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INDIVIDUO E PESSOA HUMANA ‘A nogdo de pesséa é um bem comum de nossa geracio (1). Se o problema do mundo nfo é mais do que um problema do homem, sua solugéo esté na su- preensic da pesséa que cada homem, constitue. De fato. Logo que o homem entra a privar com 0 seu féro interior, logo que comeca a sentir-se um ser misterioso, vé 0 mundo sob um novo panorama € as questies sociais (que sio as que nos intetessam) se pSem, diante dele e se resolver de um modo diferen- te, Assim, o primeiro ato revolucionario, em verda- de, praticado por um homem é esta constatacio de sua pesséa, de sua vocacio sobrenatural. O individuo € um atomo que se junta a outros atomos, na coleti- vidade. Como pessda, 0 homem se une aos outros pela comunhio, pelo respeito mutuo, © homem participa de dois planos: do plano natural, como individuo, e do plano sobrenatural, como espirito. Como indivi- duo é uma categoria natural. O individuo ¢ a parte do homem que 0 identifica com os animais, o faz es- (1) Denis de Rougemont. 4 GUERREIRO RAMOS cravo das mesmas leis, da necessidade, do determi- nismo. E a porcdo animal do homem, provida do ins- tinto de conservacao, que o faz egoista. O individuo se fecha em si mesmo e no é capaz de solidariedade, de transbordar-se, de encher outra e de encher-se de outra alma. E o pri egoista da conservacdo da espécie, O jduo € narcisico, adora-se a si mesmo, domina-the o instinto da posse. O seu procedimento. no mundo, cria o meu e o teu, porque ele vé, em cada semelhante, um possivel émulo, um possivel i ¥ o principio da divisio, da fragmentacio social. O individuo é a nossa condigéo de animal humano. O mundo criado pelo esforco do individuo é sempre de estruturacio mecanica, isto é, um mundo de desi- ealdsdes ‘sorgtotcan, teapontis pelo on, pe alah pay polici _O individuo é essencialmente organizador. Sua razio, utilitéria. Nunca tem por fim 0 bem e o belo absolutos, mas o util. E este util nem é mesmo o util de Sécrates, sinénimo de aperfeigoamento espi- ritual, de sabedoria, de virtude, mas, 0 util pratico, farisaico. Porque ha razo e razlo. Uma que é a prépria inteligéncia e cujo objeto é 0 ser, 0 ente, uma faculdade divina; e outra que é uma degradacio desta pela qual o homem procura sempre obter um lucro. E esta iiltima que organisa a cotidianidade so- cial, © Estado, a lei, a norma, a policia, © mundo mo- derno que marca especialmente esta vitéria do indi- viduo sobre a pessda é resultante do trabalho da ra- zo utilitaria. Sua ciéncia anti-finalista e escrava do util busea o pritico, se transformou numa verdadei- INTRODUCAO A CULTURA 65 ra técnica pela qual 0 individuo procura defender-se. © zelo excessive da experimentacéo em detrimento da’especulagao fez dela uma ciéncia anti-humana por- que anti-finalista. © homem é um animal que se nu- tre de transcendentais (2), e sua ciéncia, para ser uma sua realizacéo, em vez de entrave, tera de ser forcosamente uma ciéncia finalista, do subsistente no do contingente, da substancia e ndo do acidente. Do mesmo modo, a arte do individuo nfo visa o belo increado, a plenitude da vida, mas se faz um di- vertimento, um supérfluo, um luxo, um apéndice, escravisa-se a regras e formas rigidas, pragmati- zase, torna-se convencional, deixa de exprimir © tormento humano pela decifracio do enigma da vida, porque 0 individuo vive no mundo do parti- cular, do atual, da sensaclo, O individuo, assim, quando se faz artista é 0 ¢alento, O talento é cere- bral. A sua cultura é uma aquisicdo, isto é, 0 talento trabalha apenas com a meméria e com a reflexio. Com a meméria se ilustra, consegue fazer do espiri- to um pordo, fazer-se um arquivo, acumular nogées, tornando-se um eriidito. Com a reflexio estabelece relacdes légicas entre essas idéias assim adquiridas ¢ combina-as, Esta é a sua criagdo, Nao langa 0 seu olhar sobre a causa original do ser, sobre os confins da sua pesséa, mas vive