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PNT eT Rae TT ene tS TITIS IIS OT TOSI ae aa tT sicko icin MinerraConior- Rs dos Gatos, 10 Sourmmincko Runde Mica, «2000 Cumbria! ‘Tet. G51)239 #26 259/953) 299701 117- Fax 1) 249717267 ‘mal limmaninera malay B ! JACQUES DERRIDA i | *, 4, i Cosmopolitas de todos os paises, 2 | mais um esforco! | Padi de | Femanda Bemardo ute tam i un get Ds mo Comey res mom to ge ‘maourio Frames Dene. i emit Osnio eare : as ca Meroe Li : 3 ABRAMIOGRAMICO Grafisinos «Pedro Bandeizn: j TMTRESSAO Irmprensa de Coimbra, Ls, rae ta noeouL 1st01 ‘ sae 2-78-01. tars pee Cm ' e ' (© 1997 Batons Gai, 9, rue Linn 2005 Pil, Partament International de fervand SIRT ae MinervaCoimbra ©Copyright 2001 Bates Mice puna nga porguen Retrvados todos ods de word eo lepine ger | | | | APRESENTAGAG Quando langou a coleccio “Maiutica’ 0 Instinato de Estudos Flos6ficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra concebeu também o projecto de criaruma segunda coleogio caclusivamente dedicada a tradugSes avaliradas de obras filoséficas relevantes. Cumpre hoje, finalmente, ese deslgnio, a coleogio “Hermes”. (seu primeico volume ¢ uma verso laboriosa © apuradissima do titulo de Jacques Derrida, Cosmopolitas de todos os pafses, mais um cesforgo! Ambas as coleogbes obedecem ao objecivo de servigo ‘extra muros’ que seinpre 0 Instituto de Estudos Filos6ficos cultivou, jé mantendo-se fiel ao espltito de colaboragio com os docentes de Filosofia do Ensino Secundéto, jé concreti- zando sens{veis inicitivas onde vibra o elegante impulso especulativo, meditaivoeinvestigacional de todos os seus membros Responsive pelo presente trabalho ¢ Fernanda Bernardo, professora do Instituto de Estudos Filoséficos,estudiosa que em Portugal, mercé da, tengo que vem dedicando 4 obra daquele {filésofo francés, mais e melhor tem meditado ¢ contribuido para 0 conhecimento da obra derti- diana no vasto universo da lusofonia floséfica. Parilbara obra imensa, de. Derrida, como pela sua investigacio se propée, inclu, para ela, area de o da ler na nossa lingua, Estamos, por isso, em condig6es de asseverar que dificilmente poderia este filésofo ter encontrado mais conatural tradutor No passado, no campo das disciplinas huma- nlsticas,criase na desnecessidade das taducdes dada a presumida poliglossia do seu puiblico resttito, Hojeem diaapercebemo-nos da situagéo paradoxal de atradugio se impor, quer pelo decli- nio do comhecimento de linguas, quer como sinal de vialidade e dinamismo de uma cultura e de tuma instiouigéo, Em nome da verdade temos de TTT Teese ere ee eZ FFIFIIPIVIIIIIIIIIINISJITIIITIIIIIIIS registar que estas duas randesjustficom a presente iniciativa do Instituto de Estudos Flosbficos que, assim, se reconhece continuador (traducio/ Itradigao) de iniciativas edtorais a que préceres Como Joaquim de Carvalho e Silvio Lima outroca deram compo e que também encontrou espago nos planos de Amaldo de Miranda Barbosa e no projecto de Miguel Baptista Pereira. lugar exclusivamente comercial das tradu- Ges estélonge de retirar importincia & colecgéo “Hermes” que privilegiard 2 acessibilidade de inéditos e a tempestividade de injustos olvidos a requisitar 0 pensamento comprometido: traduzir mais nio significa traduzir melhor. Nio deveria set a ciénciafiloséfica a andar sob a batuta dos editores, mas estes a atender 20s hori- zontes dos praticantesdafilosofia, Em conformi- dade, 0 aval cientfico do Instiruro de Estudos Filosdficosseré uma garantia na babel das verses smultiplicantes. Tudo leva acrer que a traducio deverd ser uma das palavras do futuro (veja-se, a titulo de presente, o sucesso mais ou menos relativo das recentes aplicagées computacionais de tradugéo aucomdtica, passando pelos programas rasgados pelas ciéncias cognitivas ou pelas filosofias da ‘mente; nestes sectores, os nomes de A. Turing, ‘W. Weaver, H. Putnam ou A. Macintyre sio jé iniludiveis refecéncias). Porém, na sua radica- lidade, a tradugio diz néo s6 a ideia de tradigdo, mas 0 prdprio princlpio da ac¢Zo comunicativa (ultrapassando 0 tecnicismo dos paradoxos idealistas sobrea sua “impossibilidade") numa raiz ontoldgica que se exterioriza no espago planetério de uma comum hospedagem e se interioriza no segredo da inter-relagio ou nas virias polaridades da intermediagéo. Apraz-nos assinalar que também para Derrida a questio da tradugio é, desde sempre, a propria questio da Filosofia. Em todo 0 caso, neste local, apreciasfamos antes evocar, a vocagio tradutora pés-adémica cogitada substituiglo do paradigma da reriagSo da lingua verdadeira pelo deslgnio ico da recordagio de uma verdadeira lingua, aque sobrevive nose pelos intercAmbios linguisticos expressivos como uma ‘ocasifo para resgatar no idiomaddo traduror uma Tinguagem histéticaeinevitavelmente exilade. Sob o signo de Hermes pensavam os Gregos a linguagem, e desde logo porque entre vendedores ecompradores ea sevia de intermedigho, as asas que coroavam a cabeca ¢ abracavam os pés significando © voo mensageiro anunciador de pensamento. Onomasticamente, sinais ou pedras cde um caminho apontado, todas as mobilidades de Hermes sio encruzilhadas poderosas de plusi- significantes. Entrando no mundo da mitologia eda poesia, a metdfora abre-se também ao gesto de escutat, de anunciar ede incerpretar Que o privlégio duma certa voz, aqui, siva de acolhimento inaugural a um pensador que por W. Benjamin no quanto ela contempla a ‘comegou por sé-lo da escrita e do texto, é par si 10 = il VOLOO CORO ete teteeeneeeree sO ann nn (Tee ere 99999 9S SSS SISSSESITETIITIIIII s6um sina amais da vigilinci critica, daanaltica actualizagio © do sentido plural de misséo que identifica na diversidade todos os membros éo