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Capítulo 5

A Imagem Arquetípica do Sol Negro do Não-Self

Marlan . S. (2005) The Black Sun the alchemy and art of darkness texas a & m university press.

O que é a Escuridão Divina?


—PseudoDionísio, A Teologia Mística

Começo com o nada. Nada é o mesmo que plenitude.


— C. G. Jung, Os Sete Self/Sermõ es aos Mortos

Até este ponto, temos considerado o Sol niger, o sol negro, como uma imagem poderosa e
importante do inconsciente e temos traçado sua aparência em uma ampla variedade de
contextos, desde a ficatio alquimica morti, em experiências literais e simbó licas de morte e
morrer, até o brilho paradoxal e a luminescência do lú men naturae em imagens de regeneraçã o.
Como a ideia de Jung do Self/Ser, Sol niger também ex-prime uma coincidentia oppositorum –
um sol negro que brilha contém o jogo paradoxal de luz e escuridã o, vida e morte, e espírito e
matéria. Para Jung, o sol era um “símbolo da fonte da vida e da totalidade ul-timate do homem”,
como indicado na imagem alquímica da solificatio, um processo que corresponde à iluminaçã o
ou iluminaçã o. 1 Na placa colorida 13, uma miniatura do século XVII, a solificatio
É representado como um alquimista cujo corpo está “cheio de luz”, alterando o objetivo
final da alquimiaIsso representa um dos muitos símbolos importantes do Self/Ser. 3
No entanto, para que o sol expresse adequadamente a totalidade humana, ele nã o pode ser
apenas uma imagem final da luz; ela também deve incluir a escuridã o como um aspecto
essencial de sua natureza. O sol negro poderia muito bem ser considerado para expressar essa
dimensã o paradoxal de luz e escuridã o e poderia, em ú ltima aná lise, ser entendido como um
arquétipo do nã o-Self. Este nã o-Self nã o deve ser considerado antitético ao Self ou como uma
entidade independente de qualquer tipo. Em vez disso, expressa um misterioso e paradoxal
desconhecimento que estava no centro da tentativa original de Jung de descrever a totalidade
incompreensível da psique.
Como o sol, a imagem de Cristo representava o Self/Ser para Jung. Ele escolheu a figura de
Cristo porque é “o mito ainda vivo de nossa cultura”, e muitas imagens significativas a cercam. 4
Também como o sol, a imidade de Cristo tornou-se identificada principalmente com a “luz”. De
fato, os primeiros cristã os tiveram alguma dificuldade em distinguir o sol nascente de Cristo. 5
Jung afirma que Cristo representa a “totalidade de um tipo divino ou celestial, um homem
glorificado, um filho de Deus … Sem manchas de pecado”. 6 No entanto, para ele, esse conceito
carece de totalidade no sentido psicoló gico. “Como a Gnostics disse, [ele] deixou de lado sua
sombra e, assim, conduz uma saída separada que se manifesta na vinda do anticristo.” 7 Em
outras palavras, o princípio das trevas tem que se manifestar de alguma forma.
Jung percebeu isso, como indicado nesta declaraçã o a respeito do Self/Ser. Nã o podemos
ignorar a sombra que pertence a esta figura de luz e sem a qual lhe falta um corpo e com ela a
humanidade. “Luz e sombra formam uma unidade paradoxal dentro do eu empírico.” 8
Para Jung, em ú ltima aná lise, o conceito cristã o se torna “irremediavelmente” divididos em
duas metades irreconciliá veis: os ú ltimos dias trazem um dualismo metafísico, a saber, uma
separaçã o final do reino dos céus do mundo flamejante da condenaçã o. 9 Uma espiritualidade
ideal que se esforça pelas alturas certamente se chocará com a corrente materialista ligada à
Terra do mundo moderno. Em suma, a figura de Cristo como uma imagem do Self “carece da
sombra, que lhe pertence”. 10
Para Jung, o Self nã o pode ser limitado a imagens de luz nem dividido.
Fora de sua sombra. O Self é um “conceito transcendente… Isso… Ex-prime a soma do
conteú do consciente e inconsciente” e, como tal, “só pode ser descrito na forma de antimô nio”.
11
“Para este filho, [o processo de] individuaçã o é um mysterium coniunctionis [uma misteriosa
conjunçã o de opostos], na medida em que o Self é experimentado em uma uniã o nupcial de
metades opostas.” 12 O surgimento da figura de Cristo incorporou a necessidade de alcançar essa
uniã o, mas para Jung a figura fica aquém da meta. 13
O ú ltimo trabalho de Jung, o Mysterium Coniunctionis: An Inquiry into the Separação e
Síntese de Opostos Psíquicos em Alquimia, é dedicado à tarefa de descrever sua ideia de uma
uniã o mística. A uniã o de opositores é uma ideia atraente porque implica plenitude psicoló gica,
mas a enormidade da luta envolvida em qualquer envolvimento com a alteridade e com a
escuridã o do inconsciente se perdeu à medida que as teorias de Jung se tornam assimiladas e
tomadas como garantidas. Esse ponto de vista foi expresso pelo analista junguiano Neil
Micklem, que enfatiza a importâ ncia do paradoxo em vez da unidade e observa que o paradoxo
geralmente é encoberto à medida que nossa atençã o se move em direçã o à ideia mais atraente
da uniã o dos opostos. 14 O tema da unidade Dos opostos chama a atençã o das pessoas porque
“aponta no Direçã o da totalidade”,15 e a ideia de totalidade podem facilmente se tornar uma
maneira abreviada de passar por cima de tensõ es significativas. Quando isso acontece, o ideal
de totalidade pode perder seu mistério e poder e se tornar um clichê ou caricatura. Micklem
escreve: “Enquanto estivermos fixados em mak-ing todo, é prová vel que percamos esse
paradoxo”. 16
No entanto, mistério e paradoxo sã o essenciais para entender o que Jung Chama o Self/Ser.
Para Jung, “o paradoxo é característico de todas as situaçõ es transcendentais”. 17 Isto é “porque
só ela dá expressã o adequada à sua natureza indescritível”. 18 Onde quer que o arquétipo do Self
predomi-nate, há sempreverdades conflitantes, e a histó ria do pensamento filosó fico e religioso
reflexivo está repleta de diversas tentativas de reconciliar tais diferenças. Apenas algumas
dessas tentativas incluem o caminho do meio do budismo, a média á urea de Aristó teles, as
antinomias racionais de Kant, a dialética de Hegel, o materialismo dialético de Marx, o eros e
thanatos de Freud, a tensã o de Ricouer entre suspeita e crença e a différance de Derrida, todos
os quais lutam com o problema em sua característica.
Acteristicamente different ways. Para a maioria destes, uma simples mas-tery racional nã o
é uma resoluçã o adequada para o problema dos opostos, o que parece exigir uma tentativa
contínua de expressar a complexidade da alma. Micklem escreve que “O paradoxo enriquece,
porque apenas o paradoxo se aproxima de compreender a plenitude da vida, e sem ela somos
interiormente empobrecidos Quando falamos de paradoxo, queremos dizer o Presença de
quaisquer duas verdades conflitantes presentes ao mesmo tempo em consciência”. 19
Manter duas verdades conflitantes na consciência ao mesmo tempo Cria uma enorme
tensã o. Quando confrontadas com tal situaçã o, a maioria das pessoas tenta aliviar a tensã o
fundindo o paradoxo em uma unidade do mesmo, mas na verdade cada verdade deve ser
preservada e precisa de uma diferenciaçã o cuidadosa até que afunçã o transcendente realmente
produza uma soluçã o simbó lica. Os símbolos tornam-se facilmente idealizaçõ es intelectuais.
Para ilustrar ainda mais a crítica, Micklem aponta para a imagem do hermafrodita na ú ltima
impressã o do Rosarium Philosophorum no ensaio de Jung “A Psicologia da Transferência” e
observa que a maioria das pessoas simplesmente o vê como um símbolo que representa uma
totalidade integrada sem realmente se deixar experimentar seu cará ter grotesco e monstruoso.
20
Em suma, para Micklem, o coniunctio, ou recOnciliaçã o de opostos, é uma monstruosidade
quase insuportá vel para o Ego a tolerar. 21 No entanto, é importante enfrentar tal experiência se
quisermos ter algum reconhecimento genuíno do Self/Ser. As tensõ es de que estamos falando
“nos destroem, mas também nos fazem”, e assim somos pegos em um estranho paradoxo. 22 Tal
monstruosidade está presente em nossas doenças e sintomas, e é importante nã o se afastar
dela, porque é essencial para qualquer senso de totalidade diferente além de qualquer fantasia
idealizada do ego. Como observamos, para Jung, mesmo a figura de Cristo nã o poderia conter as
dimensõ es mais sombrias da psique, e, pelo menos para alguns pensadores cristã os, o
pensamento de ligar Cristo e antiCristo em íntima conexã o é de fato uma ideia monstruosa.
A questã o da monstruosidade e da psique cristã também é discutida por Edinger, que
aborda a questã o do que foi deixado de fora do simbolismo cristã o à medida que se
desenvolveu nos ú ltimos dois mil anos. 23 Ele se volta para a imagem de Reusner, Pandora, que
ele acredita conter a essência da alquimia e que, para Jung, era a portadora daqueles
psicopatas.
Elementos ló gicos desviados pelo cristianismo e que serviram como contrapeso a ele.
Na figura 5.1 vemos a assunçã o de Maria ao céu e sua coroaçã o. Na parte inferior da
imagem pode-se ver o que Edinger chama de nascimento de um monstro. O que é tã o chocante
para Edinger é a justaposiçã o da imagem espiritual da suposiçã o com “a imagem do nascimento
de um monstro a partir de um pedaço de matéria”. 24 Toda a imagem reflete a luta para integrar
tanto o feminino quanto o princípio de Materialidade na visã o cristã . A imagem é monstruosa
aos olhos cristã os, e para Edinger a imagem inferior de um nascimento da matéria é “como o
ovo de um cuco que foi colocado no ninho de outra pessoa”. O ovo foi colocado no ninho da
visã o cristã , e “algo inesperado vai eclodir dele!” 25
A placa de cor 14 é uma imagem do inconsciente reproduzida a partir de De Jung Estudos
Alquímicos na forma de Mercú rio, cujas três cabeças extras representam Luna, Sol e uma
coniunctio de Sol e Luna na extrema direita. 26 A unidade dos três é simbolizada por Hermes,
que representa a quaternidade “na qual a quarta é ao mesmo tempo a unidade dos três”. 27 Esta
imagem capta a qualidade do paradoxo e da mon-strosidade enfatizada por Jung, Micklem, e
Edinger. É uma unificaçã o simbó lica, mas que nã o é facilmente assimilá vel pelo ego. Esta
imagem pode muito bem ser considerada um exemplo de uma transformaçã o em curso na
imidade divina da psique ocidental em virtude do processo alquímico que foi inserido nela, um
processo que dá origem a novas possibilidades. A nova imagem de Deus anuncia a importâ ncia
nã o apenas de incorporar o feminino e a matéria em nossa visã o do espírito, mas também de “a
descoberta do inconsciente e o processo de individuaçã o”. 28
Em um nível pessoal, também significa todas as lutas dos encarnados.
Existência: “todo fato desagradá vel” da vida comum. Edinger usa a eloquência de
Shakespeare para descrever os fatos dolorosos: “As fundas e flechas da fortuna ultrajante,… Os
chicotes e os desprezos do tempo, o mal do opressor, a contumely do homem orgulhoso, as
dores do amor destituído, o atraso da lei, a insolência de o ffice, e os desprezos que o mérito
paciente de th’ indigno toma, [deixando-nos] a grunhidos e suar sem uma vida cansada.” 29
Figura 5.1. Extração de Mercúrio e a coroação da virgem, 1582. De Edward Edinger, The
Mysterium Lectures: A Journey through Mysterium Coniunctionis de C. G. Jung, p. 133.

Se alguém é honesto, esses insultos da vida nã o podem simplesmente ser ignorados em


Qualquer transcendência idealizada. Tais experiências nos ferem, ferem, enfurecem e, à s vezes,
nos deprimem e matam, e ainda assim devem ser reconhecidas, negociadas e conscientizadas
se alguma consciência real do Self deve ocorrer.
Edinger observa, como Jung e Micklem fizeram, que “a experiência viva do Self é uma
monstruosidade. É uma uniã o de opostos que choca o ego e o expõ e à angú stia, desmoralizaçã o
e violaçã o de toda consideraçã o razoá vel. 30 É uma violaçã o de tudo o que esperamos como
natural, razoá vel e normal. Na figura 5.2, Edinger nos dá um sentimento para isso nesta imagem
da unidade dos opositores. Na alquimia, o aspecto monstruoso da conjunçã o é particularmente
enfatizado quando os opostos que sã o reunidos nã o sã o
Figura 5.2. União de opostos como monstruosidade, 1509. De Edward Edinger, The
Mysterium Lectures: A Journey Through C. G. Jung’s Mysterium Coniunctionis, p. 137.

A princípio bem diferenciado. Esta situaçã o é referida como um monstrum, ou unidade


prematura, isto é, qualquer unidade que nã o se diferencie em realidades distintas. 31
Esta qualidade prematura da visã o pode ser verdadeira mesmo para aqueles que rari-
Estados espirituais descritos nas “imagens” da “luz pura”, do “vazio” ou da “bem-aventurança
que se funde”. 32 Como afirma Hillman:

Percorrer o mundo vendo sua ú nica verdade subjacente em revelaçõ es sin-crô nicas, sua
harmonia pré-estabelecida, de que Deus é tornar-se homem e o homem tornar-se Deus, que o
interior e o exterior sã o um, que a mã e é filha e filha mã e, puer é senex, senex puer, que a
natureza e o espírito, o corpo e a mente, sã o dois aspectos da mesma energia invisível ou
implicam ordem, negligenciando assim as distinçõ es agudas unidas por essas conjunçõ es, de
modo que a nossa consciência, nã o importa quã o sá bio e maravilhoso, é, portanto, prematuro e
monstruoso. E por monstruoso, alquimia significa infrutífero, estéril, sem problema33.

Ter uma conjunçã o produtiva requer que, mesmo quando a junçã o de opostos nã o é
dramaticamente monstruosa, cada figura do emparelhamento permanece teimosamente
diferente. Hillman descreve assim o que uma conjunçã o nã o é:
“Nã o é uma mistura equilibrada, um compó sito adicionando isso à quilo; nã o é uma mistura
de diferenças substanciais numa compromessa, num arranjo; nã o é uma junçã o simbó lica de
duas metades ou duas coisas em uma terceira”. 34

Aqui Hillman impulsiona nossa ideia tradicional junguiana do Resultado simbó lico da
funçã o transcendente. Ele enfatiza que a resistência teimosa das diferenças e
incomensurabilidades pode significar que o paradoxo, o absurdo e a enormidade aberta sã o
mais característicos de uma uniã o do que a totalidade andró gina ou a harmonia do unus
mundus, ou mundo unitá rio. A conjunçã o alquímica além desses simples monstrums é mais
como um trocadilho absurdo ou a alegria de uma piada do que a felicidade dos opostos
transcendida.
Como um evento psicoló gico, ocorre na alma como um reconhecimento, um insight e um
espanto. “Nã o é a reconciliaçã o de duasdiferenças, mas a percepçã o de que as diferenças são
imagens que nã o se negam, se opõ em ou mesmo exigem uma à outra.”35
A qualidade da conjunçã o que Hillman descreve é capturada Nos seguintes poemas, o
primeiro dos quais é dito para resumir as operaçõ es da alquimia taoísta:

A pureza de jadelike deixou um segredo de liberdade no mundo inferior:


Congele o Espírito no covil da energia, E de repente você verá
Neve branca voando no meio do verão.
O sol brilhando na água à meia-noite.
Seguindo harmoniosamente, Você vaga nos céus Então volte para absorver
As virtudes do receptivo36

Nesta imagem há uma harmonia, mas também o confronto sacudido das diferenças: “neve
branca voando em pleno verã o”. O segundo poema é um haikai obscuro que captura
humoristicamente a sutileza da “conjunçã o”:

Sobre como cantar


A escola do sapo e a escola da cotoviaceleste estão discutindo.37

Neste caso, o sapo e a cotovia celeste em um nível estã o muito distantes, mas ambos sã o
criaturas que têm uma cançã o e, a partir de uma certa perspectiva, expressam a harmonia do
universo.
Uma descriçã o ainda mais enigmá tica é dada por uma adepta da Escola de Realidade
Completa (CRS) de Tao, Sun Bu-er, em seu poema:

Na hora certa, logo fora do vale


Você se eleva levemente ao firmamento espiritual. A menina de jade monta uma fênix azul,
O menino de ouro oferece um pêssego escarlate.
Um dedilha um alaúde de brocado em meio às flores, um toca tubos de joias sob a lua. Um dia
imortais e mortais são separados, E você friamente atravessa o oceano38

Neste poema enigmá tico há muitas justaposiçõ es estranhas e indícios de uma


transcendência que nã o reconciliam as diferenças, mas permitem que elas se unam e, no
entanto, expressem uma junçã o alquímica invisível que é bastante surpreendente. Embora
Micklem, Edinger e Hillman enfatizem os aspectos monstruosos e/ou surpreendentes do
Coniunctio, nem toda experiência genuína de conjunçã o tem essa qualidade. Considere
esta descriçã o na recente traduçã o de Cleary do texto alquímico chinês clá ssico e do manual de
meditaçã o, O Segredo da Flor Dourada:

Quando as duas coisas se encontram, elas se unem inextricavelmente, o movimento vivo


da energia criativa ora chegando, ora indo, ora flutuando, ora afundando. Na câ mara bá sica de
si mesmo há uma sensaçã o incompreensível de vasto espaço, além da medida; e todo o corpo se
sente maravilhosamente leve e flutuante. Isso é o que é chamado de “nuvens enchendo as mil
montanhas”. … O ir e vir é desprovido, a flutuaçã o e o afundamento sã o indiscerníveis. Os canais
estã o parados, a energia pá ra: esta é a verdadeira relaçã o sexual. Isso é o que é chamado de “a
lua mergulhada em uma miríade de á guas”39

Aqui está outra descriçã o enfatizando os prazeres vitais da uniã o:

“Os poros sã o como depois de um banho, os ossos e o sistema circulató rio sã o como
quando dormem rapidamente, a vitalidade e o espírito sã o como marido e mulher em abraço
bem-aventurado, as almas terrenas e celestiais sã o como criança e mã e lembrando-se de seu
amor”40

Um exemplo bem-humorado de busca de uma harmonia invisível na aprendizagem como a


pintura em ocorre em um livro de Oscar Mandel 41. O autor cria uma cena em que o jovem Chi
Po — o personagem principal — se aproxima de seu professor, Bu Fu, para sua primeira liçã o.
O personagem fictício de Chi Po é baseado em um dos grandes pintores da China, Chi Po Shih. A
conta é a seguinte:

“Jovem”, disse Bu Fu no início da primeira liçã o, “embora eu seja um feiticeiro, devemos


começar pelo começo”. “E qual é o começo?”, disse Chi Po. “Diga-me, meu tolo pedaço de
juventude, se sua mã e e seu pai pudessem lhe dar qualquer coisa que você desejasse, que coisas
você lhes pediria?” Essa era uma pergunta que Chi Po muitas vezes sonhara consigo mesmo, e
também havia respondido em seus sonhos. Entã o ele respondeu sem hesitaçã o: “Um novo aro,
um cachorro de Pequim, morangos e chantilly todas as tardes, e duas cadeiras de balanço, uma
para o Pai e outra para a Mã e, sejam:
Porque eles sempre quiseram cadeiras de balanço.” “Agora sentese à porta da minha
caverna”, disse Bu Fu, “e observe o céu e as á rvores, e observe acima de tudo o vento e a
destruiçã o das nuvens, e observe os esquilos e os cones, e sonhe com o pincel e com sua mã o
que varrerá a seda de sua pró xima pintura”. Com isso, Bu Fu pronunciou vá rias incan-taçõ es
assustadoras, e abandonando Chi Po na boca da caverna, ele foi coletar bolotas. Ele sentou-se
em um galho onde ele podia observar o recémchegado, e você podia ver pela inclinaçã o de sua
cabeça e o â ngulo de seu bico que ele duvidava se Chi poderia fazê-lo. E nã o foi fá cil. Agora que
Bu Fu o havia lembrado do novo aro e dos morangos, Chi Po achou difícil enviar seus
pensamentos para as á rvores e manter os olhos na destruiçã o das nuvens. Mas a tarde estava
quente, e Chi se acomodou sonolento de costas para a caverna, mastigando uma agulha de
pinheiro enquanto se sentava. Ele observou uma nuvem deixar o topo de um cedro e se
aproximar cautelosamente do topo de outro cedro. “Como um equilibrista”, pensou Chi. E entã o
ele ouviu o vento: bem, agora, ele se opô s contra as rochas, e fugiu entre as folhas, e fez có cegas
nos pinheiros, e simplesmente se soltou acima da terra. E em cima do vento ia o escá rnio das
longarinas, os gansos selvagens, as pegas e, acima de tudo, o lilling do guincho de garganta
escarlate, e “Oh”, pensou Chi Po, “o agudo dos pá ssaros e o baixo do vento – o alto da montanha
e o baixo do rio – o rei e o escravo – pai e menino – acima e abaixo – primavera e inverno, ” e ele
seguiu por esse caminho, encantado com sua descoberta e ficando sonolento de fato, enquanto
o bulbul o observava de seu ú nico olho. ” Jovem”, disse Bu Fu, retornando com bolotas, “o que
está em sua mente?” “Oh”, disse Chi Po, um pouco envergonhado, “nada”. “Excelente, su-preme”,
gritou Bu Fu, com a barba trêmula. “Você teve sua primeira liçã o. Agora vá para casa, porque
tenho trabalho em mã os. Volte amanhã . Se a sua mente ainda está livre dessa desordem de
morangos e cadeiras de balanço, vou permitir que você pinte um ú nico arrasto em uma ú nica
flor de ló tus. Fora entã o!”. “Entã o”, disse Bu Fu no dia seguinte, quando Chi Po veio puffing até a
caverna, “o que dizer do Desordem?” “Espero que ainda tenha ido embora, senhor”, respondeu
Chi Po. “Posso experimentar a libélula, por favor?” “E o ló tus floresce. Sim, você pode.” E Bu Fu
disse a Chi Po por que uma mosca-dragã o precisa precisa de uma flor, e por que uma flor de
uma libélula, pois uma permanece no chã o e se eleva do chã o para cima, enquanto a outra se
move e desce do céu para baixo. “Portanto”, disse Chi Po, “devo pintá -los onde eles se
encontram, onde para baixo flui para cima e para cima flui para baixo”42

Engajando os monstruosos

Temos olhado para poemas e histó rias que retratam os níveis mais sutis da coniunctio
como uma uniã o sem traços, referindo-se a uma unidade perfeita. No entanto, também é vital
que nã o caiamos em um idealismo intelectual e que tenhamos em mente as observaçõ es astutas
de Micklem, Edinger e Hillman para que nã o ignoremos os aspectos mais bestiais do
inconsciente, dos quais o material clínico é um lembrete constante.
A estranheza e a dificuldade de envolver o monstruoso vem em muitas formas diferentes.
Trabalhar com a escuridã o do inconsciente é exemplificado em dois exemplos muito diferentes,
mas relacionados; a primeira é de um psicó logo que, em sonhos notá veis, descobre uma
imagem de Sol niger:

Estou em casa sentado em uma poltrona. Percebo que há uma espinha na sola do meu pé
esquerdo. Self viro o pé de tal forma que eu posso dar uma olhada mais de perto na espinha.
Self viro minha visã o para o lado direito para buscar um lenço de papel para limpar meu pé, e
quando olho para trá s novamente, o líquido preto voltou para a espinha. Self estou pensando
“Oh, isso é estranho”, entã o eu pressiono novamente e desta vez três traços de líquido preto
saem da espinha que eu rapidamente agarro.
Eles; eles têm uma textura elá stica. Eu tento puxá -los para fora, mas eles estã o mais
profundamente e firmemente enraizados do que eu pensava. Self nã o fico de pé, entã o olho
mais de perto, dobrando a cabeça o mais pró ximo possível do meu pé. A espinha nã o é mais
uma espinha; é um buraco através do qual algo está respirando, e há vá rios buracos que eu nã o
tinha notado antes. Quando olho mais de perto para o meu pé, tentando embaixo
Ficar de pé onde ele vai, e como eu sigo a teia preta, minha perna fica transparente, está
em toda a minha perna também! Sigo minha perna e todo o meu corpo se torna transparente.
Self olho para a minha mã o, meus braços, ela espalhou seus finos tentá culos de teia por toda
parte dentro de mim, como uma fina rede com fio. Estou ficando com medo; Tento encontrar o
ponto de partida desta teia de aranha. Ao fazer isso, o tronco do meu corpo também se torna
transparente. Agora eu posso vê-lo. O ponto de partida central está no meio do tronco, no plexo.
É uma cabeça preta que se parece com um dos meus doces de alcaçuz da infâ ncia. Inclino a
cabeça sobre o tronco para dar uma olhada ainda mais de perto e realizar que “coisa” tem olhos
e fala! Eu pergunto “O que você está fazendo aqui?”
“Você me ligou”, diz ele/ela. “Eu te sirvo (tu em francês), e eu nã o te sirvo (vous em
francês).” Ele ela sorri para mim e seus olhos piscam calmamente, docemente e gentilmente. Ele
ela adormece enquanto eu lentamente coloco minha cabeça de volta em uma posiçã o reta.
Eu estou com medo e também digo a mim mesmo que nã o há razã o para estar com medo,
pois se fosse perigoso, eu já estaria morto, já que está lá para sempre de qualquer maneira.
No entanto, é melhor eu mostrar isso a um médico. Vou ao hospital geral, onde um médico
me diz que ele nã o é competente neste assunto, e ele me dá um pequeno pedaço de papel com
um endereço escrito nele, onde encontrarei alguém competente.
Eu vou lá , e é o escritó rio do meu analista. Ao subir os degraus externos, percebo que a
placa nã o leva mais o nome dele. Na verdade, ele diz “Alquimista” em vez disso. Um homem
abre a porta e eu o reconheço. Ele realmente é o Alquimista, aquele que uma vez na minha vida
me apresentou a “Terra Negra” e que morreu há vá rios anos. Sinto-me muito emocionado ao
vê-lo novamente, e cheio de respeito para com ele. “O que estou fazendo aqui?” Pergunto.
“Bem”, ele diz, “Você nã o sabe? Existem bilhõ es de seres humanos neste planeta e, no entanto,
apenas doze terã o sucesso em sua jornada e chegarã o aqui ao meu lugar. Você está aqui para
ver o silêncio.”
Ele me leva por um corredor. (Neste ponto, e mesmo quando escrevo este sonho, tenho
lá grimas caindo dos meus olhos em uma forma de contentamento/graça e alegria extá ticos.
Apeteceme agradecer a Deus por isso.)
Ele abre uma porta para uma sala em que do teto está pendurado um mó vel com dois
galhos. Acima dos dois ramos estã o dois lu-miná rios. À esquerda um sol; abaixo do sol um
machado solar de duas cabeças. À direita, uma lua, e abaixo dela um pêndulo de Foucault.

O sonho é complexo e levaria muito tempo para explorá -lo completamente. Ainda assim,
gostaria de enfatizar um pouco da narrativa e da linguagem dos sonhos. Ao fazê-lo, fico
pró ximo das imagens à medida que elas se apresentam, a fim de ouvi-las falar de forma
fenomenoló gica, deixando de lado a maioria das associaçõ es pessoais do sonhador.
O sonhador começa em uma poltrona em uma posiçã o um tanto relaxada e casual. O que a
princípio lhe parece é um pouco de mancha na sola / alma de seu pé. A conexã o sonora da sola
e da alma é muitas vezes ú til para entrar no significado interior e no local do sonho. O que está
acontecendo nã o está simplesmente em seu pé literal, mas também em seu sonho ou corpo
sutil. Algo está aparecendo em um lugar crítico na alma, um lugar que o fundamenta e liga à
Terra, ao lugar em que ele está , seu fundamento. Embora o que está acontecendo neste site
pareça apenas uma coisa pequena, o ego dos sonhos se vira para dar uma olhada mais de perto.
Esse gesto nos sonhos é bastante comum; um segundo olhar reflete um movimento em direçã o
à consciência e mostra algo mais para o sonhador do que é disponível em um primeiro olhar
causal . O ego onírico aplica alguma pressã o a essa mancha como se quisesse espremer algo que
está sob a superfície. A partir deste ponto, um líquido preto como um filamento começa a fluir
para fora. Quando o ego onírico se afasta com a intençã o de apenas limpá -lo, a escuridã o
desaparece sob a superfície, como é frequentemente o caso ao lidar com conteú dos
inconscientes. Este sonhador permanece curioso e avança novamente. Ao fazê-lo, a negritude
reaparece e triplica três vezes. Ele agora tenta agarrá -lo e, ao fazê-lo, ele se torna mais só lido e
tem uma textura elá stica.
Ele entã o tenta eliminá -lo, puxando-o para fora de seu corpo, mas dissimula que ele está
mais profunda e firmemente enraizado do que ele pensava. Mais uma vez, esse tipo de imagem
nã o é incomum em sonhos. Self vi isso em vá rias ocasiõ es em que os sonhadores estã o tentando
tirar algo de sua boca, apenas para descobrir que ele está preso profundamente dentro do
corpo e nã o pode ser puxado para fora. À s vezes, isso se refere a uma incapacidade de dizer
algo que a pessoa está tendo dificuldade em expressar. A intensidade de um conflito o mantém
profundamente conectado ao corpo e ao inconsciente. Para este sonhador, parece haver um
desejo contínuo de se livrar desse stu ff negro, mas um desejo mais do que igual de entender
alguma coisa sobre a escuridã o interior.
Ele traz a cabeça até o pé, significando uma mudança na perspectiva, uma descida da
cabeça para a parte mais baixa do corpo, uma descida da consciência para ver o que está
acontecendo no lugar da alma / sola e da escuridã o. Ao fazer isso, ele descobre algo que ele nã o
tinha visto antes: A espinha nã o é apenas uma espinha por mais tempo, mas se tornou um
buraco, na verdade vá rios buracos, através dos quais ele descobre algo vivo e respirando. O
desejo persistente do sonhador de ver o que está acontecendo é atendido pelo corpo sutil se
tornando transparente. Ele agora pode ver por dentro. Filamentos negros estã o por toda parte,
e ele vê uma besta negra vivendo dentro de si mesmo.
Como se pode imaginar, descobrir esse tipo de alteridade desconhecida dentro de si
mesmo, como parte de si mesmo, é aterrorizante e monstruoso. No entanto, o sonhador
continua a tentar determinar para onde tudo isso está levando. Ele segue a escuridã o em sua
complexidade semelhante a uma aranha em todo o seu corpo, que agora é transparente. Essa
teia de tentá culos se espalhou por todos os lugares dentro dele. A mudança da curiosidade
casual para o medo existencial provoca um desejo de chegar ao fundo das coisas, à origem e
fonte da pró pria negritude. A fonte é descoberta no plexo solar, um lugar onde, na fisiologia
literal, uma grande rede de nervos simpá ticos e gâ nglios se encontram atrá s do estô mago e
formam um centro duro e com o sol. Em nosso sonhador, esses nervos aparecem como
tentá culos negros, criando o que se poderia imaginar como um centro de sol negro no poço da
pisada. Aqui ocorre uma visã o importante; o centro escuro aparece como uma cabeça negra que
tem olhos e pode ver e falar com ele. Pela primeira vez, ele aborda essa escuridã o e a encontra
frente a frente como se estivesse envolvido em uma imaginaçã o ativa espontâ nea.
Há uma longa tradiçã o de simbolismo da cabeça na alquimia e na literatura precoce,
ligando-a tanto à experiência nigredo quanto ao nosso potencial humano de transformaçã o.
Edinger acredita que “uma razã o parece ser a conexã o entre o termo ‘cabeça’ e topo ou começo.
A negritude foi considerada o ponto de partida do Trabalho. [alquímico] 43.
Edinger observa que a cabeça também simboliza o rotundum, o homem redondo e
completo. A cabeça separada e o simbolismo da decapitaçã orefletem essa totalidade como
extraída do homem empírico. “A cabeça ou o crâ nio se tornam o vaso redondo da
transformaçã o. Em um texto, era a cabeça do negro Osíris ou etíope que, quando fervida, se
transformava em ouro. 44
Para o nosso sonhador, a cabeça assume uma qualidade menos temível e stim-Faz doces
lembranças da infâ ncia, mas também se torna um interlocutor paradoxal. O sonhador pergunta:
“O que você está fazendo aqui?” “Você me ligou”, ele / ela responde, “Eu te sirvo e nã o te sirvo”.
Essas respostas paradoxicas, deixam claro que a cabeça negra é duplex e mercurial e reflete a
complexidade da psique inconsciente, que é ao mesmo tempo trapaceira e guia. É masculino e
feminino; ela serve ao ego e, no entanto, nã o serve ao ego. Nesse sentido, pode-se imaginar essa
cabeça como uma prefiguraçã o do Self ou do homem inteiro, o que nunca é simplesmente uma
doce experiência.
O que pode significar que a cabeça “serve e nã o serve”? Jung expressa de forma pungente
esse paradoxo quando diz: “A experiência do Self é sempre uma derrota para o ego”45. Além
disso, a cabeça oracular simboliza a consulta da totalidade de alguém para obter informaçõ es
além do ego46. Nesse sentido, a cabeça e/ou o crâ nio negros sã o um significante do memento
mori, o conhecimento existencial de nossa pró pria morte. Edinger afirma que é “um emblema
para a operaçã o de mortificatio. Ela gera referências sobre a mortalidade pessoal e serve como
uma pedra de toque para valores verdadeiros e falsos. Refletir sobre a morte pode levar alguém
a ver a vida sem o aspecto da eternidade e, assim, a cabeça da peste negra pode se transformar
em ouro 47.
Em confronto com a vida da psique, a verdade paradoxal é Que tal engajamento traz
derrota e transformaçã o, morte e nova vida.
Esta “verdade” é difícil de assimilar, se é que se pode dizer que é “assimilá vel”. Talvez seja
melhor dizer que é o ego que está assim-ilado, nã o no inconsciente, mas na vida maior da alma,
um movimento que, como Hillman disse, “coloca o homem dentro da psique (em vez de psique
dentro do homem)”48.
Tal processo parece um grande perigo para o ego, como se estivesse em perigo de morrer.
Essa ansiedade leva o sonhador a um médico que indi— Diz que nestas matérias ele nã o é
competente. Assim, pode-se imaginar que o que o sonhador está lidando nã o está no reino do
“corpo médico”. Em seguida, o sonhador vai ver seu analista, mas o analista nã o ocupa mais o
mesmo lugar que ocupava antes; seu espaço tornou-se ocupado por um alquimista. Para o
sonhador, parece que a psique está sugerindo que a ajuda nã o deve ser encontrada no reino da
medicina ou da psicaná lise.
Assim, a psique coloca o sonhador em conexã o com um alquimista, com memó ria, imagem
e morte dentro de sua pró pria alma, enquanto ele se lembra do homem que o apresentou à
“terra negra” e que morreu há vá rios anos. 49. O sonhador sente se tocado e cheio de respeito e
agora faz uma pergunta importante: “O que estou fazendo aqui?” Com isso, inicia-se um diá logo
mais profundo com o alquimista, que o chama por E diz-lhe que está aqui para ver o silêncio.
Esta é uma afirmaçã o do fenô meno da sinestesia. A sinestesia é tradicionalmente entendida
como uma condiçã o na qual “um tipo de estimulaçã o evoca a estimulaçã o de outro”.50. Tira o
sonhador de sua experiência do mundo comum e empírico e o devolve a um mundo em que o
silêncio nã o é simplesmente ouvido, mas também visto.
Merleau-Ponty observa que, nessa perspectiva, o “mundo objetivo (…) E o corpo objetivo
com seus ó rgã os separados… É [muitas vezes sentida como] paradoxal.”51. O fenô meno da
experiência sinestésica é bastante comum, mas nó s o perdemos de vista porque a imersã o em
uma ficçã o científica Weltanschauung “deslocou o centro de gravidade da experiência de modo
que desaprendemos a ver, ouvir e, de um modo geral, sentir”. 52 Deixamos nossos “corpos
naturais vividos” e deduzimos de nossa organizaçã o corporal um modo de experimentar que é
modelado na concepçã o do físico do mundo da percepçã o.
Se Merleau-Ponty estiver correto, nã o é surpreendente por que o conhecimento do corpo
médico objetivo é inadequado para entender as experiências do sonhador. Nessa perspectiva, a
visã o e a audiçã o em nosso modo construído cotidianamente nã o sã o fundamentais em nossa
experiência. Podemos imaginar, entã o, que o alquimista está apontando nosso sonhador para
uma reviravolta tanto para uma maneira mais primordial de ver quanto para o corpo vivido em
vez do corpo objetivado?
Para Merleau-Ponty, o “corpo vivido” refere-se a algo bastante difFerent do “corpo” visto
como um objeto da fisiologia mecanicista ou da psicologia clá ssica. Para ele, como para o nosso
sonhador, a biologia e a psicologia nã o sã o as fontes da compreensã o mais profunda da nossa
existência humana. Em vez disso, Merleau-Ponty fala de um despertar do nosso fundamento
fundamental e da estranheza e milagre da percepçã o. Uma “percepçã o” tã o estranha ocorre em
nosso sonhador. Enquanto o alquimista o conduz por um corredor, ele fica em êxtase e tem um
sentimento de contentamento, graça e alegria. Ele sente vontade de agradecer a Deus. O sonho
termina com o alquimista abrindo a porta para um complexo final, luminoso e meu.