longe dela, dissolvido na pe- riferia; nem tampouco, no exterior, procura inves gar a5 esséncias das coisas, a providencia particular (2) Axistoteles, 66 GUERREIRO RAMOS de cada uma delas mas, apenas, toma conhecimento de suas relagdes necessérias porque £6 isto é pratica- mente util, O seu metodo filoséfico de investigacio da verdade no é a maieutica. Aprender (3) no € co- nhecer-se a si proprio, no é dar & luz ao verdadeiro, nfo € informar-se de si, de sua intimidade profunda, mas, do exterior, dos outros, do pratico. A vida ori- ginal, que é interior, se petrifica em formas oBjeti- vas, no mundo do individuo. Nao se determina con- forme o seu mundo interior, espiritual, conforme sua coneiéncia original, vis-a-vis de Deus, mas vis-a-vis da cotidianidade social, da lei, da opinigo pablica. E assim € a sua moral. Moral farisdica e no do ato criador (4). individuo, porque vive no prazer da posse su- perficial de si mesmo, ndo ama a soliddo. $6 vale em grupo, na coletividade. Este 6 0 paradoxo do indivi- duo. Sozinho, 0 individuo perde o seu egoismo, 0 amor de si e nada vale perante sua propria concién- cia, Ele, que é 0 principio da fragmentagio social ¢ da Iuta pela vida, pela conservacio, tem uma necessi- dade essencial destes outros individuos que rivalisa e combate, é obrigado a se juntar a eles, néo com o desejo do semelhante, da compreensao muitua, do amor desinteressado, mas da emulagio pela emul do. O individuo é um economista da dér. Poupa-se, ‘Tem horror a dér. Por isso 0 seu softimento no & fecundo. A d6r que, para a pesséa, é um meio de con- (3) F.7D. Pontos do Filosofia. (4) Berdiaett — Destination de Fhomme. INTRODUCAO A CULTURA 67 quistar-se, aperfeicoar-se, torna o individuo um res- sentido, 0 exacerba, enche-lhe 0 coracdo de despei- to e ddio, Assim, pesséa e individuo se oppdem como sofrimento e ressentimento, Os bens do individuo sdo absolutamente materiais. Por isso, 0 seu sofri- men: prejuizo, uma priva- cio, em vez de um meio de ascese, de subir as esfé- ras da espiritualidade, O sofrimento que faz o indi- viduo baixar ao ressentimento faz a pessoa subir a0 dom de si, & abnegacio. Si para a pesséa, 0 absoluto € 0 bem incriado, para o individuo € 0 util. O indivi- duo € do mundo e nfo quer perder nada dele. Por isto é que reconhecemos nas reivindicacdes do tipo fascista e comunista esta revolta do individuo e Ihes negamos um valor spiritual. O grosso do fascismo e do comunismo é formado de ressentidos, de ho- mens que querem ter tambem os direitos materiais da existéncia. Fascismos ¢ comunismo querem salvar © individuo e nao a pesséa, sAo uma revolugao mate- rialista e nio sei porque nao se considera, um como outro, como igualmente anti-humanos, porque anti- personalistas. O sofrimento é 0 filtro do homem, e uum meio de purificacdo da pessoa. O homem ascende ao plano da espiritualidade, da pesséa, quer dizer, chega a plena posse de si, através do sofrimento, da constatacio dos seus vicios, de sua imperfeicdo, de sua miséria, do descontentamento de si mesmo. O individuo nunca esta descontente de si, nunca se acusa e por isso no progride espiritualmente © sua forma de sofrer é 0 ressentimento. Tudo, para ele, se mede materialmente, e o seu bem ¢ o bem fariséi- 68 GUERREIRO RAMOS £0, o bem legal, a sua conducta é social, ditada pela moral piblica. O individuo é um ser social que vive rodeado de tabiis aos quais ter destas coisas, ap: absolutamente nominalista. As palavras o dirigem e ele todo permanece verbalisado. Fala em Deus sem, em verdade, acreditar no Bem. O indiv téncia, 0 principio pagao, bretudo, 20 teliirico, 20 to burgués da existéncia € de todos os tempos onde © individuo impera. Ope-se ao sentimento trégico da vida que € privativo de pesséa. E aqui tocamos o amago da questio do indivic duo e da pesséa. Quando no homem se da a vitéria do individuo sobre a pesséa & que se perdeu o senso isto que se chama — pecado. Ter o senso do pecado é ser trégico, & viver a vida incandescente, da luta escafandrica do male do bem, do tempo e da eter. dade, da espiritualidade ¢ da teluricidade. 