Instinuco de Estudos Filoséficos. Coimbra, Maio de 2001 Mazio Santiago de ‘Carvalho Este escrito folincialmente destinado ao primeiro congresso das cidades-refigio que teve lugar a 21 ¢22.de Marco de 1996 no Conselho da Europa, em Estrasburgo, por iniciativa do Parlamento interna- cional de escritores’. Impedido de nele partcipar, fiz questio de enderecar aos meus amigos esta ‘mersagem. Depois etter sido lida durante a sessio, foipublicadae difundida em Iingua esparthola (por Julian Mateo Ballorca), pelas edigdes Cuatro, da Universidade de Valladolid, primetra cidade- ~refigio de Espanha. A 6 de Novembro de 1995, om Estrasburgo, no decurso da sessio de encerramento do seu segundo encontro, o Patlamento internacional de escritores, pela voz do seu Presidente e vice- -presidentes (Salmon Rushdie, Adonis, Pierre Bourdieu, Jacques Derrida, Edouard Glissent), a cidade de Estrasburgo, representada pela sua presidente da cimara, Catherine Trautman, e 0 Conselho da Europa, representado pelo seu seeretéio geral, Daniel Tarschys, tnham efectiva- mente langado wm apelo as cidades da Europa a favor da constituicio de uma rede de cidades- -rehiigio. Antes, a 31 de Maio de 1995, no decurso da sua assembleia plendria, 0 Congreso dos poderes locais e regionais da Europa (CPLRE), + Para qualquer informacéo: Strasbourg, tne j agrupando mais de 400 cidades, tinha adoptado por vunanimidade a Carta das cidades-refiigio redigida por Fernando Martinez, Lopez, presidente da camara de Almeria e relator do projecto de resolugio, Esta Carta prevé as condicées de acolhimento de um escritor perseguido. Na sua resolucio de21 de Setembro de 1995, finalmente, 0 Parlamento europeu tinha também expresso 0 seu apoio ao Parlamento intemacional de escritores ¢ apelado as cidades enropeias parase ligazem & rece das cidades-refigio, Esta sio hoje em niimero de vinte e quatro, nos Estados-Unidos e na Europa (Alemanha, Austria, Bélgica, Espanha, Finlandia, Franga, Itlia, Noruega, Paises-Baixos, Suga)", 1 Em Portugal, acidade do Porto integra, desde 1997, arede de cidades-rfigio, i (RRREERRRELRE EREDAR E REE eeseee 1 A figura do cosmopolitismo, de onde nos chega? Eo que lhe acontece? Como & do cidadao do mundo, nao se sabe se algum porvir lhe esté reservado. Pergun- tamo-nos se existe ainda hoje um lugar legitimo para uma qualquer disting’o decisiva entre estas duas formas de cidade («polis») que so a Cidade e 0 Estado. Perguntamo-nos se um Parla- mento internacional de escritores deveré ainda, como o seu nome parece indicar, inspirar-senaquiloa que sechama, desde hé mais de vinte séculos, o cosmopo- litismo. Porque, ser4 0 cosmopolitismo o proprio de todas as Cidades ou de todos $ 15 BURRe RTE HRB eee me een nn eeare ESE ESA IEIIVESNTEAET TARA AIE SE TESTE 08 Estados do mundo? No momento em. que o «fim da cidade» ressoa como um veredicto no momento de um diagndstico ou de um prognéstico to comuns, como sonhar ainda com um estatuto original para a Cidade, e de seguida para a wcidade-refiigion, no re-novamento do direito internacional a que aspiramos? | Nao se espere uma resposta simples a uma questdo colocada nestes termos. Haverd que proceder diferentemente, sobretudo se se pensa, como estou tentado afazé-to, quea Carta das cidades-reftigio * oua Agéncia internacional das cidades- -reftigio que aparecem nonosso programa devem levar a algo de diferente e a algo mais do que um banal capitulo de convencao numa literatura do direito internacional: elas deverao antes ser 0 apeloaudaciosoa uma verdacteirainova-df go na histéria do direito de asilo ou do \ dever de hospitalidade. 16 | | Como se abe, onome «cidades-refiigion parece inscrever-se em letras de oiro na propria constituigao do Parlamento inter- nacional de escritores. Desde 0 nosso Primeiro encontro que apeldmos para a abertura de tais cidades-reftigio em todo 0 mundo, E isso assemelha-se, de facto, @ uma nova cosmopolitica. Parpusemo- -nos suscitar, pelo mundo fora, a proclae magio ea insttuigdo de «cidades-refiigio» numerosas, e sobretudo auténomas, tio independentes entre si e do Estado quanto possivel, mas cidades-refigio aliadas entre si segundo formas de solidariedade por inventar Esta invengio € a nossa tarefa; a reflexao teGrica ou critica énela indissocidvel das iniciativas préticas que iniciamos e, na urgéncia, llogrémos j4 por a funcionar. Quer se trate do estrarigeiro em geral, do imigrado, ido exilado, do refugiado, do deportado, do apatrida, da pessoa deslocada (tudo . 7 unre categorias a distinguir prudentemente), convidamos estas novas cidades-reftigio a inflectir a politica dos Estados, a transformar ea refundar as modalidades de perienca da cidade ao Estado, por exemplo numa Europa em formagio ou em estruturas juridicas internacionais ainda dominadas pela regra da soberania estatal, regra intangivel ou suposta como yee também regra cada vez mais recdria e problemética. Hsta néo pode nem deveria mais ser 0 horizonte titimo Ao comprometermo-nos assim, ao con- vidar metrépoles ¢ cidades modestas a comprometerem-se nesta via, ao escolher paraelasestenome de «cidades-reftigion, quisemos sem diivida mais do que uma coisa, como aconteceu com o nome «parlamento». Ao reactivar o sentido tradicional de uma expressaoe ao desper- tar para a sua dignidade uma heranca 18 \UREEREERCL LEAT ELTA LTT TATt memorével, quisemos ao mesmo tempo propor, sob o velho nome, um.conceito inédito de hospitalidade, do dever de hospitalidade e do direito & hospitali- dade. O que seria um tal conceito? Como o poderiamos nés dobrar as terrificantes urgéncias que nos assaltam ou nos apelam? Como permitir-Jhe responder a situagdes oua constrangimentos,a tragé- dias e a injuncdes sem precedentes? Lamento ndo