Visão teriosa – uma mobilidade do sol e da lua.

O tema do sol justaposto e da lua é comum na alquimia e representa psicologicamente a


tensã o e/ou o jogo dos opostos – do dia e da noite, racionais e irracionais, conscientes e
inconscientes. Na figura 5.3, chamas opostas sã o seguradas pelo macho e pela fêmea e se
fundem no frasco do alquimista. O sol e a lua aparece acima do frasco. Fabrício escreve abaixo
da imagem: “Acendendo o fogo da unidade em um sulco entre duas ondas do mar mercurial”. 53
Assim, podemos imaginar que parte da visã o do nosso sonhador tem a ver com isso.
Com a aproximaçã o dos chamados opostos refletida nas cobras duplas entrelaçadas em
torno do caduceu, perto do joelho direito da figura ajoelhada. As perspectivas do sol e da lua
sã o ainda mais diferentes pelas imagens do machado solar e do pêndulo de Foucault no sonho.
O simbolismo individual do sonhador complica as imagens tradicionais do sol e da lua e dá -lhes
mais articulaçã o, criando verdadeiramente uma complexio oppositorum, semelhante à tensã o
nas gravuras alquímicas reproduzidas anteriormente.
O alquimista aqui abre um caminho para o sonhador contemplar uma visã o dos “opostos”
suspensos em um celular, que contém uma moeda de sol e lua, luz e escuridã o. Essas imagens
estã o juntas em uma misteriosa suspensã o, aparecendo no final da jornada do sonhador como
se respondessem ao questionamento sem resposta no cerne da pró pria negritude. As imagens
do machado solar e do pêndulo de Foucault contribuem para o mistério desta imagem final,
mas aqui comento apenas a noçã o do pró prio mó vel/mó bile.
O mobile é um termo que se diz ter sido cunhado pelo artista Marcel Duchamp em 1932
para descrever as esculturas cinéticas de Alexander Calder, que foi
Figura 5.3. Acendendo o fogo da unidade, de Nicolas de Locques, 1665.
De Johannes Fabricius, Alquimia: Os Alquimistas Medievais e Sua Arte Real, p. 60

Também um pintor de um sol negro. Jean-Paul Sartre, o filó sofo existencialista e escritor,
escreveu o seguinte sobre a invençã o de Calder:

Um mobile nã o sugere nada: ele captura o movimento vivo genuíno e os molda [sic]. Os
celulares nã o têm significado, fazem você pensar em nada além de si mesmos. Eles sã o, isso é
tudo Há mais do imprevisível sobre eles do que em
Qualquer outra criaçã o humana… Sã o, no entanto, ao mesmo tempo invençõ es líricas,
contribuiçõ es técnicas de uma qualidade quase matemá tica e símbolos sensíveis da natureza.54

O mobile pode muito bem ser imaginado como outro modelo provocativo do Self/Ser. Sol e
Lua nã o estã o unidos em nenhuma fusã o, mas cada imidade tem seu lugar distinto. Eles se
penduram juntos em um estranho equilíbrio, girando de acordo com o movimento do universo,
suspensos como se de algum ponto transcendental e invisível acima, como refletido no sonho
do paciente.
Muitos dos temas que temos vindo a discutir estã o expressos neste ú nico sonho. Nele
encontramos exemplos do processo do corpo sutil, do monstruoso sol escuro, do plexo solar, da
transformaçã o alquímica, do nigredo, da mortificatio e do Self. Vemos o processo de
transformaçã o psíquica expresso à medida que o ego onírico envolve a escuridã o da psique e
leva a uma visã o enigmá tica e simbó lica que aprofunda sua vida psíquica.
Agora olhamos para uma vinheta de caso mais extensa, na qual o sol negro desempenha
um papel proeminente. Nela, um conselheiro pastoral luta com essa imagem e é lançado em um
encontro com realidades psíquicas que desafiam sua visã o de mundo. O pastor cujo trabalho
estou prestes a descrever tomou conhecimento de minha pesquisa e se ofereceu para me
contar sobre suas experiências. Nó s nos correspondemos por pouco mais de três meses,
durante os quais ele elaborou sua luta com Sol niger e sua compreensã o evolutiva da imagem.
Sua primeira experiência com o sol negro foi no contexto de sua aná lise junguiana em
andamento. A imidade de Sol niger surgiu em uma imaginaçã o ativa. Ele desenhou uma imagem
dele (figura 5.4). No desenho, há duas figuras humanas; ele está à esquerda, e uma figura um
pouco maior de um cowboy está à direita.
O cowboy Tinha aparecido em outras imaginaçõ es ativas e desempenhado o papel de um
guia. As figuras estã o olhando para o deserto, onde há uma grande pirâ mide dourada com uma
cor amarela brilhante em torno dela. Lá em cima há um grande sol negro.
Figura 5.4. Imagem do sol negro. Arte por analysand. Usado com permissão.

É importante notar que a imagem na figura 5.4 apareceu cerca de seis meses antes de ele
começar a experimentar uma depressã o profunda, que durou cerca de três anos. Ele sentiu que
havia alguma ligaçã o entre sua depressã o e a imagem do sol negro que aparecia em sua visã o.
Pouco depois de ter tido a experiência da imagem, as coisas devem mudar em sua vida.
Deixou a instituiçã o onde fazia o trabalho de capelania. Ele se livrou de sua esposa de
dezessete (um casamento que tinha problemas de longa data) e logo deixaria sua aná lise
também. Ele estava trabalhando e morando sozinho pela primeira vez em sua vida, e sua
pressã o continuou a piorar. Quando ele disse isso ao seu analista, o analista disse: “Nã o, você
nã o está piorando; você está melhorando.” Como ele nã o acreditava que o analista entendia sua
angú stia sobre sua depres-sion, ele deixou a aná lise. Ele sentiu que tinha que se afastar do
analista para literalmente salvar sua vida.
Ele lutou com a depressã o por mais um ano e meio com a ajuda de outro terapeuta,
medicaçã o e um grupo em que estava, mas finalmente chegou ao ponto em que simplesmente
nã o estava funcionando. Ele foi para um hospital durante o ano seguinte por um total de oito
meses, recebeu alta e gradualmente começou a colocar sua vida de volta em ordem. Apó s sua
hospitalizaçã o, ele lutou com muitos aspectos do Sol niger, incluindo uma divisã o masculino-
feminino e questõ es do coraçã o, morte, suicida e obsessã o, bem como com o que ele chamou de
buraco negro e transformaçã o espiritual.
Uma das primeiras coisas que ele fez ao visualizar a imagem do sol negro foi olhar através
das obras de Jung em busca de referências. Uma passagem em particular o impressionou
imediatamente, embora nã o tenha sido até muito mais tarde que ele começou a experimentar o
que sua intuiçã o lhe dizia ser importante. Esta é a passagem que ele encontrou:
Apesar de todas as tentativas de negaçã o e ofuscaçã o, há um fator inconsciente, um sol
negro, que é responsá vel pelo fenô meno surpreendentemente comum da divisã o masculina,
quando a mã o direita nã o deve saber o que a esquerda está fazendo. A divisã o na psique
masculina e o escurecimento regular da lua na mulher juntos explicam o fato notá vel de que a
mulher é acusada de toda a escuridã o em um homem, enquanto ele mesmo se deleita no
pensamento de que ele é uma verdadeira fonte de vitalidade e iluminaçã o para todas as
mulheres em seu ambiente. Na verdade, seria melhor que ele envolvesse o brilho de sua mente
na mais profunda dú vida55
Sua experiência pessoal ressoou fortemente com a descriçã o de Jung, e ele escreveu em
uma carta:

Meus relacionamentos com as mulheres nunca foram particularmente está veis. Self gosto
de mulheres e me dou bem como amigas e colegas, mas a intimidade tem sidodifícil. Este foi o
caso no meu casamento e no casal de relacionamentos com os quais estive envolvido desde
entã o. Desde que lidei com o sol negro, eu tenho reconhecido muito em mim que a passagem
Jung implica, e vim a ver que isso tem sido pelo menos parte do que tem estado no coraçã o das
minhas diferenças com as mulheres.

Havia vá rias coisas que o pastor quase inteiramente desconhecia antes de sua experiência
com o sol negro. Uma delas era sua tendência a culpar as mulheres por seus problemas. Ele
tinha feito isso por anos, e mesmo que as mulheres, incluindo sua ex-esposa, reclamassem do
tipo de superioridade, hostilidade e condescendência que podem vir de tal atitude, ele
simplesmente nunca poderia vê-la. Ele sempre se sentiu certo e geralmente se perguntava o
que no mundo estava errado com eles que eles nã o podiam ver da maneira que ele via. No
entanto, ele teve a percepçã o de que muito de sua vida sentida havia sido profundamente
enterrada por um longo tempo. Ele começou a sentir que os sentimentos dos quais ele nã o
estava ciente se manifestavam nas maneiras como ele experimentava e lidava com as mulheres.
Por exemplo, ele escreve que à s vezes era culpado de cair em uma postura automá tica de
ensino/palestras com as mulheres. Ele entã o se conscientizou de que isso era desencadeado
quando as mulheres expressavam suas ideias através de sentimentos. Era como se ele tivesse
que combater isso com seu intelecto “superior”, porque ele nã o podia lidar com isso no nível do
sentimento. Ele percebeu que acreditava que os sentimentos de uma mulher eram inferiores e
que ela precisava de seu intelecto brilhante para iluminá -la. Para ele, o sentimento era parte do
desconhecido e, portanto, parte do sol negro, que ele temia.
O pastor refletiu que, em relaçã o ao sol negro, qualquer que seja o seu significado final, um
homem precisa de alguma forma chegar a um acordo com esses sentimentos de superioridade,
a fim de também estar ciente da dualidade em si mesmo. Se um homem pode fazer isso, entã o
ele pode nã o ter que projetar o aspecto invisível em uma mulher, um deslocamento que
ocorreu nã o apenas para si mesmo, mas também para outros homens com quem ele trabalhou
profissionalmente ou que eram seus amigos e colegas. Embora ele soubesse que esse tipo de
atitude poderia ser muito difícil de tornar consciente, ele nunca realmente acreditou que isso
estivesse enterrado nele. De acordo com Jung, os homens muitas vezes preferem ver seu
pensamento associado à luz da consciência e, portanto, é muito fá cil para eles projetarem seus
pró prios humores e pensamentos sombrios sobre as mulheres.
Embora o pastor nã o tenha pensado nisso neste contexto, depois de escrever para mim,
sobre as observaçõ es anteriores, ele lembrou um contador anterior com o tema de Sol niger e o
coraçã o. Um dia, ele desenvolveu uma dor em torno de seu coraçã o e foi para a sala de
emergência de um hospital, mas os médicos nã o encontraram nada fisicamente errado. Uma
semana a partir daquele dia, a mesma coisa aconteceu, e ele voltou para o hospital, e
novamente nada foi encontrado. Quando ele foi ver seu analista e lhe contou o que havia
acontecido, o analista sugeriu que, como nada físico foi encontrado, o problema deveria estar
em outro lugar. Ele sugeriu que o pastor fizesse alguma imaginaçã o ativa em relaçã o ao coraçã o
para ver o que poderia acontecer. Por quatorze dias seguidos, ele imaginou ativamente o que
estava acontecendo em seu coraçã o, e cada vez que ele desenhava uma imagem do que ele tinha
“visto”.
Ele chegou a relatar o que ele considerava sua divisã o masculino/feminina com problemas
do coraçã o que ele rastreava até feridas associadas a seu pai. Enquanto meditava e imaginava
ativamente o que estava acontecendo dentro de seu coraçã o, ele viu um punho furioso, um pé
de cabra, uma grande estaca negra perfurando seu coraçã o e, mais tarde, uma grande bola de
ferro preta que mais tarde ele havia identificado com o sol negro. Ele especulou sobre a relaçã o
entre depressã o e doenças cardíacas e comentou que nã o pode ser saudá vel carregar uma bola
de ferro de vinte e quatro quilos em seu coraçã o.
O trabalho com imaginaçã o ativa acabou por levá -lo a um processo de cura: imagens de um
procedimento cirú rgico e da extraçã o da bola de ferro, uma cobra negra com vegetaçã o verde a
abrir caminho para a emergência das á guas azuis e um golfinho a acompanhar um pequeno
veleiro na imagem final da série. A imagem que mais o impressionou, no entanto, foi a bola de
ferro preta que emergiu e agora estava do lado de fora. Embora houvesse uma cura do coraçã o,
essa imagem apontava para alguma coisa fora de si mesma e fora do reino da consciência. Para
ele, era uma expressã o mais sombria da alma – instintiva, emocional, simbó lica e arquetípica.
Em sua essência, a escuridã o desse outro era estranha e estranha e talvez até incognoscível, ele
pensou. Poderia ter conseqü ências devastadoras, fisiologicamente e em suas relaçõ es, e era tã o
nã o reconhecido quanto um buraco negro.
O tema de um buraco negro tornou-se importante para ele como uma “imagem externa”
que o ajudou a lidar com sua escuridã o interior. Apenas tomar consciência de que tais coisas
existem no universo ajudou-o quando ele sentiu que estava perdendo sua sanidade ou mesmo
“se tornando um pouco psicó tico”. Ele começou a fazer alguma imaginaçã o ativa espontâ nea no
modelo de um buraco negro. Ele escreve que, quando estava no auge da depressã o, desenhava
um círculo enegrecido em um pedaço de papel. Entã o, quando ele olhou para ele e percebeu o
que ele tinha desenhado, ele ficou horrorizado com isso. Era como se fosse capaz de chamar a
atençã o e a consciência diretamente para dentro dela. À medida que ele pensava mais sobre o
que sã o os buracos negros, ele foi capaz de ver que eles faziam exatamente a mesma coisa no
universo exterior que a imagem interna estava fazendo com ele. Os buracos negros sã o tã o
densos que nenhuma luz lhes escapa. Houve momentos em que sua depressã o se sentiu
exatamente assim. Além disso, ele tinha a sensaçã o de que poderia literalmente ser puxado
para baixo nessa coisa e perdido, da mesma forma que as coisas nã o saem dos buracos negros,
pelo menos nã o onde eles entraram.
Em um ponto, as preocupaçõ es do pastor se voltaram para a morte, e ele refletiu sobre isso
como ela apareceu em seus estados depressivos. Ele conectou a morte com o sol negro. Ele
observou que a principal maneira pela qual os pensamentos sobre a morte entravam era com a
preocupaçã o de que ele iria morrer. O padrã o era que a morte pensava que seria mais
proeminente da manhã até o início da noite, mas até o final da noite ela diminuiria
completamente. Ele entã o ia para a cama um pouco - o que pacificamente, e entã o, de manhã ,
começava de novo. Isso continuou ao longo de um período de três anos. Todas as manhã s,
durante três anos, ele acordava com a mesma preocupaçã o com a morte. Durante todo esse
tempo, nem uma ú nica vez fez qualquer diferença em qualquer uma daquelas manhã s que ele
sabia que o medo tinha diminuído na noite anterior e tinha feito isso todas as vezes. Cada dia
era uma repetiçã o do mesmo padrã o, aparentemente desconectado do dia anterior.
Embora ele sentisse que o significado final de seus pensamentos de morte era simbó lico,
por um longo tempo ele experimentou o pensamento em um nível literal. Tomou a forma de
preocupaçã o com sua morte real. “Self nã o sei quando essa consciência [da qualidade literal
desses pensamentos] deveria mudar, mas aconteceu. Self acho que mudou muito em relaçã o à s
mudanças espirituais que eventualmente vieram” através de uma espécie de processo de morte
/ renascimento. Ao estudar o material sobre o tú mulo de Ramsés VI, ele ficou impressionado
com a seguinte frase: “o renascimento do sol ao amanhecer apó s sua jornada noturna no
submundo, a ressurreiçã o do Rei depois de sua passagem sombria e difícil pelo submundo apó s
sua morte, e o surgimento de um nível mais elevado de consciência apó s o á rduo e muitas vezes
aterrorizante exame.” Ele sentiu que isso descreveu bem o que ele passou: “Eu acho que eu tive
que viver com o sol negro nos ú ltimos para me preparar para lidar com o significado adicional
de que há trabalho a ser feito, no entanto. Acho que parte disso vai Self/Ser mais preciso pensar
e amplificaçõ es em relaçã o ao sol negro. Em outras palavras, ainda há um pouco sem resposta a
pergunta: “Por que o sol negro?” ‘Por que um sol negro?’ “
Era uma pergunta que o pastor sabia que nunca poderia ser totalmente respondida através
de aná lise ou terapia. Ele observou que suas experiências sombrias, como o sol, tinham uma
energia incrível, aparentemente inesgotá vel. Provavelmente, a coisa mais significativa para ele
em relaçã o a toda a experiência é que ela eventualmente o levou a se converter à Igreja
Ortodoxa Russa. Ele já havia sido ordenado ministro protestante por vinte e três anos. Ele
sentiu que, por causa da profundidade a que toda a experiência da depressã o e do sol negro o
levou, isso acabou resultando em uma revoluçã o espiritual. Desde que se tornou ortodoxo
russo há sete anos, ele continuou a entender algumas coisas através da espiritualidade dessa
tradiçã o que continuou o tema do sol negro. Começou afazer uma série de reflexõ es sobre a
relaçã o entre o sol negro e o lado negro de Deus. Ele afirmou que,