86 a pes- 86a sabe que peca. O individuo perdeu o senso do Pecado ¢ sua conciéncia nunca o acusa porque ele est esquecido, perdeu as antenas do Espirito responsa- vel. © individuo, na apaixonada adoracio de si, nao Surpreende suas culpas. Esta rouillé inveterée de no. tre nature (6) como. dizia Bossuet referindo-se ao Pecado, 0 individuo mio a sente como um peso em ‘Em, Rimbaud, te drame spirituel— Daniel Rops, INTRODUCAO A CULTURA 69 sua alma. Para o individuo, o mal no esté dentro dele, mas nos outros, na sociedade, nas dificuldades da existéncia, na natureza. Sua conciéncia nio € in. dividual mas gregaria, sua responsabilidade, social ¢ nao pessoal. De tal modo esquecido de todos os nexos Profundos da existéncia, que so 0s tnicos que nos Podem fazer responsaveis perante a realidade trans. cendente, 0 10 euférico e anestesiado, Assim, finge viver, pois, a verdadeira vida é luta, lute Combate do mal e do bem. © homem que re- gus comprometer-se renuncia a vida responsavel que € a vida do sé © mal esté em nés e é a morte. O homem morre Si o mal o conquista inteiramente. A vida é este com, bate espiritual interior e profundo, contra a morte, contra o mal, contra nés mesmos. Assim, o verdadeic determinados pela con- necessério, para ser uma © processa o dra- io descer ao mistério do ser. 8 silo, pois, atentatérios a vida ito. © mal e o bem no sio catego- em sociais, mas ontolégicas. Quando o homem deixa de determinar-se ontolgicamente para T segundo a ética normativa, social, é que so- n trabalho de deshumanizacéo. © homem pre- cisa ter a revelacdo do mistério do seu ser, de sua exis. fencia para comportar-se, para proceder como pesséa, Ro mundo, Quando Durkheim e os sociologos natura, {istas preconisam a cozcio social e admitem que a so. Gledade forma o homem, & que Ihes falta o senso da 70 GUERREIRO RAMOS pesséa, no conhecem a revelagdo, consideram 08 ho- mens como individuos. Si assim fosse, si o homem procedesse, na sociedade, como individuo, somente, no deixaria de assistir certa razdo a Durkheim, mas, é preciso levar em conta a forca an-arquica especific dora da pesséa, a luta do principio ontolégico original e do principio normativo social. Nao se péde estudar © homem com 0 mesmo método positive das ciéncias, Nao se devem considerar os fatos sociais como cei sas (7) porque o homem, agindo, procura sempre realizar-se através dos meios sociais. O mundo da lei, de moral normativa 6 sempre imoladot do homem, A lei atesta a estratificacdo, a ossificacéo da vida ori- ginal. Surge para organizar a cotidianidade, a vida do homem pecador, do individuo. A nosso ver, a0 ho- mem que se habituou a privar com o mistério pro- fundo de sua pesséa o comando terreno da lei parece- The um sacrilégio, uma profanacio, Chegamos A plena anarquia, Toda justica humana, terrena, social & in- justiga. Toda moral € imoral, Toda sabedoria cien- tifica, puramente humana, estulticia diante de Deus. S. Paulo é, depois do Cristo, o mestre incom- paravel da an-arquia especificadora da pesséa, Quan- do diz: — “no momento em que julgas outro, 2 ti mesmo te condenas” (8) — execra imp! todo juridismo soci Mais categérico, porém, se —“a fora do pecado 6 a lei” (9). A lei é, assim, (2) _Regras do Método Sociolégico — Durkheim, 8). Ep. aos Romanos—Cap. 2—1 (0) Bp. sos Corintios — Cap. 15 —56. INTRODUCAO A CULTURA 71 para a mfstica, atéia, inicio de uma oposi¢io a Deus. Organiza 0 mundo sem tomar conhecimento de Deus, como se Ele ndo existisse, i a prudéncia estulta da carne que é morte (10) e s6 a lei do es- pirito de vida nos péde livrar do império da lei do pecado e da morte (11). Com isso, nfo pregamos a anarquia social, 0 des- governo, a auséncia da moral ¢ da lei, mas queremos, mostrar em que se fundamentam e qual a importan- cia do individuo no tocante a estas