poder estar presente no limiar deste encontro solene mas, € saudando aqueles que nele participa, permitam-me que evoque pelo menos a silhueta deste novo mapa da hospitali- dade e que, demasiado esquematica- mente, dele esboce os tragos principais. Qual é de facto o contexto no qual propu- sémos esta nova ética ou esta nova cosmopolitica das cidades-reftigio? Ser necessario lembrar as violéncias que se desencadeiam, a escala muridial? Dever- 19 LIULEATETEET EATEN Tee TTT | sei -se-4 ainda sublinhar que estes crimes s0 por vezes assinados por organizacées estatais e outras vezes por nao estatais? Seré possivel enumerar a multiplicagéo das ameagas, dos actos de censura ou de terrorismo, de perseguigdes e de escravi- does de todo o tipo? As vitimas sio inumerdveis ¢ quase sempre anénimas, mas sao cada vez mais frequentemente o que se designa por intelectuais, sdbios, jomalistas, escritores, homense mulheres capazes de trazer a um espaco piiblico uma palavra que os novos poderes da telecomunicagéo tornam cada vez, mais temiveis as policias de todos os paises, as forgas de censura e de repressio, sejam elas estatais ou nao, religiosas, politicas, econémicas ou sociais. Nao citemos nenhum exemplo, existem demasiados, € 05 mais célebres correriam 0 risco de enviar os outros, os andénimos, para a noite, de onde eles tém dificuldade em 20 999993399393 IISIIISFIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIN emergit, para esta noite que é aqui, na verdade, o primeiro male a condicao de todos os outros. Senos referimosa cidade, mais do que ao Estado, é porque espera- mos de uma nova figura da cidade o que quase renunciamos a esperar do Estado. E isso devera um dia ser elaborado e marcado nos nossos Estatutos. Quando 0 Estado nao € o primeito autor on a primeira caugio das violéncias que fazem fugir os refugiados ou os exilados (do exterior e do interior), ele é muitas vezes impotente para assegurar a proteccdo e a liberdade dos seus préprios cidadaos dante da ameaca terrorista, tenha ela ou nao um alibi nacionalista ou religioso. ‘Trata-se de um fenémeno que é preciso analisar, nao temos ainda hoje nem o tempo nem os meios para isso, numa Jonga sequéncia histérica. Uma tal sequéncia precedeu: mesmo, por exemplo, aquela que, pelo menos desde a primeira = 21 guerra mundial, produziuo que Hannah Arendt chamou, num texto que deve- rfamos meditar e interrogar de perto, 0 «Declinio do Estado-nagiio e o fim dos Direitos do Homem. As nagdes de ‘minorias’ 2.05 povos sem Estado»', Arendt propée af, em particular, uma andlise da histéria moderna das minorias,dos «sem Estado», dos «Heimatlosen», dos apétridas, refugia- dos, deportados, «pessoas deslocadas». Ela identifica dois grandes choques, nomea- damente entre as duas guerras: 1. Em primeiro lugar, a aboligao pro- gressiva, com a chegada de centenas de milhares de apétridas, de um direito de asilo que foi «o tinico direito que alguma vez figurou como simbolo dos Direitos 1 In Les origines du totalitarisme. L’impéria- lisme, trad. fr. Martine Leiris, coll. «Points», ed. Fayard-Seuil, 1984, p. 239 ss. 22. \aerererercerererrecercrerrere do Homem no dominio das relagées internacionais», Arendt lembra que este Gireito tem uma «hisiéria sagradan e que permanece 0 «tinico vestfgiomoderno do princfpio medieval do quid est in territorio est de teriforia». (Trata-se de um «prin- cipio medieval» no qual, sem diivida, se inspira ainda, voltarei a isto, a nossa figura das «cidades-reftigion). «... Mas, prossegue Arendt, embora 0 direito de asilo tenha continuado a existir num mundo organizado em Estados-nagées e tenha mesmo, nos casos individuais, sobre- vivido as duas guerras mundiais, ele é ressentido como um anacronismoe como, ‘um principio incompatfvel com os direitos internacionais do Estado»*. Na época em que ela escrevia isto, por volta de 1950, Arendt podia notar a auséncia deste 2 ibid, p. 258. TIECEHLOLEHKLKLCKHELLSHSCHHL ETHER M SOOO SSFASSIFIFSIIIIISSIIIGIIIIIIFSIIIIVISSIIIILIFILFIAIIIG' direito de asilo «na lei escrita» do direito internacional (por exemplo na Carta da Sociedade das Nagdes). As coisas evolu- fram sem divida um pouco desde entio, noté-lo-emos dentro de um instante, ‘mas outras mutacdes s4o indispensdveis ~ 2. O segundo choque ter-se-ia devido + na Europa a uma chegada em massa de tefugiados que obrigou a renunciar aos recursos classicos (repatriamento ou tounada de satisfatério para os substituir. Ao descrever longamente os efeitos destes tratumatismos, Arendtsitua talyez uma das nossas tarefas e, pelo menos, a perspectiva da nossa Carta e dos nossos Estatutos. Ela nao fala entao da cidade, mas na onda do duplo choque que des- creve, ¢ que situa entre as duas guerras, deveriamos, nés, hoje, colocar novas questées quanto ao destino das cidades e ao papel que lhes pode caber nesta situagao inédita. Como redefinir e desen- volver o direito de asilo sem repatria—_ mento e sem naturalizagio? Sera que a Cidade, um direito das cidades, uma nova soberania das cidades abriria aqui um espaco original que o direito inter- estatal-nacional no conseguiu abrir? Porque nao devemos hesitar em declarar a nossa tiltima ambicio, aquela que justamente dé o seu sentido ao nosso projecto: o que, solicitando-a com todos bs nossos desejos, chamamos «cidade- figio» no 6 apenas mais um dispo- sitivo com novos atributos ou com novos. poderes acrescentados a um conceito classico e nao modificado da cidade. Nao se trata mais apenas de novos predicados para enriquecer o velho tema chamado «cidade», Nao, nds sonhamos. com um outro conceito, com um outro direito, com uma outra politica da cidade. © que pode parecer utdpico, bem sei, 24 i a 25 | por mil razdes, mas ao mesmo tempo, por