Você está na página 1de 6

17/11/2022 18:25 Devir quilomba e a feminização do conceito de quilombo no Brasil

Pushnews
Início  Artigos Exclusivos  Guest Post  Devir quilomba e a feminização do conceito de quilombo no Brasil

Artigos Exclusivos Guest Post Nossas Histórias

Devir quilomba e a feminização do conceito


de quilombo no Brasil
21/07/2021

Faz tempo que a imagem dos quilombos tem sido utilizada pelos movimentos negros para
evocar resistência, bem como um modelo societário a ser seguido. Até o século XX, a imagem
predominante sobre a resistência quilombola valorizava as práticas masculinas em termos de
virilidade, de guerra e de força. Entretanto, nos últimos anos vêm ocorrendo transformações
significativas nas narrativas sobre os quilombos. A recente visibilidade e o reconhecimento do
protagonismo das mulheres quilombolas na luta pela terra exprimem que o conteúdo dessas
mudanças incorpora a dimensão de gênero. 

Utilizamos cookies para Oficina


fornecerde uma
Mulheres Quilombolas-CONAQ,
melhor experiência paraquilombo Maria Joaquina-RJ.
os visitantes Fonte:
do Portal Geledés.
Ao prosseguir você aceita os termos de nossa
http://conaq.org.br/coletivo/mulheres/ Foto: Ana Carolina Fernandes.
Política de Privacidade.
- + = OK Ver Política de Privacidade

https://www.geledes.org.br/devir-quilomba-e-a-feminizacao-do-conceito-de-quilombo-no-brasil/ 1/6
17/11/2022 18:25 Devir quilomba e a feminização do conceito de quilombo no Brasil

Pushnews Esses deslocamentos de sentido materializam-se em inúmeros trabalhos acadêmicos,


documentários e matérias jornalísticas. Destaca-se, em 2020, a publicação do livro Mulheres 
quilombolas: territórios de existências negras femininas. A obra coletiva escrita por dezoito
mulheres quilombolas apresenta teorizações por meio dos enfrentamentos sobre as violências
que incidem sobre seus corpos e suas comunidades. Nas últimas três décadas, as mulheres
quilombolas deslocaram-se da invisibilidade, ocupando a cena pública como autoras de suas
histórias.

Quilombo de São José da Serra (Valença) – Encontro Jongo da Serrinha e comunidade de São José da
Serra (2014); Fonte: Arquivo Pessoal; Foto: Isabel Nascentes 

Fruto desse contexto, “devir quilomba” é um conceito que emerge como desdobramento da tese
Territórios de afetos: práticas femininas antirracistas nos quilombos contemporâneos do Rio de
Janeiro, defendida, por mim, em 2018, no programa de Pós-Graduação em História da Unicamp.
O arco temporal da pesquisa parte do fim de 1980, quando foi criado o direito territorial para as
comunidades remanescentes de quilombo, chegando até a primeira década dos anos 2000,
quando ocorre, de forma simultânea e paradoxal, a ampliação de políticas públicas em
territórios quilombolas e o crescente processo de burocratização de acesso ao direito territorial.
Por fim, a pesquisa descreve o cenário de desmonte das políticas públicas entre os anos de 2016
e 2017, depois do golpe parlamentar. Ao longo da pesquisa foram entrevistadas 48 pessoas,
especialmente mulheres. Além das fontes orais, construídas ao longo da pesquisa, foram
analisados relatórios de identificação antropológicos, documentos cartoriais, legislações sobre a
questão territorial quilombola, projetos de lei, textos jornalísticos, documentos fílmicos, bem
como a análise do acervo de história oral do Laboratório de História Oral da Universidade
Federal Fluminense (Labhoi/UFF).

Por que devir quilomba? Devir, conceito filosófico que pressupõe mudança, acrescido da palavra
quilomba, evoca as condições históricas que produziram a feminização da ideia de quilombo,
possibilitando a visibilidade contemporânea das mulheres quilombolas na luta pela terra. Vale
destacar que o processo de feminização não pode ser confundido e identificado com a palavra
mulher, mas diz respeito à valorização de aspectos culturais atribuídos à cultura feminina, como
a ética do cuidado de si, do outro e do espaço onde se vive. 

Em termos
Utilizamos cookies históricos,
para fornecer até o início
uma melhor dos anos
experiência 1990,
para os o termo
visitantes quilombo,
do Portal atávico
Geledés.
Ao à experiência
prosseguir deos termos de nossa
você aceita
Palmares, era identificado como um atoPolítica
de resistência pensado nos termos da cultura masculina
de Privacidade.
- + =
(guerra, violência, virilidade). FalarOK
de quilombo significava tratar dos heroicos atos de homens
Ver Política de Privacidade

https://www.geledes.org.br/devir-quilomba-e-a-feminizacao-do-conceito-de-quilombo-no-brasil/ 2/6
17/11/2022 18:25 Devir quilomba e a feminização do conceito de quilombo no Brasil

Pushnews
como Zumbi dos Palmares, Ganga Zumba, Manoel Congo, entre outros. Ocorre que os heróis são
geralmente construídos e perpetuados dentro de papéis convencionais de gênero. Até a década 
de 1990, as experiências das mulheres quilombolas foram invisibilizadas ou narradas de forma
tímida pela historiografia brasileira. Ademais, até aquele momento, os quilombos eram pensados
como espaços isolados de negros fugidos. 

