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Rio de Janeiro, 22 de julho de 2022.

Ana,

Escrevo uma carta como trabalho final do curso “A Palavra como Campo de
Forças” e a ofereço a ti como uma travessia, um afeto, uma conversa, uma provocação,
um fecho provisório, um desdobramento e reticências... há muitos usos possíveis dessas
palavras, vê aí como faz sentido pra você e, se interessar, faça corpo com elas.

Dia 17 de julho de 2022, domingo passado, meu pai completou 70 anos de idade
e sempre ouvi dele nesses quase 26 anos de convivência algo parecido com que sua mãe
lhe dizia: a palavra está colada à ação. Papai sempre me diz que aprendeu este
ensinamento com os antigos, especialmente com vovô, e afirma quase sempre com as
mesmas palavras: “no meu tempo a palavra valia mais que papel assinado” ou “fui
ensinado a ser homem de palavra”.

Sou dissidente de gênero e de sexualidade numa família católica não-praticante,


heteronormativa e patriarcal, ou seja, ser quem sou é uma travessia que vezes esbarra,
vezes ultrapassa esses limites. Ouvir da figura heteronormativa e patriarcal do meu pai
“homem de palavra” me fez, ao longo de muitos anos, pensar que palavra que era essa.
A palavra de Deus? A palavra de ordem, a palavra disciplinar? A palavra condenatória,
a palavra de ódio?

Certamente, na relação com ele, compreendo seu dizer sobre a palavra valer
mais que papel assinado. Já testemunhei inúmeras vezes meu pai dar a palavra e ir até o
fim com o dito. Às vezes em situações até penosas para ele ou para nós, mas implicado
no compromisso da palavra.

Eis que já, de cara, a pesquisa do mestrado e você, Ana Kfouri, fazem o
chamado para o compromisso em estar implicado com a palavra. Só que não se trata de
um compromisso com palavras ditas e compiladas por sei lá quem e que quer fazer
determinado corpo com meu corpo, mas, sobretudo, o compromisso indissociável de
fazer corpo, um ato de fala e de fazer um ato de fala, corpo.

Atravessado por e atravessando seu chamado, te digo que atualiza em mim a


sabedoria ancestral de minha família paterna, mas com microdiferenças, rachaduras,
frestas, perguntas, sensações – que quem olha, de fora, especificamente para mim, pode
até, por enquanto, não perceber a diferença em meu corpo, mas que ao mover esses
deslocamentos, me coloco no exercício, na feitura, na relação e na ação de, ao mesmo
tempo, vazar minha ancestralidade e vazar meu futuro.

VAZAR

É o exercício, a feitura, a relação, a ação de, como você mesma diz, pôr as
palavras em fuga da própria língua e pôr o corpo enfrentando o poder que o subjuga. É,
em diálogo entre ti, eu e as artistas e pensadoras que falam à minha pesquisa, um
procedimento estético de fuga ante os procedimentos desencantados de uma política de
morte. É, como dizem o historiador Luiz Antonio Simas e o pedagogo Luiz Rufino,
implicar os corpos às dimensões do rito e da comunidade como política de vida, de
encantamento, ou seja, de vivência do corpo como parte integrante e integrada a todas
as formas da natureza – humanas e não-humanas. É, colocando a psicanalista Suely
Rolnik na gira, a tensão gerada pelas potências germinativas do corpo com as formas já
materializada de mundo em nós, que convoca, em nós, o desejo a mover ações que dão
outros contornos, direções e sentidos ao mundo. É, como diz a teórica, artista da
performance e nossa professora Eleonora Fabião, acreditar no impossível como uma
matriz de pensamento e ação. É, Ana Kfouri, como você nos presenteou, estar na língua
entre o rigor e o gozo experimentando o aqui e agora.

O rigor e o gozo da respiração. No chão, fazendo o segundo dia de aula,


trabalhando a respiração: inspiração, vetor pra cima – expiração, vetor pra baixo.
Sensação de fazer xixi. Soltar o ar vagarosamente. Vazio. Vácuo. Reverberação. Soltar
o ar em “s” ou vocalizar em “a”, “é”, “i”, “o”, “u”, “ê”, “ô” ou respiração cachorrinho.
Entre o rigor e o gozo da respiração fui mais ao banheiro, e nunca mais mijei do mesmo
jeito. Entre o rigor e o gozo da respiração, especialmente ao expirar, algumas vezes, fui
percebendo a relação da expiração com dedos dos pés, cotovelos, nuca, ponta da cabeça,
olhos, coração, joelhos, ombros – algumas partes era uma sensação mudança no modo
como me relacionava; nos ombros a sensação era principalmente de relaxamento; nos
olhos de uma ativação, mas em frequência menos olhos ciborgue que quando comecei o
exercício; no coração, uma baixa nos batimentos cardíacos – quase sempre; nos pés,
parecia que saia algo pelas pontas dos dedos e do calcanhar. Lembrando assim de
cabeça. Entre o rigor e o gozo da respiração, percebei o engasgar que dá inspirar com a
boca por causa do desespero da expiração já sem ar ou os arrotos ao falar, expirar. Entre
o rigor e o gozo da respiração, dei conta que muitas vezes não respiro. Entre o rigor e o
gozo da respiração, realizando a prática em ações cotidianas, amenizar o estresse de um
ruído, um “PIIIIIIIIIIIIIII” de uma porta escangalhada do BRT.