mais modesto que seja, 0 que nés jé comegdmos a fazer prova que qualquer coisa deste tipo jé esta em marcha~eesta marcha cadtica é indissociavel da turbu- éncia de que sao afectados, no tempo longo de um proceso, 05 axiomas do nosso direito internacional. Haverd entao alguma chance para a hospitalidade das cidades, se estivermos de acordo, como eu estou tentado, em reconhecer com Arendt que o direito internacional esta actualmente limitado por tratados entre Estados soberanos? “Eque um «governo mundial» néo modi- ficaria as coisas? Arendt escrevia entéo isto, que me parece continuar a ser ainda hoje verdadeiro: «..contrariamente as louvaveis tentativas humanitérias que reclamam das insténcias internacionaisnovas Declarag6es dos Direitos 26 sntiilinsseenansenrserssseiees do Homem, haveria que imaginar que esta ideia transcende o dominio actual do direito internacional que funciona ainda nos termos de convengGes e de iratados mettuos entre Estados soberanos; e, de momento, um mundo que estivesse acima das nagbes nao existe. Ealém do mais, este dilema néo seria de modo algum eliminado por um ‘governo mundia’..»? Haveria que agudizar e agravar ainda ‘oque ela diz. dos grupos e dos individuos que, entre as duas guerras, perderam todo equalquer estatuto: ndo $6 a cidadania, mas_ mesmo 0 iftulo de “apatrida’, Haveria também que reavaliar hoje, este respei- to, na Europa e fora dela, os respectivos paptis dos Estados, das Unides, Federa~ gGes ou Confederacées estatais por um lado, e das cidades por outro. Se o nome ea identidade de qualquer coisa como a cidade tém ainda sentido e continuam a “3 p. 285. Eu sublinho. TITTTTALACHHKOHTHKOKTHLTVPADO Sey set 0 objecto de uma referéncia perti- nente, poderé entéo uma cidade elevar- ~se acima dos Estados-nagdes ou libertar- -se deles, pelo menos dentro de limites a determinar, para se tornar, de acordo com uma nova acepgdo da palavra, uma cidade franca quando se trata de hospitalidade e de refigio? A franquia em geral tinha designado o estatuto de imunidade ou deisencao por vezes ligada, precisamente como um direito de asilo, a certos locais (diplométicos ou religiosos) para onde era possivel retirar-se para escapar a qualquer perseguicao injusta, Tal poderia ser o espaco da nossa tarefa, uma tarefa tedrica e, indissociavelmente, umacto politico. Tarefa tanto mais impe- rativa quanto, num contexto de urgéncia imediata, 0 horizonte obscurece de dia para dia. Mostram-no os ntimeros, © direito de asilo politico é cada vez ‘menos respeitadoem Franca e na Europa. 28 099 99999999959 SS SSSIIIIISITIIIIIITIVIIIDIN| Falou-se recentemente de um «ano negro do direito de asilo em Franga»*. Devido a um desencorajamento compreenstvel, © mimero dos que pedem asilo politico diminui regularmente. 0 OFPRA (Office frangais de protection des refugiés et apatri- des) endurece 0s ctitérios e reduz ontime- 10 deestatutos concedidos em proporcdes espectaculares. Ommimero de rejeigdes de Pedidos de asilo nao cessou alias de crescer no decurso dos anos 80 e ia inicio dos anos 90, Desde a Revolucdo, a Franca teve, € certo, tendéncia para se mostrar mais aberta aos refugiados politicos do que outros paises compardveis da Europa, mas as motivagdes desta aberiura nao ~~ Le Monde de 27 de fevereiro de 1996. cfr também Luc Legoux, Lacrise de 'asile politique en France, Centre francais sur la population et le développement (CEPED), . 29 foram munca puramente éticas’,no sentido da lei moral ou da lei de residéncia (ethos) onda hospitalidade. A baixa comparativa da natalidade francesa desde meados do século XVIII tornoua Franga mais liberal em matéria de imigragio em geral, por raz6es econémicas evidentes: eram necessarios trabalhadores e, quando a economia vai bem, nfo se faz a triagem de modo excessivamente vigilante entre amotivacao econdmica ea politica, O que aconteceu sobretudo nos anos 60, quando uma explosio econémica se traduziu naturalmente numa necessidade acrescida de trabalhadores imigrados. 6 também preciso saber que o direito de asilode que hé muito se inspiraa constituigao francesa no é, na sua precisao definicional ou no seu conceito juridico positivo, sen’io um acontecimento recente e bastante restri- tivo. A Constituigao de 1946 nao define e nao concede 0 direito de asilo sendo as 30 snabbharameenenseesssunes +35 pessoas perseguidas devido a sua “acgao a favor da liberdade”. Ser mais tarde, em 1954, quando a Franca subscreve a Convengéo de Genebra de 1951, que ela se verd obrigada a alargar esta definic&o do refugiado politico. Trata-se entao de todas as pessoas obrigadas a exilarem-se porque, «as suas vidas ou as suas liber- dades se encontram ameacadas, devido a sua raca, religidio ou opinides politicas». Alargamento consideravel, é certo, e muito recente, Mas esta Convengio de Genebra era bastante limitativa no campo previsto da aplicacao, ¢ estamos ainda do cosmopolitismo definido pelo hospitalidade universal, de que Tembra- rei jé a seguir os limites e as restrigdes. A Cenvengéo de Genebra de 1951, que obrigou a Franga a alargar o seu direito de asilo, ndo visava seno «os eventos da Europa anteriores a 1951». Muito tarde, * 31 erereerenerseeree reer eee eee = Se ee oe no fim dos anos 60, precisamente no momento em que se iniciava 0 processo que hoje se agrava dramaticamente, campo, olugar eas datas definidas por esta Convencao de Genebra (a saber, os acontecimentos da Europa anteriores a 1951) foram alargados por um certo protocolo acrescentado a esta conven¢io em Nova York em 1967, e foram final- mente alargados aos acontecimentos ocortidos fora da Europa ou posteriores a data de 1951. (Desenvolvimentos que Hannah Arendt nao podia conhecer e evocar, no momento em que escrevia 0 seu texto por volta de 1950.) Hé sempre um desvio considerdvel entre a generosidade dos grandes princt- pios do direito de asilo herdados das Luzes ou da Revolucao francesa e, por outro lado, a realidade histérica ou a aplicagao efectiva de tais prinefpios. Esta écontida, reduzida, controlada por restri- 32. 