Não por acaso, em 1988, quando se criou na Constituição Federal o direito territorial dos
chamados “remanescentes das comunidades de quilombos”, a resistência quilombola era
pensada por meio de uma perspectiva masculina e bélica. Tratando-se da produção
historiográfica, destaco a pesquisa da historiadora Beatriz Nascimento que, no fim dos anos
1970, apontava outros aspectos da resistência quilombola. Dentre eles, a importância do que ela
definiu como “paz quilombola”. Para a autora, um quilombo como o de Palmares, entre um
ataque e outro da repressão oficial, mantinha-se ora retroagindo, ora se reproduzindo. E os
tempos de paz eram fundamentais para a longevidade dos quilombos, porque permitiam a
reprodução dos seus modos de vida. 

De todo modo, em 1988, a promulgação do direito quilombola, na forma do artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (adct), foi uma vitória da luta antirracista, já que, de
forma inédita, a legislação concedia o direito a setores da população negra. Tratava-se de uma
vitória histórica das organizações do movimento negro. Entretanto, depois de quase uma década
desde a criação do dispositivo jurídico, a aplicabilidade da lei ainda esbarrava na definição
tradicional de quilombo, entendido como um lugar isolado onde os negros se refugiavam.
Acreditava-se, então, que existiam poucos grupos que poderiam reivindicar esse direito. Nesse
sentido, a luta pela terra mesclava-se a luta pela ressemantização do conceito de quilombo. 

No Rio de Janeiro, a mobilização política provocada pela comunidade de Campinho da


Independência a levou a inclusão do grupo, ao final de 1997, na lista das 50 comunidades que a
Fundação Cultural Palmares (FCP) prometia reconhecer como remanescente de quilombos em
todo o país. Já em 1998, o Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ)
promoveu a primeira reunião com a finalidade de dar prosseguimento à regulamentação
fundiária de Campinho. Para tanto, estabeleceu-se um convênio com a FCP para a identificação
das áreas. Em 1999, além do laudo sobre Campinho (a cargo de Neusa Gusmão), outros cinco
laudos antropológicos levaram ao reconhecimento oficial de cinco comunidades: Rasa, Santana,
Caveira, São José da Serra e Bracuí. Havia uma distância entre o conceito de quilombo proposto
na legislação da época e as trajetórias das comunidades. Nenhuma das seis comunidades que
reivindicavam o direito se originou a partir de escravos fugidos. Algumas delas foram formadas
pela desagregação de antigas fazendas, compostas por grupos de ex-escravos que
permaneceram em suas terras abandonadas pelos antigos senhores (Caveira, Rasa, Santana), e
outras foram constituídas por meio de doações dos antigos proprietários, algumas vezes no
momento da abolição (Campinho, Bracuí e São José). 

Foi naquele contexto, de disputa discursiva sobre os significados quilombos, que mulheres
entram em cena, ou melhor, nos documentos oficiais. Elas e a cultura feminina foram sendo
selecionadas como os novos símbolos da terra, o que se reforçou com o fato de que, na batalha
pela ressemantização do termo quilombo, reivindicava-se as relações que se estabelecem com o
território – e não somente a continuidade histórica. Esse processo pode ser visualizado por meio
da análise de alguns relatórios antropológicos produzidos, na década de 1990, no estado do Rio
Utilizamos cookies para fornecer uma melhor experiência para os visitantes do Portal Geledés.
Ao prosseguir você aceita os termos de nossa
de Janeiro. Política de Privacidade.
- + = OK Ver Política de Privacidade
Comunidade Campinho da Independência – Paraty
https://www.geledes.org.br/devir-quilomba-e-a-feminizacao-do-conceito-de-quilombo-no-brasil/ 3/6
17/11/2022 18:25 Devir quilomba e a feminização do conceito de quilombo no Brasil

Pushnews
Em 1998, Neusa Maria Gusmão, antropóloga do departamento de Ciências Sociais da USP,
transformaria seu trabalho de quase uma década no relatório antropológico da comunidade 
negra de Campinho da Independência. Sua tese de doutorado sobre o grupo havia sido
defendida em 1996 e publicada pela Fundação Cultural Palmares, sob o título “Terra de Pretos,
Terra de Mulheres”. Nas memórias de homens e mulheres do então bairro negro rural Campinho
da Independência, três mulheres apareciam recorrentes na fala de seus colaboradores: Vovó
Antonica, Vovó Luiza e Vovó Marcelina. Consta que a doação das terras foi feita pelos antigos
senhores para as três ex-escravizadas da casa-grande. Além disso, junto às três primeiras,
Gusmão encontrou mulheres que se destacavam em todas as gerações, lembradas em razão
“dos bens e dons herdados”, que são as “Tias” ou “Madrinhas”. Em suas palavras, trata-se de
“uma terra uterina onde as mulheres daquela comunidade passam a ser suportes de reprodução
da vida camponesa”. Assim, a terra não é vista como um espaço que poderia ser transformado
em mercadoria, mas como um território concernente à ancestralidade cuja linhagem é feminina.

