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PARA UMA CRIMINOLOGIA BRASILEIRA MUTANTE E ANTROPOFAGICA ‘Moysés Pinto Neto! |. 0 PROGRAMA DE POS- IRADUAGAO EM CIENCIAS CRIMINAIS DA PUCRS E SUA INFLUENCIA NA AREA DAS CIENCIAS GRIMINAIS BRASILEIRAS Hoje em dia € impossivel ignorar,e talvez toda modéstia nesse aspecto seja um tanto quanto hipécrita a influéncia do Programa de Pés-Graduacdo ‘em Cigncias Criminais da PUCRS na respectiva érea em ambito nacional, Isso € admitido mesmo por aqueles que as vezes em viés perigosamente obs- curantista ~ posicionam-se como seus “inimigos. Infelizmente no sio t30 incomuns as ironias & “lavagem cerebral” que o Programa produz, mudando radicalmente as perspectivas de quem o cursa ~ se efetivamente se deixa pro- blematizar ~ em relagio ao sistema penal e & violéncia, Pensando nos tem- os em que Id estve presente, desejaria dar uma conotagio positiva a essa “lavagem cerebral’. Efetivamente, os méritos do Programa, longe de ser a formagao de uma “Escola Penal” (ou, segundo visbes para as quais o tempo rio passou e a desinformagdo grassa solta, uma “Escola Garantista"), & justa ‘mente produzir um choque ~ geralmente traumético ~ capaz de apresentar-se como contraponto a Totalidade que ocupa os espacos do nosso cotidiano. Cito como exempios disso as quatro pessoas que posso chamar de *mestres” na minha formagao: Ruth Gauer (de quem falarei melhor em seguida), Ricardo Timm de Souza, Salo de Carvalho (hoje professor da UFRGS) e Rodrigo Ghi- ringhelli de Azevedo. Esses quatro professores tinham a virtude de saber que formar verdadeiramente néo é “doutrinar” ou cri “discfpulos” e “escolas", ¥ Dontorado em Fina (PUCRS), bit pra CAPES, mere em Ciacia Ceinnis PUCBS), segindor do Intute de Ceiminalogi Autlde (ICA), Esa: nonepntonto il cor 14 PARA UMA CRIMINDLOGIA BRASILEIRA ~ PRUTO NETO, ML como muitos inafortunadamente perseveram fazendo, mas problematizar,ti- rar da zona do conforto, ensinando e dialogando. Se o que vivemos é hoje a violéncia exercida em todas as esferas de for- rma cada vez mais explicit, sistemética e tecnificada, se o estado de excecio ‘que permanecia como matriz oculta do direito torna-se cada vez mais a regra, mais visivel, 6 preciso reagir desconstruindo esse bloco macigo que combina vwulgaridade e ardilosidade (SOUZA, 2010). As estratégias dessa Totalidade nao so sendo ocultar todos os sinais e indfcios que possam ligar o fendmeno da violencia — geralmente atrelado ao “crime” — com suas efetivas rafzes, recor- renclo a mitologemas de todas as espécies e desviando 0 foco do ensino e da pesquisa daquilo que efetivamente importa: a vida nua, a vida exposta a um poder que pode Ihe ceifar a existéncia (por agdo ou omissdo) sem precisar justificar-se, usando eufemismos e desculpas, remetendo a um futuro distante ‘cujo horizonte é indecente diante da urgéncia dos tempos. {A professora Ruth Maria Chitté Gauer, nesse sentido, hé anos realiza tum trabalho herctileo de desconstrugao dessa sedimentacio por meio de cho- ques que muitas vezes sao incompreendidos pelos estudantes. Seguros de si € cheios da empafia e arrogincia que caracteriza 0 mundo juridico, ndo raro colegas ficavam “ofendidos” com a atitude problematizadora da professora Ruth. Uma vez que nossos cursos juridicos na maioria esmagadora nao ensi- nam quase nada que nao dogmitica, 0 que podemos verificar, efetivamente, um caminhao de dogmatas - no lamentavel sentido filos6fico que a expres- sio carrega - incapazes de um autoquestionamento profundo e de enxergar a radicalidade das questdes da contemporaneidade. Trata-se - a0 fim e a0 cabo ~ da famosa transformagao da crise em erftica (SOUZA, 2004, p. 30), da abertura para novas perspectivas, do prdprio pensamento que 6, antes de tudo, uum receber 0 Novo, para o qual & preciso suspender nossas préprias crengas sob pena de permanecer na eterna seguranca do no-pensamento. Ninguém melhor para provocar esse espaco de questionamento que a professora Ruth Maria Chitt6 Gauer, com suas frases enféticas, seu impeto desconstrutor, sta disposigdo para 0 debate e capacidade de nao oferecer solugées ficeis ou {érmulas