coisas. O indivi- duo se determina, absolutamente, como dissemos acima, pelo exterior, e nao priva consigo mesmo, Res- peita a todos aqueles tabiis e deles tem um terror in- fantil ¢ elementar. A pesséa, porém, penetra na es- séncia das coisas ¢ nega-se a deixar informar-se pelo exterior porque suas raizes se localizam no eterno e nio no passageiro, Assim, somos levados a admit como deshumanas, todas as sociedades em que o ho- mem procede como individuo. Em vez do absolutismo da lei, da moral, do social, nao a supressio, mas 0 mi- nimo necessario disso tudo. Quando vivemos numa época de utilitarismos grosseiros em que as reivind cages sio encaradas, somente, do ponto de vista ate do individuo, cremos urgente levantar um grito pela pess6a humana, que antes de tudo é sagrada, inviola- vel. Recusamos os totalitarismos porque queremos ser pesséas e pensamos que s6 uma revolucio de inspira- do personalista é verdadeiramente reivindicadora ¢ (10) Ep. aos Romanos —Cap. 8-6, (G1) Bp. aos Romanos — Cap. 8—2. R GUERREIRO RAMOS humana. O que ha de mais caro para a pesséa humana é sua liberdade ¢, por isso, presamo-la, pensamos que ninguem péde impor a outrem uma revolugio, uma iberdade, e até mesmo a prépria verdade. A pessoa & ho da liberdade, com suas mios, pela conversio. A pesséa é 0 niicleo onde Deus esta presente no homem. Por isso, todos 08 problemas se resumem num s6 — no problema de Deus. Si isto tem sido verdade em todos os temp8s quanto mais no mundo moderno em que o homem se acha dissolvido, em que 0 homem nao constitue uma pess6a, que € a imagem de Deus, e é absolutamen- te individuo, um atomo da sociedade. Essa dissolu- do da pesséa humana modificou totalmente as rela~ ges do homem para com 0 homem e para com Deus. Por esta razio as existéncias verdadeiramente revolucionérias sio aquelas dos misticos, Dos ho- mens que vivem imersos em Deus, A missio do mistico, no mundo contemporaneo, é ensinar ao ho- mem a retomar o caminho das verdades eternas, é dar-Ihe 05 meios para que ele se desembarace de seus sestros, de seus habitos, de suas taras adquiridas, & ensinar-Ihe 0 cai 10, © caminho de si mesmo, ias essas vidas tragicas, essas vidas loucas desses homens que vivem empolgados pelo grande drama de Deus em suas almas. Sdo ne- cessirias as vidas desses grandes dolorosos, desses grandes desconsolados, desses grandes sequiosos da luz vivificante, sedentos do sentido da vida. INTRODUCAO A CULTURA 73 A verdadeira e mais dificil revolugio & a dos mis- ticos. Eles so os revolucionarios no plano espiritual. Sao exclusivistas. Uma revolucdo situada unicamen- te no temporal nos parece um atentado contra Deus. % claro que nao é possivel um mundo de misticos. Mas, no momento, estas vidas sio de uma importin- cia extraordindria e nfo devem ser perdidas de vista. A lico do mistico nos ensina que uma revolucao 56 € valida quando modifica o mundo, convertendo 0 homem. E preciso converter e nio convencer. Ha dois espiritualismos. Um que se adquire nos livros (dos convencidos) ¢ outro que se experimenta (dos convertidos). E necessério que a revolucéo se erija neste iiltimo, Um homem se péde dizer espiritua- lista e ser o contrario e vice-versa. & por isso que se deve combater os homens que servem cegamente as ideologias. B_necessério combater 0 idealismo das ideologias pelo realismo, Uma revolucio idealista é deshumana. O ideal é um molok que exige o sacrificio do homem ¢ até mesmo de Deus, como nas ideolo- gias modernas, em que o homem nao teme dar a sua vida pelo partido, pelo proletariado, pela nacio. As ideologias modernas sio os iiltimos rebentos da re- volta da criatura contra o Criador. # preciso acabar riado, da _na- do partido. # necessério acabar com a falta de dignidade desses ideologos exaltados que vivem tira- nizados por abstragdes, esquecidos de que sio ho- mens. Em verdade sé ha u'a mistica digna do homem — € aque conduz a Deus, GUERREIRO RAMOS Precisamos trabalher