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Descrição Performance O Mundo...

ou Da domesticação

Depois, resolve sentar-se em um banco para acompanhar uma apresentação teatral que
está sendo realizada para crianças e, aos poucos, diminui o ritmo das batidas de pé e
aumenta o tempo entre uma olhada e outra no relógio. O banco no qual se sentou está
localizado na lateral do público de modo que a sua visão frontal é a lateral esquerda de
todos que acompanham ao espetáculo. Visivelmente sua atenção não é para as atrizes e
os atores, mas para as reações do público de crianças: uma menina assustada que agarra
com força os braços da mãe, outra menina que gargalha mesmo depois que a piada já
tinha acabado, um menino elétrico que alterna entre ver o espetáculo e correr pela praça
com passos mal equilibrados, outro menino que recusa o chamado para participar da
cena, uma menina que abre a expressão e aceita o chamado, outro menino que dorme no
colo. Aplausos. É o fim do espetáculo. Ainda à espera de algo ou de alguém, o homem
continua sua caminhada a observar as aglomerações das mesas de bar, as rodas de
fumantes nos gramados, o vai-e-vem dos skatistas, os amassos de casais nos cantos
escuros da praça, os vendedores ambulantes, a ronda policial, os barulhos públicos.
Para. Pega o telefone celular e liga para alguém enquanto bate os pés no chão. Desliga.
De longe, nota uma mulher amarrada num poste.

18/06/21

Elas compartilham entre si a força do desencanto, que se manifesta nas formas do


encarceramento, da tortura, do estupro, da domesticação e do trabalho escravo. Todas,
formas nas quais o corpo é o lugar de ataque. Nesse sentido, a violência reduz o corpo a
condição de desencante, pois os atos de violência não permitem que ele vibre em outra
sintonia que não a do abuso.

02/07/21

Do assassinato

Uma mulher

Do encarceramento

Da tortura

Do estupro
Da domesticação

Um homem caminha no entardecer de um domingo pela Praça Roosevelt, em


São Paulo, no ano de 2018. Entre olhadas no relógio e batidas de pé, aparentemente,
espera por algo ou por alguém enquanto vai de um ponto a outro do espaço público. De
passo em passo, observa – à distância – as conversas das mesas de bar, as rodas de
fumantes nos gramados, o vai-e-vem dos skatistas, os amassos dos casais nos cantos
escuros da praça, as reações do público de crianças que participam de um espetáculo
teatral, os vendedores ambulantes, a ronda policial, o barulho público - o ritmo das
batidas de pé diminui e aumenta o tempo entre uma olhada e outra no relógio. Para.
Ainda à espera, ele pega o telefone celular e liga para alguém. Desliga. De longe, nota
uma mulher amarrada num poste. O homem caminha em direção a ela. A mulher está
vestindo calça e blusa sociais e saltos altos e seu corpo está atado ao poste nos pulsos,
tronco e tornozelos por fitas adesivas brancas. No canto direito dos pés da moça, uma
rosa vermelha. Na boca, batom vermelho. Percebendo o interesse do homem, ela inicia
uma comunicação: olhos arregalados, bochechas cheias de ar, cabeça em movimento
agitado, nenhuma palavra. Ele vai se aproximando dela e para à sua frente. Examina a
mulher de cima a baixo e repetidas vezes balança a cabeça no movimento do “sim”
enquanto sorrir graciosamente. Nenhuma palavra. Depois, os dois conversam pelo olhar
por alguns segundos. Ela pedindo socorro, ele de braços cruzados. Um skatista atravessa
a conversa e diz “vou tirar ela daí”. A mulher balança a cabeça no movimento do “sim”.
Ele libera o corpo da moça das fitas adesivas brancas e recebe de suas mãos a rosa
vermelha que estava no chão. Eles se abraçam e se vão. O homem permanece
esperando, agora, boquiaberto.