Comunidade de Caveiras – São Pedro da Aldeia

A imagem feminina foi também empregada pelo sociólogo José Paulo Freire de Carvalho para
construir o conceito em Filhos da Terra: comunidade Negra Rural de Caveiras – São Pedro da
Aldeia, presente no relatório antropológico que produziu em 1998. A principal testemunha de
Carvalho foi Rosa Geralda da Silveira, tomada como uma “guardiã da ancestralidade” e da
memória que narra e reconstrói as relações de parentesco para o pesquisador. Rosa Silveira, na
época, era respeitada pela comunidade pelo seu engajamento na luta pela terra em virtude de
sua atuação no Sindicato dos Trabalhadores Rurais. É por meio da noção de “filhos da terra” que
o sociólogo usa a metáfora do útero para falar da terra. 

Quilombo de São José da Serra (Valença) – Encontro Jongo da Serrinha e comunidade de São José da Serra (2014); Fonte: Arquivo
pessoal; Foto: Isabel Nascentes.

Comunidade de São José da Serra – Valença

Utilizamos cookies para fornecer uma melhor experiência para os visitantes do Portal Geledés.
Ao prosseguir você aceita os termos de nossa
No relatório antropológico de São José da Serra, comunidade situada no Sul Fluminense do
Política de Privacidade.
- + = do Rio de Janeiro, produzido
estado
OK
em 1998 por Hebe Mattos e Lídia Meirelles, Zeferina do
Ver Política de Privacidade
Nascimento foi uma das principais colaboradoras da pesquisa para a construção histórica.
https://www.geledes.org.br/devir-quilomba-e-a-feminizacao-do-conceito-de-quilombo-no-brasil/ 4/6
17/11/2022 18:25 Devir quilomba e a feminização do conceito de quilombo no Brasil

Pushnews Depois da morte de D. Zeferina, ela se torna um ícone para a comunidade. Além do seu papel
como mãe de santo no terreiro de umbanda da comunidade, D. Zeferina é apontada por vários 
moradores de São José da Serra como aquela que, além de introduzir as crianças no jongo,
mudaria as relações de gênero dentro da comunidade. 

Em conjunto nos três relatórios analisados, apesar dos diferentes estilos narrativos e escolhas
teóricas, é possível visualizar que a seleção das mulheres e das práticas femininas fazem parte
de um contexto de feminização da cultura que estava em curso: um movimento influenciado
pelas lutas feministas, que afetaram os valores, os comportamentos e os sistemas de
representação. A feminização é um processo que favorece que as novas identidades sejam
construídas por meio de bases femininas.

Homem, negro, viril? Na década de 1990, no Rio de Janeiro, essas imagens não convergiam com
os novos símbolos que passaram a ser selecionados pelas comunidades quilombolas. Nesse
sentido, as transformações semânticas em torno da ideia de quilombo não podem ser
dissociadas de um processo mais amplo de feminização da cultura, cujos desdobramentos
podem ser visualizados atualmente de forma mais expressiva.

Assista ao vídeo da historiadora Mariléa de Almeida no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo deste texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na
sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI08 ( 9º ano: Identificar as
transformações ocorridas no debate sobre as questões da diversidade no Brasil durante o século
XX e compreender o significado das mudanças de abordagem em relação ao tema; (EF09HI09)
(9º ano: Relacionar as conquistas de direitos políticos, sociais e civis à atuação de movimentos
sociais).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas


expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de
processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais);
EM13CHS103 (Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a
processos políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na
sistematização de dados e informações de diversas naturezas (expressões artísticas, textos
filosóficos e sociológicos, documentos históricos e geográficos, gráficos, mapas, tabelas,
tradições orais, entre outros).

Mariléa de Almeida

Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); E-mail:


marileaatm@gmail.com; Instagram: @almeidamarileade.
Utilizamos cookies para fornecer uma melhor experiência para os visitantes do Portal Geledés.
Ao prosseguir você aceita os termos de nossa
Política de Privacidade.
- + **=ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E
OK Ver Política de Privacidade
NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO
https://www.geledes.org.br/devir-quilomba-e-a-feminizacao-do-conceito-de-quilombo-no-brasil/ 5/6
17/11/2022 18:25 Devir quilomba e a feminização do conceito de quilombo no Brasil

Pushnews PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE
NA SOCIEDADE.  

Utilizamos cookies para fornecer uma melhor experiência para os visitantes do Portal Geledés.
Ao prosseguir você aceita os termos de nossa
Política de Privacidade.
- + = OK Ver Política de Privacidade

https://www.geledes.org.br/devir-quilomba-e-a-feminizacao-do-conceito-de-quilombo-no-brasil/ 6/6

Você também pode gostar