9996S OFFS STE TTTTTTTT IIIT ITI (Ses juridicas implacaveis; é vigiada por aquilo que o prefacio do livro sobre La crise du droit d'asile en France chama uma tradicao jurfdica assaz «mesquinha»’, Na verdade, se a tradicao juridica conti- nua «mesquinha e restritiva, é porque ela é comandada pelo interesse demo- Afico-econémico, numa palavra pelo interesse do Estado-nagio que acolhe e Oestatuto de refugiado no é 0 de imigrado em geral, nem mesmo o de imigrado politico. O reconhecimento do estatuto de refugiado pode vigorar muito tempo depois da entrada em Franca, seja esta A partida por raz6es econémicas ou politicas. Precisamos pois de incessante- mente vigiar estas distingdes, por vezes subtis, entre os estatutos, tanto mais quanto a fronteira entre 0 econémico eo politico parece mais problemética do que | | | | munca. A direita ou A esquerda, os homens pol‘ticos franceses falam muitas vezes do «dominio da imigracao».O que faz parte da retorica obrigatéria dos programas eleitorais. Ora, como nota Luc Legoux, 0 dito «controlo da imigragao» obriga muitas vezes a distinguir duas figuras do exilio -a fuga ea migracdo -, eanio dar asilo senfio Aqueles que nao podem esperar o menor beneficio econdémico da sua imigracéo. Esta condigéo atinge ow em todo o caso tende para um limite absurdo: como poderia um refugiado puramente politico pretender ser acolhi- . do e encontrar asilo algures sem que nenhuma vantagem econémica esteja implicada no seu novo habitat? E absolu- tamente necessério que ele trabalhe endo esieja sempre, simplesmente e totalmen- te, a0 encargo do pais que o acolhe. Aqui reside uma das questdes concretas que as nossas convengoes terao evidente- 34 ALLEM Le Le Le eLerereeeerereece mente de tratar: como ajudar os héspedes das cidades-refiigio a reconstituir, inclu- sive pelo trabalho ou pela actividade criativa, um tecido vivo e duradouro nestes novos Iugares e por vezes nesta lingua nova? Esta distingao entre o econémico e 0 politico nao é apenas abstracta ou inconsistente: torna-se hip6- crita e perversa; no limite permite quase nunca conceder asilo politico, e mesmo, se de facto assim quiserem, de nunca aplicar a lei a partir do momento em que esta depende totalmente, na sua aplica- so, de consideragdes oportunistas, por vezes eleitorais ¢ politicas, relevando elas também, no fim de contas, da ordem da policia, de fantasmas ou das realidades da seguranca, da demografia ou do mercado. Q discurso sobre o refiigio, 0 asilo ou a hospitalidade tornam-se entio purosalibis retéricos. Como nota Legoux, «isto, que tende a tornar inoperante 0 35 TEeLereecrecerreereer ean direito de asilo em Franga para os povos dos paises pobres, é o culminar de uma onga evolucio da concepgao do asilo num sentido cada vez mais restritivon®. Esta tendéncia para o fechamento é largamente comum: ndo a Europa em geral (a supor que alguma vez se tenha podido falar de Europa em geral), mas aos paises da Uniao europeia; é por vezes ‘opteco a pagar pelos acordos de Schengen = que aliés, como Jacques Chirac decla~ rou, nem sequer s4o, de momento, integralmente aplicados pela Franca. Na hora em que se pretende levantar as fronteiras internas, procede-se a um aferrolhamento ainda mais estrito das fronteiras exteriotes da dita Unido euro- peia. Os que pedem asilo batem sucessi- vamente as portas de cada um dos Estados da Unido europeia e acabam por ep XVI. $3333993339333333333333933393993939939333999999999999591 ser repelidos em todas as fronteiras. Apretexto de lutarem contra uma imigra- io econémica disfargada de exilio ou em fuga diante da perseguigao politica, os Estados rejeitam mais do que nunca os pedidos de direito de asilo. Mesmo quando nao o fazem na forma de uma resposta juridica explicita e motivada, deixam muitas vezes a sua policia fazer a lei; cita-se 0 caso de um curdo a quem um tribunal francés tinha oficialmente reconhecido o direito de asilo e que no entanto a policia expulsouparaa Turquia sem queninguém proteste. Comomuitos outros exemplos, como nomeadamente os casos de «delito de hospitalidade» de queso acusados, cada vez mais frequen- temente, os que albergaram suspeitos politicos, isto lembra o problema maior e decisivo da policia, do estatuto da policia, de uma policia das fronteiras primeiro, mas também de uma policia . 37 sem fronteira, sem limite determi- navel, e que se torna desde ent invasora einapreensivel, como dizia Benjamin, na Critique dela violence, imediatamente apos a primeira guerra mundial. A policia torna-se omnipresente e espectral nos Estados ditos civilizados, no momentoem que faz a lei em vez de se contentar ema aplicar e fazer observar. Besta verdade mais clara do que nunca na idade das novas teletecnologias. A violéncia poli- cial, dizia j4 Benjamin, é entao «sem » e «sem forma» (gestaltlos), perma- nece assim sem responsabilidade; ndo apreensivel como tal em parte alguma Capen slays Estados civilizados, oO espectro da sua aparigéo fantasmatica estende-se sem limites, Benjamin fala do seu ealloerbretete gespenstische Erscheinung im Leben der zivilisierten Statten».