Na Ortodoxia, é comum pensar em Deus tanto em termos de teologia “positiva” quanto


“negativa”. Isso também nã o é exclusivo da ortodoxia. A teologia positiva envolve aquelas
afirmaçõ es claras que estamos dispostos a fazer sobre Deus; que Deus é amor, que Deus é
onipresente, etc. A teologia negativa procede de uma maneira diferente e basicamente é o
encontro com Deus através da experiência de sermos despojados de nossas ilusõ es e ilusõ es
sobre Deus e sobre nó s mesmos. Minha sensaçã o é que isso corresponde mais à ideia da
“essência” de Deus.
Agora, com tudo dito, o lugar a que estou chegando em relaçã o ao Sol niger é para dizer
que o que ele tem de Deus nele está pró ximo desse aspecto sombrio e misterioso de Deus. Uma
maneira que eu tenho visto isso tem sido em termos da mudança que eu experimentei em
relaçã o a imagem. Inicialmente, era aterrorizante e algo que eu queria fugir, mas nã o podia.

Sol niger e a depressã o o tornaram consciente de coisas que tinham que ser enfrentadas e
tratadas no nível psicoló gico. Ao mesmo tempo, no entanto, ele passou a ver que todos esses
fatores também precisavam de trabalho espiritual. Em outras palavras, o que Sol niger e a
depressã o lhe revelaram sobre sua alma, ele passou a ver em seu relacionamento com Deus
também. Embora isso possa parecer estranho, se o psicoló gico e o espiritual sã o dimensõ es
diferentes, mas intimamente relacionadas, entã o cada um precisará de seu pró prio tipo de
trabalho.
O pastor descobriu que a Ortodoxia oferece uma forma de oraçã o meditativa conhecida
como hesycham, um termo que significa solidã o ou quietude e que foi usado pela primeira vez
por Sã o Gregó rio Palamas no século XIV. Tem a ver com o que foi descrito como uma “luz
incriada”. Esta forma de oraçã o usa a “Oraçã o de Jesus”, que leva à “percepçã o direta” de Deus e
das coisas de Deus. A luz incriada também é chamada de “luz tboriana” porque é a luz que
brilhou de Cristo em sua transfiguraçã o no Monte Tabor. É uma luz que vem de Deus e nã o é
uma luz criada como outras luzes, como a do sol diurno. Outros santos teriam realmente
brilhado com essa luz, que é extremamente brilhante. Ele à s vezes se perguntava se aquela luz
nã o criada nã o poderia, de alguma forma, estar conectada com a luz deslumbrante que procede
do Sol niger.
O pastor e eu discutimos o trabalho de Julia Kristeva, e ele sentiu que sua ideia é
amplificada em seu trabalho quando ela diz: “O ‘sol negro’ retoma o campo semâ ntico de
‘saturnina’, mas o puxa de dentro para fora, como uma luva: a escuridã o pisca como uma luz
solar, que, no entanto, re-brilha com a invisibilidade negra”. 56 No entanto, para Kristeva, Sol
niger parece permanecer ligado a estados de depressã o. O pastor refletiu: “Nisso é vista
novamente a noçã o paradoxal de luz (“deslumbrante”, “flashes”) na escuridã o negra
(“invisibilidade negra”). Desde que o Sol niger assumiu algumas características positivas, esta
tem sido a minha intuiçã o sobre isso – que é escuro, mas que dá luz.”
Para o pastor, a reconciliaçã o da luz e das trevas é capturada Em O Caminho Ortodoxo de
Kallistos Ware, que fala sobre a teologia negativa:

E assim se mostra para cada um que segue o Caminho espiritual. Saímos do conhecido para o
desconhecido, avançamos da luz para a escuridão. Nós não simplesmente procedemos da
escuridão da ignorância para a luz do conhecimento, mas avançamos da luz do conhecimento
parcial para um conhecimento maior que é muito mais profundo que só pode ser descrito como a
“escuridão do desconhecimento”. (grifo do pastor)57

Embora esta seja claramente uma declaraçã o sobre a consciência espiritual, é interessante
que a escuridã o seja realmente vista como um “avanço” sobre a luz e um “conhecimento maior”
do que a luz do “conhecimento parcial”.
Ao refletir sobre a experiência do pastor, pode-se imaginar um processo de individuaçã o e
o telos espiritual de sua depressã o, levando a uma integraçã o de sua sombra pessoal e
arquetípica. Pode-se dizer que tal integraçã o consteliu um Self bem integrado, curando uma
divisã o em sua consciência masculina e, finalmente, abrindo-o para uma experiência de uma
imagem numinosa e escura de Deus no centro de sua nova fé. Seu processo “termina” com a
criaçã o de uma imagem importante relevante para a nossa experiência do Sol niger, com uma
escuridã o do desconhecimento, que é estranhamente descrita como um avanço sobre a luz e
como uma escuridã o cegante e divina. Esta “imagem” das trevas divinas é uma forma bem
conhecida da teologia mística.

Teologia Mística

A teologia do filó sofo místico do século V ou VI, PseudoDionísio, amplifica ainda mais o Sol
niger em seu aspecto luminescente. Muitos chegaram a discernir em sua escrita a mã o de um
brilhante epistemo-gista, um dos primeiros filó sofos da linguagem, um professor semelhante a
Só crates e um teó logo místico. Talvez a melhor designaçã o de PseudoDionísio seja aquela
sublinhada pela filó sofa e teó loga do século XX Edith Stein: “Pai do Misticismo”. Para Stein, sua
teologia representa O está gio mais elevado da “revelaçã o secreta”, e ela observa que “quanto
maior o conhecimento, mais sombrio e misterioso ele é, menos ele pode ser colocado em
palavras”. Em suma, “a ascensã o a Deus é uma ascensã o à s trevas e ao silêncio”. 58
Em suas cartas, PseudoDionísio escreve: “A escuridã o divina é que ‘Luz inacessível’ onde
se diz que Deus vive”. 59
Em outro lugar, ele escreve: “Os mistérios puros, absolutos e imutá veis da teologia estã o
velados na deslumbrante obscuridade da Si-lência secreta, ofuscando todo o brilho com a
intensidade de sua Escuridã o”. 60 Sua Teologia Mística tem sido considerada como
exemplificando o método dionisíaco e como uma chave para a estrutura de todo o corpus. 61
PseudoDionísio começa com a pergunta O que é a escuridã o Divina? E reafirma que a escuridã o
Divina “se manifesta apenas à queles que viajam através da falta e da beleza, que passam além
do cume de toda ascensã o santa, que deixam para trá s toda luz divina, toda voz, toda palavra do
céu, e que mergulham nas trevas onde … . Habita Aquele que está além de todas as coisas”. 62
De acordo com a teologia mística de PseudoDionísio, o que restos/reliquias (remains) do
que pode ser conhecido:

Nã o é alma ou mente, nem possui imaginaçã o, convicçã o, fala ou compreensã o. Nem é a


fala em si. Nã o se pode falar dela e nã o pode ser compreendida pelo entendimento. Nã o é
nú mero ou ordem, grandeza ou pequenez, igualdade ou desigualdade, semelhança ou
dessemelhança. Nã o é imó vel, em movimento ou em repouso. Nã o tem poder, nã o é poder, nem
é luz. Nã o vive nem é vida. Nã o é uma substâ ncia, nem é eternidade ou tempo. Nã o pode ser
apreendido pelo entendimento, uma vez que nã o é nem conhecimento nem verdade. Nã o é
realeza. Nã o é sabedoria. Nã o é nem uma nem unidade, divindade ou bondade. Também nã o é
um espírito, no sentido em que entendemos esse termo. Nã o é filiaçã o ou fraternidade e nã o é
nada conhecido por nó s ou por qualquer outro ser. Nã o se enquadra nem no predicado do nã o-
ser nem do ser. Os seres existentes nã o a conhecem como ela realmente é e nã o os conhecem
como sã o. Nã o há como falar disso, nem nome, nem conhecimento. Escuridã o e luz, erro e
verdade – nã o é nada disso. Está além da afirmaçã o e da negaçã o. 63

Em tal ladainha, obtém-se a experiência do processo da teologia negativa, que tende a


reduzir-se tanto ao silêncio quanto a uma escuridã o que nã o se pode nem mesmo chamar de
escuridã o. Assim, em uma tentativa de continuar a expressar o que o autor está se referindo, a
imagem da Escuridã o Divina está no lugar de nã o ter mais nada a dizer. Ao longo de seu texto,
encontramos as metá foras de uma escuridã o do desconhecimento que é maior do que o
conhecimento: uma nuvem de desconhecimento; aquele que fez da sombra seu esconderijo;
uma escuridã o escondida pela luz; uma nudez que excede a luz; uma escuridã o brilhante
resplandecente; uma obscuridade deslumbrante de silêncio secreto; um raio de sombra Divina
que excede toda a existência; um brilho de todo o brilho com a intensidade das trevas; uma
escuridã o Divina supraessencial, além de uma afirmaçã o e negaçã o; êxtase místico; uma
energia transcendente que eleva, além do sentido e do intelecto; e um eclipse da consciência
que expulsa a pessoa da mente e a deixa em silêncio. 64
Para Jung, tais imagens sã o loucas e monstruosas, o auge da paradoxo, ligando e
transcendendo o que pensamos como opostos de tal forma que a consciência comum é
radicalmente desafiada e subvertida. Em “Silver and White Earth”, Hillman fala de tal loucura
alquimicamente como um processo no qual o brilho solar e a loucura da Lua sã o conjugados. O
mysterium coniunctionis entã o é uma loucura iluminada. 65 No entanto, se, com Hillman,
acabamos ficando fora de nossa Mentes com loucura, é justo dizer que é um tipo superior de
loucura, Uma loucura que nã o é simplesmente privaçã o e apenas associada à lua, depressã o ou
castraçã o, mas uma loucura de transcendência, talvez melhor associada à arte e à poesia do que
à loucura literal.
No poema de Theodore Roethke “In a Dark Time”, ele escreve que “o olho começa a ver”; e
nesta escuridã o, ele encontra sua sombra e a escuridã o se aprofunda. Aqui, no escuro, ele
encontra tanto a loucura quanto a “nobreza de alma”, uma estranha correspondência de
opostos. Roethke também documenta a via longissama que leva à morte do eu, ambientada em
uma “luz nã o natural ardente”, o ponto em que o “eu” nã o reconhece mais Mas encontra a
mente de Deus e um sentido de liberdade na dor da perda. 66 De fato, o poema contém vá rias
imagens associadas ao Sol niger: puro desespero, morte do Self/Ser, luz escura, nobreza da
alma e loucura, todos os quais formam uma teia complexa que pode muito bem constituir uma
espécie de loucura.

O Nada e o Não-Ser
Nothingness and the No-Self

Foi uma loucura tã o elevada que preparou o terreno para as ideias mais racionais,
intelectuais e científicas de Jung sobre o Self/Ser. O analista junguiano Murray Stein, no Mapa
da Alma de Jung, faz um bom trabalho ao traçar a experiência primordial de Jung do Self/Ser, e
cito apenas uma pequena parte que é relativa à s nossas reflexõ es aqui. Ele descreve um ponto
na vida de Jung em 1916, quando Jung teve uma estranha experiência visioná ria que o levou a
escrever um texto gnó stico chamado “Sete Self/Sermõ es aos Mortos”. Jung ouviu as seguintes
palavras, que ele transcreveu: “Harken: Self começo com a indiferença. Nada é o mesmo que
plenitude. Em finidade cheia nã o é melhor do que vazio. O nada é vazio e pleno. Assim também
podereis dizer qualquer outra coisa do nada, como, por exemplo, branco, ou preto, ou
novamente, nã o é, ou é. Este nada ou plenitude nos permite nomear o Pleroma.” 67
Este pleroma era um nome gnó stico dado à experiência pre-figurencial de Jung.o que mais
tarde se tornou sua hipó tese do Self/Ser. Este conceito foi elaborado ao longo de muitas das
Obras Coletadas, mas mais plenamente expresso em Aion: Researches into the Phenomenology of
the Self. 68 De acordo com Jung, o Self era um conceito difícil de definir e, apesar de todas as suas
advertências, muitas vezes é tomado como uma entidade substancializada. Talvez fosse ú til
lembrar-nos de que o Self de Jung nã o é uma entidade metafísica. O psicó logo e estudioso Roger
Brooke faz uma contribuiçã o ú til ao afirmar que pensar no Self como um “algo” é menos preciso
do que entendê-lo como uma “nã o-coisa”, “um vazio fértil e hospitaleiro dentro do qual as
coisas do mundo poderiam brilhar”. 69
Em um artigo que recebeu pouca atençã o, “Nothing Almost Sees Miracles!: Self and No-Self
in Psychology and Religion”, o estudioso da religiã o e psicologia junguiana David Miller escreve
o que equivale a uma leitura desconstrutiva da ideia de Jung do Self. Ele afirma que mesmo
Embora Jung rejeite, em ú ltima aná lise, a ideia de uma doutrina do Nã o-Self, em essence o que
ele quer dizer com a ideia do “Self” “tem o mesmo status ontoló gico que a noçã o
dessubstancializada e desconstruída do ‘nã o-eu’ nas tradiçõ es religiosas apofá ticas”. O eu ‘nã o é
eu’”. 70 Voltando-se para as margens das ideias de Jung, para além das formulaçõ es de Suas
ideias como cientista empírico, Miller lembra o comentá rio de Jung:

Se você contemplar [seu nada], sua falta de fantasia, [falta] de inspiraçã o e [falta] de
vivacidade interior que você sente como pura estagnaçã o e um deserto estéril, e engravidá -lo
com o interesse nascido do alarme em sua morte interior, entã o alguma coisa pode tomar
forma em você, pois seu vazio interior esconde uma plenitude tã o grande, se você permitir que
ele penetre em você. 71
Um vazio que também é uma plenitude ressoa com figuras como PseudoDionísio, Meister
Eckhart, Lao Tzu e outros mestres de filosofias e religiõ es asiá ticas ou ocidentais que mantêm o
conceito de Nada no centro da vida psicoló gica e religiosa. Em essência, isso também é verdade
para Jung. Pois, além do Jung científico, está o Jung alquímico, para quem o chamado Self é “em
princípio desconhecido e incognoscível”. 72 Este Jung segue o ditado alquímico ignotium per
Ignotius (o desconhecido [é explicado] pelo mais desconhecido). Em suma, Para Jung, o Self
“equivale ao nã o-eu da religiã o”. 73
A tensã o paradoxal entre o Self e o Nã o-Self que Miller descreve é um ponto de debate
filosó fico e complexidade doutriná ria que atinge um ponto alto na filosofia e religiã o asiá ticas –
no diá logo entre as perspectivas hindu e budista. O debate é relevante para a compreensã o da
ideia de Jung do Self/Ser, uma vez que essa ideia foi modificada em parte na antiga noçã o hindu
de Atman / Brahman.
A perspectiva Upanishadic sustenta que abaixo e/ou acima do fluxo do mundo empírico há
um Self imutá vel e eterno no centro do universo. A filosofia budista, por outro lado, rejeita tal
ideia de um Self imutá vel e considera qualquer ideia do Self como uma construçã o
impermanente que deve ser vista através. No lugar do Self/Atman, os budistas vêem Anatman
(ou Nã o-Self) e Sunyata (Nada ou Vacuidade) como uma marca do “real”.
O tema deste debate foi retomado pelo psiquiatra transpessoal Sean Kelly. 74 Ele contribui
para esse debate, postulando o que ele chama de “holismo complexo”, uma visã o em parte
influenciada pela ideia de Hegel, Jung e Morin de uma dialética que é uma “combinaçã o
simbió tica de duas [ou mais] ló gicas de uma maneira que é ao mesmo tempo complementar e
antagonista”. 75 O que é importante na posiçã o de Kelly nã o é apenas a ideia de unir as duas
perspectivas em unidade, mas também dar importâ ncia à s suasdiferenças. Isso dá à sua visã o
nuance e complexidade. Em outras palavras, a doutrina que sustenta o Self (o hindu Atman /
Brahman) como o princípio supremo e a doutrina que sustenta o O Nã o-Self (O Annata Budista)
como um princípio supremo sã o completadores e, ao mesmo tempo, permanecem antagô nicos.
Kelly relaciona cada ideia fundamental, observando que ambos os princípios “devem negar a
verdade do outro, a fim de apontar sua unilateralidade e seu complemento ausente”. 76
Parece que a ideia de Kelly é paralela à de Jung. A psicologia de Jung era Originalmente
chamada de psicologia complexa, e mais tarde, à medida que se desenvolveu, um componente
importante dela foi a ideia de que o inconsciente compêndio para as atitudes unilaterais da
mente consciente com a intençã o de alcançar o equilíbrio e a totalidade. Para Jung, o “Self”
também era um (w)holismo complexo, um princípio de auto-regulaçã o e equilíbrio, mas o que é
interessante no argumento de Kelly é que ele aplica a ideia de complementaridade à ideia do
pró prio Self. 77 Ele observa que o conceito de O Self como Atman é propenso ao tipo de
hipostatizaçã o estéril que Impede, em vez de facilitar, a vida psíquica. Por outro lado, sem a
estabilidade do Self Atanó ico, a doutrina No-Self Annata também é propensa a um niilismo
estéril que deixa a vida psíquica à deriva.
Vale a pena notar aqui que, para cada perspectiva, hindu ou budista, a ideia de um
princípio de complementaridade pode ser explicada a partir de dentro. A perspectiva
Atman/Brahman tem sua pró pria maneira de desentender o fluxo do Nã o-Self, assim como a
perspectiva do Nã o-Self dos budistas tem sua pró pria maneira de entender a estabilidade.
Aqueles que estã o comprometidos com uma perspectiva ou outra provavelmente sentirã o que
o outro antagô nico nã o entende realmente sua perspectiva, que de dentro de seu pró prio ponto
de vista as ideias de seus críticos já estã o ad-vestidas. Aqueles que se apegam apenas à s suas
pró prias perspectivas sã o tradi-Considerando que aqueles que procuram romper com a
tradiçã o podem ser vistos como iconoclastas ou mesmo heréticos, como o pró prio Jung. A
histó ria das ideias e culturas parece se mover em virtude de tal dialética, embora, em ú ltima
aná lise, essa possa ser uma maneira muito limitada de imaginar a complexidade da histó ria.
A perspectiva de Kelly do holismo complexo abrange ambas as perspectivas, Self e No-Self.
A essa complementaridade dialó gica ele acrescenta o ou o antagonismo dialó gico, que dá ao
debate um impulso dinâ mico que afirma e relativiza ao mesmo tempo. Se entã o imaginarmos a
ideia de Jung do Self como estando sujeita a uma crítica semelhante, o Self exigiria o princípio
de complementaridade do Nã o-Self para evitar que ele se estagnasse em uma ideia hipó stase e
fixa de ordem, como Hillman observou.
Para Jung, bem como Hillman, o Self como o arquétipo de significado requer a anima ou
arquétipo da vida para mantê-lo longe da estagnaçã o. Hillman, no entanto, prefere nã o falar do
Self por causa de sua tendência como um conceito transcendental de perder a conexã o com o
corpo. Para ele, o problema com a ideia de Jung do Self é que ela se move em direçã o à
transcendência, tanto matemá tica quanto geométrica. Suas analogias tendem a ser extraídas do
reino do espírito, da filosofia abstrata e da teologia mística. Seus princípios tendem a ser
expressos em termos como auto-realizaçã o, enteléquia, o princípio da individuaçã o, a mô nada,
a totalidade, Atman, Brahman e o Tao. 78
Para Hillman, tudo isso aponta para uma visã o do Self que é removida de A vida, e assim
entra na psicologia “pela porta dos fundos, disfarçada de sincronicidade, magia, orá culos, ficçã o
científica, autosimbolismo, mandalas, tarô , astrologia e outras indiscriminaçõ es, igualmente
proféticas, a-histó ricas e sem humor”. 79 Aqui Hillman reú ne uma variedade de ideias e imagens
sagradas para os junguianos ortodoxos, que, embora nã o sejam bem diferenciadas, servem ao
propó sito de pintar uma visã o do Self como um Estrutura inconsciente e abstrata que perdeu o
contato com a dinâ mica da alma. Esta é uma visã o do Self que nã o é aceitá vel para o ortodox
junguiano, para quem o Self é estrutural, dinâ mico e profundamente conectado à vida.
Nã o é surpreendente descobrir que conceitos fundamentais como o Self estã o abertos a
mú ltiplas interpretaçõ es. Como observado, há aqueles que re-Gard Jung’s Self como qualquer
coisa, menos está tica e outros para quem ela se perde muito facilmente em uma concepçã o
hipó stase, ultrapassada, fora de contato e abstrata que exige revisã o. Ao interpretar a
perspectiva de Kelly do “holismo complexo”, a importâ ncia da tensã o é revelar como todo
conceito fundamental tem uma sombra, mesmo quando o conceito é tã o amplo quanto o Self.
Nesse sentido, a ideia complementar/antagô nica do Nã o-Self revela a sombra do Self como um
outro esotérico e invisível que é necessá rio à animaçã o da vida psíquica. Tradicionalmente, a
sombra é considerada a contraparte da consciência, mas diz-se que o Self abrange tanto as
dimensõ es conscientes quanto as inconscientes da vida psíquica.
No entanto, se alguém segue Jung no sentido mais radical, ao mesmo tempo em que
simultaneamente dá crédito à s perspectivas de Miller e Kelly e à importâ ncia da ideia do Nã o-
Self como sendo ao mesmo tempo completa e antagô nica à ideia de Jung do Self, entã o é
razoá vel imaginar o Self como tendo uma sombra, uma alteridade dinâ mica e invisível que lhe é
essencial.
Muitas vezes para a alquimia, o Sol é a coisa mais preciosa, enquanto o Sol niger como sua
sombra é como o “petite a” de Lacan. 80 Este pequeno a é “mais inú til do que as algas marinhas”.
81
No entanto, sem Sol niger nã o há anel para a consciência, nenhum Outro dinâ mico que
contamine e tinga o brilho do Sol.
Seguindo a tradiçã o alquímica, Jung escreve que “a consciência requer como sua
contraparte necessá ria um lado escuro, latente e nã o manifesto… . Tanto os alquimistas
sentiram a dualidade de suas assunçõ es inconscientes que, diante de todas as evidências
astronô micas, ele equipou o sol com uma sombra [e declarou]: ‘O sol e sua sombra levam o
trabalho à perfeiçã o’”. 82
Em ú ltima aná lise, acredito que a noçã o de uma sombra do Self é apoiada. Pelo jogo
paradoxal dos opostos na alquimia.

Sous Rapture, Psicologia Profunda e a Alma


[Sob extase/arrebatamento/encanto]

Desde o início deste capítulo, temos lidado com a ideia de antinomias, com o jogo
paradoxal de luz e escuridã o, vida e morte, espírito e matéria. A coincidentia oppositorum e o
mysterium coniunctionis sã o expressõ es de paradoxo e monstruosidade, enlouquecidas.
Negaçã o e tentativas de unificaçã o ou transcendência. Em uma tentativa de entender o Sol
niger, exploramos a Escuridã o Divina da teologia mística, a tensã o entre as visõ es hindu e
budista e a ideia de um holismo complexo que se presta a uma nova maneira de imaginar tanto
a ideia junguiana do Self quanto do Sol niger.
Como vimos, o problema é como podemos falar sobre o que quer que seja que seja referido
no precedente? Como podemos abordar essa presença invisível ou ausente que chamamos de
Self ou nã o-Self, Escuridã o Divina ou Sol niger? Tem sido um desafio para os antigos filó sofos,
místicos religiosos e alquimistas, bem como para os filó sofos pó s-estruturalistas
contemporâ neos e psicanalistas lidar com a expressã o do que muitas vezes é sentido como
inexprimível.
Para as sensibilidades pó s-estruturalistas, uma dificuldade que muitas vezes é exposta é
que, em cada tentativa de nomear essa presença ausente, há um vestígio de especulaçã o
metafísica, um significado transcendental (para nossos propó sitos lido como Self) que nã o é
desconstruído.
O filó sofo pó s-estruturalista francês Jacques Derrida, por exemplo, considera que este é o
caso no que diz respeito à teologia negativa, à qual seu pensamento se assemelha, mas da qual
ele insiste em sediferenciar. Em seu “Como Evitar Falar: Negaçõ es”, ele retoma sua relaçã o com
a teologia negativa:

Isso que se chama X… “nã o é” nem isto nem aquilo, nem sensível nem inteligível, nem
positivo nem negativo, nem dentro nem fora, nem superior nem inferior, nem activo nem pas-
sivo, nem presente nem ausente, nem mesmo neutro, nem sequer subjetivo a uma dialética com
um terceiro movimento, sem qualquer sublaçã o possível (“Aufhebung”). Apesar das aparências,
entã o, este X nã o é nem um conceito nem mesmo um nome; ela se presta a uma série de nomes,
mas exige outra sintaxe, e excede até mesmo o or-der e a estrutura do discurso preditivo. “É ”
nã o e nã o diz o que “é”. Está escrito completamente diferente. 83

Embora imitando PseudoDionísio, pode-se dizer que Derrida escreve teologia negativa “de
outra forma”, de uma maneira que nã o assume um ser supremo além das categorias de ser.
Seguindo Heidegger, ele elabo-Classifica a prá tica pó s-moderna do arrebatamento sous, que tem
sido traduzida como “sob apagamento”, para marcar o jogo paradoxal da “ausência de uma
presença, um presente sempre já ausente, da falta na origem que é a condiçã o do pensamento e
da experiência”. 84
Em termos junguianos, pode-se pensar nisso em relaçã o ao misterioso nú cleo de um
“arquétipo em si”, que nunca pode ser totalmente presente ou consciente. Quando falamos de
Deus ou do Self/Ser, estamos nomeando alguma coisa cujo Self/Ser nunca está totalmente
presente e nã o pode ser capturado em qualquer significado. Até mesmo falar disso como tendo
um nú cleo ou como sendo algo é problemá tico. Na linguagem junguiana, falamos de imagens do
Self/Ser, mas o que significa falar desse Self como se ele existisse como uma espécie de
presença dependente ou objeto ou ser transcendentalmente significado? Vimos que, na teologia
negativa, tentar nomear tais “objetos” transcendentais sempre fica aquém e que eles só podem
ser referidos em termos como a Escuridã o Divina, que nã o parece se referir a nenhuma “coisa”.
Se nenhuma palavra ou sinal pode capturar a noçã o transcendental de Deus ou Self/Ser ou o
Self e assim por diante, entã o as palavras ou sinais que se referem a ele devem ser colocados
sob apagamento – ou riscados – uma vez que a palavra é imprecisa. No entanto, uma vez que
todos os sinais ou palavras sã o necessá rios, mas também compartilham a mesma falta, a
convençã o tem sido imprimir tanto a palavra ou sinal quanto sua exclusã o. Derrida dá este
exemplo: “O sinal é aquela coisa mal nomeada… Que escapa à questã o instituinte da filosofia”
[[T]he sign is that ill-named thing ...that escapes the instituting question of philosophy].85.

--------------------------------------> nomeaçã o segundo Derrida da "coisa mal nomeada"

Da mesma forma, se falarmos de Deus, Self/Ser ou Self, a convençã o Ditam que


expressemos tais ideias sob apagamento como Deus, Self/Ser e Self. Aquilo que é a ausência do
significado, Derrida chama de traço, invisível, marcado por um sinal sob apagamento.
[Como Derrida corretamente demonstra, há uma pressuposição profundamente enraizada de que professores podem, de
alguma maneira,se retirarem do caminho e deixar textos, conceitos, idéias, narrativas etc. Falarem por si mesmas. Esta
pressuposição do apagamento filtra todos os tipos de afirmações e questões que professores são capazes de fazer. O simples
ato de fazer uma pergunta pedagógica é, como Derrida destaca, enraizado na plausibilidade do apagamento do mestre
(BINGHAM, 2005)- Artigo traduzido: Derrida e o ato de ensinar: a economia do apagamento]

Para Derrida, trata-se de uma estratégia experimental de filosofar na qual o que está
sendo chamado de arco transcendental (origem) deve fazer com que sua necessidade seja
sentida antes de se deixar apagar (p. Xviii, prefá cio do tradutor). Isso é muito importante do
ponto de vista analítico, porque se o apagamento ocorre antes que haja qualquer conexã o
emocional com o outro, o apagamento permaneceria um jogo intelectual sem gravidade
analítica.
É interessante que Derrida use a noçã o de arque-traço, que imagino como uma expressã o
filosoficamente sofisticada do que Jung tentou expressar por arquétipo – uma noçã o que reflete
a viSion. Nã o posso aqui elaborar a complexidade dessa noçã o, exceto para dizer que seguir a
intençã o de Derrida é “mudar certos há bitos mentais, enraizados em nossa metafísica
tradicional, na linguagem, na representaçã o, nas ideias de origem e em nossa ló gica biná ria”.
Usando a estratégia de arrebatamento sous de Derrida, a noçã o do Self [Self]sob apagamento,
em vez de ser vista como uma ideia, essência ou substâ ncia transcendental, se aproxima ainda
mais do reconhecimento de Jung de seu mistério e qualidade desconhecida. Visto como um
traço, a presença invisível do Self [Self] é marcada, mas descaracterizada, e sua alteridade
sombria, vista de outra forma, é paradoxal e misteriosa, tanto clara quanto escura, mas
nenhuma das duas.
Acredito que o arrebatamento de Derrida atinge a intençã o da ideia de Jung de uma
maneira nova e altamente original. Também penetra na ideia de Nada/Naditude [Nothingness]
além de suas designaçõ es literais e biná rias. Aplicar sua noçã o ao conceito de Jung do Self
acrescenta uma perspectiva que renova nossa compreensã o do Mysterium Coniunctionis e nos
ajuda a resistir a transformá -lo em uma simples unidade conceitual ou idealismo, um perigo
apontado por Micklem, que enfatizou o Mysterium Coniunctionis como uma complexio
oppositorum de proporçõ es paradoxais e monstruosas. Como vimos, Edinger também enfatiza
a natureza misteriosa dos opostos e a traça culturalmente no desenvolvimento da ciência e do
materialismo colocados como um ovo de cuco no ninho da visã o cristã .
Imagine o arrebatamento sous de Derrida como outro ovo de cuco colocado no ninho do
modernismo e da psicologia junguiana. É paradoxal; é monstruoso, um corpo estranho que,
como o ovo que Edinger descreve, também é susceptível de chocar algo novo. Imagino isso
como uma complexio oppositorum, eclodindo continuamente no â mago do mysterium
coniunctionis, agora trazendo para nossa ciência e materialismo uma sensibilidade filosó fica
original ao paradoxo da linguagem e continuamente desestruturando nossas tendências ao
logocentrismo.
Aplicar a ideia de sous rapture de Derrida à noçã o de Self na psicologia de Jung abre uma
maneira de imaginar o Self [Self] como sob apagamento. Imaginar tal Self [Self]
psicologicamente é uma tentativa de pensar em algo que nunca pode ser simplesmente
identificado com qualquer lado de um par biná rio – claro ou escuro, preto ou branco, espírito
ou matéria, masculino ou feminino, imaginá rio ou real, consciente ou inconsciente – ou com
qualquer noçã o hipotética e transcendental que tente substituir ou elevar-se acima dessas
oposiçõ es como se a linguagem se referisse de alguma forma nominalista ou substancialista a
alguma “coisa” ou entidade literal.
Como vimos, termos como Self, Self/Ser e Deus nã o podem ser privados ou receber status
fora do sistema linguístico do qual foram extraídos. Para Derrida, seguindo o linguista do século
XX Ferdinand de Saussure, esses termos derivam seu significado de maneira diacrítica, cada um
fazendo sentido apenas em relaçã o a outros signos em um sistema sincrô nico de signifiers e
tendo significado apenas em relaçã o a outros signos entre os quais nenhum é privilegiado. No
entanto, filosofia, psicologia e religiã o têm uma longa histó ria de tropos mestres ou metá foras
que aparecem e tentam se referir a algo além das imagens comuns de palavras familiares, como
Self/Ser, Deus e Self. Essas “palavras” sã o como arcos-traços que se referem mais à realidade
mística do que à realidade literal e, como Hermes, estã o na encruzilhada de “di fférance“, um
neologismo que Derrida cunhou da palavra francesa para “diferença” e que carrega o
significado de difference e deferral. 86
O que é continuamente adiado é a ideia de que uma palavra chega a um literal Destino,
indicando uma correspondência um-para-um e representaçã o da realidade.
Assim, por exemplo, a ideia do Self nunca pode ser separada de sua contraparte invisível, o
Nã o-Self, contra o qual deriva seu significado. Uma vez que um insight é marcado por colocá -lo
sob apagamento, a linha traçada através da palavra Self [Self] indica sua negaçã o, sua sombra.
Isso garante que uma ideia nã o será levada ao pé da letra e nos lembra que as ideias
continuarã o a se disseminar ao longo do tempo e da cultura. Nenhum conceito, tropo mestre ou
metá fora pode finalmente completar o jogo ou a totalidade da psique, que, como Mercú rio,
sempre escapa de nosso alcance. O Self [Self] sob apagamento está sempre em um processo de
contínua desconstruçã o e, como a pedra filosofal da alquimia, escorrega “aquele aperto de Be-
griffe que o capturaria”. 87 A leitura de Hillman da alquimia imagina a pedra filosofal como
macia e oleosa, contrariando ambas as imagens Que apontam para sua força, solidez e unidade
e também nossa tendência a cristalizar o objetivo em termos de posiçõ es fixas e verdade
doutriná ria. Para ele, a pedra filosofal é cerosa e pode “receber infinitas literalizaçõ es sem ficar
permanentemente impressionada”. 88 Talvez seja ú til imaginar o Self [Self] sob apagamento
como uma espécie de filosofia contemporâ nea da pedra marcando/sinalizando um mistério que
há muito se procura e continua a ser indescritível/elusivo
.
A Pedra Filosofal: Self, [Self] Sujeito e Alma
O pensamento pó s-estruturalista contemporâ neo procedeu em direçã o a “se nã o uma
liquidaçã o [ou solutio], entã o pelo menos um deslocamento do sujeito do centro da atividade
filosó fica e teó rica”. 89 .Lacan e o filó sofo Paul Ricœur falam de declinar do sujeito e de Foucault
do “apagamento do homem como uma figura desenhada na areia à beira do mar”. 90 A remoçã o
do sujeito do centro da vida psíquica também ressoa com o deslocamento e a relativizaçã o do
ego por Jung. Para Jung, as estruturas do Self também transcendem o indivíduo, e sua essência
“está além do reino subjetivo”. 91
Assim como para Derrida o sujeito é um efeito da linguagem, assim para Jung o O ego é o
produto de uma totalidade abrangente. Em suma, o “Self paradoxalmente não é a si mesmo”. 92
No entanto, na medida em que o Self de Jung como totalidade se eleva acima e além do reino
psíquico e subjetivo e é visto como constituído por forças impessoais e coletivas, é consistente
com a afirmaçã o pó s-estruturalista de que o sujeito também é principalmente um efeito de
forças coletivas maiores: histó ricas, econô micas ou linguísticas. 93 A visã o pó s-estruturalista de
tais forças é bem diferente da ideia mais misteriosa sobre arquétipos e o inconsciente coletivo,
mas para alguns filó sofos (por exemplo, Lévinas) e alguns psicanalistas pó s-junguianos (por
exemplo, Hillman), o distanciamento da subjetividade tornou-se Problemá tico. Resta saber até
que ponto tal sujeito é dissolvido em estrutura e funçã o, com perda de corpo e sensibilidade
ética. Tanto em Lévinas quanto em Hillman, o problema do corpo/sensibilidade e da ética
torna-se um tema importante na constituiçã o do Self/alma, que resiste à abstraçã o. 94 Tanto
Hillman quanto Lévinas tentam manter um sujeito que é ao mesmo tempo carnudo e humano,
enquanto, em Ao mesmo tempo, paradoxalmente, vai além da ideia de um subjeto reificado
e/ou de uma transcendência abstrata.
O “sujeito” que Hillman descreve é um resultado de ter passado por um processo alquímico e
ou o término bem-sucedido de uma aná lise. A transformaçã o da subjetividade é corporalmente
uma Processo doloroso no qual o sujeito pré-analítico ou pré-desconstrutivo deve sofrer
mudança e apagamento. Este apagamento nã o é um simples processo abstrato de pensamento,
mas sim uma poderosa experiência de negaçã o e mortificaçã o que fere nosso narcisismo e
revela nossa relaçã o com o Outro e com o mundo, que era a pré-condiçã o de qualquer
subjetividade para começar. A negaçã o e mortificaçã o do Self é simbolicamente expressa pelo
sol negro e foi aqui indicada pela travessia do Self/Ser [Self]. A escuridã o do sol risca as simples
noçõ es metafísicas ocidentais de luz e consciência. O Self [Self] sob apagamento é uma
abreviaçã o de uma transformaçã o complexa que tem sido descrita de diferentes maneiras,
inclusive como um processo alquímico de desconstrução e ou como uma análise.