Do trabalho escravo

...

sistema de produção de morte operacionalizado pela violência em duas dimensões:


material e imaterial.

Embora uma das faces mais explícitas da colonialidade seja o uso da violência
para atacar os corpos, ela se revela em uma outra dimensão igualmente assombrosa: o
aniquilamento de diversos princípios explicativos de mundo. Desse modo, a
colonialidade não só opera os corpos pela lógica do terror como também restringe as
possibilidades dos viventes de saída de uma situação em que vivenciam a violência.

Basta atentarmos para as imagens de violência que abrem esse trabalho e fazermos um
exercício de imaginação sobre quais características (étnicas, raciais, de gênero, sexuais,
ideológicas, culturais, religiosas e outras possíveis) teriam esses corpos que
estariam/seriam encarcerados, torturados, estuprados, domesticados e forçados ao
trabalho escravo atualmente em nosso país. Evidente que ne

de encarceramento, tortura, estupro, domesticação e trabalho escravo que abrem esse


trabalho e fazermos um exercício de imaginação sobre

Isso ocorre pois a colonialidade é fundada sob pactos econômicos e culturais que
afirmam a imagem dos colonizadores eurocristãos. Antonio Bispo dos Santos, o nego
bispo, filósofo e quilombola, nesse sentido, aponta para

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Lixo 01/07

A violência, nesse sentido, é uma via pela qual corpos são gerados e gerenciados pela
lógica do medo, do terror, da privação dos sentidos, do abuso e, no limite, da morte.

meio de ataque pelo qual corpos são operados pela lógica do medo, do terror, da
privação, do abuso e, no limite, da morte. Eis aí uma dimensão do que chamaremos aqui
de colonialidade: o ataque aos corpos pela força da violência.
Basta atentarmos para as situações de violência expressas em cada imagem que abre
esse trabalho e refletir sobre

Basta atentarmos para as imagens que abrem esse trabalho e refletir sobre quais

que os viventes em situação de

Desembarcado por aqui há pouco mais de 5 séculos, o contrato social da


colonialidade é firmado sob pactos que visam garantir a expansão econômica e cultural
dos colonizadores. Ao chegarem por aqui, trataram logo fazer um inventário dos
elementos naturais presentes e das gentes que já habitavam por essas terras. O
inventário é conhecido como o primeiro documento escrito da história do Brasil e
atende pelo nome de “A Carta de Pero Vaz de Caminha”. Nela, o escrivão da armada de
Pedro Alvares Cabral reporta ao rei de Portugal D. Manuel I, reiteradas vezes, sobre os
modos de vida dos povos originários e a possibilidade de haver nessas terras elementos
minerais de interesse expropriatório como o ouro e a prata. Chama a atenção a
adjetivação que Pero Vaz de Caminha atribui aos povos habitantes dessas terras que são
referidos no escrito como inocentes, sem fé, gente boa e gente de simplicidade. Não
pretendo entrar numa análise detalhada sobre a carta, mas curioso notar que o primeiro
documento escrito que conta a história oficial do Brasil seja de uma perspectiva dos
colonizadores. Na realidade, isso revela muito sobre a perpetuação da colonialidade, ao
mesmo tempo, como uma política de adequação da matéria/dos corpos e uma política de
morte de diversos princípios explicativos de mundo.

Pactos

Ataque à matéria

Ataque à epistemologias diversas


Basta observarmos atentamente a história oficial do processo de colonização para nos
depararmos com essa política: chama-se “Índio” um imenso conjunto de
autodenominações dos povos originários que possuem diversas culturas, hábitos,
crenças, línguas; assim como “Negro” é um termo empregado para tratar de outro
imenso conjunto de autodenominações dos povos de África que possuem diversas
culturas, hábitos, crenças, línguas. Do mesmo modo, observamos essa política de
adequação da matéria na atualidade: refere-se a natureza expressa na diversidade
animal, vegetal, mineral, hídrica e climática como “recurso” que está a serviço do
“desenvolvimento”; bem como as alcunhas de “bandido”, “vagabundo”,
“endemoniado”, “comunista” para uma diversidade de seres, saberes, práticas, crenças,
culturas que destoam do que é oficial.