™ ss elrapgfo inconcebive,generalizada eespectral na ‘ida do Estado civilizadon 38 FALLALLLTCLALL Nao se trata para nés, claro esté, de fazer um discurso de suspeicao injusto ¢ utépico contra a fungdo da policia, nomteadamente na sua luta contra delitos | que so da sua competéncia (por exemplo | 0 terrorismo, as actividades das mafias de todaa espécie ou do narcotrafico). Nos, apenas colocamos a questao dos limites da competéncia policial e das condighes| nas quais ela se exerce, nomeadamente “quanto aos estrangeiros. Em relagio aos | novos poderes das policias (estatais ou interestatais), tocamos aqui uma das mais “an graves questées de direito que uma foi! elaboracao futura da nossa carta das cidades-refigio deveria elaborar einscre-| ver, a longo termo, numa luta intermi- navel: 6 preciso limitar os poderes e as competéncias mais legitimas daquilo que deve permanecer uma simples adminis- tragdo policial estritamente subordinada ao controle do poder politico e de instan- . 39 TELL KLEL ELLE ELL LLL re cias que velam pelo respeito dos direitos do homem e de um direito de asilo alargado. Na tradicao das observagdes de Benjamin que evocava ha instantes, Hannah Arendt sublinhava jé esta exten- séo crescente e inédita dos poderes da Policia moderna no caso destes novos refugiados, Fazia-o a seguir a uma nota sobre o anonimato e a celebridade que nés deverfamos, sobretudo no Parla- mento internacional de escritores, ter em maxima consideragao: «S6acelebridade pode eventualmente dar resposta eterna Jamentacao dos refugiados de todas as camadas sociais: ‘ninguém sabe -quem eu sow’;e é verdade que as hipéteses do refugiado célebre sto maiores, do mesmo modo que um céo com nome tem maiores hipéteses de sobreviver do que um cio vadio, que mais nao ¢ do que um cao em geral. O Estado-nagio, incapaz de fornecer uma lei aos que perderam a proteco de um governo nacional, coloca o problema nas mios da policia. Era a primeira vez na Europa Ocidental que a policia recebia plenos poderes para agir por sua propria conta; para controlar directamente as pessoas; no domfnio da vida publica, ela deixava assim de ser wm instrumento destinado a fazer tespeitar e aplicar a lei para se tomar uma instancia governahte, independente do governo e dos ministérios (p. 266)». Este problema, sabemo-lo demasiado bem, é hoje mais grave do que nunca e poderfamos acumular os seus indicios, Contra a acusagio daquilo que de ha algum tempo para c4 se chama «delito de hospitalidade», amplificou-se em Franga um movimento de protesto; onganizacées tomaram-no a seuicuiidado ea imprensa fez-se largamente o seu eco. Al SSESSSSSESGSITTIIFTIITEIE Noespfritoealém das leis ditas «Pasqua», vem agora a ordem do dia um projecto de «lei-Toubon». Em vias de exame nas ) assembleias parlamentares, na Assem- bleia nacional e no Senado, ele propée, emsuma,tratar como actos de terrorismo malfeitores»_ qualquer hospitalidade concedida a «estrangeiros em situacao irregular» ou simplesmente «sem papéis». te projecto agrava de facto um cerl artigo 21 da famosa ordenagao de 2.de Novembro de 1945 que jé determi- nava, como «acto de delinquéncia», toda e qualquer ajuda a estrangeiros em situacdo irregular. Agora o acto de delinquéncia corre o risco de se tornar cacto de terrorismo». Parece, ainda por cima, que este projecto est4 em contra~ digéo com os acordos de Schengen (ratificados pela Franga) - que nao permitem condenar este auxilio a um 42 COCKE ECC OCOCOOCEEE EEE cestrangeito» «sem papéis» ouem «situa- do irregular», a ndo ser que se possa provar que este auxilio é «lucrativo». O termo «cidade-reftigio», escolhemo- lo, sem diivida, porque ele tem titulos histéricos a nosso respeito ea respeito de todo aquele que cultivaa ética da hospitali- dade. Cultioar a ética da hospitalidade, no seré esta linguagem além domais, tauto- l6gica? Apesar de todas as tenses ou contradig6es quea podem marcar, apesar de todas as perversdes que a espreitam, nem sequer temos de cultivar uma ética da hospitalidade, é hospitalidade é a prépria cultura e rido é uma ética entre Outras, Na medida em que ela diz respeito ao ethos, a saber, Amorada, Acasa propria, ao’ lugar da residéncia familiar assim como ao modo de nela estar, ao modo de se relacionar consigo e com os outros, com 0s outros como com os seus ou como com estrangeiros, a ética é « hospitalidade, 43 COHCOCOOEHEEEOCOEOEHOOOOTTEDRM TTF CSCO TET FTE FIGIIVS ela ¢ de parte a parte co-extensiva coma experiéncia da hospitalidade, seja qual for 0 modo como sea abra ou se a limite, ‘Mas por esta mesma razo, e porque 0 serse si mesmo em sua casa (a prépria ipseidade) supée um acolhimento ou uma incluso do outro que se procura apropriar, controlar, dominar, segundo diferentes modalidades da violéncia, ha uma histéria da hospitalidade, uma perversdo sempre possivel d’A lei da hospitalidade (que pode parecer incon- dicional) e das leis que a vém limitar, condicionar, inscrevendo-a num direito. Eénesta histéria que eu queria, de modo muito modestamente preliminar, seleccio- naralguns pontos de referéncia quanto ao quie aqui nos importa. Aquilo aque chamamos cidade-refiigio compreende-se, parece-me, numa pri- \ meira abordagem, no cruzamento de \varias tradigdes ou de varios momentos 44 FIVITIFIIIIIBIIIIIIIIIIIIIIIVN nas tradic6es ocidentais, europeias ou para-europeias. Reconhecer-se-A nela, por um ado, numa tradigao hebraica, as cidades que deviam acolher e proteger aqueles que podiam vir refugiar-se nelas, quando eram perseguidos por uma justi- Ga cega e vingativa ou pelo que os textos chamam o «vingador de sangue», por um ctime de que estavam inocentes (ou de que eram antes os autores involuntérios), Este direito citadino 4 imunidade e & hospitalidade era muitissimo elaborado na sua casufstica, o texto fundador de uma tal jurisprudéncia foi aqui sem diivida Niimeros’: Deus ordena af a 7 Niimeros, XXXV 9-32, Cf. também I Cré- nnieas 6, 42 e 52, onde teaparece a expresso «cidades de refiigio», e sobretudo Josué, 20, 1-9 «lls l’ajouteront a la