Alquimia Arquetípica

Na alquimia como nas literaturas de desconstruçã o e aná lise, a taquigrafia do apagamento


é ricamente expandida e amplificada. Faz parte de uma série de processos complexos e sutis de
dissoluçõ es e coagulaçõ es (solve et coagula), negaçã o e conjunçã o, mortificaçã o e revitalizaçã o.
A ideia de apagamento presta-se à comparaçã o com certas operaçõ es de alquimia que têm a ver
com os processos de morte, calcinaçã o e dissoluçã o e entrar no aspecto mais negro do que o
negro do nigredo, no qual o eu é, em ú ltima aná lise, reduzido a nã o-eu. Tal foco enfatiza o
aspecto da morte da obra e a poderosa reduçã o do narcisismo. Na alquimia, o nigredo é
frequentemente colocado no início do trabalho e, finalmente, acredita-se que o preto do que o
preto seja superado à medida que a escuridã o clareia e cede a outras cores. As mudanças na
coloraçã o refletem mudanças sutis na alma.
Uma leitura desse processo é que ele é linear, progressivo e espiral . Isso resulta em um
objetivo salvacional literal no qual se pensa que a liderança do sujeito pré-desconstruído ou
analítico seja transformada no ouro de um eu ressuscitado, para sempre além de mais
dissoluçã o ou morte. Para Hillman, esta é uma leitura literalizada da alquimia pela qual a
mancha da negritude é dissipada para sempre. Sua crítica a tal leitura é paralela aos insights de
uma leitura desconstrutiva em que falar sobre um assunto pó s-desconstrutivo e/ou pó s-
analítico é problemá tica, como se tal eu ou sujeito fosse um resultado ou produto fixo de tal
processo. Nunca há simplesmente um “depois” de aná lise ou desconstruçã o, e expressá -lo
conceitualmente recria a ilusã o de uma totalidade auto-fechada. Ninguém é totalmente
analisado; nenhuma desconstruçã o está completa; o inconsciente ou a negritude nunca sã o
totalmente elimi-nados. O trabalho alquímico de James Hillman enfatiza o processo contínuo de
desconstruçã o e, ao mesmo tempo, indica um processo transformador que reconhece um
potencial de revitalizaçã o.
Hillman radicaliza nossa leitura da alquimia e resiste a qualquer leitura alegó rica ou
salvacionista dela. Sua voz tem sido importante criticando qualquer leitura de etapas e está gios,
enfatizando, em vez disso, uma maneira de ver que considera cada “fase” por si só . Ele
permanece fiel à alquimia na organizaçã o de seu trabalho em torno das cores como materiais
estéticosque refletem as qualidades da alma. Em uma série de artigos, ele escreve sobre a
“Seduçã o do Preto”, “Azul Alquímico e o Unio Mentalis“, “Prata e a Terra Branca” (partes um e
dois) e “O Amarelecimento da Obra”. Em “Concernente à Pedra: Imagens Alquímicas do
Objetivo”, ele escreve sobre o rubedo, o processo de vermelhidã o. Em todos os trabalhos
mencionados, ele tenta ver através da progressã o linear de um modelo unidirecional
simplesmente progredindo através do tempo.
Um dos perigos de colocar a negritude em um processo de desenvolvimento é a tendência
de se afastar muito rapidamente de sua radicalidade, seu aspecto mais negro que o negro, sua
profundidade, sua gravidade e o suffering associado a ela. A versã o unidirecional e
espiritualizada da obra alquímica quer sair e se afastar da negritude. Seu foco está na mudança
do preto para o branco, do nigredo para o albedo, a fó rmula alquímica clá ssica. No entanto,
concentrar-se no movimento e na transitoriedade de um estado ou cor para outro, por mais ú til
que seja, corre o risco de nã o ver com esse olho escuro que vê a negritude por si mesma e nã o
simplesmente como uma passagem para a brancura, a mudança e a geraçã o.
A tentaçã o de ler a alquimia dessa maneira tem respaldo textual em Edinger:

“O que nã o faz preto nã o pode fazer branco, porque a negritude é o começo da


branquitude”. 95 “A putrefaçã o é de tã o grande eficá cia que apaga a velha natureza e dá outro
fruto… A putrefaçã o tira a acidez/causticidade de todas as bebidas espirituosas corrosivas do
sal, torna-as macias e doces.” 96

Passagens clá ssicas como essas podem levar a pessoa a se concentrar na brancura, no
albedo da nova forma e na doçura suave da renovaçã o. Tais passages descrevem qualidades
importantes de transformaçã o alquímica, mas também podem prestar-se a leituras que podem
reduzir a profundidade escura do processo de putrefaçã o a um momento de negaçã o em uma
dialética intelectual. É ú til lembrar as advertências de Edinger de que o trabalho alquímico é
perigoso e requer tortura, assassinato e morte, bem como a advertência de Hillman de que a
mortificatio ocorre nã o apenas uma vez, mas de novo e de novo. A negritude nã o é apenas um
está gio a ser contornado de uma vez por todas, mas um componente necessá rio da vida
psicoló gica. A mancha preta é estruturalmente parte do pró prio olho metafó rico, um potencial
inerente à possibilidade visual da alma.
Hillman enfatiza que a negritude tem um propó sito: ensina a duraçã o, adverte, dissolve os
apegos e “sofistica o olho” para que possamos nã o apenas ver a escuridã o, mas realmente ver
por meio dela. 97 Ver através da negritude é entender sua contínua atividade desconstrutiva
como necessá ria para a mudança psicoló gica. 98 Ler a alquimia dessa maneira sugere que suas
imagens sã o “condiçõ es psíquicas [que] estã o sempre disponíveis”. 99 Eles nã o desaparecem.
Psicologicamente, é fá cil de ser se-duzido. As cores chamam a nossa atençã o à medida que
mudam de preto para branco para amarelo para vermelho, indicando um movimento de
desespero para os estados mais altos de renovaçã o psicoló gica (placa de cor 16). Nos artigos de
Hillman, também, pode-se traçar tal movimento das mortificaçõ es mais negras para onde, nos
primó rdios azuis, Vênus colabora com Saturno e se transforma na brancura pura do albedo. 100
A perfeiçã o do branco apodrece, mas apenas para o amarelo, abrindo o caminho para o rubedo,
a atividade avermelhada e libidinal da alma à medida que ressuscita e revive a matéria,
coroando-a em beleza e prazer. De fato, Hillman descreve o processo alquímico dessa maneira.
101
Se alguém recuar e abstrair suas descriçõ es e colocá -las em uma visã o de desenvolvimento,
pode-se dizer que isso é de fato o que ele descreve como o processo alquímico, ainda que
diluído.
Tal leitura, no entanto, interpretaria Hillman precisamente da maneira que ele nã o
gostaria de ser lido. Imporia e transportaria uma tendência espiritualizante e
desenvolvimentista das pró prias leituras que ele critica. Lê-lo dessa maneira seria seguir a
atraçã o linear de sua obra para um clichê banal. É sempre muito fá cil colapsar a originalidade E
complexidade em formulaçõ es fá ceis. Uma leitura cuidadosa e séria de sua obra significa que,
apesar de ver e “ir além” do nigredo, seus textos resistem a qualquer saída fá cil da negritude. À
medida que ele se move de cor em cor, os traços de negritude permanecem como um corpo
sutil que impregna a alma com sua pró pria essência contínua. Em suma, ele preserva o
paradoxo luminoso da negritude.
Considere o seguinte de “Alchemical Blue and the Unio Mentalis. Hillman escreve: “O
trâ nsito do preto para o branco via azul… Sempre traz preto consigo. Ursos azuis vestígios da
mortificatio no Branqueamento.” 102 Em “Prata e a Terra Branca”, ele afirma: “‘Putrefaçã o
Estende-se e continua até à brancura’ Devemos, portanto, alterar/corrigir a nossa noçã o de
terra branca.” 103 Da mesma forma, no trâ nsito do branco para o amarelo, o processo é marcado
pela putrefaçã o, apodrecimento, decadência e morte: “O amarelo significa um tipo particular de
mudança geralmente para pior”. 104
Mesmo no “está gio final” da transformaçã o alquímica – a vermelhidã o/rubedo-
testemunhamos a dissoluçã o final da consciência iluminada pelo sol. O
avermelhamento/rubedo da obra também tem escuridã o em seu nú cleo. Assim, mesmo
enquanto Hillman indica o movimento da alma através das matrizes de cores da alquimia, em
cada movimento a essência sutil da negritude funciona de tal forma que a essência da negritude
nunca é deixada para trá s.
Enquanto Hillman critica a ideia de uma leitura espiritual literal e desenvolvimental da
alquimia, ele ainda observa que o sucesso no trabalho depende da ordenaçã o do tempo,
sucessã o e “está gios”. O perigo está apenas em literalizar essa ordenaçã o ou fixar totalmente as
cores das experiências psicoló gicas em categorias rígidas de exclusã o que achatariam,
esgotariam e perderiam sua riqueza e sutileza. Quando isso acontece, o tempo, a ordem, a
sucessã o e os está gios sã o vistos como fases fixas – passos concretos em direçã o a um objetivo
literal. Tal visã o nos deixa presos em uma progressã o linear e histó rica em direçã o a alguma
ilusã o metafísica estendida no tempo, em vez de lutar no meio de imagens diferentes e
impelindo.
Em “Concerning the Stone: Alchemical Images of the Goal”, Hillman dá um exemplo da
complexidade de uma imagem na qual ele se recusa a se separar em “positivo e negativo, escuro
e claro, morte e novo nascimento”. O “grã o e a pérola, o chumbo e o diamante, o martelo e o
ouro sã o insepará veis”. 105 Para Hillman, “a dor nã o é anterior a meta/obra, como a crucificaçã o
antes da ressurreiçã o”; ao contrá rio, a dor e o ouro sã o “co-terminais, co-dependentes e co-
relativos”. “A pérola também é uma garra, uma irritaçã o, bem como um brilho, o dourado
também um envenenamento.” 106 É difícil manter essas dimensõ es opostas da experiência na
consciência, mas, para Hillman, tal descriçã o se encaixa com a vida, “pois estamos
estranhamente desconsolados, mesmo em um momento de esplendor”. Nossa experiência
dourada “uma e outra vez pressionará por testes no fogo, sempre nova escuridã o aparecendo,
corvos escuros com o sol amarelo”. 107
Com base nisso, proponho que a “luz das trevas em si”, Sol Níger, é uma imagem tã o
complexa e que a ideia de regeneraçã o é mais vista em uma consciência mais profunda desse
paradoxo do que em um movimento através e além dele. O paradoxo mantém os “opostos” de
luz escuridão, visível invisível e eu e nã o-eu juntos, e ao fazê-lo há uma “luz”, um
esplendor/effulgence, ou um “brilho” que é difícil de definir ou captar em qualquer linguagem
metafísica. Tomando a liderança de Hillman, minha experiência tem sido imaginar o brilho da
pró pria negritude em sua multiplicidade e, como Hillman e Lopez-Pedreza, resistir o má ximo
possível a outras cores para refletir a complexidade da experiência. Desta forma, tentei extrair
o “preto” de volta da matriz de cores, a fim de dar pleno reconhecimento à sua presença sutil.
Enquanto a negritude parece um pouco diferente quando vista através do azul, branco, amarelo
e vermelho, sua “essência” permanece. Aqui, a negritude nã o precisa ser entendida apenas
como uma cor literal, mas também como uma “diferenciaçã o qualitativa de intensidades e
matizes, que é essencial para o ato de imaginaçã o”. 108 Desta forma, o negro permanece como
um corpo sutil que abraça a psique. Com sua essência contínua, repetindo, desconstruindo,
tinturando, e Fazendo-se sentir no pró prio pigmento da alma. É uma essência de mú ltiplas
diferenciaçõ es e camadas de significado. Vimos que escritores e pintores sabem há muito
tempo sobre as muitas qualidades da negritude. O seguinte é uma observaçã o do famoso pintor
e gravurista japonês Hokusai:

“Há um preto que é velho e um preto que é fresco. Preto brilhante (brilhante) e preto fosco,
preto na luz do sol e preto na sombra. Para o preto velho deve-se usar uma mistura de azul,
para o preto fosco uma mistura de branco; para a goma preta brilhante (colle) deve ser
adicionada. O preto sob a luz do sol deve ter uma reflexã o cinzenta.” 109

Em Os Cânticos de Salomão, Toni Morrison afirma que “Há cinco ou seis tipos de preto.
Alguns sedosos, alguns lanosos. Alguns apenas vazios. Alguns gostam de dedos. E nã o fica
parado. Ele se move e muda de um tipo de preto para outro. Dizer que algo é preto breu é como
dizer que alguma coisa é verde. Que tipo de verde? … Bem, a noite preta é do mesmo jeito. Pode
muito bem ser um arco-íris.” 110 Hillman também ecoa as afirmaçõ es anteriores: “Há negros.
Que recuam e absorvem, aqueles que umedecem e amolecem, aqueles que gravam e aguçam, e
outros que brilham quase com o esplendor – um Sol niger. “111
Além de suas mú ltiplas diferenciaçõ es, a essência negra também é Onipresente – como
John Brozostoski bem demonstra em uma peça que ele escreveu chamada “Arte do Tantra”. 112
Nela ele demonstra a infusã o onipresente de cores em nosso discurso. Começando com o preto,
ele destaca sua presença entre nossas palavras, muitas vezes invisíveis aos olhos e ouvidos
quando nos concentramos apenas na palavra ou significado literalizante. Aqui temos uma seçã o
da Psicologia e Alquimia de Jung tratada com a mesma técnica:

O (preto) lápis, (preto) diz (preto) em (preto) Hermes: (preto) “Portanto (preto) nada
(preto) nada melhor (preto) ou (preto) mais (preto) digno (preto) de veneraçã o (preto) pode
(preto) vir (preto) para (preto) passar (preto) em (preto) o mundo (preto) (preto) do que
(preto) a uniã o (preto) (preto) (preto) de (negro) eu mesmo (preto) e (preto) meu filho
(negro)”. (preto) O (preto) Monogenes (preto) é (preto) também (preto) chamado (preto) de
(preto) “luz escura (negra)”. (preto) O Rosá rio (preto) (preto) cita (preto) um (preto) dizendo
(preto) de (preto) Hermes: (preto) “Self (preto) o (preto) lá pis-lo (preto) gero (preto) a luz
(negra), (negra) mas (negra) a escuridã o (negra) (negra) também (negra) é (negra) da (preta)
minha natureza (negra)”. (preto) Da mesma forma, a alquimia (preto) (preto) tem (preto) a
ideia (preto) de (preto) o sol (preto) (preto) (preto) niger, (preto) o (preto) preto (preto) sol.
À medida que se lê sua descriçã o, a força narrativa de significado é frustrada, interrompida
e começa a se desconstruir. O fluxo de ideias é intercalado por um mantra negro, uma
mortificatio da narrativa articulando os espaços invisíveis, que entã o resistem a qualquer
simples exposiçã o logocêntrica e ao nosso desejo comum do ego por clareza. Essa negritude
invisível nã o está presente apenas nas construçõ es artísticas, mas também é uma dimensã o
inconsciente de nossa vida diá ria. Como a forma musical de um raga indiano, o drone ao fundo
é importante para a articulaçã o das notas individuais

Figura 5.5. Eclipse do sol. © 1994 Martin Mutti. Usado com permissão.

