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Ana,
Escrevo uma carta como trabalho final do curso “A Palavra como Campo de
Forças” e a ofereço a ti como uma travessia, um afeto, uma conversa, uma provocação,
um fecho provisório, um desdobramento e reticências... há muitos usos possíveis dessas
palavras, vê aí como faz sentido pra você e, se interessar, faça corpo com elas.
Dia 17 de julho de 2022, domingo passado, meu pai completou 70 anos de idade
e sempre ouvi dele nesses quase 26 anos de convivência algo parecido com que sua mãe
lhe dizia: a palavra está colada à ação. Papai sempre me diz que aprendeu este
ensinamento com os antigos, especialmente com vovô, e afirma quase sempre com as
mesmas palavras: “no meu tempo a palavra valia mais que papel assinado” ou “fui
ensinado a ser homem de palavra”.
Certamente, na relação com ele, compreendo seu dizer sobre a palavra valer
mais que papel assinado. Já testemunhei inúmeras vezes meu pai dar a palavra e ir até o
fim com o dito. Às vezes em situações até penosas para ele ou para nós, mas implicado
no compromisso da palavra.
Eis que já, de cara, a pesquisa do mestrado e você, Ana Kfouri, fazem o
chamado para o compromisso em estar implicado com a palavra. Só que não se trata de
um compromisso com palavras ditas e compiladas por sei lá quem e que quer fazer
determinado corpo com meu corpo, mas, sobretudo, o compromisso indissociável de
fazer corpo, um ato de fala e de fazer um ato de fala, corpo.
VAZAR
É o exercício, a feitura, a relação, a ação de, como você mesma diz, pôr as
palavras em fuga da própria língua e pôr o corpo enfrentando o poder que o subjuga. É,
em diálogo entre ti, eu e as artistas e pensadoras que falam à minha pesquisa, um
procedimento estético de fuga ante os procedimentos desencantados de uma política de
morte. É, como dizem o historiador Luiz Antonio Simas e o pedagogo Luiz Rufino,
implicar os corpos às dimensões do rito e da comunidade como política de vida, de
encantamento, ou seja, de vivência do corpo como parte integrante e integrada a todas
as formas da natureza – humanas e não-humanas. É, colocando a psicanalista Suely
Rolnik na gira, a tensão gerada pelas potências germinativas do corpo com as formas já
materializada de mundo em nós, que convoca, em nós, o desejo a mover ações que dão
outros contornos, direções e sentidos ao mundo. É, como diz a teórica, artista da
performance e nossa professora Eleonora Fabião, acreditar no impossível como uma
matriz de pensamento e ação. É, Ana Kfouri, como você nos presenteou, estar na língua
entre o rigor e o gozo experimentando o aqui e agora.
Entre o rigor e o gozo do colocar o peso no meio dos pés. Entre o rigor e o gozo
de pesos e pés, lembrei das aulas de técnica vocal de canto. Entre o rigor e o gozo de
pesos e pés, a sensação de fluir mais a inspiração e expiração. Entre o rigor e o gozo de
pesos e pés, a dificuldade de me descocar mantendo o peso no meio dos pés. Entre o
rigor e o gozo de pesos e pés, ter a sensação de que se vou pra frente, ao mesmo tempo,
há vetores de forças que me puxam pra trás; se quebro o movimento numa diagonal, há
vários vetores de força que me puxam em várias direções sustentando a dança.
Entre o rigor e o gozo dos estados de presença, que o estado mínimo me parece o
babado para ir para as ruas ativar programas performativos – não sei se é o mais babado,
mas foi o que nos nossos encontros me deixou mais à vontade para ir para a rua. Entre o
rigor e o gozo dos estados de presença, que o olho é apenas mais um buraco do corpo.
Entre o rigor e o gozo dos estados de presença, afirmei para mim mesmo, como artista
da cena, o desejo de, por enquanto, não ter interesse em fazer travessia com “textos de
terceiros”, mas de sempre ler as palavras que são geradas e geridas em mim, de mim
para o mundo, do mundo para mim – ainda que essa escrita exija ler bastante “coisa dos
outros”, que sempre comparecem em diálogo, em conversa, em troca, em travessia no
que escrevo.
Ana, obrigado por abrir seu espaço e sua pesquisa para conosco.
Saúde, saúde!
Forte abraço,
mar