prontas. Ea insisténcia da professora Ruth na questo da inter ou transdisciplinari- dade mostra-se a cada dia mais compreensivel.O jurista alucinado —isto é, aquele {que projeta sobre o cotidiano uma imagem inexistente, aprendida nos manuais e ‘cursos juridicos ~ 6 infelizmente uma figura cada vez mais comum no nosso ce- nério, Contra isso, o didlogo com éreas como a hist6ria, a antropologia e afiloso- fia € altamente necessério: abrindo novas perspectivas, mostrando geneoalogias desconhecidas, aportando os limites do discurso juridico e desnaturalizando 0 4 CRIME EINTERDISCIPLNARIOADE ~ESTUDOS EM HOMENAGEM A RUTH W. CHITTO GAUER ‘mundo. Inegavelmente, é mérito da professora Ruth nfo apenas indicar 0 desa- fio, mas exercéo diariamente nas suas aulas, palestras e conversas, Dito isso, passarei, neste artigo, a pontuar algumas anotagées dispersas acerca das relagSes entre a Criminologia e a Transdisciplinaridade e as conse- uéncias dessa discussio para oensino, o estudo e a pesquisa da Criminologia. I 0 ENSINO FORMATADO DA CRIMINOLOGIA NOS CURSOS JURIDICOS Uma das curiosidades pouco percebidas no mundo juridico é que a repre- sentacdo do que & Criminologia centro desse campo é pontuada por um discur= 0 endégeno ¢ autorreferente, cyo teor ganha sua forma mais caricata, verda- deiramente cémica naideia de *ci@ncia auxiliar do Direito Penal”, Essa ideia, hoje ainda estampada nos manuais mais superficiais e cujo sucesso é mero siatoma a pasteurizagao do préprio campo juridico, nao pode ser mais representativa do narcisismo verdadeiramente delirante dessa drea. Talvez o que os juristas cha- smam de Criminologia ~ 0 levantamento histérico dos discursos com esse nome, ‘a dogmitica critica, a politica cririnale os discursos téonicos de caréter médico ou estalistico que naturalizam o fentdmeno criminal ~ bem, talver isso. possa ser chamado de “ciéncia auxiliar do Direito Penal”, Mas seré que os antropélo- 0s que pesquisam violencia urbana nas respectivas etnografias, 0s fildsofos que Pensam as relagdes entre politica e violéncia, os psicanalistas preocupados com sintomas sociais, os sociélogos di érea da seguranca piiblica, sera que todos eles sao aualares do jurista penal? Que fique claro que sequer com o rétulo de CCriminologia ou crimindlogo esses pesquisadores estdo preocupados, A pior representago que pode ser dada do campo da Criminologia € essa confusio entre a histéria oficial da (pseudo)disciplina “Criminologia” com 0 que efétivamente vem sendo feito ~ nas mais variadas reas ~ em ter- mos de pesquisa da violéncia, do controle penal, da marginalidade social, da ‘ransgressao ¢ todos esses temas que gravitam no mesmo espaco. S60 des- conhecimento infelizmente comum do campo juridico acerca dessa riqueza de pesquisa faz. com que, por exemplo, possa o jurista penal acreditar que Porque conhece 0 Cédigo Penal esti conhecendo a realdade criminosa ou puni- tiva, sendo quase um “expert” no assunto. Ea terra arrasada do pensamento, resultado tiltimo do dogmatismo que se assenhoreou dos cursos jurfdicos pelo menos desde que Kelsen promoveu (e foi acolhido) o corte epistemold- gico estritamente normativo para a ciéncia do direito? * “Confeira ie epeito Plato Neto (2010e us, ' PARA UMA CRIMINOLOGIA BRASILEIRA~ PINTO NETO, Ill, AS HISTORIAS DO PENSAMENTO CRIMINOLOGICO? Como resolver isso, enti? Em primeiro lugar é preciso ver que temos ‘uma histria ofcal da Criminologia que nao se confunde com o que efetivamen- te existe independente do rétulo. Proponho, nesse sentido, um pequeno exer- cicio para classificarmos os paradigmas criminol6gicos. O exercicio consiste fem questionarmos: seré que as pesquisas de Lombroso, por exemplo,témm al- ‘gua linha de sequéncia com aquilo que a Escola de Chicago, com a ecologia criminal, fazia? Nao serdo teorias bastante heterogéneas, mesmo que unidas pela pergunta etiolégica? Por mais que a clasificagio de Alessandro Baratta tem dois paraiigmas, 0 etioligico eo critco (BARATTA, 2002, p. 85), me pa reca bastante adequada sob um determinado ponto de vista, & imposstvel no . Acesso em: 30 abr. 2011

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