Entre o rigor e o gozo do colocar o peso no meio dos pés. Entre o rigor e o gozo
de pesos e pés, lembrei das aulas de técnica vocal de canto. Entre o rigor e o gozo de
pesos e pés, a sensação de fluir mais a inspiração e expiração. Entre o rigor e o gozo de
pesos e pés, a dificuldade de me descocar mantendo o peso no meio dos pés. Entre o
rigor e o gozo de pesos e pés, ter a sensação de que se vou pra frente, ao mesmo tempo,
há vetores de forças que me puxam pra trás; se quebro o movimento numa diagonal, há
vários vetores de força que me puxam em várias direções sustentando a dança.

Entre o rigor e o gozo dos estados de presença, que o estado mínimo me parece o
babado para ir para as ruas ativar programas performativos – não sei se é o mais babado,
mas foi o que nos nossos encontros me deixou mais à vontade para ir para a rua. Entre o
rigor e o gozo dos estados de presença, que o olho é apenas mais um buraco do corpo.
Entre o rigor e o gozo dos estados de presença, afirmei para mim mesmo, como artista
da cena, o desejo de, por enquanto, não ter interesse em fazer travessia com “textos de
terceiros”, mas de sempre ler as palavras que são geradas e geridas em mim, de mim
para o mundo, do mundo para mim – ainda que essa escrita exija ler bastante “coisa dos
outros”, que sempre comparecem em diálogo, em conversa, em troca, em travessia no
que escrevo.

Entre o rigor e o gozo da sensorialidade, que fazer travessias implicadas com o


corpo pode ser dança. Entre o rigor e o gozo da sensorialidade, minhas mãos parecem
querer falar, falar, falar. Entre o rigor e o gozo da sensorialidade, naquela aula, naquele
momento, me interessaram mais a dança do corpo que o dizer as palavras. Entre o rigor
e o gozo da leitura implicada, que preciso trabalhar mais os tons da leitura que faço.
Entre o rigor e o gozo da sensorialidade, ter a sensação de preenchimento do meu corpo
com as cores lilás e amarelo.

Entre o rigor e o gozo, o aqui e agora implicando palavra-corpo, corpo-palavra.

Lidar com diferentes camadas do corpo, me vaza em imagens, tensões


musculares, tensão, violências, sons, alegrias, escutas, chão...

Me parece que seguirei no exercício, na feitura, na relação e na ação de vazar.


Não sei como ainda nas ações na rua – é instigante e sem respostas, nem pistas de como
lidar com esse vazar no espaço amplo da rua. Por outro lado, meu desejo aponta que
continuar vazando implicará muitas, muitas, muitas relações com o mundo e mais
desejo de embarcar, junto com ele, na sua transformação. Pensando e agindo mais
diretamente a minha pesquisa, o exercício de vazar será precioso na escrita dos
programas performativos que contornarão minhas ações nas ruas. Também, assim como
vejo, será precioso para pensar a escrita do registro escrito das ações performativas. E
ainda, para pensar e agir no futuro, bem mais pra frente, quem sabe, talvez, será
precioso para pensar a travessia de uma leitura implicada dos escritos performativos.

Aqui e agora, o desdobramento de nossa travessia juntos me chama para


mergulhar no meu corpo, lidar com essas palavras de Deus, palavras de ordem e de
disciplina, lidar com palavras de julgamento e com as palavras de ódio. Mergulhar e
lidar com a ancestralidade viva em mim para viver o futuro impossível que é meu corpo.
O rigor da palavra e o gozo do corpo. O rigor do corpo e o gozo da palavra. Aaaah,
vazei...

Ana, você sabia que nossos endereços estão a 27,2 KM de distância?

Ana, obrigado por abrir seu espaço e sua pesquisa para conosco.

Ana, sucesso na travessia do pós-doutoramento, certamente, se possível for,


estaremos juntos no lançamento do Focos Móveis.

Saúde, saúde!

Forte abraço,

mar

Marcos Vinícius Marinho Silva da Costa


DRE: 122.012.804

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