pela revolucéo pura, pela Tevolugio realista e ndo idealista, Realismo contra idealismo. Homem contra abstragio, Uma revolucio Pura é aquela que pée o espiritual acima do tempo ral. Um revolucionério integral & aquele que nao esta tiranizado pelo prosaico, pelo anedético, mas, orde- na © transitério ao permanente. Uma revolugdo pura € aquela que afirma Deus, néo como uma idéia, mas como uma realidade viva, uma realidade experimen- tal, e que afirma, tambem, o homem como pesséa. Como pesséa o homem se une em comunidade. Como® individuo, © homem se une em coletividade, Comu- nidade é realidade, Coletividade é abstracdo. Uma re- volugdo deve ser cominitéria. © homem como pesséa Se une aos outros homens pela comunhio, eriando 0 16s ¢ 0 nosso (12). E neste sentido que uma revel. sdo_pura deve ser personalista e nio individualista. Visa realizar os interesses da pess6a, manter a sua in- tangibilidade, assim como a dos grupos naturais. A Pess6a é revolucionaria por natureza. Por isso, 2 me- Ihor tética revoluciondria a seguir € dar ao homem os meios para que ele descubra, em si, a pesséa, necessario nascer de novo para sentir a necessidade da revolugio. A revolugio esté em nés, antes de tudo. A revolugio € 0 arrojo do homem para ser © que essencialmente é, diziamos, acima, Uma revoluclo 86 € vilida quando for uma escola em que os seus adeptos aprendam a encontrar-se a si mesmos. Por- que € necessirio, antes de tudo, converter 0 homem (12) Perroux—Vie Intelectuclle~Dez. 1986 e Jan. 1937, INTRODUCAO A CULTURA 75 * ls ee A pesséa é pois uma presenca, Presenca de Deus. Imagem de Deus em nés. Sem Deus nao Péde existir pesséa. A nogdo de pesséa inclue a no- go de Deus, do Cristo, que foi, mesmo, a primei- Fa pessda que existiu. Todo homem pesséa é um Cristo auténtico. A pess6a é de natureza divina e humana. teandrica, A pesséa é a realidade profun- da ¢ iiltima do homem. uma nog&o quasi privativa do cristianismo, Sintese admiravel de humanidade € divindade, é a pesséa dificil de ser vivida. Quasi se péde dizer que ninguem viveu, de modo absoluto, como pesséa, a néo ser o Cristo, a mais perfeita, ¢ 5 santos. Nos podemos ter conciéncia de que somos uma pesséa, podemos saber da existéncia da pessda Que constituimos, mas, quasi nunca, a realizamos in- teiramente, integralmente, s6 conseguimos ser per- sonalidades. # necessi s, fazer esta gradacdo: individuo, auséncia de conciéncia da pessoa; persona- lidade, surpreensio e conciéncia de uma pessad, pes- 86a propriamente. A personalidade é a condicao de todo homem que cai e levanta na luta para realizar 0 seu destino particular, a sua vocagio, a sua pesséa, Ser pesséa é ser como Cristo, digo mal, é ser um Cris- to ou um Santo, Quando afirmamos que a pes 86a € uma nocdo privativa do cristianismo nao admi- timos que um homem ignorante dele n&o possa vi- ver como pesséa. Nao. O cristianismo é a tradugdo da Fealidade humana, é a teoria da natureza teandrica do 76 GUERREIRO RAMOS homem e Tertuliano, com razio, dizia que a alma hu- mana é naturalmente cristé. De modo que, mesmo que © homem se determine exteriormente por esta ot ido nao cristis, mesmo que seja ateu, ndo poderd, em certo senti ir de ser cristo, Assim, como pesséa o homem péde chegar ao transc pagio, o individu, vive sempre £ falta de qualquer coisa, porque é desi: compér si dente, 0 vino. O homem se a Deus nio ha homem. O processus do pagani: esse complexo de falta que dominava toda antigui- dade. O mundo classico vivia a espera, em especta- tiva, sob uma tensio tragica, evoluia no sentido da Fevelagdo cristi, Cristo foi o desfecho magia, 0 pagio e: Cristo, do esperado. ¥ este 0 sei 2 paga (13) pagani a Porque existem ainda povos que desconhecem 0 Cristo. O estado destes povos é pre-cristéo. As idades humanas se interpenetram, vive, uma do das outras, e si nés chamamos a Rossa era de cristd é porque as correntes majori da humanidade atual se converteram ao Cristo. (43) Maritain — Science et Sugease — Pg. 83. INTRODUCAO A CULTURA 77 Ego sum via, vita et veritas. E, por isso, a missio do cristianismo, que ¢ a sintese de todas as idades, & universal. O cristianismo néo esta ligado a nenhuma regio, infeudada a nenhuma civilisagéo terrestre, sua missfio & essencialmente sobrenatural, supratem- poral, enquanto as outras religides sto partes inte- grantes de certas culturas determinadas, particulari- ges supra-raciais, fundem iS 08 cristdos e nio o cristianis- ida eterna. smo chegaram ao plano da pesséa, ao Cristo, Sécrates, quando afirmava que havia uma provi particular para cada ser vivia a essda. O seu “deménio”, ou parturiego das verdades, afirmam le possuia em alto grau, o senso da revelacdo, se uma pessoa (15). E 0 mesmo diremos de ue o BEM absoluto era jeles que foi um cristio autén , tinha um conhecimento perfeitamente cristo de Deus, da inteleccdo divina: “pensamento do pen- samento” (16) — e que deixaré, para S. Tomaz, um dia, aproveitar, para gloria da Igreja, 0 mecani mo conceitual da perennis philosophia. © ainda hoje um Rabindranath Tagore e um Gandi, mesmo (4) Maritain — Rétigion ot Outture 15) F. T. D.— Pontos do Filosofia Tomo TI, (28) dem. 8 GUERREIRO RAMOS através de uma conceituago errénea, sio pesséas que Chegaram, parece-nos, a um conhecimento eristio das felagdes entre o homem e Deus, sio “‘nostilgicos do cristianismo”, como o é, mais fortemente, André Gide, O seu “Les Nourritures terrestres”, em, que procura glorificar o instante e 0 gozo, denuncia Tormento subterraneo de uma alma que Iuta com Deus e 0 sente e 0 experimenta, porém, que ainda quer sorver o bom vinho do pecado. — “Commande- nents de Dieu, vous avez rendu malade mon me, vous avez entouré de murs les seules pour me desal- terer” (17) — diz ele — e nisto vemos o tormento da criatura pelo Criador (18). ‘Péde acontecer — escreve Maritain — que, sob um nome qualquer, que nao seja o de D: pode acontecer (sb Deus 0 sabe) que o ato interior Yo pensamento realizado por uma alma se refira a tuma realidade que seja, de fato, Deus. Porque & pos- Sivel haver uma discordancia entre 0 que acredita- mos em realidade e as idéias com as quais nos exp! amos a nbs mesmos 0 em que acreditamos ¢ adquiri- mos conciéncia de nossa crenca. No momento em que ‘ima alma, ainda que desconheca o nome de Deus, ainda que educada no ateismo, no momento em que sta alma, se pde a pensar por si mesma e a eleger geu fim ultimo, a graca vem oferecer-lhe como objeto para amar acima de tudo, — seja qual f6r o nome sob (37) Gide —Les nourritures terrestres — Pg. 131. (G5) ‘este respelto 6 notavel um eatudo de M, Mendes em Lantorna Verde, no 4. INTRODUCAQ A CULTURA 79 ‘© qual a alma queira representar-se esta coisa — a realidade perfeitamente béa, digna de todo nosso amor e capaz de salvar nossa vida, E si esta graca nao € recusada — continua o admiravel filésofo de Meu- don — a alma, ao optar por esta realidade, cré real- mente em Deus verdadeiro e elege realmente Deus verdadeiro, ainda que, nao por sua culpa, sendo pela la, suas crengas sejam err6neas e sett sistema filos6fico ateu, e conceitualise, até, esta fé no Deus verdadeiro, com formulas que neguem sua existéncia. Dé-se 0 caso, pois, de que um ateu de boa £€ chegue a eleger realmente a Deus como fim de sua vida, contra o que tem escolhido aparentemen- te (19). * * Cada pesséa é um mistério. Todo homem, com- porta uma zona de identidade que ¢ adquirida, que é experiéncia social ¢ individual pela qual mantem as relagdes de superficie com as outras pessdas ¢ uma outra zona de originalidade, que é interior, que é a pesséa prépriamente dita, que é o seu mistério in- transmissivel a outrem. O acesso a este mistério da pesséa s6 se péde obter através das relacGes pro- fundas, através da comunhfo. Tudo que o homem tem de sobrenatural se localiza ai, H& homens que niio surpreendem o seu mistério e vivem dissolvidos na zona de identidade. O problema do destino, da (49) Maritain — Humanisme Integral. 