28/07/2021

Cosmovisão é um conceito apresentado pelo filósofo quilombola Antonio Bispo


dos Santos, conhecido por Nego Bispo, que diz respeito a organização de modos de vida
de diferentes povos. Para ele, os produzidos da colonialidade devem ser pensados a
partir do encontro de diferentes cosmovisões. De um lado, a cosmovisão colonial, que
organiza os modos de vida dos colonizadores cristãos vindos do ocidente europeu. De
outro, a cosmovisão contra-colonial, que organiza os modos de vida dos povos afro-
pindorâmicos que embora diversos entre si compartilham de princípios explicativos de
mundo comuns. É possível pensar, nesse sentido, a colonialidade como um projeto de
dominação por meio da imposição de modos de organização e gestão da vida dos
colonizadores aos povos colonizados. Nego Bispo nos convida a entender melhor as
bases sobre as quais as cosmovisões dos cristãos do ocidente europeu e dos povos afro-
pindorâmicos se alicerçam para compreendermos melhor as relações entre elas no
processo de colonização.

De saída, Nego Bispo chama a atenção para que o fato de que uma das primeiras
ações dos colonizadores foi restringir as várias autodenominações dos povos originários
daqui apenas ao termo “índio” assim como cunharam o termo “negro” para os diferentes
povos originários de África. Essas restrições impõem sobre esses povos uma
denominação generalizada quebrando as suas identidades com o objetivo de coisificá-
los/desumanizá-los. Reduzindo a diversidade dos povos afro-pindorâmicos aos termos
“índio” e “negro”, os colonizadores estavam domesticando para que diferentes
existências coubessem em seu projeto colonial. Para além dos interesses de exploração
econômica do ocidente europeu, o projeto colonial foi fundado com a finalidade de
projetar a cosmovisão daquele povo sobre os demais. Nego Bispo nos mostra que
documentos oficiais da Igreja Católica chamados de Bulas Papais autorizam
expressamente a invasão, perseguição, captura, submissão dos povos pagãos.
Considerados “inimigos de cristo”, a orientação papal é para que as expedições
ultramarinas deveriam tomar para si suas propriedades e reduzi-los à escravidão
perpétua.

Para compreendermos melhor o porquê dessas orientações, será necessário


recorrer à Bíblia para dialogar com os reais fundamentos da cosmovisão dos
colonizadores. Veja:

Javé deus disse para o homem: “já que você deu ouvidos à sua
mulher e comeu da árvore cujo fruto eu lhe tinha proibido
comer, maldita seja a terra por sua causa. Enquanto você viver,
você dela se alimentará com fadiga. A terra produzirá para você
espinhos e ervas daninhas, e você comerá a erva dos campos.
Você comerá seu pão com o suor do seu rosto até que volte para
terra, pois dela foi tirado, você é pó e ao pó voltará” (GENESIS
3:17-18)

Para castigar o seu povo pela desobediência, o Deus da Bíblia estabelece uma
relação de cansaço entre eles e a terra. A partir de então, só poderiam se alimentar com
os alimentos produzidos de seu próprio suor. Nessa perspectiva, um dos principais
fundamentos da cosmovisão dos colonizadores é compreender o trabalho como
instrumento de castigo. Desterritorializados do Paraíso por seu próprio criador, o povo
do Deus da Bíblia fica aterrorizado com a relação fatigante com a terra, o que Nego
Bispo chama de Cosmofobia.

Assim, ao encontrarem com os povos contra-coloniais,

Expulsos do Paraíso por seu próprio criador, o povo do Deus da Bíblia fica aterrorizado
com

o fundamento da cosmovisão dos colonizadores é compreender o trabalho como


instrumento de castigo.

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