napoli: ESI, 1998, p. 218).
95  Conforme analisa Maria Celina BODIN DE MORAES, “Se antes as soluções repousavam
na lei – na época em que o juiz era considerado simples mensageiro desta (na expressão
clássica de Montesquieu, la bouche de la loi) –, o problema a ser enfrentado, no contexto
atual, corresponde a determinar de que forma (isto é, em que nível de fundamentação),
com base em que critérios e em que situações o Direito deverá ser dito pelo magistrado (o
direito segundo a boca-do-juiz). O deslocamento foi radical e parece imprescindível sua
rápida identificação, para que se comece, doutrinariamente, a sugerir limites e a indicar
possibilidades” (Do juiz boca-da-lei à lei boca-de-juiz, cit., pp. 29-30).

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extraída da aplicação unitária do ordenamento fará prevalecer a pretensão


mais consentânea com a axiologia do sistema, por promover de modo mais
adequado ou mais intenso valores juridicamente relevantes. A outra pre-
tensão não receberá a tutela preferencial do ordenamento,96 devendo ceder
espaço à pretensão que se considera merecedora de tutela (na exata medi-
da da harmonização entre as duas, podendo – e devendo – merecer prote-
ção no espaço em que não colidir com a outra). Por todos esses motivos, se-
melhante juízo, de delicada aplicação, depende fundamentalmente dos ele-
mentos do caso concreto.
Como se pode perceber, o raciocínio aplicado em todos os exem-
plos acima se aproxima daquele atinente à técnica da ponderação em
alguns aspectos: o controle deve ser feito em concreto, como propõem
muitos autores em matéria de ponderação,97 e a solução final alcançada
após o juízo de merecimento de tutela também trabalha com uma gra-
dação na proteção conferida a cada uma das pretensões em conflito, e
não com a supressão completa de qualquer uma delas.98 Neste ponto,
porém, vale ressaltar: a proximidade com a técnica da ponderação se es-
tende unicamente à noção de harmonização de princípios, sem resgatar
o já aludido aspecto subsuntivo existente ao final do balanceamento de
princípios. Não se deve compreender, assim, que o processo de interpre-
tação ou aplicação foi cindido em momentos estanques; ao contrário, à
luz do caso concreto as três instâncias de controle valorativo se anali-
sam simultaneamente e se influenciam reciprocamente, em um proces-

96  Tal noção não é nova, tendo sido aludida pela doutrina sob variadas formulações. Louis
JOSSERAND, por exemplo, previa que uma das possíveis consequências do abuso do direi-
to, para além da cessação do exercício abusivo, era a negativa de tutela ao direito exercido
disfuncionalmente que fosse depois desrespeitado por terceiros. No exemplo do autor, hoje
extemporâneo, um produtor de teatro que anunciasse com cartazes um espetáculo “licencioso
e desonesto” não poderia pedir perdas e danos contra quem viesse a dilacerar os referidos
cartazes (De l’esprit des droits, cit., p. 415).
97  Conforme observa Giorgio PINO, os defensores do bilanciamento caso per caso não
sustentam que dois casos concretos com os mesmos elementos relevantes possam ou devam
ser decididos de formas diversas (daí a impossibilidade de solução abstrata), mas sim que
nunca haverá, de fato, dois casos concretos idênticos (Diritti fondamentali e ragionamento
giuridico, cit., pp. 120-121).
98  Veja-se, a respeito, a síntese de Pietro PERLINGIERI a respeito do merecimento de tutela
dos contratos: “Il controllo di meritevolezza ha ad oggetto l’atto tenuto conto delle peculiarità
del caso specifico, collocandolo nel contesto politico-economico: soggetti, materia-oggetto del
contratto, tempi, modalità di conclusione concorrono alla precisazione del regolamento nego-
ziale. Il controllo esige una valutazione inspirata al bilanciamento degli interessi e dei valori, sí
che il contratto risulti ragionevole (senza che necessariamente vi sia una perfetta equivalenza
di diritti e di obblighi o di prestazioni!)” ( Il principio di legalità nel diritto civile, cit., p. 189).

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so hermenêutico único. De fato, a identificação da ilicitude torna desne-


cessária a perquirição da possível abusividade; a identificação desta últi-
ma dispensa um possível juízo positivo de merecimento. Os elementos,
porém, que permitem a realização dessas três instâncias de controle são,
na prática, percebidos a um só tempo pelo julgador.

6. Síntese conclusiva
Em uma perspectiva promocional do direito, o princípio da legalidade pas-
sa a apresentar como conteúdo, em sua incidência entre particulares, não
mais apenas limites negativos, mas também uma forma positiva de contro-
le. Embora, sem dúvida, o dever que tem um particular de promover valo-
res socialmente relevantes seja diferenciado daquele atribuído à Adminis-
tração Pública, de tal forma que não se possa falar em uma suposta repres-
são de posições particulares lícitas e não abusivas por não perseguirem in-
teresses extra-individuais, por outro lado o ordenamento pode deixar de
tutelar, nas hipóteses em que se verifiquem duas pretensões particulares
antagônicas, aquela que promover menos intensamente tais valores.
Tais casos, de difícil resolução pelo intérprete, devem necessariamen-
te ser apreciados à luz dos elementos do caso concreto, de tal modo que a
pretensão que se considerar menos merecedora de tutela ceda espaço à ou-
tra, que promove melhor os valores do ordenamento. Trata-se de um pro-
cedimento bastante semelhante, nesse aspecto, à ponderação de princípios,
muito difundida pela doutrina constitucionalista brasileira; esses casos não
podem ser considerados difíceis, porém, apenas com base na necessidade
de sua resolução mediante a ponderação de princípios (a compatibilização
de valores potencialmente antagônicos que compõem o sistema é enfren-
tada pela metodologia civil-constitucional para a resolução de todo e qual-
quer caso, na medida em que o ordenamento deve ser aplicado sempre de
modo unitário). Sua real dificuldade reside no fato de ambas as pretensões
particulares estarem amparadas por valores do ordenamento, o que gera a
necessidade de se resolverem tais questões tendo a função promocional (e
não a função repressiva) do direito como principal parâmetro.
Os juízos de licitude e não abusividade partem da premissa de proi-
bir condutas desconformes ao Direito. Assim, o merecimento de tutela em
sentido amplo é a natural consequência da conformidade (estrutural e fun-
cional) de certo ato ao direito (afinal, se um ato não é contrário ao orde-
namento, merecerá proteção jurídica). Por vezes, porém, atos particulares
que não apresentam fundamento para sua supressão podem sujeitar-se a
outra espécie de valoração, baseada em seu potencial de promover valores

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do ordenamento. Esse julgamento, o merecimento de tutela aqui proposto


em sentido estrito, não classifica os atos como ilegítimos ou legítimos (ain-
da que, ao final, um dos atos venha a ser reprimido), mas procura identi-
ficar qual deles deve merecer tutela privilegiada em face do outro no caso
concreto. A valoração, como se nota, é mais quantitativa do que qualitativa.
Tal pode ser considerado o conteúdo estrito do juízo de merecimento de
tutela, e corresponde ao mais recente estágio alcançado pela legalidade no
direito civil – embora nada obste que a prática jurídica continue a empre-
gar a expressão, em sentido amplo, para fazer referência a todas as formas
de controle valorativo imposto à autonomia privada.

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