ville, lui donneront un lieu, et il habitera avec eux» (trad. A. Chouraqui). («Bles junié-lo-d08 cidade, dar- -lhe-4o um lugar, e ele hal Moisés para instituir cidades que serao, diz aprépria letra da Biblia, «cidades de refiigion ou de casio», eemprimeirolugar «seis cidades de reftigio», em particylar para «o estrangeiro ouhdspede resident entre eles». Dois belos textos foram consagrados em francés a esia tradigao hebraica da cidade-refigio, e apraz'mie ” lembrar aqui que, de uma geratag:a outra, os autores destes ensaios sio dois fil6sofos ligados a esta cidade de Esljas- burgo, a esta generosa cidade-fro cidade eminentemente europeia, capital da Europa, a primeira das no3sas cidades-reftigio. Trata-se das meditagées que Emmanuel Lévinas em 1982 e Dahiel “Ces villes-refugeso, in L'Au-deli dt verset, Minuit, 1982, p. 51 ss. Eu tento'uma leitura mais precisa deste texto e, thais geralmente, uma interpretacio do pensa- ~ mento da hospitalidade em Emmanuel Payot em 1992? intitularam precisamente «As cidades-reftigion ou «Cidades refiigion. Reconhecer-se-, por outro lado, a tradi- do medieval de uma certa soberania da cidade: esta podia, ela mesma, decidir sobre as leis da hospilalidade, artigos de lei determinados, plurais ¢ restritivos, portanto, pelos quais entendia condi- cionar A grande Lei da hospitalidade, esta Lei incondicional, singular e uni- versal ao mesmo tempo, que mandava abrir as portas a cada um e a cada uma, a todo e qualquer outro, a todo o recém- -chegado, sem perguntas, mesmo sem identificagao, de onde quer que ele viesse efosse ele quem fosse, (Haveria que estudar Oquese chamava a «salvagao> dispensa- Tévinas em «Le mot d'accueil», (in Adieu @ Emmanuel Lévinas, ed Galilée, 1997). Des villes refuges, Témoignage et Espacement, ed. del’ Aube, 1992, nomeadamente p. 65 55. . 47 trereenecreeerrorcerrrer en pd 2G9 da pelas igrejas assim iguais a cidades, e destinada a assegurar a imunidade ow a sobrevivéncia dos refugiados; ouainda a «auctoritas» que permitia a reis ou a senhores subtrairem os seus héspedes a qualquer perseguigdo; ou o que se passou entre as cidades da Tilia em guerra quando uma se tornava reftigio para 0 exilado, o refugiado, o banido vindo de uma outra cidade; e nés, que pensamos em primeiro lugar em escritores, temos namemria uma certa histéria de Dante, banido de Florenga e acolhido entio, pare- ce-me, em Ravena). Enfim, neste mesmo cruzamento, poderfamos identificar a ltradigéo cosmopolitica comum a um erto estoicismo grego e a um cristia- ismo pauliniano, tradicao cosmopolitica le que ja herdam as Luzes e & qual Kant rd sem diivida dado a formulagio filos6- ica mais rigorosa no seu famoso «Artigo definitivo em vista da paz perpétua. ‘O direito 48 9 9988448489599999995ISSSIDIBIIIIIDITIIIZIIIIIIIIIITIIIV cosmopolitico deve restringir-se as condigies da ‘hospitalidade universal’. Bste nao 6 0 Jugar para analisar este Artigo notavel e a imensa histéria que transporta e arrasta consigo sem a nomear. O cosmopolitisio est6ico tera sido revezado por Cicero; Ocristianismo pauliniano relanca, radica- liza e literalmente ‘politiza’ as primeiras injungdes de toda a religiao abrafimica, a Partir, por exemplo, do «Abri as portas» de Isafas - que tinha no entanto precisado as condigdes restritivas da hospitalidade, asaber, a «cidade forte», a «cidade inexo- rével», a sua wsalvagio» ou a sua asegu- ranga» (26,2). So Paulo dé a estes apelos ua estas ordens os seus nomes moder- nos. Sio também nomes teoldgico- -politicos, uma vez que designam explici- tamente a cidadania e a co-cidadania mundial: «... nao sois mais estrangeiros | nem metecos, mas concidadaos dos homens consagtados e da casa do Senhor» . 49 'feee (Efésios 2, 19-20). Esta frase, onde «estran- geiros» (xenoi) se traduz também por «héspedes» (hospites); e «metecos», ou seja, «imigrados», por «paroikoin, designa tanto o vizinho como, de um ponto de vista que muito nos importa aqui, 0 estrangeiro domiciliado numa cidade ou num pats sem direito politico; eu modi- fico emisturo varias traducées, incluindo ade Chouraqui, mas haveria que analisar aqui de perto os desafios politicos ¢ as implicagées teoldgicas destas questdes de semantica; a tradugio de Grosjean- Léturmy, na Biblioteca da Pléiade, por exemplo, poderia literalmente anunciar oespaco do que nés interpretamos como «cidade-refiigion, se esta tiver de ficar para sempre, mas é toda a questéo que aqui gostaria de abrir, a versdo secula- rizada deste cosmopolitismo pauliniano: «Assim nao sois mais estrangeiros acolhidos (xenoi, hospites), sois os conci- 50 CREO ERO CTR OH HO EHOEE dadaos dos santos, sois da casa de Deus (sympolitai tin agion kai cikeioi tou theou; cives sanctorum, et domestici Dei). Nomomento em que, neste espirito das Luzes de que nos reclamamos, Kant formula o direito cosmopolitico, ele nao o restringe apenas «as condicées da hospitalidade universal». Atribui a esta dois limites que situam, sem dtivida, para | 16s um lugar de reflexio e talvez de | transformagao ou de progresso. Quais | sio estes limites? Kant parece em primeio lugar esten- der sem medida um direito cosmopolitico & hospitalidade universal. fi a condicao da paz perpétua entre todos os homens", w «Deste modo, partes afastadas do mundo podem estabelecer relagdes pacificas entre si, relagdes que podem por fim tomar- -se priblicas e legais, assim aproximando cada vez mais o género humano de uma ‘ 51) SOCOCHCHRH HOHE LE OLELOEODR® beeemee sss b044444449494445545354545455 Ble determina-o expressamente como um A direito nafural™ Este seria pois origindrio “constituigo cosmopolitica [...