.Se ignorarmos a essência negra, deixando todos os negros de fora, a narrativa torna-se
claro e distinto. Eis a descriçã o sem a palavra “negro” intercalada diante de cada palavra da
narrativa:
“O lápis diz em Hermes: ‘Portanto, nada melhor ou mais digno de veneraçã o pode
acontecer no mundo do que a uniã o de mim e do meu filho’.

O Monogenes também é chamado de “luz escura”. O Rosário cita uma frase de Hermes: “Eu,
o lá pis, gero a luz, mas a escuridã o também é da minha natureza”. Da mesma forma, a alquimia
tem a ideia de sol niger, o sol negro.” 113
Na primeira leitura do mantra, que inclui a negritude, obtém-se a experiência do que está
sendo escrito na exposiçã o narrativa – e muito mais. Há uma conexã o sentida entre a essência
sutil e a multiplicidade da negritude à medida que interrompe e tintura e o nosso discurso
ordiná rio através de uma mortificatio de narrativa que entã o começa a nos dar uma noçã o do
que poderíamos imaginar como a pró pria luz escura, sem forma e animando, produzindo um
prazer aprofundado (gozo) à medida que as demandas do pensamento linear e da narrativa se
relativizam e diminuem.
Nesse momento, o preto começa a brilhar, nã o mais simplesmente confinado no nigredo, e
a alegria está estranhamente ligada ao escurecimento e à desconstruçã o, ou, como diria Lacan,
a falta está ligada ao gozo. Essa alegria negra também é reconhecida na beleza sublime do
Hades, onde, Jung e Hillman nos dizem, tudo se torna mais profundo, passando da conexã o
visível para a invisível, e o invisível brilha com a presença do vazio/desocupado.
A ligaçã o entre gozo e negritude também é feita por Stanislov Grof e capturada em uma
série de pinturas descritas em LSD Psychotherapy. Sobre essas imagens, uma das quais é
apresentada na figura 5.6 em escala de cinza, Grof afirma que através do suffering se chega ao
Sol Negro, “a manifestaçã o do nú cleo mais íntimo do ser humano, o Self di-vina”, que ele associa
à “bem-aventurança transcendental”, nã o muito diferente das descriçõ es da tradiçã o tâ ntrica.
114

O paciente que Grof descreve tinha experimentado o destrutivo Poder dos vulcõ es, mas
tinha vindo a apreciar o aspecto criativo do magma brilhante. Giegerich nos lembra que esse
fogo criativo – um fogo que também contém a metá fora vulcâ nica do fluxo de lava, a matéria
incandescente – está no centro do trabalho de Jung. 115 É uma imagem importante para Jung em
sua visã o da psique. Mesmo que Grof seja Consciente das dimensõ es destrutivas e criativas
desse processo primordial, ele separa o Sol niger, a parte “destrutiva”, do sol negro
transcendente. Penso que isto corre o risco de separar o arquetipo. A meu ver, ambas as
experiências estã o intimamente entrelaçadas e presentes na negritude do Sol niger como uma
imagem arquetípica.
Para Jung, Hillman e Giegerich, o preço da admissã o a essa vibraçã o da alma é a perda do
ponto de vista materialista. Só entã o a alma pode se mostrar como Hades e Plutã o, o submundo
sombrio com suas possibilidades frutíferas e brilhantes. Hillman observa que, de uma só vez, a
escuridã o da noite é “a fonte de todo o mal”, mas que, do ponto de vista dos ó rficos, “a noite era
uma profundidade de amor (Eros) e luz (Phanes)”. 116
Figura 5.6. Através do sofrimento ao sol negro. De S. Grof, Psicoterapia LSD, p. 283. Usado
com permissão de Stanislav Grof.

Esse amor místico é bem descrito em um estudo do filó sofo George Scheper. 117 Hillman
resiste aos proponentes das trevas religiosas e de sua linguagem mística, mas para Scheper e
outros, esses místicos se tornam nossos fenomenologistas mais confiá veis de uma escuridã o
deslumbrante, de Eros e de auto-esquecimento. No antigo Câ ntico dos Cânticos hebraicos, por
exemplo, a busca noturna da sulamita por seu amante é lida como um desendu ad inferno
místico e, em termos da poética do amor, a descida mística à s trevas. Seja na histó ria de Orfeu e
Eurídice, Deméter e Perséfone, Ishtar e Dumuzi, todos simbolizam o poder esmagador e
redentor da paixã o e da escuridã o.
Neste espírito, o Câ ntico dos Cânticos hebraico ressoa com Sã o Joã o da Cruz, que disse:

Ó noite escura, meu guia


O mais doce do que qualquer coisa nascer sol pode descobrir
Oh noite, desenhando lado a lado
O amado e o amante
O ente querido totalmente animado no amante.

Misticismo e Luz Negra/Sombria

O paradoxo cada vez mais profundo do Sol niger como um ponto de conjunçã o entre Hades
e Plutã o e como uma expressã o do casamento místico é aprofundado na paixã o da exploraçã o
mística da paixã o eró tica e da luz negra. A paixã o do amor extá tico é proeminente no
misticismo Sufi. Henri Corbin liga essa paixã o eró tica com o que os sufis chamavam de luz
negra, considerada o está gio espiritual mais elevado e o passo iniciá tico mais perigoso. “A ‘luz
negra’ é a do atributo de Majestade que incendeia o ser místico; nã o está contemplado; ataca,
invades, aniquila, depois aniquila a aniquilaçã o. Quebra… O ap-paratus do organismo humano”.
118

Esta luz é considerada pelos sufis como “um estado espiritual muito delicado”. Em que o
místico entra pouco antes do fanâ (aniquilaçã o) se transformar em baqâ (sobrevivência)” e
marca “um estado compartilhado por ambos”. 119 Neste momento, o olho interior do místico
torna-se escuro e, no entanto, é o ponto em que a pró pria escuridã o é a luz suprema. 120 A
negritude (Siyâ hî), de acordo com Izutsu, na realidade é a pró pria luz do “Absoluto-como-tal” e
“cor- responde… Ontologicamente… Ao está gio da Unidade (ah. Adîyah)” ou “Negritude
Suprema (sawad-e a’ za. M).” “O místico”, observa Lâ hîjî, “nã o percebe a existência absoluta a
menos e até que [um] perceba plenamente o Nada absoluto O Nada é em si mesmo a pró pria
Existência. Pelo absoluto’. Em suma, o nada (ou escuridã o) é, na realidade, existência (luz), e a
luz é, na realidade, escuridã o. 121
Figura 5.7. Imagem do
coniunctio. De C. G. Jung, “A Psicologia da Transferência”, in Prática da Psicoterapia, p. 249.

Finalmente, de acordo com Lâ hîjî, há ainda um outro “está gio” final que pode ser descrito –
chamado de “aniquilaçã o apó s a sobrevivência”, que Izutsu compara ao que o budismo Hua Yen
considera o “ú ltimo de todos os está gios ontoló gicos finais, o célebre ji-ji-muge-hohkai que
representa o limite extremo que o nosso paradoxo da luz e das trevas pode alcançar”. 122 .
Em Dancing Streams Flow in the Darkness, Shunryu Suzuki com-Sobre um poema chinês de
Sekito Kisen em uma de suas palestras zen. 123
O poema chama-se “Sandokai”. Tem cerca de mil e duzentos anos e fala da relaçã o entre
luz e escuridã o, observando que “Na luz há escuridã o, mas nã o a tome como escuridã o. No
escuro há luz, mas nã o a veja como luz.” 124 Para Suzuki, o absoluto é o limite de nossa mente
pensante e nã o pode ser conhecido. Em Invisible Light, Paul Murray captura esse espírito em
um poema intitulado “Câ ntico do Vazio”, parte do qual se segue:

Menor que o pequeno…


Eu sou a semente
De tudo o que é conhecido
e desconhecido.

Eu sou a raiz
E caule de significado,
o chão
De admiração. Através de mim,
cada um conduzindo
Gavinha de desejo
é desenhada,
E respira na
consciência do Self/Ser.

E, no entanto, quando você abre


seus ouvidos para a minha voz
E ouça com toda a sua audição e
ouça novamente,
Nenhuma junção sutil de notas e palavras,
nenhuma música vertical é ouvida

Mas o silêncio é cantante


.
E quando você abre os olhos
para a minha aparência
Mas não pode me ver,
Ou quando você fecha os olhos
E feche os ouvidos em concentração
e olhe com as mãos
E volta novamente as páginas
da escritura escura do sono,
Nenhum sinal grande ou terrível desperta,
nenhuma visão queima

Mas a ausência está brilhando.

O meu é o segredo/secreto
que está escondido
Como a pérola brilhante
reluzente
Dentro de sua ostra

O segredo mais profundo


o segredo
Escondido dentro do segredo. 125

O seguinte poema de T. S. Eliot expressa insights semelhantes:

Eu disse à minha alma: fique quieto e espere sem esperança.


Pois a esperança seria a esperança para a coisa errada; esperar sem amor
Pois o amor seria amor pela coisa errada; ainda há fé,
mas a fé, o amor e a esperança estão todos à espera.
Espere sem pensar, pois você não está pronto para o pensamento:
Assim, a escuridão será a luz, e a quietude a dança…

A fim de chegar ao que você não sabe


Você deve seguir um caminho que é o caminho da ignorância.
A fim de possuir o que você não possui,
você deve seguir o caminho da desapropriação.
A fim de chegar ao que você não é
Você deve passar pela maneira em que você não é.
E o que você não sabe é a única coisa que você sabe
E o que você possui é o que você não possui
E onde você está é onde você não está. 126

Nos termos de Corbin, a luz negra invisível requer um desconhecimento que também é um
saber. Esse estado de desconhecimento é sinô nimo da pobreza mística que atribuímos ao Sufi,
que se diz ser “pobre de espírito”. É uma pobreza em que somos reduzidos ao Nada.
E Deus nã o é ninguém que possa ser compreendido. Em um poema chamado simplesmente
“Salmo” [Psalm], Paul Célan escreve:

Ninguém nos amassa novamente da terra e do barro,


ninguém encanta nossa poeira. Ninguém.
Bem-aventurado és tu, Ninguém.
Aos teus olhos
floresceríamos.
No teu despe
ito.

Um Nada
Nós fomos, estamos agora, e sempre
estaremos, florescendo:
O nada-, o ninguém da rosa.

Com
Nosso pistilo de alma brilhante,
Nosso estame celestial- desperdício
, nossa coroa vermelha
Da palavra púrpura que cantamos,
sobre, ó sobre
O espinho. 127

As ideias sufis de nã o saber e de pobreza mística e luz negra encontram suas contrapartes
na noçã o cabalística e chassídica de “bittul”, a anulaçã odo ego. No discurso chassídico Basi
legani, a anulaçã o do ego é descrita como uma loucura de santidade e autotranscendência, na
qual o trabalho espiritual de transformar a escuridã o em luz é feito na medida em que a
“pró pria escuridã o seria luminosa”. 128
Sanford Drob elabora o reconhecimento cabalístico de uma “escuridã o” Que está no
coraçã o da pró pria luz ” e encontra analogias com o sol negro em três momentos de negaçã o:
em Ayin (como Ein-sof), Tzimtzum e SheVirah. 129 Para Drob, o Ayin sugere “que o nada é a
fonte de toda distinçã o e diferença e, portanto, de toda luz, significado e significâ ncia”.130 O Ein-
sof é referido como a “luz que nã o existe na luz”, e o Sefirot é mencionado como luzes que estã o
ocultas ou, como no Zohar, como a luz da escuridã o (Bozina di Kardinuta). 131
O professor hassídico Bitzalel Malamud explica que o estudo do misticismo judaico
envolve vá rias metá foras clá ssicas que descrevem dinâ micas sublimes. O Sol é uma dessas
metá foras, referindo-se a um nível nã o apreensível de luz finita “que em sua fonte é
completamente anulada e inexistente, mas que, no entanto, emana como um raio para criar e
animar toda a criaçã o, tanto espiritual quanto física”. A metafora, no entanto, nã o conta toda a
histó ria porque estamos pensando em um “sol” finito que, se revelado como a fonte direta do
raio, deixaria e a criaçã o sem espaço para existir com qualquer independência. Malamud
explica que, a fim de permitir um lugar para a existência separada, o sol finito precisa ser
completamente contraído. Na linguagem do cabalista, isso é chamado de Tzimtzum, que é
basicamente o esconderijo da piedade. 132
Em outras palavras, Tzimtzum refere-se à contraçã o da Luz infinita de Deus, a fim de criar
um espaço ou vazio negro para que haja espaço para a criaçã o. Shevirah refere-se, por outro
lado, a uma centelha brilhante que existe como uma cintilaçã o no mar de trevas que pode servir
de base para a redençã o. No universo cabalístico, a luz e a escuridã o existem em uma
interpenetraçã o invisível que, como o Sol niger, pode muito bem ser referida como Escuridã o
Divina.
Um amigo e colega, Robert Romanyshyn, sabia do meu trabalho sobre o sol negro e ele
pró prio estava trabalhando em um livro de poemas chamado Dark Light. Ele me disse que nã o
tinha ideia de por que o título tinha chegado a ele, e ele me enviou o seguinte sonho de um sol
negro:

V. e eu acordamoso em um quarto de hotel. Está escuro lá fora, e estou surpreso porque


parece que deveria ser de manhã . Parece que dormimos e a noite passou. Ligo para o balcã o do
hotel para perguntar a hora e alguém me diz que sã o 9 da manhã . Entã o a pessoa diz: “Você nã o
ouviu? Os cientistas estã o dizendo que há algo de errado com o sol.”
Em um estado meio acordado, uma espécie de devaneio, o sonho parece continuar:
Tenho a sensaçã o de que o mundo agora será iluminado por uma luz escura.
Eu também tenho a sensaçã o de que esses cientistas determinaram que há muito menos
hidrogênio (combustível) e / ou muito menos massa para o sol do que eles esperavam
anteriormente. O mundo vai ficar cada vez mais escuro e frio.
Mas entã o a luz escura, quase negra, torna-se azul/violeta/roxa. Um sol azul, uma bela
aura de cor azul banha o mundo. Penso na cor da cauda do Pavã o na alquimia.