80 GUERREIRO RAMOS vida, toma vulto ¢ se resolve nas profundidades da zona misteriosa da pesséa. © mistério da pessa é © que a torna original, stério € qualquer coisa tio grandiosa e sole- ne que, a sua visio, nos outros, nés nos sentimes pos- suidos por essa coisa que 0 mundo moderno tanto desaprendeu — pelo respeito. O mistério da pesséa & sagrado. O mistério da pesséa torna o hon iavel. E é precisamente por isso que mat € algo terrivel violar esse mistério da pesséa que é 0 lugar em que Deus se encontra com © homem. Quando se mata um homem nao se comete, apenas, um homicidio, mas fere-se profundamente @ Deus, viola-se uma obra de Deus, comete-se um aten- tado contra Deus. O mistério da pesséa é 0 mistério de Deus. i ele o germe da angiistia dos homens ge- dos grandes solitérios, dos misticos. # ele 0 germe da inquietude, © mistério da pessa torna o homem sedento de communbéo. — 0 homem sente necessidade de trans- bordar, de encher outra e de encher-se de outra alma ar_com a qual componha uma terceira pesséa, fusio do eu © do tu em um nds indissoluvel e solidario, O mistério da pesséa engendra a necessida- de de outra alma, a necessidade do amor. O amor é a E mistérios. # uma comunhio de mistérios. O amor verdadeiro entre duas pesséas & uma adesto de mistérios. Como tal, 0 amor é sa- grado, tambem. * soe INTRODUGAO A CULTURA at A descoberta da pessda se resume, assim, na des- coberta da presenca de Deus. A pesséa é uma reali- dade onde estéo, em monobloco, inseparaveis um do outro, o divino ¢ o humano. # a pesséa que faz de cada homem um ser tinico e inconfundivel, um al- guem. E, por isso, o que melhor a define — é a voca- go. Cada homem tem a sua vocac&o particular, 0 seu destino especial, deve realizar-se no tempo de um modo tinico, a seu modo. $6 é uma pess6a quem com- preende sua vocacao ¢ luta por realizd-la, Todo ho- mem trouxe uma palavra diferente para dizer. Esta palavra é toda a vida. Ou melhor: a vida de um ho- mem € a palavra que ele disse. O caminho, portanto, Para ser pessoa ¢ procurar determinar-se conforme a éncia original, é fugir A ago do determinism exterior, deixar de determinar-se pela ética normati- va, pela opinigo. O homem que imita outro homem, ou que tem uma conciéncia gregaria, social, renuncia a ser homem, a ser pesséa, Rainer Maria Rilke le- vava o zelo de ser inconfundivel até o ponto de pedir a Deus de “mourir de sa propre mort, et non pas de celle des médecins” (20). ainda com a con- cigncia desta particularidade de cada pesséa que Léon Bloy escrevia: — “Il y a dans chaque ame un “abime de mystére”. Chacun a son gouffre (21). E com mais forca — “‘chacun d’entre les milliards d'humains est réellement seul devant Dieu” (22), (20) Daniel Rops— Reconnaissance @ Ritke—in Vie Intelectuotle — 10-12-1026, (21) Fumet—Mission de Léon Bloy—Pgs. 368-300. (22) Tem. GUERREIRO RAMOS A particularidade de cada pesséa a torna s6 en- tre os homens. Apenas o individuo péde fugir a esta solidéo, dissolvendo-se. O individuo € o ser imita- tive de Gabriel Tarde, uma coisa, o joguete do de- terminismo naturo-sociolégico de Durkheim, 0 atomo social do materialismo histérico de Carlos, Marx. A. pess6a é determinante e ndo determinada. # ativa, interferente, espirito ¢ nao natureza. Gria- dora e no imitativa. Particular e no geral. “Ne crois pas que ta verité puisse étre trouvée par quel- que outre; plus que de tout aie honte de cela” (23) escreve Gide, fi ‘A experincia de ser sé, de estar em exilio, faz © homem desejoso do outro, do seu complemento, torna-o avido de compor 0 6s, Ai esté a razio da monogamia. “C'est parce que tu différes de moi que je taime; je n'aime en toi que ce qui différe de moi” (24) — eis ai porque buscamos a mulher. Quan- do duas almas se completam misteriosamente & que Dens as predeterminou uma para a outra, De modo que elas se podem dizer — ¢ este — é esta, Entre pes- séas que se integram