| Ora, como seavancou tantono estabelecimento de uma comunidade (mais ou menos estreita) entre 0s povos da terra, a violacéo do direito mum 86 lugar da terra sente-se em todos os outros. Pelo que a ideia de um direito cosmopolita no 6 nenhuma representacao fantasista e extravagante do direito, antes um comple- mento necessario do cédigo nao escrito, tanto do direito civico como do diteito das gentes, em vista do direito dos homens em geral e, assim, da paz perpétua, da qual ndo podere- mos orgulhar-nos de continuamente nos aproximarmos sendo nesta condi¢So», Kant, Vers Ia paix perpétuelle, trad. franc. |. Poirier e Fr, Proust, GE, Flammarion, 1991, p.94-97. 1 eA inospitalidade das costas maritimas [...] ou a dos desertos [...] sfo, pois, contré- tias ao direito natural (dem Naturrecht sanvider)», ibid, (p. 94). 52 SSddSSSIISITITTTITIT TTT no seu fundamento, imprescritivel ¢ inalien4vel. Como quase sempre no caso do direito natural, podemos reconhecer nele os tragos de uma heranca teolégica secularizada, Todas as criaturas huma- nas, todos os seres finitos dotados derazao teceberam em partilha fratema a «posse comum da superficie da terran”. Ninguém pode, portanto, em prinefpio, apropriar- ~se legitimamente da dita superficie (enquanto tal, enquanto superficie) para interditar 0 seu acesso a outro homem. Se Kant faz questdo de precisar que este bem ou este lugar comum se estende A «superficie da terra» 6, sem diivida, para no lhe subtrair nenhum ponto do mundo ou de um globo esférico e finito (mundia- lizago e globalizacao), ali onde uma dispersao infinita é impossivel; mas é p94. tee sobretudo para excluir 0 que se ergue, se edifioa ou se erige acima do solo: habitat, cultura, instituigao, Estado, etc. Tudo quanto, incluindo 0 solo, nao é mais o solo e, ainda que fundado na terra, no deve ser incondicionalmente acessivel a todo o recém-chegado, Gragasa condigao desta estrita delimitacao (que nao ésenéo a instituigo do limite como fronteira, nacio, Estado, espaco puiblico ou politi- co), Kant pode entao deduzir duuas conse- quéncias ¢ inscrever outras duas grelhas sobre as quais terfamos interesse em reflectir futuramente, (Dem primeiro ugar gleexctui ahospita-_ lidade como direito de residéncia (Gastrecht); imita-a ao direito de visita (Besuchsrecht).. Odireito de residéncia deveria ser objecto de um tratado particular entre Estados. Kant define assim condigées que deveria- mos interpretar de perto para saber o que queremos fazer delas: 54 POOR COEOOCECECCOCOECooe trala-se aqui, no de filantropia, mas de direito; e a hospitalidade (Hospitalitat (Wirtbarkeit) significa aqui o direito de um estrangeiro, aquando da sua chegada ao territério de um outro, a nao ser tratado por ele como inimigo, Este pode rejeiti-o, se isso nao implicar a sua perda, mas enquanto o estrangeiro se mantiver pacifi- camente no seu lugar, nfo se pode abordé-lo como inimigo. O estrangeiro nao pode pretender 0 acesso a um direito de residéncia (0 que exigiria um tratado particular de benificéncia que faria dele, durante algum tempo, um héspede (Housgenossen)), mas a um direito de visita: este direito, devido a todos os homens, € 0 de se apresentar & sociedade, em virtude do direito da posse comum da superficie da terra, sobre a qual, uma vez que ela éesférica, eles nao se podem dispersar infinitamente, mas devem final- mente suportar-se uns aos outros, pois ninguém tem & partda, mais do que outro . 55 qualquer, o diteito de ocupar um deter- minado lugar» Esta limitagio do direito de residéncia, assim como 0 que o faz depender de tratados entre Estados, eis talvez, entre outras coisas, o que permanece para nés discutivel. 2. Aseguit, eporissomesmo,definindo_ com todo o rigor a hospitalidade como um direito (0 que é, a muitos niveis, um progresso), Kant consigna-lhe condigbes que o fazem depender da soberania estatal, sobretudo quando se trata do direito de residéncia. Hospitalidade signi- fica aqui publicidade do espaco piblico, como acontece sempre com o juridico em sentido kantiano; a hospitalidade da cidade ou a hospitalidade privada so dependentes e so controladas pela lei e wp. pela policia do Estado. Isto tem grandes consequéncias, nomeadamente para os «delitos de hospitalidade» de que faldva- mos antes, mas também para a soberania das cidades, na qual pensamos, e de que © conceito é hoje pelo menos tio proble- matico quanto no ‘tempo de Kant, ‘Todas estas questdes permanecem obscuras e dificeis, no devemos nem escondé-lonem fingir crer dominé-las de momento. Trata-se de saber como trans- formar e fazer progredir o direito. E de saber se esie progress é Ppossivel num espago histérico que se mantém entre A Lei de uma hospitalidade incondi- cional, a prior oferecida a todoe qualquer Outro, a todo o recém-chegado, seja ele quem for, ¢ as leis condicionais de um direito & hospitalidade sem o qual A Lei da hospitalidade incondicional correria orisco de permanecer um desejo piedoso, inresponsdvel, sem forma e sem efectivi- 57 dade, em suma, de se perverter em cada instante. Experiéncia e experimentacéo, pois. Entio, a nossa experiéncia das cidades- -teftigio nfo seria apenas o que deve ser sem demora, a saber, uma resposta de urgéncia, uma resposta justa, em todo o caso mais justa do que o direito existente, ‘uma resposta imediata ao crime, & violén- cia, & perseguicio. Esta experiéncia das cidades-refigio, eu imagino-a também como o que dé lugar, um lugar de pensa- mento, e é ainda o asilo ow a hospitali- dade, a experimentacio de um direito e de uma democracia por vir. No limiar destas cidades, destas novas cidades que seriam outra coisa que «cidades novas», uma certa ideia do cosmopolitismo, uma outra, no chegou talvez ainda, -Sim~chegou... ~ .., entdo, nao se a reconheceu talvez = * = I

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