Em uma carta para mim, ele comenta que ficou se perguntando se o mundo estava
entrando em um sol escuro (além, é claro, de falar sobre o significado pessoal do sonho para
sua pró pria vida). Embora nã o seja minha intençã o comentar sobre esse sonho em relaçã o à
vida pessoal de Romanyshyn, gostaria de amplificá -lo um pouco, observando que em The Soul
in Grief: Love, Death, and Transformation, ele discute a trá gica morte de sua esposa. 133
Inabalá vel, ele viveu um Profunda escuridã o e emergiu com um sentimento de gratidã o e a
renovaçã o da vida. Da mesma forma, neste sonho, a escuridã o do Sol niger se transforma em
uma variedade de cores associadas a um símbolo alquímico de transformaçã o, a cauda do
pavã o ou cauda pavonis: diz-se que a cauda do pavã o na alquimia tradicional ocorre
“imediatamente apó s o está gio negro mortal” do nigredo. “Depois do nigredo, o corpo
enegrecido da Pedra é lavado e purificado pela á gua mercurial durante o processo de ablução.
Quando a escuridã o do nigredo é lavada, ela é sucedida pelo aparecimento de todas as cores do
arco-íris, que se parece com um pavã o exibindo sua cauda luminescente. 134
Esta apariçã o é “um sinal bem-vindo de que o alvorecer do albedo Está à mã o, que a
matéria está agora purificada e pronta para a reanimaçã o pela alma iluminada.” 135 Olhando
para esta imagem à luz de nossa exploraçã o do Sol niger, nã o é o caso de que, quando a luz
quase negra se torna um sol azul violeta e/ou roxo banhando o mundo de cor, essa escuridã o
desaparece mais do que a perda de um ente querido desaparece, mas que “o azul é ‘escuridã o
tornada visível’”. 136 Esta é uma ideia que lembra o agora famoso ditado de Jung de que
“nimguém se torna Iluminado por imaginar figuras de luz, mas por tornar a escuridã o
consciente.” Para Hillman, “o trâ nsito do preto para o branco através do azul implica que o azul
sempre traz o preto consigo”. 137
A imagem na figura 5.8 surgiu no final de uma aná lise de longo prazo De uma mulher
artista. O sofrimento através das mú ltiplas mortificaçõ es que a aná lise requer para ser bem-
sucedida permite um florescimento mais completo da imaginaçã o, que se mostra aqui em uma
combinaçã o criativa de penas de pavã o e coruja. A imagem surgiu depois de alguns sonhos, o
primeiro sobre o fim de um caso de amor e o segundo seu “primeiro sonho voador de todos os
tempos”.
Ressonantes com a cauda pavonis da alquimia, os olhos multilaterais da imagem sã o
proeminentes. Para o meu paciente, os olhos eram olhos de gato e ressentiam-se de uma
maneira mais independente de ver que surgiu apó s uma profunda desilusã o. As penas de coruja
a lembravam da visã o noturna, de ser capaz de ver no escuro a transcendência dos céus
estrelados e da deusa Atena, para quem a coruja era sagrada. Os olhos da coruja eram os olhos
de Atena e, como tal, tornaram-se relacionados aos estudos noturnos, à academia e à sabedoria.
A coruja também tem muitas outras referências mitoló gicas, incluindo uma relaçã o com o sol
morto e com a cura. 138
Para Hillman, antes que a cura possa ocorrer e a negritude do Nigredo pode ser
transformado na terra alba, ou terra branca, deve-se ser capaz de ver através de mú ltiplos
olhos e de muitas perspectivas. De um ponto de vista, o surgimento da terra branca deixa a
escuridã o para trá s, mas, como vimos de vá rias maneiras, a terra alba e a escuridã o contra a
qual ela se define formam uma relaçã o íntima e indissoluble de modo que a terra branca “nã o é
pura branca no sentido literal, mas um campo de flores, uma cauda de pavã o, uma pelagem de
muitas cores.” 139
Hillman explica que os mú ltiplos olhos da cauda pavonis refletem o “O florescimento da
imaginaçã o [que] se mostra como a difusã o qualitativa das cores, de modo que a imaginaçã o é
um processo de coloraçã o, e se nã o em cores literais, entã o como a diferenciaçã o qualitativa de
intensidades e matizes que é essencial para a arte da imaginaçã o”.140
Em ú ltima aná lise, para Hillman, essas cores nã o sã o as mesmas que nas Filosofias
jetivistas de Newton e Locke ou de Berkeley e Hume, onde as cores sã o consideradas apenas
como qualidades secundá rias trazidas pela mente e sentidos do observador. Aqui ele inverte a
histó ria da Filosofia. A cor é agora vista como uma “qualidade primá ria” da coisa em si, nã o em
um sentido naturalista, mas como “phainoumenon em exibiçã o” no coraçã o da pró pria matéria,
antes de toda abstraçã o. 141
Figura 5.8. Variação da cauda de pavão. Arte por analysand. Usado com permissão.

Na imagem do meu paciente de cauda pavonis, os olhos tornam-se proeminentes. Eles


olham para o sonhador, o artista e para nó s com uma intensidade que sugere que estamos
vivendo em um universo animado, consciente e vivo que nã o apenas vemos, mas que também
nos vê. Lembro-me de Edinger uma vez comentando que, depois de anos de aná lise e olhando
para os sonhos, coube a ele que os sonhos também nos vêem e que este é o despertar do que
Jung quis dizer com realidade psíquica. Os artistas hindus estavam bem cientes desse
fenô meno, como pode ser visto na imagem de mú ltiplas perspectivas e olhos que vemos na
figura 5.9. É com a constelaçã o da realidade psíquica que os eventos psicoló gicos ganham vida.
Quando meu colega junguiano Harry Wilmer soube que eu estava trabalhando em um livro
sobre o sol negro, ele me disse que fazia pinturas de fios e costurava em tela desde 1941 e que
havia feito recentemente um intitulado O Buraco Negro (placa colorida 17a). Ele me enviou
uma foto de sua imagem e afirmou que a faixa do outro lado do meio é a Via Lá ctea e a grande
esfera no canto inferior direito é a Terra. A fileira de luzes é a aurora boreal, e as explosõ es
cinzentas sã o gases a serem liberados no horizonte de eventos.
Wilmer também comentou que esta imagem mostra o sol negro final que podemos esperar
quando o fim dos tempos chegar. Ele continua: “Naquela época, a teoria nos diz que o
gigantesco buraco negro vai sugar a Via Lá ctea, a Terra e toda a nossa galá xia, incluindo o Sol…
O ponto vermelho é a ‘singularidade’, o corpo gravitacional mais denso possível.” 142
Imagino a visã o de Wilmer como uma imagem definitiva do Sol niger, nã o redutível el à
realidade psicoló gica ou física. Sua descriçã o é sinistra e preta, mas sua imagem é cheia de cor e
vida. Lembrei-me de um artigo no New York Times de James Glanz. Glanz descreve como os
buracos negros têm sido vistos como “masmorras có smicas sem janelas, objetos
ultracomprimidos com gravidade tã o poderosa que qualquer coisa que despenque através de
seus alçapõ es – superfícies chamadas horizontes de eventos que envolvem cada um deles – está
para sempre (206) perdida para o resto do mundo. Universo. Os cientistas acreditam que nem
mesmo os feixes de luz podem escapar uma vez que estã o dentro. 143

Figura 5.9. Os múltiplos olhos da realidade psíquica. Do acervo pessoal do autor.


(208)

Ele continua, no entanto, a relatar uma surpreendente e nova descoberta por astronomos,
que, usando um observató rio de raios-X em ó rbita ao redor da Terra, descobriram um brilho
intenso, um brilho com a intensidade de dez bilhõ es de só is, queimando fora do horizonte de
eventos de um buraco negro enorme, mas muito distante (placa de cor 17b). Em outras
palavras, pela primeira vez, esses astronomos viram energia e luz saindo de um buraco negro e
entrando no universo circundante.
Estas observaçõ es deram origem a muitas especulaçõ es e, provavelmente, o farã o no
futuro previsível. 144 A interpenetraçã o da escuridã o e da luz na visã o de Wilmer e o paradoxo
do enigma do buraco negro é uma reminiscência de um sonho de Jung, que ele relatou em uma
carta ao padre Victor White em 18 de dezembro de 1946. 145 A carta foi escrita algum tempo
depois de Jung ter tido um segundo ataque cardíaco. Jung escreve:

É uma coisa poderosamente solitá ria, quando você é despojado de tudo na presença de
Deus. A totalidade de alguém é testada impiedosamente… Eu tive que sair daquela bagunça e
agora estou inteiro de novo. Sim, no mesmo dia, tive um sonho maravilhoso: um diamante
azulado, como uma estrela no alto do céu, revestido em uma piscina redonda e tranquila – céu
acima, céu abaixo. A imago Dei nas trevas da terra, esta sou eu mesma. Este sonho significou um
grande consolo. Eu nã o sou mais um mar negro e interminá vel de miséria e sofrimento senã o
uma certa quantidade dele contida em um vaso divino.

De forma semelhante, no final de sua vida

O poeta francês Victor Hugo, aos oitenta e três anos, teve um derrame. Quatro dias depois,
durante suas lutas de morte, ele, como Goethe, falou de luz, dizendo: “Aqui está a batalha do dia
contra a noite”. As ú ltimas palavras de Hugo continuaram o que na vida ele sempre fez:
procurar os recessos mais escuros da natureza humana por seus tesouros mais brilhantes. Ao
morrer, ele sussurrou: “Eu vejo luz negra”. 146

Li o sonho de Jung e o comentá rio de Hugo no espírito de Lao Tzu, que escreveu que
“mistério e manifestaçã o surgem da mesma fonte. Esta fonte é chamada escuridã o.... Escuridã o
dentro da escuridã o, a porta de entrada para todo o entendimento”. 147
Gostaria de terminar com uma citaçã o de Arthur Zajonc, que escreveu um livro chamado
Catching the Light: The Entwined History of Light and Mind: “À medida que deixamos os
domínios expansivos da luz, os céus escurecem e a escuridã o cai silenciosamente. Dentro dessa
escuridã o há um murmú rio silencioso, uma voz mansa que sussurra de mais uma parte
insuspeita para a luz, pois até mesmo a escuridã o total brilha com sua força. 148
Assim, nossa jornada para o sol negro termina com um sussurro que começou e termina na
escuridã o, uma escuridã o nã o mais contrá ria da luz, mas um ponto de possibilidade no qual a
luz e a escuridã o têm sua origem invisível, um simulacro de substâ ncia em um mundo sem
fundamentos.
Epílogo

Começamos nossa exploraçã o do sol negro como um experimento em psicologia alquímica.


Começa e termina com um enigma, com um movimento do nigredo da luz para o mistério de
uma escuridã o iluminada. Imaginada em justaposiçã o à luz, a escuridã o lança uma sombra e
prepara o terreno para uma nova barganha faustiana, nã o com as forças das trevas, mas com as
forças da luz. Ao fazê-lo, a primazia da luz é declarada, e os valores da ciência, da tecnologia, da
ordem racional, da patriarquia e do progresso lideram o caminho para a modernidade com suas
surpreendentes contribuiçõ es para a disseminaçã o da civilizaçã o e para a pró pria consciência.
Observamos, no entanto, que se a luz e o sol nos levaram ao presente, isso também levou a uma
repressã o maciça e desvalorizaçã o do lado sombrio da vida psíquica e cultural e exibiu um
ponto cego com a pró pria visã o. Críticos filosó ficos e culturais de nosso tempo apontaram para
as sombras do falocentrismo, logocentrismo e heliopolítica, impulsionadas pela violência da luz,
uma condiçã o que consideramos psicologicamente e simbolizada por uma identificaçã o
unilateral com o Rei / ego e o poder tirâ nico de uma sombra indiferenciada e inconsciente.
Observamos que o Rei despó tico como prima materia deve ser relativizado, e examinamos a
fenomenologia alquímica da mortificatio na qual esse Rei primitivo é torturado, espancado,
humilhado, envenenado, afogado, dissolvido, calcinado e morto.
Essas operaçõ es alquímicas levam a um nigredo, ou descida à escuridã o, que finalmente
esvazia a alma e deixa apenas restos esqueléticos e a luz infernal do Sol niger. Sol niger tem
sido uma imagem difícil de lançar luz, uma vez que, como um buraco negro, ele suga toda a luz
para dentro de si mesmo. Assim, na alquimia e, seguindo-a, na psicologia profunda de Jung, o
sol negro tem sido associado à escuridã o quase que exclusivamente.
Nossa estratégia tem sido manter essa imagem e resistir a qualquer tentativa salvacionista
de ir além dela. Em vez disso, nosso trabalho tem sido o de fazer uma pausa e entrar em seu
reino, seguindo-o em alquimia, literatura, arte e expressõ es clínicas. Entrando neste mundo de
trevas, encontramos Sol niger em seus aspectos mais negros do que negros e vimos suas
dimensõ es mais literais e destrutivas associadas à mortificaçã o narcísica, humilhaçã o, ilusã o,
desespero, depressã o, decadência fisioló gica e psicoló gica, câ ncer, psicose, suicídio, assassinato,
trauma e morte.
Em suma, nó s a seguimos para o coraçã o das trevas, para os mundos de Hades e
Ereshkigal, para o solo de cremaçã o de Kali e o mundo de gelo de Dante, onde visõ es puer de
luz e eternidade dã o lugar ao tempo de Saturnian e aos perigos da noite. Aqui, a ordem racional
se quebra, e as defesas traumatogênicas entram em jogo para evitar o impensá vel, mas o
pró prio impensá vel nos apresenta um mistério, o mistério de uma morte que nã o é
simplesmente literal, mas também simbó lico. A alquimia carrega tais mistérios em uma
estranha e paradoxal confluência de imagens: cadá veres e caixõ es com grã os brotando e só is
negros que brilham. É um mistério que exige mais do que defesa e constela, uma necessidade
que deve ser inserida. Como tal, nó s o concebemos como um ponto de pivô ontoló gico,
marcando uma desubstanciaçã o do ego que exibe tanto a morte quanto a nova vida, luz e
escuridã o, presença e ausência, o jogo paradoxal intrínseco ao Sol niger como um sol negro.
Para os alquimistas, o irrepresentá vel só pode ser percebido pela pessoa interior e era
considerado um mistério no coraçã o da pró pria natureza. Sua estranha luz, o lú men naturae,
era considerada uma centelha divina enterrada na escuridã o e podia ser encontrada tanto na
matéria primordial da arte do alquimista quanto no soma pneumatikon, ou corpo sutil.
Traçamos as imagens do corpo sutil em muitas tradiçõ es esotéricas, bem como nas imagens de
pacientes contemporâ neos.
Para todas as tradiçõ es que exploramos, o corpo sutil é um microcosmo de um universo
maior e uma imagem do divino em forma humana. Esta forma mostrou-se em símbolos do ser
humano primordial, que, entendido psicologicamente, é uma expressã o do Self/Ser. Para Jung,
o Self é uma ideia que tenta refletir a totalidade da psique humana. Destina-se a designar uma
estrutura que inclui tanto a consciência quanto o inconsciente, claro e escuro, e foi considerado
um princípio central e ordenador no â mago da vida psíquica. O Self como uma estrutura
transcendental e superordenada nã o pode ser feito para ser consciente. Em sua essência,
sempre foi considerado um mistério desconhecido que se disseminou em mú ltiplas imagens
arquetípicas ao longo do tempo e da cultura. Vimos como essas imagens arquetípicas
representam mais ou menos adequadamente a totalidade da estrutura arquetípica que tentam
expressar. Para Jung, o Self é uma lente psicoló gica através da qual considerar essas expressõ es.
Essas imagens, talvez por necessidade, sempre ficam aquém da plena expressã o do arquétipo
da totalidade. Consideramos que as mesmas limitaçõ es podem se aplicar ao conceito de
Self/Ser.
Conceitos, bem como símbolos de totalidade e expressõ es de totalidade, tendem a
degenerar e se mover em direçã o à abstraçã o como conceituaçõ es idealizadas e racionais que
nos seduzem a esquecer que refletem fundamentalmente um desconhecido. No que diz respeito
à psique, Jung Escreve: “O conceito de inconsciente não postula nada, designa apenas o meu
desconhecimento. “Observamos a importâ ncia de preservar isso. Mistério que constitui a
estranheza e o milagre da percepçã o no coraçã o do mysterium coniunctionis. Concluímos que,
se falamos de unidade ou totalidade, é importante nã o perder de vista as diferenças teimosas e
as complexidades monstruosas que, se fiéis ao fenô meno, levam ao humor, ao espanto e, à s
vezes, ao temor divino. Como observado, a ideia do Self é a tentativa de Jung de capturar essa
complexidade, mas à medida que suas teorias se tornaram assimiladas e familiares, seu
conceito está sujeito ao mesmo destino que todas as ideias fundamentais. Ou seja, eles logo
perdem sua profundidade original, mistério e qualidade desconhecida.
Em nossa tentativa de falar o indizível, notamos que o Self também lança uma sombra, e
nos concentramos nessa sombra, reconhecendo o nú cleo inominá vel, invisível e impensá vel da
ideia, que alguns se referiram como uma Escuridã o Divina, enquanto outros a chamaram de
nã o-Self. O nã o-Self nã o é outro nome para o Self/Ser, mas é fundado no reconhecimento das
problemá ticas envolvidas em qualquer ressentimento de totalidade e uma marca para a
expressã o profunda deste mistério. Pode-se dizer que todas as tentativas de nomear esse
mistério deixam vestígios na língua em que tentamos falá -lo. Nenhum significante mostra-se
adequado para captar a plenitude da experiência humana. A idéia do Self/Ser, como uma
estrela cadente das trevas, deixa um rastro de metá fora em uma variedade de imagens inscritas
nas margens de nossa experiência. Pode-se imaginar essas imagens como traços de silêncio no
coraçã o do que imaginamos como o Self/Ser.
Em uma tentativa de falar sobre o Self/Ser, temos procurado encontrar maneiras inocentes
de preservar seu mistério, paradoxo e qualidade desconhecida. Tomando emprestado da
filosofia pó s-moderna, o Self foi imaginado como um Self [Self]sob apagamento, como uma ideia
e imagem que tem a mortificatio e a auto-desconstruçã o em seu coraçã o. Tal Self [Self] é
sempre um nã o-Self também. É uma escuridã o que é luz e uma luz que é escuridã o, e desta
maneira de imaginá -la temos um vislumbre do Sol niger.
Experimentalmente, esses dois polos do arquétipo, claro e escuro, estã o em um abraço
eterno, cruzando-se em uma dança que pode parecer a estrutura do DNA. Parece-me agora que
Sol niger pode ser considerado uma imagem arquetípica do nã o-Self, tendo dois polos
integrados e mú ltiplas diferenciaçõ es. Em uma extremidade, o nã o-Self pode ser visto em sua
forma mais literal preso ao nigredo e à mortificaçã o da carne. Aqui o nã o-Self se inclina para a
aniquilaçã o física e a morte literal. Em seu outro polo, no entanto, a imagem arquetípica nã o
está mais confinada ao nigredo e se reflete sob uma luz diferente, onde a aniquilaçã o está ligada
tanto à presença do vazio como ausência, Eros e auto-esquecimento e uma majestade que
incendeia a alma.
Em suma, há uma alquimia e uma arte na escuridã o, um design invisível que
renderiza/preenche e rasga a visã o, chamando-a à sua possibilidade sem fonte. A luz da
metafísica ocidental obscureceu a escuridã o; A razã o sedimentada lançou-a à s sombras,
nomeando-a apenas como sua contraparte inferior. Mas a escuridã o é também o Outro que
também brilha; ela é iluminosa nã o pela luz, mas por sua pró pria luminosidade intrínseca. Seu
brilho é o do lumen naturae, a luz da natureza, cujo sol nã o é a estrela do céu, mas o Sol niger, o
sol negro.

NOTAS

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