pela comunhdo, surge um 163, uma intimidade, 0 que ha de mais sagrado ¢ misterioso 50, 0 adultério, que é a pro- fanagio desta intimidade, € 0 maior golpe que péde so- fror um homem que se preza como um alguem. Quan- do um homem chega a compor um més com uma mu- ther, esta Ihe & a propria metade, insubstituivel. Per- (23) Les nourritures terrestres, (4) Tem. INTRODUCAO A CULTURA 83 déla é perder-se. No mundo moderno em que os ho- mens s6 se unem como individuos, as pess6as vivem, tragicamente, em perigo constante, No casamento moderno 0 homem e a mulher sio estranhos um ao outro porque permanecem naquela zona de identida- de, desconhecem a solidariedade profunda, ontolégi- ca, O divércio ¢ uma criacéo do individuo, ¢ simbolo do desrespeito pela pess6a, As relacdes sexuais tem um contetide ontolégico, espiritual, muito mais im- portante do que se pensa. ‘A pesséa nao é a personalidade. A vida em so- ciedade exige uma constante abdicacdo do que somos, como pesséa. Poucas vezes o homem realiza total- mente sua pesséa. A vida social cria disposigdes na alma humana, habitos, por mais infensa que ela seja & sua aco, que a impedem de ser o que essencialmen- te & O santo, que é a pesséa perfeita, retira-se do sé- culo, do mundo, ou cria comunidades, onde a lei civil ndo vigora por the parecer sacrilega. Conseguimos ser, sim, personalidades. Si conseguimos nfo realizar, ‘a nossa missdo, mas um pouco dela através dos obs culos sociais, si conseguimos dar uma afirmagéo ferenciada de nés mesmos, somos uma personalida- de, Noscos atos se apegam a nds como a chama ao fésforo, constituem nosso esplendor (25), nossa per- sonalidade. Nossa personalidade é © conjunto de to- dos os nossos atos, a sinfonia de nossa vida, o pensa- mento de nosso pensamento. Existe uma unidade que Tiga nossos atos, coerentemente, uns aos outros. Esta 4 GUERREIRO RAMOS unidade da aos outros uma imagem de nossa pessoa — a nossa personalidade. Toda vida & um proces- sus que temo seu desfecho na morte, Para ser perso- nalidade, 0 homem admite um minimo de comporta- mento social e gregario. Nao se determina totalmen- te pela conciéncia original, vis-a-vis de Deus, mas, estabelece um equilibrio entre © mundo de Deus & © mundo de Cesar. Apesar do destino de todo ho- meme ser a santificacdo — o santo é, de tal modo, cepcional que podemos chamé-lo de cristo. A personalidade, si nfo sai tansfigura-a, orienta-a para DEUS, como podem suas forcas, vive num constante esforco de perso- nalizagio. E uma construclo coerente que se apresen- ta a cada momento como resultante do esforco de personalizaco: retrato mais ou menos instavel da pessda que integra os reflexos do individuo, as per- sonagens, as conciéncias diversas que cada um tem de sie as aproximacdes mais finas, as vezes incon- cientes, de sua vocacio (26). A pesséa esta sempre alem da personalidade atual, € supra-conciente e su- pra-temporal, mais vasta do que as visdes que se tém dela, mais interior do que as construgées que se ten- tam fazer dela (27). © mundo que surge dependeré da rehabilitacéo da pesséa humana. O trabalho das modernas gera- ‘ges novas deve convergir para este fim. Precisamos destruir os tabus da lei, da moral fariséica ¢ siste- (25) Esprit —n. 28. (21) Idem, INTRODUCAO A CULTURA 85 matizar uma filosofia personalista ¢ fundamentada nela, elaborar uma nova cultura, praticar a profiléxia da civilisagio individualista presente, destruir os mitos anti-humanos que nos oprimem, as tiranias co- letivas, restaurar o “sentimento poético da existén- cia” instaurar 0 “servigo permanente da verdade”. Nem direita, nem esquerda, mas, com a pesséa e pela pess6a. Direita e esquerda sio 0 oportunismo do in- dividuo cioso de sua salvagio e do seu conformismo. A pesséa € aventurosa ¢ herdica. Achemo-la e todos 08 problemas se resolverio. GUERREIRO” RAMOS 1939 CRUZADA DA BOA IMPRENSA MAIXA. POSTAL 31371 RIO

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